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 Sobre a Deficiência Visual

A palavra CEGUEIRA:

Um pequeno Estudo sobre as Reacções de 3 Grupos Diferentes

Vítor Rapoula Reino
 

El Reino de los Ciegos 3 - Verena Urrutia, 2009 [tinta da china, acrílico e lápis]
El Reino de los Ciegos 3 - Verena Urrutia, 2009
 

Introdução.

Em todas as sociedades humanas, a cegueira e os indivíduos dela portadores têm sido alvo de comportamentos caracteristicamente emocionais, mesmo quando gozam de uma aparente tolerância ou da reverente consideração geral. Tudo se passa, na realidade, como se a própria ideia de perda de visão ou do apagar da luz dos olhos implicasse intrinsecamente uma carga emotiva extremamente intensa, em que uma componente subjectiva de natureza subconsciente e uma componente psicossocial relacionada com  crenças profundamente enraizadas se confundem indissoluvelmente.

Colocando a questão em termos um pouco mais concretos, dir-se-ia que, ao adoptar uma determinada atitude face aos cegos e à cegueira, as pessoas estão, antes, a defrontar os seus próprios fantasmas inconscientes, reagindo ao medo de se verem atingidos por aquilo que consideram o mais temível dos males. Se a morte, em sistemas culturais como o nosso, encerra um potencial simbólico tão pateticamente negativo, não será exagerado afirmar que a ideia de cegueira lhe é, em muitos aspectos, comparável, funcionando como uma morte simbólica, um mergulhar nas trevas da eterna noite... Aliás, certos processos de reabilitação em indivíduos atingidos por cegueira súbita assumem, sob o ponto de vista psicológico, o carácter de uma autêntica ressurreição, um retorno vitorioso entre os mortos após um período mais ou menos longo de morte aparente.

Ao medo subconsciente de perder a visão associam-se factores de natureza psicossocial mais ou menos estereotipados, que condicionam profundamente toda a atitude em relação à cegueira. As crenças e preconceitos nessa área são inumeráveis, confundindo-se e interpenetrando-se numa complexa rede que influencia decisivamente toda a gama de comportamentos sociais perante tal deficiência. Refira-se, por exemplo, esta estranha sobrevivência mítica que a associa ao castigo ou ira divina ou aos sentimentos irracionais que a relacionam com o instinto sexual.

Louis Scholden, psiquiatra americano que se dedicou ao estudo de problemas ligados à reabilitação de cegos tardios, assinala que a investigação psicanalítica aponta para a existência de uma profunda conexão inconsciente entre a visão e a actividade sexual, cuja importância teve oportunidade de comprovar pessoalmente no decorrer do seu trabalho..

Todas estas noções erróneas, baseadas em antigos estereótipos e fantasmas interiorizados, têm sido agravadas ao longo dos tempos por uma notória ignorâncias das reais potencialidades da pessoa cega e, mais especificamente, das consequências da cegueira ao nível da personalidade e da inteligência. Muita gente ficaria surpreendida se conhecesse os pontos de vista de filósofos eminentes como Diderot ou de nomes da importância de um Valentin Haüy relativamente aos cegos, pontos de vista tanto mais estranhos quanto saídos da pena de personalidades que assumiram posições indiscutivelmente pioneiras no contexto social da sua época.

Não esqueçamos que, se é um facto que tal estado de coisas se tende progressivamente a alterar com as profundas modificações nas condições de vida e nos valores sociais e humanos que caracterizam o actual momento histórico, não é menos incontestável que as atitudes fundadas em crenças, preconceitos e temores subconscientes são fortemente resistentes à mudança, evoluindo a um ritmo bem mais lento de que seríamos levados a supor.


Procedimento Geral

Cegueira e cego são palavras capazes de provocar, na generalidade das pessoas, reacções mais ou menos inconscientes, quase sempre caracterizadas por uma intensa carga emocional. À semelhança de diversos termos considerados chocantes, estas palavras têm sido geralmente banidas da linguagem comum, ou, pelo menos, cautelosamente evitadas ou substituídas por expressões mais inócuas.

Ora, o indivíduo cego aparece hoje em dia muito mais frequentemente integrado nos diversos círculos da vida moderna, lado a lado com o cidadão comum,   que, assim, o vai podendo conhecer um pouco mais de perto. Presumivelmente, essa progressiva familiarização com as condições reais associadas à vida da pessoa cega tem contribuído para atenuar e alterar as antigas atitudes, fazendo com que ideias mais racionais e objectivas venham substituir as reacções baseadas unicamente na emoção e na crença subconsciente.

Num pequeno e despretensioso estudo por nós levado a cabo em 1984, procurámos precisamente avaliar, de algum modo, esta questão, recorrendo a um procedimento extremamente simples. Pretendia-se, numa situação de associação livre (resposta rápida e pouco elaborada a um estímulo verbal), obter uma amostra de reacções à palavra cegueira, palavra supostamente carregada de tensão e emotividade.

O estudo envolveu três grupos distintos de sujeitos - professores do Ciclo Preparatório e do ensino Secundário de um estabelecimento de ensino regular, professores do ensino especial e pessoas cegas, no sentido de detectar tendências gerais de resposta e não de proceder a uma qualquer espécie de análise estatística propriamente dita, o que seria de todo em todo impensável em função da insuficiência das amostras e da precária estruturação da metodologia utilizada.

Foram seleccionados três grupos de vinte pessoas cada um, em faixas da população cujas tendências de resposta nos pareceu interessante comparar:

  • vinte professores de um estabelecimento de ensino regular com Ciclo Preparatório e secundário (que participavam na altura numa sessão de sensibilização à deficiência visual a que compareceram voluntariamente),

  • vinte professores do ensino especial (equipa de ensino integrado de Lisboa do Básico) e

  • vinte pessoas cegas tomadas mais ou menos ao acaso, com exclusão de casos de cegueira recente.

A distribuição das idades e sexos não foi tomada em conta, muito embora tenham sido recolhidos os dados respectivos. A média etária, para os três grupos, situou-se por volta dos trinta e cinco anos, verificando-se uma dominância de mulheres nos dois grupos de professores (cerca de oitenta por cento) e um predomínio de homens no grupo de pessoas cegas (cerca de setenta por cento).

No caso dos dois grupos de professores, a questão foi apresentada recorrendo ao seguinte texto:

"Pense, durante cerca de trinta segundos, o que lhe ocorre espontaneamente a propósito do termo cegueira. Em seguida escreva as duas palavras (ou ideias) que mais se impuseram ao seu espírito. Finalmente, escreva um M (tratando-se de mulher) ou um H (tratando-se de homem), imediatamente seguido do número indicativo da sua idade actual."

Cada pessoa recebeu uma folha com este texto dactilografado e com o espaço destinado a registar a respectiva resposta.

Quanto aos sujeitos cegos, foram abordados individualmente, tendo-lhes sido colocada a questão de forma verbal e em termos semelhantes aos do texto utilizado para os professores. As respostas correspondentes foram dadas verbalmente, sendo por nós registadas juntamente com os elementos respeitantes a sexo e idade.

Obtiveram-se, desta forma, quarenta palavras (ou ideias-chave) por grupo, num total de cento e vinte palavras (ou ideias-chave). Dois professores inquiridos e duas pessoas cegas não responderam de acordo com as condições estabelecidas, sendo, por isso, substituídos por outros sujeitos em idênticas circunstâncias..

Incluímos, a seguir,  a lista de palavras e expressões obtidas por cada um dos três grupos, por ordem decrescente de frequência e por ordem alfabética dentro dos mesmos valores de frequência (as expressões ou respostas com mais de uma palavra são apresentadas no final de cada lista parcial).

 

Professores do ensino regular
Professores do ensino especial
Pessoas cegas
Escuridão - 6
Insegurança - 5
Abandono - 3
Dependência - 3
Escuro - 3
Solidão - 3
Abismo - 2
Noite - 2
Catástrofe - 1
Choque -1
imensidão - 1
Nada -1
Pavor - 1
Vazio -1
Desinteresse da parte dos outros - 1
Dificuldades de comunicação - 1
Falta de protecção - 1
Meia vida - 1
Mundo de sons - 1
Sensação de estar perdido - 1
Vontade de tocar - 1
Escuro - 6
Escuridão - 5
Orientação - 4
Cego - 3
Noite - 3
Angústia - 1
Apoio - 1
Bengala - 1
Braille - 1
Buraco - 1
Cor - 1
Dependência - 1
Desorientação - 1
Difícil - 1
Dificuldades - 1
Glaucoma - 1
Limites - 1
Longe - 1
Luz - 1
Mãe - 1
Silêncios - 1
Sombras - 1
Tristeza - 1
Visão - 1
Dependência - 4
Marginalização - 3
Mendicidade - 3
Cego - 2
Deficiência - 2
Desemprego - 2
Isolamento - 2
Solidão - 2
Tristeza - 2
Confusão - 1
Desvantagem - 1
Escuridão - 1
Homem - 1
Lamentável - 1
Limite - 1
Luta - 1
Mórbido - 1
Música - 1
Parado - 1
Recusa - 1
Rua - 1
Tacto - 1
Tiques - 1
Triste - 1
Visão - 1
Dificuldades de distinguir as pessoas - 1
Dificuldade de locomoção - 1


A despeito de deficientemente estruturado e pouco objectivo, o inquérito proporcionou um conjunto de respostas que consideramos digno de interesse e atenção. Efectivamente,  as palavras e expressões obtidas suscitam, de imediato, certas ideias e reflexões que poderemos sintetizar em algumas linhas de força que passamos a analisar.


Respostas de carácter estereotipado.

Esperar-se-ia, naturalmente, que as respostas fossem significativamente influenciadas por factores de ordem psicossocial, tais como crenças e ideias preconceituosas ligadas a estereótipos diversos.

Consideremos palavras tais como escuridão, escuro, noite, buraco, sombra... É sabido que a crença comum associa à cegueira a ideia de mundo de trevas, ideia que se cristalizou ao ponto de constituir um verdadeiro estereótipo, aliás muito bem analisado por Thomas D. Cutsforth (psicólogo norte-americano cego), na sua obra The Blind in School and Society. A lógica que está por detrás deste poderoso estereótipo e clara e eloquente, como não podia deixar de ser: se uma pessoa é cega, ela não pode percepcionar as luz; e se as trevas ou a obscuridade são o que fica na ausência da luz, como a experiência individual o demonstra, consequentemente o cego vive mergulhado na mais completa escuridão... Como refere Cutsforth, "o cego defronta-se com um mundo de escuridão experimentada, povoada de todos os horrores da melancolia, medo, solidão, todos os demais sentimentos que o indivíduo assustadiço experimenta no escuro".

Esta ideia estereotipada transparece abundantemente das mais diversas fontes, encontrando-se mesmo, por um curioso fenómeno que mereceria uma detida análise, nos escritos de cegos que nunca tiveram qualquer noção da luz ou experiência visual (confrontem-se, por exemplo, Lutando contra as trevas e outras obras de Helen Keller). De facto, foram as próprias produções literárias de cegos famosos que contribuíram decisivamente para difundir noções deste tipo, usufruindo das preferências do público livros como Seguindo a obscura senda (obra de carácter autobiográfico de Clarence Hawkes). Curiosamente, diversas variantes da expressão mundo de trevas têm sido largamente adoptadas como títulos de revistas para cegos em todo o mundo. Cutsforth refere que quinze das revistas publicadas em relevo em língua inglesa, cerca de meados dos anos trinta, empregavam designações derivadas dessa mesma ideia ("Em busca da luz", "Rio de sol para os cegos", "Crespúsculo", etc.), para citar apenas algumas.

Na obra já mencionada, o mesmo Cutsforth assinala a impossibilidade de viver mergulhado num mundo de trevas e obscuridade, na medida em que se irá naturalmente desenvolver todo um fenómeno adaptativo que o torna neutral, como que cinzento, sem luz nem trevas. Esta opinião, apoiada em dados de natureza psicológica e psicológica, leva-nos a crer que o cego não vive, de facto, numa noite permanente, o que, aliás, no caso, a acontecer, tornaria a sua existência insustentável sob o ponto de vista sanidade mental.

Não obstante, a ideia de escuridão surge de imediato associada à cegueira,   como o comprovam as respostas proporcionadas pelo presente estudo. Nos dois primeiros grupos, a respectiva frequência de aparecimentos afigura-se-nos extremanente significativa, por oposição ao grupo das pessoas cegas em que surge representada por uma única resposta. Se se pode tratar, em certa medida, de um simples lugar-comum sem significado especial, tal circunstância não deixa de constituir, ao mesmo tempo, parece-nos, um reflexo incontestável de medos irracionais e de uma incompreensão básica da realidade da cegueira.


Respostas de ressonância emocional.

Ao confrontar as palavras e expressões correspondentes aos três grupos inquiridos, torna-se, logo, evidente a tendência para a diminuição de respostas de ressonância tipicamente emocional.

Atente-se no claro predomínio, no grupo de professores do ensino regular, de palavras tais como: noite, abismo, imensidão, nada, pavor, catástrofe, choque, vazio... A frequência de palavras deste tipo reduz-se nitidamente no grupo constituído por professores do ensino especial, para se tornar ainda um pouco mais baixo no grupo das pessoas cegas (convém assinalar que consideramos escuro, escuridão, noite, etc., como respostas de ressonância emocional, muito embora as tenhamos já analisado sob um ponto de vista diferente no ponto anterior).

Assim, parece que as pessoas cegas reagem menos emocionalmente à palavra cegueira e os professores do ensino especial ligeiramente mais, enquanto o primeiro grupo - professores do ensino regular - adopta preferencialmente respostas de ressonância tipicamente emotiva.

Muito provavelmente este tipo de respostas é o que mais fielmente  traduz as atitudes sociais ainda hoje prevalecentes relativamente à cegueira, reflectindo todo o complexo quadro de sentimentos fundados em temores subconscientes e em velhos fantasmas interiorizados. De qualquer forma, devemos referir que consideramos positiva e salutar a livre expressão de tais sentimentos denunciada, particularmente, pelas respostas do primeiro grupo, circunstância talvez fundamental para uma verdadeira tomada de consciência dos problemas psicossociais ligados à cegueira e aos indivíduos dela portadores.


Respostas por racionalização.

Paralelamente para a tendência à diminuição de respostas ressonância tipicament emocional, verifica-se um acréscimo de respostas por racionalização ou análise intelectual, ou seja, de respostas que traduzem a intervenção de mediadores de natureza analítica e racional. Assim, no grupo de professores do ensino especial, surgem palavras tais como visão, luz, cor, glaucoma, bengala, braille, apoio..., reflectindo reacções já como que filtradas por uma perspectiva especialmente tecnicoprofissional. Respostas deste tipo, como facilmente se compreende, podem ser destituídas de um real interesse psicológico, na medida em que a dimensão sobjectiva e espontânea se encontra quase completamente subordinada a uma atitude de carácter meramente racional.

No que se refere ao grupo das pessoas cegas, a tendência para adoptar respostas por racionalização assume um aspecto diferente, aparecendo preferencialmente palavras que exprimem estados ou condições concretas que o sujeito sente como susceptíveis de o situar face ao mundo que o rodeia. É nessa linha que surgem marginalização, mendicidade, desemprego, desvantagem, limite, etc., ou, sob uma forma mais analítica e intelectualizada respostas tais como tacto, tiques, dificuldades de locomoção, etc. Há, entretanto, neste particular, que ter em consideração a grande heterogeneidade do grupo das pessoas cegas, em cuja constituição o único factor tomado em conta foi a não inclusão de casos de cegueira recente. Tal heterogeneidade transparece, aliás, do correspondente quadro de respostas, nitidamente caracterizado por uma maior diferenciação e dispersão.

As respostas por racionalização ou por análise intelectual que, como vimos, aumentam no segundo grupo e, mais ainda, no terceiro, não chegam a assumir o carácter de dominância que as respostas de ressonância tipicamente emocional haviam manifestado no primeiro grupo. Não parece, pois, totalmente legítimo que os professores do ensino especial e as pessoas cegas, ao contrário dos professores do ensino regular, prefiram esta modalidade de resposta, mas, tão-somente, que nesses dois grupos são adoptados, com certo equilíbrio, ambos os tipos de resposta.

Tanto quanto nos é possível estabelecer, o aparecimento de respostas de natureza racionalizada não significa, inevitavelmente, que a atitude fundada em emoções e sentimentos irracionais tenha dado lugar a uma perspectiva tranquila e objectiva de autêntica compreensão humana em face da cegueira e dos indivíduos cegos. Em muitos casos, podemos apenas estar na presença de respostas determinadas ou condicionadas por factores de tipo defensivo que os sujeitos utilizaram como forma de evitar ou reduzir a tensão associada a manifestações de tais sentimentos e emoções.


Respostas tipicamente subjectivas.

Uma última modalidade de resposta que podemos detectar, ainda que numa frequência particularmente diminuta, é a que consiste em palavras ou expressões em que o carácter puramente subjectivo predomina sobre o carácter qualquer outro aspecto. É o que se passa com os termos mãe, homem, rua e,  no caso de um sujeito que fomos forçados a eliminar por razões ligadas às condições de resposta estabelecida,  a palavra azul... Tratando-se de uma situação de associação livre, o aparecimento de respostas deste tipo traduz a influência de sentimentos ou atitudes próprios de individualidade psicológica de cada sujeito ou da sua idiossincrasia, escapando, evidentemente, a uma análise teórica como aquela que um estudo desta natureza torna possível.

A frequência pouco significativa com que esta categoria específica nos surge, não implica de modo algum que a reacção da generalidade dos sujeitos se tenha caracterizado por uma tendência manifesta para encobrir oucoarctar a expressão de sentimentos de ordem pessoal. Na realidade, muitas das respostas adoptadas reflectem, incontestaavelmente, a subjectividade dos indiviíduos inquiridos, por vezes mesmo de uma forma extremamente autêntica e vivida.


Considerações finais.

Como já demos a entender, nunca esteve nos horizontes deste pequeno estudo constituir mais do que um simples contributo ou uma despretensiosa base de reflexão relativamente a uma vasta área de problemas que se prendem com o significado psicológico e social da cegueira. Só assim deve ser compreendido o procedimento adoptado, cujo rigor e objectividade haveria que submeter a uma avaliação criteriosa..

Algumas questões se impõem desde logo a que seria necessário responder: porque se trabalhou com grupos de dimensão tão reduzida e não se constituíram amostras em outros sectores da população? Qual o real significado psicológico e a respectiva validade de uma resposta deste tipo? Não obstante colocarmos a nós próprios questões como estas, cuja pertinência reconhecemos desde o início, optamos por concluir o trabalho, uma vez que o considerávamos fundamentalmente um esboço para uma posterior e mais consistente estudo.

As pessoas que gentilmente colaboraram, dispondo-se a responder ao inquérito, demonstraram entrever, de algum modo, o alcance do problema e manifestaram mesmo, em alguns casos, um vivo interesse em ter acesso às eventuais conclusões. É, pois, também em atenção a essas pessoas que ora nos decidimos a publicar o trabalho, ainda que um tanto tardiamente.

No essencial, as respostas obtidas confirmam que a palavra cegueira continua a provocar reacções em que a componente emocional assume uma importância decisiva, surgindo a dominância de sentimentos relacionados com fantasmas subconscientes profundamente enraizados. Naturalmente, tal situação não é de estranhar, em face da intensa carga simbólica de temores e medos de ordem inconsciente que caracteriza a forma pela qual a nossa cultura tem encarado a cegueira ao longo dos tempos.

Não esqueçamos que, implicitamente e quantas vezes de uma maneira perfeitamente explícita, inúmeras pessoas afirmam ainda hoje que de todos os males que se poderão vir a abater sobre elas a cegueira é o que mais sinceramente temem e lhes infunde maior pavor!... Mais do que a deterioração das faculdades mentais, a condenação a uma imobilidade permanente ou qualquer outra moléstia do corpo ou do espírito, a perspectiva de perder a visão causa-lhes uma sensação inigualável de pânico e horror, muito embora a cegueira, comparativamente a diversas outras perturbações, permita alimentar a esperança de uma vida relativamente normal em muitos domínios.

Indubitavelmente, trata-se da complexa acção dos fantasmas a que já aludimos, fantasmas que será imprescindível exorcizar para que a ideia de cegueira deixe de transportar consigo essa intensa carga simbólica que lhe está associada e, consequentemente, os próprios cegos possam esperar uma melhor compreensão e aceitação por parte da socieade em que vivem. De facto, só depois de verdadeiramente exorcizada toda a ancestral corte de fantasmas tão intimamente associada à cegueira, os cegos poderão ser olhados com certa naturalidade, sem que complicados processos psicológicos de natureza defensiva nos ponham em guarda contra algo que, implicitamente constitui uma terrível ameaça para o nosso próprio equilíbrio mental.

Para tanto, há que conhecer de perto e divulgar por todos os meios as reais potencialidades das pessoas cegas, ao nível das diferentes áreas que permitam a sua plena concretização e desenvolvimento integral. E, sobretudo, há que promover uma progressiva mas firme evolução ideológica que torne efectivamente possível uma autêntica mudança de atitude no plano social e individual.

FIM

 

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A Palavra Cegueira: Um Pequeno Estudo sobre as Reacções de Três Grupos Diferentes
Vítor Rapoula Reino, 1988
Em 1991, este trabalho foi distinguido com o Prémio Branco Rodrigues 1988-90. Publicado in Poliedro, N.º 330, 32ª Série, Maio, pp. 1-13, e Nº 331, Junho, pp. 1-16.

Δ

18.Abr.2013
publicado por MJA