![El Reino de los Ciegos 3 - Verena Urrutia, 2009 [tinta da china, acrílico e lápis]](https://www.deficienciavisual.pt/Quadros/El%20Reino%20de%20los%20Ciegos3-VERENA%20URRUTIA-2009.jpg)
El Reino de los Ciegos 3 - Verena Urrutia, 2009
Introdução.
Em todas as sociedades humanas, a cegueira e os indivíduos dela portadores têm sido alvo de
comportamentos caracteristicamente emocionais, mesmo quando gozam de uma
aparente tolerância ou da reverente consideração geral. Tudo se passa, na
realidade, como se a própria ideia de perda de visão ou do apagar da luz dos
olhos implicasse intrinsecamente uma carga emotiva extremamente intensa, em
que uma componente subjectiva de natureza subconsciente e uma componente
psicossocial relacionada com crenças profundamente
enraizadas se confundem indissoluvelmente.
Colocando a questão em termos um pouco
mais concretos, dir-se-ia que, ao adoptar uma determinada
atitude face aos cegos e à cegueira, as pessoas estão, antes, a defrontar os
seus próprios fantasmas inconscientes, reagindo ao medo de se verem atingidos
por aquilo que consideram o mais temível dos males. Se a morte, em sistemas
culturais como o nosso, encerra um potencial simbólico tão pateticamente
negativo, não será exagerado afirmar que a ideia de cegueira lhe é, em muitos
aspectos, comparável, funcionando como uma morte simbólica, um mergulhar nas
trevas da eterna noite... Aliás, certos processos de reabilitação em
indivíduos atingidos por cegueira súbita assumem, sob o ponto de vista psicológico,
o carácter de uma autêntica ressurreição, um retorno vitorioso entre os mortos
após um período mais ou menos longo de morte aparente.
Ao medo subconsciente de perder a visão
associam-se factores de natureza psicossocial mais ou menos
estereotipados, que condicionam profundamente toda a atitude em relação à
cegueira. As crenças e preconceitos nessa área são inumeráveis, confundindo-se
e interpenetrando-se numa complexa rede que influencia decisivamente toda a
gama de comportamentos sociais perante tal deficiência. Refira-se, por exemplo,
esta estranha sobrevivência mítica que a associa ao castigo ou ira divina ou
aos sentimentos irracionais que a relacionam com o instinto sexual.
Louis Scholden, psiquiatra americano que
se dedicou ao estudo de problemas ligados à reabilitação de cegos tardios,
assinala que a investigação psicanalítica aponta para a existência de uma
profunda conexão inconsciente entre a visão e a actividade sexual, cuja
importância teve oportunidade de comprovar pessoalmente no decorrer do seu
trabalho..Todas estas noções erróneas, baseadas em
antigos estereótipos e fantasmas interiorizados, têm sido agravadas ao longo
dos tempos por uma notória ignorâncias das reais potencialidades da pessoa cega
e, mais especificamente, das consequências da cegueira ao nível da
personalidade e da inteligência. Muita gente ficaria surpreendida se conhecesse
os pontos de vista de filósofos eminentes como Diderot ou de nomes da
importância de um Valentin Haüy relativamente aos cegos, pontos de vista tanto
mais estranhos quanto saídos da pena de personalidades que assumiram posições
indiscutivelmente pioneiras no contexto social da sua época.
Não esqueçamos que, se é um facto que tal
estado de coisas se tende progressivamente a alterar com as profundas
modificações nas condições de vida e nos valores sociais e humanos que
caracterizam o actual momento histórico, não é menos incontestável que as
atitudes fundadas em crenças, preconceitos e temores subconscientes são
fortemente resistentes à mudança, evoluindo a um ritmo bem mais lento de que
seríamos levados a supor.
Procedimento Geral
Cegueira e cego são palavras capazes de provocar, na generalidade das pessoas, reacções mais ou
menos inconscientes, quase sempre caracterizadas por uma intensa carga emocional. À semelhança de diversos termos considerados chocantes, estas
palavras têm sido geralmente banidas da linguagem comum, ou, pelo menos, cautelosamente evitadas ou substituídas por expressões mais inócuas.
Ora, o indivíduo cego aparece hoje em dia muito mais frequentemente integrado nos diversos círculos da vida moderna, lado
a lado com o cidadão comum, que, assim, o vai podendo conhecer um pouco mais de perto. Presumivelmente, essa progressiva familiarização com as
condições reais associadas à vida da pessoa cega tem contribuído para atenuar e alterar as antigas atitudes, fazendo com que ideias mais racionais e objectivas
venham substituir as reacções baseadas unicamente na emoção e na crença subconsciente.
Num
pequeno e despretensioso estudo por nós levado a cabo em 1984, procurámos precisamente avaliar, de algum modo, esta questão, recorrendo a um procedimento
extremamente simples. Pretendia-se, numa situação de associação livre (resposta rápida e pouco elaborada a um estímulo verbal), obter uma amostra de reacções à
palavra cegueira, palavra supostamente carregada de tensão e emotividade.
O estudo envolveu três grupos distintos de sujeitos - professores do Ciclo Preparatório e do ensino Secundário de um
estabelecimento de ensino regular, professores do ensino especial e pessoas cegas, no sentido de detectar tendências gerais de resposta e não de proceder a
uma qualquer espécie de análise estatística propriamente dita, o que seria de todo em todo impensável em função da insuficiência das amostras e da precária
estruturação da metodologia utilizada.
Foram seleccionados três grupos de vinte pessoas cada um, em faixas da população cujas tendências de resposta nos pareceu
interessante comparar:
-
vinte professores de um estabelecimento de ensino regular com Ciclo Preparatório e secundário (que participavam na altura numa
sessão de sensibilização à deficiência visual a que compareceram voluntariamente),
-
vinte professores do ensino especial
(equipa de ensino integrado de Lisboa do Básico) e
-
vinte pessoas cegas tomadas mais ou menos ao acaso, com
exclusão de casos de cegueira recente.
A distribuição das idades e sexos não foi tomada em conta, muito embora tenham sido recolhidos os dados respectivos. A
média etária, para os três grupos, situou-se por volta dos trinta e cinco anos, verificando-se uma dominância de mulheres nos dois grupos de professores (cerca de oitenta por cento) e um predomínio de homens no grupo de pessoas cegas
(cerca de setenta por cento).
No caso dos dois grupos de professores, a questão foi apresentada recorrendo ao seguinte texto:
"Pense, durante cerca de trinta segundos, o que lhe ocorre espontaneamente a propósito do termo cegueira. Em
seguida escreva as duas palavras (ou ideias) que mais se impuseram ao seu espírito. Finalmente, escreva um M (tratando-se de mulher) ou um H (tratando-se
de homem), imediatamente seguido do número indicativo da sua idade actual."
Cada pessoa recebeu uma folha com este texto dactilografado e com o espaço destinado a registar a respectiva resposta.
Quanto aos sujeitos cegos, foram abordados individualmente, tendo-lhes sido colocada a questão de forma verbal e em termos
semelhantes aos do texto utilizado para os professores. As respostas correspondentes foram dadas verbalmente, sendo por nós registadas juntamente
com os elementos respeitantes a sexo e idade.
Obtiveram-se, desta forma, quarenta palavras (ou ideias-chave) por grupo, num total de cento e vinte palavras (ou
ideias-chave). Dois professores inquiridos e duas pessoas cegas não responderam de acordo com as condições estabelecidas, sendo, por isso, substituídos por
outros sujeitos em idênticas circunstâncias..
Incluímos, a seguir, a lista de palavras e expressões obtidas por
cada um dos três grupos, por ordem decrescente de frequência e por ordem alfabética dentro dos mesmos valores de frequência (as expressões ou respostas
com mais de uma palavra são apresentadas no final de cada lista parcial).
Professores do ensino regular
|
Professores do ensino especial
|
Pessoas cegas
|
Escuridão - 6 Insegurança - 5 Abandono - 3 Dependência - 3 Escuro - 3 Solidão - 3 Abismo - 2 Noite - 2 Catástrofe - 1 Choque -1 imensidão - 1 Nada -1 Pavor - 1 Vazio -1 Desinteresse da parte dos outros - 1 Dificuldades de
comunicação - 1 Falta de protecção
- 1 Meia vida - 1 Mundo de sons - 1 Sensação de estar
perdido - 1 Vontade de tocar -
1
|
Escuro - 6 Escuridão - 5 Orientação - 4 Cego - 3 Noite - 3 Angústia - 1 Apoio - 1 Bengala - 1 Braille - 1 Buraco - 1 Cor - 1 Dependência - 1 Desorientação - 1 Difícil - 1 Dificuldades - 1 Glaucoma - 1 Limites - 1 Longe - 1 Luz - 1 Mãe - 1 Silêncios - 1 Sombras - 1 Tristeza - 1 Visão - 1
|
Dependência - 4 Marginalização - 3 Mendicidade - 3 Cego - 2 Deficiência - 2 Desemprego - 2 Isolamento - 2 Solidão - 2 Tristeza - 2 Confusão - 1 Desvantagem - 1 Escuridão - 1 Homem - 1 Lamentável - 1 Limite - 1 Luta - 1 Mórbido - 1 Música - 1 Parado - 1 Recusa - 1 Rua - 1 Tacto - 1 Tiques - 1 Triste - 1 Visão - 1 Dificuldades de
distinguir as pessoas - 1 Dificuldade de
locomoção - 1
|
A despeito de deficientemente estruturado
e pouco objectivo, o inquérito proporcionou um conjunto de respostas que
consideramos digno de interesse e atenção. Efectivamente, as palavras e expressões obtidas suscitam, de
imediato, certas ideias e reflexões que poderemos sintetizar em algumas linhas
de força que passamos a analisar.
Respostas de
carácter estereotipado.
Esperar-se-ia, naturalmente, que as respostas fossem
significativamente influenciadas por factores de ordem psicossocial, tais como
crenças e ideias preconceituosas ligadas a estereótipos diversos.
Consideremos palavras tais como escuridão, escuro, noite,
buraco, sombra... É sabido que a crença comum associa à cegueira
a ideia de mundo de trevas, ideia que se cristalizou ao ponto de
constituir um verdadeiro estereótipo, aliás muito bem analisado por Thomas D.
Cutsforth (psicólogo norte-americano cego), na sua obra The Blind in School
and Society. A lógica que está por detrás deste poderoso estereótipo e clara
e eloquente, como não podia deixar de ser: se uma pessoa é cega, ela não pode
percepcionar as luz; e se as trevas ou a obscuridade são o que fica na ausência
da luz, como a experiência individual o demonstra, consequentemente o cego vive
mergulhado na mais completa escuridão... Como refere Cutsforth, "o cego
defronta-se com um mundo de escuridão experimentada, povoada de todos os
horrores da melancolia, medo, solidão, todos os demais sentimentos que o indivíduo assustadiço
experimenta no escuro".
Esta ideia estereotipada transparece
abundantemente das mais diversas fontes, encontrando-se mesmo, por um curioso
fenómeno que mereceria uma detida análise, nos escritos de cegos que nunca
tiveram qualquer noção da luz ou experiência visual (confrontem-se, por
exemplo, Lutando contra as
trevas e outras obras de Helen Keller). De facto, foram as próprias produções
literárias de cegos famosos que contribuíram decisivamente para difundir noções
deste tipo, usufruindo das preferências do público livros como Seguindo a
obscura senda (obra de carácter autobiográfico de Clarence Hawkes).
Curiosamente, diversas variantes da expressão mundo de trevas têm sido
largamente adoptadas como títulos de revistas para cegos em todo o mundo. Cutsforth refere que quinze das
revistas publicadas em relevo em língua inglesa, cerca de meados dos anos
trinta, empregavam designações derivadas dessa mesma ideia ("Em busca da
luz", "Rio de sol para os cegos", "Crespúsculo",
etc.), para citar apenas algumas.
Na obra já mencionada, o mesmo Cutsforth
assinala a impossibilidade de viver mergulhado num mundo de trevas e
obscuridade, na medida em que se irá naturalmente desenvolver todo um fenómeno
adaptativo que o torna neutral, como que cinzento, sem luz nem trevas. Esta
opinião, apoiada em dados de natureza psicológica e psicológica, leva-nos a
crer que o cego não vive, de facto, numa noite permanente, o que, aliás,
no caso, a acontecer, tornaria a sua existência insustentável sob o ponto de vista
sanidade mental.
Não obstante, a ideia de escuridão surge
de imediato associada à cegueira, como o comprovam as respostas proporcionadas
pelo presente estudo. Nos dois primeiros grupos, a respectiva frequência de
aparecimentos afigura-se-nos extremanente significativa, por oposição ao grupo
das pessoas cegas em que surge representada por uma única resposta. Se se pode
tratar, em certa medida, de um simples lugar-comum sem significado especial,
tal circunstância não deixa de constituir, ao mesmo tempo, parece-nos, um
reflexo incontestável de medos irracionais e de uma incompreensão básica da
realidade da cegueira.
Respostas de ressonância emocional.
Ao
confrontar as palavras e expressões correspondentes aos três grupos inquiridos,
torna-se, logo, evidente a tendência para a diminuição de respostas de
ressonância tipicamente emocional.
Atente-se no claro predomínio, no grupo de
professores do ensino regular, de palavras tais como: noite, abismo,
imensidão, nada, pavor, catástrofe, choque, vazio...
A frequência de palavras deste tipo reduz-se nitidamente no grupo constituído
por professores do ensino especial, para se tornar ainda um pouco mais baixo no
grupo das pessoas cegas (convém assinalar que consideramos escuro, escuridão,
noite, etc., como respostas de ressonância emocional, muito embora as tenhamos
já analisado sob um ponto de vista diferente no ponto anterior).
Assim, parece que as pessoas cegas reagem
menos emocionalmente à palavra cegueira e os professores do ensino especial
ligeiramente mais, enquanto o primeiro grupo - professores do ensino regular -
adopta preferencialmente respostas de ressonância tipicamente emotiva.
Muito provavelmente este tipo de respostas é o que mais fielmente traduz as atitudes sociais ainda hoje
prevalecentes relativamente à cegueira, reflectindo todo o complexo quadro de
sentimentos fundados em temores subconscientes e em velhos fantasmas
interiorizados. De qualquer forma, devemos referir que consideramos positiva e
salutar a livre expressão de tais sentimentos denunciada, particularmente,
pelas respostas do primeiro grupo, circunstância talvez fundamental para uma
verdadeira tomada de consciência dos problemas psicossociais ligados à cegueira
e aos indivíduos dela portadores.
Respostas por racionalização.
Paralelamente para a tendência à diminuição de respostas ressonância tipicament
emocional, verifica-se um acréscimo de respostas por racionalização ou análise
intelectual, ou seja, de respostas que traduzem a intervenção de mediadores de
natureza analítica e racional. Assim, no grupo de professores do ensino
especial, surgem palavras tais como visão, luz, cor, glaucoma,
bengala, braille, apoio..., reflectindo reacções já como
que filtradas por uma perspectiva especialmente tecnicoprofissional. Respostas
deste tipo, como facilmente se compreende, podem ser destituídas de um real
interesse psicológico, na medida em que a dimensão sobjectiva e espontânea se
encontra quase completamente subordinada a uma atitude de carácter meramente
racional.
No que se refere ao grupo das pessoas
cegas, a tendência para adoptar respostas por racionalização assume um aspecto
diferente, aparecendo preferencialmente palavras que exprimem estados ou
condições concretas que o sujeito sente como susceptíveis de o situar face ao mundo que o rodeia. É nessa linha que surgem marginalização,
mendicidade, desemprego, desvantagem, limite, etc.,
ou, sob uma forma mais analítica e intelectualizada respostas tais como tacto,
tiques, dificuldades de locomoção, etc. Há, entretanto, neste
particular, que ter em consideração a grande heterogeneidade do grupo das
pessoas cegas, em cuja constituição o único factor tomado em conta foi a não
inclusão de casos de cegueira recente. Tal heterogeneidade transparece, aliás,
do correspondente quadro de respostas, nitidamente caracterizado por uma maior
diferenciação e dispersão.
As respostas por racionalização ou por
análise intelectual que, como vimos, aumentam no segundo grupo e, mais ainda,
no terceiro, não chegam a assumir o carácter de dominância que as respostas de
ressonância tipicamente emocional haviam manifestado no primeiro grupo. Não parece,
pois, totalmente legítimo que os professores do ensino especial e as pessoas
cegas, ao contrário dos professores do ensino regular, prefiram esta modalidade
de resposta, mas, tão-somente, que nesses dois grupos são adoptados, com certo
equilíbrio, ambos os tipos de resposta.
Tanto quanto nos é possível estabelecer, o
aparecimento de respostas de natureza racionalizada não significa,
inevitavelmente, que a atitude fundada em emoções e sentimentos irracionais
tenha dado lugar a uma perspectiva tranquila e objectiva de autêntica
compreensão humana em face da cegueira e dos indivíduos cegos. Em muitos casos,
podemos apenas estar na presença de respostas determinadas ou condicionadas por
factores de tipo defensivo que os sujeitos utilizaram como forma de evitar ou
reduzir a tensão associada a manifestações de tais sentimentos
e emoções.
Respostas tipicamente subjectivas.
Uma última modalidade de resposta
que podemos detectar, ainda que numa frequência particularmente diminuta, é a
que consiste em palavras ou expressões em que o carácter puramente subjectivo
predomina sobre o carácter qualquer outro aspecto. É o que se passa com os
termos mãe, homem, rua e,
no caso de um sujeito que fomos forçados a eliminar por razões ligadas
às condições de resposta estabelecida, a
palavra azul... Tratando-se de uma situação de associação livre, o
aparecimento de respostas deste tipo traduz a influência de sentimentos ou
atitudes próprios de individualidade psicológica de cada sujeito ou da sua
idiossincrasia, escapando, evidentemente, a uma análise teórica como aquela que
um estudo desta natureza torna possível.
A frequência pouco significativa com que
esta categoria específica nos surge, não implica de modo algum que a reacção da
generalidade dos sujeitos se tenha caracterizado por uma tendência manifesta
para encobrir oucoarctar a expressão de sentimentos de ordem pessoal. Na
realidade, muitas das respostas adoptadas reflectem, incontestaavelmente, a
subjectividade dos indiviíduos inquiridos, por vezes mesmo de uma forma
extremamente autêntica e vivida.
Considerações finais.
Como já demos a
entender, nunca esteve nos horizontes deste pequeno estudo constituir mais do
que um simples contributo ou uma despretensiosa base de reflexão relativamente
a uma vasta área de problemas que se prendem com o significado psicológico e
social da cegueira. Só assim deve ser compreendido o procedimento adoptado,
cujo rigor e objectividade haveria que submeter a uma avaliação criteriosa..
Algumas questões se impõem desde logo a
que seria necessário responder: porque se trabalhou com grupos de dimensão tão
reduzida e não se constituíram amostras em outros sectores da população? Qual o
real significado psicológico e a respectiva validade de uma resposta deste
tipo? Não obstante colocarmos a nós próprios questões como estas, cuja
pertinência reconhecemos desde o início, optamos por concluir o trabalho, uma
vez que o considerávamos fundamentalmente um esboço para uma posterior e mais
consistente estudo.
As pessoas que gentilmente colaboraram,
dispondo-se a responder ao inquérito, demonstraram entrever, de algum modo, o
alcance do problema e manifestaram mesmo, em alguns casos, um vivo interesse em
ter acesso às eventuais conclusões. É, pois,
também em atenção a essas pessoas que ora nos decidimos a publicar o trabalho,
ainda que um tanto tardiamente.
No essencial, as respostas obtidas
confirmam que a palavra cegueira continua a provocar reacções em que a
componente emocional assume uma importância decisiva, surgindo a dominância de
sentimentos relacionados com fantasmas subconscientes profundamente enraizados.
Naturalmente, tal situação não é de estranhar, em face da intensa carga
simbólica de temores e medos de ordem inconsciente que caracteriza a forma pela
qual a nossa cultura tem encarado a cegueira ao longo dos tempos.
Não esqueçamos que, implicitamente e
quantas vezes de uma maneira perfeitamente explícita, inúmeras pessoas afirmam
ainda hoje que de todos os males que se poderão vir a abater sobre elas a
cegueira é o que mais sinceramente temem e lhes infunde maior
pavor!... Mais do que a deterioração das faculdades mentais, a condenação a uma
imobilidade permanente ou qualquer outra moléstia do corpo ou do espírito, a
perspectiva de perder a visão causa-lhes uma sensação inigualável de pânico e
horror, muito embora a cegueira, comparativamente a diversas outras
perturbações, permita alimentar a esperança de uma vida relativamente normal em
muitos domínios.
Indubitavelmente, trata-se da complexa
acção dos fantasmas a que já aludimos, fantasmas que será imprescindível exorcizar
para que a ideia de cegueira deixe de transportar consigo essa intensa carga
simbólica que lhe está associada e, consequentemente, os próprios cegos possam
esperar uma melhor compreensão e aceitação por parte da socieade em que vivem.
De facto, só depois de verdadeiramente exorcizada toda a ancestral corte de
fantasmas tão intimamente associada à cegueira, os cegos poderão ser olhados
com certa naturalidade, sem que complicados processos psicológicos de natureza
defensiva nos ponham em guarda contra algo que, implicitamente constitui uma
terrível ameaça para o nosso próprio equilíbrio mental.
Para tanto, há que conhecer de perto e
divulgar por todos os meios as reais potencialidades das pessoas cegas, ao
nível das diferentes áreas que permitam a sua plena concretização e
desenvolvimento integral. E, sobretudo, há que promover uma progressiva mas
firme evolução ideológica que torne efectivamente possível uma autêntica
mudança de atitude no plano social e individual.
FIM
ϟ
A Palavra Cegueira: Um Pequeno Estudo sobre as Reacções de Três Grupos Diferentes
Vítor Rapoula Reino, 1988
Em 1991, este trabalho foi distinguido com o Prémio Branco Rodrigues 1988-90.
Publicado
in Poliedro, N.º 330, 32ª Série, Maio,
pp. 1-13, e Nº 331, Junho, pp. 1-16.
Δ
18.Abr.2013
publicado
por
MJA
|