Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual


A História da Minha Vida

Helen Keller

Keller e Sullivan, foto de 1895
Helen Keller e Anne Sullivan, fotografia de 1895

Índice
Parte I: A história da minha vida - caps I a XXIII
Parte II: Um relato suplementar sobre a vida e a educação de Helen Keller
   > Escrevendo o livro
   > Personalidade
   > Educação
   > Fala
   > Estilo literário
Parte III: Cartas (1887-1901)
   > Introdução de John Macy
   > Algumas cartas
Apêndice 1: Trecho de "The world I live in"
Apêndice 2: Trecho de "Out of the dark"
Notas
Bibliografia
A Alexander Graham Bell
Que ensinou os surdos a falar e capacitou quem ouve
a escutar as palavras do Atlântico às Rochosas,
dedico esta história da minha vida
***

PARTE 1
A HISTÓRIA DA MINHA VIDA

CAPÍTULO 1

É com uma espécie de medo que começo a escrever a história da minha vida. Tenho, como se diz, uma supersticiosa hesitação em erguer o véu que cobre minha infância como um nevoeiro dourado. A tarefa de escrever uma autobiografia é difícil. Quando tento classificar minhas primeiras impressões, noto que fato e fantasia se assemelham através dos anos que vinculam o passado ao presente. A mulher cobre as experiências da criança com sua própria fantasia. Umas poucas impressões se destacam vividamente dos primeiros anos de minha vida, mas "as sombras da casa-prisão pairam sobre o resto". Além disso, muitas alegrias e tristezas da infância perderam sua pungência, assim como muitos incidentes de importância vital nos primórdios de minha educação foram esquecidos na excitação das grandes descobertas. Por isso, a fim de não ser entediante, tentarei apresentar numa série de esboços somente os episódios que me parecem os mais interessantes e importantes.

Nasci a 27 de junho de 1880, em Tuscumbia, uma cidadezinha do norte do Alabama.

Por parte de meu pai, a família descende de Gaspar Keller, um suíço que se instalou em Maryland. Um de meus ancestrais suíços foi o primeiro professor dos surdos em Zurique e escreveu um livro sobre a educação deles - uma coincidência singular, embora seja verdade não haver nenhum rei que não tenha um escravo entre seus ancestrais, e nenhum escravo que não tenha um rei entre os seus.

Meu avô, o filho de Gaspar Keller, "penetrou" em grandes extensões de terra no Alabama e finalmente lá se estabeleceu.

Contaram-me que uma vez por ano ele ia de Tuscumbia à Filadélfia a cavalo comprar suprimentos para a fazenda, e minha tia guarda muitas cartas para a família dele que fornecem relatos encantadores e vivos dessas viagens.

Minha avó Keller era filha de um dos ajudantes-de-ordens de Lafayette, Alexander Moore, e neta de Alexander Spotswood, um antigo governador colonial da Virgínia. Era também prima em segundo grau de Robert E. Lee.

Meu pai, Arthur H. Keller, era capitão do Exército Confederado e minha mãe Kate Adams, muitos anos mais jovem do que ele, foi sua segunda esposa. O avô dela, Benjamin Adams, casou-se com Susanna E. Goodhue e morou em Newbury, Massachusetts, por muitos anos. Seu filho Charles Adams nasceu em Newburyport, Massachusetts, e se mudou para Helena, Arkansas. Quando a Guerra Civil estourou, ele lutou ao lado do Sul e se tornou general-de-brigada. Casou-se com Lucy Helen Everett, que pertencia à mesma família de Edward Everett e do dr. Edward Everett Hale. Depois que a guerra acabou, a família mudou-se para Memphis, Tennessee.

Até a época em que a doença me privou da visão e audição, eu morava numa pequena casa, que consistia de um grande quarto quadrado e um pequeno em que a criada dormia. É um costume do Sul construir uma pequena casa perto da sede principal, como um anexo para ser usado quando preciso. Tal casa foi construída por meu pai depois da Guerra Civil e quando ele se casou com minha mãe passaram a morar lá. Era completamente coberta de videiras, trepadeiras de rosas e madressilvas. Do jardim, ela parecia um caramanchão. A pequena varanda era escondida por uma tela de rosas amarelas e esmilaces do Sul. Era o local favorito para beija-flores e abelhas.

O lar dos Keller, onde a família morava, ficava a poucos passos de nosso pequeno caramanchão. Era chamado de "Ivy Green" porque a casa, as árvores e as cercas em torno eram cobertas de linda hera inglesa. Seu jardim fora de moda foi o paraíso da minha infância.
 

Ivy Green, foto da casa dos Keller
Fotografia de Ivy Green, a casa dos Keller

Mesmo antes da chegada de minha professora, eu costumava tatear ao longo das quadradas e rígidas cercas de buxo e, guiada pelo olfato, encontrava as primeiras violetas e lírios. Lá também, depois de um acesso temperamental, eu ia buscar conforto e esconder meu rosto quente na relva e nas folhas frescas. Que alegria era me perder naquele jardim de flores, perambular feliz de um local para outro até que, esbarrando subitamente numa bela videira, eu a reconhecesse por suas folhas e flores e soubesse que era a videira cobrindo a dilapidada casa de verão na extremidade do jardim! Ali, também, havia trepadeiras de clematites, jasmins pendentes e algumas raras flores doces chamadas lírios-borboletas porque suas frágeis pétalas pareciam asas de borboletas. Mas as rosas eram as mais adoráveis de todas. Jamais encontrei nas estufas do Norte rosas tão maravilhosas como as rosas-trepadeiras do meu lar no Sul. Pendiam em compridas guirlandas de nossa varanda, enchendo todo o ar com sua fragrância, sem serem afetadas por nenhum outro cheiro; e de manhã bem cedo, lavadas pelo orvalho, eram tão macias e puras que eu não podia deixar de imaginar se não se assemelhavam aos asfódelos do jardim de Deus.

O começo de minha vida foi simples e muito parecido com o de qualquer outra. Cheguei, vi e venci, como sempre acontece com o primeiro bebê da família. Houve as discussões habituais a respeito de meu nome. O primeiro bebê da família não devia ter um nome qualquer, todos eram enfáticos a esse respeito. Meu pai sugeriu Mildred Campbell, uma ancestral a quem estimara muito, e se recusou a continuar participando da discussão. Minha mãe resolveu o problema seguindo seu desejo, o de me dar o nome de solteira de sua própria mãe, Helen Everett. Contudo, com o alvoroço de me levar para a igreja, meu pai esqueceu o nome pelo caminho, naturalmente, já que era uma escolha da qual se recusara a participar. Quando o ministro perguntou-lhe o nome, papai lembrou-se apenas de que fora decidido dar-me o nome de minha avó, e o forneceu como Helen Adams.

Contaram-me que enquanto eu ainda usava camisolinhas compridas, já demonstrava sinais de uma disposição ávida e afirmativa. Insistia em imitar tudo que via os outros fazerem. Aos seis meses eu conseguia pipilar "Como vai" e certo dia atraí a atenção de todos dizendo "Chá, chá, chá" de forma decidida.

Mesmo após minha doença, lembro de uma das palavras que aprendi naqueles primeiros meses. Era "água". E continuei a emitir um som parecido com o daquela palavra depois que toda a fala fora perdida. Só parei de emitir o som "ah-uah" quando aprendi a soletrar a palavra.

Contaram-me que andei quando tinha um ano de idade.

Minha mãe acabara de me tirar da banheira e me segurava no colo quando fui subitamente atraída pelas sombras oscilantes das folhas que dançavam ao sol sobre o chão liso. Escorreguei do colo de mamãe e quase corri para elas. Quando o impulso cessou, caí e chorei para que mamãe me tomasse nos braços de novo.

Esses dias felizes não duraram muito. Uma curta primavera, musical pelas canções do rouxinol e do tordo, um verão rico de frutas e rosas e um outono de ouro e escarlate passaram rapidamente e deixaram seus presentes aos pés de uma criança ávida, encantada. Então, no sombrio mês de fevereiro, chegou a doença que fechou meus olhos e ouvidos, mergulhando-me na inconsciência de um bebê recém-nascido. Chamaram-na de congestão aguda do estômago e do cérebro. 1 O médico achou que eu não conseguiria sobreviver. Numa manhã bem cedo, porém, a febre foi embora tão súbita e misteriosamente como chegara. Houve uma grande alegria na família naquela manhã, mas ninguém, nem mesmo o médico, sabia que eu jamais enxergaria ou ouviria de novo.

Imagino que eu ainda tenha lembranças confusas da doença.

Lembro-me especialmente da ternura com que mamãe tentava me consolar em minhas horas acordadas de inquietação e dor e da agonia e da perturbação com que eu despertava depois de um sono meio agitado e voltava os olhos tão secos e quentes para a parede, longe da outrora amada luz, que chegava a mim mais obscurecida a cada dia. Contudo, exceto por essas lembranças flutuantes, se é que são lembranças de fato, tudo parece muito irreal, como um pesadelo. Gradualmente acostumei-me ao silêncio e à escuridão que me rodeavam e esqueci que algum dia fora diferente, até que ela chegou - minha professora, a que iria libertar meu espírito. Mas durante os primeiros 19 meses de vida eu vislumbrara os extensos campos verdes, um céu luminoso, árvores e flores que a escuridão posterior não conseguiu apagar inteiramente. Se vemos uma vez, "o dia é nosso e o que o dia mostrou".

Δ


CAPÍTULO II

Não consigo lembrar-me do que aconteceu durante os primeiros meses de minha doença. Sei apenas que me sentava no colo de mamãe ou me agarrava a seu vestido enquanto ela desempenhava suas tarefas na casa. Minhas mãos tocavam cada objeto e registravam cada movimento, e assim aprendi a conhecer muitas coisas. Logo senti a necessidade de alguma comunicação com os outros e comecei a fazer toscos sinais. Um aperto de mão significava "Não" e um acenar afirmativo da cabeça "Sim"; um puxão significava "Vem", um empurrão "Vai". Se eu queria pão, imitava o ato de cortar as fatias e passar-lhes manteiga.

Quando queria que minha mãe fizesse sorvete para o jantar, eu fazia o sinal de trabalhar com o congelador e tremia demonstrando frio. Além disso, mamãe conseguia me fazer entender muita coisa.

Sempre sabia quando ela queria que eu lhe levasse algo e corria ao andar de cima ou a qualquer outro lugar indicado por ela. Na verdade, devo à sua amorosa sabedoria tudo que era luminoso e bom em minha longa noite.

Eu entendia boa parte do que estava acontecendo comigo.

Aos cinco anos aprendi a dobrar e guardar as roupas limpas quando eram trazidas da lavanderia e conseguia distinguir as minhas das outras. Pelo modo como minha mãe e minha tia se vestiam, eu sabia quando iam sair e invariavelmente implorava para ir com elas. Sempre me buscavam quando havia visita e, quando os convidados se despediam, eu acenava para eles, acho que com uma vaga lembrança do significado do gesto. Certo dia alguns cavalheiros visitaram mamãe e senti a porta da frente se fechando e outros sons que indicavam a chegada deles. Num súbito impulso, corri escada acima antes que alguém pudesse me deter para vestir uma roupa que eu imaginava apropriada. Em pé ante o espelho, como vira outros fazerem, untava minha cabeça de óleo e cobria generosamente o rosto de pó-de-arroz. Então prendia um véu na cabeça para que ele me cobrisse o rosto e caísse em dobras até os ombros e amarrava enormes anquinhas à volta de minha pequena cintura, de modo que ficavam penduradas atrás, quase chegando à bainha da saia. Assim arrumada, eu descia para ajudar a fazer sala para as visitas.

Não me lembro quando percebi pela primeira vez ser diferente das outras pessoas, mas eu sabia disso antes da vinda de minha professora. Eu notara que mamãe e meus amigos não usavam sinais como eu quando queriam algo, mas falavam com a boca. Às vezes eu ficava entre duas pessoas que conversavam e tocava seus lábios. Como não conseguia entender, ficava perturbada. Movia os lábios e gesticulava freneticamente sem resultado.

Isso me deixava às vezes tão zangada que eu chutava e gritava até ficar exausta.

Acho que tinha consciência de quando me comportava mal, pois sabia que machucava Ella, minha babá, com meus chutes; quando meu acesso temperamental passava, eu sentia algo parecido com o remorso. Entretanto, não consigo lembrar-me de nenhum exemplo em que esse sentimento me impedisse de repetir o mau comportamento quando eu não conseguia o que queria.

Naquela época, Martha Washington, uma menina negra filha de nossa cozinheira, e Belle, uma velha cadela setter que fora uma grande caçadora em seus tempos, eram minhas companheiras constantes. Martha Washington entendia meus sinais e eu raramente tinha dificuldade em conseguir dela exatamente o que queria.

Agradava-me dominá-la e ela geralmente preferia submeter-se à minha tirania do que se arriscar a um engalfinhamento comigo.

Eu era forte, ativa, indiferente às conseqüências. Conhecia minha própria mente muito bem e sempre conseguia que minha vontade prevalecesse, mesmo se tivesse de lutar com unhas e dentes para isso. Passávamos muito tempo na cozinha, amassando bolas de farinha, ajudando a fazer sorvete, moendo café, brigando pela tigela do bolo, alimentando as galinhas e perus que enxameavam pelos degraus que levavam à cozinha. Muitos eram tão mansinhos que comiam na minha mão e me deixavam apalpá-los.

Certo dia, um grande peru macho arrebatou um tomate de mim, fugindo em seguida. Inspiradas talvez pelo sucesso do sr. Peru, levamos para o depósito de lenha um bolo que a cozinheira tinha acabado de cobrir e o comemos inteiro. Passei muito mal depois e imagino que o peru também.

A galinha-d'angola gosta de esconder seus ninhos em lugares inusitados, e um de meus maiores prazeres era catar seus ovos na relva alta. Não podia contar a Martha Washington quando eu queria ir atrás dos ovos, mas dobrava as mãos e as colocava no chão, o que significava algo redondo na relva; Martha sempre entendia. Quando tínhamos a sorte de encontrar um ninho, eu nunca a deixava levar os ovos para casa, dando a entender por sinais enérgicos que ela podia cair e quebrá-los.

Os galpôes onde o milho era estocado, o estábulo que abrigava os cavalos e o pátio onde as vacas eram ordenhadas de manhã e à noite eram fontes infalíveis de interesse para Martha e para mim. Os ordenhadores me deixavam ficar com as mãos nas vacas enquanto ordenhavam, e eu era freqüentemente chicoteada pelo rabo da vaca por minha curiosidade.

A preparação para o Natal era sempre um encantamento para mim. Claro que eu não sabia o que era aquilo tudo, mas usufruía os agradáveis odores que enchiam a casa e os bocadinhos que eram dados a Martha Washington e a mim para nos aquietarmos. Atravancávamos o caminho, mas isso não interferia nem um pouco com o nosso prazer. Permitiam que moêssemos as especiarias, escolhêssemos as passas e lambêssemos as colheres.

Eu pendurava minha meia porque os outros o faziam; contudo, não me lembro de ficar especialmente interessada na cerimônia, nem a curiosidade me fazia acordar antes da aurora para procurar meus presentes.

Martha Washington gostava tanto de encrenca quanto eu.

Duas meninas pequenas sentavam-se nos degraus da varanda numa quente tarde de julho. Uma era negra como o ébano, com pequenas massas de cabelo pixaim amarrado com barbante por toda a cabeça como saca-rolhas. A outra era branca, com longos cachos dourados. Uma tinha seis anos, a outra mais dois ou três que a primeira. A mais nova era cega - eu - e a outra era Martha Washington. Ocupávamo-nos de recortar bonecas de papel, mas logo nos cansamos dessa diversão. Após cortar os cadarços de nossos sapatos e aparar todas as folhas da madressilva a nosso alcance, voltei minha atenção para os cachinhos de Martha. Apesar de objetar no início, ela finalmente submeteu-se. Pensando ser justo que fizesse o mesmo, ela pegou a tesoura e cortou um dos meus cachos, e teria cortado todos não fosse a interferência a tempo de minha mãe.

Belle, nossa cadela, minha outra companheira, era velha e preguiçosa e preferia dormir perto de lareiras acesas do que correr comigo. Tentei repetidamente ensinar-lhe minha linguagem de sinais, mas ela era obtusa e desatenta. As vezes se sobressaltava e estremecia de animação, depois ficava totalmente rígida, como fazem os cães quando estão com um pássaro na mira. Á época, eu não sabia por que Beile agia dessa forma, mas sabia que ela não fazia o que eu queria. Isso me irritava e a aula sempre terminava numa luta de boxe unilateral. Belle levantava, esticava-se preguiçosamente, dava uma ou duas fungadelas com desprezo, ia para o lado oposto da lareira e deitava de novo; eu, cansada e desapontada, saía em busca de Martha.

Guardo muitos incidentes daqueles primeiros anos fixados na memória, isolados, mas claros e distintos, tornando ainda mais intenso o sentido daquela vida sem dias, sem objetivo, silenciosa.

Certo dia derramei água no avental e o estendi para secar ante o fogo que bruxuleava na lareira da sala. O avental não secou com a rapidez que eu queria, então me aproximei e o estiquei bem por cima das cinzas quentes. O fogo se avivou, as chamas me envolveram a um ponto que num instante minhas roupas queimavam. Fiz um barulhão que fez Viney, minha velha baba, vir em meu socorro. Ela quase me sufocou jogando um cobertor sobre mim, mas apagou o fogo. Exceto por minhas mãos e cabelo, não fiquei muito queimada.

Nessa época, descobri a utilidade de uma chave. Certa manhã tranquei minha mãe na despensa, onde foi obrigada a permanecer três horas, enquanto as criadas estavam numa parte afastada da casa. Ela continuou batendo na porta enquanto eu, sentada do lado de fora na escada da varanda, ria alegremente ao sentir as vibrações das batidas. Esse meu último truque de mau comportamento convenceu meus pais de que eu precisava ser educada o mais rapidamente possível. Depois da chegada da srta. Sullivan, minha professora, procurei logo uma oportunidade para trancá-la em seu quarto. Subi ao andar de cima com algo que mamãe me fizera entender que eu devia dar a srta. Sullivan; mas assim que o dei a ela, bati a porta, tranquei-a e escondi a chave debaixo do guarda-roupa no corredor. Não conseguiram me fazer contar onde estava a chave. Meu pai foi obrigado a pegar uma escada e tirar a srta. Sullivan pela janela - para minha alegria. Meses depois eu apareci com a chave.

Quando eu tinha uns cinco anos, nos mudamos da pequena casa coberta de videiras para uma casa grande. A família abarcava meu pai, minha mãe, dois meio-irmãos mais velhos e, posteriormente, uma irmãzinha, Mildred. Minha mais nítida e antiga lembrança de meu pai é de abrir caminho por um grande turbilhão de jornais a seu lado e, com ele sozinho, segurar uma folha de jornal ante seu rosto. Eu ficava muitíssimo intrigada para saber o que ele estava fazendo. Imitava essa ação e até mesmo usava seus óculos, pensando que eles poderiam resolver o mistério. Mas não descobri o segredo por vários anos. Então eu soube que papéis eram aqueles, um deles editado por meu pai.

Papai era muito amoroso e indulgente, devotado ao lar, raramente nos deixando, exceto na estação de caça. Disseram-me que era um grande caçador e um atirador famoso. Depois da família, ele amava seus cachorros e sua arma. Sua hospitalidade era fantástica, quase excessiva, e ele raramente chegava em casa sem um convidado. Seu orgulho especial era o grande pomar, onde, dizia-se, criava as melhores melancias e morangos do país; para mim ele trazia as primeiras uvas maduras e as frutinhas vermelhas mais selecionadas. Lembro de seu toque acariciante quando me levava de árvore em árvore, de videira em videira e como ficava encantado com qualquer coisa que me agradasse.

Era um famoso contador de histórias; depois que adquiri o uso da linguagem, ele costumava soletrar desajeitadamente em minha mão seus casos mais inteligentes; nada lhe agradava mais do que repeti-los para mim num momento oportuno.

Eu estava no Norte, apreciando os últimos bonitos dias do verão de 1896, quando soube da morte de meu pai. Ele adoeceu, passou por um curto período de sofrimento agudo e logo tudo estava acabado. Essa foi a minha primeira grande tristeza - minha primeira experiência pessoal com a morte.

Como escrever sobre mamãe? Está tão próxima de mim que parece quase indelicado falar dela.

Por muito tempo encarei minha irmãzinha como uma intrusa.

Eu sabia que deixara de ser a única queridinha da mamãe e o pensamento me enchia de ciúme. Ela se sentava constantemente no colo de mamãe, onde eu costumava ficar, e parecia apoderar-se de todo o tempo e o carinho maternos. Certo dia, aconteceu algo que me pareceu acrescentar insulto à injustiça.

Naquela época eu tinha uma boneca muito paparicada e mal- tratada, a quem depois dei o nome de Nancy. Lamentavelmente, era ela a desamparada vítima de meus rompantes de mau gênio e de afeição, de modo que suas condições pioravam com o tempo.

Eu tinha bonecas que falavam, choravam e abriam e fechavam os olhos; mas jamais amei nenhuma como à pobre Nancy. Ela tinha um berço e freqüentemente eu passava uma hora ou mais balançando-a. Protegia tanto a boneca quanto o berço com o mais ciumento cuidado, mas certa vez encontrei minha irmã dormindo pacificamente no berço. A presunção de alguém a quem eu ainda não estava ligada por nenhum laço de amor me deixou com raiva. Voei para o berço, derrubei-o e minha pequena irmã poderia ter morrido se mamãe não a pegasse quando ela caiu.

Portanto, quando caminhamos no vale de uma dupla solidão, conhecemos pouco das ternas afeições que se originam das palavras, ações e companheirismo carinhosos. Mas depois, quando recuperei minha herança humana, Mildred e eu nos tornamos muito apegadas e gostávamos de andar de mãos dadas sempre que queríamos, embora ela não pudesse entender minha linguagem de sinais nem eu o seu tagarelar infantil.

Δ

CAPÍTULO III

Enquanto isso, o desejo de me expressar crescia. Os poucos sinais que eu usava se tornavam cada vez menos adequados e meus fracassos em me fazer entender eram invariavelmente seguidos por explosões. Eu sentia como se mãos invisíveis me segurassem e fazia esforços frenéticos para me libertar. Eu lutava - não que lutar ajudasse as coisas, mas o espírito de resistência era forte em mim; geralmente irrompia em lágrimas e me sentia fisicamente exausta. Se por acaso mamãe estivesse perto, eu me jogava em seus braços, infeliz demais para lembrar a causa da tempestade. Após certo tempo, a necessidade de algum modo de comunicação se tornou tão urgente que essas explosões ocorriam diariamente, às vezes de hora em hora.

Meus pais ficaram profundamente aflitos e perplexos.

Morávamos muito longe de qualquer escola para cegos ou surdos e parecia improvável que alguém viesse a um lugar tão fora de mão quanto Tuscumbia para ensinar a uma criança surda e cega.

Na verdade, meus amigos e parentes às vezes duvidavam que eu pudesse ser ensinada. O único raio de esperança de mamãe veio de "American notes", de Dickens. Ela lera o relato dele sobre Laura Bridgman 2 e se lembrava vagamente de que, apesar de surda e cega, ela recebera instrução. Mas lembrava-se também, com uma fisgada de desesperança, que o dr. Howe, 3 que descobrira o modo de ensinar aos surdos e cegos, morrera há muitos anos. Seus métodos haviam provavelmente morrido com ele; e, se não tivessem, como uma menina numa distante cidadezinha remota do Alabama receberia esse benefício?

Quando eu tinha cerca de seis anos, meu pai ouviu falar de um eminente oftalmologista de Baltimore que tivera êxito em muitos casos aparentemente sem esperança. Meus pais imediatamente resolveram me levar a Baltimore para ver se algo poderia ser feito por meus olhos.

A jornada, da qual me lembro bem, foi muito agradável. Fiz amizade com muitas pessoas do trem. Uma das senhoras me deu uma caixa de conchas. Meu pai fez buracos nelas para que eu pudesse ligá-las e por muito tempo elas me mantiveram feliz e contente. O cobrador do trem também foi amável. Geralmente, quando passava em suas rondas, eu lhe segurava as pontas do casaco enquanto ele recolhia e picotava os tíquetes. Seu dispositivo de picotar, com o qual me deixava ficar, era um brinquedo e tanto. Enroscada num canto do banco, eu me divertia por horas fazendo pequenos furos engraçados num pedaço de cartolina.

Minha tia me fez uma grande boneca de toalhas. Era a coisa mais cômica e disforme, aquela boneca improvisada, sem nariz, boca, orelhas ou olhos - nada que mesmo a imaginação de uma criança não pudesse converter num rosto. De modo bastante curioso, a ausência de olhos me causou mais impressão do que todos os outros defeitos juntos. Destaquei isso para todos com provocante persistência, mas ninguém parecia estar à altura de fornecer olhos à boneca. No entanto, uma idéia brilhante surgiu e o problema foi resolvido. Saí do banco tropeçando e procurei até encontrar a capa de minha tia, enfeitada com grandes contas.

Puxei duas contas e indiquei a ela que eu queria que as costurasse na boneca. Ela levou minhas mãos aos seus olhos de um modo interrogador e concordei energicamente com a cabeça. As contas foram costuradas no lugar certo e eu não conseguia conter minha alegria; mas imediatamente perdi todo o interesse na boneca.

Durante a viagem inteira não tive nenhum acesso de mau humor, havia tantas coisas para ocupar minha mente e meus dedos.

Quando chegamos a Baltimore, o dr. Chisholm nos recebeu amavelmente, mas nada pôde fazer. Contudo, disse que eu poderia ser educada. Aconselhou meu pai a consultar o dr. Alexander Graham Bell, de Washington, que poderia lhe dar informações sobre escolas e professores de crianças surdas ou cegas.

Obedecendo ao conselho do médico, fomos imediatamente para Washington ver o dr. Bell, meu pai com um coração pesado e muitas desconfianças, e eu, inteiramente inconsciente de sua angústia, tendo prazer na excitação de andar de um lugar para outro. Mesmo criança, imediatamente senti a ternura e a solidariedade que tornaram o dr. Bell tão querido a tantos, assim como suas maravilhosas realizações provocavam admiração. Ele me sentou em seu colo enquanto eu examinava seu relógio e fez o relógio dar as horas para mim. Entendeu meus sinais. Eu soube disso e o adorei imediatamente. Contudo, não imaginei que essa entrevista seria a porta pela qual eu passaria da escuridão para a luz; do isolamento para a amizade, o companheirismo, o conhecimento e o amor.

Dr. Bell aconselhou meu pai a escrever para o sr. Anagnos, 4 diretor da Instituição Perkins em Boston, o cenário dos grandes esforços do dr. Howe com os cegos, e lhe perguntasse se tinha um professor competente para iniciar minha educação. Meu pai o fez imediatamente e, em poucas semanas, chegava uma amável carta do sr. Anagnos com a reconfortante notícia de que uma professora fora encontrada. Estávamos no verão de 1886. A srta. Sullivan, contudo, só chegou em março do ano seguinte.

Assim, deixei o Egito e me defrontei com o Sinai, e um poder divino tocou meu espírito e lhe deu a visão, para que eu me deparasse com muitas maravilhas. E da montanha sagrada ouvi uma voz que dizia: "O conhecimento é amor, luz e visão".

Δ

 

CAPÍTULO IV

O dia mais importante de que me lembro de toda minha vida é o da chegada de minha professora, Anne Mansfield Sullivan. Fico maravilhada quando penso no imenso contraste entre as duas vidas que esse dia ligou. Estávamos a 3 de março de 1887, três meses antes que eu completasse sete anos.

Fotografia de 1887.  Helen Keller aos 7 anos
Fotografia de 1887. Helen Keller aos 7 anos.

Na tarde daquele dia agitado, fiquei na varanda, muda, expectante. Pelos sinais de minha mãe e pelo apressado entra-e-sai da casa, adivinhei vagamente que algo pouco usual estava prestes a acontecer; assim, fui para a porta e esperei na escada. O sol da tarde penetrava na massa de madressilvas que cobria a varanda e caía no meu rosto virado para cima. Meus dedos pousavam quase inconscientemente nas folhas e flores familiares que haviam acabado de brotar saudando a doce primavera do Sul. Eu não sabia que maravilhas e surpresas o futuro me guardava. Raiva e amargura haviam continuamente caído sobre mim por semanas, e um profundo langor sucedera-se a essa luta apaixonada.

Algum dia você já esteve no mar cercado por um denso nevoeiro, como se uma tangível escuridão branca se fechasse sobre você e o grande navio, tenso e ansioso, tateasse em busca do caminho para a costa com uma bola de chumbo e uma sonda e você esperasse com o coração batendo que algo acontecesse?

Eu era como aquele navio antes de minha instrução começar, só que não tinha bússola ou sonda, nem meios de saber quão próximo estava o porto. "Luz! Me dêem luz!" era o grito sem palavras de minha alma, e a luz do amor brilhou sobre mim naquela mesma hora.

Senti passos que se aproximavam. Estiquei a mão imaginando que era mamãe. Alguém a pegou e eu fui levantada e abraçada bem apertado pela pessoa que viera revelar todas as coisas para mim e, mais do que todas as coisas, me amar.

Na manhã seguinte à chegada de minha professora, ela me levou a seu quarto e me deu uma boneca. As criancinhas cegas da Instituição Perkins a tinham enviado e Laura Bridgman a vestira; mas eu só soube disso depois. Quando brinquei com a boneca algum tempo, a srta. Sullivan lentamente soletrou em minha mão a palavra "b-o-n-e-c-a". Fiquei imediatamente interessada nesse jogo com dedos e tentei imitá-lo. Quando finalmente consegui fazer as letras corretamente, fiquei vermelha de prazer e orgulho infantil.

Descendo a escada correndo em busca de minha mãe, estendi a mão e imitei as letras para boneca. Não sabia que estava soletrando uma palavra ou mesmo que palavras existiam; eu simplesmente estava deixando meus dedos macaquearem uma imitação. Nos dias que se seguiram aprendi a soletrar desse modo incompreensível um grande número de palavras, entre elas alfinete, chapéu, xícara e alguns verbos, como sentar, levantar e andar. Mas só depois de minha professora estar comigo há várias semanas eu entendi que tudo tinha um nome.

Certo dia, enquanto eu brincava com minha nova boneca, a srta. Sullivan pôs minha grande boneca de trapos no meu colo também, soletrou a palavra "b-o-n-e-c-a" e tentou me fazer entender que "b-o-n-e-c-a" se aplicava às duas. Antes, naquele mesmo dia, tivemos um arranca-rabo por causa das palavras  "c-a-n-e-c-a" e "a-g-u-a". A srta. Sullivan tentara me fazer assimilar que "c-a-n-e-c-a" era caneca e "a-g-u-a" era água, mas eu insistia em confundir as duas. Em desespero, ela deixara o assunto de lado por um tempo, mas para voltar a ele na primeira oportunidade. Fiquei impaciente com suas repetidas tentativas e, pegando a boneca nova, atirei-a no chão. Fiquei extremamente encantada ao sentir os fragmentos da boneca quebrada a meus pés. Nem tristeza nem arrependimento seguiram-se à minha apaixonada explosão. Eu não amara a boneca. No mundo parado e escuro em que eu vivia não havia nenhuma ternura ou sentimento forte pelos outros. Senti minha professora varrer os fragmentos para um lado da lareira e tive uma sensação de satisfação de que a causa de meu desconforto fora removida. Ela me entregou meu chapéu e eu soube que ia sair ao sol quente. Tal idéia, se uma sensação sem palavras se pode chamar assim, fez-me pular e saltitar de prazer.

Descemos o caminho para a casa do poço, atraídas pela fragrância das madressilvas que a cobriam. Alguém estava tirando água e a srta. Sullivan colocou minha mão sob o jorro da água.

Enquanto a fria corrente despejava-se sobre uma de minhas mãos, a srta. Sullivan soletrava na outra a palavra água, primeiro lentamente, depois rapidamente. Fiquei imóvel, com toda a atenção fixada nos movimentos de seus dedos. De repente senti uma consciência envolta em nevoeiro, como de algo esquecido - o eletrizar de um pensamento que voltava; e de algum modo o mistério da linguagem foi revelado a mim. Soube então que "á-g-u-a" significava a maravilhosa coisa fresca que fluía sobre minha mão.

Aquela palavra viva despertou minha alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, enfim, libertou-a! Ainda havia barreiras, é verdade, mas barreiras que poderiam ser varridas com o tempo. [ Ver carta da srta. Sullivan ]

Eu deixei a casa do poço ansiosa para aprender. Tudo tinha um nome e cada nome fazia nascer um novo pensamento.

Enquanto voltávamos para casa, cada objeto que eu tocava parecia estremecer de vida, já que eu via tudo com a nova e estranha visão que chegara a mim. Ao passar pela porta, lembrei da boneca que eu quebrara. Tateei o caminho até a lareira, peguei os pedaços da boneca e tentei em vão juntá-los. Então meus olhos se encheram de lágrimas; pois percebi o que fizera e, pela primeira vez, senti arrependimento e tristeza.

Aprendi uma grande quantidade de novas palavras naquele dia. Não lembro de todas, mas sei que mãe, pai, irmã, professora estavam entre elas - palavras que deviam fazer o mundo brotar para mim, "como o bastão de Aarão, com flores". Seria difícil achar uma criança mais feliz do que eu no final daquele dia memorável, quando, deitada na minha cama, repassava as alegrias que ele me trouxera. Pela primeira vez na vida ansiei para que um novo dia chegasse.

Δ

 

CAPÍTULO V

Lembro-me de muitos incidentes no verão de 1887 que se seguiram ao súbito acordar de minha alma. Eu explorava incessantemente com minhas mãos, aprendendo o nome de cada objeto que tocava; e quanto mais manejava coisas e aprendia seus nomes e usos, mais alegre e autoconfiante tornava-se minha noção de parentesco com o resto do mundo.

Quando chegou a época das margaridas e dos botões-de- ouro, a srta. Sullivan me conduziu pela mão pelos campos, onde os homens preparavam a terra para semear, até as margens do rio Tennessee. Lá, sentada na relva quente, tive minhas primeiras aulas sobre os dons da natureza. Aprendi como o sol e a chuva fazem crescer do chão cada árvore que é agradável à vista e dá frutos para se comer, como os pássaros constroem seus ninhos e vivem e florescem de terra em terra, como o esquilo, o cervo, o leão e todas as outras criaturas encontram comida e abrigo. A medida que meu conhecimento sobre as coisas crescia, sentia-me cada vez mais encantada com o mundo. Muito tempo antes de eu aprender a somar ou descrever a forma da Terra, a srta. Sullivan me ensinara a encontrar beleza nos bosques perfumados, em cada fio de relva e nas curvas e covinhas da mão de minha irmã pequena. Ela vinculou meus pensamentos mais antigos à natureza e me fez sentir que "pássaros, flores e eu éramos companheiros felizes".

Nessa mesma época, porém, uma experiência me ensinou que a natureza nem sempre é amável. Certo dia, minha professora e eu estávamos voltando de uma longa perambulação. A manhã fora bonita, mas estava ficando cada vez mais quente e abafado quando finalmente começamos a voltar para casa. Por duas ou três vezes paramos sob uma árvore à margem do caminho. Nossa última parada foi sob uma cerejeira selvagem, a pouca distância de casa. A sombra era graciosa e a árvore era tão fácil de escalar que, com a ajuda de minha professora, consegui me instalar num assento entre os galhos. Estava tão fresco sob a árvore que a srta. Sullivan propôs que almoçássemos ali mesmo. Prometi ficar quieta ali enquanto ela fosse até em casa buscar nosso almoço.

Subitamente uma mudança se passou acima da árvore. Todo o calor do sol deixara o ar. Eu sabia que o céu estava negro porque tudo que eu ouvia, que significava luz para mim, desaparecera da atmosfera. Um odor estranho subia da terra. Eu o conhecia, era o odor que sempre precede uma tempestade, e um medo sem nome agarrou meu coração. Sentia-me absolutamente só, cortada de meus amigos e da terra firme. A imensidão e o desconhecido me envolveram. Permaneci imóvel e expectante; senti um frio terror subindo. Eu ansiava pela volta de minha professora; acima de tudo, eu queria descer da árvore.

Houve um momento de silêncio sinistro e a seguir uma movimentação variada das folhas. Um estremecimento sacudiu a árvore, uma rajada de vento que teria me derrubado se eu não tivesse me agarrado no galho com todas as forças. A árvore oscilava e sacudia. Os gravetos pequenos quebravam-se e caíam sobre mim como um chuveiro. Fui tomada por um impulso selvagem de pular, mas o terror me segurava. Acocorei-me na forquilha da árvore. Os ramos davam chicotadas à minha volta.

Senti a dissonância intermitente que vinha de vez em quando, como se algo pesado tivesse caído e o choque fosse subindo até o galho onde eu sentava. Isso levou meu suspense ao ponto mais alto, e exatamente quando eu achava que a árvore e eu cairíamos juntas, a professora pegou minha mão e me ajudou a descer. Eu me agarrei nela, tremendo de alegria por sentir a terra mais uma vez sob meus pés. Eu aprendera uma nova lição - que a natureza "desfecha guerra aberta contra seus filhos, e sob o toque mais suave esconde garras traiçoeiras".

Após essa experiência passou-se muito tempo antes que eu subisse em outra árvore. A simples idéia me enchia de terror. Foi a doce atração da mimosa totalmente florida que finalmente superou meus temores. Uma linda manhã de primavera, quando eu estava sozinha na casa de verão, lendo, senti um maravilhoso e sutil perfume no ar. Tive um sobressalto e instintivamente estiquei as mãos. Era como se o espírito da primavera tivesse atravessado a casa de verão. "O que é isso?", perguntei e no minuto seguinte reconheci o odor das flores de mimosa. Tateei o caminho até a extremidade do jardim, sabendo que a mimosa estava perto da cerca, na virada do atalho. Sim, lá estava ela, trêmula aos raios mornos do sol, os ramos carregados de flores quase tocando a longa relva. Já teria havido algo tão requintadamente belo no mundo? Suas flores delicadas encolhiam-se ante o mínimo toque terreno; a impressão era de que a árvore do paraíso fora transplantada para a terra. Abri caminho através de um chuveiro de pétalas até o grande tronco e por um minuto fiquei ali, indecisa; então, colocando o pé no largo espaço entre as forquilhas dos galhos, subi na árvore. Senti alguma dificuldade para me segurar, pois os galhos eram muito largos e a casca feria minhas mãos.

Mas tive a deliciosa sensação de que estava fazendo algo pouco habitual e maravilhoso, então continuei subindo cada vez mais alto até chegar a um pequeno assento que alguém construíra lá há muito tempo, sentindo-me como uma fada numa nuvem rósea.

Depois disso passei muitas horas felizes em minha árvore do paraíso, tendo belos pensamentos e sonhos luminosos.

Δ

CAPÍTULO VI

Eu tinha agora a chave para toda a linguagem e estava ansiosa para aprender a usá-la. As crianças que ouvem aprendem a linguagem sem qualquer esforço especial; as palavras que caem dos lábios alheios são pegas por elas no ar, como se diz, prazerosamente, enquanto a criança surda precisa prendê-las numa armadilha através de um lento e geralmente penoso processo.

Contudo, seja qual for o processo, o resultado é maravilhoso. De nomear um objeto, avançamos gradualmente passo a passo até atravessarmos a vasta distância entre nossa primeira silaba gaguejada e o relâmpago de um pensamento num verso de Shakespeare.

No início, quando a professora contava sobre uma coisa nova, eu fazia muito poucas perguntas. Minhas idéias eram vagas e meu vocabulário inadequado; mas à medida que meu conhecimento das coisas crescia e eu aprendia cada vez mais palavras, meu campo de interrogações se ampliou e eu voltava repetidamente ao mesmo assunto, ávida por mais informação. Às vezes uma palavra nova revivia uma imagem que alguma experiência anterior gravara no meu cérebro.

Lembro-me da manhã em que perguntei pela primeira vez o significado da palavra "amor". Isso foi antes que eu conhecesse muitas palavras. Eu encontrara algumas violetas precoces no jardim e as trouxera para a srta. Sullivan. Ela tentou me beijar mas naquela época eu não gostava que ninguém me beijasse, exceto minha mãe. A srta. Sullivan me abraçou gentilmente e soletrou na minha mão: - Eu amo Helen.

- O que é amor? - perguntei.

Ela me puxou mais para perto e disse: - Está aqui - apontando para o meu coração, de cujas batidas tive consciência pela primeira vez.

Suas palavras me intrigaram muito, porque no momento eu não entendia nada que eu não tocasse.

Senti o cheiro das violetas em sua mão e fiz, meio em palavras meio em sinais, uma pergunta que significava: - Amor é a doçura das flores?

- Não -, disse a srta. Sullivan.

Pensei novamente sobre o assunto. O sol quente brilhava sobre nós.

- Isso não é amor? - perguntei, apontando na direção de onde vinha o calor. - Isso não é amor?

Eu achava que não poderia haver nada mais bonito que o sol, cuja tepidez faz todas as coisas crescerem. Mas a srta. Sullivan sacudiu a cabeça e fiquei muito intrigada e desapontada. Achei estranho que minha professora não pudesse me mostrar o que era amor.

Um ou dois dias depois, eu estava enfiando contas de diferentes tamanhos em grupos simétricos num fio - duas contas grandes, três pequenas, e assim por diante. Cometera muitos erros, e a srta. Sullivan os apontava repetidamente, com uma suave paciência. Finalmente notei um erro muito óbvio na seqüência e, por um instante, concentrei minha atenção na aula e tentei pensar como devia ter arrumado as contas. A srta. Sullivan tocou minha testa e soletrou com decidida ênfase:

- Pense.

Num relâmpago, eu soube que a palavra era o nome do processo que estava acontecendo em minha cabeça. Essa foi minha primeira percepção consciente de uma idéia abstrata.

Fiquei parada por um longo tempo - não estava pensando nas contas no meu colo, e sim tentando entender um significado para "amor" à luz daquela nova idéia. O sol tinha estado encoberto o dia todo e alguns rápidos aguaceiros já haviam desabado; mas subitamente o sol irrompeu de novo em todo seu esplendor do Sul.

Mais uma vez perguntei à minha professora: - Isso não é amor?

- Amor é algo como as nuvens que estavam no céu antes do sol aparecer - respondeu ela. Então, em palavras mais simples do que essas, que naquela época eu não poderia ter entendido, ela explicou:

- Você sabe que não pode tocar as nuvens, mas sente a chuva e sabe como as flores e a terra sedenta ficam contentes de recebê-la depois de um dia quente. Da mesma forma, não pode tocar o amor, mas sente a doçura que ele derrama em tudo. Sem amor, você não seria feliz nem ia querer brincar.

A bela verdade irrompeu em minha mente - senti que havia linhas invisíveis estendidas entre meu espírito e o espírito dos Outros.

Helen com o cão. Fotografia de 1887
Helen com o cão. Fotografia de 1887

Desde o início de minha educação, a srta. Sullivan estabeleceu a prática de falar comigo como falaria com qualquer criança dotada de audição; a única diferença era que ela soletrava as frases na minha mão em vez de dizê-las. Se eu não conhecia as palavras e expressões necessárias à expressão de meus pensamentos, ela as fornecia, até sugerindo conversas quando eu era incapaz de manter minha ponta do diálogo.

Esse processo continuou por vários anos; pois a criança surda não aprende em um mês, ou mesmo em dois ou três anos, as inumeráveis expressões idiomáticas e frases usadas na mais simples comunicação diária. A criancinha que escuta aprende pela constante repetição e imitação. A conversa que escuta em casa estimula sua mente, sugere tópicos e faz surgir a expressão espontânea de suas próprias idéias. Essa troca natural de idéias é negada à criança surda. Percebendo isso, a professora determinou-se a fornecer os tipos de estímulos de que eu sentia falta. E o fez repetindo-me tanto quanto possível, literalmente, o que ela ouvia e me mostrando como eu poderia participar da conversa.

Mas passou-se muito tempo até que eu me arriscasse a tomar a iniciativa, e mais tempo ainda antes de poder descobrir algo apropriado a dizer na hora certa.

O surdo e o cego acham muito difícil dominar as amenidades da conversa. Como tal dificuldade deve aumentar no caso dos que são ao mesmo tempo surdos e cegos! Não podem distinguir o tom da voz ou, sem ajuda, subir e descer a escala de tons que dão significado às palavras, nem observar a expressão do rosto de quem fala - e um olhar é às vezes a própria alma daquilo que se diz.

Δ

CAPÍTULO VII

O importante passo seguinte na minha educação foi aprender a ler.

Assim que consegui soletrar algumas palavras, minha professora me deu pedaços de cartolina com palavras impressas com letras em relevo. Aprendi rapidamente que cada palavra impressa designava um objeto, um ato ou uma qualidade. Eu tinha a moldura em que poderia arranjar as palavras em pequenas frases; mas antes de sequer poder colocar frases na moldura, costumava transformá-las em objetos. Encontrei pedaços de papel que representavam por exemplo "boneca", "está", "sobre", "cama" e colocava cada nome em seu objeto; depois coloquei minha boneca na cama com as palavras "está", "sobre" e "cama" arrumadas ao lado da boneca, formando assim uma frase com as palavras e ao mesmo tempo completando a idéia da frase com as próprias coisas.

Certo dia, a srta. Sullivan me contou, eu prendi a palavra "garota" no meu avental e abri o "guarda-roupa". Na prateleira, arrumei as palavras "está", "no", "guarda-roupa". Nada me encantava tanto quanto esse jogo. A srta. Sullivan e eu brincávamos disso por horas seguidas. Freqüentemente tudo no quarto era arrumado em frases-objetos.

Do pedaço de cartolina impressa foi só um passo para o livro impresso. Peguei o meu Leitor para iniciantes e cacei as palavras que conhecia; quando as descobria, minha alegria era como a que dá um jogo de esconde-esconde. Assim eu comecei a ler. Da época em que comecei a ler histórias conectadas falarei depois.

Por muito tempo não tive aulas regulares. Mesmo quando estudava com mais afinco, aquilo parecia mais um jogo do que trabalho. Tudo que a srta. Sullivan me ensinava ela ilustrava com uma bela história ou poema. Sempre que algo me encantava ou interessava, me falava sobre a coisa como se ela própria fosse uma menina. Aquilo em que muitas crianças pensam com horror, como uma penosa excursão na gramática, somas difíceis e definições ainda mais difíceis, são hoje umas das minhas mais preciosas lembranças.

Anne Sullivan lê para Helen Keller
Anne Sullivan lê para Helen Keller

Não consigo explicar a solidariedade peculiar que a srta. Sullivan tinha com meus prazeres e desejos. Talvez fosse o resultado de um longo convívio com os cegos. Além disso, a professora tinha uma maravilhosa habilidade para descrever. Ela passava rapidamente sobre detalhes desinteressantes e nunca me atormentava com perguntas para ver se eu lembrava da lição de anteontem. Introduzia detalhes técnicos pouco a pouco, tornando cada assunto tão real que eu não podia deixar de lembrar o que ensinava.

Líamos e estudávamos ao ar livre, preferindo os bosques iluminados pelo sol do que a casa. Todas as minhas aulas antigas têm nelas o cheiro dos bosques - o odor fino e resinoso das agulhas de pinheiro mesclado ao perfume de uvas selvagens.

Sentada à sombra graciosa de uma tulipeira silvestre, aprendi a pensar que tudo tem uma lição e uma sugestão. "O encanto das coisas me ensinou todo o uso delas." Na verdade, tudo que zunia, zumbia, cantava ou florescia participava da minha educação - rãs roucas, gafanhotos e grilos seguros por minha mão até que, esquecendo seu constrangimento, eles emitiam sua nota esganiçada, pequenos pintinhos, flores do campo, as flores do corniso, as violetas silvestres e as árvores frutíferas em botão. Eu sentia o irromper das vagens do algodão e tateava sua fibra macia e sementes penugentas; sentia o baixo murmúrio do vento através do milharal, o sedoso roçar das folhas longas e o resfolegar indignado de meu pônei, quando o peguei no pasto e pus o freio em sua boca - minha nossa! como me lembro bem do cheiro picante de cravo de sua respiração!

Às vezes eu levantava ao alvorecer e ia para o jardim, enquanto um espesso orvalho cobria relva e flores. Poucos conhecem a alegria que é sentir as rosas pressionadas suavemente na mão, ou o belo movimento dos lírios enquanto oscilam na brisa da manhã. Às vezes eu pegava um inseto na flor que estava colhendo e sentia o tênue ruído de um par de asas esfregando-se num súbito terror quando a criaturinha percebia uma pressão do lado de fora.

Outro local favorito para mim era o pomar, cujos frutos amadureciam em julho. Os grandes pêssegos macios estendiam-se para a minha mão e, enquanto a alegre brisa perpassava as árvores, as maçãs tombavam a meus pés. Ah, o encantamento com que eu recolhia a fruta no meu avental, pressionava o rosto contra as faces suaves das maçãs, ainda mornas do sol, e saltitava de volta para casa!

Nossa caminhada preferida era para Keller's Landing, um velho e dilapidado píer de tábuas no rio Tennessee, usado durante a Guerra Civil para o desembarque de soldados.

Passamos lá muitas horas felizes e brincávamos ao aprender geografia.

Eu construía diques com seixos, fazia ilhas e lagos e cavava leitos de rio por divertimento, e jamais sonhei que estivesse tendo uma aula. Eu ouvia cada vez mais maravilhada as descrições da srta. Sullivan sobre o grande mundo redondo com suas montanhas ardentes, cidades enterradas, rios de gelo movente e muitas outras coisas estranhas assim. Ela fazia mapas de argila em relevo para que eu pudesse tatear as cristas das montanhas e os vales, e seguia com meus dedos o curso sinuoso dos rios. Eu gostava disso também; mas a divisão da terra em zonas e pólos confundia e instigava minha mente. Os barbantes e graveto ilustrativos representando os pólos pareciam tão reais que mesmo hoje a mera menção de uma zona temperada sugere uma série de círculos interligados; e acredito que se alguém se decidisse, poderia me convencer que ursos brancos realmente escalam o Pólo Norte.

A aritmética parece ter sido o único estudo de que não gostei. Desde o início não me interessei pela ciência dos números.

A srta. Sullivan tentou me ensinar a contar através de contas desfiadas em grupos e aprendi a somar e diminuir arrumando varetas usadas no jardim-de-infância. Nunca tive paciência para arrumar mais de cinco ou seis de cada vez. Quando conseguia isso, minha consciência ficava em paz por aquele dia e eu saía rapidamente para procurar meus companheiros de brinquedo.

Desse mesmo modo prazeroso estudei zoologia e botânica.

Certa vez, um cavalheiro, cujo nome esqueci, enviou-me uma coleção de fósseis - pequenas conchas de molusco lindamente decoradas e pedaços de arenito com a impressão de patas de pássaros e uma adorável samambaia em baixo relevo. Essas foram as chaves que destrancaram os tesouros do mundo antediluviano para mim. Com dedos trêmulos, eu escutava as descrições dos terríveis animais por parte da srta. Sullivan, com nomes estranhos, impronunciáveis, que outrora palmilhavam as florestas primevas, demolindo os galhos das árvores gigantes em busca de comida e que morreram nos desolados pântanos de uma era desconhecida. Por muito tempo essas estranhas criaturas assombraram meus sonhos, e esse período tenebroso formava um sombrio pano de fundo para o alegre Agora, cheio de sol, rosas e os ecos da batida suave do casco de meu pônei.

Outra vez me deram uma linda concha e, com a surpresa e encantamento de uma criança, aprendi como um molusco mínimo construíra o lustroso espiral para seu local de habitação e como nas noites quietas, quando não há nenhuma brisa movendo as ondas, o náutilo navega nas águas azuis do oceano Índico em seu "navio de pérola". Depois que aprendi muitas coisas interessantes sobre a vida e os hábitos dos filhos do mar - como os pequenos pólipos constroem as belas ilhas de coral do Pacífico, no meio das ondas arrojadas e os foraminíferos, as colinas de calcário de muitas terras -, a professora leu para mim The chambered nautilus (O náutilo), mostrando-me que o processo de construção da concha é um símbolo do desenvolvimento da mente.

Exatamente da mesma forma que o manto fabricante de maravilhas do náutilo modifica o material que absorve da água e o torna parte de si, assim os pedacinhos de conhecimento que se recolhe passam por uma mudança semelhante e se tornam pérolas de idéias.

Mais uma vez, foi o crescimento de uma planta que forneceu o texto para uma aula. Compramos um lirio e o colocamos numa janela ensolarada. Rapidamente os botões pontudos e verdes deram sinais de que iam se abrir. As folhas finas como dedos do lado de fora abriram-se lentamente, relutando, acho eu, para revelar o encanto que escondiam; uma vez tendo dado a partida, porém, o processo de abertura continuou rapidamente, mas em ordem e sistematicamente. Havia sempre um botão maior e mais bonito que o resto, que empurrava sua cobertura externa de volta com mais pompa, como se a beleza em vestes macias e sedosas soubesse que era a rainha-lírio por direito divino, enquanto suas irmãs mais tímidas tiravam seus capuzes verdes, até que a planta inteira fosse um ramo trêmulo de encantamento e perfume.

Certa vez havia 11 girinos num globo de vidro colocado numa janela cheia de plantas. Lembro da avidez com que descobri coisas sobre eles. Era muito divertido mergulhar a mão no recipiente e sentir os girinos movendo-se brincando por ali e deixá-los escorregar e deslizar entre meus dedos. Certo dia um camarada mais ambicioso saltou por cima da borda do recipiente e caiu no chão, onde o encontrei aparentemente mais morto do que vivo. O único sinal de vida era um leve tremular de sua cauda.

Mas assim que voltou a seu elemento, disparou para o fundo, nadando repetidamente em círculos em alegre atividade. Ele dera o seu salto, vira o grande mundo e estava contente por ficar em sua bonita casa de vidro sob a grande fúcsia até atingir a dignidade de rã. Então foi viver no poço folhudo no final do jardim, cujas noites de verão ele musicava com sua elaborada canção de amor.

Assim, aprendi da própria vida. No início eu era apenas uma pequena massa de possibilidades. Foi minha professora quem as desdobrou e desenvolveu. Quando ela veio, tudo em torno de mim passou a exalar amor e alegria e se tornou cheio de significado.

Desde então ela nunca deixou passar uma oportunidade de ressaltar a beleza que há em tudo, nem cessou de tentar em pensamentos, ações e exemplos tornar minha vida doce e útil.

Foi o gênio de minha professora, sua rápida solidariedade, seu amoroso tato que tornaram tão bonitos os primeiros anos de minha instrução. Foi o fato de ela capturar o momento certo para partilhar conhecimento que o fez tão agradável e aceitável para mim. Ela percebeu que a mente de uma criança é como um riacho raso que ondula e dança alegremente sobre o curso pedregoso de sua educação, refletindo aqui uma flor, ali uma moita, mais além uma nuvem fugidia, e tentou guiar minha mente nesse caminho, sabendo que, como um riacho, essa mente devia ser alimentada pelas correntes da montanha e fontes escondidas até se alargar num rio profundo, capaz de refletir em sua plácida superfície as colinas ondulantes, as sombras luminosas das árvores e os céus azuis, assim como o suave rosto de uma flor.

Qualquer professor pode levar uma criança à sala de aula, mas não é qualquer um que a faz aprender. A criança só trabalhará alegremente se sentir que é livre, esteja ocupada ou em repouso; ela precisa sentir o jorro da vitória e o coração afundado de desapontamento antes que abarque com força de vontade as tarefas que lhe são desagradáveis e resolva abrir seu caminho corajosamente por uma rotina monótona de livros didáticos.

A srta. Sullivan está tão próxima de mim que eu mal me penso à parte dela. Quanto de meu encantamento com todas as coisas belas é inato e quanto é devido à influência de minha professora, jamais poderei saber. Sinto que seu ser é inseparável do meu e que os passos de minha vida estão na dela, O melhor de mim pertence a ela - não há um talento, uma aspiração ou uma alegria em mim que não tenha sido despertado por seu toque amoroso.

Δ


CAPÍTULO VIII

O primeiro Natal depois que a srta. Sullivan veio para Tuscumbia foi um grande acontecimento. Todos na família prepararam surpresas para mim, mas o que mais me agradou foi a srta. Sullivan e eu termos preparado surpresas para todo mundo.

O mistério que rodeou os presentes foi o que mais me encantou e divertiu. Meus amigos fizeram todo o possível para espicaçar minha curiosidade com insinuações e frases meio soletradas que fingiam interromper no último segundo. A srta. Sullivan e eu mantivemos um jogo de adivinhação que me ensinou mais sobre o uso da linguagem do que qualquer aula poderia ter feito. Toda noite, sentadas junto a um fulgurante fogo de lenha, jogávamos nosso jogo, cada vez mais excitante à medida que o Natal se aproximava.

Na véspera do Natal, os escolares de Tuscumbia tiveram sua árvore, para a qual me convidaram. No centro da sala de aula ficava uma linda árvore iluminada cintilando na luz suave, os ramos carregados de frutos maravilhosos e estranhos. Foi um momento de suprema felicidade. Eu dancei e me movi alegremente em volta da árvore em êxtase. Quando soube que havia um presente para cada criança, fiquei encantada e as pessoas amáveis que haviam preparado a árvore permitiram-me entregar os presentes para as crianças. No prazer de fazer isso, não parei para olhar meus próprios presentes; quando fiquei pronta para eles, porém, minha impaciência para que o verdadeiro Natal começasse ficou quase fora de controle. Eu sabia que os presentes que já tinha não eram aqueles aos que meus amigos tinham feito alusões tantalizantes, e minha professora disse que os presentes que devia receber seriam ainda melhores do que aqueles. Contudo, fui convencida a me contentar com os presentes da árvore e deixar os outros para a manhã seguinte.

Naquela noite, depois que pendurei minha meia, fiquei acordada por muito tempo, fingindo dormir e me mantendo alerta para ver o que Papai Noel faria quando viesse. Finalmente adormeci com uma nova boneca e um urso branco nos braços. Na manhã seguinte, acordei toda a família com meu primeiro "Feliz Natal!". Descobri surpresas, não apenas na meia mas também na mesa, nas cadeiras, à porta, no próprio parapeito da janela; na verdade, eu mal podia andar sem tropeçar num presente embrulhado em papel de seda.

Mas quando a professora me presenteou com um canário, minha taça de felicidade transbordou.

O pequeno Tim era tão domesticado que pulava no meu dedo e comia cerejas cristalizadas de minha mão. A srta. Sullivan me ensinou a cuidar totalmente de meu novo animal de estimação.

Todas as manhãs depois do desjejum eu preparava o banho dele, limpava sua gaiola, enchia suas tigelas com semente fresca e água do poço e pendurava um raminho de mornão no balanço dele.

Certa manhã deixei a gaiola no peitoril da janela enquanto fui buscar água para o banho de Tim. Quando voltei senti um gato grande passar por mim enquanto abria a porta. No inicio não percebi o que acontecera, mas ao colocar a mão na gaiola e não conseguir tocar as bonitas asas de Tim e notar que suas pequenas garras pontudas não seguravam meu dedo, soube que nunca mais veria meu doce cantorzinho de novo.

Δ

 

CAPÍTULO IX

O segundo acontecimento mais importante de minha vida foi minha visita a Boston, em maio de 1888. Lembro-me dos preparativos como se fosse ontem, a partida com a srta. Sullivan e minha mãe, a viagem e, finalmente, a chegada a Boston. Como essa viagem era diferente da que eu fizera a Baltimore havia dois anos! Eu não era mais uma criaturinha inquieta e excitável, exigindo a atenção de todos no trem para me manter divertida. Sentei-me quietamente ao lado da srta. Sullivan, absorvendo com ávido interesse tudo que ela me contava estar vendo pela janela do vagão: o belo rio Tennessee, os amplos campos de algodão, as colinas e bosques e os grupos de negros rindo nas estações, que acenavam para as pessoas no trem e passavam com deliciosos doces e pipocas pelo vagão. No banco à minha frente sentava-se minha grande boneca de trapo, Nancy, num novo vestido de algodão riscadinho e um chapéu franzido para se proteger do sol, olhando-me com seus dois olhos de conta. Às vezes, quando eu não estava absorvida nas descrições da srta. Sullivan, lembrava-se da existência de Nancy e a pegava nos braços, mas geralmente acalmava minha consciência fazendo-me acreditar que ela dormia.

Como não terei oportunidade de me referir a Nancy de novo, gostaria de contar aqui a triste experiência que tive pouco depois de nossa chegada a Boston. Nancy estava coberta de sujeira - os restos das tortas que eu a obrigara a comer, embora nunca tivesse mostrado qualquer gosto especial por elas. A lavadeira da Instituição Perkins secretamente a Levou embora para lhe dar um banho. Isso foi demais para a pobre Nancy. Na próxima vez que a vi, ela era um monte de algodão sem forma, que eu não reconheceria de modo algum não fosse pelos dois olhos de conta que me encaravam com censura.

Quando o trem finalmente entrou na estação de Boston, era como se um lindo conto de fadas se tornasse realidade. O "era uma vez" era naquele momento, o "país distante" estava ali.

Mal tínhamos chegado à Instituição Perkins para Cegos quando comecei a fazer amizade com as crianças cegas. Fiquei extasiada ao descobrir que elas conheciam o alfabeto manual.

Que alegria conversar com outras crianças em minha própria linguagem! Até então eu fora como uma estrangeira falando através de um intérprete. Na escola onde Laura Bridgman fora ensinada, eu estava em meu próprio país. Precisei de algum tempo para apreciar o fato de que meus novos amigos eram cegos. Eu sabia que não podia ver; mas não parecia possível que todas as crianças ávidas e amorosas que se amontoaram à minha volta e se juntaram vigorosamente em minhas alegres brincadeiras fossem cegas também. Lembro da surpresa e da dor que senti ao notar que colocavam as mãos na minha quando eu falava com elas e que liam seus livros com os dedos. Embora já me tivessem dito isso, e ainda que eu entendesse minhas próprias privações, mesmo assim pensara vagamente que desde que elas podiam ouvir, deviam ter uma espécie de "segunda visão"; eu não estava preparada para encontrar uma criança e outra e mais outra privadas do mesmo dom precioso. Mas elas estavam tão felizes e contentes que perdi toda a sensação de dor no prazer de sua companhia.

Um dia passado com as crianças cegas fez-me sentir totalmente em casa em meu novo ambiente, e eu passava ansiosamente de uma experiência agradável para outra enquanto os dias voavam.

Não consegui me convencer de que ainda havia muito mundo por aí, pois encarava Boston como o início e o fim da criação.

Enquanto estávamos em Boston, visitamos Bunker Hill e tive ali minha primeira aula de história. A história dos homens corajosos que haviam lutado naquele lugar me alvoroçou muito.

Subi no monumento, contando os passos e cogitando, à medida que subia cada vez mais, se os soldados haviam subido aquela grande escada e disparado no inimigo lá embaixo no chão.

No dia seguinte fomos a Plymouth de barco. Foi a minha primeira viagem no oceano e num barco a vapor. Como essa viagem foi cheia de vida e movimento! Mas o rumor da maquinaria me fez pensar que estivesse trovejando e comecei a chorar, pois temia que se chovesse não pudéssemos fazer nosso piquenique ao ar livre. Acho que eu estava mais interessada na grande rocha onde os Peregrinos desembarcaram do que em qualquer outra coisa de Plymouth. Eu podia tocá-la e talvez isso tornasse a chegada dos Peregrinos, seus esforços e grandes feitos parecerem mais verdadeiros para mim. Tinha freqüentemente segurado nas mãos um pequeno modelo da Rocha de Plymouth que um gentil cavalheiro me dera em Pilgrim Hail e eu tateara as curvas da Rocha, a fenda no centro e os números em relevo "1620", virando e revirando em minha mente tudo que sabia sobre a maravilhosa história dos Peregrinos.

Como minha imaginação infantil fulgurava com o esplendor de seu empreendimento! Eu os idealizava como os mais bravos e generosos homens que algum dia buscaram um lar numa terra estranha. Eu pensava que desejavam a liberdade de seus companheiros humanos tanto quanto a sua. Fiquei vivamente surpresa e desapontada anos depois ao saber de seus atos de perseguição que nos cobrem de vergonha, mesmo quando nos glorificamos com a coragem e a energia que nos deu nosso "Belo País".

Entre os muitos amigos que fiz em Boston estavam o sr. William Endicott 5 e sua filha. A amabilidade deles comigo foi a semente de várias lembranças agradáveis. Certo dia visitamos sua bela casa em Beverly Farms. Lembro encantada como passeei por seu jardim de rosas e como seus cachorros, o grande Leo e o pequeno e crespo Fritz de orelhas compridas, vieram ao meu encontro, e como Nimrod, o mais rápido dos cavalos, fuçava minhas mãos atrás de uma carícia ou de um torrão de açúcar.

Lembro também da praia, onde pela primeira vez brinquei na areia. Era dura e lisa, muito diferente da areia solta e áspera, misturada com algas e conchas, de Brewstet. O sr. Endicott me contou sobre os grandes navios que navegavam de Boston para a Europa. Vi-o muitas vezes depois disso e ele sempre foi um bom amigo para mim. Na verdade, eu pensava nele quando chamei Boston de "a Cidade dos Corações Amáveis".

Δ


CAPÍTULO X

Pouco antes que a Instituição Perkins fechasse para o verão, combinou-se que a srta. Sullivan e eu passaríamos as férias em Brewster, Cape Cod, com nossa querida amiga sra. Hopkins. 6 Fiquei extasiada, pois minha mente estava repleta das alegrias pelo esperado e pelas maravilhosas histórias que eu ouvira sobre o mar.

Minha lembrança mais viva daquele verão é o oceano. Eu sempre morei bem longe da costa e jamais sentira sequer o cheiro de uma lufada de ar salgado; mas tinha lido num grande livro chamado "Our World" uma descrição do oceano que me encheu de maravilhamento e de um intenso anseio de tocar o mar poderoso e sentir seu rugido. Assim, meu coraçãozinho deu pulos de ansiosa animação quando soube que meu desejo ia finalmente se realizar.

Assim que me ajudaram a vestir uma roupa de banho, saltei na areia quente e, sem pensar em medo, mergulhei na água fria.

Senti as grandes ondas oscilarem e afundarem. O movimento flutuante da água encheu-me de uma alegria trêmula e requintada.

Subitamente meu êxtase deu lugar ao terror, pois meu pé bateu contra uma rocha e no instante seguinte a água se fechou sobre minha cabeça. Estiquei as mãos em busca de algum apoio, agarrei a água e as algas que as ondas me jogavam no rosto. Mas todos os meus esforços frenéticos foram em vão. As ondas pareciam brincar comigo e me atiravam de uma para a outra em sua selvagem alegria. Era apavorante! A terra boa e firme deslizara de meus pés e tudo parecia excluido desse estranho e abarcante elemento - vida, ar, calor e amor. Finalmente, porém, como se cansado de seu novo brinquedo, o mar me atirou de volta na praia, e um instante depois eu estava nos braços de minha professora. Ah, o conforto do longo e terno abraço! Assim que me recuperei suficientemente do pânico para dizer alguma coisa, perguntei: "Quem põe sal na água?".

Depois que me recobrei da primeira experiência aquática, achei muito divertido sentar de maiô numa grande pedra e sentir onda após onda chocar-se contra ela, enviando um chuveiro de borrifos que quase me cobriam. Sentia os seixos chacoalhando enquanto as ondas atiravam seu peso poderoso contra a terra; a praia inteira parecia sacudida pelo terrível ataque das ondas e o ar latejava com a pulsação delas. A arrebentação recuava para se reunir e dar um salto mais poderoso e eu me agarrava à pedra, tensa, fascinada, enquanto sentia o impacto e o rugido do mar em movimento!

Nunca pude ficar na praia tempo suficiente para o meu gosto.

O cheiro forte do ar marítimo, imaculado, fresco e livre, era como um pensamento refrescante, pacificador, e as conchas, seixos e algas com minúsculas criaturas vivas presas neles nunca perderam seu fascínio para mim. Certo dia, a srta. Sullivan atraiu minha atenção para um estranho objeto que capturara flanando na água rasa: era um grande caranguejo - o primeiro que eu via.

Apalpei-o e achei muito estranho que ele tivesse que carregar sua casa nas costas. Subitamente me ocorreu que ele poderia se transformar num animal de estimação encantador; então o peguei pela cauda com as duas mãos e o levei para casa. Tal feito me agradou enormemente, já que seu corpo era muito pesado e precisei de toda a minha força para arrastá-lo por 800 metros.

Não deixei a srta. Sullivan em paz enquanto ela não o tivesse colocado num canal perto do poço onde eu achava que ele estaria em segurança. Mas, na manhã seguinte fui até o canal e, pronto, o caranguejo desaparecera! Ninguém sabia para onde tinha ido ou como escapara. Fiquei amargamente decepcionada à época; mas pouco a pouco passei a perceber que não era bondoso nem sábio forçar essa pobre e inarticulada criatura a sair de seu elemento, e depois de algum tempo me senti feliz ante a idéia de que ele talvez tivesse voltado para o mar.

Δ


CAPÍTULO XI

NO outono, voltei pata o meu lar no Sul com um coração repleto de alegres lembranças. Quando me lembro daquela visita ao Norte fico maravilhada com a riqueza e a variedade das experiências que se amontoam em torno dela. Parece ter sido o começo de tudo. Os tesouros de um mundo novo e lindo haviam sido depositados aos meus pés e recebi prazer e informação a cada momento. Eu vivia a mim mesma em todas as coisas. Nunca parava um instante, minha vida era tão cheia de movimento quanto esses pequenos insetos que encapsulam toda uma existência num único e breve dia. Conheci muitas pessoas que falaram comigo soletrando em minha mão e, em alegre simpatia, cada pensamento pulava para encontrar Outro pensamento e, vejam, um milagre fora construído! Os locais áridos entre minha mente e as mentes dos Outros floresceram como uma rosa.

Passei os meses de outono com minha família em nosso chalé de verão, numa montanha a cerca de 20 quilômetros de Tuscumbia. Era chamado Fern Quarry (Pedreira da Samambaia), porque próximo a ele havia uma pedreira de calcário há muito abandonada. Três alegres riachinhos corriam através dela vindos de fontes nas rochas acima, saltando aqui e tropeçando ali em cascatas risonhas sempre que as rochas tentavam barrar seu caminho.

A abertura estava cheia de samambaias que cobriam completamente os leitos de calcário e em certos lugares escondiam os riachos. O resto da montanha era coberto por um bosque espesso.

Havia ali grandes carvalhos e esplêndidos sempre-verdes com troncos como pilares musgosos, de cujos ramos pendiam guirlandas de hera e visco, e caquizeiros cujo odor permeava cada canto do bosque - algo evocativo e perfumado que alegrava o coração.

Em alguns locais a muscadínea selvagem e suas videiras estendiam-se de árvore a árvore, fazendo caramanchões que estavam sempre cheios de borboletas e insetos zumbidores. Era fantástico perder-se nos ocos verdes daquele emaranhado bosque no final da tarde e no cheiro dos odores frios e deliciosos que surgiam da terra no final do dia.

Nosso chalé era uma espécie de acampamento rústico, lindamente situado no alto da montanha entre carvalhos e pinheiros. Os pequenos quartos eram dispostos de cada lado de um longo corredor aberto. Em torno da casa havia uma ampla varanda onde sopravam os ventos da montanha docemente perfumados pelos odores do bosque. Vivíamos na varanda a maior parte do tempo - lá trabalhávamos, comíamos e brincávamos.

À porta dos fundos havia uma grande árvore de noz-manteiga em torno da qual os degraus haviam sido construídos; e na frente as árvores ficavam tão perto que eu podia tocá-las e sentir o vento sacudindo seus galhos, ou as folhas girando para baixo nas lufadas de outono.

Muitos visitantes vinham a Fern Quarry. À noite, junto à fogueira, os homens jogavam cartas e passavam as horas conversando sobre esporte. Contavam histórias de seus feitos maravilhosos com aves, peixes e quadrúpedes - quantos patos selvagens e perus haviam abatido, que "truta selvagem" tinham capturado e como tinham pegado as raposas mais astuciosas, vencido em esperteza os mais inteligentes gambás e ultrapassado o cervo mais veloz, até que pensei que certamente o leão, o tigre, o urso e o resto da tribo selvagem não poderiam enfrentar esses astuciosos caçadores. "Amanhã à caça!" era o grito de boa-noite deles quando o círculo de alegres amigos se desfazia para dormir. Os homens dormiam no vestíbulo do lado de fora de nossa porta e eu podia sentir a respiração profunda deles enquanto jaziam em suas camas improvisadas.

Na aurora, eu era despertada pelo cheiro de café, o ruído brusco das armas e os passos pesados dos homens enquanto perambulavam por ali, prometendo-se a maior sorte da estação.

Eu podia sentir a batida dos cascos dos cavalos que os homens tinham trazido da cidade e amarrado debaixo das árvores. Os animais ali ficavam a noite inteira, relinchando alto, impacientes para partir. Finalmente eles montavam e, como diziam as velhas canções, então iam os corcéis com as rédeas rangendo, os chicotes estalando e os cães de caça disparando na frente, e partiam os caçadores campeões com "para frente, e eia, e vamos!".

Com a manhã adiantada, fazíamos os preparativos para um churrasco. Acendia-se uma fogueira no fundo de um profundo buraco no solo, grandes pedaços de graveto eram dispostos cruzando-se no alto, e a carne pendurada sobre eles em espetos era virada. À volta do fogo agachavam-se os negros, enxotando as moscas com ramos longos. O saboroso odor da carne me deixava com fome muito antes que as mesas fossem postas.

Quando a azáfama e a animação dos preparativos estavam no auge, o grupo da caça aparecia, chegando em grupos de dois e três, os homens encalorados e cansados, os cavalos cobertos de espuma, os cães exaustos, ofegando e combalidos - e sem caça alguma! Cada um declarava ter visto pelo menos um cervo e que o animal havia chegado muito perto; contudo, por mais acirradamente que os cães o perseguissem, por melhor que fosse a pontaria das armas, ao dispararem o gatilho não havia um só cervo à vista. Tinham tido tanta sorte quanto o menino que disse ter chegado bem perto de avistar um coelho - já que vira sua trilha. O grupo, porém, logo esquecia sua decepção e nos sentávamos, não ante a caça, mas para um banquete mais domesticado de vitela e porco assado.

Certo verão ganhei um pônei em Fern Quarry. Pus-lhe o nome de Black Beauty, exatamente como lera no livro, e ele se parecia de todas as maneiras com seu homônimo, desde a lustrosa pelagem negra à estrela branca na testa. Passei muitas de minhas horas mais felizes em sua garupa. Ocasionalmente, quando era muito seguro, a srta. Sullivan me deixava tomar as rédeas e o pônei perambulava por ali ou parava segundo seu bel-prazer para comer a relva ou mordiscar as folhas das árvores que cresciam ao lado da estreita trilha.

Nas manhãs em que eu não fazia questão de cavalgar, a professora e eu partíamos depois do café da manhã para um passeio no bosque e nos deixávamos ir pelo meio das árvores e das videiras, sem nenhuma estrada para seguir exceto os caminhos feitos pelas vacas e cavalos. Freqüentemente esbarrávamos em moitas impenetráveis que nos forçavam a contorná-las. Sempre voltávamos ao chalé com braçadas de louro, varas-de-ouro, samambaias e deslumbrantes flores do pântano, como as que crescem apenas no Sul.

Às vezes eu ia com Mildred e meus priminhos colher caquis.

Eu não os comia,mas adorava seu perfume e gostava de ir atrás deles entre as folhas e a relva. Também colhíamos frutos secos e eu os ajudava a quebrar os ouriços das castanhas e as cascas de nozes - as grandes e doces nozes!

Na base da montanha havia uma estrada de ferro e as crianças observavam o trem passar sibilando por ali. Às vezes um assobio terrível nos fazia chegar até a porta da frente e Mlildred me contava com grande excitação que uma vaca ou um cavalo tinha se extraviado na trilha. Cerca de um quilômetro e meio de distância havia uma ponte em cavaletes passando sobre um profundo desfiladeiro. Era muito difícil andar por ali, os dormentes eram tão afastados e estreitos que nos sentíamos como se caminhássemos sobre facas. Eu nunca a atravessara, até o dia em que Mildred, srta. Sullivan e eu nos perdemos no bosque e perambulamos por horas sem encontrar um caminho.

De repente Mildred apontou com a mãozinha e exclamou: "Lá está a ponte!". Deveríamos ter escolhido qualquer outro caminho menos aquele; mas era tarde, já escurecia e a ponte era um atalho para casa. Tive de tatear os trilhos com meus pés; mas não tive medo e prossegui muito bem até que, de repente, veio um vago "puf, puf" a distância.

"Estou vendo o trem!", exclamou Mildred, e em mais um minuto o trem estaria em cima de nós se não tivéssemos descido para o suporte debaixo da ponte enquanto o trem disparava por cima de nossas cabeças. Senti a quente respiração da máquina no meu rosto e a fumaça e as cinzas quase nos sufocaram. Enquanto o trem passava como um trovão, a ponte sacudia e oscilava tanto que achei que seríamos empurradas para o abismo lá em baixo. Com a maior dificuldade, conseguimos retornar aos trilhos. Chegamos em casa muito depois de escurecer e encontramos o chalé vazio; a família toda estava lá fora procurando por nós.

Δ


CAPÍTULO XII

Após minha primeira visita a Boston, eu passava quase todos os invernos no Norte. Uma vez fui visitar uma aldeia da Nova Inglaterra com seus lagos gelados e vastos campos cobertos de neve. Foi então que tive a oportunidade inédita de penetrar nos tesouros da neve.

Lembro-me de minha surpresa ao descobrir que uma mão misteriosa desnudara as árvores e moitas, deixando aqui e ali uma folha encolhida. Os pássaros tinham voado e seus ninhos vazios nas árvores nuas estavam cheios de neve. O inverno estava sobre a colina e o campo. A terra parecia entorpecida pelo gélido toque hibernal e os próprios espíritos das árvores haviam se retirado para suas raízes e lá, enroscados na escuridão, jaziam adormecidos. Toda a vida parecia ter se esvaído e mesmo quando o sol brilhava o dia era

Shrunk and cold,
As if her veins were sapless and old,
And she rose up decrepitly
For a last dim look at earth and sea 7

[Encolhida e gelada/como se as suas veias fossem velhas e sem seiva/ e ela se erguesse decrepitamente/para um último olhar obscurecido sobre a terra e o mar. (Tradução livre. N da T)]

As moitas e a relva encolhida tinham sido transformadas numa floresta de estalactites.

Então, chegou um dia em que o gélido ar anunciou uma tempestade de neve. Corremos para fora para sentir os primeiros e mínimos flocos caindo. Hora após hora, os flocos de neve caiam silenciosa e maciamente da alta atmosfera para a terra e o campo se tornava cada vez mais nivelado. Uma noite nevada fechou-se sobre o mundo e pela manhã mal se podia reconhecer um traço da paisagem. Todas as estradas estavam escondidas, nenhum ponto de referência era visível. Havia apenas uma extensão coberta de neve com árvores que saiam dela.

A noite soprou um vento nordeste e os flocos voavam de um lado para outro numa desordem furiosa. Sentamos à volta de um belo fogo, contamos histórias engraçadas e nos regozijamos, esquecendo assim que estávamos no meio de uma desolada solidão, excluídos de qualquer comunicação com o mundo exterior. Durante a noite, contudo, a fúria do vento aumentou a um grau tal que nos infundiu um vago terror. As vigas estalavam, pressionadas, e os galhos das árvores em volta da casa chacoalhavam e batiam contra as janelas, como se o vento soprasse em tumulto de cima a baixo da região.

No terceiro dia depois de seu início, a tempestade de neve parou. O sol irrompeu das nuvens e brilhou sobre uma vasta e ondulante planície branca. Montes altos, pirâmides empilhadas em formatos fantásticos e impenetráveis acúmulos de neves jaziam espalhados em todas as direções.

Atalhos estreitos foram abertos com as pás através dos montes de neve. Vesti meu capote com capuz e saí. O ar queimou meu rosto como fogo. Meio que andando pelos atalhos, meio abrindo caminho pelos montes menores, conseguimos alcançar um bosque de pinheiros fora de um pasto amplo. As árvores imóveis e brancas pareciam figuras num friso de mármore. Não havia nenhum cheiro das agulhas dos pinheiros. Os raios de sol caíam sobre as árvores fazendo os gravetos brilharem como diamantes, pendendo em chuveiro quando os tocávamos. Tão ofuscante era a luz que penetrava até mesmo a escuridão que vela meus olhos.

À medida que os dias passavam, os acúmulos de neve se encolhiam gradualmente, mas antes de desaparecerem inteiramente outra tempestade chegou, de modo que mal senti a terra sob meus pés uma vez por todo o inverno. A intervalos, as árvores perderam sua cobertura de gelo e os juncos e a vegetação baixa ficaram nus; o lago, porém, continuava congelado e duro sob o sol.

Nossa diversão favorita naquele inverno foi andar de tobogã.

Em alguns locais a praia do lago se erguia abruptamente à beira d'água. Costumávamos costear esses barrancos íngremes. Entrávamos em nosso tobogã, posto em movimento pelo empurrão de um garoto, e lá íamos nós! Mergulhando nos acúmulos, saltando buracos, deslizando para o lago, disparávamos sobre sua superfície cintilante até a margem oposta. Que alegria! Que loucura eletrizante! Por um momento contente e selvagem, rebentávamos os laços que nos prendiam à terra e, de mãos dadas com o vento, nos sentíamos divinos!

Δ

CAPÍTULO XIII

Foi na primavera de 1890 que aprendi a falar. O impulso de emitir sons audíveis sempre fora forte em mim. Eu costumava fazer ruídos com uma das mãos na garganta, enquanto sentia com a outra os movimentos de meus lábios. Ficava contente com qualquer coisa que fizesse barulho, gostando de sentir o gato ronronar e o cachorro latir. Também gostava de pôr a mão na garganta de um cantor, ou num piano que estava sendo tocado. Antes de perder a visão e a audição, eu estava aprendendo rapidamente a falar; mas depois de minha doença, descobriu-se que eu parara de falar porque deixara de ouvir.

Costumava sentar no colo de minha mãe o dia inteiro e manter as mãos no rosto dela porque me divertia sentir os movimentos de seus lábios; e movia os lábios também, embora tivesse esquecido de como era falar. Meus amigos diziam que eu ria e chorava naturalmente, e por um tempo emitia muitos sons e partes de palavras, não porque fossem um meio de comunicação, mas porque a necessidade de exercitar meus órgãos vocais era imperativa. Contudo, havia uma palavra de cujo significado eu ainda lembrava, "água". Eu a pronunciava "á-ua". Mesmo isso se tornou cada vez menos inteligível, até o momento em que a srta. Sullivan começou a me ensinar. Só parei de usar a palavra quando aprendi a soletrá-la com meus dedos.

Eu sabia há muito tempo que as pessoas à minha volta usavam um método de comunicação diferente do meu; e mesmo antes de saber que se podia ensinar uma criança surda a falar, eu tinha noção da minha insatisfação com os meios de comunicação que já possuía. Quem é inteiramente dependente do alfabeto manual tem sempre uma noção de restrição, de estreiteza. Isso começou a me agitar com uma aflitiva e ampla sensação de uma falha que devia ser preenchida. Com freqüência, meus pensamentos se erguiam e se batiam contra o vento como pássaros e eu insistia em usar os lábios e a voz. Os amigos tentavam desestimular essa tendência, temendo que isso acabasse me decepcionando.

Mas eu persistia, e logo ocorreu um acidente cujo resultado foi derrubar essa última grandiosa barreira - eu aprendi a história de Ragnhild Kaata.

Em 1890, a sra. Lamson, uma das professoras de Laura Bridgman que acabara de voltar de uma visita à Noruega e à Suécia, veio me visitar e me contou sobre Ragnhild Kaata, uma garota surda e cega da Noruega a quem haviam ensinado realmente a falar. Mal a sra. Lamson acabara de me contar sobre o êxito da garota, fiquei eletrizada de ansiedade. Resolvi que também aprenderia a falar. Não ficaria satisfeita até minha professora me levar, em busca de conselho e ajuda, à srta. Sarah Fuller, diretora da Horace Mann School. Essa adorável e afável senhora se ofereceu para me ensinar, e começamos as aulas no dia 26 de março de 1890.

O método da srta. Fuller era o seguinte: ela passava minha mão levemente sobre seu rosto e me deixava sentir a posição de sua lingua e lábios quando ela emitia um som. Ansiosa para imitar cada movimento, em uma hora eu aprendera seis elementos da fala: M, P, A, S, T, I. A srta. Fuller deu-me 11 aulas ao todo. Jamais esquecerei a surpresa e o encantamento que senti quando pronunciei minha primeira frase conectada: "Está morno". Na verdade eram sílabas quebradas e gaguejadas, mas compunham uma fala humana. Consciente de uma nova força, minha alma saiu da servidão e, com esses simbolos emitidos imperfeitamente, eu penetrava em todo conhecimento e toda fé.

Nenhuma criança surda que tente de maneira séria pronunciar palavras que nunca ouviu - sair da prisão do silêncio, onde nenhum tom de amor, nenhuma canção de pássaro, nenhuma melodia jamais penetrou - pode esquecer a exaltação da surpresa, a alegria da descoberta que lhe chega quando consegue pronunciar sua primeira palavra. Só alguém assim poderia apreciar a avidez com que eu falava com meus brinquedos, com pedras, árvores, pássaros e animais mudos, ou o maravilhamento que sentia quando, ao meu chamado, Mildred corria para mim ou meus cachorros obedeciam ao meu comando. Aprender a falar em palavras com asas que não precisavam de interpretação era um bônus inominável para mim. Enquanto eu falava, pensamentos felizes flutuavam de minhas palavras, os mesmos que talvez pudessem ter lutado para sair de meus dedos em vão.

No entanto, não se deve pensar que eu tenha falado de fato nesse curto tempo. Eu aprendera apenas os elementos da fala. A srta. Fuller e a srta. Sullivan podiam me entender, mas a maioria das pessoas não teria entendido uma palavra entre cem. Nem é verdade que depois que aprendi aqueles elementos eu mesma tenha feito o resto do trabalho. Não fosse pelo gênio, incansável perseverança e devoção da srta. Sullivan, não poderia ter progredido tanto quanto o fiz em direção à fala natural. Em primeiro lugar, trabalhei noite e dia antes de poder ser entendida até pelos amigos mais íntimos; segundo, eu precisava constantemente da ajuda da srta. Sullivan em meus esforços para articular cada som claramente e combinar todos os sons de mil modos.

Até hoje ela chama minha atenção todos os dias para palavras mal pronunciadas.

Todos os professores de surdos sabem o que isso significa, e só eles podem avaliar as dificuldades peculiares com que tive de lidar. Lendo os lábios de minha professora, eu era totalmente dependente de meus dedos: tinha de usar o tato para capturar as vibrações da garganta, os movimentos da boca e a expressão do rosto; e esse sentido falhava com freqüência. Em tais casos, eu era forçada a repetir palavras e frases, às vezes por horas, até sentir a vibração certa na minha própria voz. Meu trabalho era praticar, praticar, praticar. Muitas vezes o desânimo e o cansaço me punham para baixo; no momento seguinte, porém, era estimulada pela idéia de que logo estaria em casa mostrando para meus entes queridos o que realizara. Eu ansiava avidamente pelo prazer deles com o meu feito.

"Minha irmãzinha vai me entender agora", era um pensamento mais forte do que todos os obstáculos. Eu costumava repetir extaticamente: "Não sou mais muda". Não podia ficar desanimada enquanto previa o encantamento de falar com mamãe e ler as respostas em seus lábios. Ficava pasma em descobrir como era mais fácil falar do que soletrar com os dedos, e descartei o alfabeto manual como meio de comunicação de minha parte; a srta. Sullivan e alguns amigos, contudo, ainda o usavam ao falar comigo, pois era mais conveniente e mais rápido do que a leitura labial.

Nesse ponto, talvez, seja melhor explicar nosso uso do alfabeto manual, o que parece intrigar as pessoas que não nos conhecem.

Quem lê ou fala comigo soletra com sua mão, usando o alfabeto manual de uma só mão geralmente empregado pelos surdos.

Coloco minha mão na mão de quem fala, muito leve para não impedir seus movimentos. A posição da mão é tão fácil de sentir quanto ver. Eu não sinto cada letra mais do que vocês vêem cada letra separadamente quando lêem. A prática constante torna os dedos muito flexíveis e alguns amigos meus soletram rapidamente - mais ou menos tão rapidamente quanto alguém treinado escreve numa máquina de escrever, O mero soletrar não é mais consciente, claro, do que escrever.

Quando consegui falar, mal podia esperar para voltar para casa. Finalmente o momento mais feliz de todos chegara. Eu fizera a viagem de volta falando constantemente com a srta. Sullivan; não falando por falar, mas porque estava decidida a melhorar até o último minuto. Antes que eu percebesse, o trem parara na estação de Tuscumbia e lá estava na plataforma toda a família. Meus olhos se enchem de lágrimas quando penso como mamãe me abraçou apertado, emudecida, trêmula e maravilhada, assimilando cada sílaba que eu falava, enquanto a pequena Mildred pegava minha mão livre e a beijava e dançava, e meu pai externava seu orgulho e afeição num vasto silêncio. Era como se a profecia de Isaias tivesse sido instilada em mim: "As montanhas e colinas irromperão cantando ante você e todas as árvores do campo aplaudirão!".

Δ


CAPÍTULO XIV

O inverno de 1892 foi escurecido por uma nuvem no céu iluminado de minha infância. A alegria abandonou meu coração e por muito, muito tempo vivi na dúvida, na ansiedade e no medo. Os livros perderam seu encanto para mim e, mesmo agora, a lembrança daqueles dias medonhos congela meu coração.

Uma pequena história chamada The frost king, que eu escrevera e enviara para o sr. Anagnos, da Instituição Perkins para Cegos, estava na raiz do problema. A fim de esclarecer a matéria, preciso apresentar os fatos ligados ao episódio, pois a justiça para com minha professora e comigo mesma me impele a relatar. [ver o documento sobre essa questão] Eu escrevera a história em casa, no outono, depois de ter aprendido a falar. Haviamos ficado em Fern Quarry mais tempo que o habitual. Enquanto estávamos lá, a srta. Sullivan me descrevera as belezas da folhagem da estação que avançava, e parece que suas descrições reviveram a lembrança de uma história que deve ter sido lida para mim e que inconscientemente devo ter guardado.

Na época pensei que eu estava "inventando uma história", como as crianças dizem, e me sentei para escrevê-la, avidamente, antes que as idéias fugissem. Estas fluíram facilmente e senti alegria na composição. Palavras e imagens vinham à ponta de meus dedos, e enquanto eu pensava em frase após frase escrevia-as na lousa de braile. Agora, se as palavras e imagens me chegam sem esforço, é um sinal nítido de que não são fruto de minha própria mente, mas idéias extraviadas de outros, que descarto com pena. Naquela época, eu absorvia prontamente tudo que lia sem pensar um momento em autoria, e mesmo agora não tenho tanta certeza da fronteira entre minhas idéias e as que encontro em livros. Parece-me que a causa disso é que muitas impressões me chegam pelos olhos e ouvidos dos outros.

Quando terminei a história, li-a para a professora e relembro agora nitidamente o prazer que senti nos trechos mais bonitos e minha irritação ao ser interrompida para que me fosse corrigida a pronúncia de uma palavra. Ao jantar, a história foi lida diante da família reunida, surpresa que eu pudesse escrever tão bem.

Alguém me perguntou se eu a tinha lido num livro.

Essa pergunta me surpreendeu muito, pois eu não tinha a mais leve lembrança de alguém me ter lido a história. Eu disse: "Ah, não, é uma história minha e eu a escrevi para o sr. Anagnos".

Assim, copiei a história e a enviei para o sr. Anagnos como presente de aniversário. Foi-me sugerido que eu mudasse o título de "Autumn leaves" para "The frost king" o que fiz. Eu mesma levei a história ao correio como se caminhasse nas nuvens.

Mal imaginava quão cruelmente pagaria por esse presente de aniversário.

Sr. Anagnos ficou encantado com "The frost king" e a publicou em um dos relatórios da Instituição Perkins. Esse foi o auge da minha felicidade, de onde fui pouco depois empurrada violentamente para a terra. Eu estava em Boston havia pouco tempo quando foi descoberto que uma história semelhante ao "The frost king", chamada "The frost fairies", da srta. Margaret Camby, 8 aparecera antes de meu nascimento num livro chamado "Birdie and his friends". As duas histórias eram tão parecidas em idéias e linguagem que era evidente que a história da srta. Canby me fora lida e que a minha era um plágio. Para mim, foi difícil entender isso, mas quando consegui, fiquei atônita e ferida.

Nenhuma criança jamais bebeu tanto da taça da amargura.

Eu me cobrira de vergonha; fizera recair suspeita sobre aqueles que eu mais amava. E mesmo assim, como isso poderia ter acontecido? Vasculhei minha mente até ficar exausta para ver se lembrava de ter lido algo sobre o gelo antes de escrever "The frost king", mas eu não conseguia lembrar de nada, exceto a referência comum a Jack Frost, e um poema para crianças, "The freaks of the frost" e eu sabia que não o havia usado em minha história.

Embora profundamente perturbado, inicialmente o sr. Anagnos pareceu acreditar em mim. Ele era de hábito terno e amável comigo e por um breve período a sombra foi levantada.

Para agradá-lo, tentei não me sentir infeliz, ficando o mais bonita possível para a comemoração do aniversário de Washington, que se realizou pouco depois que recebi a triste notícia.

Eu devia personificar Ceres numa espécie de teatrinho amador de meninas cegas. Como me lembro bem dos graciosos drapejados que me envolviam, as brilhantes folhas de outono que me coroavam a cabeça e os frutos e grãos em meus pés e mãos, e por baixo da alegria da fantasia a opressora sensação de desconforto que deixava meu coração pesado.

Na noite que antecedeu a comemoração, uma das professoras da instituição me fizera uma pergunta relacionada a "The frost king" e eu lhe contei que a srta. Sullivan me falara sobre Jack Frost e suas maravilhosas obras. Algo que eu disse a fez pensar ter detectado uma confissão de que eu me lembrava da história "The frost fairies" da srta. Canby; então, essa professora levou suas conclusões ao sr. Anagnos, embora eu lhe tivesse dito enfaticamente que ela estava enganada.

Achando que fora enganado, sr. Anagnos, que tinha muita ternura por mim, fez ouvidos moucos aos meus protestos de estima e inocência. Ele acreditou, ou pelo menos suspeitou, que a srta. Sullivan e eu havíamos deliberadamente roubado as idéias brilhantes de outrem e as imposto a ele para conquistar sua admiração. Fui levada ante um tribunal de investigação, composto das professoras e funcionários graduados da instituição, e pediram à srta. Sullivan que me deixasse. Então fui interrogada e acareada com o que me pareceu uma determinação da parte de meus juízes de me forçar a reconhecer que me lembrava de "The frost fairies" ter sido lida para mim.

Em cada pergunta, eu sentia a dúvida e a suspeita em suas mentes e sentia também que um amigo querido estava me encarando com censura, embora eu não pudesse ter colocado tudo isso em palavras. O sangue bombeava com força meu coração, e eu só conseguia falar por monossílabos. A própria consciência de que aquilo era apenas um medonho equívoco não diminuiu meu sofrimento, e quando finalmente me permitiram deixar a sala, senti-me ofuscada e não notei os carinhos de minha professora ou as ternas palavras de meus amigos, chamando-me de menina corajosa e dizendo estarem orgulhosos de mim.

Deitada em minha cama à noite, chorei como acho que poucas crianças já choraram. Sentia tanto frio que achava que morreria antes de o dia clarear, e a idéia me confortava. Penso que se essa dor tivesse chegado quando eu fosse mais velha, teria danificado meu espírito além da possibilidade de reparação. Mas o anjo do esquecimento reuniu as forças e levou para longe boa parte da infelicidade e toda a amargura daqueles tristes dias.

A srta. Sullivan nunca ouvira falar de "The frost fairies" ou do livro no qual fora publicada. Com a ajuda do dr. Alexander Graham Bell, ela investigou a questão cuidadosamente e finalmente soube-se que a sra. Sophia C. Hopkins tinha um volume de "Birdie and his friends" da srta. Canby em 1888, o ano em que passamos o verão com ela em Brewster. A sra. Hopkins não conseguiu achar o seu volume, mas disse-me que, naquela época, enquanto a srta. Sullivan estava longe, ela, sra. Hopkins, tentara me distrair lendo vários livros, embora, como eu, não se lembrasse de ter lido "The frost fairies", mas tinha certeza de que "Birdie and bis friends" era um desses livros. Ela explicou o desaparecimento do livro dizendo que pouco antes vendera a casa e se desfizera de muitos livros juvenis, como, por exemplo, velhos livros escolares e de contos de fadas, e que "Birdie and his friends" provavelmente estava entre eles.

As histórias tinham pouco ou nenhum significado para mim à época; mas o mero soletrar de palavras estranhas era suficiente para divertir uma menina que não podia fazer quase nada para se distrair sozinha; e embora eu não me lembre de uma única circunstância ligada à leitura das histórias, não posso deixar de pensar que fiz um enorme esforço para reter as palavras para que minha professora as explicasse quando voltasse. Uma coisa é certa, a linguagem estava indelevelmente estampada em meu cérebro, embora por muito tempo ninguém soubesse disso, e eu menos que ninguém.

Quando a srta. Sullivan voltou, não falei com ela sobre "The frost fairies", provavelmente porque ela começou logo a ler "Little lord Fauntleroy", 9 o que preencheu minha mente excluindo todo o resto.

Mas o fato é que a história da srta. Canby foi lida para mim uma vez, e que, muito tempo depois de eu a ter esquecido, ela me voltou tão naturalmente que jamais suspeitei que fosse filha de outra mente.

Em minha perturbação, recebi muitas mensagens de amor e solidariedade. Todos os amigos que eu mais amava, exceto um, continuam meus amigos até hoje. A própria srta. Canby escreveu amavelmente: "Algum dia você escreverá uma história maravilhosa vinda de sua própria mente, que será um conforto e uma ajuda para muitos". Mas tal profecia jamais se realizou. Eu nunca mais brinquei com as palavras pelo mero prazer do jogo. Na verdade, desde então tenho sido torturada pelo medo de que o que escrevo não seja de minha autoria. Por muito tempo, quando escrevia uma carta, até mesmo para minha mãe, eu era dominada por uma súbita sensação de terror e soletrava as frases repetidamente, para me assegurar que não as lera em um livro. Não fosse o persistente encorajamento da srta. Sullivan, acho que teria desistido totalmente de tentar escrever.

Depois disso, li "The frost fairies" e também as cartas que escrevi, nas quais usei outras idéias da srta. Canby. Encontrei em uma delas - uma carta para o sr. Anagnos datada de 29 de setembro de 1891 - palavras e sentimentos exatamente como os do livro.

Àquela época eu estava escrevendo "The frost king", e essa carta, como muitas outras, contém frases mostrando que minha mente estava saturada da história. Coloco minha professora contando-me sobre as douradas folhas de outono. "Sim, elas são bonitas a ponto de nos confortar da fuga do verão" - uma idéia diretamente vinda da história da srta. Canby.

Esse hábito de assimilar o que me agradava e devolvê-lo novamente como meu aparece em boa parte de minha primeira correspondência e minhas primeiras tentativas de escrever. Numa composição que escrevi sobre as velhas cidades da Grécia e da Itália, pedi emprestadas fulgurantes descrições, com variações, de fontes que esqueci. Eu sabia do grande amor do sr. Anagnos pela Antigüidade e sua entusiástica apreciação de todos os belos sentimentos sobre a Itália e a Grécia. Por isso, reuni de todos os livros que li um pedacinho de poesia ou história que achava que lhe dariam prazer. Falando sobre minha composição sobre as cidades, sr. Anagnos tinha dito: "Essas idéias são poéticas em sua essência". Mas não entendo como pôde ter achado que uma criança cega e surda de 11 anos poderia tê-las inventado. Ainda assim, não consigo achar que minha pequena composição seja destituída de interesse, mesmo se as idéias não são originais. Isso mostra-me que eu podia expressar meu gosto pelas idéias belas e poéticas numa linguagem clara e viva.

Essas primeiras composições eram ginásticas mentais. Eu aprendia, como todos os jovens inexperientes aprendem, por assimilação e imitação, a colocar idéias em palavras. Tudo o que me agradava nos livros eu retinha na memória, consciente ou inconscientemente, adaptando-o. O jovem escritor, como disse Stevenson, instintivamente tenta copiar tudo que lhe parece mais admirável e muda sua admiração com uma versatilidade de pasmar. Só depois de anos dessa prática é que mesmo os grandes homens aprenderam a comandar a legião de palavras que invadem por cada atalho da mente.

Temo não ter completado esse processo ainda. Certamente nem sempre consigo distinguir meus próprios pensamentos dos que leio, porque o que leio se torna a própria substância e textura de minha mente. Conseqüentemente, em quase tudo que escrevo produzo algo que se parece muito com uma louca colcha de retalhos que eu costumava fazer assim que aprendi a costurar.

Essa colcha era feita de retalhos de todo o tipo - bonitos pedaços de seda e veludo; mas os pedaços ásperos que não eram agradáveis ao toque sempre predominavam. Da mesma forma, minhas composições são construídas de minhas idéias cruas, incrustadas dos pensamentos mais brilhantes e das opiniões mais maduras dos autores que tenho lido. Parece-me que a grande dificuldade de escrever é fazer a linguagem da mente instruída expressar nossas idéias confusas, meio sentimentos, meio pensamentos, quando somos pouco mais que um embrulho variado de tendências instintivas. Tentar escrever é muito parecido como fazer um quebra-cabeça chinês. Temos um padrão na mente que desejamos colocar em palavras. Estas, contudo, não se ajustam aos espaços, ou, se se ajustam, não combinam com o desenho.

Mas continuamos tentando porque sabemos que outros tiveram êxito, e não vamos reconhecer a derrota sem relutância.

"Não há nenhum modo de se tornar original, exceto nascendo assim", diz Stevenson, e embora eu possa não ser original, espero algum dia superar minhas composições artificiais e disfarçadas. Então, talvez, minhas idéias e experiências venham à superfície. Enquanto isso confio, espero e persevero e tento não deixar a amarga lembrança de "The frost king" impedir meus esforços.

Assim, essa triste experiência pode me ter feito bem e me posto a pensar sobre alguns dos problemas da composição.

Lastimo apenas que isso tenha resultado na perda de um de meus amigos mais queridos, o sr. Anagnos.

Depois da publicação de "A história da minha vida" no Ladies' Home Journal o sr. Anagnos fez uma declaração, numa carta para o sr. Macy, de que, na época de "The frost king", ele acreditava que eu era inocente. Diz que a corte de investigação à qual fui levada consistia de oito pessoas: quatro cegos e quatro pessoas que enxergavam.

Quatro deles, diz ele, achavam que eu sabia que a história da srta. Canby fora lida para mim e os outros não tinham essa opinião. O sr. Anagnos declara que deu seu voto com aqueles que eram favoráveis a mim.

Mas, seja qual for o lado que ele tenha apoiado, quando entrei na sala onde o sr. Anagnos tinha tantas vezes me sentado em seu colo e, esquecendo seus cuidados, compartilhara minhas alegrias, e encontrei lá pessoas que pareciam duvidar de mim, senti que havia algo hostil e ameaçador na própria atmosfera e eventos subseqüentes confirmaram tal impressão. Por dois anos ele parece ter acreditado que eu e a srta. Sullivan éramos inocentes. Então claramente retirou seu julgamento favorável, por que não sei, assim como não conheço os detalhes da investigação. Nunca soube sequer os nomes dos membros do "tribunal", que não falaram comigo. Eu estava alvoroçada demais para notar qualquer coisa, assustada demais para fazer perguntas. Na verdade, mal conseguia pensar no que estava dizendo ou no que me estava sendo dito.

Fiz esse relato sobre o episódio do "The frost king" porque ele foi importante em minha vida e em minha educação; e a fim de que não haja nenhum mal-entendido, expus todos os fatos como me apareceram, sem intenção de me defender ou de pôr a culpa em quem quer que seja.

Δ

CAPÍTULO XV

Passei o verão e o inverno que se seguiram ao incidente do "The frost king" com minha família no Alabama. Lembro-me encantada daquela volta para casa. Tudo se abrira em botões e florescera. Eu estava feliz. "The frost king" fora esquecido.

Quando o solo estava crivado das folhas douradas e vermelhas do Outono e as uvas de perfume almiscarado que cobriam o caramanchão no final do jardim se tornavam de um marrom dourado ao sol, comecei a escrever um esboço de minha vida - um ano depois de ter escrito "The frost king".

Eu ainda era excessivamente escrupulosa sobre tudo que escrevia, atormentada pela possibilidade de escrever algo que não fosse inteiramente meu. Ninguém sabia desses temores, exceto minha professora. Uma estranha sensibilidade impedia-me de me referir ao The "frost king" e, com freqüência, quando uma idéia surgia no decorrer da conversa, eu soletrava suavemente para ela: "Não tenho certeza se é minha". Em outras épocas, no meio de um parágrafo, me dizia: "Suponhamos que descubram que isso foi escrito por alguém há muito tempo!". Um medo malévolo paralisava de tal modo minha mão que eu não conseguia escrever mais naquele dia. E ainda hoje sinto às vezes o mesmo desconforto e inquietação. A srta. Sullivan consolou-me e me ajudou de todas as maneiras possíveis, mas a terrível experiência pela qual passara deixou-me uma impressão duradoura na mente, cujo significado só agora começo a entender. Foi com a esperança de restaurar minha autoconfiança que ela me convenceu a escrever um breve relato da minha vida para o Youth's Companion. Eu tinha 12 anos. Quando olho para trás e vejo minha luta para escrever aquela pequena história, penso ter tido uma visão profética do bem que adviria do empreendimento, ou eu certamente teria fracassado.

Escrevi timidamente, com medo, mas de modo resoluto, incentivada pela srta. Sullivan. Ela sabia que, se eu perseverasse, recuperaria a autoconfiança em minha mente e dominaria minhas aptidões. Até a época do episódio "The frost king", eu levara a vida inconsciente de uma menina pequena; agora meus pensamentos estavam voltados para dentro e eu tinha consciência de coisas invisíveis. Emergi gradualmente da penumbra daquela experiência com a mente mais clara pela provação e com um conhecimento mais verdadeiro da vida.

Os eventos principais do ano de 1893 foram minha viagem a Washington durante a inauguração do presidente Cleveland e as visitas às cataratas do Niágara e à Feira Mundial. Nessas circunstâncias meus estudos eram constantemente interrompidos e geralmente postos de lado por muitas semanas, de modo que é impossível fazer um relato coerente deles.

Fomos às cataratas do Niágara em março de 1893. É difícil descrever minhas emoções ao ficar no ponto que se debruça sobre as American Falls e sentir o ar vibrando e a terra tremendo pelo fragor da água.

Parece estranho para muita gente que eu me impressionasse com as maravilhas e a beleza das cataratas do Niágara. Sempre perguntam: "O que significa essa beleza ou essa música para você?

Você não pode ver as ondas rolando até a praia ou ouvir seu rugido. O que significam então?". No sentido mais evidente, significam tudo. Não consigo abarcar ou definir esse significado, da mesma forma que não consigo abarcar ou definir amor, religião ou bondade.

Durante o verão de 1893, a srta. Sullivan e eu visitamos a Feira Mundial com o dr. Alexander Graham Bell. Lembro-me com um inequívoco encantamento desses dias em que mil fantasias infantis se tornaram uma bela realidade. A cada dia fiz uma viagem em torno do mundo em imaginação e vi muitas maravilhas dos lugares mais distantes da terra - maravilhas da invenção, tesouros da indústria, capacidades e todas as atividades da vida humana realmente passaram sob meus dedos.

Gostei de visitar o Midway Plaisance. Parecia as Mil e uma Noites, estava tão atulhado de novidades e coisas interessantes. Ali estava a Índia de meus livros no curioso bazar com suas Shivas e deuses-elefantes; ali estava a terra das pirâmides concentrada numa Cairo modelo, com suas mesquitas e suas longas procissões de camelos; adiante ficavam os canais de Veneza, onde navegamos a cada noite quando a cidade e as fontes estavam iluminadas.

Também subi em um navio viking que ficava a uma curta distância da pequena embarcação. Eu já estivera num navio de guerra antes, em Boston, e me interessava ver, naquele navio viking, como era o marinheiro de outrora - como navegava e encarava tempestade e calmaria com um coração igualmente destemido, e corria atrás de qualquer um que devolvesse seu grito: "Somos do mar!", e lutava com mente e nervos, autoconfiante, auto-suficiente, em vez de ser empurrado para o pano de fundo por uma maquinaria sem inteligência, como acontece com o homem comum hoje em dia. Assim será sempre - "só o homem é interessante para o homem".

A pouca distância desse navio ficava um modelo do Santa Maria, que também examinei. O capitão me mostrou a cabine de Colombo e a mesa com uma ampulheta. Esse pequeno objeto me impressionou muito porque me fez pensar quão entediado o heróico navegador deve ter se sentido ao ver a areia caindo grão a grão, enquanto homens desesperados tramavam contra a sua vida.

O sr. Higinbotham, presidente da Feira Mundial, amavelmente deu-me permissão para tocar os objetos em exibição, e, com uma avidez tão insaciável como a de Pizarro apossando-se dos tesouros do Peru, tateei as glórias da Feira com meus dedos.

Era uma espécie de caleidoscópio tangível, essa branca cidade do oeste. Tudo me fascinava, especialmente os bronzes franceses.

Eram tão parecidos com a vida que achei serem visões de anjo que o artista capturara e prendera à terra em formas terrenas.

Na Exposição do Cabo da Boa Esperança, aprendi muito sobre os processos de mineração de diamantes. Sempre que possivel eu tocava na maquinaria em movimento, para ter uma idéia mais clara de como as pedras eram pesadas, cortadas e polidas.

Procurei um diamante no local onde o material estava sendo lavado e o encontrei - o único diamante perfeito, disseram, já encontrado nos Estados Unidos.

Helen Keller e o Dr. Alexander Graham Bell, 1902
Fotografia de Helen Keller com o Dr. Alexander Graham Bell, 1902

O Dr. Bell ia a toda parte conosco e me descrevia de modo encantador os objetos de maior interesse. No edifício dos aparelhos elétricos, examinamos os telefones, autofones, fonógrafos e outras invenções, e ele me explicou como era possível mandar uma mensagem pelos fios que zombavam do espaço e sobrepujavam o tempo, e, como Prometeu, retiram fogo do céu.

Visitamos também o departamento antropológico e fiquei muito interessada nas relíquias do antigo México, nos toscos instrumentos de pedra que freqüentemente são o único registro de uma era - os simples monumentos dos iletrados filhos da natureza (assim pensava eu ao tocá-los) que pareciam destinados a durar enquanto os memoriais de reis e sábios desmoronavam na poeira-, e nas múmias egípcias, que eu evitava tocar. Dessas relíquias aprendi mais sobre o progresso do homem do que tenho lido ou sabido desde então.

Todas essas experiências acrescentaram muitos termos novos ao meu vocabulário, e nas três semanas que passei na feira dei um grande salto do pequeno interesse infantil em contos de fada e brinquedos para a apreciação do verdadeiro e do sério no mundo do trabalho cotidiano.

Δ


CAPÍTULO XVI

Antes de outubro de 1893, eu estudara vários assuntos por minha conta de um modo mais ou menos superficial. Li as histórias da Grécia, de Roma e dos Estados Unidos. Tinha uma gramática francesa com letras em relevo e, como eu já sabia um pouco de francês, geralmente me divertia compondo em minha mente exercícios curtos, usando as palavras novas com que eu esbarrava e, na medida do possível, ignorando regras e outras tecnicalidades.

Cheguei mesmo a tentar dominar, sem ajuda, a pronúncia do francês, enquanto achava todas as letras e sons descritos no livro. Claro que isso era obrigar conhecimentos diminutos a atingir fins maiores, mas deu-me algo para fazer num dia chuvoso, e adquiri um conhecimento suficiente de francês para ler com prazer as fábulas de La Fontaine, Le médecin malgré lui (Médico à força) e trechos de Athalie.

Também dediquei um tempo considerável à melhora de minha fala. Eu lia alto para a srta. Sullivan e recitava passagens de meus poetas favoritos, que decorara; ela corrigia minha pronúncia, ensinando-me o fraseado e a inflexão. Contudo, só em outubro de 1893, depois que me recuperei da fadiga e do alvoroço da visita à Feira Mundial, comecei a ter aulas sobre assuntos especiais em horas fixas.

Nessa época, a srta. Sullivan e eu estávamos em Hulton, Pensilvânia, visitando a família do sr. William Wade. 10 O sr. Irons, um vizinho deles, era um grande erudito do latim; combinou-se que eu devia estudar com ele. Lembro-me dele como um homem de rara afabilidade e ampla experiência. Ensinou-me principalmente a gramática latina, mas me ajudava com freqüência na aritmética, que eu achava tão irritante quanto desinteressante. O sr. Irons também leu comigo o In memorian (In memoriam: an authoritative text, backgrounds and sources, criticism. In memoriam: texto de autoridade, antecedentes, fontes e crítica) de Tennyson. Eu lera muitos livros antes, mas nunca de um ponto de vista crítico.

Aprendi pela primeira vez a conhecer um autor, a reconhecer seu estilo como reconhecia o apertar de mão de um amigo.

No início eu não tinha vontade de estudar gramática latina.

Parecia absurdo perder tempo analisando cada palavra com que me deparava - substantivo, genitivo, singular, feminino - quando seu significado era bem comum. Achava que poderia muito bem descrever meu animal de estimação a fim de conhecê-lo - ordem, vertebrado; divisão, quadrúpede; classe, mamífero; gênero, felino; espécie, gato; indivíduo, Tabby. Mas à medida que entrava mais profundamente no assunto ficava mais interessada, e a beleza da linguagem me encantou. Divertia-me com freqüência lendo trechos latinos, escolhendo palavras que eu entendia e tentava obter um sentido com elas. Nunca deixei de gostar deste passatempo.

Acho que não há nada mais belo do que a fuga evanescente de imagens e sentimentos apresentados por uma linguagem com a qual acabamos de nos familiarizar - idéias que perpassam pelo céu mental, moldadas e coloridas pela caprichosa fantasia. A srta. Sullivan sentava-se a meu lado durante as aulas, soletrando em minha mão tudo que o sr. Irons dizia e procurando novas palavras para mim. Eu começara a ler A guerra da Gália, de César, quando voltei para minha casa no Alabama.

Δ

 

CAPÍTULO XVII

No verão de 1894, assisti à reunião da American Association to Promote the Teaching of Speech to the Deaf, em Chautauqua. Foi combinado que eu deveria ir à Wright-Humason School for the Deaf, na cidade de Nova York. Fui para lá em outubro de 1894, acompanhada pela srta. Sullivan. Essa escola fora escolhida especialmente com o objetivo de obter as maiores vantagens em cultura vocal e treinamento na leitura labial. Além de meu trabalho nesses assuntos, durante os dois anos em que estive na escola estudei aritmética, geografia, fisica, francês e alemão.

Srta. Reamy, minha professora de alemão, sabia usar o alfabeto manual, e depois que dominei um pequeno vocabulário, conversávamos em alemão sempre que tínhamos oportunidade.

Em poucos meses eu podia entender quase tudo que ela dizia.

Antes do final do primeiro ano li Guilherme Tell, encantada. Na verdade, acho que fiz mais progressos em alemão do que em qualquer dos meus estudos. Achei francês muito mais difícil. Eu o estudei com madame Olivier, uma senhora francesa que não conhecia o alfabeto manual e que era obrigada a dar suas instruções oralmente. Eu não conseguia ler seus lábios com facilidade; assim, meus progressos ficaram muito mais lentos do que em alemão. Contudo, consegui ler Le médecin malgré lui de novo. Era muito divertido, mas eu não gostei dele, nem de longe, tanto quanto gostei de Guilherme Tell.

Meu progresso em leitura labial e fala não era o que minhas professoras e eu tínhamos esperado. Minha ambição era falar como as outras pessoas, e minhas professoras acreditavam que isso podia ser conseguido; mas embora trabalhássemos arduamente e com fé, não chegamos a alcançar nosso objetivo. Acho que este era elevado demais e por isso a decepção foi inevitável.

Eu ainda encarava a aritmética como um sistema de armadilhas.

Debruçava-me na perigosa fronteira da "adivinhação", evitando, com problemas infinitos para mim e para os outros, o largo vale do raciocínio. Quando não estava adivinhando eu concluía, e essa falta, além de minha própria estupidez, agravou minhas dificuldades mais do que era certo ou necessário.

Entretanto, embora tais desapontamentos às vezes me causassem grande depressão, eu prosseguia meus outros estudos com inarredável interesse, especialmente geografia fisica. Era uma alegria aprender os segredos da natureza: como - na pitoresca linguagem do Velho Testamento - os ventos são feitos para soprar dos quatro cantos dos céus, como os vapores se levantam dos confins da terra, como os rios são escavados entre as rochas e as montanhas viradas pelas raízes e "de que maneira" o homem pode sobrepujar forças mais poderosas do que ele. Os dois anos em Nova York foram felizes e lembro-me deles com verdadeiro prazer.

Lembro-me especialmente das caminhadas que fazíamos juntos no Central Park, a única parte da cidade que combinava comigo. Nunca perdi um centímetro do meu encantamento com esse maravilhoso parque. Eu adorava que ele me fosse descrito cada vez que entrava nele, pois era lindo em todos os seus aspectos; e estes eram tantos que o parque era bonito de modo diferente a cada dia dos nove meses que passei em Nova York.

Na primavera, fizemos excursões a vários lugares interessantes.

Navegamos pelo rio Hudson e perambulamos por suas margens verdes, em que Bryant adorava cantar. 11 Eu gostava da grandeza simples e selvagem dos altos rochedos. Entre os lugares que visitei estavam West Point, Tarrytown, lar de Washington Irving, onde andei pelo "Vale Adormecido".

Os professores na Wright-Humason School estavam sempre planejando como poderiam dar aos alunos todas as vantagens usufruídas pelos que ouvem - como poderiam aproveitar as poucas tendências e lembranças passivas no caso das crianças pequenas - e retirá-las das confinadas circunstâncias de suas vidas.

Antes que eu deixasse Nova York, esses dias luminosos foram obscurecidos pela maior tristeza que já tive, com exceção da morte de meu pai. O sr. John P Spaulding, 12 de Boston, morreu em fevereiro de 1896. Só aqueles que mais o conheceram e amaram podem entender o que sua amizade significou para mim.

Ele, que fazia todos felizes de um modo belo e delicado, fora muito bondoso comigo e com a srta. Sullivan. À medida que sentíamos sua amorosa presença e sabíamos que tinha um interesse vigilante em nosso trabalho, açoitado por tantas dificuldades, não podíamos nos sentir desencorajadas. Sua partida deixou um vazio em nossas vidas que jamais foi preenchido.

Δ

 

CAPÍTULO XVIII

Em outubro de 1896 entrei para a Cambridge School for Young Ladies, para ser preparada para Radcliffe.

Quando era menina, visitei Wellesley e surpreendi meus amigos anunciando: "Algum dia irei para a faculdade, mas irei para Harvard!". Quando me perguntaram por que não Wellesley, respondi que lá só tinha garotas. A idéia de ir para a universidade enraizou-se no meu coração e se tornou um desejo sincero, o que me impeliu a entrar em competição com as moças que viam e ouviam ante à forte oposição de muitos amigos verdadeiros e sábios. Quando deixei Nova York, a idéia se tornara um objetivo fixo, e ficou decidido que eu devia ir para Cambridge. Essa foi a abordagem mais próxima que pude chegar de Harvard e da realização de minha declaração da infância.

Na Cambridge School, o plano era que a srta. Sullivan assistisse às aulas comigo e interpretasse para mim as instruções dadas.

É claro que a experiência de meus professores era ensinar alunos normais, e meu único meio de conversar com eles era pela leitura labial. Meus estudos do primeiro ano foram história inglesa, literatura inglesa, alemão, latim, aritmética, composição latina e matérias ocasionais. Até então eu nunca estudara com o objetivo de me preparar para a faculdade; mas fora bem instruída em inglês pela srta. Sullivan, e logo se tornou claro para meus professores que eu não precisava de instrução especial nesse assunto além de um estudo crítico dos livros indicados pela faculdade. Além disso, eu tivera um bom começo em francês e recebera seis meses de aulas em latim, mas era com o alemão que minha familiaridade era maior.

Entretanto, apesar dessas vantagens, havia sérias dificuldades ao meu progresso. A srta. Sullivan não conseguia soletrar em minha mão tudo o que os livros requeriam, e era muito difícil ter livros didáticos impressos em relevo a tempo de me serem úteis, embora meus amigos em Londres e Filadélfia quisessem apressar o trabalho. De fato, durante um tempo tive de copiar meu latim em braile para que pudesse recitar com as outras moças. Meus professores logo se tornaram bastante familiarizados com meu falar imperfeito para responder prontamente às minhas perguntas e corrigir os erros. Eu não podia tomar notas na aula ou escrever exercícios; mas escrevia todas as minhas composições e traduções em casa, na máquina de escrever.
 

Helen Keller escrevendo à máquina em Radcliffe College, cerca de1900
Em Radcliffe College, Helen Keller escrevendo à máquina, cerca de1900

Todos os dias, a srta. Sullivan ia às aulas comigo e soletrava em minha mão com infinita paciência tudo o que os professores diziam. Nas horas de estudo, ela precisa procurar novas palavras para mim e ler e reler notas e livros sem letras em relevo. É dificil imaginar o tédio de tal trabalho. Frau Grõte, minha professora de alemão, e sr. Gilman, 13 o diretor, foram os únicos professores na escola que aprenderam a linguagem manual. Ninguém percebeu tão profundamente quanto a querida frau Grõte como seu próprio soletrar era lento e inadequado. Entretanto, na bondade de seu coração, ela laboriosamente soletrava suas aulas para mim duas vezes por semana, para dar um pouco de descanso à srta. Sullivan. Mas embora todos fossem bondosos e prontos a nos ajudar, havia somente uma mão que podia transformar a tarefa desagradável em prazer.

Naquele ano terminei aritmética, passei em revista minha gramática latina e li três capítulos de A guerra da Gália, de César.

Em alemão, li, parcialmente com meus dedos e parcialmente com a ajuda da srta. Sullivan, A canção do sino e Tauches de Schiller, Die harzreise, de Heine, Aus dem staat Friedrichs des Grossen, de Freytag, Fluch der schõnheit, de Riehl, Minna von Barnhelm, de Lessing e Da minha vida, de Goethe. Tive o maior prazer com esses livros alemães, especialmente com os versos maravilhosos de Schiller, a história das magníficas realizações de Frederico, o Grande e o relato da vida de Goethe. Lamentei terminar Die Harzreise, tão espirituoso, feliz e cheio de encantadoras descrições de colinas cobertas de vinhedos, correntes que cantam e ondulam ao sol e regiões selvagens, sagradas para a tradição e a lenda, as irmãs crepusculares de uma era imaginativa há muito desaparecida - descrições possíveis de serem feitas somente por aqueles para quem a natureza é "uma emoção, um amor e um apetite".

O sr. Gilman deu-me aulas de literatura inglesa parte do ano.

Lemos juntos As you like it (Como queiras), Speech on conciliation with America (Discurso de conciliação com a América), de Burke, e Life of Samuel Johnson (Vida de SamuelJohnson), de Macaulay. A ampla visão do sr. Gilman sobre história e literatura e suas inteligentes explicações tornaram meu trabalho mais fácil e agradável do que poderia ser se eu apenas tivesse lido mecanicamente as anotações com as explicações necessariamente breves dadas nas aulas.

O Speech, de Burke, foi o mais instrutivo livro sobre tema politico que eu já tinha lido até então. Minha mente agitou-se com a época agitada e os personagens à volta dos quais se centralizava a vida de duas nações em disputa que pareciam se mover diante de mim. Enquanto o discurso magistral de Burke prosseguia em poderosos surtos de eloqüência, eu cogitava cada vez mais como fora possível que o rei George e seus ministros tivessem feito ouvidos moucos para suas proféticas advertências sobre nossa vitória e a sua humilhação. A seguir entrei nos melancólicos detalhes do relato no qual o grande estadista permanece com seu partido e com os representantes do povo. Pensei como era estranho que sementes tão preciosas da verdade devessem cair no joio da ignorância e da corrupção.

De um modo diferente, Life of Samuel Johnson, de Macaulay, era interessante. Meu coração alinhou-se com o homem solitário que comeu o pão da aflição em Grub Street e, mesmo assim, no meio do esforço e cruel sofrimento do corpo e da alma, sempre tinha uma palavra amável e prestava ajuda aos pobres e desprezados.

Rejubilei-me com todos os seus sucessos, fechei os olhos a seus defeitos e me surpreendi, não que ele os tivesse, que tais defeitos não esmagassem ou apequenassem sua alma. Entretanto, apesar do brilho de Macaulay e sua admirável faculdade de fazer o lugar comum parecer novo e pitoresco, seu dogmatismo às vezes me cansava, e seus freqüentes sacrificios da verdade ao efeito me mantinham numa atitude de questionamento muito diferente da reverência com que eu ouvira Demóstenes da Grã-Bretanha.

Na escola de Cambridge, pela primeira vez na minha vida, usufruí da companhia de moças da minha idade que viam e ouviam.

Morei com várias outras numa das agradáveis casas vinculadas à escola, a casa em que o sr. Howells morara, e todos nós tínhamos a vantagem de uma vida doméstica. Eu me juntava a elas em muitos jogos, mesmo cabra-cega, e em alegres brincadeiras na neve; juntas, fazíamos longos passeios, discutíamos nossos estudos e liamos alto as coisas que nos interessavam. Algumas moças aprenderam a falar comigo, de modo que a srta. Sullivan não tinha de repetir a conversa delas.

No Natal, minha mãe e minha irmã mais moça passaram o feriado comigo, e o sr. Gilman bondosamente ofereceu que Mildred estudasse em sua escola. Portanto, minha irmã ficou comigo em Cambridge e por seis contentes meses mal nos separamos. Fico muito feliz em lembrar as horas que passamos ajudando-nos uma a outra nos estudos e compartilhando nosso lazer.

Fiz meus exames preliminares para Radcliffe do dia 29 de junho a 3 de julho de 1897. Minhas matérias eram alemão básico e avançado, francês, latim, inglês e história grega e romana, perfazendo nove horas ao todo. Passei em tudo e recebi "louvor" em alemão e inglês.

Talvez seja necessária uma explicação sobre o método utilizado quando fiz meus exames. Exigia-se que o aluno fizesse os exames em 16 horas - 12 horas nas chamadas matérias básicas e quatro nas avançadas. Ele tinha de passar cinco horas de cada vez para que fossem levadas em conta. Os papéis dos exames eram liberados por Harvard às nove horas e levados a Radcliffe por mensageiro especial. Cada candidato era conhecido por um número, não por seu nome. Eu era o número 233 mas, como tinha de usar máquina de escrever, minha identidade não podia ser escondida.

Acharam aconselhável que eu fizesse meus exames numa sala sozinha, pois o barulho da máquina de escrever poderia perturbar as outras moças. O sr. Gilman leu todos os papéis para mim por meio do alfabeto manual. Colocaram um homem de guarda na porta para impedir qualquer interrupção.

No primeiro dia tive alemão. O sr. Gilman sentou-se a meu lado e leu a prova minuciosamente primeiro, depois frase a frase, enquanto eu repetia as palavras alto, para certificar-me de que eu o entendia perfeitamente. As provas eram difíceis e eu estava ansiosa enquanto escrevia as respostas na máquina de escrever.

O sr. Gilman soletrou-me o que eu havia escrito, fiz as mudanças que achei necessárias e ele as inseriu. Quero dizer aqui que desde então nunca tive essa vantagem em qualquer de meus exames.

Em Radcliffe ninguém lê as provas para mim depois que estão escritas e não tenho oportunidade de corrigir erros, a não ser que eu termine antes de o tempo se esgotar. Nesse caso corrijo apenas os erros que lembro nos poucos minutos permitidos e tomo notas de tais correções no final da prova. Se passei com notas maiores nas preliminares do que nas finais, há dois motivos. Nas provas finais, ninguém leu meu trabalho para mim e nas preliminares os exames eram sobre matérias com as quais eu tinha uma certa familiaridade antes de estudar na escola de Cambridge; no início do ano, eu passara nos exames de inglês, história, francês e alemão, feitos a mim pelo sr. Gilman de provas anteriores de Harvard.

O sr. Gilman mandou meu trabalho escrito para os examinadores com um certificado de que eu, candidata n.º 233, o escrevera.

Todos os outros exames preliminares foram realizados da mesma maneira. Nenhum foi tão difícil quanto o primeiro.

Lembro-me de que no dia em que a prova de latim nos foi trazida, o professor Schilling entrou e me informou que eu passara satisfatoriamente em alemão. Isso me encorajou tremendamente e continuei meu exame rapidamente, com o coração leve e a mão firme.

Δ

CAPÍTULO XIX

Comecei meu segundo ano na escola Gilman cheia de esperança e determinação de vencer. No entanto, durante as primeiras semanas, deparei-me com dificuldades imprevistas. O sr. Gilman concordara que naquele ano eu devia estudar principalmente matemática. Eu tinha física, álgebra, geometria, astronomia, grego e latim. Infelizmente, muitos livros de que eu precisava não haviam sido escritos em relevo a tempo para que eu começasse com as turmas e me faltava equipamento importante para alguns estudos. Eu estava em turmas muito grandes e era impossível que os professores me dessem instrução especial. A srta. Sullivan era obrigada a ler todos os livros e traduzir as instruções dos professores para mim e pela primeira vez em 11 anos sua preciosa mão parecia não estar à altura da tarefa.

Era preciso que eu escrevesse álgebra e geometria em aula e resolvesse problemas de física, e eu só poderia fazer isso quando comprasse uma máquina de escrever em braile que me permitisse estabelecer os degraus e processos de meu trabalho. Não conseguia seguir com meus olhos as figuras geométricas desenhadas no quadro-negro e meu único meio de obter uma idéia clara delas era reproduzi-las sobre uma almofada com arames retos e curvos, com extremidades encurvadas e pontudas. Como diz o sr. Keith em seu relato, 14 eu tinha de guardar na mente as letras das figuras, a hipótese, a conclusão, a construção e a progressão da prova.

Numa palavra, cada estudo tinha seus obstáculos. Às vezes eu perdia toda coragem e denunciava minhas emoções de um modo que tenho vergonha de lembrar, especialmente porque os sinais de minha perturbação foram posteriormente usados contra a srta. Sullivan, a única, de todos os bondosos amigos que eu tinha lá, que poderia consertar o torto e aplainar o áspero.

Pouco a pouco, porém, minhas dificuldades começaram a desaparecer. Os livros em relevo e outros equipamentos chegaram e me atirei ao trabalho com renovada confiança. Álgebra e geometria eram os únicos estudos que continuavam a desafiar meus esforços de compreendê-los. Como já disse antes, não tinha nenhuma aptidão para a matemática; os pontos diferentes não me eram explicados tão completamente quanto eu desejaria.

Os diagramas geométricos eram especialmente aflitivos porque eu não conseguia ver a relação entre as diferentes partes, mesmo na almofada. Só quando o sr. Keith me ensinou aquilo tive uma idéia clara da matemática.

Eu começava a superar essas dificuldades quando ocorreu algo que mudou tudo.

Pouco antes dos livros chegarem, o sr. Gilman começara a advertir a srta. Sullivan de que eu estava trabalhando demais e, apesar de meus sinceros protestos, ele reduziu o número de minhas recitações. No início havíamos concordado que, se necessário, eu levaria cinco anos para me preparar para a faculdade, mas no final do primeiro ano o sucesso de meus exames mostrou à srta. Sullivan, srta. Harbaugh (a diretora do sr. Gilman) e a uma outra que eu poderia fazer sem muito esforço minha preparação em mais dois anos. O sr. Gilman inicialmente concordou com isso, mas quando minhas tarefas se tornaram um tanto mais complexas, insistiu que eu estava trabalhando demais e que devia continuar em sua escola mais três anos. Não gostei desse plano, pois queria entrar para a faculdade com a minha turma.

No dia 17 de novembro eu não estava bem e não fui à escola. Embora a srta. Sullivan soubesse que minha indisposição não era séria, ao saber dela o sr. Gilman declarou que eu estava tendo um esgotamento e efetuou mudanças em meus estudos que impossibilitariam meus exames finais com a minha turma.

Finalmente, a divergência de opiniões entre o sr. Gilman e a srta. Sullivan fez com que mamãe retirasse minha irmã e eu da Cambridge School.

Após um certo intervalo, combinou-se que eu continuaria meus estudos com um professor particular, sr. Merton S. Keith, de Cambridge. A srta. Sullivan e eu passamos o resto do inverno com nossos amigos, os Chamberlins, 15 em Wrentham, a 45 quilômetros de Boston.

De fevereiro a julho de 1898, o sr. Keith vinha a Wrentham duas vezes por semana e me ensinava álgebra, geometria, grego e latim. A srta. Sullivan interpretava as aulas dele.

Em outubro de 1898, voltamos a Boston. Por oito meses o sr. Keith me deu aulas cinco vezes por semana, em períodos de cerca de uma hora. Ele explicava todas as vezes o que eu não entendera na aula anterior, determinava novo trabalho e levava para casa com ele os exercícios de grego que eu fizera durante a semana na máquina de escrever, corrigia-os completamente e os devolvia.

Desse modo, minha preparação para a faculdade continuou sem interrupção. Eu achava muito mais fácil e agradável ser ensinada sozinha do que ter as aulas na turma. Não havia pressa nem confusão. Meu professor tinha muito tempo para explicar o que eu não entendia, portanto eu avançava mais rápido e fazia um trabalho melhor do que na escola. Ainda acho mais difícil dominar problemas em matemática do que em minhas outras matérias. Gostaria que a álgebra e a geometria tivessem sido pelo menos metade tão fácil quanto as linguas e a literatura. Mas o sr. Keith tornava interessante até a matemática; conseguia minimizar os problemas a um tamanho suficientemente pequeno para que penetrassem em minha mente. Mantinha-a alerta e ávida, treinando-a para raciocinar claramente e buscar as conclusões de um modo calmo e lógico, em vez de pular alucinadamente no escuro e não chegar a lugar algum. Era sempre gentil e indulgente por mais obtusa que eu fosse e, acreditem, minha burrice teria exaurido com freqüência a paciência de Jó.

Nos dias 29 e 30 de junho de 1899 fiz meus exames finais para o Radcliffe College. No primeiro dia tive grego elementar e latim avançado, e no segundo, geometria, álgebra e grego avançado.

As autoridades da faculdade não permitiram que a srta. Sullivan lesse as provas para mim, portanto, sr. Eugene C. Vining, um dos professores da Instituição Perkins para Cegos, foi contratado para copiar as provas para mim em braile. O sr. Vining era um estranho para mim e só conseguia comunicar-se comigo em braile. O inspetor de disciplina também era um estranho e não tentou se comunicar comigo de modo algum.

O braile funcionou muito bem nas línguas, mas quando se tratou da geometria e da álgebra surgiram as dificuldades. [Ver carta ] Eu estava dolorosamente perplexa e me senti desencorajada, desperdiçando boa parte do precioso tempo, principalmente em álgebra. É verdade que eu tinha familiaridade com todo o braile literário de uso comum nos Estados Unidos - inglês, americano e Ponto Nova York; mas os diversos sinais e símbolos em geometria e álgebra são muito diferentes nos três sistemas, e eu usara apenas o braiLe inglês em minha álgebra.

Dois dias antes dos exames, o sr. Vining enviou-me uma cópia em braile de uma velha prova de álgebra de Harvard. Para meu desalento descobri que estava na notação americana. Sentei-me imediatamente e escrevi para o sr. Vining, pedindo-lhe que me explicasse os sinais. Na volta do correio recebi outra prova e uma tabela de sinais, e me pus a trabalhar para aprender a notação. Na noite anterior ao exame de álgebra, porém, enquanto eu lutava com alguns exemplos muito complicados, não conseguia apreender as combinações de parêntese, colchete e radical. Sr. Keith e eu ficamos desalentados e cheios de maus pressentimentos para o dia seguinte; mas fomos para a faculdade um pouco antes do início dos exames e o sr. Vining me explicou mais amplamente os simbolos americanos.

Em geometria, minha dificuldade principal era estar acostumada a ler as questões sempre em linhas impressas, ou tê-las soletradas na minha mão; e de algum modo, embora as questões estivessem bem diante de mim, eu achava o braile confuso e não conseguia fixar claramente na mente o que estava lendo. Mas quando enfrentei a álgebra, passei por um momento ainda pior. Os sinais, que aprendera tão recentemente e que pensara conhecer me deixaram perplexa. Além disso, eu não conseguia ver o que escrevia em minha máquina. Sempre fizera meu trabalho em braile ou na cabeça. O sr. Keith confiara demais na minha capacidade de resolver problemas mentalmente e não me treinara para escrever os papéis do exame. Em conseqüência disso, meu trabalho foi penosamente lento e tive de ler repetidamente os exemplos antes de poder formar qualquer idéia do que precisava fazer. Na verdade, não tenho certeza de ter lido todos os sinais corretamente.

Achei muito difícil manter o sangue-frio.

Mas não ponho a culpa em ninguém. O conselho administrativo de Radcliffe não percebeu como estavam tornando meus exames difíceis, assim como não compreenderam as dificuldades peculliares que eu tinha de sobrepujar. No entanto, se involuntariamente colocaram obstáculos no meu caminho, tenho o consolo de saber que os superei todos.

Δ

 

CAPÍTULO XX

A luta para ser admitida na faculdade terminara e agora podia entrar em Radcliffe quando quisesse. Antes que eu entrasse para lá, contudo, foi considerado melhor que eu estudasse outro ano com o sr. Keith. Assim, apenas no outono de 1900 meu sonho de entrar para a faculdade se realizou.

Lembro-me do meu primeiro dia em Radcliffe, um dia muito interessante para mim. Eu ansiara por ele há anos. Uma poderosa força interior, mais forte do que a persuasão de meus amigos, mais forte até do que os arrazoados do meu coração, impelira-me a experimentar minha força pelos padrões dos que vêem e ouvem. Eu sabia que havia obstáculos no caminho, mas estava ansiosa para superá-los. Levara no coração as palavras do sábio romano que dissera: "Ser banido de Roma é apenas viver fora de Roma". Excluída dos grandes caminhos do conhecimento, fui compelida a fazer a jornada através do país por estradas não freqüentadas - só isso-; e sabia que na faculdade havia muitos atalhos onde eu poderia estar em contato com moças que pensavam, amavam e lutavam como eu.

Comecei meus estudos com avidez. À minha frente eu via abrir-se um novo mundo de beleza e luz e sentia em mim a capacidade de conhecer todas as coisas. Na terra maravilhosa da Mente eu seria tão livre quanto qualquer um. As pessoas, cenários, maneiras, alegrias e tragédias dessa terra seriam intérpretes vivas e tangíveis do mundo real. As salas de palestras enchiam-se com o espírito dos grandes e dos sábios e eu achava que os professores eram a corporificação da sabedoria. Se desde então aprendi que a realidade é diferente, não direi a ninguém.

Mas logo descobri que a faculdade não era bem o liceu romântico que eu imaginara. Muitos sonhos que tinham encantado minha inexperiência jovem tornaram-se marcadamente menores e "se desvaneceram à luz do cotidiano". Gradualmente comecei a descobrir que havia desvantagens em ir para a faculdade.

Uma das que mais senti, e ainda sinto, é a falta de tempo. Eu e minha mente costumávamos ter tempo para pensar, refletir.

Sentávamos juntas ao anoitecer e ouvíamos as melodias interiores do espírito, que se ouve apenas em momentos de lazer, quando as palavras de algum poeta amado toca uma corda profunda e doce na alma até então silenciosa. Na faculdade, porém, não há tempo para comungar com os próprios pensamentos. Parece que se vai para a faculdade para aprender, não para pensar. Ao se entrar pelos portais do aprendizado, deixam-se os mais caros prazeres - solidão, livros e imaginação - do lado de fora com os pinheiros sussurrantes. Acho que devo encontrar algum conforto na idéia de que estou amealhando tesouros para usufruto futuro, mas sou imprevidente o bastante para preferir a alegria atual a estocar as riquezas para um dia de chuva.

Meus estudos no primeiro ano foram francês, alemão, história, composição de inglês e literatura inglesa. No curso de francês li alguns trabalhos de Corneille, Moliêre, Racine, Alfred de Musset e Sainte-Beuve, e no de alemão os trabalhos de Goethe e Schiller. Passei rapidamente em revista todo o período da história da queda do Império Romano ao século XVIII, e na literatura inglesa estudei criticamente os poemas de Milton e a Aeropagitica.

Perguntam-me freqüentemente como supero as condições peculiares em que trabalho na faculdade. Na sala de aula fico, é claro, praticamente só. O professor é tão remoto como se estivesse falando através de um telefone. As palestras são soletradas em minha mão tão rapidamente quanto possível e boa parte da individualidade do palestrante perde-se para mim no esforço de manter a corrida. As palavras voam por minha mão como cães de caça perseguindo uma lebre que eles perdem com freqüência.

Mas quanto a isso não acho que me saia muito pior do que as moças que tomam notas. Se a mente está ocupada com o processo mecânico de ouvir e colocar palavras no papel numa velocidade atabalhoada, não creio que se preste muita atenção ao tema sob consideração ou à maneira como esse é apresentado. Não posso tomar notas durante as palestras porque minhas mãos estão ocupadas ouvindo. Geralmente anoto rapidamente o que lembro quando chego em casa. Escrevo os exercícios, os temas diários, as criticas e os testes, os exames do meio do ano e os finais em minha máquina de escrever, para que os professores não tenham qualquer dificuldade em saber como sei pouco. Quando comecei o estudo da prosódia latina, inventei e expliquei a meu professor um sistema de sinais indicando as diferentes variações e quantidades.

Uso a máquina de escrever Hammond. Tentei muitas máquinas e achei que a Hammond é mais bem adaptada às necessidades peculiares do meu trabalho. Com essa máquina podem ser usadas barras de tipos móveis e pode-se ter várias barras, cada qual com um conjunto diferente de tipos - gregos, franceses ou matemáticos, segundo o que se queira escrever. Sem ela, duvido que eu pudesse ir para a faculdade.

Muitos poucos livros exigidos nos diversos cursos são impressos para os cegos e sou forçada a tê-los soletrados em minha mão. Conseqüentemente, preciso de mais tempo para preparar minhas lições do que as outras moças. A parte manual leva mais tempo e tenho perplexidades que elas não têm. Há dias em que a grande atenção que preciso dar a detalhes abrasa meu espírito, e a idéia de que preciso passar horas lendo uns poucos capítulos, enquanto no mundo lá fora as outras moças estão rindo, cantando e dançando, me deixa revoltada; mas logo recupero minha resistência e expulso o desagrado do meu coração com risos. Porque, afinal, todo mundo que deseja obter verdadeiro conhecimento precisa escalar a Colina da Dificuldade sozinho, e já que não há nenhuma estrada fácil para o cume, preciso ziguezaguear ao meu próprio modo. Escorrego e recuo muitas vezes, caio, fico parada, corro à beira de obstáculos escondidos, perco a paciência, encontro o caminho de novo e o conservo melhor; ando com dificuldade para a frente, avanço um pouquinho, sinto-me encorajada, fico mais ávida, subo mais alto e começo a ver o horizonte amplo. Cada luta é uma vitória. Mais um esforço e eu alcanço a nuvem luminosa, as profundezas azuis do céu, as regiões elevadas do meu desejo. Mas nem sempre estou sozinha nessas lutas. O sr. William Wade e o sr. E. E. Allen, diretor da Instituição Pensilvânia para a Instrução dos Cegos, conseguem-me muitos livros que preciso em relevo. A atenção deles tem sido de uma tal ajuda e incentivo para mim que jamais poderão ter noção dela algum dia.

No ano passado, meu segundo ano em Radcliffe, estudei composição em inglês, a Bíblia como literatura inglesa, os governos da América e Europa, as odes de Horácio e comédia latina.

A turma de composição foi a mais agradável e muito viva. As palestras foram sempre interessantes, vivazes e espirituosas, pois o professor, sr. Charles Townsend Copeland, 16 mais do que qualquer outro que tive até este ano, faz a literatura reviver diante do aluno em todo seu frescor e poder original. Por uma curta hora nos é permitido beber na eterna beleza dos velhos mestres sem interpretações ou explicações desnecessárias. O aluno se rejubila ante os seus belos pensamentos. E usufrui com toda a sua alma o doce trovão do Velho Testamento, esquecendo a existência de Javé e Eloim; e vai para casa sentindo que teve "um vislumbre daquela perfeição em que espírito e forma habitam em imortal harmonia; verdade e beleza produzindo um novo broto no antigo caule do tempo".

Este ano é o mais feliz porque estou estudando matérias que me interessam especialmente, economia, literatura elizabetana, Shakespeare, com o professor George L. Kittredge, 17 e história da filosofia com o professor Josiah Roycel18 Pela filosofia entra-se com a solidariedade da compreensão nas tradições de eras remotas e outros modos de pensamento que algum tempo atrás pareciam estranhas e sem sentido.

Entretanto, a faculdade não é a Atenas universal que eu pensara ser. Lá não encontramos os grandes e sábios face a face; não sentimos nem seu toque vivo. Eles estão lá, é verdade; mas parecem mumificados. Precisamos extrai-los do muro incrustado do conhecimento e dissecá-los, analisá-los, antes de nos certificarmos de que temos um Milton ou um Isaías e não apenas uma imitação inteligente. Parece-me que muitos estudiosos se esquecem de que o prazer com as grandes obras da literatura depende mais da profundidade de nossa simpatia do que de nossa compreensão. O problema é que pouquíssimas de suas laboriosas explicações ficam na memória. A mente as deixa cair como um ramo livra-se do fruto maduro demais. É possível se conhecer uma flor, raiz, caule e tudo e todos os processos do crescimento e mesmo assim não se apreciar a flor fresca banhada no orvalho do céu. Eu perguntava repetidamente, impaciente: "Por que me preocupar com essas explicações e hipóteses?". Elas voam daqui para lá em meu pensamento como pássaros cegos movendo-se no ar com asas ineficazes. Minha intenção não é fazer objeções a um conhecimento completo das obras famosas que lemos.

Minha objeção dirige-se apenas aos intermináveis comentários e perturbadoras críticas que só ensinam uma coisa: há tantas opiniões quanto homens. Mas quando um grande erudito como o professor Kittredge interpreta o que o mestre disse, é "como se uma nova visão fosse dada ao cego". Ele traz de volta Shakespeare, o poeta.

Contudo, há momentos em que anseio varrer para longe metade das coisas que esperam que eu aprenda, pois a mente sobrecarregada não pode usufruir o tesouro que amealhou a um custo enorme. Acho que é impossível ler num dia quatro ou cinco livros diferentes em linguas diferentes e tratar de temas amplamente diversos sem perder de vista o próprio motivo por que se lê. Quando se lê apressada ou nervosamente, tendo em mente provas escritas e exames, o cérebro torna-se atravancado com um monte de quinquilharias escolhidas para as quais não parece haver muita utilidade. No presente, minha mente está tão cheia de assuntos heterogêneos que quase me desespero de poder colocá-la em ordem. Sempre que entro na região que era o reino da minha mente sinto-me como a história do macaco numa loja de louças.

Uma miscelânea de conhecimentos desaba sobre minha cabeça como granizo, e quando tento escapar dela, demônios-temas e ondinas de faculdade de todos os tipos me perseguem até que desejo - ah, possa eu ser perdoada pelo desejo malvado! - poder esmagar os ídolos que vim cultuar.

Mas os exames são os principais bichos-papões de minha vida na faculdade. Embora eu os tenha enfrentado muitas vezes e os tenha derrotado e feito comer poeira, mesmo assim erguem-se de novo e me ameaçam com olhares pálidos, até que, como Bob Acres, 19 sinto minha coragem se esvaindo das pontas dos dedos.

Os dias que antecedem tais provas são gastos em preparar rapidamente a mente com fórmulas místicas e datas indigeríveis - dietas impalatáveis - até se desejar que livros, ciência e você mesma estejam, todos, no fundo do mar.

Finalmente chega a hora temível. Você é um ser favorecido caso se sinta preparado e possa convocar na hora certa os pensamentos-padrão que o ajudarão naquele supremo esforço.

Acontece com muita freqüência que o chamado de sua trombeta não é atendido. É de causar perplexidade e exasperação que exatamente no momento em que você precisa da memória e de um bom senso de discriminação, essas faculdades criem suas próprias asas e voem para longe. Os fatos que você estocou com infinito esforço invariavelmente lhe fogem numa emergência.

"Faça um breve relato de Huss e sua obra." Huss? Quem é ele e o que fez? O nome parece estranhamente familiar. Você vasculha seu saco de fatos históricos da mesma forma com que procuraria um pedaço de seda num saco de retalhos. Você tem certeza de que ele está em algum lugar de sua mente perto do alto - você o viu no outro dia quando estava procurando o início da reforma. Mas onde está agora? Você extrai todo tipo de quinquilharia de conhecimentos - revoluções, cismas, massacres, sistemas de governo -, mas onde está Huss? Você se surpreende com todas as coisas que sabe que não estão na prova. Em desespero, pega o saco e o esvazia, e lá no canto está o seu homem, ruminando serenamente seus próprios pensamentos, inconsciente da catástrofe que fez cair sobre você.

Só então o inspetor de prova a informa que o tempo se esgotou. Com uma sensação de intenso desgosto, você chuta o lixo para um canto e vai para casa, a cabeça cheia de esquemas revolucionários para abolir o direito divino dos professores de fazer perguntas sem o consentimento do interrogado.

Ocorreu-me que nas duas ou três últimas páginas deste capítulo utilizei imagens que farão o riso se virar contra mim. Ah, ali estão elas - as metáforas mistas zombando e se pavoneando ante mim, apontando para o macaco na loja de louça atacado pelo granizo e os bichos-papões de aparência pálida, uma espécie não analisada! Que continuem zombando! As palavras descrevem tão precisamente a atmosfera em que vivo, de idéias que tropeçam e se acotovelam, que piscarei para elas de vez e assumirei um ar decidido para declarar que minhas idéias sobre a faculdade mudaram.

Enquanto meus dias em Radcliffe ainda pertenciam ao futuro, estavam envolvidos por um halo romântico que perderam depois; mas na transição do romântico para o real eu aprendi muitas coisas que jamais teria conhecido se não tivesse tentado a experiência. Uma delas é a preciosa ciência da paciência, que nos ensina que deveríamos levar nossa educação como fazemos um passeio no campo, prazerosamente, com a mente aberta de modo hospitaleiro a impressões de todos os tipos. Tal conhecimento inunda a alma invisível com uma silenciosa onda de pensamento cada vez mais profunda. "Conhecimento é poder." Mais que tudo, conhecimento é felicidade, porque ter conhecimento - amplo, profundo - é saber distinguir os objetivos verdadeiros dos falsos e coisas sublimes das comuns. Conhecer as idéias e os feitos que marcaram o progresso do homem é sentir as grandes pulsações da humanidade através dos séculos; e se alguém não sente nessas pulsações um impulso em direção ao céu, deve estar realmente surdo às harmonias da vida.

Δ

 

CAPÍTULO XXI

Até agora tenho esboçado os acontecimentos de minha vida, mas não mostrei o quanto dependo dos livros, não apenas para o lazer e pela sabedoria que trazem a todos que lêem, mas também pelo conhecimento que alcança outros através de seus olhos e ouvidos. Na verdade, os livros são tão mais importantes na minha educação do que na dos outros, que recuarei à época em que comecei a ler.

Li minha primeira história coerente em maio de 1887, aos sete anos de idade, e daquele dia até hoje devorei tudo em forma de página impressa que chega ao alcance de meus dedos famintos. Como já disse, não estudei regularmente durante os primeiros anos de minha educação; nem li de acordo com a regra.

No início eu tinha apenas alguns livros impressos em relevo - "leitores" para principiantes, uma coleção de histórias para crianças e um livro sobre a terra chamado Our world. Acho que foi tudo; mas os lia tão repetidamente que as palavras ficaram gastas e pressionadas a ponto de eu mal conseguir decifrá-las. Às vezes a srta. Sullivan lia para mim, soletrando em minha mão pequenas histórias e poemas que sabia que eu entenderia; mas eu preferia ler sozinha a que lessem para mim, porque gostava de ler repetidamente as coisas que me agradavam.

Foi durante minha primeira visita a Boston que realmente comecei a ler a sério. Era-me permitido passar uma parte de cada dia na biblioteca da instituição, perambular de estante em estante e retirar qualquer livro no qual meus dedos aterrissassem.

E eu lia, mesmo que entendesse uma ou duas palavras em dez ou duas numa página inteira. As próprias palavras me fascinavam, mas eu não tinha consciência do que lia. Minha mente, porém, deve ter sido muito impressionável naquele período, pois reteve muitas palavras e frases inteiras de cujo significado eu não tinha a mais leve pista; e, posteriormente, quando comecei a falar e escrever, essas palavras e frases surgiam num vislumbre muito natural, deixando meus amigos impressionados com a riqueza de meu vocabulário. Devo ter lido partes de muitos livros (naqueles primeiros dias acho que não li nenhum livro completamente) e uma grande quantidade de poesia desse modo incompreensível, até descobrir Little lord Fauntleroy, que foi o primeiro livro importante que li compreendendo.

Certo dia minha professora me achou num canto da biblioteca folheando as páginas de A letra escarlate. Eu tinha cerca de oito anos. Lembro-me de ela ter me perguntado se eu gostara da pequena Pearl e explicou algumas das palavras que me haviam intrigado. Então me contou que tinha uma linda história sobre um garoto e que estava certa de que me agradaria mais do que A letra escarlate. A história era Little lord Fauntleroy e ela prometeu lê-la no próximo verão. Mas só começamos a história em agosto; as primeiras semanas de minha permanência à beira-mar foram tão cheias de descobertas e animação que esqueci a própria existência dos livros. Depois a srta. Sullivan foi visitar alguns amigos em Boston, deixando-me por um breve período.

Quando voltou, praticamente a primeira coisa que fizemos foi começar Little lord Fauntleroy. Lembro-me nitidamente do momento e do lugar em que lemos os primeiros capítulos da fascinante história infantil. Era uma quente tarde de agosto. Estávamos sentadas juntas numa rede pendurada em dois pinheiros solenes a curta distância da casa. Tínhamos lavado rapidamente a louça depois do almoço, a fim de podermos ter uma tarde tão comprida quanto possível para a história. Enquanto andávamos rapidamente pela relva longa em direção à rede, os gafanhotos enxameavam em torno de nós e se prendiam às nossas roupas, e lembro que a srta. Sullivan insistiu em retirá-los todos antes de sentarmos, o que me pareceu uma desnecessária perda de tempo. A rede estava coberta de agulhas de pinheiro, pois não foi usada enquanto minha professora estivera fora. O sol quente brilhava nas agulhas de pinheiro e desprendia seu perfume. O ar estava embalsamado, com um toque de mar. Antes de começarmos a história, a srta. Sullivan explicou-me o que sabia que eu não entenderia, e enquanto continuávamos a ler explicava-me as palavras não-familiares. No início havia muitas palavras que eu desconhecia e a leitura era constantemente interrompida; mas, assim que passei a compreender totalmente a situação, fiquei tão absorvida na história que não notei meras palavras, e temo ter ouvido com impaciência as explicações que a srta. Sullivan achou necessárias. Quando seus dedos ficaram cansados demais para soletrar mais uma palavra, tive pela primeira vez uma sensação aguda da minha privação. Peguei o livro e tentei tatear as letras com um anseio tão intenso que jamais esquecerei.

Posteriormente, ante meu ansioso pedido, o sr. Anagnos mandou que a história fosse impressa em relevo, e a li tão repetidamente que quase a sabia de cor; e por toda a minha infância Little lord Fauntleroy foi meu doce e gentil companheiro. Dei esses detalhes, correndo o risco de entediar, porque contrastam vivamente com minhas vagas, mutáveis e confusas lembranças das primeiras leituras.

De Little lord Fauntleroy dato o início de meu verdadeiro interesse pelos livros. Durante os dois anos seguintes li muitos livros em minha casa e em minhas visitas a Boston. Não consigo me lembrar de todos ou em que ordem os li; mas sei que entre eles estavam Greek heroes (Heróis gregos), Fábulas, de La Fontaine, O Livro das maravilhas para meninos e meninas, de Hawthorne, Bible stories (Histórias da Bíblia), Contos de Shakespeare, de Lamb, A children history of England (Uma história da Inglaterra para crianças), de Dickens, As mil e uma noites, A família Robinson, The pilgrim's progress (O progresso do peregrino), Robinson Crusoé, Mulherzinhas e Heidi uma linda historiazinha que depois li em alemão. Li-os nos intervalos entre estudo e lazer com uma sensação de prazer cada vez maior. Não os estudei ou analisei - não sabia se eram bem escritos ou não; nunca pensei sobre estilo ou autorias. Eles depositaram seus tesouros a meus pés e eu os aceitei como se aceita o sol e o amor dos amigos. Adorei Mulherzinhas porque me deu um senso de parentesco com meninas e meninos que podiam ver e ouvir. Apesar de minha vida circunscrita, eu tinha de olhar entre as capas dos livros notícias do mundo que jaziam fora do meu.

Não liguei muito para The pilgrim's progress, que penso não ter terminado, ou para as Fábulas. Li as Fábulas de La Fontaine primeiro numa tradução inglesa e não gostei muito. Mais tarde li o livro de novo, em francês, e descobri que, apesar dos vivos quadros pintados pelas palavras e o maravilhoso domínio da linguagem, não passei a gostar mais dele. Não sei por que, mas histórias em que animais falam e agem como seres humanos nunca me atraíram muito. As ridículas caricaturas dos animais ocupam minha mente com a exclusão da moral.

Além disso, La Fontaine raramente se dirige a nosso senso moral mais elevado, se é que chega a fazê-lo. Os acordes mais altos que alcança são os da razão e do egoísmo. Por todas as fábulas perpassa a idéia de que a moralidade do homem brota inteiramente do egoísmo, e que se este é dirigido e controlado pela razão, segue-se necessariamente a felicidade. Bem, tanto quanto posso julgar, o egoísmo é a raiz de todo o mal; mas certamente posso estar errada, pois La Fontaine teve muito mais oportunidades de observar os homens do que provavelmente terei algum dia. Não faço tanta objeção às fábulas cínicas e satíricas quanto àquelas em que momentosas verdades são ensinadas por macacos e raposas.

Mas adoro The jungle book (O livro da selva) e Wild animals I have known (Animais selvagens que conheci). Tenho um genuíno interesse nos animais em si, porque são verdadeiros, e não caricaturas de homens. Simpatiza-se com seus amores e ódios, ri-se de suas comédias e chora-se ante suas tragédias. E se apontam uma moral, isso é feito de modo tão sutil que não percebemos.

Minha mente abria-se natural e alegremente para uma concepção da Antigüidade. A Grécia, a Grécia antiga, exercia um misterioso fascínio sobre mim. Em minha fantasia, os deuses e deusas pagãos ainda andavam pela terra e conversavam com os homens face a face, e no meu coração eu secretamente construía altares para aqueles que mais amava. Conhecia e amava toda a tribo de ninfas, heróis e semideuses - não, não todos, pois a crueldade e a cobiça de Medéia e Jasão eram monstruosas demais para serem perdoadas, e eu costumava cogitar por que os deuses permitiam que agissem errado e depois os puniam por serem maus. E o mistério ainda está sem solução. Com freqüência cogito como

God can dumbness keep
While Sin creeps grinning
through His house of Time. 20

[Deus pode manter-se mudo/enquanto o pecado se arrasta sorrindo por Sua casa do Tempo. (Tradução livre. N da T)]

Foi a Ilíada que tornou a Grécia o meu paraíso. Eu conhecia a história de Tróia antes de lê-la no original, e conseqüentemente tive pouca dificuldade em ter acesso aos tesouros das palavras gregas depois que ultrapassei as fronteiras da gramática. A grande poesia, seja escrita em grego ou inglês, não precisa de outro intérprete que um coração que responde. Se a hoste daqueles que tornam as grandes obras dos poetas odiosas com suas análises, imposições e comentários laboriosos pudesse aprender essa simples verdade! Não é necessário poder definir cada palavra, decompô-la em suas partes principais e determinar sua posição gramatical na sentença para se compreender e apreciar um belo poema. Sei que meus cultos professores encontraram na Ilíada riquezas maiores do que algum dia encontrarei. Mas não sou avara; fico contente que outros sejam mais sábios do que eu. No entanto, com todo o amplo e abarcante conhecimento deles, não podem mensurar seu prazer com aquele esplêndido épico, nem eu.

Quando leio as mais belas passagens da Ilíada, tenho consciência de um sentido de alma que me ergue acima das circunstâncias estreitas e atravancantes de minha vida. Minhas limitações físicas são esquecidas - meu mundo ascende e a extensão, a amplitude e a liberdade dos céus são minhas!

Minha admiração pela Eneida não é tão grande, mas ainda assim é verdadeira. Li-a tanto quanto possível sem a ajuda de notas ou do dicionário, e sempre gostei de traduzir os episódios que me agradaram especialmente. A capacidade de Virgílio para pintar quadros com palavras às vezes é maravilhosa; mas seus deuses e homens movem-se por cenas de paixão, conflitos, piedade e amor como as graciosas figuras num baile de máscaras elizabetano quando, na Ilíada, dão três saltos e continuam cantando. Virgílio é sereno e adorável como um Apoio de mármore à luz do luar, Homero é um belo jovem cheio de vida em pleno sol, com o vento nos cabelos.

Como é fácil voar nas asas de papel! A jornada de Greek heroes à Ilíada não se fazia num dia, nem era totalmente agradável. Seria possível dar a volta ao mundo muitas vezes enquanto eu palmilhava com dificuldade meu caminho pelos labirintos de gramáticas e dicionários, ou caía naquelas armadilhas medonhas chamadas exames, armadas por escolas e faculdades para a confusão daqueles que buscam o conhecimento. Suponho que esse tipo de Progresso do Peregrino fosse justificado no final; mas me parecia interminável, apesar das agradáveis surpresas que vinham ao meu encontro de vez em quando ao dobrar a estrada.

Comecei a ler a Bíblia muito antes de poder entendê-la. Agora me parece estranho que tenha havido uma época em que meu espírito fosse surdo a suas maravilhosas harmonias; mas lembro-me bem de uma manhã chuvosa de domingo em que, não tendo nada mais a fazer, implorei à minha prima que lesse para mim uma história da Bíblia. Embora ela achasse que eu não entenderia, começou a soletrar em minha mão a história de José e seus irmãos.

Por alguma razão, tal história não me interessou. A linguagem pouco comum e a repetição fizeram a história parecer irreal e remota na terra de Canaã e adormeci, e fui para a terra de Nod antes que os irmãos voltassem com o casaco de muitas cores para a tenda de Jacó e lhes contasse a malvada mentira! Não consigo entender por que as histórias dos gregos eram tão cheias de encanto para mim e as da Bíblia tão despidas de interesse, a não ser que fosse pelo fato de eu ter conhecido vários gregos em Boston e sido inspirada por seu entusiasmo com as histórias de seu país, ao passo que jamais conhecera um único hebreu ou egípcio, e por isso concluísse que eram apenas bárbaros e as histórias sobre eles provavelmente todas inventadas, hipótese esta que explicava as repetições e os nomes esquisitos. De modo bem curioso, jamais me ocorreu chamar os nomes próprios gregos de "esquisitos".

No entanto, como falar das glórias que desde então descobri na Bíblia? Eu a leio por anos com uma noção cada vez mais ampla de alegria e inspiração; e eu a amo como a nenhum outro livro. Ainda há muito na Bíblia contra o qual cada instinto meu se rebela, tanto que lamento a necessidade que me impeliu a lê-la totalmente do princípio ao fim. Acho que o conhecimento que obtive de sua história e fontes não me compensa pelos desagradáveis detalhes para os quais chamou minha atenção. De minha parte desejo, com o sr. Howells, que a literatura do passado pudesse ser expurgada de tudo que contém de feio e bárbaro, embora eu objetasse tanto quanto qualquer um que essas grandes obras fossem enfraquecidas ou falseadas.

Existe algo impressionante, horrível, na simplicidade e no modo direto terrível do Livro de Ester. Poderia haver algo mais dramático do que a cena em que Ester enfrenta seu malvado senhor? Ela sabe que sua vida está nas mãos dele; não há ninguém para protegê-la de sua ira. Mesmo assim, superando seu medo feminino, ela o aborda, animada pelo mais nobre patriotismo e com apenas um pensamento: "Se eu morrer, morro; mas se viver, meu povo viverá".

A história de Rute também - como é oriental! Contudo, como é diferente a vida desse pessoal simples do campo da dos habitantes da capital persa! Rute é tão leal e amorosa que não podemos deixar de amá-la quando se mantém com os ceifadores em meio ao milho oscilante. Seu espírito belo e altruísta brilha como uma estrela luminosa na noite de uma era obscura e cruel.

Amor como o de Rute, amor que pode se erguer acima de credos conflitantes e preconceitos raciais profundamente enraizados, é dificil de achar em todo o mundo.

A Bíblia me dá a sensação profunda e reconfortante de que as "coisas visíveis são temporais e as coisas invisíveis são eternas".

Não me recordo de um tempo, desde que amo os livros, em que não tenha amado Shakespeare. Não posso dizer exatamente quando comecei Contos de Shakespeare, de Lamb, mas sei que os li a princípio com uma compreensão e um maravilhamento de criança. Macbeth é o que parece mais ter me impressionado. Uma leitura foi suficiente para imprimir cada detalhe da história em minha memória para sempre. Durante muito tempo os fantasmas e feiticeiras me perseguiram até mesmo na Terra do Sonho. Eu podia ver, realmente ver, a adaga e a pequena mão branca de lady Macbeth - a mancha medonha era tão real para mim quanto para a rainha devastada pela dor.

Li Rei Lear pouco depois de Macbeth e jamais esquecerei a sensação de terror ao chegar à cena em que os olhos de Glos ter são arrancados. Fui dominada pela raiva, meus dedos se imobilizaram e permaneci rígida por um longo momento, o sangue pulsando nas têmporas e todo o ódio que uma criança podia sentir concentrado em meu coração.

Devo ter tomado conhecimento de Shylock e Satã mais ou menos ao mesmo tempo, pois os dois personagens durante muito tempo foram associados em minha mente. Lembro-me de que lamentava por eles. Sentia vagamente que não podiam ser bons mesmo se quisessem, pois ninguém parecia pronto a ajudá-los ou dar-lhes uma boa chance. Mesmo agora, não consigo condená-los completamente em meu coração. Há momentos em que sinto que os Shylocks, os Judas e mesmo o Demônio são aros quebrados na grande roda do bem que se tornará inteira no devido tempo.

Parece estranho que minha primeira leitura de Shakespeare devesse deixar em mim lembranças tão desagradáveis. As peças luminosas, suaves e fantasiosas - as de que mais gosto - parecem não ter me impressionado no início, talvez porque refletissem a felicidade e a alegria habituais da vida de uma criança.

Mas "não há nada mais caprichoso do que a memória de uma criança: o que ficará e o que se perderá".

Desde então tenho lido as peças de Shakespeare muitas vezes e conheço porções delas de cor, mas não consigo saber quais são as de que mais gosto. Meu encantamento com elas é tão variado quanto meus estados de espírito. As pequenas canções e os sonetos têm para mim um significado tão fresco e maravilhoso quanto os dramas. Mas, com todo meu amor por Shakespeare, é com freqüência um trabalho fatigante ler todos os significados entre as linhas dados por críticos e comentaristas. Eu tentava lembrar-me das interpretações deles, mas essas me desencorajavam e irritavam; assim, fiz um acordo secreto comigo mesma de não mais tentar. Só quebrei esse acordo em meu estudo de Shakespeare com o professor Kittredge. Sei que há muitas coisas em Shakespeare e no mundo que não entendo, e fico contente de ver véu após véu levantando-se gradualmente, revelando novas esferas de idéias e beleza.

Depois da poesia, amo a história. Li todas as obras históricas nas quais consegui pôr as mãos, de um catálogo de fatos secos e datas mais secas ainda à imparcial e pitoresca History of the English people (História do povo inglês), de Green; de History of Europe (História de Europa), de Freeman, a Middle Ages (Idade Média), de Emerton. O primeiro livro que me deu uma verdadeira noção do valor da história foi World history (História Mundial), de Swinton, que ganhei em meu décimo terceiro aniversário. Embora talvez não seja mais considerado embasado, mesmo assim o guardo como um de meus tesouros. Dele aprendi que as raças dos homens se espalharam de terra a terra e construíram grandes cidades; como alguns grandes governantes, titãs terrenos, dominaram tudo e com uma palavra decisiva abriram os portões da felicidade para milhões e os fecharam para Outros milhões; como nações diferentes foram pioneiras na arte e no conhecimento e desbravaram terreno para o desenvolvimento do futuro; de que modo a civilização suportou o holocausto, como se diz, de uma época degenerada e se ergueu de novo, como a Fênix, entre os mais nobres filhos do Norte; e como, pela liberdade, tolerância e educação, os grandes e sábios abriram caminho para a salvação do mundo inteiro.

Em minhas leituras de faculdade familiarizei-me um pouco com a literatura francesa e a alemã. O alemão põe a força antes da beleza e a verdade antes da convenção, tanto na vida quanto na literatura. Há uma veemência, um vigor esmagador em tudo que ele faz. Quando fala, não é para impressionar os outros, mas porque seu coração explodiria se não achasse um escoadouro para as idéias que lhe ardem na alma.

Há também na literatura alemã uma fina reserva de que eu gosto; mas sua principal glória é o reconhecimento, que nela encontro, da potência redentora do amor auto-sacrificante da mulher. Essa idéia difunde-se em toda a literatura alemã e é misticamente expressa em Fausto, de Goethe:

All things transitory
But as symbols are sent
Earth's insufficiency
Here grows to event.
The indescribable
Here is done.
The Woman Soul lead us upward and on!

[Todas as coisas transitórias/são enviadas apenas como símbolos/A insuficiência da Terra/aqui desabrocha em evento/O indescritível/aqui é consumado/A Alma da Mulher nos eleva e nos conduz adiante. (Tradução livre N.da T)]

De todos os escritores franceses que tenho lido, Molière e Racine são os meus preferidos. Há boas coisas em Balzac e passagens de Mérimée que nos atingem como uma viva rajada de vento marinho. Alfred de Musset é insuportável! Admiro Victor Hugo - seu gênio, seu brilhantismo, seu romantismo, embora ele não seja uma de minhas paixões literárias. Mas Hugo, Goethe e Schiller e todos os grandes poetas de todas as grandes nações são intérpretes das coisas eternas, e meu espírito reverentemente penetra nas regiões onde a Beleza, a Verdade e a Bondade são uma só.

Temo ter escrito demais sobre meus amigos livros e mesmo assim mencionando apenas os autores de que mais gosto; desse fato pode-se facilmente supor que meu círculo de amigos é muito limitado e pouco democrático, o que seria uma impressão bastante errônea. Gosto de muitos escritores por razões diversas - Carlyle por sua aspereza e seu desprezo pelas imposturas; Wordsworth, por ensinar a unicidade do homem e da natureza; encontro um requintado prazer nas estranhezas e surpresas de Hood, no engenho de Herrick e no palpável perfume de lirio e rosa de seus versos; gosto de Whittier por seus entusiasmos e retidão moral. Eu o conheci e a suave lembrança de nossa amizade dobra o prazer que tenho ao ler seus poemas.

Adoro Mark Twain - quem não o adora? Os deuses também o amaram e lhe puseram no coração todo tipo de sabedoria; então, temendo que ele se tornasse um pessimista, envolveram sua alma com um arco-íris de amor e fé. Gosto de Scott por seu frescor, arrojo e ampla honestidade. Amo todos os escritores cujas mentes, como a de Lowell, borbulham ao sol do otimismo - fontes de alegria e boa vontade, com um ocasional derramar de raiva e aqui e ali um spray curativo de solidariedade e piedade.

Numa palavra, a literatura é a minha Utopia. Ali, não sou deficiente. Nenhuma barreira dos sentidos me exclui do discurso doce e gracioso de meus amigos livros. Eles me falam sem embaraço ou constrangimento. As coisas que aprendi e as que me foram ensinadas parecem ridiculamente sem importância comparadas com "os grandes amores e as caridades celestiais" dos livros.

Δ

 

CAPÍTULO XXII

Espero que meus leitores não tenham concluído do capítulo anterior sobre livros que a leitura é meu único prazer; meus prazeres e diversões são muitos e variados.

Mais de uma vez, no decorrer de minha história, referi-me a meu amor pelo campo e os esportes ao ar livre. Bem pequena ainda, aprendi a remar e a nadar, e durante o verão, quando estou em Wrentham, Massachusetts, praticamente moro num bote.

Nada me dá mais prazer do que levar meus amigos para passear num barco a remo quando me visitam. Claro que não consigo guiar o bote muito bem. Geralmente alguém senta à popa e maneja o leme enquanto eu remo. Contudo, às vezes remo sem leme.

É divertido tentar me orientar pelo cheiro das relvas aquáticas, dos lirios e dos arbustos que crescem na praia. Uso remos com alças de couro, que os mantêm em posição nas forquetas, e sei pela resistência da água quando os remos estão nivelados. Gosto de lutar com o vento e a correnteza. Nada é mais revigorante do que tornar um firme botezinho obediente à nossa vontade e músculos, deslizar levemente pelas ondulações cintilantes e inclinadas e sentir o impulso contínuo, imperioso da água!

Também gosto de passear de canoa e acho que provocarei um sorriso quando disser que gosto de fazê-lo especialmente nas noites de luar. É verdade que não posso ver a lua escalar o céu por trás dos pinheiros e navegar suavemente pelo firmamento, traçando um caminho brilhante para seguirmos, mas sei que ela está lá, e enquanto fico deitada nas almofadas e ponho minha mão na água, fantasio que sinto o bruxulear de suas vestes quando ela passa. As vezes um peixinho ousado escorrega entre meus dedos e com freqüência um lirio d'água desliza contra a minha mão. Muitas vezes, quando emergimos do abrigo de uma pequena baía ou enseada, tenho a súbita noção da amplidão à minha volta.

Um calor luminoso parece me envolver. Se ele vem das árvores que foram aquecidas pelo sol ou da água, nunca pude descobrir.

Tenho tido a mesma sensação estranha até no coração da cidade.

Sinto isso em noites e dias tempestuosos e gelados. É como o beijo de lábios quentes no meu rosto.

Minha diversão favorita é navegar. No verão de 1901 visitei Nova Escócia e tive oportunidades de conhecer o oceano. Após passar alguns dias em Evangeline's Country, que o belo poema de Longfellow envolveu numa rede de encantamento, a srta. Sullivan e eu fomos para Halifax, onde ficamos a maior parte do verão.

O porto foi a nossa alegria, nosso paraíso. Que gloriosos passeios de barco fizemos para Bedford Basin, McNabb's Island, York Redoubt e para o Northwest Arm! E, à noite, que horas tranqüilas e maravilhosas passamos à sombra dos grandes e silenciosos navios de guerra. Ah, foi tudo tão interessante e bonito! A lembrança disso é uma eterna alegria.

Certo dia tivemos uma experiência eletrizante. Havia uma regata no Northwest Arm que teve a participação de barcos dos diferentes navios de guerra. Embarcamos num barco à vela junto com muitos outros para assistir às corridas. Centenas de pequenos barcos à vela oscilavam próximos de um lado para o Outro e o mar estava calmo. Quando as corridas haviam quase terminado e nos dispúnhamos a voltar, uma pessoa do grupo notou uma nuvem negra no céu, que cresceu, se espalhou e aumentou até cobrir o céu inteiro. O vento começou a soprar e as ondas chocavam-se raivosamente contra barreiras invisíveis. Nosso pequeno barco enfrentou destemidamente a ventania; com as velas abertas e as cordas tensas, ele parecia pousar no vento. Num momento girava no turbilhão, no outro escalava subitamente uma onda gigante, para ser atirado para baixo com um assobio e um uivo zangado. A vela principal veio abaixo. Virando de bordo e bandeando, lutávamos com os ventos que sopravam impelindo-nos de um lado para outro com uma fúria impetuosa. Nosso coração batia com força, as mãos trêmulas de alvoroço, mas não de medo, pois tínhamos coração de vikings e sabíamos que nosso capitão dominava a situação. Ele enfrentara muitas tempestades com mão firme e muita perícia marítima. Ao passarem por nós, o grande navio e os barcos armados no porto nos saudaram e os marinheiros gritaram cumprimentos ao capitão do único barquinho à vela que se aventurara na tempestade. Finalmente, gelados, famintos e cansados, chegamos ao pier.

Passei o último verão num recanto adorável de um dos mais encantadores povoados da Nova Inglaterra. Wrentham, Massachusetts, está associado a quase todas as minhas alegrias e tristezas. Por muitos anos Red Farm, perto de King Philip's Pond, lar do sr. J. E. Chamberlin e sua família, foi o meu lar. Lembro-me com a maior gratidão da bondade daqueles queridos amigos e dos dias felizes passados com eles. A doce companhia de seus filhos significou muito para mim. Eu me juntava a todos os seus esportes, perambulações pelos bosques e alegres brincadeiras na água.

O tagarelar dos pequenos e seu prazer com as histórias que eu lhes contava de elfos e gnomos, heróis e ursos astuciosos são agradáveis de lembrar. O sr. Chamberlin iniciou-me nos mistérios das árvores e das flores do campo, até que, com o pequeno ouvido do amor, escutei a seiva fluir do carvalho e vi o sol cintilar de folha em folha. De modo que

Even as the roots, shut in the darksome earth,
Share in the tree-top's joyance, and conceive
Of sunshine and wide air and wingéd things,
By sympathy of nature, so do I
Give evidence of things unseen.

[Assim como as raízes, trancadas na terra escura,/partilham a alegria do cimo da árvore e imaginam/o sol brilhante, o amplo ar e os seres alados,/ por simpatia com a natureza, também o faço. (Tradução livre. N da T.)]

Parece-me que há em cada um de nós a capacidade de compreender impressões e emoções sentidas pela humanidade desde o início. Cada indivíduo tem uma memória subconsciente da terra verde e das águas murmurantes, e a cegueira e a surdez não conseguem roubar esse dom das gerações passadas. Essa capacidade herdada é uma espécie de sexto sentido - uma noção-de-alma que vê, ouve e sente, em conjunto.

Tenho muitos amigos em Wrentham. Um deles é um esplêndido carvalho, orgulho especial do meu coração. Levo todos os meus amigos para ver essa árvore-rei erguendo-se num penhasco junto ao Kíng Philip's Pond, e os que conhecem árvores dizem que ela deve estar lá há 800 ou mil anos. Uma tradição reza que sob essa árvore o rei Philip, heróico chefe indígena, contemplou pela última vez a terra e o céu.

Tive outra amiga árvore, amável e mais abordável do que o grande carvalho - uma tília que crescia no pátio perto da porta de entrada em Red Farm. Certa tarde, durante uma terrível tempestade, senti um tremendo choque contra a lateral da casa e soube, mesmo antes que me dissessem, que a tília fora derrubada. Fomos lá fora ver a heroína que agüentara tantas tempestades e meu coração se partiu ao ver totalmente prostrada quem lutara com tanto vigor.

Mas não devo me esquecer de que ia escrever sobre o último verão em especial. Assim que meus exames terminaram, a srta. Sullivan e eu fomos logo para aquele recanto verde, onde temos um pequeno chalé em um dos três lagos que fazem a fama de Wrentham. Ali os longos dias ensolarados eram meus e todos os pensamentos no trabalho, faculdade e a cidade barulhenta eram afastados para o pano de fundo. Em Wrentham recebíamos ecos do que estava acontecendo no mundo - guerra, aliança, conflito social. Soubemos da luta cruel e desnecessária no distante Pacífico e dos combates entre o capital e o trabalho. Soubemos que além da fronteira de nosso Éden, homens estavam fazendo história com o suor do rosto, quando bem poderiam estar ociosos. Mas quase não prestávamos atenção a essas coisas. Elas passariam; ali estavam lagos e bosques, amplos campos salpicados de margaridas e prados docemente perfumados - e estes durarão para sempre.

Os que pensam que todas as sensações nos chegam pelos olhos e ouvidos surpreendem-se que eu note qualquer diferença entre caminhar nas ruas da cidade e nas estradas do campo, a não ser talvez pela ausência de pavimento. Esquecem-se de que todo o meu corpo está vivo para as condições em torno de mim. O rumor e o rugido da cidade esbofeteiam meu rosto e sinto os passos incessantes de uma multidão invisível e o tumulto dissonante corrói o meu espírito. O moer de pesadas carroças nos pavimentos duros e o som monótono da maquinaria são ainda mais torturantes para os nervos se nossa atenção não é desviada para o panorama sempre presente nas ruas barulhentas, como ocorre com as pessoas que podem ver.

No campo vê-se apenas o belo trabalho da Natureza e nossa alma não se entristece com a luta cruel pela subsistência que ocorre na cidade atopetada. Por várias vezes visitei ruas estreitas e sujas onde moram os pobres, e fiquei irritada e indignada ao pensar que boas pessoas vivem contentes em bonitas casas e se tornam fortes e belas, enquanto outras estão condenadas a viver em alojamentos medonhos e sombrios e a se tornar feias, encolhidas e servis. As crianças que povoam esses becos melancólicos, maltrapilhas e desnutridas, afastam-se de sua mão estendida como de um golpe. Essas queridas criaturinhas se encolhem no meu coração e me assombram com uma sensação constante de dor. Há homens e mulheres também, todos tortos e disformes. Tenho tocado em suas mãos duras e ásperas e percebi que sua existência será uma luta interminável - não mais do que uma série de barulhentas e confusas disputas, tentativas frustradas de fazer algo. A vida deles parece uma imensa disparidade entre esforço e oportunidade. O sol e o ar são presentes gratuitos de Deus para todos, dizemos; mas serão mesmo? Nas aléias sórdidas da cidade distante o sol não brilha e o ar é ruim. Ah, homem, como esqueces e prejudicas teu irmão humano enquanto dizes: "Dai-nos o pão nosso de cada dia", quando teu irmão não tem nenhum! Ah, se esses homens deixassem as cidades, seu esplendor, tumulto e ouro e voltassem ao bosque, ao campo e ávida honesta e simples! Então seus filhos cresceriam majestosos, como nobres árvores, e seus pensamentos seriam doces e puros como flores à beira do caminho. É impossível não pensar nisso tudo quando volto para o campo depois de um ano de trabalho na cidade.

Que alegria é sentir a terra macia e primaveril sob meus pés mais uma vez, seguir as estradas relvadas que levam aos riachos cheios de samambaias onde posso banhar meus dedos numa catarata de notas em movimento, ou escalar um muro de pedra até os campos verdes que tropeçam e rolam e sobem em amotinada alegria!

Além de uma caminhada sem pressa, gosto de dar um "giro" na minha bicicleta para dois. É esplêndido sentir o vento soprando no rosto e o movimento flexível de meu corcel de ferro. A corrida rápida pelo ar me dá uma deliciosa sensação de força e flutuação e o exercício faz minha pulsação dançar e meu coração cantar.

Sempre que possível, meu cachorro me acompanha numa caminhada ou num passeio a cavalo ou velejando. Tenho tido muitos amigos cachorros - mastins enormes, spaniels de olhos doces, setters espertos conhecedores dos bosques e bull terriers honestos e domésticos.
 

Helen e o cão Phiz em 1902
Helen e o cão Phiz. Fotografia de 1902

No presente, meu preferido é um dos bull terriers. Ele tem um extenso pedigree, um rabo torto e a "fisionomia" mais engraçada do reino dos cães. Meus amigos cachorros parecem entender minhas limitações e sempre ficam bem perto de mim quando estou sozinha.

Amo o jeito afeiçoado e eloqüente com que abanam a cauda.

Quando um dia chuvoso me prende em casa, divirto-me ao jeito das outras moças. Gosto de tricotar e fazer crochê; leio do modo que adoro, ao acaso, uma linha aqui outra ali; ou talvez jogue uma ou duas partidas de damas ou xadrez com uma amiga.

Tenho um tabuleiro especial em que jogo. Os quadrados são escavados, de modo que as peças se ajustam firmemente. As damas pretas do jogo são achatadas e as brancas são curvas no alto. Cada dama tem um furo no meio em que se pode colocar uma bolinha de metal para distinguir o rei das peças comuns. As peças de xadrez são de dois tamanhos, as brancas mais largas que as pretas, para que eu não tenha dificuldade em seguir as manobras de meu oponente, movendo as mãos levemente sobre o tabuleiro depois de cada jogada. A vibração feita pela mudança das peças de um buraco para outro me diz quando é a minha vez.

Se por acaso estou sozinha e num estado de espírito preguiçoso, jogo uma partida de paciência, de que gosto muito. Costumo usar cartas marcadas no canto superior direito com simbolos braile que indicam seu valor.

Se há crianças por perto, nada me agrada tanto quanto brincar animadamente com elas. Acho até mesmo a criança menorzinha uma companhia excelente e fico contente de dizer que geralmente gostam de mim. Elas me levam por aí e me mostram as coisas em que estão interessadas. É claro que os pequenos não sabem soletrar com seus dedos, mas consigo ler seus lábios. Se não consigo, eles recorrem à mímica. Às vezes cometo um equívoco e faço a coisa errada. Um jorro de risos infantis saúda meu fracasso e a pantomima começa novamente.

Geralmente conto-lhes histórias ou lhes ensino um jogo e as horas fugazes vão embora e nos deixam muito bem e felizes.

Museus e coleções de arte são também fontes de prazer e inspiração para mim. Sem dúvida parecerá estranho a muitos que a mão, sem a ajuda da visão, possa sentir ação, sentimento e beleza no mármore frio; mesmo assim é verdade que retiro um genuíno prazer ao tocar as grandes obras de arte. Enquanto as pontas de meus dedos traçam linhas e curvas, descobrem no rosto de deuses e heróis ódio, coragem e amor, exatamente como posso detectá-los em rostos vivos que tenho permissão de tocar. Sinto na postura de Diana a graça e a liberdade da floresta, o espírito que domestica o leão da montanha e submete as paixões mais ferozes.

Minha alma se encanta com a imobilidade e as curvas graciosas da Vênus; e nos bronzes de Barré os segredos da selva me são revelados.

Um medalhão de Homero está pendurado na parede de meu escritório, num ponto convenientemente baixo para que eu possa alcançá-lo com facilidade e tocar o belo rosto triste com reverência amorosa. Como conheço bem cada linha daquela fronte majestosa - trilhas de vida e evidências amargas de luta e pesares; aqueles olhos sem visão buscando, mesmo no gesso frio, a luz e os céus azuis de sua bem-amada Hélade, mas buscando em vão; aquela bonita boca, firme, verdadeira e terna. É o rosto de um poeta e um homem que conhece a tristeza. Ah, como entendo bem sua privação - a noite perpétua na qual ele habitava

O dark, dark, amid the blaze of noon,
Irrecoverably dark, total eclipse
Without all hope of day!

[Ó trevas, trevas, trevas no ofuscante meio-dia,/Irrecuperáveis trevas, eclipse total/sem qualquer esperança de luz! (Tradução livre. N da T)]

Na imaginação posso ouvir Homero cantando enquanto tateia seu caminho com passos pouco firmes e hesitantes, de acampamento em acampamento - cantando a vida, o amor, a guerra, as realizações esplêndidas de uma nobre raça. Foi uma canção maravilhosa, gloriosa, que conquistou para o poeta cego uma coroa imortal e a admiração de todas as épocas.

Às vezes cogito se a mão não é mais sensível às belezas da escultura do que o olho. Penso que o fluir maravilhosamente rítmico das linhas e curvas poderiam ser sentidas mais sutilmente do que vistas. Seja como for, sei que posso sentir o latejar do coração dos antigos gregos em seus deuses e deusas de mármore.

Outro prazer, que ocorre mais raramente, é ir ao teatro. Gosto muito mais de ter uma peça descrita para mim enquanto está sendo representada no palco do que lê-la, porque no primeiro caso parece que estou vivendo em meio aos emocionantes acontecimentos. Tenho tido o privilégio de conhecer alguns grandes atores e atrizes com tal poder de enfeitiçar o espectador que este esquece o tempo e o lugar e vive novamente no passado romântico. Foi-me permitido tocar o rosto e os trajes da srta. Eilen Terry 23, quando ela representava nosso ideal de rainha; e havia nela aquela divindade que envolve a dor mais sublime. A seu lado estava sir Henry Irving, 24 usando os símbolos de cavaleiro; e havia majestade e intelecto em cada um dos gestos dele, e a atitude e a realeza que sobrepujam e dominam cada linha de seu rosto sensível. No rosto do rei, que ele usava como uma máscara, havia um distanciamento e intangibilidade da dor que jamais esquecerei.

Conheço também o sr. Jefferson 25 e sinto orgulho em contar isso entre meus amigos. Vou vê-lo sempre quando acontece de eu estar onde ele está representando. A primeira vez que o vi atuar foi quando estava na escola em Nova York. Ele representava Rip Van Winkie. Eu lera aquela história repetidamente, mas nunca sentira o encanto com o jeito lento, elaborado e amável de Rip como senti na peça. A representação bela e patética me transportou de encantamento. Tenho um retrato do velho Rip em meus dedos que estes jamais esquecerão. Após a peça, a srta. Sullivan levou-me para vê-lo nos bastidores e apalpei seu traje curioso e seu cabelo e barba flutuantes. O sr. Jefferson me deixou tocar-lhe o rosto de tal modo que eu podia imaginar como era sua aparência ao despertar do estranho sono de 20 anos, e ele me mostrou como o pobre e velho Rip oscilava nos pés.
 

Helen Keller, Anne Sullivan and Joseph Jefferson-1902
Helen Keller, Anne Sullivan and Joseph Jefferson em 1902

Vi-o também em The rivals. Certa vez, quando o visitava em Boston, ele interpretou as partes mais surpreendentes de The rivals para mim. A sala de recepção onde ficamos serviu como palco.

Ele e seu filho sentaram-se à grande mesa e Bob Acres escreveu seu desafio. Eu seguia todos os seus movimentos com as minhas mãos e captei seus descuidados equívocos e gestos de um modo que teria sido impossível se fossem soletrados para mim. Então eles se levantaram para fazer um duelo e eu segui as rápidas acometidas e defesas das espadas e as hesitações do pobre Bob enquanto a coragem se desvanecia por seus dedos. Então o grande ator deu um puxão no casaco e fez um esgar, e num instante vi-me no povoado de Falhng Water sentindo a cabeça peluda de Schneider em meus joelhos. O sr. Jefferson declamou seus melhores diálogos de Rip Van Winkie em que as lágrimas estavam próximas dos sorrisos. Ele me pediu para indicar, tanto quanto pudesse, os gestos e ação que deviam combinar com as falas. Claro que eu não tenho nenhuma noção de arte dramática, e só podia dar palpites ao acaso; mas com arte de mestre ele combinou a ação com a palavra. O suspiro de Rip quando ele murmura: "Um homem é então esquecido com tanta rapidez quando desaparece?", o desalento com que procura seu cachorro e sua arma depois do longo sono, e sua cômica indecisão de assinar o contrato com Derrick — tudo isso parece retirado diretamente da vida; isto é, da vida ideal, onde as coisas acontecem como achamos que deveriam acontecer.

Lembro-me bem da primeira vez que fui ao teatro, há 12 anos. Elsie Leslie, 26 a pequena atriz, estava em Boston e a srta. Sullivan me levou para vê-la em O príncipe e o mendigo. Nunca esquecerei as ondulações de alegria e tristeza alternadas que percorriam a pequena e bela peça ou a criança maravilhosa que atuava nela. Depois da apresentação me permitiram ir aos bastidores e conhecê-la com suas roupas majestosas. Seria difícil encontrar uma criança mais adorável e afetuosa que Elsie, em sua nuvem de cabelos dourados flutuando nos ombros, sorrindo luminosamente, sem mostrar nenhum sinal de timidez ou fadiga, embora tivesse acabado de representar para um público imenso. Eu acabara de aprender a falar e repetira previamente o seu nome até poder dizê-lo com perfeição. Imaginem meu êxtase quando ela entendeu as poucas palavras que pronunciei e sem hesitar estendeu a mão para cumprimentar-me.

Não é verdade então que minha vida, com todas as suas limitações, toca muitos pontos da vida do Belo Mundo? Tudo tem suas maravilhas, mesmo a escuridão e o silêncio, e por isso aprendo a ficar contente, seja qual for o estado em que possa estar.

É verdade que às vezes me sinto envolvida por uma sensação de isolamento, como um nevoeiro gélido, quando me sento sozinha e espero ante o portão fechado da vida. Além dele há luz, música e doce companhia; mas eu não posso entrar. O destino, cruel e silencioso, barra o caminho. De boa vontade eu questionaria seu decreto imperioso, pois meu coração ainda é indisciplinado e apaixonado; mas minha lingua não emitirá as palavras amargas e fúteis que sobem aos meus lábios e recuam de novo para o coração como lágrimas não derramadas. O silêncio cai imenso sobre minha alma. Então, chega a esperança com um sorriso e sussurra: "Há alegria no esquecimento de si mesmo". Assim, tento fazer da luz nos olhos de outros o meu sol, a música nos ouvidos de outros minha sinfonia, o sorriso nos lábios de outros minha felicidade.

Δ

 

CAPÍTULO XXIII

Pudesse eu enriquecer este esboço com os nomes de todos os que se empenharam na minha felicidade! Alguns seriam encontrados em nossa literatura e caros aos corações de muitos, enquanto Outros seriam inteiramente desconhecidos à maioria dos leitores. A influência deles, no entanto, embora escape à fama, viverá para sempre nas vidas que essa influência suavizou e enobreceu.

Os dias em que conhecemos pessoas que nos eletrizam com um belo poema são marcados com letras vermelhas em nossa vida, gente cujo aperto de mão está cheio de silenciosa solidariedade e cuja natureza doce e rica cobre nosso espírito ansioso, impaciente, com uma paz maravilhosa e, em sua essência, divina. As perplexidades, irritações e preocupações que nos absorveram passam como sonhos desagradáveis, e acordamos para ver com novos olhos e ouvir com novos ouvidos a beleza e a harmonia do verdadeiro mundo de Deus. Os nadas solenes que enchem nossa vida cotidiana florescem subitamente em luminosas possibilidades. Numa palavra, enquanto tais amigos estão perto de nós sentimos que está tudo bem. Talvez nunca os tenhamos visto antes e pode ser que jamais cruzem nosso caminho de novo; mas a influência de suas naturezas calmas e suaves é uma libação derramada em nosso descontentamento e sentimos seu toque curativo como o oceano sente o regato da montanha refrescando sua água salgada.

Perguntam-me com freqüência: "As pessoas não a aborrecem?". Não entendo bem o que isso significa. Acho que as visitas dos tolos e curiosos, especialmente de repórteres de jornal, são sempre inoportunas. Também não gosto de pessoas que tentam falar comigo mais alto, de um modo paternalista, para que eu possa entender. São como pessoas que, quando caminham com você, tentam dar passos mais curtos para combinar com os seus; a hipocrisia nos dois casos é igualmente exasperante.

As mãos daqueles que encontro são silenciosamente eloqüentes para mim. O toque de algumas mãos é uma impertinência.

Tenho encontrado gente tão despida de alegria, que quando seguro as pontas de seus dedos congelados é como se estivesse apertando as mãos de uma gélida tempestade. Há outros cujas mãos têm raios de sol e cujo aperto aquece meu coração. Pode ser apenas o toque agarrado da mão de uma criança, mas há uma tal felicidade em potencial nele como há num olhar amoroso para outros. Um aperto de mão vigoroso ou uma carta amiga me dá um genuíno prazer.

Tenho muitos amigos distantes os quais jamais vi. Na verdade são tantos que não tenho conseguido responder a suas cartas; mas quero dizer aqui que sou sempre grata por suas palavras bondosas, por mais insuficientemente que as agradeça.

Um dos mais doces privilégios da minha vida é ter conhecido e conversado com muitos homens de talento. Só aqueles que conheceram o bispo Brooks 27 podem avaliar a alegria que foi sua amizade para os que a possuíram. Quando criança, eu adorava sentar em seu colo e segurar sua grande mão com uma das minhas, enquanto a Srta. Sullivan me ia soletrando as palavras dele sobre Deus e o mundo espiritual. Eu o ouvia com um maravilhamento e prazer infantis. Meu espírito podia não alcançar o seu, mas ele me deu uma noção real da alegria na vida, e nunca o deixei sem transportar comigo pensamentos que cresciam em beleza e profundidade à medida que também eu crescia. Certa vez, quando eu estava intrigada em saber por que havia tantas religiões, ele disse: "Há uma religião universal, Helen - a religião do amor. Ame seu Pai do Céu com todo seu coração e alma, ame cada filho de Deus tanto quanto puder, e lembre-se de que as possibilidades do bem são maiores do que as do mal; e você terá a chave do Céu." E a vida dele foi uma feliz ilustração dessa grande verdade. Em sua nobre alma o amor e o mais amplo conhecimento estavam misturados à fé que se tornara insight.

Ele via

God in all that liberates and lifts,
In all that humbles, sweetens and consoles. 28

[Deus em tudo que libera e faz ascender,/em tudo que torna humilde, suaviza e consola. (Tradução livre. N da T)]

O bispo Brooks não me ensinou nenhum credo ou dogma especial; mas marcou minha mente com duas grandes idéias - a paternidade de Deus e a irmandade do homem -, e me fez sentir que tais verdades sub jazem todos os credos e formas de culto. Deus é amor, Deus é nosso Pai, somos Seus filhos; por isso as nuvens mais escuras se romperão e, embora o certo possa ser distorcido, o errado não triunfará.

Estou demasiado feliz nesse mundo para pensar muito sobre o futuro, a não ser quando lembro que tenho amigos queridos esperando por mim em algum lugar na beleza de Deus. Apesar do lapso de anos, meus amigos parecem tão perto de mim que eu não acharia estranho se a qualquer momento enlaçassem minha mão e pronunciassem palavras carinhosas como faziam antes de partir.

Desde a época em que o bispo Brooks morreu, já li toda a Bíblia e também algumas obras filosóficas sobre religião, entre elas Heaven and hell (Céu e inferno), de Swedenborg 29 e Ascent of man (Ascensão de um homem), de Drummond, 30 e nunca encontrei nenhum credo ou sistema que satisfaça mais a alma do que o credo de amor do bispo Brooks. Eu conheci o sr. Henry Drummond e a lembrança de seu forte aperto de mão é como uma bênção. Ele era o mais solidário dos companheiros. Sabia tanto e era tão afável que tornava impossível que alguém se sentisse tolo em sua presença.

Lembro-me bem da primeira vez que vi dr. Oliver Wendell Holmes.31 Ele convidara a srta. Sullivan e eu para visitá-lo numa tarde de domingo. Era início da primavera, pouco depois que eu aprendera a falar. Fomos levados logo para sua biblioteca, onde o encontramos sentado numa grande poltrona junto à lareira que incandescia e estalava, pensando, disse ele, em dias passados.

- E escutando o murmúrio do rio Charles - sugeri.

- Sim - respondeu. - O Charles tem muitas associações queridas para mim.

Havia um odor de palavras impressas e couro na sala informando-me que ali havia muitos livros, e instintivamente estiquei a mão para tocá-los. Meus dedos pousaram sobre um belo volume dos poemas de Tennyson, e quando a srta. Sullivan me disse o que era, comecei a recitar:

Break, break, break
On thy cold gray stones, O sea! 32

[Bate, bate, bate/contra tuas frias pedras cinzas, Ó mar! (Tradução livre. N da T)]

Mas parei subitamente. Senti lágrimas em minha mão. Eu fizera meu amado poeta chorar e fiquei muito desalentada. Ele me fez sentar em sua poltrona enquanto trazia diversas coisas interessantes para que eu as examinasse, e a seu pedido recitei The chambered nautilus, que era então meu poema favorito. Depois disso vi o dr. Holmes muitas vezes e aprendi a amar tanto o homem quanto o poeta.

Num belo dia de verão, não muito tempo depois de meu encontro com o dr. Holmes, srta. Sullivan e eu visitamos Whittier 33 em sua tranqüila casa no Merrimac. Sua gentil cortesia e fala elegante conquistaram meu coração. Ele tinha um volume de seus poemas impresso em relevo e dele li In school days (Na época da escola). Ele ficou encantado que eu pudesse pronunciar as palavras tão bem e disse que não tinha nenhuma dificuldade em me entender. Então fiz muitas perguntas sobre o poema e li suas respostas colocando meus dedos em seus lábios. Ele disse que era o garotinho no poema e que o nome da garota era Sally e outras coisas que esqueci. Também recitei Laus Deo e, enquanto eu dizia os versos finais, ele colocou minha mão na estátua de um escravo de cuja figura agachada as correntes caem, da mesma forma que dos membros de Pedro quando o anjo o conduz para fora da prisão. Depois fomos para seu escritório e ele escreveu uma dedicatória para minha professora:

"Com grande admiração por seu nobre trabalho em liberar da servidão a mente de sua querida aluna, o amigo leal John G. Whittier."

manifestando admiração pelo trabalho dela e dizendo-me: - Ela é sua libertadora espiritual.

Então, ele me levou ao portão e beijou-me ternamente a testa. Prometi visitá-lo de novo no verão seguinte, mas ele morreu antes de a promessa ser cumprida.

Dr. Edward Everett Hale 34 é um de meus amigos mais antigos.
 

Keller, Sullivan e Edward Everett Hale-1902
Helen Keller, Anne Sullivan e Edward Everett Hale em 1902

Eu o conheço desde meus oito anos, e minha estima por ele tem aumentado com os anos. Sua inteligência e terna simpatia têm sido meu apoio e o da srta. Sullivan em épocas de provação e tristeza, e sua mão forte nos ajudou a atravessar muitos lugares difíceis; e o que fez para nós também tem feito para milhares daqueles com obrigações árduas a cumprir. Ele preencheu as velhas peles do dogma com o vinho novo do amor, mostrando aos homens aquilo em que se deve acreditar, pelo que se deve viver e ser livre, O que ele nos tem ensinado vimos lindamente expresso em sua própria vida - amor pelo país, bondade para com seus irmãos menos importantes e um desejo sincero de viver em ascensão e progresso espiritual. Ele tem sido um profeta e um inspirador para os homens, e um vigoroso agente da Palavra, amigo de toda a sua raça - Deus o abençoe!

Já escrevi sobre meu primeiro encontro com o dr. Alexander Graham Bell. Desde então tenho passado muitos dias felizes com ele em Washington e em sua bela casa no coração de Cape Breton Island, perto de Baddeck, o povoado tornado famoso pelo livro de Charles Dudley Warner. 35 No laboratório do dr. Bell ou nos campos na costa do grande Bras d'Or passei muitas horas deliciosas ouvindo-o sobre suas experiências e ajudando-o a empinar pipas através das quais ele espera descobrir as leis que governarão o futuro navio aéreo. Dr. Bell destaca-se em muitos campos da ciência e tem a arte de tornar interessantes todos os objetos que toca, mesmo as teorias mais difíceis de se compreender.

Ele nos faz sentir que, se tivéssemos um pouquinho mais de tempo, também poderíamos ser inventores. Tem um lado humorístico e poético, também. Ele é apaixonado por crianças.

Nunca está tão feliz como quando tem uma criancinha surda nos braços. Seus esforços em benefício dos surdos continuarão vivendo e abençoarão gerações ainda por nascer; e nós o amamos tanto pelo que ele próprio realizou quanto pelo que tem despertado nos outros.

Durante os dois anos que passei em Nova York tive muitas oportunidades de conversar com pessoas ilustres cujos nomes eu ouvira com freqüência, mas que jamais esperara conhecer. A maioria delas encontrei pela primeira vez na casa de meu bom amigo, sr. Laurence Hutton. 36 Foi um grande privilégio visitá-lo e à querida sra. Hutton em seu adorável lar, ver a biblioteca deles e ler as belas emoções e os pensamentos brilhantes que amigos talentosos escreveram para eles. Tem sido dito, com razão, que o sr. Hutton tem a faculdade de extrair os melhores pensamentos e os sentimentos mais bondosos de cada um. Não é preciso ler A boy I knew (O menino que conheço) para entendê-lo - o rapaz mais generoso e doce que já conheci; um bom amigo em todas as épocas, que traça as pegadas do amor na vida dos cães assim como na de seus companheiros homens.

A sra. Hutton é uma amiga verdadeira e leal. Muito do que considero mais caro e mais precioso devo a ela, que com freqüência me aconselhou e ajudou em meu progresso na faculdade.

Quando acho meu trabalho especialmente dificil e desencorajador, ela me escreve cartas que me deixam contente e corajosa, pois é alguém de quem aprendemos que um dever penoso executado torna o seguinte mais fácil e comum.

O sr. Hutton me apresentou a muitos de seus amigos literatos, como William Dean Howells e Mark Twain, os maiores de todos. Também conheci Richard Watson Gilder e os srs. Edmund Clarence Stedman, assim como Charles Dudley Warner, o contador de histórias mais delicioso e o mais adorado amigo, cuja simpatia era tão ampla que se pode dizer dele com sinceridade que amava todas as coisas vivas e seu vizinho como a si mesmo. Certa vez o sr. Warner trouxe para me visitar o querido poeta dos bosques - John Burroughs. Todos eles foram gentis e simpáticos e percebi o encanto de suas maneiras como havia percebido o brilho de seus ensaios e poemas. Eu não conseguia acompanhar todas essas figuras literárias enquanto pulavam rapidamente de um assunto para outro e entravam em discussões profundas, ou faziam a conversa cintilar de epigramas e frases espirituosas. Era como o pequeno Ascanius, que acompanha com passos desiguais as grandes passadas heróicas de Enéias em direção a destinos poderosos. Mas eles me diziam muitas palavras bondosas. O sr. Gilder me contou sobre as jornadas que fizera ao luar através do vasto deserto até as Pirâmides, e numa carta ele me escreveu que fizera sua marca sob a assinatura bem fundo no papel para que eu pudesse senti-la. Isso me lembra que o dr. Hale costumava dar um toque pessoal a suas cartas para mim perfurando sua assinatura em braile. Li dos lábios de Mark Twain uma ou duas de suas ótimas histórias. Ele tem seu próprio jeito de pensar, dizer e fazer tudo. Sinto o cintilar de seus olhos em seu aperto de mão.
 

Helen Keller e Mark Twain-1902
Helen Keller e Mark Twain - foto de 1902

Mesmo enquanto ele expressa sua sabedoria cínica numa voz indescritivelmente arrastada, faz-nos sentir que seu coração é uma Ilíada terna de solidariedade humana.

Há uma multidão de outras pessoas interessantes que conheci em Nova York: a sra. Mary Mapes Dodge, 37 a adorada editora da St. Nicholas, e a sra. Riggs (Kate Douglas Wiggin), a doce autora de Patsy. Recebi delas presentes repletos de afeto, livros com muita imaginação, cartas iluminadas de alma e fotos que adoro que me sejam descritas repetidamente. Mas não tenho espaço para mencionar todos os meus amigos, e na verdade há coisas sobre eles escondidas por trás das asas de querubim, coisas sagradas demais para serem expostas em fria matéria impressa. É com hesitação que sequer cheguei a falar da sra. Laurence Hutton.

Mencionarei apenas dois outros amigos. Um deles é a sra. William Thaw, 38 cuja casa, em Lyndhurst, tenho visitado com freqüência. Ela está sempre fazendo algo pela felicidade de alguém e sua generosidade e sábios conselhos nunca faltaram à minha professora e a mim em todos os anos que a temos conhecido.

Com um outro amigo tenho uma dívida profunda. Ele é bem conhecido pela mão poderosa com que guia vastos empreendimentos e sua maravilhosa capacidade lhe conquistou o respeito de todos. Amável com cada um, ele vai por aí fazendo o bem de um modo silencioso e invisível. Mais uma vez toquei no círculo de nomes honrados que não devo mencionar; mas ficaria contente de agradecer sua generosidade e o afetuoso interesse que possibilita meus estudos na faculdade. 39 Portanto, meus amigos vêm construindo a história da minha vida. De mil maneiras, eles têm transformado minhas limitações em belos privilégios e me capacitado a caminhar serena e feliz à sombra lançada pela minha privação.

FIM    

Δ
 


 

PARTE II

UM RELATO SUPLEMENTAR SOBRE A VIDA E A EDUCAÇÃO DE HELEN KELLER


CAPÍTULO 1

ESCREVENDO O LIVRO

É apropriado que A história da minha vida da srta. Keller apareça neste momento. O mais notável de sua carreira já foi concretizado e o que quer que ela realize no futuro será comparativamente um leve adendo ao sucesso que a distingue agora. Tal sucesso acaba de ser assegurado, pois é seu trabalho em Radcliffe nos últimos dois anos que mostrou que ela pode levar sua educação tão longe como se estudasse em condições normais. Fossem quais fossem as dúvidas que a própria srta. Keller possa ter tido, não existem mais agora.

Vários trechos de sua autobiografia, tal como apareceram em episódios, foram assunto de um sério editorial num jornal de Boston no qual o redator lamentava a aparente desilusão da srta. Keller quanto ao valor de sua experiência na faculdade. Citava passagens em que ela explica não ser a faculdade a "Atenas universal" que esperara encontrar e citou os casos de outras pessoas notáveis cuja vida de faculdade se mostrara decepcionante. Mas devemos lembrar que a srta. Keller escreveu muitas coisas em sua autobiografia por ser divertido escrevê-las, e a desilusão encarada tão seriamente pelo redator do editorial é em grande parte humor. A srta. Keller não considera serem suas opiniões de grande importância, e quando as emite sobre questões relevantes presume que o leitor as receberá como o parecer de uma segundanista de faculdade e não de quem escreve com a sabedoria da maturidade.

Por exemplo, surpreendeu-a que alguns ficassem irritados com o que ela disse sobre a Bíblia; ela se divertiu com o fato de que não vissem, embora fosse bastante evidente, que fora obrigada a ler a Bíblia inteira num curso de literatura inglesa, e não como um dever religioso determinado pela professora ou por seus pais.

Devo me desculpar com o leitor e com a srta. Keller por presumir esclarecer o que ela pretende dizer, porém outra explicação é necessária. No relato sobre sua educação inicial, a srta.

Keller não está dando um registro cientificamente preciso de sua vida nem dos acontecimentos importantes. Ela não pode saber com detalhes como foi ensinada e sua lembrança da infância em certos casos é uma recordação idealizada do que soube depois por parte de sua professora e de outros. Ela é menos capaz de lembrar-se de eventos de 15 anos atrás do que a maioria de nós de relembrarmos a infância, razão pela qual os registros da srta. Sullivan podem diferir em alguns detalhes do relato da srta. Keller.

O modo como a srta. Keller escreveu sua história mostra, como nada mais poderia fazê-lo, as dificuldades que precisou superar. Quando escrevemos, podemos voltar em nosso trabalho, folhear as páginas, interpolar, rearrumar, ver como os parágrafos se mostram nas provas e então construir todo o trabalho visualmente, como um arquiteto constrói seus projetos. Quando a srta. Keller coloca seu trabalho na forma datilografada, não pode voltar a ele, a não ser se este for lido para ela através do alfabeto manual.

Tal dificuldade é minorada, em parte, pelo uso de sua máquina braile, que fabrica um manuscrito que ela pode ler; mas como seu trabalho precisa ser transposto para a forma datilografada final, e como uma máquina braile é algo incômodo, a srta. Keller passou a ter o hábito de escrever diretamente na máquina de datilografia. Ela depende tão pouco do manuscrito braile que, quando começou a escrever sua história, há mais de um ano, e colocou em braile cem páginas do material, além das notas, cometeu o erro de destruir essas notas antes de haver terminado o manuscrito. Assim, ela compôs boa parte de sua história datilografando e construindo-a como um todo apoiada na memória para guiá-la na junção dos episódios separados, que a srta. Sullivan lia para ela.

Em julho passado, ao terminar o capítulo final sob grande pressão de trabalho, ela se pôs a reescrever toda a história. Seu bom amigo, sr. William Wade, mandou fazer para ela uma cópia completa em braile das provas da revista. Então, pela primeira vez, a srta. Keller teve o manuscrito inteiro nas mãos, viu as imperfeições na arrumação dos parágrafos e a repetição de frases. Viu também que sua história ajustava-se adequadamente a capítulos curtos, e tornou a arrumá-la.

Em parte por temperamento e em parte pelas condições de seu trabalho, o que ela escreveu foi mais uma série de trechos brilhantes do que uma narrativa unificada; na verdade, vários parágrafos de sua história são ensaios curtos escritos em seus cursos de inglês, e a pequena unidade mostra seus limites iniciais.

Ao reescrever a história, a srta. Keller fez correções em páginas separadas em sua máquina braile. Datilografou correções longas com chamadas para indicar o lugar a que pertenciam tais correções. Depois leu em sua cópia em braile a história inteira, corrigindo-a enquanto lia, correções essas escritas no manuscrito que ia para a gráfica. Durante essa revisão, a srta. Keller discutiu questões de tema e fraseado. Ela corria o dedo sobre o manuscrito em braile, parando de vez em quando para consultar as notas em braile em que indicara as correções, o tempo todo lendo alto para confirmar o manuscrito.

Ela ouviu críticas como qualquer autor ouve de seus amigos ou de seu editor. A srta. Sullivan, que é uma excelente crítica, fez sugestões em muitos pontos no decorrer da redação e revisão do texto. Um jornal sugeriu que a srta. Keller fora levada a escrever o livro por amigos zelosos, assim como influenciada por eles a inserir no livro determinadas coisas. Na verdade, a maior parte dos conselhos que ela recebeu e aceitou provocou mais expurgos que adições ao texto. O livro é da srta. Keller, e é a prova final de sua autonomia.

Δ

 

CAPÍTULO II

PERSONALIDADE

Mark Twain disse que os dois personagens mais interessantes do século XIX são Napoleão e Helen Keller. A admiração com que o mundo a vem considerando é mais do que justificada pelo que ela tem feito. Ninguém pode dizer qualquer grande verdade sobre a srta. Keller que já não tenha sido escrita, e o que posso fazer é somente apresentar mais alguns fatos sobre o seu trabalho, adicionando um pouco ao que já é conhecido de sua personalidade.

A srta. Keller é-alta, de compleição forte, e tem tido sempre boa saúde. Parece ser mais nervosa do que é de fato, pois gesticula mais do que a maioria das pessoas que se expressam em inglês. Um motivo para o hábito de gesticular é que suas mãos têm sido por muito tempo seus instrumentos de comunicação, assumindo para si os rápidos movimentos dos olhos e expressando algumas coisas que dizemos num relance. Todos os surdos naturalmente gesticulam.

Na verdade, numa determinada época, acreditou-se que o melhor modo de se comunicarem era através de gestos sistematizados: a linguagem de sinais inventada pelo Abbé de l'Épée.

Quando a srta. Keller fala, seu rosto se anima e expressa todos os matizes de seu pensamento as expressões que tornam os traços eloqüentes e imprimem à fala a metade de seu significado.

Por outro lado, ela não conhece a expressão do outro. No entanto, quando conversa com um amigo íntimo, sua mão vai rapidamente para o rosto dele para ver, como ela diz, sua "torção da boca". Desse modo a srta. Keller pode perceber o significado daquelas meias-frases que completamos inconscientemente com o tom da voz ou com uma piscadela de olho.

Sua recordação das pessoas é notável. Ela lembra o toque da mão que apertou antes e todas as características dos músculos que tornam o aperto de mão de uma pessoa diferente do de outra.

Talvez o traço mais característico da srta. Keller (e também da srta. Sullivan) seja o humor. A perícia no uso das palavras e o hábito de brincar com elas faz com que a srta. Keller seja rápida com expressões espirituosas e epigramas.

Alguém lhe perguntou se ela gostava de estudar.

- Sim - respondeu -, mas gosto de brincar também e sinto às vezes como se houvesse uma caixinha de música com toda uma ária fechada dentro de mim.

Quando ela conheceu o dr. Furness, o estudioso de Shakespeare, ele a avisou para não deixar os professores da faculdade lhe contarem muitos fatos imaginados sobre a vida de Shakespeare; "tudo que sabemos sobre Shakespeare", disse ele, "é que foi batizado, casou e morreu." - Bem-replicou ela-, ele parece ter feito as coisas essenciais.

Certa vez um amigo que estava aprendendo o alfabeto manual continuava fazendo o "g" - que se expressa como o dedo indicativo da mão apontando a direção numa placa - como se fosse um "h", que é feito com dois dedos estendidos. Finalmente, a srta. Keller disse-lhe que "disparasse com os dois canos."

O sr.JosephJefferson certa vez explicava a srta. Keller o que as saliências na cabeça dela significavam.

- Essa - disse ele - é a saliência de lutadora de boxe.

- Eu nunca luto - replicou ela -, a não ser contra as dificuldades.

O humor da srta. Keller é daquele tipo mais profundo, que significa coragem.

Há 13 anos ela resolveu aprender a falar, não dando descanso à sua professora até que lhe fosse permitido receber aulas, mesmo que pessoas sensatas, até a srta. Sullivan, a mais sensata de todas, encarasse aquilo como uma experiência com poucas chances de êxito e com toda a probabilidade de deixar a srta. Keller infeliz.

Foi essa mesma perseverança que a fez ir para a faculdade.

Depois de passar nos exames e receber seu certificado de admissão, ela foi aconselhada pelo deão de Radcliffe e outros a não entrar para a faculdade. Por causa disso, ela esperou um ano. Mas só ficou satisfeita ao insistir em seu objetivo e entrar para a faculdade.

Sua vida vem sendo uma série de tentativas de fazer tudo o que as outras pessoas fazem, e fazê-lo bem. Seu sucesso tem sido completo, pois ao tentar ser como os outros ela se transformou mais completamente em si mesma. Sua relutância em ser derrotada desenvolveu-lhe a coragem. Aonde o outro pode ir, ela também pode. Seu respeito pela bravura física é como o de Stevenson - o desprezo do garoto pelo companheiro que chora, com um toque de bravata juvenil. Ela faz cansativas jornadas pelo bosque, mergulhando no matagal, onde é arranhada e machucada; contudo não se pode fazê-la admitir que está machucada e certamente não se pode convencê-la a ficar em casa na próxima vez.

Assim, quando as pessoas fazem experiências com ela, a srta. Keller exibe uma determinação de esportista para vencer qualquer competição em que se queira colocá-la, por menos razoável que seja.

Se não sabe a resposta de uma pergunta, dá palpites com provocativa segurança. Pergunte-lhe a cor de seu casaco (nenhum cego pode reconhecer as cores); ela apalpará o casaco e dirá "preto". Se o casaco for azul e você, triunfante, disser isso à srta. Keller, ela provavelmente responderá: "Obrigada. Fico contente por você saber. Por que me perguntou?".

Seu espírito imprevisível e aventureiro lhe dá tanta coragem que ela é um tema pobre para o psicólogo experimental. Além disso, a srta. Sullivan não vê por que a srta. Keiler deva ser submetida à investigação dos cientistas; ela própria não fez muitas experiências. Quando um psicólogo lhe perguntou se a srta. Keller soletrava com os dedos em seu sono, a srta. Sullivan respondeu achar que não valia a pena sentar e observar, pois tais questões eram de muito pouca importância.

Srta. Keller gosta de ser parte do grupo. Se alguém a quem está tocando ri de uma brincadeira, ela ri também, exatamente como se tivesse escutado. Se outros estão extasiados pela música, um fulgor correspondente, apreendido empaticamente, brilha no rosto da srta. Keller. Na verdade, ela sente os movimentos da srta. Sullivan tão minuciosamente que reage a seus estados de espírito e assim parece saber o que está acontecendo mesmo que a conversa não tenha sido soletrada para ela por algum tempo. Do mesmo modo, sua reação à música é em parte empática, embora ela a usufrua por conta própria.

A música provavelmente pode significar pouco para Helen a não ser em ritmo e pulsação. Ela não pode cantar ou tocar piano, embora, como algumas experiências iniciais mostraram, possa aprender a batucar mecanicamente uma melodia no piano.

No entanto seu gosto pela música é bem genuíno, pois Helen tem um reconhecimento tátil do som quando as ondas de ar batem contra ela. Parte de sua experiência do ritmo da música vem, sem dúvida, da vibração dos objetos sólidos que ela está tocando: o chão ou, o que é mais evidente, o gabinete do piano no qual sua mão descansa. Mas ela parece sentir a própria pulsação do ar. Quando tocaram órgão para ela em St. Bartholomew's, o edifício inteiro sacudiu-se com os baixos do pedal, mas isso não explica completamente o que ela sentiu e usufruiu. Enquanto as notas do órgão cresciam, a vibração do ar fazia a srta. Keller oscilar em reação. As vezes ela põe a mão na garganta de um cantor para sentir o tremor e a contração muscular, retirando disso um sincero prazer. Entretanto, ninguém sabe exatamente que sensações são. É divertido ler numa revista de 1895 que a srta. Keller "tem uma justa e inteligente apreciação dos diferentes compositores por ter literalmente sentido a música deles, sendo Schumann seu favorito". Se ela conhece a diferença entre Schumann e Beethoven é porque leu isso, e se o leu, lembra-se disso e pode dizê-lo quando lhe perguntam.

O esforço da srta. Keller para ir ao encontro das outras pessoas em seus próprios terrenos intelectuais a tem mantido informada dos assuntos cotidianos. Quando sua instrução se tornou mais sistemática e a srta. Keller estava ocupada com os livros, teria sido muito fácil para a srta. Sullivan deixá-la retirar-se para dentro de si mesma, se Helen fosse inclinada a isso. Mas cada pessoa que a srta. Keller conheceu deu suas melhores idéias, e ela as assimilou. Se no decorrer de uma conversa o amigo que está próximo pára por uns momentos de soletrar em sua mão, segue-se inevitavelmente a pergunta: "O que você está falando?".

Assim, ela recolhe os fragmentos do intercurso diário com as pessoas normais, fazendo com que sua informação seja singularmente completa e acurada. Ela se sai bem nas conversas sobre os pequenos assuntos ocasionais da vida.

Boa parte de seu conhecimento lhe chega diretamente. Quando está caminhando, com freqüência pára subitamente, atraída pelo odor de um punhado de arbustos. Então estende a mão e toca as folhas, e o mundo das coisas que crescem se torna dela tão verdadeiramente quanto é nosso, para ser apreciado enquanto ela segura as folhas e cheira as flores, e para ser lembrado quando o passeio termina.

Quando ela está num lugar novo, sobretudo num lugar interessante como as Cataratas do Niágara, quem quer que a acompanhe - geralmente a srta. Sullivan, é claro - fica ocupado dando a srta. Keller uma idéia dos detalhes visíveis. A srta. Sullivan, que conhece a mente de sua aluna, escolhe da paisagem os elementos essenciais, que dão uma certa limpidez à visão de um mundo exterior imaginada pela srta. Keller e que aos nossos olhos é confusa e sobrecarregada de detalhes. Se seu acompanhante não lhe dá suficientes detalhes, ela faz perguntas até que tenha completado a visão de um modo satisfatório para si mesma.

Ela não vê com os olhos e sim através da faculdade interna que serve como os olhos que nos foram dados. Quando volta de um passeio e conta sobre ele a alguém, suas descriçôes são precisas e vivas. Uma experiência comparativa tirada de descrições escritas e das palavras de sua professora mantém a srta. Keller livre de erros no uso dos termos sobre o som e a visão. Na verdade, sua visão da vida é altamente colorida e cheia de exagero poético; o universo que ela vê é sem dúvida um pouco melhor do que o real.

Mas seu conhecimento dele não é tão incompleto quanto se poderia supor. Ocasionalmente, a srta. Keller causa perplexidade por desconhecer algum fato que por acaso ninguém lhe contou; por exemplo, até seu primeiro mergulho no mar, a srta. Keller não sabia que esse era salgado. Muitos dos fatos e incidentes isolados da vida cotidiana passam despercebidos por ela e sobre ela mas a srta. Keller tem um conhecimento suficientemente detalhado do mundo para impedir que sua visão dele seja essencialmente imperfeita.

A maior parte do que sabe em primeira mão vem pelo tato.

Tal sentido, contudo, não é tão bem desenvolvido nela como em outros cegos. Laura Bridgman podia reconhecer diferenças mínimas na espessura de um fio e fazer uma bela renda. A srta. Keller sabia tricotar e fazer crochê, mas tinha coisas melhores a fazer. Com seu potencial e realizações variadas, seu tato não tem sido usado suficientemente para desenvolver-se muito além do normal. Certo dia, um amigo mostrou a srta. Keller várias moedas. Ela foi mais lenta do que ele esperava para identificá-las pelo tamanho e peso relativos. Mas deveria ser dito que ela quase nunca lida com dinheiro - por falar nisso, um dos muitos detalhes sórdidos e mesquinhos da vida dos quais tem sido poupada.

Ela reconhece o tema e a intenção geral de uma estatueta de 13 centímetros de altura. Quanto a expressar uma idéia de beleza, qualquer coisa mais rasa do que um baixo relevo de centímetro e meio é um vazio para a srta. Keller. Ela reconhece em seu valor estético mais elevado grandes estátuas cujas linhas possa circular inteiramente com a mão. Ela própria sugere que pode conhecê-las melhor do que nós, porque pode obter as verdadeiras dimensões e apreciar mais imediatamente a sólida natureza de uma figura esculpida. Quando ela estava no Museu de Fine Arts, em Boston, subiu numa escada pequena e percorreu as estátuas com as duas mãos. Ao tatear um baixo-relevo de moças dançando, perguntou: "Onde estão as cantoras". Quando as descobriu, disse: "Uma está em silêncio". Os lábios da cantora estavam fechados.

No entanto, é em sua vida cotidiana que se pode melhor medir a delicadeza de seus sentidos e sua habilidade manual. Ela parece ter muito pouco senso de direção. Tateia o caminho sem muita certeza em aposentos que lhe são muito familiares. A maioria dos cegos é ajudada pelos sons, portanto é difícil fazer uma comparação justa, a não ser com outras pessoas surdas e cegas. Sua destreza não é digna de nota se comparada com a da pessoa normal, cujos movimentos são guiados pelo olho, ou com a dos cegos, segundo me disseram. Ela não desenvolveu nenhuma perícia construtiva que exigisse o uso das mãos. Aos 13 anos, seu amigo, o artista Albert H. Munsell, deixou-a fazer experiências com um tablete de cera e um estilete. Ele diz que a srta. Keller saiu-se bastante bem e conseguiu fazer, com modelos, alguns desenhos convencionais da silhueta de folhas e rosetas. A única atividade que ela realiza que exige habilidade com as mãos é seu trabalho na máquina de datilografia. Embora tenha usado a máquina desde os 11 anos, ela é mais cuidadosa do que rápida.

Escreve com boa velocidade e absoluta segurança. Seus manuscritos raramente contêm erros tipográficos quando ela os passa à srta. Sullivan para que leia. Sua máquina não tem equipamentos especiais. Ela mantém a posição relativa do teclado por um toque ocasional dos dedos mínimos na borda exterior do teclado.

A leitura da srta. Keller do alfabeto manual pelo tato parece causar alguma perplexidade. Até pessoas que a conhecem bastante bem têm escrito nas revistas sobre as "misteriosas comunicações telegráficas" da srta. Sullivan com sua aluna. O alfabeto manual é aquele em uso entre todos os surdos instruídos. A maioria dos dicionários contém uma gravura das Letras manuais. O surdo com visão olha para os dedos de seu companheiro, mas é possível tateá-los também. A srta. Keller coloca os dedos de leve sobre a mão de quem está falando com ela e compreende as palavras tão rapidamente quanto são soletradas. Segundo explica, ela não tem consciência das letras isoladas ou das palavras isoladas. A srta. Sullivan e outros que vivem constantemente com um surdo podem soletrar muito rapidamente - suficientemente rápido para obter uma leitura lenta, mas não tanto para perceber cada palavra de alguém que fale muito rápido.

Qualquer um pode aprender o alfabeto manual em poucos minutos, usá-lo lentamente num dia e em 30 dias de uso constante conversar com a srta. Keller ou outra pessoa surda sem perceber o que seus dedos estão fazendo. Se um número maior de pessoas o conhecesse e amigos e parentes das crianças surdas aprendessem logo o alfabeto manual, os surdos de todo o mundo seriam mais felizes e mais instruídos.

A srta. Keller lê por meio de letras impressas em relevo ou nos vários tipos de braile. O livro comum em relevo é feito com letras romanas, tanto minúsculas quanto maiúsculas. Tais letras são de um desenho simples, quadrado, anguloso. As minúsculas têm cerca de 3/16 de polegada, com um relevo na página na espessura da unha de um polegar. Os livros são grandes, aproximadamente do tamanho de um volume de enciclopédia. A short history of the English people (Uma pequena história do povo inglês) de Green foi distribuída em seis grandes volumes. Os livros não são pesados, porque as folhas com o tipo em relevo não ficam próximas.

Um dos amigos da srta. Keller diz que o momento em que percebe com mais impacto sua cegueira é quando se depara subitamente com a srta. Keller na escuridão e ouve o roçar de seus dedos pela página.

O tipo de impressão mais conveniente para os cegos é o braile, que tem diversas variações - na verdade variações demais: braile inglês, americano, Ponto Nova York. A srta. Keller lê todos. Os cegos mais cultos conhecem vários, mas se o braile inglês fosse adotado universalmente, como sugere a srta. Keller, isso evitaria problemas. Cada tipo (uma letra ou uma contração especial de braile) é uma combinação feita variando-se local e número dos pontos em seis posições possíveis. A srta. Keller tem uma máquina de braile na qual mantém anotações e escreve cartas para seus amigos cegos. Há seis teclas, e pressionando-se diferentes combinações num toque (como se toca um acorde em um piano) o operador faz um tipo de cada vez numa folha de papel espesso e pode escrever com metade da velocidade que usaria numa máquina de datilografia. O braile é especialmente útil em fazer cópias únicas de manuscritos de livros.

Os livros para os cegos são em número muito limitado. São muito caros de publicar e não vendem o suficiente para se tornarem lucrativos para o editor; contudo, há diversas instituições com fundos especiais para encomendar livros em relevo. A srta. Keller é mais afortunada que a maioria dos cegos pela bondade dos amigos que têm encomendado livros especialmente para ela e pela boa vontade de cavalheiros como o sr. E. E. Allen, do Pennsylvania Institute for the Instruction of the Blind, que em várias ocasiões mandou imprimir edições de livros de que ela tem precisado.

De modo geral, a srta. Keller não lê muito rapidamente, mas o faz com ponderação, não tanto porque tateia as palavras com menos rapidez do que nós a vemos, mas por ter como hábito mental fazer as coisas minuciosamente e bem. Quando um trecho a interessa, ou precisa lembrar-se dele para algum uso futuro, ela passa de leve e rápido os dedos da mão direita sobre ele. As vezes esse jogo de dedos é inconsciente. A srta. Keller fala distraidamente consigo mesma no alfabeto manual. Quando está caminhando pelo corredor ou ao longo da varanda, suas mãos movem-se a seu lado como uma revoada de pássaros.

Disseram-me que, assim como há uma memória visual e auditiva, existe uma memória tátil. A srta. Sullivan diz que tanto ela quanto a srta. Keller lembram "com seus dedos" o que disseram. Para a srta. Keller, o ato de soletrar uma frase no alfabeto manual fazia com que ela a gravasse em sua mente exatamente como aprendemos uma coisa por tê-la ouvido muitas vezes, podendo assim invocar a lembrança de seu som.

Como todos os surdos ou cegos, a srta. Keller depende de seu olfato num grau pouco comum. Quando menina, ela conhecia o cheiro de tudo e sabia onde estava e por que a casa vizinha estava passando pelos diferentes odores. À medida que seu intelecto cresceu, ela se tornou menos dependente desse sentido. Até que ponto ela identifica agora objetos pelos odores é difícil determinar, O sentido do olfato caiu em desonra e um surdo reluta em falar dele.

O agudo olfato da srta. Keller, porém, explica em parte o reconhecimento de pessoas e coisas que costumeiramente tem sido atribuído a um sentido especial, ou ao desenvolvimento pouco comum do poder que todos parecemos ter de perceber a proximidade de alguém.

A questão de um "sexto sentido" especial que as pessoas têm atribuído a srta. Keller é delicada. No entanto, ela certamente não pode ter qualquer sentido que outras pessoas não tenham, e a existência de um sentido especial não é evidente para ela ou para qualquer pessoa que a conheça. A srta. Keller, nitidamente, não é uma prova singular de teorias ocultas e misteriosas, e qualquer tentativa de explicá-la desse modo falha em reconhecer sua normalidade. Ela não é mais misteriosa e complexa do que qualquer Outra pessoa. Tudo que é, tudo que fez, pode ser explicado diretamente, exceto as coisas em cada ser humano que nunca podem ser explicadas. Ela não parece comprovar a existência do espírito sem matéria, ou de idéias inatas, ou da imortalidade, ou de qualquer coisa que qualquer outro ser humano não comprove. Os filósofos têm tentado descobrir qual era sua concepção de idéias abstratas antes de aprender a linguagem. Se a srta. Keller tinha qualquer concepção, não há modo de descobri-lo agora, pois ela não consegue se lembrar e obviamente não há nenhum registro daquela época. Ela não tinha qualquer concepção de Deus antes de ouvir a palavra "Deus", como seus comentários mostram claramente. Seu senso de tempo é excelente, mas se isso se teria desenvolvido como uma faculdade especial não se pode saber, pois ela tem relógio desde os sete anos de idade.

A srta. Keller ganhou dois relógios de presente, provavelmente os únicos de sua espécie na América. Eles têm na parte de trás um indicador de ouro achatado que pode ser empurrado livremente da esquerda para a direita até que, por meio de um pino dentro do estojo, ele se prenda com o ponteiro das horas e assuma uma posição correspondente. Aponta desse indicador de ouro curva-se sobre a beira do estojo, em torno do qual estão dispostos 11 pontos em relevo - o eixo forma o décimo segundo. Assim aquele relógio comum com um mostrador branco para os que enxergam torna-se, por esse dispositivo especial, um relógio para os cegos, tendo um ponteiro único de horas e números em relevo. Embora haja pouco mais de um centímetro entre os pontos - um espaço que representa 60 minutos -, a srta. Keller pode dizer as horas quase que exatamente. É preciso esclarecer que qualquer relógio de estojo duplo com a tampa de cristal removida serve bastante bem para um cego, cujo toque seja suficientemente delicado para tocar a posição dos ponteiros e não os prejudicar ou danificar.

Os melhores traços da personalidade da srta. Keller são tão conhecidos que não se precisa dizer muito a respeito. Bom senso, bom humor e imaginação mantém seu esquema de coisas sadio e belo. Os que estão próximos a ela não fazem nenhuma tentativa para preservar ou desfazer suas ilusões. Quando a srta. Keller era menina, muitas coisas pouco inteligentes e sem tato ditas para seu benefício não lhe eram repetidas, graças à sábia vigilância da srta. Sullivan. Agora que a srta. Keller é adulta, ninguém pensa em ser menos franco com ela do que com outras jovens inteligentes. O que seu bom amigo Charles Dudley Warner escreveu sobre ela no Harper-Magazine em 1896 era verdadeiro à época e continua verdadeiro agora:

Acredito que ela seja o ser humano de mente mais pura que já existiu (...) Para ela, o mundo é o que é sua mente. Ela nem sequer aprendeu aquela exibição da qual tantos se orgulham, da "indignação correta".

Algum tempo atrás, quando um policial matou a cadela da srta. Keller - uma querida companheira cotidiana - com um tiro, ela não encontrou em seu coração compassivo nenhuma condenação para com o homem; apenas disse: "Se ele soubesse que bom animal ela era, não teria atirado". Dizia-se nos velhos tempos: "Senhor, perdoa-os, porque não sabem o que fazem".

É claro que surge a seguinte pergunta: se Helen Keller não tivesse sido protegida do conhecimento do mal, teria sido o que é hoje? (...) Sua mente não se tornou efeminada pela fraca e tola literatura, nem viciada pelo que sugere baixeza.

Como resultado, sua mente não é apenas vigorosa, mas pura.

Ela é apaixonada pelas coisas nobres, por nobres pensamentos e pelas personalidades de homens e mulheres nobres.

A srta. Keller ainda tem uma aversão infantil por tragédias.

Sua imaginação é tão vital que ela se submete completamente à ilusão de uma história e vive no mundo desta. A srta. Sullivan escreve numa carta de 1891:

Ontem li para ela a história de Macbeth, contada por Charles e Mary Lamb. Ela ficou muito animada com a história, dizendo: "É terrível! Ela me faz tremer!". Após pensar um pouco, acrescentou: "Acho que Shakespeare a tornou tão medonha para que as pessoas vissem como era terrível agir errado."

Do mundo real, ela sabe do bem e menos do mal que a maioria das pessoas. Sua professora não a atormenta com as pequenas coisas infelizes; mas das importantes dificuldades por que passou a srta. Keller foi amplamente informada, recebeu sua parcela de sofrimento e aplicou a mente nos problemas. Ela é lógica e tolerante, muito confiante num mundo que a tem tratado bondosamente.

Certa vez, quando alguém lhe pediu para definir "amor", ela respondeu: "Ora, é fácil; é o que todo mundo sente por todo mundo".

"A tolerância", disse ela certa vez, ao visitar sua amiga sra. Laurence Hutton, "é o maior dom da mente; exige o mesmo esforço do cérebro que é exigido de alguém para se equilibrar numa bicicleta".

Ela exerce uma ampla e generosa solidariedade e tem uma absoluta afabilidade de temperamento. Sua diferença visível das outras pessoas é que ela é menos dirigida pela convenção. Tem a coragem de suas metáforas e deixa que estas a levem na direção do céu enquanto nós, pobre gente autoconsciente, as acharíamos livrescas demais para a conversa comum. A srta. Keller sempre diz exatamente o que pensa, sem medo da simples verdade; mesmo assim ninguém é mais cheia de tato e habilidade do que ela para modelar uma verdade desagradável de modo a ferir o mínimo possível os sentimentos alheios. Nem toda a atenção que lhe tem sido concedida desde criança a fez encarar-se de modo excessivamente sério. Às vezes ela começa um sermão muito solene.

Então sua professora a chama de incorrigível pregadora e a srta. Keller ri de si mesma. Geralmente, contudo, suas sóbrias idéias não são motivo de riso, pois sua sinceridade envolve os ouvintes.

Não há nunca a mínima pompa formal ou falsa no que ela diz. É tão verdadeira em tudo que suas próprias citações e os ecos do que leu são na verdade originais.

Sua lógica e solidariedade estão num excelente equilíbrio. Sua solidariedade é do mesmo tipo rápido e atuante que, felizmente, ela tem encontrado com tanta freqüência em outras pessoas. suas simpatias vão mais adiante, com a srta. Keller transformando suas opiniões em movimentos políticos e nacionais. Ela foi intensamente pró-Boer e escreveu uma forte defesa da sua independência.

Quando lhe contaram sobre a rendição do bravo povozinho, seu rosto turvou-se e ela ficou em silêncio alguns minutos. Então fez perguntas claras e penetrantes sobre os termos da rendição e começou a discuti-las.

Os srs. Gilman e sr. Keith, professores que a prepararam para a faculdade, ficaram impressionados com o poder de raciocínio construtivo da srta. Keller. Ela era excelente em matemática pura, embora pareça nunca tê-la apreciado muito. Parte de seus melhores escritos, ao lado do trabalho fantasioso e imaginativo, são suas dissertações em exames e temas técnicos e em algumas cartas que ela considerou necessário escrever para desfazer certos mal-entendidos, que são modelos de pensamento rigoroso reforçado por doce veemencia.

Ela é uma otimista e uma idealista.

"Espero", escreve ela numa carta, "que L_____ não seja prática demais, pois se o for vai perder muito do prazer".

No diário que manteve na Wright-Humason School em Nova York, ela escreveu em 18 de outubro de 1894: "Descobri que tenho quatro coisas para aprender aqui na escola e na verdade na própria vida - pensar claramente sem pressa ou confusão, gostar de todos sinceramente, agir em tudo pelos mais altos motivos e confiar sem hesitar no querido Deus".

Δ


CAPÍTULO III

EDUCAÇÃO

Há 65 anos o dr. Samuel Gridley Howe soube que abrira o caminho, pelos dedos, para a inteligência de Laura Bridgman.

Os nomes de Laura Bridgman e Helen Keller estarão sempre ligados, e é necessário entender o que ele fez por sua aluna antes de se chegar a um relato sobre o trabalho da srta. Sullivan. Pois o dr. Howe é o grande pioneiro de cujo trabalho dependem imediatamente o da srta. Sullivan e os de outros professores dos surdos-cegos.

O dr. Samuel Gridley Howe nasceu em Boston a 10 de novembro de 1801 e morreu na mesma cidade em 9 de janeiro de 1876. Era um grande filantropo, especialmente interessado na educação de todos os deficientes, os fracos da mente, os cegos e os surdos. Bem avançado para seu tempo, advogou muitas medidas públicas para o alívio do pobre e dos doentes, o que provocou risos à época, mas que desde então têm sido implementadas. Como diretor da Instituição Perkins para Cegos, de Boston, ouviu falar de Laura Bridgman e fez com que a trouxessem para a Instituição em 4 de outubro de 1837.

Laura Bridgman nasceu em Hanover, New Hampshire, em 21 de dezembro de 1829, tendo portanto quase oito anos quando o dr. Howe começou suas experiências com ela. Aos 26 meses de idade, Laura perdera a visão e a audição devido à escarlatina.

Perdera também o olfato e o paladar. Dr. Howe era um cientista experimental e trazia nele o espírito do transcendentalismo da Nova Inglaterra, com sua grande fé e grandes beneficências.

Ciência e fé unidas o levaram a tentar abrir caminho na alma que ele acreditava haver em Laura Bridgman como em qualquer outro ser humano. Seu plano era ensinar Laura por meio dos tipos em relevo. Ele colou etiquetas em relevo nos objetos e a fez combinar as etiquetas com os objetos e os objetos com as etiquetas. Quando ela aprendeu desse modo a associar palavras em relevo com coisas, do mesmo modo, o dr. Howe diz, como um cão aprende truques, ele começou a decompor as palavras em letras e ensinou Laura a juntar "c-h-a-v-e", "b-o-n-é". Seu sucesso o convenceu de que a linguagem podia ser transmitida de um símbolo para a mente da criança surda-cega que, antes da educação, está no estágio do bebê que não aprendeu a falar; na verdade, é um estado muito pior, pois o cérebro cresceu durante anos sem nutrição natural.

Depois do ensino de Laura progredir por dois meses somente com o uso de letras em relevo, dr. Howe enviou um de seus professores para aprender o alfabeto manual de uma surda- muda. A professora o ensinou a Laura e, daquele momento em diante, o alfabeto manual foi o meio de comunicação com a menina.

Após o primeiro ou segundo ano, dr. Howe já não ensinava Laura diretamente; entregou-a a outros professores que, sob sua direção, continuaram o trabalho de ensinar-lhe a lingua. [Ver The life and education of Laura D. Bridgman, da sra. Mary Swift Lamson.]

Muitos elogios podem ser feitos ao trabalho do dr. Howe.

Como investigador, teve sempre a postura do cientista. Nunca esqueceu de manter seus registros sobre Laura Bridgman, como alguém que trabalha num laboratório. O resultado é que seus registros sobre ela são sistemáticos e cuidadosos. Do ponto de vista científico, é uma pena que tenha sido impossível manter um registro tão completo do desenvolvimento de Helen Keller. Isso, em si, é um grande comentário sobre a diferença entre Laura Bridgman e Helen Keller. Laura sempre permaneceu um objeto de curioso estudo. Helen Keller tornou-se rapidamente uma personalidade distinta que manteve a professora numa corrida esbaforida para estar à altura das necessidades da aluna, sem tempo ou forças para fazer disso um estudo científico.

De certo modo isso é uma pena. A srta. Sullivan soube desde o início que Helen Keller seria mais interessante e bem-sucedida do que Laura Bridgman e externa numa de suas cartas a necessidade de tomar notas. Mas nem temperamento nem treinamento lhe permitiram fazer de sua aluna o objeto de qualquer experimento ou observação que não ajudasse no desenvolvimento da criança.

Assim que algo estava feito, um objetivo definido ultrapassado, a professora nem sempre olhava para trás e descrevia o modo como o fizera. A explicação do fato não era importante comparada com o fato em si e a necessidade de ir em frente depressa.

Há outras duas razões para os registros da srta. Sullivan serem incompletos. Escrever sempre foi uma sobrecarga para seus olhos, e ela se sentiu desencorajada de publicar seus dados pelo uso inexato feito do que forneceu inicialmente.

Quando a srta. Sullivan escreveu pela primeira vez de Tuscumbia para o sr. Michael Anagnos, genro e sucessor do dr. Howe como diretor da Instituição Perkins, sobre seu trabalho com a aluna, os jornais de Boston começaram imediatamente a publicar relatos exagerados sobre Helen Keller. A srta. Sullivan protestou. Numa carta datada de 10 de abril de 1887, apenas cinco semanas depois do início de seu trabalho com Helen Keller, ela escreveu a um amigo:

enviou-me um Boston Herald contendo um artigo estúpido sobre Helen. Que absurdo total dizer que Helen "já está falando fluentemente". Ora, pode-se dizer da mesma forma que uma criança de dois anos conversa fluentemente só porque diz "maçã dar", ou "bebê andar vai". Suponho que se incluirmos seus gritos, exclamações inarticuladas, gemidos, resmungos e guinchos discordantes, com chutes ocasionais, na conversa dele, isso pode ser encarado como fluente - e até eloqüente. Depois, é divertido ler sobre o preparativo elaborado pelo qual passei para me ajustar à grande tarefa que meus amigos me confiaram. Lamento que tal preparação não tenha incluído soletrar; teria me poupado muitos problemas.

Em 4 de março de 1888, ela escreve numa carta:

Na verdade, estou extremamente contente por não saber tudo que está sendo dito e escrito sobre Helen e sobre mim. Asseguro-lhe que sei o suficiente. Quase toda correspondência traz alguma declaração absurda, impressa ou escrita. A verdade não é maravilhosa o suficiente para agradar os jornais; então eles a aumentam e inventam exageros ridículos. Um jornal disse que Helen descrevia problemas de geometria com a ajuda de seus blocos de brinquedo.

Espero ouvir a seguir que ela escreveu um tratado sobre a origem e o futuro dos planetas!

Em dezembro de 1887, apareceu o primeiro relatório do diretor da Instituição Perkins que trata de Helen Keller. Para esse relatório a srta. Sullivan preparara, concordando com relutância com o pedido do sr. Anagnos, um relato de seu trabalho. Este, com os extratos de suas cartas espalhadas pelo relatório, é a primeira fonte válida de informação sobre Helen Keller. Sobre tal relatório a srta. Sullivan escreveu numa carta datada de 30 de outubro de 1887:

Você viu o trabalho que escrevi para o "relatório"? O sr. Anagnos ficou encantado com ele. Diz que o progresso de Helen vem sendo "uma marcha triunfal desde o início e tem muitas coisas lisonjeiras a dizer sobre sua professora.

Acho que ele é dado ao exagero; de qualquer modo, sua linguagem é fulgurante demais e fatos simples são apresentados de tal maneira que perturbam a pessoa. Sem dúvida o trabalho dos últimos meses lhe parece uma marcha triunfal; mas as pessoas raramente vêem os tropeções e passos dolorosos através dos quais o mais insignificante sucesso é conquistado.

Como o sr. Anagnos era o diretor de uma grande instituição, o que disse teve muito mais efeito do que os fatos no relato da srta. Sullivan nos quais ele baseou suas declarações. Os jornais pegaram o espírito do sr. Anagnos e exageraram cem vezes mais. Um ano depois de passar a ensinar Helen Keller, a srta. Sullivan viu-se e à sua aluna no centro de uma estupenda ficção. A seguir os educadores por todo o mundo deram suas opiniões e isso geralmente não ajudou a questão. Acumulou-se uma massa de controvérsias que é divertido ler agora. Os professores dos surdos provaram apriori que o que a srta. Sullivan fez não podia ser feito e algum descrédito refletiu-se nas declarações dela, pois estavam rodeadas pela vaga eloqüência do sr. Anagnos. Assim a história de Helen Keller incrível quando contada com moderação, teve o infortúnio de ser proclamada por anúncios exagerados, esbarrando naturalmente numa credulidade ignorante ou numa hostilidade incrédula.

Em novembro de 1888, surgiu outro relato da Instituição Perkins com um segundo trabalho da srta. Sullivan, e a seguir nada oficial foi publicado até novembro de 1891, quando o sr. Anagnos expediu o último relatório da Instituição contendo algo sobre Helen Keller. Para tal relatório, a srta. Sullivan escreveu o mais completo e amplo relato que já escrevera; e neste o Frost King foi discutido amplamente num último capítulo. A seguir a controvérsia tornou-se mais feroz do que nunca.

Descobrindo que outros pareciam saber muito mais sobre Helen Keller do que ela, a srta. Sullivan manteve-se em silêncio, e assim tem estado há dez anos, exceto no trabalho do primeiro Souvenir de Helen Keller do Volta Bureau e na comunicação que, a pedido do dr. Bell, ela preparou em 1894 para a reunião em Chautauqua da American Association to Promote the Teaching of Speech to the Deaf. Quando dr. Bell e Outros lhe dizem, o que certamente é verdade de um ponto de vista impessoal, que ela devia escrever o que sabe pela causa da educação, ela responde muito apropriadamente que deve todo o seu tempo e sua energia à sua aluna.

Embora a srta. Sullivan ache ainda mais divertido do que aflitivo quando alguém, mesmo um de seus amigos, comete erros em artigos publicados sobre ela e a srta. Keller, ela ainda entende que o livro da srta. Keller deva incluir toda a informação que a professora possa fornecer no presente momento. Assim, consentiu na publicação de extratos das cartas que escreveu durante o primeiro ano do trabalho com a aluna. Tais cartas foram escritas para a sra. Sophia C. Hopkins, única pessoa para quem a srta. Sullivan já escreveu livremente. A sra. Hopkins tem sido superintendente na Instituição Perkins por 20 anos, e durante o tempo em que a srta. Sullivan estudou lá, foi uma mãe para ela. Nessas cartas temos um registro quase semanal do trabalho da srta. Sullivan. Alguns detalhes foram esquecidos por ela, à medida que passou a generalizar cada vez mais. Muitos têm achado que qualquer tentativa de encontrar os princípios do método da srta. Sullivan seria apenas uma teoria posterior superimposta ao trabalho dela.

Mas é evidente que, nessas cartas, a srta. Sullivan analisava claramente o que vinha fazendo. Era sua própria crítica, e apesar de sua declaração posterior, feita com um modesto descaso, de que não seguia nenhum método em especial, ela estava nitidamente aprendendo com sua tarefa e fraseando à época princípios de educação de valor único não apenas no ensino dos surdos mas no de todas as crianças. Os extratos de suas cartas e relatos formam uma importante contribuição à pedagogia e mais do que justificam a opinião do dr. Daniel C. Gilman, que escreveu em 1893, quando presidente daJohns Hopkins University:

Acabo de ler... seu muito interessante relato sobre os vários passos dados pela senhorita na educação de sua maravilhosa aluna e espero que me permita expressar-lhe minha admiração pela sabedoria que tem guiado seus métodos, e a afeição que tem inspirado seus esforços.1

Seguem-se as cartas da srta. Sullivan pela ordem e os trechos mais importantes dos relatórios. Omiti de cada relato que se segue o que já fora explicado e não precisava ser repetido. Para facilidade do leitor e com o consentimento da srta. Sullivan, juntei os extratos de modo a se sucederem continuamente, e forneci palavras de ligação e as necessárias mudanças resultantes em sintaxe. A srta. Sullivan fez leves mudanças no fraseado de seus relatórios e também de suas cartas, que haviam sido escritas com displicência. Também sublinhei algumas passagens importantes. A srta. Sullivan gostaria de ampliar e revisar algumas de suas opiniões, o que será sua tarefa em outro momento. No presente, temos aqui o registro mais completo que já foi publicado. A primeira carta é datada de


6 de março de 1887 [três dias depois da chegada de srta. Sullivan em Tuscumbia]: (...) Eram 6h30 quando cheguei a Tuscumbia. Encontrei a sra. Keller e o sr. James Keller esperando por mim.

Disseram-me que alguém esperara cada trem por dois dias. A viagem da estação para a casa, uma distância de quilômetro e meio, foi adorável e muito sossegada. Fiquei surpresa em descobrir que a sra. Keller era uma mulher de aparência muito jovem, creio que não muito mais velha do que eu. O capitão Keller veio a nosso encontro no pátio e me deu animadamente as boas-vindas e um vigoroso aperto de mão. Minha primeira pergunta foi: "Onde está Helen?".

Tentei com todas as forças controlar a ansiedade que me fazia tremer tanto que mal podia andar. Quando nos aproximamos da casa, vi uma criança em pé na porta da frente.

O capitão Keller disse: "Lá está ela. Durante o dia inteiro Helen sabia que esperávamos alguém e se portou de modo totalmente turbulento desde que a mãe foi à estação buscar a senhorita". Mal pus os pés na escada da entrada, Helen correu para mim com tal força que teria me derrubado se o capitão Keller não estivesse atrás de mim. Ela apalpou meu rosto, minha roupa e minha bolsa, que tirou de minha mão e tentou abrir. A bolsa não abre facilmente e Helen tateou com cuidado para ver se havia um fecho.

Descobrindo que havia, virou-se para mim fazendo o sinal de virar uma chave e apontando para a bolsa. Nesse ponto sua mãe interferiu e lhe mostrou, por sinais, que ela não devia tocar na bolsa. O rosto de Helen enrubesceu e quando a mãe tentou tomar-lhe a bolsa Helen ficou muito zangada. Atraí sua atenção mostrando-lhe meu relógio e deixando-a segurá-lo na mão. Então abri a bolsa e ela a percorreu avidamente, provavelmente esperando encontrar algo para comer. É provável que os amigos lhe tenham trazido doces em suas bolsas e ela esperara encontrar algum na minha. Eu a fiz entender, apontando para um baú no saguão e para mim mesma e acenando afirmativamente com a cabeça, que tinha um baú e então fiz o sinal que ela tinha usado para comer, acenando afirmativamente com a cabeça de novo. Ela entendeu imediatamente e correu escada abaixo para dizer à mãe, através de sinais enfáticos, que havia doce num baú para ela. Voltou em alguns minutos e me ajudou a guardar as coisas. Era muito engraçado vê-la colocar meu chapéu e inclinar a cabeça para um lado, depois para o outro, e olhar no espelho exatamente como se pudesse enxergar. De alguma forma eu esperara ver uma criança pálida e delicada - acho que tirei a idéia da descrição de Laura Bridgman feita pelo dr. Howe quando ela foi à instituição. Mas não havia nada de pálido ou delicado em Helen. Ela é grande, forte, corada, de movimentos tão soltos quanto os de um cavalinho. Não tem nada dos hábitos nervosos tão visíveis e aflitivos em crianças cegas. Seu corpo é bem formado e vigoroso, e a sra. Keller diz que a filha não esteve mais doente desde a enfermidade que lhe tirou a visão e a audição. Tem uma bonita cabeça, ajustada harmoniosamente aos ombros. Seu rosto é difícil de descrever. É inteligente mas lhe falta mobilidade, ou alma, ou alguma coisa. Sua boca é grande e delicadamente desenhada. Vê-se num relance que ela é cega. Um olho é maior do que o outro, visivelmente saliente. Ela raramente sorri; na verdade, só a vi sorrir uma ou duas vezes desde que cheguei. Ela não reage e chega a ficar impaciente com carícias de qualquer um que não seja sua mãe.

Tem um temperamento brusco e voluntarioso e ninguém, exceto seu irmão James, já tentou controlá-la. O maior problema que terei de resolver é como discipliná-la e controlá-la sem dobrar seu espírito. Irei devagar no início e tentarei conquistar sua estima. Não tentarei conquistá-la só pela força; mas vou insistir numa obediência razoável desde o início. Uma coisa que impressiona todo mundo é a incansável atividade de Helen. Ela não fica parada um momento sequer. Está aqui, ali, em toda parte. Suas mãos estão em tudo; mas nada retém sua atenção por muito tempo. Querida criança, seu espírito inquieto tateia na escuridão. Suas mãos não-educadas e insatisfeitas destroem o que quer que toquem porque não sabem o que mais fazer com as coisas.

Ela me ajudou a tirar as coisas do baú quando ele chegou e ficou encantada quando encontrou a boneca que as meninas lhe mandaram. Achei aquela uma boa oportunidade de ensinar-lhe a primeira palavra. Soletrei "d-o-l-l" (boneca) lentamente em sua mão e apontei para a boneca, acenando afirmativamente com a cabeça, o que parece ser para ela o sinal de posse. Sempre que alguém lhe dá algo, ela aponta para a coisa, depois para si mesma e acena afirmativamente com a cabeça. Helen pareceu intrigada e tateou minha mão; então repeti as letras. Ela as imitou muito bem e apontou para a boneca. Então peguei a boneca, querendo dizer que lhe daria novamente quando fizesse as letras; mas Helen achou que eu pretendia tirá-la dela e num instante teve um acesso temperamental, procurando pegar a boneca.

Sacudi a cabeça e tentei formar as letras com seus dedos, mas ela ficou cada vez mais raivosa. Forcei-a a se sentar numa cadeira e a mantive lá até eu ficar quase exausta. Então me ocorreu que era inútil continuar a luta - eu devia fazer algo para mudar a corrente de seus pensamentos. Soltei-a, mas recusei-me a entregar a boneca. Desci ao andar de baixo e peguei um pedaço de bolo (ela adora doces). Mostrei o bolo a Helen e soletrei "c-a-k-e" (bolo) em sua mão, segurando-o perto dela. Claro que ela o quis e tentou tomá-lo; mas soletrei a palavra novamente e dei uns tapinhas carinhosos em sua mão. Ela fez as letras rapidamente e eu lhe dei o bolo, que ela comeu numa grande pressa, pensando, acho, que eu poderia tirá-lo dela. Então lhe mostrei a boneca e soletrei a palavra novamente, segurando a boneca perto dela como segurara o bolo. Ela fez as letras "d-o-l", eu acrescentei um "l" e lhe dei aboneca. Helen correu para o andar de baixo com ela e não pôde mais ser convencida a voltar para o meu quarto o dia inteiro.

Ontem dei-lhe uma cartela de bordado (sewing-card). Fiz a primeira fileira de linhas verticais e deixei-a apalpá-lo e notar que havia várias fileiras de pequenos furos. Ela começou a trabalhar, encantada, e terminou o cartão em poucos minutos, muito cuidadosamente. Pensei em tentar outra palavra e soletrei c-a-r-d (cartão). Ela soletrou "c-a" e parou, pensou, fez o sinal de comer e, apontando para baixo, empurrou-me em direção à porta, querendo dizer que eu devia ir lá para baixo pegar uma fatia de bolo. As duas letras "c-a" a lembraram da "aula"de sexta-feira - não que ela tivesse qualquer idéia de que cake (bolo) era o nome da coisa, mas era simplesmente uma questão de associação, acho eu. Terminei a palavra c-a-k-e e obedeci a seu comando. Ela ficou encantada. Então soletrei d-o-l-l e comecei a procurar a boneca. Ela segue com suas mãos cada movimento que você faz e sabia que eu estava procurando a boneca. Então apontou para baixo, querendo dizer que a boneca estava no andar de baixo. Fiz os sinais que ela usara quando desejara que eu buscasse o bolo e empurrei-a na direção da porta. Ela começou a andar e então hesitou um momento, evidentemente conjeturando se queria ir ou não.

Em vez disso, ela decidiu que eu iria. Sacudi a cabeça e soletrei d-o-l-l mais enfaticamente e abri a porta para ela; mas Helen obstinadamente recusou-se a obedecer. Ela não acabara o bolo que comia e eu o afastei, indicando que se ela trouxesse a boneca eu lhe devolveria o bolo. Ela ficou totalmente imóvel por um longo momento, com o rosto muito vermelho; então seu desejo pelo bolo triunfou e ela correu para baixo e trouxe a boneca; eu, claro, lhe dei o bolo, mas não consegui convencê-la a entrar no aposento de novo.

Helen estava muito irritante quando comecei a escrever esta manhã. Insistia em aparecer por trás de mim e colocar a mão no papel e dentro do tinteiro. Esses borrões são obra dela. Finalmente lembrei-me das contas do jardim- de-infância e a pus para enfiar contas. Primeiro coloquei duas contas de madeira e uma de vidro, depois a fiz apalpar o barbante e as duas caixas de contas. Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça e começou imediatamente a encher o barbante com as contas de madeira. Sacudi a cabeça, retirei todas as contas e fiz Helen apalpar as duas contas de madeira e a conta de vidro. Ela as examinou pensativamente e começou de novo. Dessa vez colocou a conta de vidro primeiro e as duas de madeira a seguir. Retirei-as e mostrei-lhe que as duas de madeira deviam ser colocadas primeiro e a seguir a conta de vidro. Não teve mais problemas e encheu o barbante rapidamente, rápido demais na verdade. Ela amarrou as duas pontas quando terminou e colocou as contas no pescoço. Não dei um nó largo o suficiente no fio seguinte e as contas saíram tão rapidamente quanto ela as colocara; mas ela própria resolveu a dificuldade passando o fio através de uma conta e amarrando-o. Achei isso muito esperto. Ela se divertiu com as contas até a hora do jantar, trazendo-me os fios de vez em quando para que eu os aprovasse.

Meus olhos estão muito inflamados. Sei que a carta está escrita de modo muito displicente. Eu tinha muito a dizer e não podia parar para pensar como as coisas podiam ser expressas com clareza. Por favor, não mostre a carta a ninguém. Se quiser, pode lê-la para os meus amigos.


Segunda-feira à tarde: Tive uma briga fenomenal com Helen esta manhã. Embora eu tente bastante não forçar as questões, acho muito difícil evitá-las.

As maneiras de Helen à mesa são chocantes. Ela põe as mãos em todos os pratos, serve-se e, quando os pratos são passados, ela os agarra e tira o que quer. Nesta manhã não a deixei pôr as mãos no meu prato. Ela insistiu e seguiu-se uma competição de vontades. Naturalmente a família ficou muito perturbada e saiu da sala. Eu tranquei a porta da sala de jantar e continuei a tomar meu café da manhã, embora a comida quase me sufocasse. Helen estava deitada no chão, gritando, chutando e tentando puxar minha cadeira. Ela continuou assim por meia hora, então levantou para ver o que eu estava fazendo. Eu a deixei ver que eu estava comendo, mas não a deixei pôr as mãos no prato. Ela me beliscou e eu a esbofeteei a cada vez que ela fazia isso. Então ela deu a volta à mesa para ver quem estava lá e, não encontrando ninguém exceto eu, pareceu perturbada. Após alguns minutos ela voltou ao seu lugar e começou a comer o desjejum com os dedos. Eu lhe dei uma colher, que ela atirou no chão. Forcei-a a sair da cadeira e a fiz pegar a colher. Finalmente consegui fazê-la voltar para a cadeira, coloquei a colher em sua mão e a obriguei a pegar a comida com ela e colocá-la na boca. Em poucos minutos ela cedeu e terminou o café da manhã pacificamente.

Depois tivemos outra luta para dobrar o guardanapo dela. Quando terminou, jogou o guardanapo no chão e correu para a porta. Encontrando-a trancada, começou a chutar e gritar novamente. Passou-se mais uma hora antes de eu conseguir que ela dobrasse o guardanapo. Então a deixei sair ao sol tépido e fui para o meu quarto, atirando-me na cama, exausta. Chorei bastante e me senti melhor. Acho que terei muitas batalhas desse tipo com essa pequena antes de ela aprender as duas únicas coisas essenciais que eu posso ensiná-la, obediência e amor.

Até mais, querida. Não se preocupe; farei o melhor possível e deixarei o resto a critério de seja lá o poder que lide com as coisas com que não podemos lidar. Gosto muito da sra. Keller.


Tuscumbia, Alabama, 11 de março de 1887: Desde que lhe escrevi, Helen e eu passamos a morar sozinhas numa casinha-jardim a cerca de uns 400 metros de sua casa, a uma curta distância de Ivy Green, a propriedade deles. Cheguei rapidamente à conclusão de que não poderia fazer nada com Helen no meio da família, já que esta sempre lhe permitiu fazer exatamente o que queria.

Ela tem tiranizado a todos, mãe, pai, criados, os negrinhos com quem brinca e ninguém jamais contestou seriamente a vontade dela, exceto ocasionalmente seu irmão James, até eu chegar; e como todos os tiranos, ela se agarra tenazmente a seu direito divino de fazer o que lhe agrada. Se algum dia não conseguiu o que queria foi devido à sua inabilidade de fazer os vassalos de sua casa entender o que era. Cada desejo negado era o sinal para uma explosão temperamental, e à medida que ela está crescendo e vem se tornando mais forte tais tempestades vão ficando mais violentas. Quando comecei a ensinar Helen, fui assaltada por muitas dificuldades. Ela não cedia um ponto sem contestá-lo até o amargo fim. Eu não conseguia persuadi-la pacientemente nem entrar num acordo com ela. Para levá-la a fazer a coisa mais simples, como pentear os cabelos, lavar as mãos ou abotoar as botas, era necessário usar a força e, claro, uma cena deprimente se seguia. A família naturalmente sentia-se inclinada a interferir, especialmente o pai, que não suporta vê-la chorar. Portanto, todos cediam de bom grado para obterem a paz. Além disso, as companhias de Helen e suas experiências passadas estavam todas contra mim. Vi claramente que era inútil tentar ensinar-lhe a língua ou qualquer coisa mais até que ela aprendesse a me obedecer. Tenho pensado muito sobre isso, e quanto mais penso mais tenho certeza de que essa obediência é o portão pelo qual o conhecimento, sim, e o amor, também, entrarão na mente da criança. Como lhe escrevi, eu pretendia ir lentamente no início. Tinha idéia de que poderia conquistar o amor e a confiança de minha alunazinha pelos mesmos meios que eu usaria se ela pudesse ver e ouvir. Mas logo descobri que eu estava isolada de todas as abordagens usuais ao coração de uma criança.

Helen aceitava tudo que eu fazia para ela como natural e recusava-se a ser acariciada, não havia nenhum meio de apelar para sua afeição ou simpatia ou amor infantil de aprovação.

Ela cedia ou não e pronto. Portanto, é isso: nós estudamos, planejamos e nos preparamos para uma tarefa, e quando chega a hora da ação descobrimos que o sistema que seguimos com tanto esforço e orgulho não combina com a circunstância; então nada nos resta se não nos apoiarmos em algo dentro de nós, alguma capacidade inata para saber fazer, que não sabíamos possuir até que a hora de nossa grande necessidade a iluminasse.

Tive uma boa e franca conversa com a sra. Keller e lhe expliquei como seria difícil fazer qualquer coisa com Helen nas circunstâncias existentes. Disse-lhe que, na minha opinião, a criança deveria ser separada da família pelo menos por algumas semanas - pois precisava aprender a depender de mim e obedecer-me antes que pudéssemos fazer qualquer progresso. Após um longo momento, a sra. Keller disse que pensaria no assunto e consultaria a opinião do sr. Keller a respeito do nosso afastamento. O capitão Keller concordou com o esquema prontamente e sugeriu que a casinha-jardim na "casa antiga" fosse aprontada para nós.

Ele disse que Helen poderia reconhecer o lugar, já que tinha estado lá com freqüência; mas ela não teria idéia de seus arredores e eles, os pais, poderiam ver todos os dias se tudo corria bem, subentendendo-se, é claro, que Helen deveria desconhecer totalmente tais visitas. Apressei ao máximo os preparativos de nossa vinda e aqui estamos nós.

A casinha é um autêntico pedaço de paraíso. Ela consiste num grande aposento quadrado com uma grande lareira, uma espaçosa janela saliente e um pequeno quarto onde dorme nosso criado, um garotinho negro. Há uma varanda na frente, coberta de videiras que crescem de modo tão abundante que é preciso afastá-las para ver o jardim além. Nossas refeições são trazidas da casa e geralmente comemos na varanda, O garoto negro se encarrega de acender a lareira, quando precisamos; portanto, posso dar toda a minha atenção a Helen.

Ela ficou muito agitada no início e chutava e gritava até cair numa espécie de estupor; mas quando o jantar era trazido, comia com vontade e parecia mais animada, embora se recusasse a me deixar tocá-la. Na primeira noite dedicou-se às bonecas, e quando chegou a hora de dormir ela tirou a roupa quietamente; mas quando me sentiu entrar na cama com ela, pulou para fora pelo outro lado e nada que eu pudesse fazer conseguiu persuadi-la a voltar para a cama. Como eu tinha medo de que ela se resfriasse, insisti que voltasse para a cama. Tivemos uma briga terrível, posso lhe dizer. A luta durou quase duas horas. Nunca vi tanta força e capacidade de resistência numa criança.

Mas felizmente para nós duas, sou um pouco mais forte e tão obstinada quanto ela quando me disponho. Finalmente consegui fazê-la voltar para a cama e cobri-a, e ela se enroscou tão perto da beira da cama quanto possível.

Na manhã seguinte estava muito dócil, mas evidentemente com saudade de casa. Continuava indo até a porta, como se esperasse alguém, e de vez em quando tocava a própria face, que era seu sinal para designar a mãe, e sacudia a cabeça tristemente. Brincou com as bonecas mais do que o habitual e não queria saber de mim. É divertido e patético ver Helen com as bonecas. Não acho que ela tenha nenhuma ternura especial por elas - nunca a vi acariciá-las; mas as veste e despe muitas vezes ao dia e as maneja exatamente como vira a mãe e a babá lidarem com sua irmã bebê.

Esta manhã Nancy, a boneca preferida de Helen, parecia ter alguma dificuldade para engolir o leite que lhe estava sendo dado em grandes colheradas, pois Helen subitamente abaixou a xícara e começou a dar uns tapas nas costas da boneca, virando-a de bruços no colo, fazendo-a trotar suavemente e dando-lhe pancadinhas delicadas o tempo todo. Isso durou vários minutos; a seguir esse estado de espírito passou, Nancy foi atirada impiedosamente ao chão e empurrada para um lado, enquanto um grande, corado e penugento membro da família recebia a atenção total da mãezinha.

Helen conhece várias palavras agora, mas não tem idéia de como usá-las ou de que tudo tem um nome. Contudo, acho que aprenderá bastante rápido com o tempo. Como eu já disse antes, ela é maravilhosamente brilhante, ativa e de movimentos tão velozes quanto o relâmpago.


13 de março de 1887: Você vai ficar contente de saber que minha experiência está dando um ótimo resultado. Não tive absolutamente nenhum problema com Helen ontem ou hoje. Ela aprendeu três novas palavras e quando lhe dou os objetos cujos nomes ela aprendeu, ela os soletra sem hesitar; mas parece contente quando a aula termina.

Fizemos uma brincadeira esta manhã lá no jardim. Helen evidentemente soube onde estava assim que tocou as cercas de buxo e fez muitos sinais que eu não entendi. Sem dúvida eram sinais para os diferentes membros da família em Ivy Green.

Acabei de saber de algo que me surpreendeu muito.

Parece que o sr. Anagnos ouvira falar de Helen antes de ter recebido a carta do capitão Keller no verão passado. O sr. Wilson, um professor de Florença e amigo dos Keller, estudou em Harvard no último verão e foi para a Instituição Perkins saber se algo podia ser feito pela filha de seu amigo. Ele falou com um cavalheiro que imaginou ser o diretor da Instituição e lhe contou sobre Helen. Contou que o cavalheiro não ficou especialmente interessado, mas disse que veria se algo podia ser feito. Não é estranho que o sr. Anagnos jamais tenha falado dessa entrevista?


20 de março de 1887: Meu coração está cantando de alegria esta manhã. Aconteceu um milagre! A luz do entendimento brilhou na mente de minha alunazinha e pronto, todas as coisas estão mudadas!

A alucinada criaturinha de duas semanas atrás transformou-se numa criança gentil. Ela está sentada a meu lado enquanto escrevo, o rosto sereno e feliz, fazendo no croché uma longa peça vermelha de lã escocesa. Ela aprendeu o ponto esta semana e está muito orgulhosa de sua realização. Quando conseguiu fazer uma seqüência que atravessava o aposento, ela própria se deu tapinhas congratulatórios no braço e pôs amorosamente o primeiro trabalho de suas mãos contra o rosto. Agora ela me deixa beijá-la e, quando está num estado de espírito especialmente gentil, senta no meu colo por um ou dois minutos; mas não retribuiu os meus carinhos. O grande passo - o passo que conta - foi dado. A pequena selvagem aprendeu sua primeira lição de obediência e descobriu que o arreio é leve. Resta agora minha agradável tarefa de dirigir e moldar a bela inteligência que está começando a se mover na alma-criança. As pessoas já notam a mudança em Helen.

Seu pai dá uma espiada em nós de manhã e à noite, quando ele vai e volta do escritório e a vê enfiando contas, contente, ou fazendo linhas horizontais na cartela de bordado e exclama: "Como Helen está quieta!". Quando cheguei, os movimentos dela eram tão insistentes que se sentia que havia algo não natural e quase esquisito nela. Notei também que ela come muito menos, um fato que perturba tanto seu pai que ele fica ansioso para levá-la para casa. Diz que ela está com saudade de casa. Não concordo com ele, mas acho que teremos de deixar nosso pequeno caramanchão muito em breve.

Helen aprendeu vários substantivos esta semana. M-u-g (caneca) e m-i-l-k (leite) lhe deram mais trabalho que outras palavras. Quando ela soletra milk, aponta para a caneca, e quando soletra mug faz o sinal de derramar ou beber, o que mostra que confunde as palavras. Ela ainda não tem idéia de que tudo tem um nome.

Ontem, fiz o garoto negro entrar quando Helen estava tendo aula e aprender as letras também. Isso lhe agradou muito e estimulou sua ambição de sobrepujar Percy.

Ficava encantada quando ele cometia um erro e o fazia formar as letras várias vezes. Quando ele conseguiu formá-las de modo que a satisfizesse, ela deu uns tapinhas na cabecinha lanosa tão vigorosamente que achei que algum dos escorregões de Percy eram intencionais.

Um dia desta semana, o capitão Keller trouxe Belle, um setter de que tem muito orgulho, para nos visitar. Ele cogitou se Helen reconheceria sua velha companheira de brincadeiras. Mas Helen estava dando um banho em Nancy e não notou a cadela no início. Helen geralmente percebe o passo mais leve e estica os braços para certificar-se de que há alguém perto dela. Belle não parecia muito ansiosa para atrair a atenção da menina. Imagino que às vezes tenha sido tratada de maneira áspera por sua pequena dona. A cadela já estava na casa havia meio minuto quando Helen começou a farejar e deixou a boneca cair na bacia e tateou pela sala. Então tropeçou em Belle, agachada perto da janela ante a qual estava o capitão Keller. Era evidente que Helen reconhecera Belle, pois abraçou-a pelo pescoço e a apertou. Então sentou-se perto dela e começou a manipular suas patas. Por um segundo não conseguimos imaginar o que estava fazendo, mas quando a vimos fazer as letras d-o-l-l com os próprios dedos, entendemos que estava tentando ensinar Belle a soletrar.


28 de março de 1887: Helen e eu viemos para casa ontem. Lamento que não nos deixassem ficar mais uma semana. Acho porém que fiz o máximo possível para aproveitar as oportunidades nas duas últimas semanas e não espero ter qualquer problema sério com Helen no futuro. O maior obstáculo no caminho do progresso é andar para trás. Acho que "não" e "sim", transmitidos por um estremecimento ou um aceno de minha cabeça, tornaram-se fatos tão aparentes para ela quanto quente e frio, ou as diferenças entre dor e prazer. E não pretendo que a lição que ela aprendeu à custa de tanta dor e problema seja desaprendida. Eu ficarei entre ela e a superindulgência de seus pais. Eu disse ao capitão e à sra. Keller que eles não devem interferir comigo de nenhum modo. Tenho tentado ao máximo mostrar-lhes a terrível injustiça feita a Helen de permitirem que ela faça o que quiser em tudo e ressaltei que para ensinar crianças não podemos atender a todas as vontades delas, que isso pode ser doloroso para a criança e para sua professora.

Prometeram-me deixar-me livre e me ajudar tanto quanto possível. O progresso da filha, que não podem deixar de ver, lhes deu mais confiança em mim. É difícil para eles, claro.

Percebo que dói ver sua aflita filhinha punida e obrigada a fazer coisas contra a vontade. Poucas horas depois de minha conversa com o capitão e sra. Keller (e eles concordaram com tudo), Helen resolveu que não usaria seu guardanapo à mesa. Acho que queria ver o que aconteceria.

Tentei várias vezes colocar o guardanapo no seu pescoço, mas todas as vezes ela o arrancava, jogava-o no chão e finalmente começou a chutar a mesa. Levei o prato dela embora e comecei a tirá-la da sala. Seu pai objetou e disse que nenhum filho dele seria privado de comida, fosse por que fosse.

Helen não apareceu no meu quarto depois do jantar e não a vi de novo até a hora do café da manhã. Ela estava no seu lugar quando desci. Tinha posto o guardanapo sob o queixo, em vez de prendê-lo nas costas, como era seu costume. Ela chamou minha atenção para o novo arranjo e quando não objetei, pareceu satisfeita e deu uns tapinhas carinhosos em si mesma. Quando deixou a sala de jantar, ela pegou minha mão e deu uns tapinhas nela. Cogitei se estaria tentando "fazer as pazes". Pensei em experimentar o efeito de um pouco de disciplina tardia. Voltei à sala de jantar e peguei um guardanapo. Quando Helen subiu para a aula, arrumei os objetos sobre a mesa como o habitual, à exceção do bolo, que sempre lhe dou em pedaços como recompensa quando ela soletra uma palavra rápida e corretamente. Ela notou imediatamente a falta do bolo e fez o sinal para ele. Mostrei-lhe o guardanapo e prendi-o em torno de seu pescoço, então o arranquei, joguei-o no chão e sacudi a cabeça. Repeti essa atuação várias vezes. Acho que ela entendeu perfeitamente, pois bateu em sua mão duas ou três vezes e sacudiu a cabeça. Começamos a aula como sempre. Dei-lhe um objeto e ela soletrou seu nome (conhece 12 palavras agora). Após soletrar metade das palavras, ela parou de súbito, como se um pensamento irrompesse em sua mente, e tateou em busca do guardanapo.

Então amarrou em torno do pescoço e fez o sinal do bolo (não lhe ocorrera soletrar a palavra, veja você).

Aceitei isso como uma promessa de que se eu lhe desse um pedaço de bolo ela seria uma boa menina. Dei-lhe um pedaço maior do que o habitual e ela riu e deu tapinhas em si mesma.


3 de abril de 1887: Quase vivemos no jardim, onde tudo está crescendo, florescendo e fulgurando. Após o café-da-manhã nós saímos e observamos os homens trabalhando. Helen adora cavar e brincar na terra como qualquer criança. Nesta manhã, ela plantou sua boneca e me mostrou que esperava que ela crescesse tanto quanto eu. Você deve notar que ela é muito brilhante, mas não tem idéia de como é astuciosa.

As dez, entramos e enfiamos contas por alguns minutos.

Ela pode fazer muitas combinações agora e inventa novas com freqüência para si. Então deixei-a decidir se ela costuraria, tricotaria ou faria crochê. Ela aprendeu a tricotar muito rapidamente e está fazendo um esfregão para a mãe. Na semana passada fez um avental para a boneca e estava tão bem-feito quanto o de qualquer criança de sua idade. Mas fico sempre contente quando este trabalho encerra o dia. Costurar e fazer crochê são invenções do demônio, acho eu. Prefiro quebrar pedras na estrada real do que fazer bainha num lenço. Ás 11 horas temos ginástica.

Ela executa todos os movimentos com as mãos e usa halteres. Seu pai diz que vai preparar um ginásio para ela na casa da bomba, mas nós duas gostamos mais de uma boa e viva brincadeira do que de exercícios estabelecidos. O período de meio-dia à uma hora é dedicado ao aprendizado de novas palavras. Mas não pense que esse é o único momento em que soletro para Helen; pois soletro em sua mão tudo que fazemos o dia inteiro, embora ela ainda não tenha idéia do que signifique soletrar. Após o almoço descanso por uma hora e Helen brinca com as bonecas ou brinca animadamente no pátio com os negrinhos, seus companheiros constantes antes de minha vinda. Depois, junto-me a eles e fazemos a ronda do entorno. Visitamos os cavalos e mulas em suas baias, procuramos ovos e alimentamos os perus. Freqüentemente, quando o tempo está bom, passeamos de quatro às seis, ou vamos visitar a tia de Helen em Ivy Green ou seus primos na cidade. Helen tem uma inclinação decididamente social; ela gosta de gente em torno dela e de visitar os amigos; sobretudo, acho eu, porque eles sempre têm coisas que ela gosta de comer. Depois do jantar vamos para o meu quarto e fazemos vários tipos de coisas até as oito, quando então mudo a roupa da mocinha e a ponho na cama. Helen dorme comigo agora. A sra. Keller queria arranjar uma babá para ela, mas concluí que eu preferia ser sua babá do que tomar conta de uma negra burra e preguiçosa. Além disso, gosto que Helen dependa de mim para tudo e acho muito mais fácil ensinar-lhe coisas em momentos peculiares do que em horas estabelecidas.

Em 31 de março descobri que Helen conhecia 18 substantivos e três verbos. Aqui está uma lista das palavras. As que vêm seguidas de um X são as que ela própria pediu: boneca, caneca, alfinete, chave, cachorro, chapéu, xícara, caixa, água, leite, doce, olho (X), dedo (X), dedo do pé (X), cabeça (X), bolo, bebê, mãe, sentar, levantar, andar. No dia 1.º de abril ela aprendeu os substantivos faca, garfo, colher, pires, chá, papai, cama, e o verbo correr.


5 de abril de 1887: Preciso lhe escrever uma linha esta manhã porque algo muito importante aconteceu. Helen deu um segundo grande passo em sua educação. Ela aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo que quer saber.

Numa carta anterior escrevi-me que "caneca" e "leite" haviam dado a Helen mais trabalho do que todo o resto.

Ela confundia os substantivos com o verbo "beber". Ela não conhecia a palavra para "beber", mas fazia o gestual de beber sempre que soletrava "caneca" ou "leite". Esta manhã, enquanto estava se lavando, quis saber o nome para "água". Quando ela quer saber o nome de algo, aponta para a coisa e dá uns tapinhas na minha mão. Eu soletrei e não pensei mais nisso até depois do café-da manhã.

Então me ocorreu que, com a ajuda dessa nova palavra, eu poderia ter êxito em solucionar a dificuldade "caneca-leite". Fomos até a casa da bomba e fiz Helen colocar sua caneca sob a saída da água enquanto eu bombeava.

Quando a água gelada jorrou enchendo a caneca, eu soletrei "á-g-u-a" na mão livre de Helen. A palavra vindo tão próxima da sensação da água gelada escorrendo por sua mão pareceu espantá-la. Deixou cair a caneca e ficou paralisada.

Uma nova luz surgiu em seu rosto. Ela soletrou "água" várias vezes. Então deixou-se cair no chão e perguntou pelo nome deste, e apontou a bomba e a treliça, e subitamente, virando-se, perguntou meu nome. Soletrei "professora".

Naquele momento a babá entrou na casa da bomba com a irmãzinha de Helen; esta soletrou "bebê" e apontou para a babá. Durante todo o caminho de volta à casa Helen estava altamente excitada e aprendeu o nome de cada objeto que tocava, de modo que em poucas horas ela acrescentara 30 novas palavras a seu vocabulário. Aqui vão algumas delas: porta, abrir, fechar, dar, ir, rir e muitas outras mais.

PS. Não terminei a carta a tempo de ser postada na noite passada, portanto acrescento uma linha. Helen levantou naquela manhã como uma radiante fada. Ela flutuava de um objeto a outro perguntando o nome de tudo e me beijando por puro contentamento. Na noite passada, quando me deitei, ela correu para os meus braços espontaneamente e me beijou pela primeira vez. Pensei que meu coração estouraria, tão cheio de alegria estava.


10 de abril de 1887: Noto progresso em Helen a cada dia, quase de hora em hora. Tudo precisa ter um nome agora. A qualquer lugar que vamos, ela pergunta avidamente os nomes das coisas que não aprendeu em casa. Está ansiosa para ver os amigos e soletrar para eles e para ensinar as letras a todos que encontra.

Ela deixa de lado os sinais e a encenação que usava antes logo que tem as palavras para suprir o lugar deles, e a aquisição de uma nova palavra lhe dá o mais vivo prazer. E notamos que seu rosto fica mais expressivo a cada dia.

Decidi não dar aulas regulares no momento presente. Vou tratar Helen exatamente como uma criança de dois anos. Ocorreu-me no outro dia que é absurdo exigir que uma criança venha a um determinado lugar numa determinada hora e recite determinada lição, quando ela ainda não adquiriu um vocabulário de trabalho. Mandei Helen embora e sentei para pensar. Perguntei a mim mesma: "Como uma criança normal aprende a língua?". A resposta é simples: "Por imitação". A criança chega ao mundo com a capacidade de aprender e aprende sozinha, desde que lhe seja fornecido suficiente estímulo externo. Ela vê as pessoas fazendo coisas e tenta fazê-las também. Ouve os outros falarem e tenta falar. Mas muito antes de emitir a primeira palavra, ela entende o que lhe é dito. Ultimamente venho observando a priminha de Helen, de cerca de 15 meses, que já entende bastante coisa. Em resposta a perguntas, ela move lindamente o nariz, boca, olho, queixo, face, orelha. Se eu digo "Onde está a outra orelha do bebê?", ela aponta para a orelha corretamente. Se lhe entrego uma flor e digo "Dê a flor para a mamãe", ela a leva para a mãe. Se digo "Onde está essa levadinha?", ela se esconde atrás da cadeira da mãe, ou cobre o rosto com as mãos e me espia dali com uma expressão genuinamente levada. Ela obedece a muitas ordens como: "Vem", "Beije", "Vá até o papai", "Feche a porta", "Dê-me o biscoito". Mas ainda não a ouvi tentar dizer nenhuma dessas palavras, embora tenham sido repetidas centenas de vezes diante dela e seja totalmente óbvio que a menina as entende. Tais observações me deram uma pista para o método a ser seguido para ensinar a lingua a Helen. Vou falar na sua mão, assim como falamos ao ouvido do bebê.

Vou partir do princípio de que ela tem a capacidade de assimilação e imitação de uma criança normal. Usarei frases inteiras ao falar com ela e completarei o significado com gestos e seus sinais descritivos quando precisar, mas vou tentar não manter sua mente fixada numa coisa só. Farei todo o possível para interessá-la e estimulá-la, e espero resultados.


24 de abril de 1887: O novo esquema funciona esplendidamente. Helen conhece o significado de mais de cem palavras agora e aprende diariamente novas palavras sem a mínima suspeita de que está realizando um feito muito difícil. Aprende porque não pode evitá-lo, exatamente como o pássaro aprende a voar.

Mas não imagine que ela "fala fluentemente". Como sua priminha bebê, ela expressa frases inteiras por palavras isoladas. "Leite", com um gesto, significa "Dê-me mais leite"; "Mãe", acompanhada por um olhar interrogativo, significa "Onde está mamãe?"; "Sair" significa "Eu quero sair". Mas quando soletro em sua mão "Dê-me um pedaço de pão", ela me entrega o pão; ou se eu digo "Pegue seu chapéu e vamos dar uma caminhada", ela obedece instantaneamente.

As duas palavras "chapéu" e "caminhada" teriam o mesmo efeito; mas a frase inteira, repetida muitas vezes durante o dia, com o tempo vai se fixar em seu cérebro e aos poucos ela própria a usará.

Fazemos um joguinho que acho muito útil para desenvolver o intelecto e que incidentalmente atende ao objetivo de uma aula de linguagem. É uma adaptação do chicote-queimado. Eu escondo algo, uma bola ou um carretel, e vamos procurá-lo. Quando fizemos essa brincadeira pela primeira vez, há dois ou três dias, ela não mostrou nenhuma engenhosidade para encontrar o objeto. Procurava-o em lugares onde seria impossível colocá-lo. Por exemplo, quando escondi o carretel, ela o procurou sob a prancheta de escrever. Outra vez, escondi o carretel, e Helen o procurou numa caixinha de três centímetros de comprimento e desistiu logo da procura. Agora posso manter seu interesse no jogo por uma hora ou mais, e ela demonstra muito mais inteligência e geralmente grande engenhosidade na busca.

Nesta manhã, escondi uma bolacha. Ela a procurou em toda parte que pôde imaginar sem sucesso, e estava evidentemente desesperada quando uma idéia subitamente lhe ocorreu.

Ela veio correndo até mim e me fez abrir bem a boca, enquanto fazia-me uma investigação total. Não encontrando nenhum traço da bolacha ali, apontou para o meu estômago e soletrou "comer", significando "Você a comeu?".

Na sexta-feira fomos à cidade e encontramos um cavalheiro que deu uma guloseima a Helen; ela comeu, à exceção de um pequeno pedaço, que guardou no bolso do avental. Quando chegamos em casa, ela encontrou a mãe e por sua própria conta disse: "Dar doce bebê". A sra. Keller soletrou: "Não-bebê come-não". Helen foi até o berço, tateou a boca de Mildred e apontou para seus próprios dentes. A sra. Keller soletrou "dentes". Helen sacudiu a cabeça e soletrou "Bebê dentes-não, bebê come-não", querendo dizer, é claro, "Bebê não pode comer porque não tem dentes".


8 de maio de 1887: Não, não quero mais nenhum material de jardim-deinfância.

Usei meu pequeno estoque de contas, cartões e canudos no início porque não sabia mais o que fazer; mas a necessidade deles já passou, pelo menos no presente.

Estou começando a suspeitar de todos os sistemas elaborados e especiais de educação. Eles me parecem construídos na suposição de que cada criança é uma espécie de idiota a quem se precisa ensinar a pensar. Pelo contrário, se a criança for deixada em paz, ela pensará mais e melhor, embora de forma menos exibida. Vamos deixá-la ir e vir livremente, tocarem coisas verdadeiras e combinar suas impressões por si mesma, em vez de colocá-la dentro dos locais ante pequenas mesas redondas, com um professor de voz doce sugerindo que ela construa um muro de pedra com blocos de madeira, ou faça um arco-íris com tiras de papel colorido, ou plante mudas de árvore em redondos vasinhos de flores. Tal ensino enche a mente com associações artificiais que precisam ser alijadas antes que a criança possa desenvolver idéias independentes a partir das experiências reais.

Helen está aprendendo adjetivos e advérbios tão facilmente como aprendeu substantivos. A idéia sempre precede a palavra. Ela tinha sinais para pequeno e grande muito antes que eu viesse para cá. Se ela quisesse um pequeno objeto e lhe fosse dado um grande, ela sacudia a cabeça e pegava um pedacinho da pele de uma mão entre o polegar e o dedo da outra. Se queria indicar algo grande, esticava os dedos das duas mãos o máximo possível e os unia, como para segurar uma grande bola. No outro dia substituí as palavras pequeno e grande por esses sinais e ela imediatamente adotou as palavras e descartou os sinais.

Posso agora dizer-lhe para me trazer um livro grande ou uma travessa pequena, subir lentamente ao andar de cima, correr e andar rapidamente. Esta manhã ela usou a conjunção e pela primeira vez. Eu lhe disse para fechar a porta e ela acrescentou, "e trancar".

Subiu voando ao andar de cima alguns minutos atrás num estado de grande animação. No início não consegui entender a causa daquilo. Ela continuava soletrando "cachorro-bebê" e apontando para seus cinco dedos um depois do outro e sugando-os. Meu primeiro pensamento foi que um dos cães machucara Mildred; mas o rosto radiante de Helen afastou meus temores. Não havia nada a fazer senão ir com ela a algum lugar para ver alguma coisa. Ela foi na frente para a casa da bomba e lá no canto estava um dos setters com cinco engraçadinhos filhotes! Ensinei a Helen a palavra "filhote" e levei a mão dela até todos eles enquanto mamavam e soletrei "filhotes". Ela estava muito interessada no processo de alimentação e soletrou "mãe-cachorro" e "bebê" várias vezes. Helen notou que os olhos dos filhotes estavam fechados e disse: "Olhos-fechados. Sono-não", significando "Os olhos estão fechados mas os filhotes não estão dormindo". Ela gritou de alegria quando os filhotinhos guincharam e se contorceram em seus esforços de voltar para a mãe, e soletrou, "Bebê-come grande". Acho que sua idéia era "Bebê come muito". Ela apontou para cada filhote, um depois do outro, e para seus cinco dedos. E eu lhe ensinei a palavra cinco. Então ela ergueu um dedo e disse bebê. Eu sabia que ela estava pensando em Mildred, e soletrei: "Um bebê e cinco filhotinhos". Depois de ter brincado com eles um pouco, ocorreu-lhe que os filhotinhos deviam ter nomes especiais, como pessoas, e perguntou o nome de cada filhote. Eu lhe disse para perguntar a seu pai e ela respondeu: "Não-mãe". Ela evidentemente pensou ser mais provável que as mães soubessem sobre bebês de todos os tipos. Notou que um dos filhotes era muito menor que os outros e soletrou "pequeno", fazendo o sinal ao mesmo tempo, e eu disse "muito pequeno". Ela evidentemente entendeu que muito era o nome da coisa nova que entrara em sua mente; por todo o caminho de volta à casa ela usou a palavra muito corretamente. Uma pedra era "pequena", outra "muito pequena". Quando ela tocou sua irmãzinha, disse: "Bebê-pequeno. Filhote-muito pequeno".

Logo depois, começou a variar seus passos de grandes para pequenos, e passos pequenininhos eram "muito pequenos". Ela está percorrendo a casa agora, aplicando as palavras novas a todo tipo de objeto.

Desde que abandonei a idéia de aulas regulares, vejo que Helen aprende muito mais rápido. Estou convencida de que o tempo gasto pelo professor desencavando da criança o que colocou nela, para ter a satisfação de que o ensinamento se enraizou, é um tempo jogado fora. Penso que é muito melhor presumir que a criança está fazendo sua parte e que a semente que se plantou dará frutos no devido tempo.

Seja como for, é justo para com a criança e poupa a você muito esforço desnecessário.


16 de maio de 1887: Começamos a fazer longas caminhadas todas as manhãs, imediatamente depois do café. O tempo está bom e o ar cheio do perfume dos morangos. Nosso objetivo é Keller's Landing, no Tennessee, a uns três quilômetros de distância. Nunca sabemos como chegar lá, ou onde estamos num determinado momento; mas isso só faz aumentar nosso prazer, especialmente quando tudo é novo e estranho. Na verdade, sinto como se nunca tivesse visto nada até agora; Helen descobre tanto sobre o que perguntar ao longo do caminho. Corremos atrás das borboletas e às vezes pegamos uma. Então sentamos sob uma árvore, ou à sombra de um arbusto, e conversamos sobre a borboleta.

Depois, se esta sobreviveu à aula, nós a deixamos ir, mas geralmente sua vida e beleza são sacrificadas no altar do aprendizado, embora em outro sentido ela viva para sempre. Pois não foi transformada em pensamentos vivos? É maravilhoso como as palavras geram idéias! Cada nova palavra que Helen aprende parece levar consigo a necessidade de outras mais. Sua mente cresce por meio de sua incessante atividade.

Keller's Landing foi usada durante a guerra para o desembarque de tropas, mas há muito tempo se desmantelou e está tomada por musgos e algas. A solidão do local deixa a pessoa nostálgica. Perto do local há uma bela fontezinha que Helen chama de "copo de esquilo", pois eu lhe contei que os esquilos iam ali para beber. Ela apalpou coelhos, esquilos mortos e outros animais silvestres, e está ansiosa para ver um "esquilo-anda", que interpretado significa um "esquilo vivo". Vamos para casa geralmente na hora do jantar e Helen está ansiosa para contar à mãe tudo que viu. Esse desejo de repetir o que lhe foi contado mostra um avanço marcante no desenvolvimento de seu intelecto e é um valioso estímulo para a aquísição da linguagem. Peço a seus amigos para estimulá-la a contar-lhes seus feitos e manifestar tanta curiosidade e prazer com as pequenas aventuras dela quanto puderem. Isto gratifica o amor da criança pela aprovação e mantém seu interesse nas coisas. Isso é a base da verdadeira inter-relação.

Ela comete muitos equívocos, claro, torce palavras e frases, põe o carro na frente dos bois e se mete em tremendos emaranhados de substantivos e verbos; mas a criança que ouve também o faz. Tenho certeza de que tais dificuldades vão se diluir sozinhas. O impulso de contar é o que importa. Forneço uma palavra aqui e ali, às vezes uma frase, e sugiro algo que ela omitiu ou esqueceu. Portanto seu vocabulário cresce rapidamente e as novas palavras germinam e produzem novas idéias; e estas são o material de que o céu e a terra são feitos.


22 de maio de 1887: Meu trabalho fica mais interessante e absorvente a cada dia. Helen é uma criança maravilhosa, tão espontânea e ávida por aprender. Ela conhece agora cerca de 300 palavras e muitas expressões idiomáticas, e só aprendeu a primeira palavra três meses atrás. É um raro privilégio assistir ao nascimento, crescimento e primeiras frágeis lutas de uma mente viva; esse privilégio é meu, sendo-me dada também a possibilidade de despertar e guiar essa inteligência brilhante.

Se ao menos eu fosse mais capacitada para essa grande tarefa! Sinto-me cada dia mais inadequada. Minha mente está cheia de idéias, mas não consigo pô-las em forma de trabalho. Minha mente é indisciplinada, cheia de pulos e saltos, e aqui e ali um monte de coisas empilham-se em cantos escuros.

Como anseio por colocá-las em ordem! Se pelo menos eu tivesse alguém para me ajudar! Eu própria preciso de um professor tanto quanto Helen. Sei que a educação dessa criança será o acontecimento marcante da minha vida, se eu tiver mente e perseverança para realizá-lo. Cheguei a uma conclusão: Helen precisa aprender a usar livros - na realidade, ambas precisamos aprender a usá-los, e isso me faz lembrar - você pode, por favor, pedir ao sr. Anagnos para conseguir para mim as psicologias de Perez e de Sully? Acho que me serão úteis.

Temos tido aulas lidas todos os dias. Geralmente levamos um dos pequenos livros para alfabetização até uma grande árvore perto da casa e passamos uma ou duas horas descobrindo as palavras que Helen já conhece. Fazemos disso uma espécie de jogo e tentamos ver quem pode encontrar as palavras mais rapidamente, Helen com os dedos ou eu com os olhos, e ela aprende tantas novas palavras quanto eu posso explicar com a ajuda daquelas que já conhece.

Quando seus dedos se iluminam sobre as palavras conhecidas, ela dá gritos de prazer e me abraça e beija de alegria, especialmente se acha que me derrotou. Você ficaria muito espantada de ver quantas palavras ela aprende em uma hora dessa maneira agradável. Depois eu coloco as palavras novas em pequenas frases num quadro e às vezes é possível contar uma pequena história sobre uma abelha ou um gato ou um garotinho desse modo. Posso agora dizer a Helen para subir ao andar de cima, descer, sair ou entrar em casa, trancar ou destrancar uma porta, levar ou trazer objetos, sentar, levantar, andar, correr, deitar, arrastar-se, rolar ou trepar. Ela está encantada com as palavras-ação; portanto, não é nenhum problema ensinar-lhe os verbos.

Está sempre pronta para uma aula, e a avidez com que absorve idéias é maravilhosa. Ela se sente tão triunfante com a conquista de uma frase quanto um general que capturou a fortaleza do inimigo.

Um dos velhos hábitos de Helen, o mais forte e difícil de corrigir, é a tendência a quebrar coisas. Quando ela encontra algo no caminho, atira-o no chão não importa o que seja: um copo, uma jarra ou mesmo um lampião. Ela tem muitas bonecas e todas foram quebradas num acesso de raiva ou tédio. No outro dia um amigo lhe trouxe uma nova boneca de Memphis, e pensei em tentar fazer com que Helen entendesse que não devia quebrar a boneca. Eu a levei a fazer o movimento de bater com a cabeça da boneca na mesa e soletrei para ela: "Não, não, Helen é levada. Professora está triste", e fiz com que ela tocasse a expressão pesarosa do meu rosto. Então a fiz acariciar a boneca e beijar o lugar machucado e segurá-la gentilmente nos braços e soletrei para ela: "Helen boa, professora está feliz", e deixei-a tocar o sorriso no meu rosto. Ela repetiu esses movimentos várias vezes, imitando cada um deles, e então ficou muito quieta por um momento com uma expressão perturbada no rosto, que subitamente clareou e ela soletrou: "Helen boa" e torceu o rosto num sorriso muito grande e artificial. A seguir levou a boneca para o andar de cima, colocou-a na prateleira do alto no armário e desde então não tocou mais nela.

Por favor, dê afetuosas lembranças ao sr. Anagnos e mostre-lhe minha carta, se achar melhor. Soube que há uma criança surda e cega sendo educada na Instituição de Baltimore.


2 de junho de 1887: O calor está exorbitante. Precisamos tremendamente de chuva. Estamos todos perturbados com Helen, que se mostra muito nervosa e excitável. Fica inquieta à noite e não tem nenhum apetite. É difícil saber o que há com ela. O médico diz que sua mente está ativa demais; no entanto, como a impediremos de pensar? Ela começa a soletrar no minuto em que acorda de manhã e continua por todo o dia. Se me recuso a falar, ela soletra em sua própria mão e aparentemente entabula a mais animada conversa consigo mesma.

Dei-lhe minha lousa de braile para brincar, achando que o mecânico perfurar do papel seria divertido para ela e lhe descansaria a mente. Mas qual não foi o meu espanto quando descobri que a feiticeirazinha estava escrevendo cartas! Eu não tinha idéia de que ela soubesse o que era uma carta. Ela tem ido freqüentemente comigo até o correio para postar cartas e acho que repeti para ela coisas que escrevi para você. Ela sabia também que às vezes escrevo "cartas para meninas cegas" na lousa, mas eu não imaginava que ela tivesse uma idéia clara do que fosse uma carta.

Um dia ela me trouxe uma folha de papel onde havia feito vários furos e queria que eu a colocasse num envelope e a levasse ao correio. Ela disse: "Frank-carta". Perguntei-lhe o que havia escrito a Frank. Ela respondeu: "Muitas palavras.

Filhote mãe cachorro-cinco. Bebê-chora. Calor. Helen anda-não. Fogo sol-mau. Frank-venha. Helen-beijo Frank. Morangos-muito bons".

Helen está quase tão ansiosa para ler quanto para falar.

Descobri que ela pega o principal de frases inteiras, capturando pelo contexto o significado de palavras que não conhece; e suas ávidas perguntas indicam o alcance exterior de sua mente e seu potencial pouco comum.

Na outra noite, quando fui para cama, encontrei Helen dormindo profundamente agarrada a um grande livro.

Evidentemente estivera lendo e adormecera. Quando lhe perguntei sobre ele na manhã seguinte, ela disse: "Livro-grito", e completou o significado tremendo e dando outros sinais de medo. Ensinei-lhe a palavra medo e ela disse: "Helen não tem medo. Livro tem medo. Livro vai dormir com menina". Eu lhe disse que o livro não tinha medo e precisa dormir no lugar dele, e que "menina" não deve ler na cama.

Ela fez uma expressão muito levada e aparentemente entendeu que eu descobri sua astúcia.

Fico contente que o sr. Magnos pense tão bem de mim.

Mas "gênio" e "originalidade" são palavras que não deviamos usar levianamente. Se na verdade elas se aplicam ainda que remotamente a mim, não vejo por que mereça qualquer louvor em relação ao assunto.

E aqui mesmo queria dizer algo que é apenas para os seus ouvidos. Algo dentro de mim me diz que terei um êxito além dos meus sonhos. Não fossem algumas circunstancias que tornam tal idéia altamente improvável e mesmo absurda, penso que a educação de Helen ultrapassaria em interesse e maravilhamento a realização do dr. Howe. Sei que ela tem um potencial extraordinário e acredito que poderei desenvolvê-lo e moldá-lo. Não posso lhe dizer como sei disso. Não tinha nenhuma idéia de como iniciar o trabalho; estava tateando no escuro. Mas de algum modo agora sei, e sei que sei. Não posso explicar, mas quando as dificuldades surgem não me sinto perplexa ou em dúvida. Sei como resolvê-las; pareço adivinhar as necessidades peculiares de Helen. É maravilhoso.

As pessoas já estão tendo um profundo interesse por Helen. Ninguém pode vê-la sem ficar impressionado. Ela não é uma criança comum, e o interesse das pessoas em sua educação também não será um interesse comum. Por isso, sejamos extremamente cuidadosas com o que dizemos ou escrevemos sobre ela. Eu lhe escreverei francamente e contarei tudo, com uma condição. É a seguinte: você precisa me prometer jamais mostrar minhas cartas para alguém. Minha linda Helen não será transformada num prodígio se eu puder evitá-lo.


5 de junho de 1887: O calor deixa Helen lânguida e quieta. Na verdade, o pavoroso calor nos reduziu a todos a um estado semiliquido.

Ontem Helen tirou as roupas e ficou em pêlo por toda a tarde. Quando o sol chegou até a janela onde estava sentada com seu livro, ela levantou impaciente e fechou a janela.

Mas quando o sol entrava mesmo assim, ela veio até mim com um olhar pesaroso e soletrou enfaticamente: "Sol é menino mau. Sol precisa ir para cama".

Ela está um amor de criança agora, a coisa mais bonitínha, e tão carinhosa! Certo dia, quando quis que ela me trouxesse um copo d'água, ela disse: "Pernas muito cansadas. Pernas choram muito".

Ela ficou muito interessada em alguns pintinhos abrindo caminho para o mundo com pequenas bicadas esta manhã. Deixei-a segurar uma casca de ovo e sentir o pintinho fazendo "tec tec". O espanto de Helen ao sentir a minúscula criatura lá dentro não pode ser transmitido numa carta. A galinha foi muito gentil e não fez qualquer objeção às nossas investigações. Além dos pintinhos, temos vários adendos à família - dois bezerros, um potro e uma penca de porquinhos engraçados. Você se divertiria ao me ver segurar um porco guinchando nos braços enquanto Helen o apalpa todo e faz inúmeras perguntas - perguntas nada fáceis de responder. Após ver os pintinhos sair do ovo, ela perguntou: "O porco bebê cresceu num ovo? Onde estão muitas cascas?".

A cabeça de Helen mede cerca de 53 centímetros, e a minha, cerca de 55 centímetros. Você vê, a minha tem apenas dois centímetros a mais!


12 de junho de 1887: O tempo continua quente. Helen está mais ou menos a mesma coisa - pálida e magra; mas você não deve pensar que ela esteja de fato doente. Tenho certeza de que o calor é o responsável por sua condição, e não a natural e bela atividade de sua mente. É claro que não sobrecarregarei seu cérebro. Somos bastante importunadas por gente que assume a responsabilidade do mundo quando Deus a negligencia. Eles nos dizem que Helen está "fazendo coisas em excesso", que sua mente está ativa demais (essas mesmas pessoas achavam que ela não tinha mente alguma poucos meses atrás!) e sugerem muitos remédios impossíveis e absurdos. Mas até agora ninguém parece ter pensado em cloroformizá-la, o que é, penso eu, o único modo eficaz de parar o exercício natural das faculdades dela. É esquisito como as pessoas se prontificam sempre com conselhos em qualquer emergência real ou imaginária, e por mais que eu lhes mostre repetidamente que estão erradas, continuam a oferecer suas opiniões como se as tivessem recebido do Todo-Poderoso!

Estou ensinando Helen a escrever em guia de linha como uma espécie de distração. Isso lhe dá algo para fazer e a mantém quieta, o que acho desejável enquanto esse tempo enervante continuar. Helen tem uma absoluta mania de contar. Já contou tudo na casa e agora está contando as palavras em sua cartilha. Espero que lhe ocorra contar os cabelos da cabeça. Se ela pudesse ver e ouvir, acho que se livraria da energia supérflua por meios que, talvez, não sobrecarregassem tanto seu cérebro, embora eu suspeite que a criança comum encare seu brinquedo bem seriamente. O garotinho que move em círculos o seu "Trem de Nova York" no quarto das crianças, fazendo "curvas em ferradura" jamais sonhadas por engenheiros com menos imaginação, está concentrando toda a alma em sua locomotiva de brinquedo.

Ela acaba de dizer, com uma expressão preocupada: "Garota-não conta muito grande (muitas) palavras". Eu disse: "Não, vá brincar com Nancy". Mas tal sugestão não lhe agradou, pois respondeu: "Não, Nancy está muito doente".

Perguntei qual era o problema e ela disse: "Muito (muitos) dentes deixam Nancy doente". (Os dentes de Mildred estão nascendo.)

No outro dia, contei a Helen que a videira na cerca era uma "trepadeira". Ela achou isso muito divertido e começou imediatamente a descobrir analogias entre seus movimentos e o das plantas. Eles correm, trepam, saltam, pulam, curvam, caem, sobem e balançam; mas me diz maliciosa que ela é uma "planta-anda".

Na noite passada, Helen segurou um macio pano de lã enquanto eu o enrolava. Depois começou a girar e girar, soletrando para si mesma o tempo todo "Vento rápido, vento lento" e aparentemente gostando muito do seu conceito.


15 de junho de 1887: Tivemos uma gloriosa tempestade de trovões na noite passada e está muito mais fresco hoje. Estamos todos refrescados, como se tivéssemos tomado um banho de chuveiro.

Helen mostra-se viva como um grilo. Ela queria saber se os homens estavam atirando no céu quando sentiu o trovão e se as árvores e flores beberam toda a chuva.


19 de junho de 1887 [Este trecho foi publicado no Relatório de 1887 da Instituição Perkins.]:

Minha alunazinha continua a manifestar a mesma avidez por ler quanto no princípio. Cada momento em que está acordada é gasto no esforço de satisfazer seu inato desejo de conhecimento, e sua mente trabalha de modo tão incessante, que chegamos a temer por sua saúde. Mas o apetite, que a abandonara há algumas semanas, voltou e seu sono parece mais quieto e natural. Ela fará sete anos no dia 27 deste mês. Sua altura é de 1,25 m e sua cabeça tem 53 centímetros de circunferência, traçando-se a linha em torno da cabeça de modo a passar sobre as saliências dos ossos parietal e frontal. Acima dessa linha a cabeça ergue-se uns três centímetros.

Durante nossas caminhadas soletramos continuamente e é uma delícia acompanhar isso com ações como saltar, pular, correr, andar rápido, andar devagar, e coisas assim.

Quando perde um ponto (no tricô ou crochê), ela diz: "Helen errada, professora vai chorar". Se quer água, diz: "Dê Helen água". Ela conhece 400 palavras, além de numerosos nomes próprios. Numa aula eu lhe ensinei essas palavras: estrado, colchão, lençol, cobertor, chupeta, colcha, travesseiro.

No dia seguinte descobri que ela se lembrava de todas, exceto colcha. No mesmo dia, em diferentes momentos, ela aprendeu as palavras: casa, mato, poeira, balanço, melado, rápido, lento, xarope-de-bordo e balcão, e não esqueceu nenhuma.

Isso lhe dará uma idéia da capacidade de retenção da memória dela. Helen pode contar até 30 rapidamente e escrever sete das letras e as palavras que podem ser feitas com a guia de linha. Ela parece entender o que é escrever cartas e está impaciente para "escrever Frank carta". Gosta de perfurar o papel com um estilete e suponho que seja porque pode examinar o resultado de seu trabalho; mas eu a observei um dia e fiquei muito surpresa em descobrir que ela imaginava estar escrevendo uma carta. Soletrava "Eva" (uma prima de quem ela gosta muito) com uma mão, depois fazia de conta que a escrevia; depois soletrava "doente na cama", e escrevia isso. Continuou assim por quase uma hora. Ela estava (ou imaginava estar) pondo no papel as coisas que a tinham interessado. Quando terminou a carta, levou-a para a mãe e soletrou: "Frank carta", e deu-a ao irmão para que a levasse ao correio. Ela já havia ido comigo levar cartas ao correio.

Helen reconhece instantaneamente uma pessoa com quem já entrou em contato uma vez e soletra seu nome.

Ao contrário de Laura Bridgman, ela gosta de cavalheiros, e notamos que fica amiga de um cavalheiro mais rapidamente do que de uma senhora.

Está sempre pronta para partilhar qualquer coisa que tenha consigo, geralmente guardando muito pouco para si mesma. Gosta muito de roupas e de todo tipo de enfeites e objetos bonitos, e fica muito infeliz quando descobre um furo em qualquer coisa que esteja usando. Mesmo quando já está tão sonolenta que mal pode ficar de pé, insiste que se faça papelotes em seu cabelo. Ela achou um furo em sua bota na Outra manhã e, após o café, foi até o pai e soletrou: "Helen bota nova Simpson (seu irmão) charrete loja homem". Pode-se facilmente entender o que quer dizer.


3 de julho de 1887: Houve uma grande perturbação esta manhã. Ouvi Helen gritando e corri para ver o que estava havendo. Encontrei-a tendo um terrível acesso de raiva. Eu esperava que isso jamais acontecesse de novo. Ela vinha sendo tão gentil e obediente nos últimos dois meses que achei que o amor tivesse submetido o leão; pelo visto o leão apenas dormia.

De qualquer modo lá estava ela, rasgando, arranhando e mordendo Viney como uma criatura selvagem. Parece que Viney, temendo que Helen quebrasse o copo que estava enchendo de pedras, tentara tirá-lo das suas mãos. Helen resistira e Viney tentara tirar o copo à força, e suspeito que tenha esbofeteado a menina ou feito algo para causar essa explosão incomum de temperamento. Quando peguei a mão de Helen, ela tremia violentamente e começou a chorar. Perguntei qual era o problema e ela soletrou: "Viney-má" e começou a bater nela e chutá-la com renovada violência. Segurei-lhe firmemente as mãos até que ficasse mais calma.

Mais tarde Helen foi ao meu quarto parecendo muito triste e quis me beijar. Eu disse: "Não posso beijar menina levada". Ela soletrou: "Helen é boa, Viney é má". Eu disse: "Você bateu em Viney, chutou-a e a machucou. Você foi muito levada e eu não posso beijar menina levada". Ela ficou imóvel por um momento e era evidente por seu rosto congestionado e perturbado que travava uma luta em sua mente. Então disse: "Helen não amou (ama) professora. Helen ama mãe. Mãe vai chicotear Viney". Eu lhe disse que era melhor que ela não falasse mais nisso, mas pensasse. Ela sabia que eu estava muito perturbada e teria gostado de ficar perto de mim; mas achei melhor para ela ficar sozinha. À mesa do jantar ela ficou profundamente tocada porque eu não comi e sugeriu que "cozinheira faz chá para professora". Mas eu lhe disse que meu coração estava triste e não tinha vontade de comer. Ela começou a chorar, a soluçar e se agarrou a mim.

Estava muito agitada quando subimos; então tentei interessá-la num curioso inseto chamado bicho-pau. É a coisa mais esquisita que já vi - um feixezinho de gravetos amarrados no meio. Não acreditei que estivesse vivo até que o vi se mover. Mesmo assim ele parecia mais um brinquedo mecânico do que uma criatura viva. Mas a pobre menina não conseguia fixar sua atenção. Seu coração estava muito perturbado e ela queria falar sobre isso.

Ela disse: "Inseto pode saber sobre menina levada? Inseto está muito feliz?". Então, me abraçando pelo pescoço, disse: "Eu sou (vou ser) boa amanhã. Helen é (vai ser) boa todos dias".

Eu disse: "Você vai pedir desculpas a Viney por tê-la arranhado e chutado?". Ela sorriu e respondeu: "Viney não (sabe) soletrar palavras". Eu disse: "Vou dizer à Viney que você pede desculpas. Você vai comigo procurar Viney?". Ela mostrou muito boa-vontade em ir e deixou Viney beijá-la, embora não retribuisse o carinho. Desde então ela tem estado incomumente afetuosa e me parece que há uma doçura, uma beleza de alma em seu rosto que eu não vira antes.


31 de julho de 1887: A escrita a lápis de Helen é excelente, como você verá na carta que incluo e que ela escreveu para sua própria diversão. Estou lhe ensinando o alfabeto braile e ela está encantada em poder fazer palavras sozinha e tocá-las.

Helen chegou agora ao estágio interrogativo de seu desenvolvimento. O dia inteiro é "o quê?", "por quê?", "quando", mas especialmente "por quê?"; e à medida que sua capacidade de compreensão cresce, suas perguntas ficam mais insistentes. Lembro-me de como eu costumava achar insuportável o interrogatório dos filhos de minhas amigas; mas sei agora que essas perguntas indicam o crescente interesse da criança na causa das coisas. O "por quê" é aporta através da qual ela entra no mundo da razão e da reflexão. "Como o carpinteiro constrói a casa?" "Quem põe os pintos nos ovos?" "Por que Viney é negra?" "Moscas mordem, por quê?" "As moscas não sabem morder?" "Por que pai mata ovelha?" Claro que ela faz muitas perguntas que não são tão inteligentes quanto essas. Sua mente não é mais lógica do que as mentes de crianças comuns. Em geral, suas perguntas são análogas às que são feitas por uma brilhante criança de três anos de idade, mas seu desejo de conhecimento é muito sério, as perguntas nunca são tediosas, embora explorem pesadamente meu escasso estoque de informações e sobrecarreguem ao máximo minha engenhosidade.

Recebi uma carta de Laura [Bridgman] no último domingo. Por favor, diga a ela que mando meu carinho e que Helen lhe manda um beijo. Li a carta à mesa do jantar e a sra. Keller exclamou: "Puxa, srta. Annie, Helen escreve quase tão bem quanto ela agora!". É verdade.


21 de agosto de 1887: Passamos ótimos dias em Huntsville. Todos ficaram encantados com Helen e a cobriram de presentes e beijos. Na primeira noite ela aprendeu o nome de todas as pessoas no hotel, cerca de 20, acho. Na manhã seguinte ficamos atônitos ao descobrir que ela se lembrava de todos eles e reconhecia cada um que conhecera na noite anterior. Ela ensinou aos jovens o alfabeto e vários deles aprenderam a falar. Uma das meninas ensinou-a a dançar a polca e um meninozinho mostrou-lhe seus coelhos e soletrou seus nomes para ela.

Helen ficou encantada e demonstrou seu prazer abraçando e beijando o rapazinho, o que o deixou muito embaraçado.

Fotografamos Helen com o peludo poodlezinho de olhos vermelhos, que conquistou as boas graças de minha dama por truques e astuciosas manobras conhecidos apenas pelos cães com instinto para obter o que querem.

Ela tem falado incessantemente desde sua volta sobre o que fez em Huntsville e notamos uma melhora muito nítida em sua capacidade de usar a linguagem. De modo bastante curioso, um passeio que fizemos ao alto do Monte Sano, uma linda montanha não longe de Huntsville, parece tê-la impressionado mais do que qualquer outra coisa, exceto o maravilhoso poodle. Helen lembra de tudo que lhe contei a respeito dele, e ao contá-lo para sua mãe repetiu as mesmas palavras e frases que eu tinha usado na minha descrição.

Concluindo, ela perguntou à mãe se gostaria de ver "montanha muito alta e bonita chapéu nuvem". Eu não usara essa expressão. Eu havia dito: "As nuvens tocam a montanha suavemente, como belas flores". Veja você, tive de usar palavras e imagens familiares a ela pelo tato. Mas parece quase impossível que meras palavras possam transmitir a alguém que nunca viu uma montanha a mais leve idéia da grandeza dessa.

E não vejo como alguém possa saber que impressão ela recebeu, ou a causa de seu prazer no que lhe foi dito.

Tudo que sabemos com certeza é que ela tem uma boa memória, imaginação e a faculdade de associação.


28 de agosto de 1887: Eu gostaria de que as coisas parassem de nascer! "Novos filhotes", "novos bezerros" e "novos bebês’" mantêm o interesse de Helen no porquê e no objetivo das coisas no auge do calor. A chegada de um novo bebê em Ivy Green no outro dia foi a oportunidade de um novo jorro de perguntas sobre a origem dos bebês e coisas vivas em geral. "Onde Leila conseguiu novo bebê? Como o médico sabia onde achar bebê? Leila disse ao médico para pegar bebê novo pequeno? Onde o médico achou Guy e Prince?" (filhotes) "Por que Elizabeth é irmã de Evelyn?" etc. etc.

Tais perguntas às vezes eram feitas sob circunstâncias que as tornavam embaraçosas. Resolvi que algo precisava ser feito. Se era natural para Helen fazer tais perguntas, era meu dever respondê-las. Acho que é um grande equívoco despistar as crianças com falsidades e absurdos, quando o crescente poder de observação e discriminação excita nelas um desejo de conhecer as coisas. Desde o início, decidi responder a todas as perguntas de Helen da melhor forma que minha habilidade permitia, um modo inteligível para ela e ao mesmo tempo verdadeiro. "Por que eu trataria essas perguntas de modo diferente?", perguntei-me. Decidi que não havia motivo, exceto minha deplorável ignorância dos grandes fatos que fundamentam nossa existência fisica. Foi sem dúvida por causa dessa ignorância que enveredei correndo onde anjos mais experientes temem pisar. Não há uma alma viva nessa região do mundo a quem eu possa pedir conselho sobre isso, ou na verdade sobre qualquer outra dificuldade educacional. A única coisa que posso fazer numa perplexidade é seguir adiante e aprender com os erros.

Mas nesse caso acho que não cometi erros. Levei Helen e minha botânica, Como as plantas crescem, até a árvore, onde freqüentemente vamos para ler e estudar, e contei-lhe em palavras simples a história da vida das plantas. Lembrei-a do milho, feijões e melancias que ela plantara na primavera e disse-lhe que o milho alto na horta e os feijões e as melancias haviam crescido daquelas sementes. Expliquei-lhe como a terra guarda as sementes quentes e úmidas até que as pequenas folhas fiquem fortes o suficiente para brotarem à luz e ao ar onde podem respirar, crescer, florescer e fazer mais sementes, das quais outras plantas bebês crescerão.

Tracei uma analogia entre planta e vida animal e contei a Helen que as sementes são tão ovos quanto os ovos das galinhas e os ovos dos pássaros - que a mãe galinha mantém seus ovos quentes e secos até os pintinhos saírem. Fiz com que entendesse que toda vida vem de um ovo. A mãe pássaro põe os ovos num ninho e os mantém quentes até que os ovos sejam rompidos. A mãe peixe põe os ovos onde sabe que ficarão mais úmidos e seguros até ser tempo dos peixinhos saírem. Disse-lhe que podia chamar o ovo de o berço da vida. Disse-lhe também que outros animais como o cão e a vaca e seres humanos não põem ovos, mas nutrem os filhos em seu próprio corpo.

Não tive dificuldade em lhe deixar claro que se plantas e animais não produzissem filhotes da mesma espécie que eles deixariam de existir e tudo no mundo logo morreria.

Mas passei pela função do sexo tão levemente quanto possível. Contudo, tentei lhe dar a idéia de que o amor é o grande continuador da vida. O assunto era difícil e meu conhecimento inadequado; mas estou contente por não ter me esquivado de minha responsabilidade; pois mesmo tropeçando, hesitante e incompleta, minha explicação tocou profundas cordas de resposta na alma de minha alunazinha, e a rapidez com que ela compreende os grandes fatos da vida física confirma minha opinião de que a criança, quando vem ao mundo, tem adormecida nela todas as experiências da raça. Tais experiências são como negativos fotográficos até que a linguagem as desenvolva e faça surgir as imagens-memória.


4 de setembro de 1887: Helen recebeu esta manhã uma carta do tio, o doutor Keller. Ele a convidou para ir visitá-lo em Hot Springs. O nome Hot Springs (fontes quentes) a interessou e ela fez muitas perguntas a respeito. Helen sabe da existência de fontes frias. Há diversas perto de Tuscumbia; uma fonte muito grande forneceu seu nome à cidade. "Tuscumbia" é uma palavra indígena que significa "grande fonte". Mas ela ficou surpresa de que água quente saísse do chão. Queria saber quem acendeu o fogo debaixo do chão e se era como o fogo nos fogões, e se queimava as raízes das plantas e árvores.

Ela ficou muito contente com a carta e, depois de fazer todas as perguntas em que conseguiu pensar, levou-a para a mãe, que costurava na sala, e a leu para ela. Foi divertido vê-la segurar a carta ante seus olhos e soletrar as frases nos dedos, exatamente como eu o fizera. Posteriormente ela tentou lê-la para Belle (a cadela) e Mildred. A sra. Keller e eu observamos a comédia infantil da porta. Belle estava dormindo e Mildred distraída. Helen parecia muito séria e, uma ou duas vezes, quando Mildred tentou pegar a carta, ela afastou a mão, impaciente. Finalmente Belle levantou, sacudiu-se e estava prestes a se afastar quando Helen a pegou pelo pescoço e a forçou a se deitar de novo.

Enquanto isso, Mildred pegara a carta e se arrastara para longe com ela. Helen apalpou o chão em sua busca, mas, não a encontrando ali, evidentemente suspeitou de Mildred; pois emitiu o pequeno som que significa "Bebê chama". Então se ergueu e ficou estática, como se escutando com os pés o "tump, tump" de Mildred. Quando localizou o som, partiu rapidamente em direção à culpadazinha e a encontrou mastigando a preciosa carta! Isso foi demais para Helen, que arrebatou a carta e deu um sólido tapa nas mãozinhas da irmã. Sra. Keller pegou o bebê nos braços e quando conseguimos acalmá-la, perguntei a Helen: "O que fez com o bebê?". Ela pareceu perturbada e hesitou um momento antes de responder. Então disse: "Menina errada comeu carta. Helen bateu menina muito errada". Eu disse que Mildred era muito pequena e não sabia que era errado pôr a carta na boca. "Eu disse bebê, não, não, não muito (muitas) vezes", foi a resposta de Helen. Eu disse: "Mildred não entende seus dedos e temos de ser muito delicadas com ela". Ela sacudiu a cabeça. "Bebê não pensa. Helen vai dar bebê carta bonita", e com isso ela subiu correndo ao andar de cima e trouxe para baixo uma folha cuidadosamente dobrada, em braile, na qual escrevera algumas palavras e a deu a Mildred, dizendo: "Bebê pode comer todas palavras".


18 de setembro de 1887: Não me espanta que você tenha ficado surpresa de saber que eu escreveria algo para o relatório. Eu mesma não sei como aconteceu, a não ser que tenha ficado cansada de dizer "não", além do capitão Keller insistir comigo para que eu o fizesse. Ele concordou com o sr. Anagnos que era meu dever dar a outros o beneficio da minha experiência. Além disso, eles disseram que a maravilhosa libertação de Helen poderia ser um presente para outras crianças aflitas.

Quando me sento para escrever, minhas idéias congelam, e quando as ponho no papel parecem soldadinhos de chumbo enfileirados e, se por acaso aparece um vivo, eu o coloco numa camisa-de-força. Contudo, é bastante fácil dizer que Helen é maravilhosa, porque o é de fato. Fiz um registro de tudo que ela disse na semana passada e descobri que conhece 600 palavras. Isso porém não significa que sempre as use corretamente. As vezes suas frases são como quebra-cabeças chineses; mas o tipo de quebra-cabeça que as crianças fazem quando tentam expressar suas idéias meio formuladas com uma linguagem arbitrária. Helen tem o verdadeiro impulso da lingua e mostra grande fertilidade de recursos ao fazer as palavras, ao seu comando, transmitirem o que ela quer dizer.

Ultimamente anda muito interessada em cor. Descobriu a palavra "marrom" em sua cartilha e queria saber o seu significado. Eu lhe disse que seu cabelo era marrom e ela perguntou: "Marrom é muito bonito?". Depois de percorrermos a casa toda e de eu ter-lhe dito a cor de tudo que ela tocava, sugeriu que fôssemos ao galinheiro e ao celeiro; mas eu lhe disse que tinha de esperar outro dia porque eu estava muito cansada. Sentamo-nos na rede, mas ali não havia descanso para os cansados. Helen estava ávida para conhecer "mais cor". Cogito se ela tem alguma vaga idéia de cor - qualquer impressão reminiscente de luz e som.

Parece que uma criança que enxergue e ouça até 19 meses deve reter parte de suas primeiras impressões, ainda que de forma tênue. Helen fala muito sobre coisas que não pode conhecer pelo tato. Faz muitas perguntas sobre o céu, o dia e a noite, os oceanos e montanhas. Ela gosta que eu lhe conte o que vejo nos quadros.

Mas parece que perdi o fio do meu discurso. "De que cor é pensar?", foi uma de suas tranqüilas perguntas, enquanto nos balançávamos de um lado e para outro na rede.

Eu lhe disse que quando estamos felizes nossos pensamentos têm cores vivas, e quando somos levados eles ficam tristes. Rápida como um relâmpago, ela disse: "Meu pensamento é branco, o pensamento de Viney é preto". Veja, a idéia dela era que a cor de nossos pensamentos combinava com a de nossa pele. Não pude deixar de rir, pois naquele mesmo momento Viney estava berrando a plenos pulmões:

"I long to sit on dem jasper walls
And see dem sinners stumble and fall."

[Quero me sentar em seus muros jaspes a luzir/e ver todos os pecadores tropeçar e cair! (Tradução livre. N da T)]


3 de outubro de 1887: Meu registro para o relatório foi terminado e enviado. Tenho duas cópias e vou lhe mandar uma, mas você não deve mostrá-la a ninguém. É propriedade do sr. Anagnos até ser publicado.

Suponho que as meninas tenham gostado da carta de Helen. Ela a escreveu de sua cabeça, como as crianças dizem.

Helen fala muito do que fará quando for a Boston. Outro dia perguntou: "Quem fez todas as coisas e Boston?". Ela diz que Mildred não irá porque "Bebê chora todos os dias".


25 de outubro de 1887: Helen escreveu outra carta para as meninas ontem e seu pai a enviou para o sr. Anagnos. Peça a ele para vê-la. Helen começou a usar os pronomes por sua própria conta. Esta manhã, por acaso, eu disse: "Helen vai lá em cima". Ela riu e disse: "Professora está errada. Você vai lá em cima". Este é outro grande passo adiante. É sempre assim. As perplexidades de ontem são estranhamente simples hoje, e as dificuldades de hoje se tornam o passatempo de amanhã.

O rápido desenvolvimento da mente de Helen é lindo de se ver. Duvido se algum professor teve algum dia um trabalho tão interessante e absorvente. Deve haver uma estrela da sorte nos céus do meu nascimento, e estou começando a sentir sua influência benéfica.

Recebi duas cartas do sr. Anagnos na semana passada.

Ele está mais grato pelo meu relato do que a lingua inglesa pode exprimir. Agora quer um retrato "da querida Helen e sua ilustre professora, para abrilhantar as páginas do próximo relatório anual".


Outubro, 1887: O senhor provavelmente já leu, antes, a segunda carta de Helen para as meninas. Estou consciente de que o progresso que ela fez entre a redação das duas cartas parece inacreditável.

Somente aqueles que estão com ela diariamente podem perceber o rápido avanço que vem obtendo na aquisição da linguagem. O senhor verá pela carta dela que Helen usa muitos pronomes corretamente. Ela raramente os usa de forma errada ou os omite numa conversa. Sua paixão por escrever cartas e pôr os pensamentos no papel torna-se cada vez mais intensa. Ela agora conta histórias em que a imaginação desempenha um papel importante. Está começando também a perceber que não é como as outras crianças. No Outro dia ela perguntou: "O que meus olhos fazem?". Disse-lhe que eu podia ver coisas com os olhos e que ela podia ver com os dedos. Após pensar um momento, ela respondeu: "Meus olhos são maus!". A seguir, mudou a frase para "Meus olhos são doentes!".

 

O primeiro relato da srta. Sullivan, publicado no relatório oficial da Instituição Perkins para o ano de 1887, é um breve sumário do que está amplamente registrado em suas cartas. Aqui se segue a última parte, começando com o grande dia, 5 de abril, em que Helen aprendeu o significado da palavra water (água).

Em seu relato, a srta. Sullivan fala de "aulas" como se estas se dessem numa ordem regular. Tal é o efeito de colocar tudo num sumário. "Aula" é formal demais para o contínuo trabalho cotidiano.


Certo dia eu a levei para a cisterna. Enquanto a água jorrava da bomba, soletrei a palavra "á-g-u-a". Instantaneamente Helen me deu um tapinha na mão para que eu a repetisse e então fez a palavra sozinha com um rosto radiante. Naquele momento a babá entrou na casa da cisterna levando a irmãzinha de Helen. Pus a mão de Helen no bebê e formei as letras "b-e-b-ê", que ela repetiu sem ajuda e com a luz de uma nova inteligência no rosto.

Quando voltamos para casa, tudo que Helen tocava tinha de ser nomeado para ela e raramente a repetição era necessária. Nem a extensão da palavra nem a combinação de letras pareciam fazer qualquer diferença para a criança.

Na verdade, ela lembra heliotropio e crisântemo mais rapidamente do que nomes mais curtos. No final de agosto ela conhecia 625 palavras.

Essa aula foi seguida por outra sobre palavras indicando relações-espaço. O vestido dela era guardado dentro do baú e depois estendido sobre ele, e tais preposições eram soletradas para ela. Helen aprendeu muito rapidamente as diferenças entre dentro e sobre, embora algum tempo se passasse antes dela poder usar tais palavras em suas próprias frases.

Sempre que possível, ela era induzida a bancar o ator na aula e se encantava de ficar sobre a cadeira e ser colocada dentro do guarda-roupa. Em conexão com essa aula, ela aprendeu os nomes dos membros da família e a palavra está. "Helen está dentro do guarda-roupa", "Mildred está no berço", "Caixa está na mesa", "Papai está na cama" são tipos de frases construídas por ela na última parte de abril.

A seguir veio uma aula sobre palavras expressando uma qualidade positiva. Para a primeira aula eu tinha duas bolas, uma de lã, grande e macia, e a outra, uma bola comum.

Ela percebeu a diferença de tamanhos imediatamente.

Pegando a bola comum, fez o sinal habitual para pequeno, isto é, beliscando um pedacinho de pele de uma das mãos.

Então pegou a outra bola e fez o sinal para grande esticando bem as mãos sobre ela. Substituí os sinais pelos adjetivos grande e pequeno. Então a atenção dela foi atraída para a dureza de uma bola e a maciez da outra, e ela aprendeu macio e duro. Alguns minutos depois ela apalpou a cabeça da irmãzinha e disse para a mãe: "A cabeça de Mildred é pequena e dura". A seguir tentei ensinar-lhe o significado de rápido e lento. Ela me ajudou a enrolar um pouco de lã no outro dia, primeiro rápido e depois lentamente. Então eu lhe disse com o alfabeto manual, "enrolar rápido" ou "enrolar lento", segurando suas mãos e mostrando-lhe como fazer do modo que eu queria. No dia seguinte, enquanto se exercitava, ela soletrou: "Helen enrola rápido", e começou a andar rapidamente. Então disse: "Helen enrola lento", novamente juntando a ação às palavras.

Pensei então que era tempo de ensiná-la a ler palavras impressas. Um pedaço de papel onde fora impressa a palavra caixa em letras em relevo foi colocado sobre o objeto; tentei a mesma experiência com muitos artigos, mas ela não compreendeu imediatamente que o nome-etiqueta representava a coisa. Então peguei uma folha do alfabeto e coloquei seu dedo sobre a letra A, ao mesmo tempo em que fazia A com meus dedos. Ela moveu o dedo de um tipo impresso para outro enquanto eu formava cada letra nos meus dedos. Ela aprendeu todas as letras num só dia, tanto as maiúsculas quanto as minúsculas. A seguir virei a primeira página da cartilha e a fiz tocar na palavra gato, soletrando-a nos meus dedos ao mesmo tempo. Ela apreendeu a idéia instantaneamente e me pediu para encontrar cachorro e muitas outras palavras. Na verdade, Helen estava muito descontente porque eu não conseguira encontrar o nome dela no livro. Naquele momento eu não tinha nenhuma frase em letras em relevo que ela pudesse entender; mas ela ficou ali por horas tateando cada palavra do livro.

Quando toquei numa que lhe era familiar, uma expressão especialmente doce iluminou seu rosto, e temos visto sua fisionomia ficar cada vez mais doce e mais séria a cada dia.

Mais ou menos nessa época, enviei uma lista das palavras que Helen conhecia ao sr. Anagnos e ele muito amavelmente as mandou imprimir para ela. A mãe de Helen e eu cortamos várias folhas de palavras impressas para que ela pudesse arrumá-las em frases. Isso a encantou mais do que tudo o que já fizera; e a prática assim obtida preparou o caminho para as aulas escritas. Não houve qualquer dificuldade em fazê-la entender como escrever as mesmas frases com lápis e papel que construía todos os dias com os pedacinhos de papel e ela logo percebeu que não precisa se limitar a frases já aprendidas: podia comunicar qualquer pensamento que passasse por sua mente. Coloquei uma das tábuas de escrever usadas pelos cegos entre as dobras do papel na mesa e deixei-a examinar um alfabeto. Então guiei sua mão para formar a frase "Gato bebe leite". Quando terminou, estava superfeliz. Levou-a para a mãe, que a soletrou para ela.

Dia após dia movia o lápis da mesma forma ao longo do papel com ranhuras, sem demonstrar por um momento sequer a mínima impaciência ou sensação de fadiga.

Como Helen havia aprendido agora a expressar suas idéias no papel, a seguir ensinei-lhe o sistema braile. Ela o aprendeu contente quando descobriu que poderia ler o que escrevera; isso ainda lhe dá um prazer constante. Por uma boa parte da noite ela senta à mesa escrevendo seja lá o que lhe ocorrer à ocupada mente; e raramente encontro qualquer dificuldade em ler o que ela escreveu.

O progresso de Helen em aritmética tem sido igualmente notável. Ela pode somar e subtrair com grande rapidez até 100; e sabe multiplicar até cinco. Ela trabalhava recentemente com o número 40 quando eu lhe disse: "Multiplique por dois". Ela respondeu imediatamente: "20 vezes 2 são 40". Mais tarde eu disse: "Faça 15 vezes 3 e conte".

Eu queria que ela fizesse o grupo de três e achava que os contaria em ordem para saber quanto seria 15 vezes 3. Mas ela imediatamente soletrou a resposta: "15 vezes 3, 45".

Ao lhe dizerem que era branca e que uma das criadas era negra, ela concluiu que todos que ocupavam a mesma posição subalterna tinham a mesma cor; e sempre que eu lhe perguntava a cor de uma criada, ela dizia "negra". Quando lhe perguntaram a cor de alguém cuja ocupação ela desconhecia, ela pareceu perturbada e finalmente disse "azul".

Ainda não lhe foi dito nada sobre morte ou o enterro do corpo e mesmo assim, ao entrar no cemitério pela primeira vez na vida, com sua mãe e eu, ao olhar algumas flores, ela pôs a mão em nossos olhos e soletrou repetidamente: "chorar-chorar". Seus olhos na verdade se encheram de lágrimas. As flores não lhe pareceram dar prazer e ela ficou muito quieta enquanto permanecemos lá.

Em outra ocasião, enquanto caminhava comigo, ela pareceu consciente da presença do irmão, embora estivéssemos distante dele. Ela soletrou repetidamente seu nome e partiu na direção em que ele vinha.

Quando caminhando ou andando a cavalo, ela geralmente diz os nomes das pessoas que encontramos quase tão rapidamente quanto nós as reconhecemos.

As cartas retomam o relato.


13 de novembro de 1887: Levamos Helen ao circo e "nos divertimos como nunca!", O pessoal do circo ficou muito interessado em Helen, fazendo tudo o que podia para tornar o primeiro circo dela um acontecimento memorável. Deixaram-na tocar nos animais sempre que era seguro. Ela alimentou os elefantes e permitiram-lhe subir nas costas do maior e sentar no dorso da "Princesa Oriental", enquanto a elefanta marchava majestosamente pela arena. Tocou em pequenos leões, tão mansos quanto gatinhos; mas eu disse a ela que ficariam selvagens e ferozes quando crescessem. Ela disse ao tratador: "Eu vou levar os bebês leões para casa e vou ensinar a eles a serem mansos". O tratador dos ursos fez um grande urso preto ficar nas patas de trás e estender sua grande pata para nós, que Helen apertou polidamente. Ela ficou extremamente encantada com os macacos e manteve a mão no "ator-principal" enquanto ele fazia seus truques. E riu com vontade quando ele tirou o chapéu para o público. Um macaquinho engraçado roubou a fita do cabelo de Helen e outro tentou arrebatar-lhe as flores do chapéu. Não sei quem se divertiu mais, se os macacos, Helen ou os espectadores. Um dos leopardos lambeu as mãos dela e o homem encarregado das girafas levantou Helen para que ela pudesse tocar as orelhas dos animais e ver como eram altos. Ela também tocou uma biga grega, e o homem que a conduzia teria de bom grado a levado para dar uma volta pela arena, mas Helen ficou com medo dos "muitos cavalos velozes". Todos - os cavaleiros, palhaços e os que andavam na corda bamba - alegremente permitiram que a menina cega tocasse em suas roupas e seguisse seus movimentos sempre que possível, e ela beijou todos eles para mostrar sua gratidão. Alguns choraram, e o homem selvagem de Bornéu encolheu-se de terror ante o doce rostinho de Helen. Desde então ela só tem falado do circo. A fim de responder suas perguntas, fui obrigada a ler um bocado sobre animais. No momento presente, sinto-me uma selva sobre rodas!


12 de dezembro de 1887: Acho difícil imaginar que o Natal esteja quase aí, apesar de Helen não falar de outra coisa. Lembra que ótimos momentos tivemos no Natal passado?

Helen aprendeu a dizer as horas finalmente e seu pai vai lhe dar um relógio como presente de Natal.

Ela é tão ávida para ouvir histórias quanto qualquer criança dotada de audição que eu conheça. Fez-me repetir a história de Chapeuzinho Vermelho tantas vezes que acho que posso repeti-la de trás para frente. Ela gosta de histórias que a façam chorar - acho que todos nós gostamos, é tão bom se sentir triste quando não se tem nenhum motivo em especial para isso. Estou lhe ensinando pequenas rimas e versos também - que fixam belos pensamentos em sua memória. Acho também que eles agilizam as faculdades da criança, porque estimulam a imaginação. Claro que não tento explicar tudo. Se o fizesse, não haveria oportunidade para o jogo da fantasia. Explicação demais dirige a atenção da criança para palavras e frases, impedindo-a de apreender o pensamento como um todo. Na verdade, acho que ninguém pode ler ou falar até que esqueça as palavras e frases no sentido técnico.


12 dejaneiro de 1888: É maravilhoso sentir que se é de alguma utilidade no mundo, que se é necessária a alguém. A dependência de Helen de mim para quase tudo me deixa forte e contente.

A semana do Natal foi muito agitada aqui. Helen foi convidada para todos os divertimentos das crianças e eu a levo a tantos quanto posso. Quero que conheça crianças e esteja com elas o máximo possível. Várias meninas aprenderam a soletrar com os seus dedos e estão muito orgulhosas da realização. Nosso garotinho, de uns sete anos, foi convencido a aprender as letras e soletrou o nome de Helen.

Ela ficou encantada, mostrando sua alegria abraçando-o e beijando-o, para embaraço dele.

No sábado, as crianças da escola tiveram sua árvore e eu levei Helen. Era a primeira árvore de Natal que já vira na vida e ela ficou intrigada, fazendo muitas perguntas.

"Quem fez árvore crescer na casa? Por quê? Quem pôs muitas coisas na árvore?" Ela objetou à miscelânea de frutas na árvore e começou a removê-las, evidentemente pensando que eram todas destinadas a ela. Contudo, não foi difícil fazê-la entender que havia um presente para cada criança e, para seu encantamento, foi-lhe permitido entregar os presentes das crianças. Havia vários presentes para ela. Helen os colocou numa cadeira, resistindo a todas as tentações de ver o que eram até que todas as crianças tivessem recebido os seus. Uma meninazinha recebeu menos presentes que o resto e Helen insistiu em dividir seus presentes com ela. Foi muito doce ver o ávido interesse das crianças em Helen e a facilidade com que se prontificavam a agradá-la. Os exercícios começaram às nove e deu uma hora antes que pudéssemos ir embora. Meus dedos e minha cabeça doíam, mas Helen estava tão viçosa e cheia de animação como quando saímos de casa.

Depois do jantar começou a nevar e tivemos uma animada brincadeira e uma aula interessante sobre a neve. Na manhã de domingo o solo estava coberto e Helen, os filhos da cozinheira e eu brincamos com bolas de neve. Ao meio-dia a neve havia sumido. Foi a primeira neve que vi aqui e isso me fez ter saudade de minha casa. A estação do Natal forneceu muitas aulas e acrescentou um monte de novas palavras ao vocabulário de Helen.

Durante semanas não fizemos nada exceto conversar, ler e contar histórias sobre o Natal uma à outra. Claro que não tento explicar todas as palavras novas, nem Helen entende totalmente as historinhas que lhe conto; mas a repetição constante fixa as palavras e frases em sua mente, e pouco a pouco o significado virá a ela. Não vejo nenhum sentido em conversa "de mentira"para ensinar a linguagem. É estúpido e destituído de vitalidade para aluno e professor. A conversa deve ser natural e ter como objetivo uma troca de idéias. Se não há nada na mente da criança para ser comunicado, dificilmente vale a pena pedir-lhe para escrever no quadro-negro ou soletrar nos dedos frases cortadas ou secas sobre "o gato", "o pássaro", "um cachorro". Desde o início venho tentando falar naturalmente com Helen e ensiná-la a me contar apenas coisas que lhe interessam e perguntar apenas para descobrir o que quer saber. Quando vejo que está ansiosa para me contar algo, mas travada por não conhecer as palavras, eu as forneço, do mesmo modo que as expressões idiomáticas necessárias, e nos damos muito bem assim. A avidez e o interesse da criança a fazem transpor muitos obstáculos que seriam a nossa ruína se parássemos para definir e explicar tudo. O que acha que aconteceria se alguém tentasse medir nossa inteligência pela capacidade de definir as palavras mais comuns que usamos? Temo que, se me fizessem esse teste, eu seria confinada à classe mais elementar numa escola para deficientes mentais.

Foi tocante e lindo ver Helen usufruir de seu primeiro Natal. Ela pendurou sua meia - duas, é claro, para o caso de Papai Noel esquecer uma - e ficou acordada por muito tempo, levantando duas ou três vezes para ver se algo tinha acontecido. Quando eu lhe disse que Papai Noel só viria quando ela estivesse dormindo, fechou os olhos e disse: "Ele vai pensar que menina está dormindo". Ela acordou de manhã assim que pôde e correu para a lareira à procura da meia; quando descobriu que Papai Noel enchera as duas, dançou por um minuto e então ficou muito quieta e veio me perguntar se eu achava que Papai Noel tinha cometido um engano pensando que havia duas meninas, e se voltaria para levar de volta os presentes quando descobrisse seu engano. O anel que você lhe enviou estava no dedo da meia, e quando eu lhe disse que você o dera para Papai Noel lhe entregar, ela disse: "Adoro a sra. Hopkins". Ela ganhou um baú com roupas para Nancy e seu comentário foi: "Agora Nancy vai à festa". Quando viu a lousa de braile e papel, disse: "Vou escrever muitas cartas e agradecer Papai Noel muito". Era evidente que todos, especialmente o capitão Keller e a sra. Keller, estavam profundamente comovidos ante a idéia da diferença entre este animado Natal e o Natal passado, quando a filhinha deles não participou conscientemente das festas natalinas. Quando descemos, a sra. Keller me disse com lágrimas nos olhos: "Srta. Annie, agradeço a Deus todos os dias de minha vida por enviá-la; mas nunca percebi até esta manhã que bênção a senhorita tem sido para nós". O capitão Keller pegou minha mão, mas não conseguiu falar.

Seu silêncio porém foi mais eloqüente do que as palavras.

Meu coração também estava cheio de gratidão e solene alegria.

No outro dia, Helen deparou-se com a palavra avô numa historiazinha e perguntou à mãe: "Onde está avô?", referindo-se a seu avô. A sra. Keller respondeu: "Ele morreu".

"Papai atirou nele?", perguntou Helen e acrescentou: "Eu vou comer avô no jantar". Até então, seu único conhecimento da morte estava vinculado a coisas para comer. Ela sabe que o pai atira em perdizes, cervos e outras caças.

Esta manhã ela me perguntou o significado de "carpinteiro" e a pergunta forneceu o texto para a aula do dia.

Após falar sobre as várias coisas que os carpinteiros fazem, ela perguntou: "Carpinteiro me fez?", e antes que eu pudesse responder, ela soletrou rapidamente: "Não, não, fotógrafo me fez em Sheffield".

Uma grande fornalha de ferro foi construída em Sheffield e fomos até lá na outra noite para vê-la dar uma "rodada". Helen sentiu o calor e perguntou: "O sol caiu?".


9 de janeiro de 1888: O relatório chegou na noite passada. Agradeço as palavras amáveis do sr. Anagnos sobre Helen e eu, mas seu modo extravagante de dizê-las me atinge do modo errado.

Os simples fatos seriam muito mais convincentes! Por exemplo, por que ele se dá ao trabalho de me atribuir motivos com os quais nunca sonhei? Você sabe, ele sabe, e eu sei que meu motivo em vir para cá não foi de modo nenhum filantrópico. Como é ridículo dizer que eu tinha bebido tão copiosamente do nobre espírito do dr. Howe, que fui tomada pelo desejo de resgatar da escuridão e obscuridade a garotinha do Alabama! Vim para cá simplesmente porque as circunstâncias tornaram necessário que eu ganhasse a vida e peguei a primeira oportunidade que se ofereceu, embora eu não suspeitasse, nem ele, que eu tivesse qualquer habilidade especial para o trabalho.


26 de janeiro de 1888: Suponho que tenha recebido a carta de Helen. A tratantezinha meteu na cabeça de não escrever com lápis.

Eu queria que ela escrevesse esta manhã para o tio dela, Frank, mas ela objetou dizendo: "Lápis é muito cansado na cabeça. Vou escrever tio Frank carta em braile". Eu disse: "Tio Frank não sabe ler braile". "Vou ensinar a ele", disse ela. Expliquei que tio Frank era velho e não poderia aprender braile facilmente. Num relâmpago, ela respondeu: "Acho que tio Frank é muito velho (demais) para ler cartas muito pequenas". Finalmente convenci-a a escrever algumas linhas, mas ela quebrou o lápis seis vezes antes de terminar a carta. Eu lhe disse: "Você é uma garota levada".

"Não", respondeu ela, "lápis é muito fraco". Acho que sua objeção ao lápis é prontamente explicada pelo fato de lhe terem pedido para escrever muitas amostras para amigos e estranhos. Você sabe como as crianças na instituição detestam isso. É tedioso porque o processo é muito lento e elas não podem ler o que escreveram ou corrigir seus erros.

Helen está cada vez mais interessada nas cores. Quando eu lhe disse que os olhos de Mildred eram azuis, ela perguntou: "São como céus pequenininhos?". Depois que disse que lhe tinham dado uma flor rosada, ela encrespou a boca e disse: "Lábios são como uma rosa". Eu lhe disse que eram tulipas, mas é claro que ela não entendeu o jogo de palavras. Não posso crer que as impressões-cores que recebeu durante o ano e meio em que podia ver e ouvir estejam inteiramente perdidas. Tudo que vimos e ouvimos está em algum lugar da mente. Pode estar vago e confuso demais para ser reconhecível, mas mesmo assim está lá, como a paisagem que perdemos quando o crepúsculo se aprofunda.


10 de fevereiro de 1888: Chegamos em casa na noite passada. Passamos um período esplêndido em Memphis, mas não descansei muito.

Não houve nada senão agitação do princípio ao fim - passeios, almoços, recepções e tudo o que acontece quando você tem uma criança ávida e incansável como Helen nas mãos. Ela falou incessantemente. Não sei o que eu teria feito se alguns dos jovens não tivessem aprendido a conversar com ela. Eles me ajudaram tanto quanto possível.

Mesmo assim não posso nunca ter uma hora quieta para mim. É sempre: "Ah, srta. Sullivan, por favor venha aqui e nos conte o que Helen está querendo dizer", ou: "Srta. Sullivan, por favor, pode explicar isso para Helen? Não conseguimos fazê-la entender". Acredito que metade da população branca de Memphis nos visitou. Helen foi tão paparicada e acariciada que até um anjo ficaria mimado demais por esse tratamento. Mas acho que não é possível estragá-la, ela é inconsciente demais de si mesma e afetuosa demais.

As lojas em Memphis são muito boas e consegui gastar todo o dinheiro que tinha comigo. Certo dia Helen disse: "Preciso comprar um chapéu muito bonito para Nancy".

Eu disse: "Muito bem, vamos fazer compras esta tarde".

Ela tinha um dólar de prata e dez cents. Quando chegamos à loja, perguntei a Helen quanto pagaria pelo chapéu de Nancy. Ela respondeu prontamente: "Dez cents". "O que vai fazer com o dólar?", perguntei. "Vou comprar boas guloseimas para levar para Tuscumbia", respondeu.

Visitamos a Bolsa de Valores e um barco à vapor. Helen ficou extremamente interessada no barco e insistiu que lhe mostrassem cada centímetro dele, do motor à bandeira no mastro. Fiquei gratificada ao ler o que o Nation disse sobre Helen na semana passada.

O capitão Keller recebeu duas cartas interessantes desde a publicação do "Relatório", uma do dr. Alexander Graham Bell e outra do dr. Edward Everett Hale. O dr. Hale reivindica parentesco com Helen e parece muito orgulhoso da priminha. O dr. Bell escreve que o progresso de Helen não tem paralelo na educação dos surdos, ou algo assim, e diz coisas muito simpáticas sobre a professora dela.


5 de março de 1888: Não tive uma chance de terminar minha carta ontem.

A srta. Ev. veio me ajudar a fazer uma lista de palavras que Helen aprendeu. Chegamos até o P e há mais de 900 palavras a seu crédito. Fiz Helen começar um diário no dia primeiro de março. Não sei quanto tempo ela o manterá.

É um negócio idiota, acho eu. Nesse momento ela o acha uma grande diversão. Parece gostar de contar tudo o que sabe. Isso é o que Helen escreveu no domingo:

Levantei, lavei o rosto e as mãos, penteei o cabelo, colhi três violetas com orvalho para Professora e tomei o café-da-manhã. Depois do café brinquei com bonecas pouco. Nancy estava zangada. Zangada é chorar e chutar. Li no meu livro sobre animais grandes, ferozes.

Feroz é muito zangado e forte e com muita fome. Eu não gosto de animais ferozes. Escrevi carta para tio James.

Ele mora em Hotsprings. Ele é médico. Médico faz menina doente bem. Eu não gosto doente. Depois jantei.

Gosto muito de sorvete muito. Depois do jantar pai foi a Birmingham de trem muito longe. Recebi carta de Robert.


A maior parte desse diário foi perdida. Felizmente, porém, Hellen Keller escreveu tantas cartas e exercícios que não há falta de registros desse tipo.

Ele gosta de mim. Ele disse, Querida Helen, Robert ficou contente de receber uma carta da querida, doce Helenzinha. Vou visitar você quando o sol brilhar. A sra. Newsum é a esposa de Robert. Robert é o marido dela.

Robert e eu corremos e pulamos e saltamos e dançamos e balançamos e falamos de pássaros e flores e árvores e relva e Jumbo e Pearl vão conosco. Professora vai dizer, Nós somos tolos. Ela é engraçada. Engraçada nos faz rir. Natalie é uma boa menina e não chora. Mildred chora. Ela vai ser uma boa menina em muitos dias e corre e brinca comigo. Sra. Graves está fazendo vestidos curtos para Natalie. Sr. Mayo foi para Duckhill e trouxe para casa flores perfumadas. Sr. Mayo e sr. Farris e sr. Graves gostam de mim e de Professora. Vou para Memphis ver eles logo e eles vão me abraçar e beijar.

Thornton vai à escola e fica de cara suja. Menino deve ter muito cuidado. Depois do jantar eu brinquei com Professora na cama. Ela me enterrou debaixo dos travesseiros e então eu cresci bem devagar como árvore do chão. Agora eu vou para cama.

Helen Keller


16 de abril de 1888: Acabamos de voltar da igreja. O capitão Keller disse ao café-da-manhã que gostaria que eu levasse Helen à igreja.

A corporação dos presbíteros estaria presente, e o capitão queria que os ministros vissem Helen. A aula de catecismo estava em andamento quando chegamos e gostaria que você visse a sensação que a entrada de Helen causou. As crianças estavam tão contentes de vê-la na aula de catecismo que não prestavam atenção aos professores. Saíram correndo de seus bancos e nos rodearam. Ela beijou a todos, meninos e meninas, querendo ou não. Parecia pensar no início que as crianças todas pertenciam aos ministros visitantes, mas logo reconheceu alguns amiguinhos entre eles, e eu lhe disse que os ministros não trazem os filhos.

Ela pareceu desapontada e disse: "Vou mandar muitos beijos para eles". Um dos ministros quis que eu perguntasse a Helen "O que os ministros fazem?" Ela disse: "Eles lêem e falam alto para as pessoas serem boas". Ele anotou a resposta dela em seu caderno de notas. Quando estava na hora do serviço começar, ela estava em tal estado de excitação que achei melhor levá-la embora; mas o capitão Keller disse: "Não, ela vai ficar bem". Assim, nada havia a fazer senão ficar. Era impossível manter Helen quieta. Ela me abraçava e beijava e ao clérigo de aparência quieta sentado do outro lado dela. Ele lhe deu seu relógio para brincar, mas isso não a manteve parada. Ela quis mostrá-lo ao garotinho no banco de trás. Quando o serviço de comunhão começou, ela sentiu o cheiro do vinho e farejou tão alto que todos na igreja puderam ouvir. Quando o vinho foi passado para nosso vizinho, este foi obrigado a levantar para impedi-la de tirá-lo dele. Nunca fiquei tão contente de ir embora de um lugar como daquela igreja! Tentei tirar Helen logo dali, mas ela mantinha o braço esticado e cada cauda de casaco que tocava precisava se virar e contar sobre os filhos que deixara em casa e recebia beijos de acordo com o número deles. Todos riam dos absurdos dela e era de se pensar que estavam deixando um lugar de diversão e não uma igreja. O capitão Keller convidou alguns ministros para jantar. Helen foi irrepreensível. Ela descreveu o que ia fazer em Brewster com a encenação mais animada, e complementou soletrando. Finalmente levantou da mesa e passou a fazer movimentos como se colhesse algas e conchas, espadanando água, segurando a saia mais alto do que era apropriado nas circunstâncias. Então se atirou ao chão e começou a nadar tão energicamente que alguns de nós achamos que seríamos chutados para fora das cadeiras! Seus movimentos são geralmente mais expressivos do que qualquer palavra, e ela é tão graciosa quanto uma ninfa.

Cogito se os dias parecem tão intermináveis para você quanto para mim. Só conversamos, planejamos e sonhamos sobre Boston, Boston, Boston. Penso que a sra. Keller decidiu de vez ir conosco, mas não ficará todo o verão.


15 de maio de 1888: Você está notando que esta é a última carta que eu vou lhe escrever por muito, muito tempo? A próxima que você receberá de mim será num envelope amarelo, e este vai lhe dizer quando chegaremos em Boston. Estou bastante feliz de escrever cartas. Mas preciso lhe contar de nossa visita a Cincinnati.

Passamos uma semana deliciosa com os "doutores". O dr. Keller foi ao nosso encontro em Memphis. Quase todos no trem eram médicos e ele parecia conhecê-los.

Quando chegamos a Cincinnati, o lugar estava cheio de médicos, entre estes vários doutores importantes do lugar.

Ficamos na Bumet House. As pessoas se mostraram encantadas com Helen. Os homens cultos se maravilharam com a inteligência e a alegria dela. Há algo em Helen que atrai as pessoas; acho que é o seu interesse em tudo e todos.

Onde quer que fosse, Helen era o centro do interesse.

Ficou encantada com a orquestra no hotel e sempre que a música começava ela dançava pela sala, abraçando e beijando cada um que tocava. Sua felicidade impressionava; ninguém pareceu ter pena dela. Um cavalheiro disse ao dr.

Keller "Já vivi muito tempo e vi muitos rostos felizes, mas jamais um tão radiante como o desta criança nesta noite".

Outro disse: "Que diabo, eu daria tudo que possuo para ter essa meninazinha sempre perto de mim". Mas não tenho tempo de escrever todas as coisas agradáveis que disseram - seria preciso um livro muito grande, e as coisas que fizeram por nós encheriam outro volume. O dr. Keller distribuiu os extratos para o relatório que o sr. Magnos me enviou e poderia ter distribuído mil se os tivesse. Lembra do dr. Garcelon, governador do Maine vários anos atrás? Ele nos levou para passear uma tarde e queria dar uma boneca a Helen, mas ela disse: "Não gosto de filhos demais. Nancy está doente, Adeline está zangada e Ida é muito má". Nós rimos de chorar, ela falou aquilo com tanta seriedade. "Do que gostaria, então?", perguntou dr. Garcelon. "Algumas luvas bonitas para falar com elas", ela respondeu. O doutor ficou intrigado. Nunca ouvira falar de "luvas que falam"; mas expliquei-lhe que ela vira uma luva que tinha o alfabeto impresso e evidentemente achava que isso podia ser comprado. Eu lhe disse que podia comprar umas luvas se ela quisesse e faria com que o alfabeto fosse gravado nelas.

Almoçamos com o sr. Thayer (seu antigo pastor) e a esposa. Ele me perguntou como eu ensinara a Helen os adjetivos e os nomes de idéias abstratas como bondade e felicidade. Essas mesmas perguntas me vêm sendo feitas cem vezes pelos cultos doutores. Parece estranho que as pessoas se maravilhem com o que é na verdade tão simples. Ora, é tão fácil ensinar o nome de uma idéia, se é claramente formulada na mente da criança, quanto ensinar o nome de um objeto. Seria de fato uma tarefa hercúlea ensinar as palavras se as idéias já não existissem na mente da criança. Se as experiências e as observações dela não a tivessem conduzido aos conceitos, pequeno, grande, bom, mau, doce, azedo, ela não teria onde colar as etiquetas-palavras.

Eu, pobre ignorante, me vi explicando aos homens sábios do Leste e do Oeste verdades tão simples como essas: se você dá a uma criança algo doce e ela move a lingua, dá um estalo com os lábios e parece gratificada, ela tem uma sensação muito definida; e se, a cada vez que ela tem essa experiência, aprende a palavra doce, ou esta lhe é soletrada na mão, rapidamente adotará esse sinal arbitrário para a sua sensação. Da mesma forma, se você colocar um pedaço de limão na língua da criança, ela vai encrespar os lábios e tentar cuspi-lo. E depois de ter tido essa experiência algumas vezes, quando você lhe oferecer um limão ela vai fechar a boca e fazer caretas, indicando claramente que lembra da sensação desagradável. Sua etiqueta é azedo e a criança adota o símbolo que você lhe dá. Se você tivesse chamado tais sensações respectivamente de preto e branco, ela os teria adotado também prontamente; mas ia atribuir a preto e branco os mesmos significados que atribui a doce e azedo. Da mesma forma, a criança aprende por muitas experiências a diferenciar seus sentimentos e nós os nomeamos para ela - bom, mau, suave, áspero, feliz, triste. Não é a palavra, e sim a capacidade de experimentar a sensação que conta na educação da criança.


Acrescentei o trecho seguinte de uma das cartas da srta. Sullivan porque contém opiniões interessantes e informais estimuladas pela observação de outros métodos.

Visitamos uma pequena escola para surdos. Fomos amavelmente recebidas e Helen gostou de conhecer as crianças.

Duas das professoras conheciam o alfabeto manual e conversaram com Helen sem intérprete. Ficaram perplexas com seu domínio da linguagem. Nem uma única criança da escola, disseram, tinha qualquer coisa parecida com a facilidade de expressão de Helen, e algumas estavam sendo ensinadas há dois ou três anos. Eu estava incrédula no início. No entanto, depois de observar por umas duas horas as crianças trabalhando, soube que o que tinham dito era verdade e não fiquei surpresa. Numa sala, alguns pequerruchos postavam-se diante de um quadro-negro, construindo penosamente "frases simples". Uma meninazinha escrevera: "Tenho um vestido novo. É um vestido bonito. Mamãe me fez um bonito vestido novo. Eu amo mamãe". Um meninozinho de cabelos cacheados escrevia: "Tenho uma bola grande. Gosto de chutar minha bola grande". Quando entramos na sala, a atenção das crianças fixou-se em Helen. Uma delas me puxou pela mão e disse: "Menina é cega". A professora estava escrevendo no quadro-negro: "O nome da menina é Helen. Ela é surda. Ela não enxerga. Nós temos muita pena". Eu perguntei: "Por que você escreve essas frases no quadro? As crianças não entenderiam se você falasse com elas sobre Helen?". A professora disse algo sobre dar a instrução correta e continuou a construir um exercício a respeito de Helen. Eu lhe perguntei se a menina que escrevera sobre o vestido novo estava especialmente contente com o vestido. "Não", respondeu ela, "acho que não; mas as crianças aprendem melhor se escreverem sobre coisas que lhes digam respeito".

Parecia tudo tão mecânico e difícil que meu coração doeu pelas pobres criancinhas. Ninguém pensa em fazer uma criança que ouve dizer: "Eu tenho um bonito vestido novo", no início. É verdade que essas crianças são mais velhas que o bebê que balbucia "Papa beija bebê-bonito" e preenche o que quer dizer apontando para sua roupa nova; mas a capacidade que têm de entender e usar a linguagem não é maior.

Havia a mesma dificuldade na escola inteira. Em toda sala de aula vi frases no quadro-negro, escritas evidentemente para ilustrar alguma regra gramatical, ou com o objetivo de usar palavras que haviam sido previamente ensinadas no mesmo contexto, ou em qualquer outro. Esse tipo de coisa pode ser necessária em alguns estágios da educação; mas não é a maneira de se adquirir uma linguagem.

Acho que nada esmaga com mais eficácia o impulso da criança para falar naturalmente do que esses exercícios no quadro-negro. A sala de aula não é o local para ensinar a linguagem à criança, menos ainda à criança surda. Esta deve ser tão inconsciente quanto a criança que ouve do fato de estar aprendendo palavras, e devemos permitir que tagarele com os dedos, ou com o lápis, em monossílabos se ela quiser, até o momento em que sua crescente inteligência exija afrase. A linguagem não deve ser associada em sua mente a intermináveis horas na escola, com perguntas intrigantes sobre gramática ou qualquer coisa que seja um inimigo da alegria. Mas eu não devo adquirir o hábito de criticar os métodos de outros muito severamente. Posso estar tão distante da direção certa quanto eles.


O segundo relatório da srta. Sullivan
vai até 1.º de outubro de 1888.

Durante o ano passado, Helen gozou de excelente saúde. Seus olhos e ouvidos foram examinados por especialistas e, segundo a opinião deles, ela não pode ter a mais leve percepção de luz ou de som.

É impossível dizer exatamente em que extensão os sentidos do olfato e do paladar a ajudam a obter informação com respeito às qualidades físicas; mas, segundo uma autoridade eminente, tais sentidos exercem uma grande influência no desenvolvimento mental e moral. Dugald Stewart diz: "Algumas das palavras mais significativas relacionadas à mente humana são tiradas do sentido do olfato; e o lugar visível que suas sensações ocupam na linguagem poética de todas as nações mostra quão fácil e naturalmente elas se aliam às refinadas operações da fantasia e as emoções morais do coração". Helen certamente tira um grande prazer do exercício desses sentidos. Entrando numa estufa, sua fisionomia se torna radiante e ela dirá, apenas pelo olfato, o nome das flores que lhe são familiares. Suas lembranças das sensações do olfato são muito vivas. Ela usufrui por antecipação o cheiro de uma rosa ou de uma violeta; e se lhe é prometido um buquê dessas flores, uma expressão peculiarmente feliz ilumina seu rosto, indicando que em imaginação ela percebe a fragrância delas e que isso lhe é agradável. Acontece freqüentemente que o perfume de uma flor ou o sabor de uma fruta a faça recordar algum evento feliz de sua vida no lar ou uma encantadora festa de aniversário.

Seu tato vem aumentando sensivelmente durante o ano e ganhou em percepção e delicadeza. Na verdade, todo o seu corpo é tão finamente organizado que ela parece usá-lo como um médium para entrar em relações mais próximas com as criaturas suas companheiras. Ela é capaz não apenas de distinguir com grande exatidão as diferentes ondulações do ar e as vibrações do chão feitas por vários sons e movimentos, reconhecer amigos e conhecidos no instante em que toca suas mãos ou roupas, como também percebe os estados de ânimo daqueles em torno dela.

É impossível para qualquer um que esteja especialmente feliz ou triste esconder de Helen esse fato ao conversar com ela.

Ela observa a mínima ênfase colocada numa palavra na conversa e descobre significados em cada mudança de posição e no variado jogo dos músculos da mão. Reage rapidamente à gentil pressão da afeição, o tapinha de aprovação, o movimento de impaciência, o firme gesto de comando e as muitas outras variações da quase infinita linguagem dos sentimentos; vem se tornando uma especialista tão boa em interpretar essa linguagem inconsciente das emoções que freqüentemente é capaz de adivinhar nossos próprios pensamentos.

Em meu relato sobre o ano passado de Helen mencionei vários exemplos em que ela parecia ter utilizado uma inexplicável faculdade mental; contudo, após considerar cuidadosamente a questão, agora me parece que tal poder pode ser explicado pela perfeita familiaridade de Helen com as variações musculares daqueles com quem ela entra em contato, causadas pelas emoções deles. Ela tem sido forçada a depender grandemente desse sentido muscular como meio de assegurar-se das condições de ânimo daqueles à sua volta. Ela aprendeu a conectar certos movimentos do corpo com a raiva, outros com a alegria, outros com o pesar. Um dia, enquanto caminhava com a mãe e o sr. Anagnos, um menino atirou um estalinho que assustou a sra. Keller. Helen sentiu instantaneamente a mudança nos movimentos da mãe e perguntou: "Do que está com medo".

Certa vez, quando eu caminhava no parque público com ela, vi um guarda levando um homem para a cadeia. A agitação que senti evidentemente produziu uma mudança física imperceptível, pois Helen perguntou agitadamente: "O que a senhorita viu?".

Uma impressionante ilustração desse estranho poder foi mostrada recentemente enquanto Helen era examinada pelos especialistas em ouvidos de Cincinnati. Foram tentadas várias experiências para determinar se Helen tinha ou não qualquer percepção do som. Todos os presentes ficaram perplexos quando ela pareceu não apenas ouvir um assobio, mas também um tom de voz comum. Ela virou a cabeça, sorriu e agiu como se tivesse ouvido o que fora dito. No momento eu estava em pé ao lado dela, segurando-lhe a mão. Pensando que ela estava recebendo impressões de mim, coloquei as mãos sobre a mesa e retirei-me para o lado oposto da sala. Os especialistas fizeram então suas experiências com resultados muito diferentes. Helen permaneceu imóvel durante todas elas, não mostrando nem uma vez o mínimo sinal de perceber o que estava acontecendo.

Por minha sugestão, um dos cavalheiros pegou a mão dela e os testes foram repetidos. Dessa vez a fisionomia dela mudava sempre que se dirigiam a ela, mas não havia uma nítida iluminação de seus traços como quando eu lhe segurava a mão.

No relato sobre o ano passado de Helen, foi declarado que ela não conhecia nada sobre a morte ou o enterro do corpo; contudo, ao entrar num cemitério pela primeira vez em sua vida, ela mostrou sinais de emoção seus olhos realmente se encheram de lágrimas.

Uma circunstância igualmente notável ocorreu no verão passado. Contudo, antes de relatá-la, mencionarei o que ela sabe em relação à morte. Mesmo antes de eu conhecer Helen, ela segurara uma galinha morta, ou um pássaro, ou outro pequeno animal. Algum tempo depois da visita ao cemitério a que me referi, Helen ficou interessada num cavalo que ferira muito uma das patas num acidente e diariamente ia visitá-lo comigo. A pata ferida logo piorou tanto que o cavalo foi suspenso por uma trave no teto. O animal gemia de dor e Helen, percebendo seus gemidos, encheu-se de pena. Finalmente foi preciso matá-lo e quando Helen, a seguir, pediu para vê-lo, eu lhe disse que estava morto. Essa foi a primeira vez que tomou conhecimento da palavra. Então expliquei-lhe que fora preciso dar um tiro nele para libertá-lo do sofrimento e que ele agora estava enterrado - colocado dentro do chão. Penso que a idéia dele ter sido intencionalmente abatido não lhe causou muita impressão, mas acho que percebeu que a vida fora extinta no cavalo como nos pássaros mortos em que tocara, e também que ele fora colocado dentro do solo. Desde essa ocorrência, tenho usado a palavra morto sempre que a ocasião exige, mas sem maiores explicações sobre seu significado.

Numa visita a Brewster, Massachusetts, certo dia Helen me acompanhou e a minha amiga  ao cemitério. Ela examinou uma lápide após a outra e parecia contente quando conseguia decifrar um nome. Sentia o cheiro de flor mas não mostrou nenhum desejo de colhê-las; e quando peguei algumas para ela, ela se recusou a tê-las pregadas no vestido.

Quando sua atenção foi atraída para uma laje de mármore com o nome FLORENCE escrito em relevo, ela se deixou cair no chão como se procurasse algo; então virou-se para mim com o rosto bastante perturbado e perguntou: "Onde está pobre Florencinha?" Tentei dar uma resposta evasiva, mas ela insistiu. Virando para minha amiga, ela perguntou: "A senhora chorou alto pela pobre Florencinha?", e acrescentou: "Acho que ela está muito morta. Quem pôs ela no buraco grande?". Enquanto ela continuava a fazer essas perguntas angustiantes, deixamos o cemitério. Florence era filha da minha amiga, e uma moça na época de sua morte; mas nada fora contado a Helen a respeito, nem ela sabia que minha amiga tivera uma filha.

Helen ganhara de presente uma cama e um carrinho para suas bonecas, que recebera e usava como qualquer outro presente. Ao voltar para casa depois de sua visita ao cemitério, correu para o armário onde eram guardados aqueles brinquedos elevou-os para minha amiga, dizendo: "São da pobre Florencinha".

Isso era verdade, embora ficássemos atordoadas, sem saber como Helen o adivinhara. Uma carta escrita para sua mãe no decorrer da semana seguinte deu um relato de suas impressões, em suas próprias palavras:

Pus meus bebezinhos para dormir na caminha de Florence e levei eles para passear no carrinho dela. A pobre florencinha morreu. Ela estava muito doente e morreu. A sra. H. chorou alto por sua querida filhinha.

Ela foi para dentro do chão e está muito suja e está fria.

Florence era muito adorável como Sache e sra. H. beijou ela e abraçou ela muito. Florence está muito triste no buraco grande. O doutor deu remédio para ela ficar bem mas a pobre Florence não ficou bem. Quando ela estava muito doente ela tossia e gemia na cama. A sra. H. vai ver ela logo.

Apesar da atividade da mente de Helen, ela é uma criança muito natural. Gosta de diversão e brincadeiras e adora estar com outras crianças. Nunca está mal-humorada ou irritável e jamais a vi impaciente com seus companheiros de brinquedo quando eles não a entendem. Brinca por horas com crianças que não entendem uma única palavra soletrada por ela e é patético observar os gestos ansiosos e a excitada pantomima pelos quais ela exprime suas idéias e emoções. Ocasionalmente algum garoto ou garota tenta aprender o alfabeto manual. Então é lindo observar com que paciência, doçura e perseverança Helen se esforça para colocar os descontrolados dedos do amiguinho na posição apropriada.

Um dia, quando Helen usava um casaquinho de que tinha muito orgulho, sua mãe disse: "Há uma pobre menina que não tem nenhum agasalho para aquecê-la. Você lhe dará o seu?". Helen começou a tirar o casaco, dizendo: "Preciso dar ele para a pobre meninazinha estranha".

Ela gosta muito de crianças mais novas do que ela e um bebê invariavelmente invoca todos os instintos maternais de sua natureza. Lidará com o bebê tão ternamente como a mais cuidadosa babá poderia desejar. É agradável também notar como é atenciosa com as criancinhas e como está pronta a ceder a seus caprichos.

Helen tem uma disposição muito sociável e adora a companhia dos que podem seguir os rápidos movimentos de seus dedos; mas se deixada consigo mesma, ela se diverte sozinha por horas a fio tricotando ou costurando.

Ela lê muito. Debruça-se sobre os livros com uma expressão de intenso interesse, e enquanto o indicador de sua mão esquerda corre ao longo da linha, ela soletra as palavras com a outra mão. Mas geralmente seus movimentos são tão rápidos que se mostram ininteligíveis até mesmo para aqueles acostumados a ler os rápidos e variados movimentos de seus dedos.

Cada tom de emoção é expressado por seus traços móveis. Seu comportamento é fácil e natural, e é encantador devido a sua franqueza e evidente sinceridade. Seu coração é destituído de egoísmo e cheio de afeição para tolerar um vislumbre de medo ou de falta de bondade.

Ela não percebe que alguém pode ser outra coisa que não bondoso e terno. Não tem consciência de nenhum motivo para ser desajeitada; conseqüentemente, seus movimentos são livres e graciosos.

Ela gosta muito de todas as coisas vivas em sua casa, e não aceita que sejam maltratadas. Quando está passeando de carruagem não permite que o condutor use o chicote porque, como ela diz: "Os pobres cavalos vão chorar". Certa manhã ficou muito desalentada ao descobrir que um dos cachorros tinha um bloco preso a sua coleira. Explicamos que aquilo era para impedir Pearl de fugir. Helen demonstrou muita solidariedade e durante o dia, em cada oportunidade, ia atrás de Pearl e carregava o bloco de um lado para O Outro.

Seu pai lhe escreveu no verão passado que os pássaros e abelhas estavam comendo todas as suas uvas. No início ela ficou muito indignada e disse que as pequenas criaturas eram "muito erradas"; mas pareceu satisfeita quando lhe expliquei que os pássaros e abelhas estavam com fome e não sabiam que era egoísta comer todas as frutas. Numa carta escrita logo depois, diz Helen:

Lamento muito que os mangangás e vespões e pássaros e grandes moscas e minhocas estejam comendo todas as uvas deliciosas de meu pai. Eles gostam de comer frutas suculentas assim como as pessoas e ficam com fome. Eles não estão muito errados de comer uvas demais porque eles não sabem muito.

Ela continua a fazer rápidos progressos na aquisição da linguagem à medida que suas experiências aumentam.

Enquanto estas eram poucas e elementares, o vocabulário de Helen era necessariamente limitado; mas conforme aprende mais sobre o mundo em torno dela, seu julgamento se torna mais acurado, seu poder de raciocínio mais forte, ativo e sutil, e a linguagem na qual expressa essa atividade intelectual ganha em fluência e lógica.

Quando está viajando, ela se embebeda de pensamento e linguagem. Sentada a seu lado no trem, descrevo o que vejo pela janela - colinas, vales e rios; campos de algodão e hortas em que crescem morangos, pêssegos, pêras, melões e legumes; grupos de vacas alimentando-se em amplos prados e rebanhos de ovelhas nos flancos das colinas; as cidades com suas igrejas e escolas, hotéis e armazéns e as atividades das pessoas. Enquanto lhe comunico essas coisas, Helen manifesta interesse e, na falta de palavras, indica por gestos e pantomima seu desejo de aprender mais de seus arredores e das grandes forças que operam em toda parte. Desse modo, ela aprende inúmeras expressões novas sem qualquer esforço aparente.

Desde o dia em que Helen captou pela primeira vez a idéia de que todos os objetos têm nomes e que estes podem ser comunicados por certos movimentos dos dedos, tenho falado com ela exatamente como se ela pudesse ouvir, apenas dirijo as palavras a seus dedos e não a seus ouvidos.

Naturalmente no início houve uma forte tendência da parte dela de usar apenas as palavras importantes numa frase.

Ela dizia: "Helen leite". Eu pegava o leite, para mostrar-lhe que ela usara a palavra correta, mas não a deixava beber até que ela tivesse, com a minha ajuda, feito uma frase completa, como: "Dê a Helen leite para beber". Nessas primeiras aulas, eu a encorajei a usar diferentes formas de expressão para transmitir a mesma idéia. Se ela estava comendo uma guloseima eu dizia: "Por favor, será que Helen pode dar um pedaço de doce à professora?", ou "A professora gostaria de comer um pedaço do doce de Helen", enfatizando o de. Ela logo percebeu que a mesma idéia podia ser expressada de muitos modos. Dois ou três meses depois que comecei a ensiná-la, ela dizia: "Helen quer ir para a cama" ou "Helen está com sono e Helen vai para a cama".

Fazem-me constantemente a pergunta: "Como conseguiu ensinar a Helen o significado de palavras que expressam qualidades intelectuais e morais?". Acredito que foi mais pela associação e repetição do que por qualquer explicação minha. Isso ocorreu sobretudo nas primeiras aulas, quando o conhecimento da lingua por parte de Helen era tão tênue que tornava qualquer explicação impossível.

Sempre exerci a prática de usar as palavras que descreviam emoções, ou ações e qualidades morais ou intelectuais, vinculadas às circunstâncias que exigiam tais palavras. Logo depois que me tornei sua professora, Helen quebrou a boneca nova, da qual gostava muito. Ela começou a chorar. Eu lhe disse: "Professora lamenta muito". Após algumas repetições, ela passou a associar a palavra ao sentimento.

Aprendeu a palavra feliz da mesma forma, assim como certo, errado, bom, mau e outros adjetivos. A palavra amor ela aprendeu como outras crianças - associando-a às carícias.

Certo dia fiz-lhe uma simples pergunta sobre uma combinação de números que eu tinha certeza de que ela sabia. Helen respondeu ao acaso. Eu a observei; ela estava imóvel, a expressão do rosto mostrando claramente que pensava. Toquei-lhe a testa e soletrei "p-e-n-s-e". A palavra, assim ligada ao ato, pareceu imprimir-se em sua mente da mesma forma como se eu tivesse colocado sua mão sobre um objeto e lhe soletrasse o nome. Desde aquele dia ela tem sempre usado a palavra pense.

Num período posterior comecei a usar palavras como talvez, supor, esperar, esquecer, lembrar. Se Helen perguntasse "Onde está mãe agora?", eu respondia: "Não sei. Talvez esteja com Leila".

Ela está sempre ávida para aprender o nome das pessoas que encontramos nas charretes ou em outro lugar e saber onde estão indo e o que farão. São freqüentes as conversas desse tipo:

HELEN: Qual é o nome do menino?

PROFESSORA: Não sei, é um desconhecido; mas talvez se chame Jack.

HELEN: Para onde ele vai?

PROFESSORA: Pode estar indo para o parque brincar com Outros meninos.

HELEN: Ele vai jogar o quê?

PROFESSORA: Suponho que vá jogar bola.

HELEN: O que os garotos estão fazendo agora?

PROFESSORA: Talvez estejam aguardando Jack, esperando por ele.

Depois que as palavras se tornaram familiares a ela, Helen as usa em combinações.


26 de setembro [1888]: Esta manhã a professora e eu ficamos à janela e vimos um meninozinho andando na calçada. Estava chovendo muito forte e ele tinha um guarda-chuva muito grande para deixar de fora as gotas de chuva.

Não sei que idade ele tinha mas acho que podia ter seis anos. Talvez seu nome fosse Joe. Não sei onde estava indo porque era um menino desconhecido. Mas talvez sua mãe o tenha mandado a uma loja comprar algo para o jantar.

Ele tinha uma bolsa numa mão. Suponho que a estivesse levando para sua mãe.

Ao ensiná-la a usar a lingua, não me limitei a qualquer sistema ou teoria em particular. Observei os movimentos espontâneos da mente da minha aluna e tentei seguir as sugestões que isso me proporciona.

Dado o temperamento nervoso de Helen, foram tomadas todas as precauções para evitar excitar indevidamente seu cérebro já ativo. Passamos a maior parte do ano viajando e visitando lugares diferentes, e as aulas dela foram sugeridas pelos diversos cenários e experiências pelos quais ela passou. Helen continua a manifestar a mesma avidez para aprender do início. Nunca é necessário incitá-la a estudar. Na verdade, sou forçada com freqüência a induzi-la a abandonar um exemplo ou uma redação.

Embora sem confiar em qualquer determinado sistema de ensino, venho tentando fazer acréscimos à sua inteligência e informação geral, alargar seu conhecimento das coisas a sua volta e levá-la a iniciar um relacionamento fácil e natural com as pessoas. Estimulei-a a escrever um diário, do qual foi tirado o trecho seguinte:


22 de março de 1888: O sr. Anagnos veio me ver quinta-feira. Fiquei contente em abraçá-lo e beijá-lo. Ele toma conta de 60 meninas cegas e 70 meninos cegos. Gosto muito deles.

Meninas cegas me mandaram uma bonita cesta de costura. Achei tesoura e linha e uma cartela de agulhas com muitas agulhas e uma agulha de crochê, esmeril, dedal, caixa, fita métrica, botões e almofada para alfinetes. Vou escrever uma carta para as meninas cegas agradecendo.

Vou fazer roupas bonitas para Nancy, Adeline e Allie. Vou a Cincinnati em maio e comprarei outro filho. Então vou ter quatro filhos, O nome do novo bebê será Harry.

Sr. Wilson e sr. Mitchell vieram nos visitar domingo. Sr. Anagnos foi para Louisville na segunda-feira ver crianças cegas. Mãe foi para Huntsville. Eu dormi com pai e Mildred dormiu com professora. Eu aprendi sobre calma. Quer dizer quieta e feliz. Tio Morrie me mandou bonitas histórias. Eu li sobre pássaros. A codorna põe 15 ou 20 ovos e eles são brancos. Ela faz seu ninho no solo. O azulão faz seu ninho num oco de árvore e seus ovos são azuis. Os ovos do rouxinol são verdes.

Aprendi uma canção sobre a primavera. Março, abril e maio são primavera.

Now melts the snow.
The warm wind blow
The waters flow
And robin dear,
Is come to show
That Spring is here.

[A neve derrete agora./O vento quente já sopra/A água se põe a fluir, o querido rouxinol,/veio para exibir/a primavera que chega. (Tradução livre.N da T.)]

James matou narcejas para o café da manhã. Pintinhos ficaram com muito frio e morreram. Lamento.

Professora e eu fomos passear no rio Tennessee, num barco.

Vi sr. Wilson e James remarem. Barco deslizou rapidamente e eu pus mão na água e senti ela correndo.

Peguei peixe com anzol, linha e caniço. Subimos na alta colina e professora caiu e machucou a cabeça. Comi peixe muito pequeno de jantar. Li sobre vaca e bezerro.

A vaca adora comer relva assim como garota gosta de pão com manteiga e leite. Bezerrinha corre e salta no campo. Ela gosta de pular e brincar, pois fica feliz quando o sol está brilhante e quente. Menino adora sua bezerra. E disse, vou beijar você, bezerrinha, e abraçou o pescoço da bezerra e beijou-a. A bezerra lambeu o rosto do bom menino com sua comprida língua áspera. Bezerra não deve abrir a boca muito para beijar. Estou cansada e professora não quer que eu escreva mais.


No outono, Helen foi ao circo. Enquanto estávamos diante da jaula o leão rugiu; Helen sentiu a vibração do ar tão nitidamente que foi capaz de reproduzir o barulho com muita exatidão.

Tentei descrever-lhe a aparência de um camelo; mas como não nos foi permitido tocar o animal, temi que ela não tivesse tido uma idéia correta da forma dele. Alguns dias depois, no entanto, ouvindo barulhos na sala de aula, fui até lá e encontrei Helen de quatro com um travesseiro amarrado nas costas de modo a deixar um oco no meio, fazendo assim uma corcova dos dois lados. Entre essas corcovas ela colocou sua boneca, com quem estava dando um passeio pela sala. Observei-a mover-se por algum tempo, tentando dar longas passadas para concretizar a idéia que eu lhe tinha dado dos passos do camelo. Quando lhe perguntei o que estava fazendo, ela respondeu: "Sou um camelo muito engraçado".

Durante os dois anos seguintes nem o sr. Anagnos, que ficou na Europa por um ano, nem a srta. Sullivan escreveram nada sobre Helen Keller para publicação. Em 1892 apareceu o relatório de 1891 da Instituição Perkins, contendo um relato completo sobre Helen Keller, inclusive muitas cartas suas, exercícios e redações.

Como algumas das cartas e a história do Frost King estão publicadas aqui, não há necessidade de publicar mais amostras dos textos de Helen Keller durante o terceiro, o quarto e o quinto anos de sua educação. Foram os dois primeiros anos que contaram. Forneço os comentários mais importantes da srta. Sullivan que constam desse relatório, assim como material biográfico, porque não aparecem em outra parte do presente volume.

Tais trechos foram retirados pelo sr. Anagnos das notas e recordações da srta. Sullivan.


Um dia, quando seu pônei e sua mula estavam lado a lado, Helen foi de um para o Outro, examinando-os atentamente. Finalmente parou com a mão sobre a cabeça de Neddy e se dirigiu a ele do seguinte modo: "Sim, querido Neddy, é verdade que você não é tão lindo quanto Black Beauty. Seu corpo não é tão elegante, você não tem nenhuma expressão orgulhosa no rosto e seu pescoço não se arqueia. Além disso, suas orelhas compridas o deixam com uma aparência um pouco engraçada. Claro, você não pode evitar isso e eu o adoro como se você fosse a criatura mais bela do mundo".

Ela ficou extremamente interessada na história de Black Beauty (Beleza negra). Para mostrar como Helen capta e associa idéias rapidamente, eu lhe darei um exemplo que todos que leram o livro poderão apreciar. Eu estava lendo o seguinte parágrafo para ela: "A égua baia era velha e cansada, com um pêlo mal cuidado e ossos que apareciam claramente sob ele; seus jarretes eram protuberantes e as patas da frente muito pouco firmes. Eu tinha comido um pouco de feno; o vento fez rolar uma pequena quantidade dele naquela direção e a pobre criatura esticou o comprido pescoço e o pegou, virando-se depois à procura de mais. Havia um olhar desesperançado no olho baço que não consegui deixar de notar, e então, enquanto estava pensando que eu já vira aquela égua antes, ela olhou em cheio para mim e disse, "Black Beauty é você?"."

Nesse ponto, Helen apertou minha mão para me fazer parar. Ela estava soluçando convulsivamente. "Era a pobre Ginger", foi tudo que pôde dizer inicialmente.

Depois, quando conseguiu falar a respeito, ela disse: "Pobre Ginger! As palavras formaram um quadro distinto na minha mente. Eu podia ver a aparência de Ginger; toda a sua beleza desaparecida, o lindo pescoço arqueado, caído, todo o espírito desaparecido de seus olhos cintilantes, todo o jeito brincalhão sumido. Ah, como foi terrível! Eu nunca soube antes que poderia haver tal mudança numa coisa.

Tinha havido muitos poucos momentos de sol na vida da pobre Ginger e as tristezas eram tantas!". Após um momento, Helen acrescentou tristemente: "Acho que a vida de algumas pessoas é como a de Ginger".

Esta manhã Helen estava lendo pela primeira vez o poema de Bryant, Ah, mãe de uma poderosa raça! Então eu lhe disse: "Depois que você ler todo o poema, diga-me quem você acha que é a mãe". Quando ela chegou na linha "Há liberdade em teus portões e repouso", exclamou: "Significa América! Acho que o portão é a cidade de Nova York e Liberdade é a grande Estátua da Liberdade". Depois que leu The battle field (O campo de batalha), do mesmo autor, eu lhe perguntei que verso ela achava mais bonito. Ela respondeu, "Gosto mais desse:

Truth crushed to earth shall rise again;
The eternal year of God are hers;
But Error, wounded, writhes with pain,
And dies among his worshipers.

[A verdade esmagada contra o solo se erguerá de novo;/os eternos anos de Deus pertencem a ela;/e o Erro, ferido, encolhe-se de dor,/e morre entre seus cultuadores. (Tradução livre. N da T.)]

Ela é imediatamente transportada para o meio dos acontecimentos da história. Rejubila-se quando a justiça vence, fica triste quando a virtude está em baixa e seu rosto fulgura de admiração e reverência ante a descrição de feitos heróicos. Chega até a entrar no espírito da batalha e diz: "Acho certo que os homens lutem contra o que está errado e os tiranos".

Δ


Começa aqui o relato da srta. Sullivan
vinculado ao relatório de 1891:

Durante os últimos três anos, Helen continuou a fazer rápidos progressos na aquisição da linguagem. Ela tem uma vantagem sobre as crianças comuns: nada do exterior distrai sua atenção dos estudos.

Mas tal vantagem envolve uma desvantagem correspondente, o perigo de aplicação mental inadequadamente excessiva. Sua mente é constituída de tal modo que Helen fica num estado de excitação febril quando tem noção de que há algo que não compreende. Nunca soube que tivesse vontade de deixar uma aula ao sentir que havia nesta algo que não entendesse. Se sugiro que deixe um problema de aritmética para o dia seguinte, ela responde: "Acho que resolvê-lo agora vai fortalecer minha mente".

Algumas noites atrás falávamos sobre tarifas, com Helen me pedindo que eu as explicasse. Recusei: "Você ainda não pode entendê-las". Ela ficou quieta por um momento, então perguntou espirituosamente: "Como sabe que não posso entender? Tenho uma boa mente! Querida professora, precisa lembrar que os pais gregos eram muito cuidadosos com os filhos, costumavam deixá-los escutar palavras sábias, e acho que eles entendiam algumas". A partir daí achei melhor deixar de dizer que ela não pode entender algo, pois é quase certo que fique muito agitada.

Não muito tempo atrás, tentei ensinar a Helen construir uma torre com blocos. Como o projeto era um tanto complicado, a menor falha fazia a estrutura cair. Após um tempo, fiquei desanimada; disse que achava que ela não poderia pô-la de pé, então eu a construiria; Helen não aprovou esse plano. Estava resolvida a construir ela própria a torre e por quase três horas trabalhou naquilo, recolhendo pacientemente os blocos quando caíam e começando de novo até que finalmente sua perseverança foi coroada de êxito.

A torre foi completada em todas as suas partes.

Até outubro de 1889, eu julgara melhor não confinar Helen a qualquer curso regular e sistemático de estudos.

Nos primeiros dois anos de sua vida intelectual, ela era como uma criança num país estranho, onde tudo era novo e causava perplexidade. Até conquistar o conhecimento da linguagem, não foi possível estabelecer para Helen um curso definido de instrução.

Além disso, sua curiosidade intelectual era tão grande nesses anos que, se uma consideração sobre as questões que lhe ocorriam constantemente tivesse de ser adiada até o término da aula, isso teria interferido em seu progresso na aquisição da linguagem. Provavelmente, Helen teria esquecido a questão e uma boa oportunidade para lhe explicar algo de seu verdadeiro interesse estaria perdida. Por isso sempre me pareceu melhor ensinar qualquer coisa todas as vezes que minha aluna precisava saber, estivesse ou não ligada à planejada lição; as perguntas de Helen geralmente nos levam para longe do assunto sob consideração imediata.

Desde outubro de 1890, seu trabalho tem sido mais regular, incluindo aritmética, geografia, zoologia, botânica e leitura.

Ela tem feito progressos consideráveis no estudo da aritmética. Explica prontamente os processos da multiplicação, adição, subtração e divisão e parece entender as operações. Ela quase terminou a aritmética mental de Colburn, seu último trabalho foi sobre frações impróprias.

Helen também vem trabalhando bem na aritmética escrita.

Sua mente funciona tão rapidamente que, com freqüência, quando lhe dou um exemplo, ela me dá a resposta correta antes que eu tenha tempo de escrever a pergunta. Ela não presta muita atenção à linguagem usada na enunciação de um problema e raramente pára para perguntar o significado de palavras ou frases desconhecidas até que esteja pronta para explicar seu trabalho.

Certa vez, quando uma questão a intrigou muito, sugeri que fizéssemos uma caminhada, quem sabe depois ela a entenderia. Helen sacudiu a cabeça e disse: "Meus inimigos vão pensar que eu estava fugindo. Preciso ficar e conquistá-los agora." E o fez.

O progresso intelectual de Helen nos últimos dois anos é demonstrado com maior clareza - mais do que em qualquer outro ramo de sua educação - no maior domínio da linguagem e na capacidade de reconhecer melhores nuances de significados no uso das palavras.

Não se passa um dia em que ela não aprenda muitas palavras novas; estas não são apenas nomes de objetos tangíveis e perceptíveis. Por exemplo, certo dia ela desejou saber o significado das seguintes palavras: fenômeno, abranger, energia, reprodução, extraordinário, perpétuo e mistério. Algumas dessas palavras têm sucessivos passos de significado, começando com o que é simples e conduzindo ao que é abstrato. Teria sido uma tarefa sem esperança fazer Helen compreender os significados mais ocultos da palavra mistério; mas ela entendeu logo que significava algo escondido ou oculto, e quando fizer um progresso maior captará seu significado mais oculto tão facilmente quanto o faz agora com o significado mais simples. Ao se investigar qualquer assunto, ocorrem no início palavras e frases que não podem ser adequadamente entendidas até que o aluno faça um avanço considerável; contudo, acho melhor continuar dando à minha aluna definições simples, pensando que, embora possam ser um tanto vagas e provisórias, irão ajudar umas às outras, e o que é obscuro hoje será comum amanhã.

Encaro minha aluna como um ser ativo e livre, cujos próprios impulsos espontâneos devem ser o meu guia mais seguro. Sempre falei com Helen exatamente como falaria com uma criança dotada de audição e visão, e insisto com outras pessoas para que façam o mesmo. Quando alguém me pergunta se ela entenderá esta ou aquela palavra, sempre respondo: "Não importa se entende ou não cada palavra isolada de uma frase. Ela perceberá os significados das novas palavras por sua conexão com as outras que ja conhece".

Ao selecionar livros para Helen, nunca escolho os que fazem referência à sua surdez ou cegueira. Ela sempre lê os livros que são lidos e usufruídos pelas crianças de sua idade que ouvem e enxergam. No início, é claro, foi necessário descrever coisas familiares e interessantes, e num inglês puro e simples. Lembro nitidamente sua primeira tentativa de ler uma pequena história. Ela conhecera as letras em relevo e, por algum tempo, divertira-se construindo pequenas frases, usando pedaços de papel com palavras com letras em relevo; mas tais frases não tinham nenhuma relação especial umas com as outras. Certa manhã pegamos um camundongo e me ocorreu - com um camundongo e um gato vivos para estimular o interesse de Helen - que poderia arrumar algumas frases de modo a formar uma pequena história e assim lhe dar uma nova concepção do uso da lingua. Então enquadrei as seguintes frases e dei-as a Helen. "O gato gostaria de comer o camundongo. Não deixe o gato pegar o camundongo. O gato pode tomar um pouco de leite e o camundongo comer um pouco de bolo." Ela não conhecia o artigo the (o), e é claro que quis que eu o explicasse. No estágio em que se encontrava, teria sido impossível explicar-lhe o uso da palavra; assim, não tentei fazê-lo, movendo seu dedo para a próxima palavra, que ela reconheceu com um sorriso luminoso.

Então, quando coloquei sua mão sobre um gato em cima da caixa, ela emitiu uma pequena exclamação de surpresa e o resto da frase tornou-se perfeitamente claro para ela.

Quando leu as palavras da segunda frase, mostrei-lhe que havia realmente um camundongo na caixa. Ela então moveu o dedo para a linha seguinte com uma expressão de ávido interesse. "O gato pode ver o camundongo." Então fiz o gato olhar para o camundongo e deixei Helen tocar o gato.

A expressão de Helen mostrou que estava perplexa. Chamei sua atenção para a linha seguinte e, embora ela só conhecesse as três palavras, gato, comer e camundongo, captou a idéia. Puxou o gato e o colocou no chão, ao mesmo tempo que cobria a caixa com o quadro com as palavras. Quando leu "Não deixe o gato pegar o camundongo!", ela reconheceu a negação na sentença e pareceu saber que o gato não devia pegar o camundongo. Pegar e deixe eram palavras novas.

Ela conhecia as palavras da última frase e ficou encantada quando lhe foi permitido vivê-las. Por sinais, ela me fez entender que queria outra história e eu lhe dei um livro contendo histórias muito curtas, escritas no estilo mais elementar. Ela passou os dedos pelas linhas, encontrando as palavras que sabia e adivinhando o significado de outras, de um modo a convencer o educador mais conservador de que uma criança surda aprenderá a ler tão fácil e naturalmente quanto uma criança comum, se lhe for dada a oportunidade.

Estou convencida de que o uso do inglês por Helen deve-se amplamente à sua familiaridade com os livros. Ela geralmente lê por duas ou três horas seguidas, pondo o livro de lado com relutância. Certo dia, quando deixávamos a biblioteca, notei que ela estava mais séria do que o normal e lhe perguntei por quê. "Estou pensando como sempre estamos mais sabidos quando saímos daqui do que quando chegamos", foi a resposta.

Certa vez, quando lhe perguntaram porque gostava tanto de livros, ela respondeu: "Porque eles me contam tantas coisas interessantes que não posso ver e nunca estão cansados ou perturbados como as pessoas". Eles "me contam uma porção de vezes o que eu quero saber".

Enquanto líamos A child history of England (A história de uma criança da Inglaterra), de Dickens, nos deparamos com a frase: "Mesmo assim o espírito dos bretões não foi esmagado". Perguntei a Helen o que entendia por aquilo.

Ela respondeu: "Acho que significa que os bravos bretões não ficaram desanimados porque os romanos tinham vencido tantas batalhas e quiseram expulsá-los ainda mais".

Teria sido impossível para ela definir as palavras nessa sentença, mas mesmo assim ela apreendera a intenção do autor, e foi capaz de transmiti-la com suas próprias palavras. As linhas seguintes eram ainda mais idiomáticas: "Quando Suetônio deixou o país, eles caíram sobre suas tropas e retomaram a ilha de Anglesea". Eis a interpretação da sentença por parte de Helen: "Significa que quando o general romano tinha ido embora, os bretões começaram a lutar de novo; e como os soldados romanos não tinham nenhum general para dizer a eles o que fazer, foram superados pelos bretões e perderam a ilha que tinham capturado".

Ela prefere ocupações intelectuais a manuais e não é tão adepta a trabalhos de agulha quanto muitas crianças cegas; mesmo assim fica ansiosa para juntar-se a elas no que quer que estejam fazendo. Há menos de um mês praticando, aprendeu a usar a máquina de escrever de caligrafia e escreve corretamente, embora não tão rápido.

Há mais de dois anos, um primo de Helen ensinou-a o alfabeto telegráfico fazendo os pontos e traços no dorso de sua mão com o dedo dele. Sempre que Helen encontra alguém familiarizado com esse sistema, fica encantada em usá-lo para conversar. Descobri que é um conveniente meio de me comunicar com Helen quando ela está a alguma distância de mim, pois me permite falar com ela batendo no chão com meu pé. Ela sente as vibrações e entende o que lhe é dito.

Esperava-se que alguém tão peculiarmente dotado pela natureza quanto Helen, se deixada inteiramente com seus próprios recursos, lançaria alguma luz sobre questões psicológicas cuja investigação não tenha sido esgotada pelo dr. Howe; mas as esperanças dessa gente não se concretizaram.

No caso de Helen, como no de Laura Bridgman, a decepção foi inevitável. Impossível isolar uma criança no meio da sociedade de modo a que ela não seja influenciada pelas crenças daqueles a quem está vinculada. No caso de Helen, tal objetivo não podia ser atingido sem privá-la das relações com os outros, essenciais à sua natureza.

Deve ter sido evidente, para os observadores do rápido desdobramento das faculdades de Helen, que não seria possível impedir o seu curioso espírito, por qualquer extensão de tempo, de querer apreender os insondáveis mistérios da vida. Mas muito cuidado tem sido tomado para não conduzir prematuramente seus pensamentos à consideração de assuntos que deixam perplexas e confusas todas as mentes. As crianças fazem perguntas profundas, mas recebem geralmente respostas rasas ou, mais precisamente, são caladas por tais respostas.

"De onde vim?" e "Para onde irei quando morrer?" foram perguntas que Helen fez aos oito anos de idade. Mas as explicações que ela podia entender naquela época não a satisfizeram, embora a forçassem a silenciar até que sua mente começasse a apresentar um potencial maior e pudesse generalizar a partir de inúmeras impressões e idéias que corriam para ela de livros e por suas experiências cotidianas. Sua mente desejava muito saber a causa das coisas.

À medida que a observação dos fenômenos por parte de Helen se tornou mais extensa e seu vocabulário mais rico e sutil, permitindo-lhe expressar as próprias concepções e idéias claramente, assim como compreender os pensamentos e experiências dos outros, ela entrou em contato com o limite do poder criativo humano. Percebeu que algum poder não humano, devia ter criado a terra, o sol e os milhares de objetos naturais com os quais ela tem perfeita familiaridade.

Finalmente, certo dia, perguntou o nome do poder, cuja existência ela já concebera na própria mente.

Através de Greek heroes, de Charles Kingsley, ela se familiarizou com as belas histórias dos deuses e deusas gregos e deve ter se deparado com as palavras Deus, céu, alma e grande quantidade de expressões similares nos livros.

Ela nunca perguntou o significado de tais palavras, nem fez qualquer comentário a respeito quando surgiram; até fevereiro de 1889, ninguém falara com ela sobre Deus.

Naquela época, uma parente querida, que era também uma zelosa cristã, tentou contar a Helen sobre Deus; mas como não usasse palavras adequadas à compreensão da criança, elas causaram pouca impressão na sua mente. Quando posteriormente conversei com ela, Helen disse: "Tenho uma coisa muito engraçada para lhe contar. A. diz que Deus me fez e fez todo o mundo da areia; mas deve ser brincadeira.

Sou feita de carne e osso e sangue, não sou?". Nesse momento ela examinou o próprio braço com evidente satisfação, rindo vigorosamente consigo mesma. Após um momento, continuou: "A. diz que Deus está em toda parte e que Ele é todo amor; mas não acho que uma pessoa pode ser feita toda de amor. Amor é apenas algo em nosso coração.

Então A. disse outra coisa muito engraçada. Ela disse que Ele (querendo dizer Deus) é meu pai querido. Isso me fez rir muito, pois eu sei que meu pai é Arthur Keller".

Expliquei-lhe que ela ainda não podia entender o que lhe fora dito e assim facilmente levei-a a ver que seria melhor não falar de tais coisas até que pudesse compreendê-las.

Helen deparara-se com a expressão Mãe Natureza no decorrer de suas leituras e por muito tempo adquiriu o hábito de atribuir à Mãe Natureza qualquer coisa que sentia estar além do poder do homem realizar. Ela dizia, falando do crescimento de uma planta: "Mãe Natureza manda o sol e a chuva para fazer as árvores, a relva e as flores crescerem".

Os trechos seguintes de minhas notas mostrarão quais eram suas idéias naquela época:

Helen parecia um pouco séria após o jantar e a sra. H. lhe perguntou o que pensava. "Estou pensando como a Mãe Natureza está ocupada na primavera", respondeu.

Quando lhe foi perguntado por que, Helen disse: "Porque ela tem tantos filhos para cuidar. Ela é a mãe de tudo; das flores, das árvores e dos ventos".

"Como a Mãe Natureza cuida das flores?", perguntei.

"Ela manda o sol e a chuva para fazer elas crescerem", respondeu Helen; e após um momento acrescentou: "Acho que o sol é o sorriso quente da Natureza e as gotas de chuva são suas lágrimas".

Mais tarde ela disse: "Não sei se a Mãe Natureza me fez. Acho que minha mãe me pegou do céu, mas não sei onde é esse lugar. Sei que margaridas e amores-perfeitos vêm de sementes postas no solo; mas crianças não crescem do solo, tenho certeza. Nunca vi uma planta-criança!

Mas não posso imaginar quem fez a Mãe Natureza, você pode? Adoro a bela primavera porque as árvores florescendo e as flores se abrindo e as folhas verdes e delicadas enchem meu coração de alegria. Agora preciso ver meu jardim. As margaridas e amores-perfeitos vão pensar que eu esqueci deles".

Após maio de 1890, tornou-se evidente para mim que, no ponto em que ela estava, seria impossível mantê-la à parte das crenças religiosas daqueles com quem Helen tinha um contato diário. Ela quase me esmagava com perguntas, resultado natural da crescente rapidez de sua inteligência.

No início de maio, ela escreveu em sua prancheta a seguinte lista de perguntas:

Eu gosto de escrever sobre coisas que não entendo.

Quem fez a terra e os mares e tudo?

O que faz o sol quente?

Onde eu estava antes de vir para minha mãe?

Sei que as plantas crescem de sementes no solo, mas tenho certeza de que as pessoas não crescem assim. Nunca vi uma planta-criança. Passarinhos e galinhas saem dos ovos. Eu já vi. O que era o ovo antes de ser ovo? Por que a terra não cai, se é tão grande e pesada? Me diga algo que o Pai Natureza faz. Posso ler o livro chamado Bíblia? Por favor, diga à sua aluninha muitas coisas quando tiver muito tempo.

Alguém pode duvidar, depois de ler essas perguntas, que a criança capaz de fazê-las era também capaz de entender pelo menos suas respostas elementares? Ela não podia, claro, apreender as abstrações que uma resposta completa a essas perguntas envolveria; mas a vida de alguém nada mais é do que um contínuo avanço na compreensão do significado e escopo de tais idéias.

Pela educação de Helen, tenho invariavelmente presumido que ela pode compreender tudo que seja desejável que saiba. Se não houvesse na mente de Helen um processo intelectual como as perguntas indicam, qualquer explicação dessas perguntas teria sido ininteligível para ela. Sem esse grau de atividade e desenvolvimento mentais que percebe a necessidade de um poder criativo super-humano, não é possível nenhuma explicação de fenômenos naturais.

Depois que Helen conseguiu formular as idéias que vinham lentamente crescendo em sua mente, essas pareceram subitamente absorver todos os seus pensamentos; quis com impaciência que tudo lhe fosse explicado. Enquanto passávamos por um grande globo pouco tempo depois de ter escrito as perguntas, ela parou diante dele e disse: "Quem fez o mundo real?". Respondi: "Ninguém sabe como a terra, o sol e todos os mundos que chamamos estrelas surgiram; mas vou contar a você como homens sábios tentaram explicar a origem deles e interpretar as grandes e misteriosas forças da natureza".

Ela sabia que os gregos tinham muitos deuses aos quais atribuíam vários poderes, porque acreditavam que o sol, o relâmpago e centenas de outras forças naturais eram poderes independentes e super-humanos. Mas eu lhe disse que após muito pensarem e estudarem, os homens passaram a crer que todas as forças eram manifestações de um poder e deram a esse poder o nome de Deus.

Ela ficou muito quieta por alguns minutos, evidentemente pensando seriamente. Então perguntou: "Quem fez Deus?". Senti-me impelida a ser evasiva, pois não lhe poderia explicar o mistério de um ser auto-existente. Na verdade, muitas de suas ávidas perguntas teriam intrigado alguém muito mais sábio do que eu. Aqui estão algumas delas: "Do que Deus fez os novos mundos?", "Onde conseguiu o solo e a água e as sementes e os primeiros animais?", "Onde está Deus?", "A senhorita já viu Deus algum dia?". Eu disse a ela que Deus estava em toda parte e que ela não devia pensar Nele como uma pessoa, e sim como a vida, a mente, a alma de tudo. Ela me interrompeu: "Tudo não tem vida. As rochas não têm vida e não podem pensar". Freqüentemente é necessário lembrar a ela que há uma infinidade de coisas que nem os mais sábios do mundo podem explicar.

Nenhum credo ou dogma tem sido ensinado a Helen, nem qualquer esforço feito para impor crenças religiosas à sua atenção. Totalmente consciente de minha própria incompetência para dar-lhe qualquer explicação adequada dos mistérios que jazem sob os nomes de Deus, alma e imortalidade, sempre me senti obrigada, por um senso de dever em relação à minha aluna, a dizer tão pouco quanto possível sobre questões espirituais. O reverendíssimo Phillips Brooks tem explicado a ela, de um belo modo, a paternidade de Deus.

Ainda não permiti que Helen lesse a Bíblia porque não vejo como possa fazê-lo no presente sem obter uma concepção errada dos atributos de Deus. Já contei a ela numa linguagem simples sobre a vida bela e útil de Jesus e sua morte cruel. A narrativa afetou-a grandemente quando a ouviu pela primeira vez.

Quando Helen referiu-se à nossa conversação novamente, foi para perguntar: "Por que não foi embora, para que seus inimigos não pudessem achá-Lo?". Considerou os milagres de Jesus muito estranhos. Quando lhe foi dito que Jesus andou sobre o mar para ir ao encontro dos discípulos, ela disse com decisão: "Não quer dizer andar, quer dizer nadar". Quando ouviu que Jesus fez o morto levantar, mostrou-se muito perplexa, dizendo: "Eu não sabia que a vida podia voltar ao corpo morto!".

Certo dia ela comentou com tristeza: "Sou cega e surda.

É por isso que não posso ver Deus". Ensinei-lhe a palavra invisível e lhe disse que não podíamos ver Deus com os nossos olhos porque Ele era um espírito; mas que quando nosso coração estava cheio de bondade e suavidade nós O víamos, porque então éramos mais parecidos com Ele.

Em outro momento ela perguntou: "O que é uma alma?". "Ninguém sabe como é uma alma", respondi, "mas sabemos que não é o corpo e é a parte de nós que pensa, ama e tem esperança, e que os cristãos acreditam que viverá para sempre depois que o corpo morrer". Então eu lhe perguntei: "Você consegue pensar em sua alma como separada do corpo?". "Ah, sim!", respondeu ela, "porque há uma hora atrás eu estava pensando muito no sr. Anagnos e então minha mente" - e mudando a palavra - "minha alma estava em Atenas, mas meu corpo estava aqui no escritório". Nesse momento, outro pensamento disparou por sua mente e ela acrescentou: "Mas o sr. Anagnos não falou com a minha alma". Expliquei-lhe que a alma também é invisível, ou, em outras palavras, que não tem forma aparente.

"Mas se eu escrevo o que minha alma pensa", disse ela, "então será visível e as palavras serão o seu corpo".

Há muito tempo Helen me disse: "Eu gostaria de viver 600 anos". Quando lhe foi perguntado se não gostaria de viver para sempre num lindo país chamado céu, sua primeira pergunta foi: "Onde é o céu?". Fui obrigada a confessar que não sabia, mas sugeri que poderia estar numa das estrelas. Um momento depois ela disse: "Por favor, pode ir lá primeiro e me contar tudo sobre ele?", e acrescentou: Tuscumbia é uma cidadezinha muito bonita.

Passou-se mais de um ano até ela voltar novamente ao assunto, e quando o fez, suas perguntas foram numerosas e persistentes. Ela perguntou: "Onde é o céu e como ele é?

Por que não podemos saber tanto sobre o céu como sobre países estrangeiros?" Eu lhe disse, numa linguagem muito simples, que havia muitos lugares chamados céu, mas que este era essencialmente uma condição - o preenchimento do desejo do coração, a satisfação de seu anseio; e que o céu existia sempre que o certo fosse reconhecido, acreditado e amado.

Ela evita a idéia da morte com evidente consternação. Recentemente, ao lhe ser mostrado um cervo derrubado por seu irmão, ela ficou muito angustiada, perguntando com tristeza: "Por que tudo tem de morrer, mesmo o cervo ligeiro?". Em outro momento perguntou: "Acha que seríamos muito mais felizes sempre se não tivéssemos de morrer?". Eu disse: "Não, porque se não houvesse morte, nosso mundo ficaria logo tão apinhado de criaturas vivas que seria impossível para qualquer delas viver confortavelmente".

"Mas", Helen afirmou, "acho que Deus poderia fazer mais alguns mundos tão bem como fez este aqui".

Quando amigos lhe contaram sobre a grande felicidade que a espera em sua outra vida, Helen imediatamente perguntou: "Como é que você sabe, se ainda não morreu?".

O sentido literal que às vezes confere a palavras e expressões idiomáticas comuns mostra como é necessário nos certificarmos de que ela receba seu significado correto. Quando lhe foi dito recentemente que os húngaros era musicistas natos, ela perguntou surpresa: "Eles cantam quando nascem?". Quando seu amigo acrescentou que alguns estudantes que vira em Budapeste tinham mais de cem melodias na cabeça, ela disse rindo: "Acho que a cabeça deles deve ser muito barulhenta". Ela vê o ridículo rapidamente e, em vez de ficar seriamente perturbada com a linguagem metafórica, freqüentemente se diverte com sua própria concepção excessivamente literal do significado.

Quando lhe foi dito que a alma não tinha forma, Helen ficou muito perplexa ante as palavras de Davi: "Ele conduziu a minha alma". "A alma tem pés? Ela pode andar?

É cega?", perguntou ela. Pois em sua mente a idéia de ser conduzido estava associada à cegueira.

De todos os assuntos que perturbam Helen e a deixam perplexa, nenhum a aflige tanto quanto o conhecimento da existência do mal e do sofrimento que dele resulta. Por muito tempo foi possível manter esse conhecimento longe dela e seria sempre comparativamente fácil impedi-la de entrar em contato pessoal com o vício e a maldade. O fato de que o pecado exista e que dele resulte uma grande infelicidade ocorreu-lhe gradualmente, à medida que entendia cada vez com mais clareza a vida e a experiência daqueles em torno dela. A necessidade de leis e punição teve de lhe ser explicada. Ela achou muito difícil reconciliar a presença do mal no mundo com a idéia de Deus que lhe tinha sido apresentada.

Certo dia ela perguntou: "Deus toma conta de nós o tempo todo?". Foi-lhe respondido que sim. "Então por que ele deixou irmãzinha cair esta manhã e machucar tanto a cabeça?". Outra vez ela perguntava sobre o poder e a bondade de Deus. Quando soube de uma terrível tempestade no mar em que várias pessoas haviam morrido, ela perguntou: "Por que Deus não salvou essas pessoas, se pode fazer todas as coisas?".

Rodeada por amigos afetuosos e as influências mais gentis, como Helen sempre foi, ela tem, desde os primeiros estágios de seu esclarecimento intelectual, agido corretamente de modo voluntário. Ela sabe com um inequívoco instinto o que é certo e o faz com alegria. Ela não acha que um ato errado é inofensivo, outro sem importância e outro não-intencional. Para sua alma pura todo mal é igualmente desagradável.

As seguintes passagens do trabalho preparado pela srta. Sullivan para a reunião em Chautauqua, em julho de 1894, da American Association to Promote the Teaching of Speech to the Deaf contêm o último relato escrito por ela sobre seus métodos.

Não se deve pensar que, assim que Helen captou a idéia de tudo ter um nome, ela passou a dominar imediatamente o tesouro da lingua inglesa. Ou que "suas faculdades mentais emergiram, totalmente armadas, de seu então túmulo vivo, como Palas Atena da cabeça de Zeus", como um de seus entusiásticos admiradores teria nos feito acreditar. No início, as palavras, frases e sentenças que usava para expressar seus pensamentos eram todos reprodução do que havíamos usado em conversas com ela e que sua memória retivera inconscientemente. De fato, isso é verdade quanto à linguagem de todas as crianças, que é a lembrança do que ouvem falar em seus lares. Incontáveis repetições de conversas da vida cotidiana imprimem certas palavras e frases em sua memória, e quando essas crianças passam a falar, a memória fornece as palavras que balbuciam. Da mesma forma, a linguagem de pessoas instruídas é a lembrança da linguagem dos livros.

A linguagem nasce da vida, de suas necessidades e experiências. No início, a mente de minha pequena aluna estava totalmente vazia. Ela estava vivendo num mundo que não podia perceber. Linguagem e conhecimento estão indissoluvelmente ligados; são interdependentes. O bom trabalho em linguagem pressupõe e depende de um real conhecimento das coisas. Assim que Helen captou a idéia de que tudo tinha um nome e que por meio do alfabeto manual tais nomes podiam ser transmitidos de uma pessoa para outra, passei a aprofundar seu interesse nos objetos cujos nomes ela aprendera a soletrar com tão evidente alegria.

Jamais ensinei a linguagem com o OBJETIVO de ensiná-la, e sim, invariavelmente, usei a linguagem como um meio para a comunicação do pensamento; portanto, o aprendizado da linguagem coincidiu com a aquisição do conhecimento. Para utilizar a linguagem de modo inteligente, precisa-se ter algo sobre o que falar, e algo sobre o que falar é o resultado de ter experiências; nenhuma quantidade de treinamento de linguagem capacitará nossas criancinhas a usar a linguagem com facilidade e fluência, a menos que tenham claramente em mente o que desejam comunicar, ou a menos que tenhamos êxito em despertar nelas o desejo de saber o que está na mente dos outros.

Inicialmente, procurei não confinar minha aluna em qualquer sistema. Sempre tentei encontrar o que a interessava mais, fazendo disso o ponto de partida para uma nova aula, tivesse isso qualquer relação ou não com a aula que eu havia planejado. Durante os primeiros dois anos da vida intelectual de Helen, pedi que ela escrevesse muito pouco. Para se escrever, é preciso ter algo sobre o que escrever, e tal coisa exige alguma preparação mental. A memória precisa de um estoque de idéias e a mente tem de estar enriquecida com conhecimento, antes que escrever se torne um esforço natural e prazeroso. Com freqüência excessiva, penso eu, exige-se que as crianças escrevam antes que tenham algo a dizer.

Se as ensinarmos a pensar, ler e falar sem auto-repressão, elas escreverão porque não poderão evitá-lo.

Helen adquiriu a linguagem mais pela prática e pelo hábito do que pelo estudo de regras e definições. A gramática, com sua intrigante disposição de classificações, nomenclaturas e paradigmas foi totalmente descartada da educação de Helen. Ela aprendeu a linguagem ao ser posta em contato com a própria linguagem viva; foi levada a lidar com ela na conversação diária e em seus livros, e a movê-la de diversos modos até ser capaz de usá-la corretamente. Sem dúvida, falei muito mais com os dedos, mais constantemente do que devia ter feito com a boca, pois se Helen pudesse ver e ouvir, teria sido menos dependente de mim para entretenimento ou instrução.

Acredito que cada criança tem, escondidas em algum lugar de seu ser, capacidades nobres que podem ser avivadas e desenvolvidas se lidarmos com elas da maneira certa, mas jamais desenvolveremos apropriadamente a natureza mais elevada de nossos pequeninos enquanto continuarmos a preencher suas mentes com os chamados rudimentos.

A matemática nunca os fará afetuosos, nem o preciso conhecimento do tamanho e da forma do mundo os ajudará a apreciar suas belezas. Vamos conduzi-los nos primeiros anos a encontrar seu maior prazer na Natureza.

Que corram pelos campos, aprendam sobre os animais e observem coisas reais. As crianças educarão a si próprias nas condições certas. Elas requerem muito mais orientação e solidariedade do que instrução.

Penso que boa parte da fluência com que Helen usa a linguagem deve-se ao fato de que quase toda impressão que recebe vem por meio da linguagem. Mas fazendo-se a devida concessão à sua natural aptidão para adquirir linguagem e à vantagem resultante de seu meio ambiente peculiar, acho que mesmo assim descobriremos que a companhia constante de bons livros tem sido de suprema importância na sua educação. É possível, como sustentam alguns, que a linguagem não possa expressar para nós muito além do que temos vivido e experimentado, mas tenho observado sempre que as crianças manifestam o maior encanto pela linguagem de qualidade elevada e poética, que consideramos apressadamente estar além da compreensão delas.

"Isso é tudo que vocês vão compreender", disse uma professora para uma turma de crianças pequenas, fechando o livro que estivera lendo para elas. "Ah, por favor, leia o resto, mesmo se não entendermos", pediram elas, encantadas com o ritmo e a beleza que sentiram, mesmo sem poder explicá-los. Não é necessário que uma criança entenda cada palavra de um livro antes de poder lê-lo com prazer e proveito. Na verdade, tais explicações só devem ser dadas se forem realmente essenciais. Helen bebeu numa linguagem que inicialmente não podia entender, e esta permaneceu em sua mente até ser necessitada, quando então ajustou-se natural e facilmente às suas conversas e composições. Na verdade, é de opinião de alguns que ela lê demais, que boa parte da força criativa é dissipada no fruimento dos livros; que quando ela puder ver e dizer coisas por si mesma, só as verá pelos olhos dos outros e as dirá na linguagem deles; mas estou convencida de que uma redação original sem ser preparada por muita leitura é impossível. Helen tem sido apresentada constantemente aos melhores e mais puros modelos de linguagem, e sua conversa e escrita são reproduções inconscientes do que tem lido. Penso que a leitura deva ser mantida independentemente dos exercícios escolares regulares. As crianças devem ser encorajadas a ler por puro encantamento com a atividade. A atitude da criança em relação a seus livros deve ser de uma receptividade inconsciente. As grandes obras da imaginação devem tornar-se uma parte de sua vida, como já foram outrora a própria substância dos homens que as escreveram. É verdade que, quanto mais sensível e imaginativa for a mente que recebe os quadros-pensamentos e as imagens da literatura, mais bem serão reproduzidas as linhas mais belas.

Helen tem a vitalidade da emoção, o frescor e a avidez do interesse e o insight espiritual do temperamento artístico; e naturalmente tem uma alegria mais ativa e intensa na vida, simplesmente como vida e natureza, livros e pessôas, do que mortais menos bem-dotados. Sua mente está tão cheia de belos pensamentos e idéias dos grandes poetas que nada parece lugar-comum para ela, pois sua imaginação cobre toda a vida com seus próprios tons ricos.

Δ

 


 

CAPÍTULO IV

FALA

As duas pessoas que escreveram com autoridade sobre a fala da srta. Keller e seu modo de aprendizado são a srta. Sarah Fuller, da Horace Mann School for the Deaf, em Boston, Massachusetts, que deu a srta. Keller as primeiras aulas, e a srta. Sullivan que, por sua incansável disciplina, levou adiante o sucesso daquelas primeiras aulas.

Antes que eu cite o relato da srta. Sullivan, gostaria de tentar dar uma impressão da fala da srta. Keller e da sua qualidade de voz no presente.

Sua voz é baixa e agradável de se ouvir. Sua fala carece de variedade e modulação; assemelha-se a uma melopéia quando ela está lendo alto; e quando a srta. Keller fala com uma altura razoável, sua voz paira cerca de dois ou três tons médios. Sua voz tem uma qualidade aspirada; parece sempre haver respiração demais para a quantidade de tom. Algumas de suas notas são musicais e encantadoras. Quando conta uma história de criança, ou uma história que contém pathos (sentimentos), sua voz corre em bonitos amalgamas de um tom para outro. E como o efeito de retardar-se em palavras compridas, não muito bem manejadas, que se nota numa criança contando uma história solene.

Faltam-lhe principalmente a tônica na sentença e a variedade na inflexão de frases. A srta. Keller pronuncia cada palavra como um estrangeiro quando ainda está elaborando os elementos da sentença, ou como as crianças lêem às vezes na escola, quando têm de escolher cada palavra.

Ela fala francês e alemão. Seu amigo, sr. John Hitz, cuja lingua materna é o alemão, diz que sua pronúncia é excelente. Outro amigo, que tem familiaridade tanto com o francês quanto com o inglês, acha o francês dela muito mais inteligível do que seu inglês.

Quando a srta. Keller fala inglês, distribui a ênfase como em francês e, assim, não coloca suficientemente tensão em sílabas acentuadas. Por exemplo, ela fala "pro'-vo'-ca'-tion'", "in'-di'-vi'-du'-at'", sempre com uma pequena diferença entre o valor das sílabas e uma grande quantidade de inconsistência na pronúncia da mesma palavra de um dia para o outro. Acho que seria difícil fazê-la sentir como pronunciar dictionary (dicionário) sem que a palavra se extravie para dictionayry ou para dictionry, já que a palavra não é uma coisa nem outra. Nenhum sistema de marcação num léxico pode dizer a alguém como pronunciar uma palavra; o único modo é ouvi-la, especialmente numa lingua como o inglês, tão cheia de vogais e semivogais insoletráveis e suprimidas.

As vogais da srta. Keller não são firmes. Seu awful (horrível) é quase awfil. A ondulação é causada pela ausência de inflexão em ful pois ela pronuncia full corretamente.

Ela às vezes pronuncia erradamente quando lê alto e se depara com uma palavra que talvez nunca tenha pronunciado, embora possa tê-la escrito muitas vezes. Essa dificuldade e algumas outras podem ser corrigidas quando ela e srta. Sullivan tiverem mais tempo. Desde 1894, estão tão mergulhadas em seus livros que negligenciaram tudo que não fosse necessário à tarefa imediata de passar os anos da escola com êxito. A srta. Keller nunca foi capaz, acho eu, de falar alto sem destruir a qualidade agradável e a nitidez de suas palavras, mas pode fazer muito para tornar sua fala mais clara.

Quando a srta. Keller estava na Wright-Humason School em Nova York, dr. Humason tentou melhorar-lhe a voz, não apenas a pronúncia das palavras mas a voz em si, dando-lhe aulas de tom e exercícios vocais.

É difícil dizer se a fala da srta. Keller é ou não fácil de entender. Alguns a entendem prontamente, outros não. Seus amigos acostumaram-se com a fala dela e esquecem que é diferente de qualquer outra. As crianças raramente têm qualquer dificuldade de entendê-la, o que sugere que o discurso deliberado e medido da srta. Keller é como o delas, antes de chegarem ao truque adulto de fazer todas as palavras de uma frase passarem correndo num único movimento da respiração. Disseram-me que a srta. Keller fala melhor do que a maioria dos outros surdos. O trecho seguinte é o seu discurso na quinta reunião da American Association to Promote the Teaching of Speech to the Deaf, em Mt. Airy, Filadélfia, Pensilvânía, 8 de julho de 1896.


Discurso de Helen Keller em Mt. Airy

Se vocês soubessem de toda a alegria que sinto ao ser capaz de falar para vocês hoje, acho que teriam uma idéia do valor da fala para o surdo e entenderiam por que desejo que cada criança surda por todo esse grande mundo tenha a oportunidade de aprender a falar. Sei que muito tem sido dito e escrito sobre esse assunto e que há uma grande divergência de opinião entre professores de surdos com relação à instrução oral. Parece-me muito estranho que haja tal divergência; não consigo entender como qualquer um interessado em nossa educação possa deixar de avaliar a satisfação que sentimos em poder expressar nossas idéias em palavras vivas. Ora, usamos a fala constantemente e consigo lhes dizer todo o prazer que me dá fazê-lo. Sei, é claro, que nem sempre é fácil para os estranhos me entenderem, mas pouco a pouco o será. Enquanto isso tenho a inominável felicidade de saber que minha família e meus amigos se rejubilam com minha capacidade de falar.

Minha irmãzinha e meu irmão ainda bebê adoram que eu lhes conte histórias nas longas noites de verão, quando estou em casa; e minha mãe e minha professora geralmente me pedem para ler para elas meus livros favoritos.

Também discuto a situação politica com meu querido pai e decidimos as questões mais perturbadoras muito satisfatoriamente para nós como se eu pudesse ver e ouvir. Portanto, vocês vêem que bênção é a fala para mim. Ela produz uma relação mais próxima e terna com os que amo e torna possível para mim usufruir a doce companhia de muita gente de quem eu estaria inteiramente separada se não pudesse falar.

Lembro-me do tempo anterior a meu aprendizado da fala e de como eu lutava para expressar as idéias por meio do alfabeto manual - como essas idéias debatiam-se contra as pontas dos meus dedos como passarinhos esforçando-se para ganhar a liberdade, até que um dia a srta. Fuller escancarou a porta da prisão e as deixou escapar. Cogito se ela se lembra quão ávida e alegremente as idéias abriram as asas e voaram para longe. No início, é claro, não foi fácil voar. As asas-fala eram fracas e quebradas e tinham perdido toda graça e beleza de outrora; na verdade, nada sobrara exceto o impulso de voar, mas isso já era alguma coisa. A pessoa não pode se permitir rastejar quando sente um impulso de pairar nas alturas. Apesar disso, porém, parecia-me às vezes que eu jamais poderia usar minhas asas-fala como Deus pretendeu que eu as usasse; havia tantas dificuldades no caminho, tanto desencorajamento; mas continuei tentando, sabendo que paciência e perseverança venceriam no final. E, enquanto eu trabalhava, construía os mais belos castelos no ar e tinha sonhos, os mais agradáveis sobre a época em que pudesse falar como as outras pessoas; a idéia do prazer que daria à minha mãe ouvir minha voz mais uma vez também suavizava cada esforço e fazia de cada fracasso um incentivo para tentar com mais afinco na vez seguinte. Portanto, quero dizer àqueles que estão tentando aprender a falar e aos que os estão ensinando: tenham ânimo. Não pensem nas falhas de hoje e sim no sucesso que pode chegar amanhã. Vocês empreendem uma tarefa difícil, mas terão êxito se persistirem; e vão descobrir uma alegria em superar obstáculos - um encantamento em escalar ásperos caminhos que vocês jamais sentiriam se às vezes não escorregassem para trás e se a estrada fosse sempre suave e agradável. Lembrem-se, nenhum esforço que fazemos para atingir algo belo é perdido.

Em algum momento, em algum lugar, de algum modo encontraremos o que buscamos. Vamos falar sim e cantar também, como Deus pretendeu que falássemos e cantássemos.

 

Δ

 


 

CAPÍTULO V
ESTILO LITERÁRIO

Ninguém pode ler a autobiografia da srta. Keller sem sentir que ela escreve num inglês extraordinariamente elegante.

Qualquer professor de redação sabe que pode levar os alunos a escreverem sem erros na sintaxe ou na escolha das palavras. É exatamente tal precisão que a educação inicial da srta. Keller fixa como o ponto ao qual qualquer criança saudável pode ser levada e que a análise daquela educação explica. Os que tentam fazer da srta. Keller uma exceção, que não pode ser explicada por qualquer análise de sua instrução inicial, fortalecem sua posição por um apelo à notável excelência do uso da linguagem pela srta. Keller mesmo quando era criança.

Tal reivindicação é válida até certo ponto pois, de fato, essas harmonias adicionais da linguagem e belezas de pensamento que fazem o estilo são presentes dos deuses. Nenhum professor poderia ter feito Helen Keller ser sensível à beleza da linguagem e ao mais sutil jogo de pensamento, que exige expressão num agrupamento melodioso de palavras.

Ao mesmo tempo, o dom inato do estilo pode morrer de fome ou ser estimulado. Nenhum gênio inato pode inventar uma bonita linguagem. A matéria de que o bom estilo é feito precisa ser dada à mente de fora, e dada habilidosamente. Uma filha das musas não pode escrever um bom inglês a não ser que um bom inglês tenha sido a sua nutrição. Nisso, como em todas as outras coisas, a srta. Sullivan tem sido uma sábia professora. Se ela não tivesse tido gosto e entusiasmo pelo bom inglês, Helen Keller poderia ter sido educada com a Juvenile literature (Literatura juvenil), que diminui a linguagem fingindo usar frases simples para crianças, como se um livro infantil não pudesse ter um bom estilo, como A ilha do tesouro, Robinson Crusoé ou O livro da selva.

Se a srta. Sullivan escrevesse num inglês elegante, a beleza do estilo de Helen Keller seria em parte imediatamente explicável.

Mas os trechos das cartas e relatos da srta. Sullivan, embora claros e precisos, não têm a beleza que distingue os textos da srta. Keller.

Seus serviços como professora de inglês não devem ser medidos por sua própria habilidade em composição. O motivo que a fez ler para a aluna tantos bons livros é devido ao fato, em certa medida, de que só tivesse recobrado a própria visão há pouco tempo. Quando se tornou professora de Helen Keller, a srta. Sullivan acabara de despertar para as boas coisas que estão nos livros, das quais estivera afastada durante os anos de cegueira.

Na biblioteca do capitão Keller, ela encontrou livros excelentes, Contos de Shakespeare, de Lamb e, melhor ainda, Montaigne. Mais ou menos após o primeiro ano de trabalho elementar, ela juntou-se à aluna em termos de igualdade e ambas liam e usufruiam bons livros juntas.

Além da escolha de bons livros, há outro motivo para a excelência do texto da srta. Keller, para a qual a srta. Sullivan merece um crédito ilimitado. É sua incansável e incessante disciplina, evidente em todo o seu trabalho. Ela jamais permitiu que a aluna mandasse cartas contendo ofensas ao bom gosto; fazia com que a srta. Keller as escrevesse repetidamente até ficarem não apenas corretas mas também encantadoras e num bom estilo.

Qualquer um que já tentou escrever sabe o quanto a srta. Keller deve à interminável prática que a srta. Sullivan exigia dela.

Se um professor com gosto pelo bom estilo insistir com uma criança para que escreva repetidamente um parágrafo até ficar mais do que correto, ele estará treinando, além de seu próprio poder de expressão, o poder de expressão na criança.

Até que ponto a srta. Sullivan levou esse processo de refinamento e seleção é evidente no bem-humorado comentário do dr. Bell: que ela fizera de sua aluna uma velhinha, extremamente diferente das crianças comuns por sua maturidade de pensamento.

Quando dr. Bell disse isso, ele estava defendendo seu próprio ponto de vista, pois fora o primeiro a ver os princípios que norteiam o método da srta. Sullivan e a explicar o processo pelo qual Helen Keller absorveu a linguagem dos livros.

Além disso, há mais um motivo pelo qual Helen Keller escreve um bom inglês, que jaz na própria ausência de visão e audição. As desvantagens de ser surda e cega foram superadas e as vantagens continuaram. Ela se destaca entre os outros surdos porque foi ensinada como se fosse normal. Por outro lado, o valor peculiar que a linguagem tem para ela, linguagem essa que as pessoas comuns consideram garantida, uma parte necessária, como a mão direita, fez a srta. Keller pensar na linguagem e amá-la.

A linguagem foi a sua libertadora, e desde o início ela a considerou um bem precioso.

A prova de sua habilidade prematura no uso do inglês e o comentário final sobre a excelência de todo esse método de ensino está contido num incidente que, embora à época parecesse um infortúnio, não pode mais ser lamentado. Refiro-me ao episódio do The frost king, que explicarei com detalhes. A srta. Keller fez seu relato dele e a questão inteira foi discutida no primeiro Souvenir do Volta Bureau, do qual cito por extenso:


Relato da srta. Sullivan sobre "The frost king"

Hon. John Hitz
Superintendente do Volta Bureau,
Washington, DC.

Caro senhor: desde que meu trabalho foi preparado para a segunda edição do Souvenir "Helen Keller", alguns fatos trazidos à minha atenção mostraram-se de interesse com relação à aquisição da linguagem por parte de minha aluna, e se não for tarde demais para sua publicação neste número, ficarei contente de ter a oportunidade de explicá-los em detalhe.

Talvez seja lembrado que em meu texto, onde há uma alusão à memória notável de Helen, observei que ela parece reter na mente muitas formas de expressão que provavelmente não entende quando recebidas; porém, com a aquisição de informação ulterior, a linguagem retida na lembrança de Helen encontra expressão total ou parcial em sua conversa ou em seus textos, segundo o maior ou menor valor para ela quanto à justeza de sua aplicação à nova experiência. Sem dúvida isso é verdade no caso de todas as crianças inteligentes e talvez não devesse ser considerado digno de menção

Nesse texto a srta. Sullivan diz: "Durante este inverno (1 891-92) fui com ela ao pátio enquanto nevava levemente e a deixei sentir os flocos que caíam.

Helen pareceu gostar muito da experiência. Enquanto entrávamos, ela repetia as palavras: "O inverno sacode a neve das dobras de nuvem de sua roupa".

Perguntei-lhe onde havia lido isso; ela não lembrava de tê-lo lido, nem parecia saber que o havia aprendido. Como eu jamais ouvira aquilo, perguntei a vários amigos meus se lembravam das palavras; ninguém conseguiu lembrar-se delas. Os professores da Instituição opinaram que a descrição não aparecia em nenhum livro impresso em relevo; contudo uma senhora, a srta. Marrett, assumiu a tarefa de examinar livros de poesia em tipo comum, e foi recompensada encontrando os seguintes versos num dos poemas menos importantes de Longfellow chamado Snow flakes.

No caso de Helen, exceto pelo fato de não se esperar que uma criança privada da visão e da audição seja mentalmente tão dotada quanto esta menina; assim, é bem possível que possamos tender a classificar como maravilhosas muitas coisas que descobrimos no desenvolvimento da mente dela que não mereçam tal conotação.

Na esperança de que eu possa ser perdoada se pareço superestimar a notável capacidade mental e poder de compreensão e discriminação de minha aluna, desejo acrescentar que, embora sempre tenha tido conhecimento do grande uso feito por Helen de tais descrições e comparações por apelarem para sua imaginação e natureza poética, desenvolvimentos recentes em seus textos me convencem de que no passado eu não tinha uma noção exata de até que ponto ela absorve a linguagem de seus autores preferidos.

No período inicial de sua educação, eu tinha total conhecimento de todos os livros que ela lia e de quase todas as histórias que lhe eram lidas, e podia traçar sem dificuldade a fonte de qualquer adaptação observada em seus textos ou conversas; e sempre fiquei muito contente de observar quão apropriadamente ela aplica as expressões de um autor favorito em suas próprias redações.

Parece que Helen aprendera e guardara na memória esses versos do poeta, e a manhã com a tempestade de neve evocara sua aplicação."

Os trechos seguintes de algumas de suas cartas publicadas mostram quanto tem sido valioso para Helen o poder de reter a lembrança de uma bela linguagem. Um dia ensolarado e tépido no início da primavera, quando estávamos no Norte, a balsâmica atmosfera parece ter trazido à mente de Helen o sentimento expressado por Longfellow em Hiawatha, e ela quase cantou com o poeta: "O solo estava todo trêmulo de nova vida. Meu coração cantava de pura alegria. Pensei em minha casa querida. Eu sabia que naquela terra ensolarada, a primavera chegara com todo o esplendor. Todos os seus pássaros e todos os seus botões, todas as suas flores e todas as suas relvas."’ Aproximadamente na mesma época, em carta para um amigo em que ela faz menção a seu lar no Sul, Helen reproduz com tanta semelhança um poema de um de seus autores preferidos que darei trechos da carta de Helen e do próprio poema.


Trechos da carta de Helen^:

[A carta completa está publicada no Relatório da Instituição Perkins de 1891]

O azulão com suas plumas azul-céu, o tordo todo envolto em marrom, o rouxinol golpeando com sua garganta espasmódica, o papafigo se afastando como um floco de fogo, o triste-pia animado e sua companheira feliz, o pássaro-das-cem-línguas imitando as notas de todos, o cardeal com seu único e doce trinado e a ocupada cambaxirrazinha, todos fazem das árvores em nosso pátio da frente ressoarem com suas canções alegres.


Trechos do poema Spring, de Oliver Wendell Holmes

O azulão respirando de suas plumas azul-céu
O perfume que lhe empresta as flores de pervinca;
O tordo, pobre errante, descendo humildemente,
Envolto em seus restos de marrom outonal;
O papafigo, afastando-se como um floco de fogo
Roubado por um turbilhão de uma cúpula fulgurante;
O rouxinol, golpeando com a garganta espasmódica,
Repete imperioso sua nota staccato;
O doidinho triste-pia corteja a companheira maluca,
Pousado num junco bêbado com o seu peso:
Além disso, na gaiola, canta o canário solitário,
Sente o ar suave e estende as asas ociosas.

No último dia de abril, Helen usa outra expressão do mesmo poema, que é mais uma adaptação do que uma reprodução:

"Amanhã abril esconderá suas lágrimas e rubores sob as flores do adorável maio".

Em uma carta para uma amiga da Instituição Perkins, datada de 17 de maio de 1889, ela reproduz uma história de Hans Christian Andersen que eu lera para ela não muito tempo antes. Tal carta está publicada no Relatório da Instituição Perkins (1891), p. 204.

A história original foi lida para ela de um volume dos Contos de Andersen, publicadas por Leavitt & Allen Bros. e pode ser encontrada na p. 97 da parte 1 daquele volume.

Sua admiração pelas impressionantes explicações que o bispo Brooks lhe dera sobre a Paternidade de Deus é bem conhecida. Em uma das cartas dele, explicando como Deus nos fala, de todos os modos, sobre Seu amor, diz o bispo: "Acho que ele escreve que é o nosso Pai até nos muros da grande casa da natureza em que vivemos". No ano seguinte, em Andover, Helen disse: "Parece que o mundo está cheio de bondade, beleza e amor; e como devemos ser gratas a nosso Pai celestial, que nos deu tanto para usufruir! Seu amor e cuidados estão escritos em todos os muros da natureza".

Nesses últimos anos, desde que Helen começou a se relacionar com tantas pessoas capazes de conversar livremente com ela, entrou em contato com parte da literatura com a qual não estou familiarizada; também achou em livros impressos em relevo, em cuja leitura não consegui acompanhá-la, muito material para o cultivo do seu gosto pela imagem poética. As páginas do livro que lê se tornam para ela pinturas a que seu poder imaginativo dá vida e cor. Ela é imediatamente transportada para o meio dos acontecimentos retratados na história que lê ou lhe é contada e os personagens e descrições tornam-se reais para ela; Helen rejubila-se quando a justiça vence e se entristece quando a virtude não é recompensada. Os quadros que a linguagem pinta em sua memória parecem causar uma impressão indelével; e muitas vezes, quando ocorre a Helen uma experiência semelhante, a linguagem se destaca com a maravilhosa exatidão do reflexo de um espelho.

A mente de Helen é tão bem-dotada pela natureza que ela parece entender com um leve toque de explicação cada variedade possível de relações externas. Certo dia, no Alabama, enquanto colhia flores do campo perto das fontes nos flancos da colina, ela pareceu entender pela primeira vez que as fontes eram rodeadas por montanhas e então exclamou: "As montanhas estão se amontoando à volta das fontes para olhar para seus belos reflexos!". Não sei onde ela obteve essa linguagem, mas é evidente que lhe deve ter chegado de fora, pois seria quase impossível que tal idéia se originasse numa pessoa privada da visão.

Mencionando uma visita a Lexington, Mass., ela escreve: "Enquanto rodávamos por ali podíamos ver os monarcas da floresta curvando suas formas orgulhosas para ouvir as criancinhas dos bosques sussurrando seus segredos. A anêmona, a violeta selvagem, a hepática e as engraçadas samambaiazinhas enrodilhadas, todas nos espiavam por baixo das folhas marrons". Ela encerra essa carta com "Eu preciso ir para cama, pois Morfeu tocou minhas pálpebras com sua varinha dourada". Mais uma vez sou incapaz de dizer onde ela adquiriu tais expressões.

Helen sempre pareceu preferir histórias que exercitam a imaginação e capturam e retêm o espírito poético em tal literatura; mas só no inverno tive noção de que sua memória absorvia a linguagem exata em tal extensão que ela própria é incapaz de rastrear a fonte original.

Isso é demonstrado numa pequena história que escreveu em outubro passado, na casa de seus pais em Tuscumbia, a qual ela chamou de Folhas do outono. Trabalhava nela há cerca de duas semanas, escrevendo um pouco a cada dia, para seu próprio prazer. Quando a história foi terminada e a lemos em família, provocou muitos comentários pela beleza das imagens, e não podíamos entender como Helen conseguia descrever tais quadros sem a ajuda da visão.

Como jamais havíamos visto ou ouvido tal história antes, perguntamos a ela onde a lera; ela respondeu: "Não a li; é a minha história para o aniversário do sr. Anagnos".

Embora eu ficasse surpresa de que ela pudesse escrever assim, eu não estava mais perplexa do que já ficara muitas vezes ante os feitos inesperados de minha alunazinha, especialmente quando já havíamos trocado muitas idéias bonitas sobre o tema da glória da folhagem amadurecendo durante o outono desse ano.

Antes de Helen fazer sua cópia final da história, foi-lhe sugerido que mudasse o título para The frost king como mais apropriado ao assunto tratado pela história; ela concordou de bom-grado. A história foi escrita por Helen em braile, como de hábito, e copiada por ela da mesma maneira; então intercalei o manuscrito [com inglês comum] para maior conveniência dos que desejavam lê-lo. Helen escreveu uma pequena carta e, incluindo o manuscrito, despachou-os pelo correio para o sr. Anagnos pelo aniversário deste.

A história foi publicada no número de janeiro do Mentor, e, por uma resenha dela na Goodson Gazette, fiquei espantada ao descobrir que uma história muito semelhante fora publicada em 1873, sete anos antes de Helen nascer. Essa história, The frost fairies, aparecera num livro escrito pela srta. Margaret T. Canby chamado Birdie and his fairy friends (Birdie e suas amigas fadas). Os trechos citados das duas histórias eram tão parecidos em idéia e expressão que me convenceram de que a história da srta. Canby deve ter sido em algum momento lida para Helen.

Como eu jamais lera essa história ou ouvira falar do livro, perguntei a Helen se ela sabia algo a respeito e descobri que não. Ela foi totalmente incapaz de lembrar-se do nome da história ou do livro. Um exame cuidadoso foi feito nos livros em relevo da biblioteca da Instituição Perkins, para ver se qualquer trecho daquele volume podia ser encontrado lá; mas nada foi descoberto. Então concluí que a história devia ter sido lida para ela há muito tempo, já que sua memória geralmente retém com grande clareza fatos e impressões confiados à sua guarda.

Após cuidadoso inquérito, consegui obter a informação de que nossa amiga, a sra. S. C. Hopkins, tinha uma edição daquele livro de 1888, que fora presenteado à sua filhinha em 1873 ou 1874. Helen e eu passamos o verão de 1888 com a sra. Hopkins em sua casa em Brewster, Mass., onde ela amavelmente se revezou comigo, parte do tempo, nos cuidados com Helen. Ela divertiu e distraiu Helen lendo-lhe de uma coleção de publicações juvenis, entre as quais estava o volume de Birdie and his fairy friends e embora a sra. Hopkins não se lembre de The frost fairies, ela tem certeza de que leu trechos, se não histórias inteiras, daquele volume para Helen. Mas como não conseguiu encontrar seu volume, e solicitações nas livrarias de Boston, Nova York, Filadélfia, Albany e outros lugares resultassem em fracasso, a pesquisa foi dirigida para a própria autora. Isso se tornou uma tarefa difícil, já que seus editores na Filadélfia haviam se retirado do negócio há muitos anos; entretanto, descobriu-se posteriormente que sua residência é em Wilmington, Delaware, e volumes da segunda edição do livro, de 1889, foram obtidos da autora. Então a srta. Canby guardou um volume da primeira edição e o despachou para mim.

A srta. Canby enviou as cartas mais generosas e gratificantes aos amigos de Helen e trechos delas são reproduzidos aqui. Em 24 de fevereiro de 1892, após mencionar a ordem da publicação das histórias na revista, a srta. Canby escreve:

Todas as histórias foram revisadas antes da publicação em forma de livro; fizeram-se adições quanto ao número na publicação inicial, acho eu, e alguns títulos podem ter sido mudados.

Na mesma carta ela escreve:

Espero que Helen entenda que fiquei contente de ela ter gostado de minha história e que espero que o novo livro lhe dê prazer, renovando sua amizade com as Fadas.

Escreverei a ela dentro em pouco. Fiquei tão impressionada com o que tenho sabido sobre Helen que escrevi um pequeno poema intitulado "Uma cantora silenciosa", que posso enviar para a mãe dela futuramente. Pode me dizer em que jornal apareceu o artigo acusando Helen de plágio e publicando trechos das duas histórias? Eu gostaria muito de vê-lo e de obter alguns números se possível.

Na de 9 de março de 1892, a srta. Canby escreve:

No Relatório que a senhorita tão amavelmente me enviou, encontro vestígios de a pequena Helen ter ouvido outras histórias além de Frost fairies. Na página 132, numa carta, há um trecho que deve ter sido sugerido por minha história que se chama The rose fairies (As fadas das rosas) (ver p. 13-16 de Birdie) e nas páginas 93 e 94 do Relatório a descrição de uma tempestade é muito parecida com a idéia de Birdie em Dew fairies (As fadas do orvalho) nas páginas 59 e 60 do meu livro. Que mente maravilhosamente ativa e retentiva deve ter essa criança tão bem-dotada! Se ela tivesse se lembrado e escrito um conto, com precisão, e isso logo depois de ouvi-lo, teria sido uma maravilha; mas lê-lo uma vez, três anos atrás, sem que nem os pais nem a professora pudessem ter aludido a ele para refrescar-lhe a memória, e depois reproduzi-lo tão vivamente, acrescentando até alguns toques próprios que combinam perfeitamente com o resto, o que realmente melhora o original, é algo que poucas meninas mais maduras cronologicamente e com todas as vantagens da visão, da audição e mesmo um grande talento para a composição poderiam ter feito tão bem - se é que poderiam fazê-lo. Em tais circunstâncias, não vejo como alguém possa ser tão pouco amável a ponto de chamar isso de plágio; é um feito maravilhoso de memória e se destaca sozinho, indubitavelmente como boa parte de seu trabalho no futuro, se seus poderes mentais crescerem e se desenvolverem com os anos de modo tão poderoso quanto no passado. Tenho conhecido bem muitas crianças, estive rodeada delas por toda a vida e adoro mais do que tudo falar com elas, diverti-las e quietamente observar traços de sua mente e personalidade; mas não me lembro de uma garota da idade de Helen que tivesse o amor, a sede de conhecimento, o estoque de informação literária e geral e a habilidade de redação que Helen possui. Ela é de fato uma "criança- prodígio". Agradeço-lhe muito pelo Relatório, a Gazette e o Diário de Helen. O último me fez perceber, melhor que antes, a grande decepção da querida criança. Por favor, transmita a ela meu carinho e diga-lhe para não se sentir mais perturbada com isso. Ninguém pensará que houve alguma coisa errada, e algum dia ela escreverá uma grande e linda história ou poema que deixará as pessoas felizes. Diga-lhe que há algumas gotas amargas na taça de todos, e o único modo é tomar o amargo pacientemente, e o doce gratamente. Vou adorar saber como Helen recebeu o livro e o que acha das histórias que são novas para ela.

Agora (março de 1892) já li para Helen The frost fairies, The rose fairies e um pedaço de The dew fairies, mas ela é incapaz de esclarecer a questão. Ela as reconheceu imediatamente como suas próprias histórias, com variações, e ficou muito intrigada de saber como puderam ser publicadas antes de ela nascer! Acha maravilhoso que duas pessoas escrevam histórias tão parecidas; mas ainda considera a sua como a original.


Declaração da própria Helen Keller

(A entrada seguinte feita por Helen em seu diário fala por si mesma.)

30 de janeiro de 1892: Esta manhã tomei um banho e quando a professora subiu para pentear meu cabelo, ela me deu uma notícia muito triste que me deixou infeliz o dia todo. Alguém escreveu ao sr. Anagnos que a história que lhe enviei como presente de aniversário e que eu mesma escrevi não era de modo nenhum minha, mas de uma senhora que a escrevera muito tempo atrás. A pessoa disse que a história da senhora se chamava Frost fairies. Tenho certeza de que eu nunca soube dela. Imaginar que as pessoas achassem que fomos mentirosas e más fez com que nos sentíssemos muito mal. Meu coração se encheu de lágrimas, pois eu amo a bela verdade com todo o meu coração e mente.

Isso me perturba muito agora. Não sei o que farei.

Nunca pensei que as pessoas pudessem cometer tais equívocos. Tenho total certeza de ter escrito a história eu mesma, O sr. Anagnos está tão perturbado. Entristece-me muito pensar que eu tenha sido a causa de sua infelicidade, mas é claro que não pretendi fazer isso.

Pensei sobre minha história no outono, porque a professora me contou sobre as folhas de outono enquanto caminhávamos nos bosques em Fern Quarry. Eu achava que as fadas deviam ter pintado elas porque eram tão maravilhosas e pensei também que o rei Gelo devia ter jarros e vasos contendo tesouros preciosos, porque eu sabia que outros reis tempos atrás tinham isso e porque a professora me contou que as folhas eram pintadas de rubi, esmeralda, ouro, escarlate e marrom; então pensei que a tinta devia ser pedras derretidas. Eu sabia que elas deviam fazer as crianças felizes porque são tão adoráveis, e fiquei muito feliz de pensar que as folhas eram tão bonitas e que as árvores fulguravam tanto, embora eu não pudesse vê-las.

Achei que todos pensavam o mesmo sobre as folhas, mas agora não sei. Pensei muito sobre as tristes notícias quando a professora foi ao médico; ela não estava aqui para o jantar e senti falta dela.

Sinto que não posso acrescentar mais nada que possa interessar. Meu próprio coração está demasiado "cheio de lágrimas" quando lembro como minha alunazinha sofreu quando soube "que as pessoas achassem que fomos mentirosas e más", pois eu sei que ela de fato "ama a bela verdade com todo o seu coração e mente".
Sinceramente,
Annie M Sullivan


O episódio teve um efeito devastador em Helen Keller e na srta. Sullivan, que temia ter permitido que o hábito da imitação, o qual na verdade fez da srta. Keller uma escritora, tivesse ido longe demais. Mesmo hoje em dia, quando a srta. Keller modela uma bela frase, a srta. Sullivan diz num desespero bem-humorado: "Cogito de onde ela terá tirado isso". Mas a srta. Sullivan sabe agora, desde que estudou com sua aluna na faculdade os problemas da redação, sob a inteligente orientação do sr. Charles T.

Copeland, que o estilo de cada escritor e, na verdade, de cada ser humano, analfabeto ou culto, é uma reminiscência composta de tudo que leu e ouviu. Na maior parte, ele é tão inconsciente das fontes de seu vocabulário quanto do momento em que ingeriu o alimento que construiu um pedaço da unha de seu polegar. Na maioria de nós, as contribuições das diferentes fontes são misturadas, cruzadas e confundidas. Uma criança com poucas fontes pode manter diferenciado o que retira de cada uma. Nesse caso Helen Keller manteve quase intactas na memória, não misturadas com outras idéias, as palavras de uma história que não entendera completamente na época em que fora lida para ela. A importância disso não pode ser superestimada. Mostra como a mente da criança recolhe em si palavras que ouviu e como elas espreitam ali, prontas para surgirem quando a chave que libera a fonte é tocada. O motivo de não notarmos esse processo em crianças comuns é porque raramente as observamos e porque elas são alimentadas de tantas fontes que as lembranças são confusas e mutuamente destrutivas. A história do The frost king, contudo, não saiu intacta da mente de Helen Keller, mas assumiu ela própria o molde do temperamento da criança e inspirou-se num vocabulário que, até algum ponto, foi fornecido de outros modos. O estilo de sua versão é, em alguns pontos, até melhor do que o estilo da história da srta. Canby. Ele tem a credulidade imaginativa de uma história folclórica primitiva, enquanto a história da srta. Canby é evidentemente contada para crianças por uma pessoa mais velha, que adota a maneira de um conto de fadas e não consegue esconder o ânimo maduro que permite frases didáticas como "Jack Frost, como ele é às vezes chamado", "Meio-dia, quando o Senhor Sol está mais forte". A maioria das pessoas sentirão a qualidade imaginativa superior do parágrafo de abertura de Helen Keller. Certamente o escritor precisa tornar-se uma criança para ver coisas assim. "Doze ursos brancos com aparência de soldado" é uma pincelada de gênio e há beleza de ritmo por toda a narrativa da criança. É original, da mesma maneira que é original a versão de uma velha história feita por um poeta.

Essa pequena história faz surgir todas as questões de linguagem e da filosofia de estilo. Algumas conclusões podem ser brevemente sugeridas.

Todo uso da linguagem é imitativo e o estilo de alguém é construído de todos os outros estilos que esse alguém conheceu.

A maneira de escrever bom inglês é lê-lo e ouvi-lo. Portanto, pode-se ensinar qualquer criança a usar um inglês correto se não lhe for permitido ler ou escutar qualquer outro tipo de linguagem.

Numa criança, a seleção do melhor não é consciente; ela é a serva de sua experiência-palavra.

O homem comum jamais se livrará da falácia de que as palavras obedecem ao pensamento, que a pessoa pensa primeiro e fraseia depois. Tem de haver primeiro, é verdade, a intenção, o desejo de emitir algo, mas a idéia geralmente não se torna específica, não toma forma até que seja fraseada; certamente, uma idéia é uma coisa diferente em virtude de ser fraseada. As palavras freqüentemente fazem o pensamento, e o mestre das palavras dirá coisas maiores do que estão nele. Um exemplo notável disso é um parágrafo do esboço da srta. Keller no Youth's Companion.

Escrevendo sobre o momento em que aprendeu que tudo tinha um nome, diz ela: "Encontramos a enfermeira carregando meu priminho; e professora soletrou "bebê". E pela primeira vez fiquei impressionada com a pequenez e o desamparo de um bebezinho, e mesclado a esse pensamento havia outra de mim, e fiquei contente de ser eu mesma e não um bebê". Foi uma palavra que criou tais pensamentos em sua mente. Assim, o senhor das palavras é senhor dos pensamentos que as palavras criam e diz coisas maiores do que de Outro modo poderia saber. Ao escrever The frost king, Helen estava construindo melhor do que sabia e dizendo mais do que pretendia.

Qualquer um que faz uma sentença, expressa não a sua sabedoria mas a sabedoria da raça cuja vida está nas palavras, embora estas nunca tenham sido agrupadas daquela forma antes. O homem que pode escrever histórias pensa em histórias para escrever, O meio faz surgir a coisa que ele transmite, e quanto mais grandioso o meio, mais profundos são os pensamentos.

O homem culto é aquele cujo modo de se expressar é culto.

A substância do pensamento é a linguagem, e linguagem é a coisa essencial a se ensinar à criança surda e a todas as outras crianças.

Adquirindo a linguagem, ela obtém a própria matéria de que aquela lingua é feita, o pensamento e a experiência de sua raça. A linguagem deve ser a usada por uma nação, não algo artificial. O volapuque é um paradoxo, a não ser que a pessoa fale francês, inglês ou alemão ou outra lingua qualquer que se desenvolveu numa nação.

[O volapuque (que significa língua mundial) foi criado em 1879 pelo padre alemão Johann Martin Schleyer (1831-1912), em Badem, na Alemanha. Schleyer pensava que Deus lhe tinha dito num sonho para criar uma língua internacional. Realizaram-se convenções de volapuque em 1884, 1887 e 1889. (N. da T.)]

A criança surda que tem apenas a linguagem dos sinais de De l'Épée é um Philip Nolan intelectual, um alienígena de todas as raças, e suas idéias não são as idéias de um inglês, de um francês ou de um espanhol. A oração do Senhor em sinais não é a oração do Senhor em inglês.

Em seu ensaio sobre o estilo, De Quincey diz que o melhor inglês é o encontrado nas cartas da mulher culta da elite, porque ela leu apenas alguns bons livros e não foi corrompida pelo estilo dos jornais e o jargão da rua, do mercado ou da assembléia.

São exatamente essas circunstâncias externas que explicam o uso do inglês por Helen Keller. Nos primeiros anos de sua educação, ela só leu boas coisas; algumas eram, de fato, triviais e não excelentes no estilo, mas nenhuma era positivamente má em modo ou substância. Essa feliz condição foi obtida através de sua vida.

Ela tem sido embalada em literatura da imaginação e recolheu em sua vigorosa e tenaz memória o estilo de grandes escritores.

"Uma nova palavra abre seu coração para mim", escreve ela numa carta; e quando usa a palavra, o coração desta ainda está aberto.

Quando Helen Keller tinha 12 anos, perguntaram-lhe que livro levaria numa longa viagem de trem. Paradise lost, respondeu e ela o leu no trem.

Até o último, ou últimos dois anos, ela não era dona de seu estilo; seu estilo era o mestre dela. Só quando Helen Keller passou a fazer da composição um estudo mais consciente, ela cessou de ser vítima da frase; a sortuda vítima, felizmente, da boa frase.

Quando em 1892 foi estimulada a escrever um esboço de sua vida para o Youth's Companion, na esperança de que a tranqüilizasse e ajudasse a se recuperar do efeito do The frost king, ela apresentou um texto que é muito mais notável e em si mais divertido em alguns pontos do que a parte correspondente a sua história naquele livro. Quando recontou a história numa forma mais completa, o eco das frases que escrevera há nove anos ainda estava em sua mente. Mesmo assim ela não vira seu esboço no Youth's Companion desde que o escrevera, exceto dois trechos que a srta. Sullivan lera para lembrá-la de coisas que devia dizer nessa autobiografia e para lhe mostrar, quando seu estilo a incomodasse, como se saía melhor quando menina.

Tirei alguns trechos do primeiro esboço que, sem levar muito em conta a diferença no tempo, me parecem quase tão bons como qualquer coisa que Helen Keller escreveu desde então.

Descobri o modo verdadeiro de andar quando tinha um ano e nos radiosos dias de verão que se seguiram não parei um minuto (...)

Então, quando meu pai chegava à noite, eu corria para o portão ao encontro dele, que me pegava em seus braços fortes, afastava os cachos despenteados de meu rosto, e me beijando muitas vezes dizia: "O que a minha garotinha andou fazendo hoje?".

Mas o verão mais brilhante tem o inverno atrás dele.

No mês gelado e melancólico de fevereiro, quando eu estava com 19 meses, fiquei muito doente. Ainda tenho lembranças confusas daquela doença. Mamãe sentada ao lado de minha caminha tentando consolar meus gemidos febris, enquanto em seu perturbado coração ela rezava: "Pai do Céu, poupe a vida do meu bebê!". Mas a febre aumentou e queimou meus olhos, e por vários dias o bom médico achou que eu ia morrer.

Mas certa manhã bem cedo a febre foi embora tão misteriosa e inesperadamente como tinha vindo e caí num sono sereno. Então meus pais viram que eu ia viver e ficaram felizes. Durante algum tempo depois de minha recuperação eles não souberam que a febre cruel tirara minha visão e audição; tirara toda a luz, a música e o contentamento de minha pequena vida.

Mas eu era muito jovem para perceber o que acontecera.

Quando acordei e descobri que tudo estava escuro e quieto, acho que pensei que era noite e devo ter cogitado por que o dia demorava tanto a chegar. Mas aos poucos me acostumei ao silêncio e à escuridão que me rodeavam e esqueci que tinha havido luz algum dia.

Esqueci de tudo, menos do terno amor de mamãe.

Em breve até minha voz de criança silenciou, porque eu deixara de ouvir qualquer som.

Mas nem tudo estava perdido! Afinal de contas, visão e audição são apenas duas das lindas bênçãos que Deus me deu. O mais precioso, o mais maravilhoso de Seus presentes ainda era meu. Minha mente continuava clara e ativa, "embora afastada para sempre da luz".

Assim que minhas forças voltaram, comecei a me interessar pelo que as pessoas à minha volta estavam fazendo.

Eu me agarrava ao vestido de mamãe enquanto ela realizava as tarefas de casa e minhas mãozinhas apalpavam cada objeto e observavam cada movimento; assim aprendi uma grande quantidade de coisas.

Ao ficar um pouco mais velha, senti a necessidade de algum meio de comunicação com os que me rodeavam e comecei a fazer sinais simples que meus pais e amigos prontamente entenderam; mas acontecia com freqüência de não conseguir me expressar de modo inteligível, e às vezes eu era dominada completamente pela raiva (...)

Duas semanas depois que a Professora estava comigo, eu já aprendera 18 ou 20 palavras, antes que aquele pensamento explodisse na minha mente como o sol irrompe no mundo adormecido; e naquele instante de iluminação, o segredo da linguagem foi revelado a mim e tive um vislumbre do lindo país que eu estava prestes a explorar.

Por toda a manhã, a Professora tinha tentado me fazer entender que a caneca e o leite na caneca tinham nomes diferentes; mas eu era muito burra e continuava soletrando leite para caneca e caneca para leite, até que a Professora deve ter perdido toda a esperança de me fazer compreender o erro. Finalmente ela levantou, me deu a caneca e saiu porta afora comigo na direção da bomba d'água. Alguém estava bombeando água e quando o jorro frio e fresco irrompeu, a Professora me fez pôr a caneca debaixo do jorro e soletrou "á-g-u-a". Água!

A palavra provocou um sobressalto na minha alma e ela despertou, cheia do espírito da manhã, como uma canção alegre e exultante. Até aquele dia, minha mente fora como um quarto escuro, esperando que as palavras entrassem e acendessem o lampião, que é o pensamento (...)

Aprendi muitas palavras novas naquele dia. Não me lembro de todas, mas sei que mâe, pai, irmã e professora eram algumas delas. Seria difícil achar criança mais feliz do que eu naquela noite, deitada na minha caminha e pensando de novo na alegria que o dia me trouxera. Pela primeira vez esperei com ansiedade que um novo dia chegasse.

Na manhã seguinte acordei com alegria no coração.

Tudo que tocava parecia estremecer de vida. Isso porque eu via tudo com a nova visão, estranha e bela, que me tinha sido dada. Nunca mais fiquei com raiva depois daquilo, pois entendia o que meus amigos diziam e estava muito ocupada aprendendo muitas coisas maravilhosas. Jamais ficava parada durante os primeiros e alegres dias da minha liberdade. Estava sempre soletrando e representando as palavras enquanto as soletrava. Eu corria, saltava, pulava e balançava sem ligar para onde estivesse. Tudo estava em botão, florescendo. A madressilva pendia em longas guirlandas, deliciosamente perfumadas e as rosas nunca tinham sido tão bonitas. A Professora e eu vivíamos ao ar livre de manhã à noite e eu me alegrava muito com a luz e o sol esquecidos e encontrados de novo.

Na manhã seguinte da nossa chegada, acordei cedo e alegre. Um belo dia deverão tinha nascido, o dia em que eu ia conhecer um amigo sombrio e misterioso. Levantei e me vesti rapidamente, correndo para o andar de baixo. Encontrei a Professora no vestíbulo e implorei que me levasse para o mar imediatamente. "Ainda não", respondeu ela, rindo.

"Precisamos tomar o café-da-manhã primeiro." Assim que o café terminou fomos rapidamente para a praia. Nosso caminho passava por colinas baixas e arenosas, e enquanto andávamos apressadas por elas, eu prendia muitas vezes meus pés nas hastes longas e ásperas de mato e tropeçava rindo na areia brilhante e morna. O ar tépido e belo estava especialmente perfumado e notei que, à medida que íamos avançando, tudo ficava mais fresco e mais frio.

De repente paramos e eu soube, sem que me dissessem, que o Mar estava a meus pés. Sabia também que era imenso! medonho! e por um momento parte da luz do sol pareceu ter deixado o dia. Mas acho que não estava com medo; pois, mais tarde, quando já tinha vestido minha roupa de banho e as ondazinhas subiam pela praia e beijavam meus pés, eu gritei de alegria e mergulhei sem medo nas ondas. Mas infelizmente bati com o pé numa rocha e caí para a frente na água gelada.

Então uma sensação de perigo estranha e terrível me aterrorizou. A água salgada me encheu os olhos e tirou minha respiração e uma grande onda me atirou para a praia com tanta facilidade como se eu fosse um pequeno seixo. Por vários dias depois daquilo fiquei muito medrosa e mal podia ser convencida a chegar até a água; aos poucos, contudo, minha coragem voltou e pouco antes de o verão terminar eu achava a maior diversão ser sacudida de um lado para o outro pelas ondas (...)

Não sei o que é mais notável, se a diferença ou a semelhança de fraseado entre a versão da criança e a da mulher. A primeira história é mais simples e mostra menos artificio deliberado, embora mesmo então a srta. Keller fosse prematuramente consciente do estilo; mas a arte da última narrativa, como na passagem sobre o mar, ou o trecho sobre o medalhão de Homem, é certamente o cumprimento da promessa da primeira história. Foi num desses primeiros dias que dr. Holmes escreveu para ela: "Estou encantado com o estilo de suas cartas. Não há nenhuma afetação nelas e assim como saem diretas de seu coração, chegam diretas ao meu".

Nos anos em que a srta. Keller saía da infância, seu estilo perdeu a antiga simplicidade, tornando-se rígido e, como ela diz, "escamoteado". Nesses anos, a srta. Sullivan temeu muitas vezes que o sucesso da criança pudesse cessar com a infância.

Por vezes parecia faltar flexibilidade a srta. Keller; suas idéias corriam para dispor frases que ela parecia não ter o poder de revisar ou moldar de uma nova maneira.

Então veio o trabalho na faculdade - texto de matéria original com novos ideais de composição, ou pelo menos novos métodos de sugerir tais ideais. A srta. Keller começou a obter o melhor de sua velha e amigável feitora, a frase. Este livro, sua primeira experiência madura no texto, esclarece de vez a questão da capacidade da srta. Keller para escrever.

O estilo da Bíblia está por toda parte no trabalho da srta. Keller, assim como no estilo dos maiores escritores ingleses.

Stevenson, de quem a srta. Sullivan gosta e costumava ler para sua aluna, é outra influência marcante. Na autobiografia dela há muitas citações, principalmente da Bíblia e de Stevenson, destacadas do contexto ou entretecidas a ele, sendo a tessitura inteira bem da concepção da srta. Keller. Seu vocabulário tem todas as frases que os outros usam e a explicação disso e sua razoabilidade já deveriam ser evidentes. Não há motivo para que ela risque de seu vocabulário todas as palavras sobre som e visão. Escrevendo para outras pessoas, em muitos casos a srta. Keller tem de ser mais fiel ao fato externo do que à sua própria experiência. Na medida em que use as palavras corretamente, deve ser-lhe garantido o privilégio de usá-las livremente, e não que se espere dela confinar-se a um vocabulário vinculado à sua falta de visão e audição. No seu estilo, como no que escreve, precisamos conceder à artista o que negamos à autora da autobiografia. Isso devia explicar também que olhar e ver são usados pelos cegos e ouvir pelos surdos, no sentido de perceber; são apenas palavras mais simples e convenientes.

Somente uma pessoa literal pode pensar em atar os cegos à percepção ou aperceber-se, quando ver e olhar são muito mais fáceis e têm, além disso, na fala de todos os homens, o significado de reconhecimento intelectual, assim com o o de reconhecimento pela visão. Quando a srta. Keller examina uma estátua, enquanto seus dedos percorrem o mármore, ela diz em seu idioma natural: "A aparência é de uma cabeça de Flora".

Por outro lado, é verdade que nas descrições da srta. Keller seu ponto de vista artístico é melhor quanto mais ela é fiel a suas próprias sensações; e isso é exatamente verdadeiro para todos os artistas.

Sua instrução recente ensinou-a a pôr de lado muito convencionalismo e escrever sobre experiências da vida peculiares a si mesma e que, como a tempestade na cerejeira, significam mais e invocam o fraseado mais verdadeiro. Ela tem aprendido cada vez mais a abrir mão do estilo que captava dos livros e tentava usar por querer escrever como as outras pessoas; aprendeu que mostra o melhor de si quando "sente" os lirios oscilarem, deixa que as rosas se pressionem contra suas mãos e fala do calor que para ela significa luz.

A autobiografia da srta. Keller contém quase tudo que ela sempre pretendeu publicar. Vale a pena, contudo, citar alguns de seus fragmentos, que não são tão informais quanto suas cartas nem tão cuidadosamente redigidos como a história da sua vida. Tais trechos foram retirados de seus exercícios no curso de redação, no qual se mostrou, no início de sua vida na faculdade, sem rival entre as colegas. O sr. Charles T. Copeland, por muitos anos professor particular de inglês e conferencista sobre literatura inglesa em Harvard e Radcliffe, me disse: "Em parte de seu trabalho, ela tem mostrado que pode escrever melhor do que qualquer aluno que já tive, homem ou mulher. Ela demonstra um excelente "ouvido" para o fluxo das sentenças". Seguem-se os trechos:

Alguns versos da poesia de Omar Khayyám acabam de ser lidos para mim e sinto como se tivesse passado a última meia hora num magnífico sepulcro. Sim, é um túmulo em que a esperança, a alegria e o poder de agir nobremente jazem enterrados. Cada bela descrição, cada pensamento profundo desliza insensivelmente para o mesmo canto elegíaco sobre a brevidade da vida, a lenta decadência e dissolução de todas as coisas terrenas. As brilhantes lembranças de amor, juventude e beleza do poeta são tochas fúnebres espalhando sua luz nesse túmulo ou, modificando um pouco a imagem, são as flores que brotam nele, regadas com lágrimas e alimentadas por um coração que sangra.

Ao lado do túmulo está uma alma fatigada e que não se rejubila com as alegrias do passado nem com as possibilidades do futuro, mas busca consolo no esquecimento. Em vão o mar inspirador grita para essa alma lânguida, em vão os céus engalfinham-se com sua fraqueza; ela ainda insiste em seus remorsos e busca refúgio no esquecimento das fisgadas da aflição de agora. Por vezes ela capta algum débil eco do vivo e alegre mundo real, um cintilar da perfeição do que deve ser; e eletrizada por seu desalento, sente-se capaz de elaborar um grandioso ideal mesmo "no pobre, miserável e confinado presente", onde está situada; mas num momento a inspiração, a visão, desaparece e essa alma grande e muito sofrida é de novo envolvida pela escuridão da incerteza e do desespero.

É maravilhoso o tempo que as pessoas boas passam lutando contra o demônio. Se pelo menos gastassem a mesma quantidade de energia amando seus semelhantes, o demônio morreria em sua própria trilha de tédio.

Penso freqüentemente que as belas idéias embaraçam tanto as pessoas quanto a companhia dos grandes homens. Elas são consideradas mais apropriadas em livros e discursos públicos do que na sala de visita ou à mesa. Claro que não me refiro aos belos sentimentos, mas às verdades mais sublimes relacionadas à vida cotidiana. Poucas pessoas que conheço parecem fazer uma pausa em suas relações cotidianas para cogitar dos belos pedacinhos de verdade que recolheram durante seus anos de estudo. Com freqüência, quando falo entusiasticamente de algo na história ou na poesia, não recebo qualquer resposta e sinto que preciso mudar de assunto e voltar aos tópicos mais comuns, tais como o clima, o modo de vestir, esportes, doenças, "tristezas" e "preocupações".

Para ter certeza, assumo o interesse mais agudo em tudo que diz respeito aos que me rodeiam; é esse mesmo interesse que torna tão difícil para eu prosseguir numa conversa com certas pessoas que não falam ou dizem o que pensam; mas não devo lamentar ter mais amigos prontos para conversar comigo agora e depois sobre as coisas maravilhosas que leio. Não precisamos ser como Les femmes savantes (As sabichonas); mas devíamos ter algo a dizer sobre o que aprendemos, bem como sobre aquilo que precisamos fazer, e o que nossos professores dizem, ou como corrigem nossos ensaios.

Hoje almocei com a Classe das Calouras de Radcliffe.

Foi minha primeira experiência real na vida da faculdade, e que experiência encantadora! Pela primeira vez desde minha entrada em Radcliffe tive a oportunidade de fazer amizade com todas as minhas colegas de turma, juntamente com o prazer de saber que me encaravam como uma delas, em vez de pensar em mim como vivendo à parte e sem nenhum interesse nas insignificâncias cotidianas de suas vidas, como por vezes eu temera que fariam.

Freqüentemente tenho sido surpreendida por essa opinião expressada ou implicita por parte das moças de minha idade e mesmo por pessoas avançadas em anos. Certa vez alguém me escreveu que em sua mente eu era sempre "doce e séria, pensando apenas no que é sábio, bom e interessante" - como se me achasse uma dessas tediosas santas que existem demais no mundo! Sempre ri dessas noções tolas e asseguro aos meus amigos que é muito melhor ter alguns defeitos e ser animada e receptiva apesar de todas as privações, do que se retirar para sua própria concha, paparicar a própria aflição, vesti-la de santidade e então estabelecer-se como um monumento de paciência, virtude, bondade e tudo o mais; mas mesmo enquanto rio sinto uma fisgada no coração, porque me parece difícil que alguém possa imaginar que não sinto os ternos vínculos ligando-me às minhas jovens irmãs - as simpatias jorrando do que temos em comum - juventude, esperança, uma atitude meio ansiosa, meio tímida em relação à vida diante de nós e acima de tudo a realeza da condição de donzelas.

Sainte-Beuve diz "Il vient un âge peut-être quand on n'écrit plus". Essa é a única alusão que já li sobre a possibilidade das fontes da literatura, por mais variadas e infinitas que pareçam agora, se exaurirem um dia. Surpreende-me descobrir que tal idéia tenha passado pela cabeça de alguém, especialmente de um crítico altamente bem-dotado. O próprio fato do século XIX não ter produzido muitos autores com que o mundo pudesse contar entre os maiores de todos os tempos não justifica, na minha opinião, a observação "Pode chegar um tempo em que as pessoas deixem de escrever?".

Em primeiro lugar, as fontes da literatura são alimentadas por dois vastos mundos, um da ação e outro do pensamento, por uma sucessão de criações num dos mundos e de mudanças no outro. Novas experiências invocam novas idéias e impelem os homens a fazer perguntas não imaginadas antes e buscar uma resposta definitiva nas profundezas do conhecimento humano.

Em segundo lugar, se é verdade que muitos séculos precisam passar antes que o mundo se torne perfeito, como passaram antes que se tornasse o que é hoje, a literatura certamente será incalculavelmente enriquecida pelas tremendas mudanças, aquisições e melhorias que não podem deixar de ocorrer no futuro distante. Se o gênio tem estado silencioso por um século, não está ocioso. Pelo contrário, vem coletando novo material não apenas do passado remoto mas também da era do progresso e desenvolvimento, e talvez no novo século haja erupções de esplendor nos mais diversos ramos da literatura. No presente, o mundo está passando por uma total revolução, e em meio a sistemas e impérios desmoronando, credos e teorias em conflito, descobertas e invenções, é algo de maravilhoso que alguém possa chegar a produzir grandes obras literárias.

Esta é uma era de trabalhadores, não de pensadores. A canção hoje em dia é:

Let the dead past bury its dead,
Act, act in the living present,
Heart within and God over head!

[Deixe o passado morto seus mortos enterrar,/aja, aja no vivo presente,/coração no peito e Deus a pairar! (Tradução livre. N da T.)]

Um pouco mais tarde, quando o jorro e o calor da realização se acalmarem, poderemos começar a ter expectativas quanto ao aparecimento de grandes homens que celebrem em gloriosa prosa e poesia os feitos e triunfos dos últimos séculos.

É muito interessante observar uma planta crescer - é como tomar parte na criação. Quando tudo do lado de fora está gelado e branco, quando as crianças do bosque vão para seus quartos na terra morna e os ninhos vazios nas árvores nuas se enchem de neve, minha janela-jardim fulgura e sorri, criando o verão aqui dentro enquanto é inverno lá fora. É maravilhoso ver as flores se abrirem no meio de uma tempestade de neve! Senti um botão "timidamente levantar seu capuz verde e se abrir com uma sedosa erupção de som", enquanto os dedos gelados da neve batem contra as vidraças da janela. Que secreto poder, cogito eu, causou esse milagre de florescimento? Que força misteriosa guiou a pequena semente da terra escura até a luz, através da folha, caule e botão, para a gloriosa realização da flor perfeita? Quem poderia ter sonhado que tal beleza, emboscada na terra escura, estava latente na minúscula semente que plantamos? Bela flor, você me ensinou a ver um pequeno caminho escondido no coração das coisas.

Agora entendo que em toda parte a escuridão pode conter possibilidades melhores até do que minhas esperanças.

Uma tradução livre de Horácio:

Não sou um daqueles a quem a fortuna desdenha sorrir. Minha casa não é resplandecente de marfim e ouro, nem adornada com arcadas de mármore descansando em graciosas colunas trazidas das pedreiras da África distante.

Para mim, nada de valorosas tecelãs fiando na roca vestimentas púrpuras. Não me tornei inesperadamente herdeiro de propriedades principescas, de títulos de poder; mas tenho algo mais desejado que todos os tesouros do mundo - o amor de meus amigos e fama honrosa, conquistada por meu próprio esforço e talento. Apesar de minha pobreza, é meu privilégio ser companheiro dos ricos e poderosos. Sou extremamente grato por todas essas bênçãos para desejar mais dos príncipes, ou dos deuses. Minha pequena fazenda sabinense é cara a meu coração, pois ali passo meus dias mais felizes, longe do ruído e do esforço do mundo.

Ah, tu que vives no meio do luxo, que buscas belos mármores para novas vilas que sobrepujem as antigas em esplendor, tu nunca sonhastes que a sombra da morte pende sobre tua morada. Esquecido do túmulo, colocas as fundações de teus palácios. Em tua louca busca de prazer, roubas o mar de sua praia e dessacralizas o solo sagrado.

Mais ainda, em tua maldade, destróis os lares pacíficos de teus clientes! Sem um toque de remorso, expulsas o pai de sua terra, prendendo a seu peito os deuses lares e seus filhos meio nus.

Esqueces que a morte chega tanto para o rico quanto para o pobre e chega para sempre; mas lembre-se, Aqueronte não pôde ser subornado por ouro para conduzir o astucioso Prometeu de volta ao mundo iluminado pelo sol. Tântalo, também, apesar de tão grande e tão acima de todos os mortais, desceu ao reino dos mortos para jamais voltar.

Lembra também que, embora a morte seja inexorável, ela é justa; pois traz retribuição ao rico por sua maldade e dá ao pobre o eterno descanso de seu esforço e pesar.

Ah, os truques que as ondinas da Terra dos Sonhos nos pregam enquanto dormimos! Parece-me que "são bufões na Corte do Céu". Elas tomam freqüentemente a forma de assuntos diários para zombar de mim; exibem-se no palco do Sono como virgens tolas, só que carregam caprichados caderninhos de notas em vez de lampiões vazios. Outras vezes me examinam e me interrogam sobre todos os estudos que fiz e invariavelmente me fazem perguntas tão fáceis de responder quanto esta: "Qual era o nome do primeiro camundongo que preocupou Hippopotamuns, sátrapa de Cambridge sob Astyagas, avô de Cito, o Grande?". Acordo aterrorizada com as palavras ressoando em meus ouvidos: "A resposta ou a vida!".


Tais são as fantasias distorcidas flutuando pela mente de alguém que está na faculdade e vive como eu numa atmosfera de idéias, concepções, semipensamentos e semi-sentimentos que tropeçam uns nos outros e se acotovelam até deixar-me quase louca. Raramente tenho sonhos que não se relacionem com o que realmente penso ou sinto, mas uma noite minha própria natureza pareceu mudar e enfrentei o olho do mundo como um homem poderoso e terrível. Naturalmente amo a paz e odeio a guerra e tudo que lhe diz respeito; não vejo nada admirável na implacável carreira de Napoleão, exceto seu término. Entretanto, nesse sonho o espírito daquele impiedoso matador de homens entrou em mim! Jamais esquecerei como a fúria da batalha me latejava nas veias - parecia que as tumultuadas batidas de meu coração fariam minha respiração parar. Eu montava um vivo cavalo de caça - posso sentir o impaciente movimento de sua cabeça agora e o estremecimento que o percorreu ao primeiro rugir do canhão.

Do alto da colina onde eu estava, vi meu exército surgindo numa planície batida de sol como ondas furiosas, e enquanto elas se moviam, vi o verde dos campos, como os túneis frios entre as ondulações. Trombeta respondeu à trombeta acima da contínua batida de tambores e o ritmo de pés marchando. Esporei meu garanhão ofegante, brandindo a espada bem alto e gritando: "Estou indo!

Contemplem-me, guerreiros, Europa!". Mergulhei nas ondulações que chegavam, como um forte nadador mergulha nos vagalhões, e atingi, ai de mim, é verdade, o pilar da cama!

Agora raramente durmo sem sonhar; mas antes da vinda da srta. Sullivan, meus sonhos eram poucos e distanciados, despidos de pensamento ou coerência, exceto os de uma natureza puramente física. Em meus sonhos algo estava sempre caindo súbita e pesadamente e às vezes minha babá parecia me punir por maltratá-la durante o dia e retribuia com juros de usurário meus chutes e beliscões. Eu acordava com um sobressalto ou lutando freneticamente para escapar de minha atormentadora. Eu gostava muito de bananas e certa noite sonhei que encontrava um cacho delas na sala de jantar, perto do guarda-louças, todas descascadas e deliciosamente maduras, e tudo que eu tinha a fazer era ficar ao lado delas e comer tanto quanto pudesse.

Após a vinda da srta. Sullivan, quanto mais eu aprendia, mais freqüentemente sonhava; porém, com o despertar de minha mente, chegaram muitas fantasias sombrias e vagos terrores que perturbaram meu sono por muito tempo. Eu temia a escuridão e adorava a lenha acesa. Seu toque quente parecia uma carícia humana e eu de fato a considerava um ser que sentia, capaz de me amar e proteger. Uma gelada noite de inverno eu estava sozinha em meu quarto. A srta. Sullivan apagara a luz e fora embora, achando que eu dormia profundamente. De súbito senti minha cama sacudir e um lobo pareceu saltar sobre mim e rosnar no meu rosto.

Era só um sonho, mas eu o considerava real e meu coração afundou. Eu não ousava gritar e não ousava ficar na cama. Talvez isso fosse uma lembrança confusa da história que eu ouvira não muito tempo antes sobre Chapeuzinho Vermelho. De qualquer modo, deslizei para fora da cama e me aninhei perto do fogo que não se apagara. No instante em que senti seu calor fiquei tranqüilizada e permaneci um longo tempo observando-o subir cada vez mais alto em ondas brilhantes. Finalmente o sono me surpreendeu e, quando a srta. Sullivan voltou, encontrou-me embrulhada num cobertor junto à lareira.

Geralmente, quando sonho, pensamentos me atravessam a mente como sombras encapuzadas, silenciosas e remotas, e então desaparecem. Talvez sejam fantasmas de idéias que habitaram outrora a mente de um ancestral.

Outras vezes, as coisas que aprendi e as que me foram ensinadas vão embora, como o lagarto deixa sua pele, e vejo minha alma como Deus a vê. Há também raros e belos momentos em que vejo e ouço na Terra do Sonho.

E se quando eu estivesse desperta um som atravessasse as câmaras silenciosas da audição? E se um raio de luz atravessasse as câmaras escuras de minha alma? O que aconteceria, pergunto-me muitas vezes. A tensão corda-arco da vida rebentaria? O coração, sobrecarregado de súbita alegria, pararia de bater por excesso de felicidade?

 

Δ

 



Parte III:

Cartas

(1887-1901)


INTRODUÇÃO

por Jokn Macy

As cartas de Helen Keller são importantes não apenas como uma história suplementar de sua vida mas também como uma demonstração de seu desenvolvimento em pensamento e expressão - desenvolvimento que, em si, a fez se destacar.

Contudo, tais cartas não são notáveis apenas como produções de uma moça surda e cega, para serem lidas com curiosidade e surpreso maravilhamento; são ótimas cartas praticamente desde a primeira. As melhores passagens são aquelas em que a srta. Keller fala de si mesma e nos oferece seu mundo em termos de sua experiência. As opiniões que emite sobre o movimento dos equinócios não são importantes, mas muito importante é o relato sobre o que a fala significou para ela, de como tocou as estátuas, os cães, as galinhas na exposição de aves de criação e como se postou na nave da igreja de St. Bartholomew e sentiu o tumor do órgão. São esses trechos que nos fazem pedir mais. O motivo de serem comparativamente poucos é que por toda a sua vida Helen Keller vem tentando ser "como as outras pessoas", e assim descreve com freqüência as coisas não como lhe parecem, mas como parecem a alguém que vê e ouve.

Um motivo de excelência das cartas da srta. Keller é o grande número delas. São os exercícios que a treinaram para escrever.

Ela viveu cada período em partes diferentes do país, tendo sido portanto separada da maioria dos parentes e amigos. De seus amigos, muitos foram pessoas ilustres para quem - freqüentemente sem o sacrifício da espontaneidade, penso eu - ela achou necessário escrever bem. Para eles e para uns poucos amigos a quem está mais estreitamente ligada, ela escreve com uma franqueza íntima sobre o que está pensando. Sua ingenuidade em recontar uma história de criança que ouviu, como a de Little Jakey (O pequeno Jack), que ela ensaia para o dr. Holmes e o bispo Brooks, é encantadora, e sua solene paráfrase da aula do dia de geografia ou botânica, sua repetição de papagaio do que ouviu e sua consciente exibição de novas palavras são fascinantes e instrutivas, pois mostram não apenas o que estava aprendendo, como também que, ao escrevê-la, ela se apropriava do novo conhecimento e das novas palavras.

Assim, essa seleção da correspondência da srta. Keller foi feita com dois objetivos - mostrar seu desenvolvimento e preservar as passagens mais significativas e que mais entretêm das centenas de cartas. Muitas das escritas antes de 1892 foram publicadas nos relatos da Instituição Perkins para Cegos.

Todas as cartas até aquele ano foram impressas integralmente pelo interesse legítimo que suscitam quanto ao grau de habilidade mostrado pela criança ao escrever, mesmo nos detalhes da pontuação; assim, tratou-se de preservar uma integridade literal de reprodução. Das cartas depois do ano de 1892, selecionei, no espírito de alguém fazendo uma antologia, os trechos de melhor estilo e mais importantes do ponto de vista da biografia. Onde consegui cotejar as cartas originais, preservei tudo como a srta. Keller escreveu, pontuação, ortografia e tudo o mais. Apenas escolhi e cortei.

As cartas estão dispostas em ordem cronológica. Uma ou duas cartas do bispo Brooks, do dr. Holmes e de Whittier são colocadas imediatamente depois das cartas a que respondem.

Exceto por duas ou três cartas importantes de 1901, essa seleção se detém no ano de 1900. Neste ano, a srta. Keller entrou para a faculdade. Agora que é adulta, suas cartas mais maduras devem ser julgadas como as de qualquer outra pessoa. Talvez seja melhor que sua correspondência não seja mais publicada, a não ser que ela se destaque por Outros motivos que não o fato de ser a única pessoa surda e cega com educação superior no mundo.

Δ

 

CARTAS

A srta. Sullivan começou a ensinar Helen Keller, quando esta tinha ainda 6 anos, em 3 de março de 1887. Três meses e meio depois que a primeira palavra foi soletrada na mão da aluna, esta escreveu a lápis a seguinte carta:

Para sua prima Anna (sra. George T Turner):
 

[Tuscumbia, Alabama. 17 de junho de 1887]

helen escreve anna george vai dar helen maçã simpson vai atirar numa ave vai dar helen um doce médico vai dar remédio mildred mãe vai fazer vestido novo mildred
[sem assinatura]

Vinte dias depois, enquanto Helen Keller estava longe de casa numa curta visita, ela escreveu à sua mãe. Suas palavras são quase ilegíveis e a angulosa letra de imprensa inclina-se para todas as direções.

Para a sra. Kate Adams Keller
 

[Huntsville, Alabama, 12 de julho de 1887]

Helen vai escrever carta mamãe papai deu remédio helen mildred vai sentar no balanço mildred beijou helen professora deu helen pêssego george está doente na cama braço george está machucado anna deu helen limonada cachorro levantou.

condutor picotou tíquete papai deu helen água no carro

carlotta deu helen flores ama vai comprar helen chapéu novo bonito helen vai abraçar e beijar mãe helen vai para casa avó ama helen adeus

[sem assinatura]

No mês de setembro seguinte, Helen mostra progressos na construção das frases e conexões de pensamento mais desenvolvidas.

Para as meninas cegas da Instituição Perkins de South Boston (sul de Boston)
 

[Tuscumbia, setembro de 1887]

Helen vai escrever meninazinhas cegas uma carta Helen e professora irão ver meninazinhas cegas Helen e professora irão de carro a vapor para boston Helen e meninas cegas vão se divertir meninas cegas podem falar com os dedos Helen vai ver sr anagnos sr anagnos vai gostar e beijar Helen Helen vai para escola com meninas cegas Helen pode ler e contar e soletrar e escrever como meninas cegas mildred não vai a boston Mildred chora prince e jumbo vão para boston papai atira em patos com arma e patos caem na água e jumbo e marnie nadam na água e trazem patos na boca para papai Helen brinca com cachorros Helen anda a cavalo com professora Helen dá na mão capim para handee professora dá chicotada em handee para ir rápido Helen é cega Helen vai colocar carta no envelope para meninas cegas adeus

Helen Keller

 

Algumas semanas depois, seu estilo é quase correto e tem um movimento mais livre. Ela melhora nas expressões idiomáticas, embora ainda omita artigos e use erradamente os tempos verbais, o que é comum nas crianças.

Para as meninas cegas da Instituição Perkins
 

[Tuscumbia, 24 de outubro de 1887]

queridas meninas cegas vou escrever uma carta para vocês agradeço a vocês a bonita escrivaninha escrevi para mãe em Memphis sobre isso mãe e mildred vinham para casa quarta-feira mãe me trouxe um bonito vestido novo e chapéu papai foi caçar em Huntsville ele me trouxe maçãs e doces eu e professora vamos a boston e vamos ver vocês nancy é minha boneca ela chora eu nino nancy até ela dormir mildred está doente médico vai dar remédio para ela ficar bem. Eu e professora fomos na igreja domingo sr. Jane leu num livro e falou senhora tocou órgão. Eu dei homem dinheiro na cesta. Eu vou ser boa menina e professora vai fazer cachos em meu adorável cabelo. Vou abraçar e beijar meninazinhas cegas sr. anagnos vai vir me ver.

adeus
Helen Keller

 

Para o sr. MichaeL Anagnos, diretor da Instituição Perkins

[Tuscumbia, novembro de 1887]

querido sr. anagnos vou lhe escrever uma carta. Eu e professora tiramos retratos. professora vai mandar pra voce.

fotógrafo faz retratos. carpinteiro faz casas novas. jardineiro cava e capina o solo e planta legumes. minha boneca nancy está dormindo. ela está doente. mildred está bem tio frank tinha ido caçar cervo, vamos ter caça para café da manhã quando ele voltar para casa. Eu andei de carrinho de mão e professora empurrou ele. simpson me deu pipoca e nozes, prima rosa foi ver a mãe dela. pessoas vão à igreja domingo.

Eu lia em meu livro sobre raposa e caixa. raposa pode sentar na caixa. Eu gosto de ler meu livro, o senhor gosta de mim. Eu gosto do senhor.

adeus
Helen Keller

 

Para o dr. Alexander Graham Bell
 

[Tuscumbia, novembro de 1887]

Querido sr. Bell.

Estou contente de escrever uma carta para o senhor. Pai vai mandar um retrato. Eu e Pai e tia fomos ver o senhor em Washington. Eu brinquei com o seu relógio. Eu gosto do senhor. Fui a médico em Washington. Ele olhou os meus olhos. Posso ler história no meu livro. Posso escrever e soletrar e contar. boa garota. Minha irmã pode andar e correr. A gente se diverte com Jumbo. Prince não é bom cachorro.

Ele não pode pegar pássaros. Rato matou pombas bebês.

Lamento. Rato não conhece errado. Eu e mamãe e professora vamos a Boston em junho. Vou ver meninas cegas.

Nancy vai comigo. Ela é uma boa boneca. Pai vai me comprar lindo relógio novo. Prima Anna me deu uma boneca bonita. O nome dela é Allie.

Adeus,
Helen Keller

 

No início do ano seguinte, suas expressões idiomáticas estão mais seguras. Aparecem mais adjetivos, inclusive os que expressam cores. Embora não possa ter nenhuma noção sensorial de cor, ela consegue usar as palavras como usamos a maioria de nosso vocabulário, intelectualmente, com veracidade, não para impressionar, mas de verdade. Essa carta é para uma colega da Instituição Perkins.

Para a srta. Sarah Tomlinson
 

Tuscumbia, Ala., 2 de jan. de 1888

Querida Sarah

Estou feliz de escrever a você esta manhã. Espero que sr. Anagnos venha me ver logo. Vou a Boston em junho e vou comprar luvas para meu pai e para James um bonito colarinho e punhos para Simpson. Vi a srta. Betty e seus alunos. Eles tinham uma bonita árvore de Natal e com muitos presentes nela para as criancinhas. Eu ganhei uma caneca e passarinho e doce. Ganhei muitas coisas bonitas de Natal. Tia me deu um baú para Nancy e roupas. Fui a festa com professora e mãe. Dançamos e brincamos e comemos nozes e doce e bolo e laranjas e me diverti com meninos e meninas. Sra. Hopkins me mandou um lindo anel, eu gosto muito dela e de meninas cegas.

Homens e meninos fazem tapetes em fábricas. A lã cresce nas ovelhas. Homens cortam lã da ovelha com grandes tosquiadeiras e mandam ela para fábrica. Homens e mulheres fizeram pano de lã nas fábricas.

Algodão cresce de grandes caules nos campos. Homens e meninos e meninas e mulheres colheram algodão. Fazemos fio e vestidos de algodão do algodão. Algodão tem bonitas flores brancas e vermelhas. Professora rasgava o vestido dela.

Mildred chora. Eu vou cuidar da Nancy Mãe vai me comprar aventais e vestido novo lindos para levar para Boston.

Fui a Knoxville com pai e tia. Bessie está fraca e pequena. As galinhas da sra. Thompson mataram as galinhas de Leila. Eva dormia na minha cama. Eu gosto de meninas boas.

Adeus

Helen Keller

As próximas duas cartas mencionam a visita de Helen em janeiro a seus parentes em Memphis, Tennessee. Ela foi levada a uma Bolsa de Valores de algodão. Quando Helen apalpou os mapas e quadros-negros ela perguntou: "Homens vão para a escola?". Escreveu no quadro-negro os nomes de todos os cavalheiros presentes. Em Memphis, visitou um dos grandes vapores do Mississippi.

Para o dr. Edward Everett Hale
 

Tuscumbia, Alabama, 15 de fevereiro [1888]

Querido sr. Hale, Eu estou feliz de escrever para o senhor esta manhã.

Professora me contou sobre amável cavalheiro para quem vou ler contente história bonita eu leio histórias em meu livro sobre tigres e leões e ovelhas.

Vou para Boston em junho para ver meninas cegas e vou visitar o senhor. Fui a Memphis para ver avó e Tia Nannie. Professora me comprou um vestido novo lindo e chapéu e aventais. Pequena Natalie é um bebê muito fraco e pequeno. Pai nos levou para ver o barco a vapor. Era num rio grande. O barco é como casa. Mildred é um bom bebê. Adoro brincar com irmãzinha. Nancy não foi uma boa criança quando fui a Memphis. Ela chorou alto. Eu não vou mais escrever hoje. Estou cansada.

Adeus

Helen Keller

 

Para o sr. Michael Anagnos
 

Tuscumbia, Ala., 24 fev. de 1888

Meu querido sr. Anagnos,

Estou contente de escrever uma carta para o senhor em braile. Nessa manhã Lucien Thompson me mandou um lindo buquê de violetas e crocos e junquilhos. Domingo Adeline Moses me trouxe uma boneca linda. Ela veio de Nova York. O nome dela é Adeline Keller. Ela pode fechar os olhos e curvar os braços e sentar e levantar reta.

Ela tem um vestido vermelho bonito. Ela é a irmã de Nancy e eu sou a mãe delas. Allie é prima delas. Nancy foi uma criança má quando fui para Memphis ela chorou alto, eu bati nela com uma bengala.

Mildred alimenta as pequenas galinhas com migalhas.

Eu adoro brincar com irmãzinha.

Professora e eu fomos a Memphis ver tia Nannie e avó.

Louise é tia da filha de Nannie. Professora me comprou um lindo vestido novo e luvas e meias e colarinhos e avó me fez uma quente roupa de flanela e tia Nannie me fez aventais.

Senhora me fez um bonito chapéu. Eu fui ver Robert e sr. Graves e sra. Graves e pequena Natalie e sr. Farris e sr.

Mayo e Mary e todo o mundo. Eu adoro Robert e professora. Ela não quer que eu escreva mais hoje. Eu estou cansada.

Encontrei caixa de doce no bolso do sr. Graves. Pai nos levou para ver o barco a vapor ele é como casa. Barco estava num rio muito largo. Yates arou o terreno hoje para plantar grama. Mula puxou o arado. Mãe vai fazer uma horta de legumes. Pai vai plantar melões e vagens e feijão.

Primo Bell vem nos ver sábado. Mãe vai fazer sorvete para jantar, vamos ter sorvete e bolo para jantar. Lucien Thompson está doente. Lamento por ele.

Professora e eu fomos passear no pátio e aprendi como as flores e as árvores crescem. Sol levanta no leste e se põe no oeste. Sheffield é norte e Tuscumbia é sul. Nós vamos a Boston em junho. Eu vou brincar com meninas cegas.

Adeus

Helen Keller

 

O "tio Morde" da próxima carta é o sr. Morrison Heady, de Normandy, Kentucky, que perdeu a visão e audição quando era garoto. É o autor de alguns versos louváveis.

Para o sr. Morrison Heady


Tuscumbia, Ala., 1º de março de 1888

Meu querido tio Morrie - Estou feliz de lhe escrever uma carta, eu amo você e vou abraçar e beijar você quando eu vir você.

Sr. Anagnos vem me ver na segunda-feira. Eu adoro correr e pular e saltitar com Robett no sol quente e brilhante. Eu conheço menina em Lexington Ky. ela se chama Katherine Robson.

Vou a Boston em junho com mãe e professora, vou brincar com meninas cegas e sr. Hale vai me mandar bonita história. Eu leio histórias em meu livro sobre leões e tigres e ursos.

Mildred não vai a Boston, ela chora. Eu adoro brincar com irmãzinha, ela é um bebê fraco e pequeno. Eva está melhor.

Yates matou formigas, formigas picaram Yates. Yates está cavando no jardim. Sr. Anagnos viu laranjas, elas pareciam maçãs douradas.

Robert vem me ver domingo quando o sol brilha e vou brincar com ele. Meu primo Frank mora em Louisville.

Eu vou a Memphis de novo pra ver sr. Farris e sra. Graves e sr. Mayo e sr. Graves. Natalie é uma boa menina e não chora e ela vai estar grande e sra. Graves está fazendo vestidos curtos para ela. Natalie tem um carrinho. Sr. Mayo está em Duck Hill e trouxe flores cheirosas para casa.

Com muito amor e um beijo Helen A. Keller

 

Nesse relato do piquenique obtemos um esclarecedor vislumbre da habilidade da srta. Sullivan em ensinar sua aluna durante as horas de lazer. Esse foi um dia em que o vocabulário da criança cresceu.

Para o sr. Michael Anagnos
 

Tuscumbia, Ala., 3 de maio de 1888

Querido sr. Anagnos, Estou contente de escrever para o senhor esta manhã, porque gosto muito do senhor. Fiquei muito feliz em receber livro bonito e doce bom e duas cartas do senhor. Eu irei ver você logo e vou fazer muitas perguntas ao senhor sobre países e o senhor vai adorar boa menina.

Mamãe está me fazendo lindos vestidos novos para usar em Boston e eu vou aparecer bonita para ver meninas e meninos e o senhor. Sexta-feira professora e eu fomos a um piquenique com crianças. Fizemos jogos e jantamos debaixo das árvores e achamos samambaias e flores do campo. Tem choupo e cedro e pinheiro e carvalho e freixo e castanha e bordo. Elas fazem uma sombra agradável e os passarinhos adoram cantar e saltitar de um lado para o outro suavemente nas árvores. Coelhos pulam e esquilos correm e feias cobras se arrastam nos bosques. Gerânios e rosas jasmins e camélias são flores cultivadas. Ajudo mamãe e professora regar elas toda noite antes do jantar.

Primo Arthur me fez um balanço no freixo. Tia Eva foi para Memphis. Tio Frank está aqui. Ele está colhendo morangos para o jantar. Nancy está doente de novo, dentes novos deixam ela doente. Adeline está bem e pode ir a Cincinnati segunda-feira comigo. Tia Ev vai me mandar um boneco, Harry vai ser irmão de Nancy e Adeline. Irmã pequena é uma boa menina. Estou cansada agora e quero ir no andar de baixo. Mando muitos beijos e abraços com carta.

Sua querida criança

Helen Keller

 

No final de maio, a sra. Keller, Helen e a srta. Sullivan partiram para Boston. No caminho, passaram alguns dias em Washington, onde estiveram com o dr. Alexander Graham Bell e visitaram o presidente Cleveland. A 26 de maio chegaram a Boston e foram à Instituição Perkins; ali Helen encontrou-se com as meninas cegas com quem se correspondera no ano anterior.

No início de julho, ela foi para Brewster, Massachusetts, onde passou o resto do verão. Ali ocorreu seu primeiro encontro com o mar, sobre o qual tem escrito desde então.

Para a srta. Mary C. Moore
 

South Boston, Mass., set. 1888

Minha querida srta. Moore Está muito contente de receber uma bonita carta de sua querida amiguinha? Eu gosto muito da senhora porque a senhora é minha amiga. Minha querida irmãzinha está muito bem agora. Ela gosta de sentar na minha cadeirinha de balanço e pôr o gatinho dela para dormir. A senhora gostaria de ver a querida pequena Mildred? Ela é um bebê muito bonito. Seus olhos são muito grandes e azuis e as faces macias e redondas e rosadas e o cabelo dela é muito brilhante e dourado. Ela é muito boa e doce quando não chora alto.

No verão que vem Mildred vai sair no jardim comigo e colher os grandes morangos doces e então ela vai ficar muito feliz. Espero que ela não coma demais a deliciosa fruta pois ia ficar muito doente.

Em algum momento a senhora vai vir ao Alabama e me visitar? Meu tio James vai me dar um pônei muito manso e uma bonita charrete e eu vou ficar muito feliz de levar a senhora e Harry para passear. Espero que Harry não fique com medo do meu pônei. Acho que meu pai vai me comprar um bonito irmãozinho algum dia. Eu vou ser muito carinhosa e paciente com meu novo irmãozinho. Quando visito muitos países estanhos meu irmão e Mildred vão ficar com avó porque eles vão ser muito pequenos para verem muita gente e acho que vão chorar alto no grande oceano agitado.

Quando o cap. Baker ficar bem ele vai me levar no seu grande navio para a África. Então eu vou ver leões, tigres e macacos. Eu vou pegar um leão bebê e um macaco branco e um urso mansinho para trazer para casa. Passei um tempo muito agradável em Brewster. Fui tomar banho quase todos os dias e Carne e Frank e a pequena Helen e eu nos divertimos. Nós enlameamos e pulamos e andamos na água funda. Agora não tenho medo de boiar. Harry sabe boiar e nadar? Fomos a Boston na quinta-feira passada e sr.

Anagnos ficou encantado de me ver e me abraçou e beijou. As meninas vão voltar para a escola na próxima quarta-feira.

Por favor pode dizer a Harry para me escrever uma carta bem comprida logo? Quando a senhorita vier à Tuscumbia para me ver espero que meu pai tenha muitas maçãs doces e pêssegos suculentos e boas pêras e uvas deliciosas e grandes melancias.

Espero que pense em mim e goste de mim porque eu sou uma boa menina.

Com muito amor e dois beijos De sua amiguinha

Helen A. Keller


Nesse relato de uma visita a alguns amigos, o pensamento de Helen é bem o que se esperaria de uma criança comum de oito anos, a não ser talvez por sua satisfação ingênua com a audácia dos jovens cavalheiros.

Para a sra. Kate Adams Keller
 

South Boston, Mass., 24 de set. [1888]

Minha querida mãe, Acho que a senhora ficará contente de saber tudo sobre minha visita a West Newton. A professora e eu passamos um tempo adorável com muitos amigos bondosos.

West Newton não é longe de Boston e fomos para lá rapidamente de carro a vapor.

A sra. Freeman e Carne e Ethel e Frank e Helen vieram à estação nos receber numa imensa carruagem. Fiquei encantada de ver meus queridos amiguinhos e dei abraços e beijos neles. Então rodamos por muito tempo para ver todas as coisas bonitas de West Newton. Muitas casas bonitas e grandes e macios gramados verdes em torno delas e flores coloridas e fontes. O nome do cavalo era Prince e era manso e gostava de trotar muito rápido. Quando voltamos para casa vimos oito coelhos e dois gordos filhotes de cachorro e um simpático poneizinho branco e dois gatinhos e um bonito cachorro cacheado chamado Don. O nome do pônei era Mollie e eu dei uma boa volta na sua garupa; não tive medo. Espero que meu tio me dê um poneizinho e uma pequena charrete muito em breve.

Clifton não me beijou porque não gosta de beijar garotinhas. É tímido. Fico muito contente que Frank e Clarence e Robbie e Eddie e Charles e George não fossem muito tímidos. Brinquei com muitas garotas e nos divertimos.

Andei no triciclo de Carde e colhi flores e comi fruta e pulamos e saltamos e dançamos e fomos andar a cavalo.

Muitas senhoras e cavalheiros vieram nos ver. Lucy e Dora e Charles nasceram na China. Eu nasci na América e o sr. Anagnos nasceu na Grécia. Sr. Drew diz que garotinhas na China não sabem falar com os dedos mas acho que quando eu for à China vou ensinar a elas. A babá chinesa veio me ver, ela se chama Asu. Ela me mostrou um pequeno atze que senhoras muito ricas na China usam porque seus pés nunca ficam grandes. Ama significa babá. Viemos para casa de charrete porque era domingo e os carros a vapor não saem com freqüência no domingo. Condutores e maquinistas ficam muito cansados e vão para casa descansar. Vi o pequeno Willie Swan no trem e ele me deu uma pêra suculenta. Ele tem seis anos. O que eu fazia quando tinha seis anos? Por favor, pode pedir a papai que venha de trem encontrar comigo e minha professora? É uma pena que Eva e Bessie estão doentes. Espero que eu possa ter uma bela festa meu aniversário, e quero que Carne e Ethel e Frank e Helen venham ao Alabama para me visitar.

Mildred vai dormir comigo quando eu vier para casa?

Com muito amor e mil beijos.

De sua filhinha querida.

Helen A. Keller

Durante o inverno, a srta. Sullivan e sua aluna trabalharam na casa de Helen em Tuscumbia e com um bom resultado, pois na primavera Helen tinha aprendido a escrever com fluência.

Depois de maio de 1889, não encontro quase nenhuma imprecisão em suas cartas, exceto alguns evidentes escorregões do lápis. Ela usa as palavras com exatidão e constrói sentenças de um modo fácil e fluente.

Para o sr. Michael Anagnos
 

Tuscumbia, Ala., 18 de maio de 1889

Meu querido sr. Anagnos: O senhor não pode imaginar como fiquei encantada em receber uma carta sua na noite passada. Lamento que o senhor vá para tão longe. Vamos sentir muita, muita falta do senhor. Eu adoraria visitar muitas cidades bonitas com o senhor. Quando eu estava em Huntsville estive com o dr. Bryson e ele me disse que tinha estado em Roma, Atenas, Paris e Londres. Ele subiu as altas montanhas da Suíça e visitou muitas igrejas belas na Itália e na França e viu muitos castelos antigos e grandiosos. Espero que o senhor por favor me escreva de todas as cidades que visitar. Quando for para a Holanda por favor dê minhas lembranças à adorável princesa Wilhelmina. Ela é uma garotinha querida e quando estiver velha o bastante será a rainha da Holanda. Se o senhor for à Romênia por favor pergunte à boa rainha Elizabeth por seu irmãozinho inválido e diga a ela que lamento muito que sua querida garotinha tenha morrido. Eu gostaria de mandar um beijo para Vittorio, o principezinho de Nápoles, mas a professora teme que o senhor não vá lembrar de tantos recados. Quando eu tiver 13 anos vou visitar eles eu mesma.

Eu lhe agradeço muito pela linda história sobre lord Fauntleroy e minha professora também.

Estou contente por Eva vir ficar comigo este verão.

Vamos passar um tempo divertido juntas. Dê minhas lembranças carinhosas a Howard e diga a ele para responder minha carta. Quinta-feira fizemos um piquenique. Estava muito agradável lá nos bosques sombreados e todos nós gostamos muito do piquenique.

Mildred está lá fora no pátio brincando e mamãe está colhendo os morangos deliciosos. Papai e tio Frank estão no centro. Simpson vem para casa logo. Tiraram retratos de Mildred e meu quando estávamos em Huntsville. Vou lhe mandar um.

As rosas andam lindas. Mamãe tem muitas rosas bonitas.

A La France e a Lamarque são as mais perfumadas; mas a Marechal Neil, Solfaterre,Jacqueminot, Nipheots, Etoile de Lyon, Papa Gontier, Gabrielle Drevet e a Perle des Jardines são todas adoráveis.

Por favor diga aos garotos e garotas que mando beijos.

Penso neles todos os dias e gosto muito deles do fundo do coração. Quando o senhor voltar da Europa espero que esteja bem e muito feliz por chegar em casa de novo.

Não esqueça de dar meu beijo a srta. Calliope Kehayia e ao sr. Francis Demetrios Kalopothakes.

Amorosamente, sua amiguinha, Helen Adams Keller

Para o sr. Wilhiam Wade
 

South Boston, Mass., 20 de novembro de 1889

Meu querido sr. Wade: Acabo de receber uma carta de minha mãe dizendo que a bela filhote de mastim que o senhor me mandou chegou com segurança a Tuscumbia. Muito obrigada pelo belo presente. Lamento muito que eu não estivesse em casa para dar as boas-vindas a ela; mas minha mãe e minha irmãzinha vão ser muito boas para ela enquanto a dona estiver longe. Espero que ela não esteja solitária e infeliz, acho que filhotes podem ter muita saudade de casa, assim como as meninas. Eu gostaria de pôr nela o nome de Lioness, como o seu cachorro. Posso? Espero que ela seja muito fiel - e corajosa também.

Estou estudando em Boston, com minha querida professora. Aprendo muitas coisas novas e maravilhosas.

Estudo sobre a terra, os animais e gosto extremamente de aritmética. Aprendo novas palavras também.

"Extremamente" é uma que aprendi ontem. Quando eu vir Lioness vou dizer a ela muitas coisas que vão fazer ela ficar muito surpresa. Acho que ela vai rir quando eu lhe contar que ela é vertebrada, mamífera e quadrúpede, eu vou lamentar muito contar a ela que ela pertence à ordem dos carnívoros. Eu estudo francês também. Quando falar francês com Lioness vou chamar ela de mon beau chien. Por favor diga a Lion que eu vou tomar bastante conta de Lioness. Vou ficar feliz de receber uma carta do senhor quando o senhor tiver vontade de me escrever.

De sua afeiçoada amiguinha,

Helen A. Keller

P S. Eu sou estudante da instituição Perkins para cegos.


Para o dr. Edward Everett Hale

South Boston, 8 de jan., 1890

Meu querido sr. Hale: As lindas conchas chegaram na noite passada. Eu lhe agradeço muito por elas. Vou guardar sempre elas e vou ficar muito feliz de pensar que o senhor as achou naquela ilha distante, da qual Colombo navegou para descobrir nosso querido país. Quando eu fizer 11 anos vão ser 400 anos desde que ele partiu com os três pequenos navios para cruzar o grande estranho oceano. Ele era muito corajoso. As garotas ficaram encantadas de ver as adoráveis conchas. Eu contei a elas tudo que sabia sobre as conchas. Ficou muito contente de que o senhor possa fazer tantas felizes? Eu fico.

Eu vou ficar muito feliz em ir e lhe ensinar o braile um dia, se o senhor tiver tempo de aprender, mas acho que o senhor é ocupado demais. Alguns dias atrás recebi uma caixinha de violetas inglesas de lady Meath. As flores estavam murchas mas a bondosa atenção que veio com elas foi tão perfumada e fresca como violetas que a gente acaba de colher.

Com afeiçoadas lembranças para os priminhos e sra.

Hale e um doce beijo para o senhor,

De sua amiguinha,

Helen A. Keller

Para o dr. Qliver Wendell Holmes
 

[South Boston, Mass., abril de 1891]

Querido dr. Holmes: Suas lindas palavras sobre a primavera têm sido como música para meu coração, nesses claros dias de abril. Adoro cada palavra de Spring e Spring has come. Acho que o senhor vai ficar contente de saber que esses poemas me foram ensinados para que eu usufruísse e amasse a bela época da primavera, ainda que eu não possa ver as flores bonitas e frágeis que anunciam sua vinda, ou escutar o alegre chilrear dos pássaros que voltam para casa. Mas quando li Spring has come, ah! Eu não sou mais cega, pois vejo com seus olhos e ouço com seus ouvidos. A doce Mãe Natureza não pode ter nenhum segredo para mim quando meu poeta está próximo. Escolhi este papel porque quero que o raminho de violetas no canto leve ao senhor o meu afeto agradecido. Quero que o senhor veja o menino Tom, a criança cega, surda e muda que acaba de ir para o nosso bonito jardim. Ele está pobre e desamparado e solitário agora, mas antes de abril que vem a instrução terá levado luz e alegria para a vida de Tommy. Se o senhor vier, vai querer pedir às pessoas boas de Boston para ajudar a iluminar toda a vida de Tommy. Sua afeiçoada amiga,

Helen Keller

 

Em maio de 1892, Helen deu um chá para ajudar o jardim- de-infância para os cegos. Foi sua própria idéia, e foi realizado na casa da sra. Mahlon D. Spaulding, irmã do sr. John P. Spaulding, [Reproduzida com permissão da Century Co.] uma das mais bondosas e generosas amigas de Helen. O chá trouxe mais de dois mil dólares para as crianças cegas.

Para a srta. Caroline Derby
 

South Boston, 9 de maio de 1892

Minha querida srta. Carne:

Fiquei muito contente de receber sua amável carta.

Preciso dizer que fiquei mais do que encantada de saber que a senhorita está realmente interessada no "chá"? É claro que não podemos desistir. Em breve vou partir para longe, para o meu próprio lar, no ensolarado sul, e sempre ficarei feliz em pensar que a última coisa que meus queridos amigos em Boston fizeram para me agradar foi ajudar a deixar boa e feliz a vida de muitas crianças sem visão. Sei que gente bondosa não pode deixar de sentir uma terna solidariedade pelos pequeninos que não podem ver a bela luz, ou qualquer das coisas maravilhosas que dão prazer a eles; e me parece que a amorosa solidariedade deve se expressar em atos de bondade; e quando os amigos das desamparadas crianças cegas entendem que estamos trabalhando pela felicidade delas, elas virão e farão de nosso "chá" um sucesso e tenho certeza de que serei a garota mais feliz do mundo.

Por favor avise o bispo Brooks de nossos planos, para que ele possa dar um jeito de estar conosco. Fico contente de que a srta. Eleanor esteja interessada. Por favor mande a ela o meu abraço. Vou ver a senhorita amanhã e então podemos fazer o resto de nossos planos. Por favor dê um beijo na sua querida tia da parte de minha professora e minha e diga a ela que gostamos muito de nossa visitinha.

Afetuosamente sua,

Helen Keller

 

No final de junho, a srta. Sullivan e Helen foram para casa em Tuscumbia.

Para a srta. Caroline Derby
 

Tuscumbia, Alabama, 9 de julho de 1892

Minha querida Carne

Considere uma positiva prova de meu carinho por você que eu lhe escreva hoje. A semana inteira tem sido "gelada, escura e árida" em Tuscumbia e devo confessar que a chuva contínua e o tempo feio me enchem de pensamentos sombrios e torna quase impossível escrever cartas, ou ter qualquer ocupação agradável. Apesar disso preciso lhe dizer que estamos vivas, que chegamos em casa em segurança, que falamos de você todos os dias e adoramos suas interessantes cartas. Fiz uma bela visita a Hulton. Tudo estava fresco e primaveril e ficamos ao ar livre o dia inteiro.

Chegamos até a tomar o café da manhã na varanda. Às vezes sentamos na rede e a professora lê para mim. Andei a cavalo quase todas as noites e certa vez galopei por oito quilômetros num galope rápido. Ah, foi muito divertido!

Você gosta de andar a cavalo? Tenho uma bonita charretezinha agora e se alguma hora parar de chover a professora e eu vamos dar um passeio todas as noites. E tenho outro belo mastim - o maior que já vi - e ele vai conosco para nos proteger. Seu nome é Eumer. Nome esquisito, não é?

Acho que é saxão. Esperamos ir para as montanhas na semana que vem. Meu irmãozinho Phillips não está bem e achamos que o ar puro da montanha vai fazer bem a ele.

Mildred é uma boa irmãzinha e tenho certeza de que você a adoraria. Agradeço-lhe muito por sua fotografia. Gosto de ter os retratos dos meus amigos mesmo que não possa vê-los. Achei muita graça da idéia de você escrever. Eu não escrevo numa tabuleta de braile, como você imagina, mas numa tábua com ranhuras como a peça que eu incluo aqui.

Você não saberia ler braile; pois é escrito em pontos, nada parecido com as cartas comuns. Por favor, dê minhas lembranças à srta. Derby e diga a ela que dê muitos beijos de minha parte na Ruthinha. Qual foi o livro que você me mandou de aniversário? Recebi vários e não sei qual o que veio de você. Ganhei um presente que me agradou especialmente. Foi uma linda capa feita em croché para mim, por um cavalheiro de 75 anos. E cada ponto, escreveu ele, representa uma espécie de voto pela minha saúde e felicidade.

Diga a seus priminhos que acho melhor eles ficarem em cima do muro comigo até depois da eleição; pois há tantos partidos e candidatos que duvido que políticos tão jovens sejam uma escolha sábia. Por favor, dê lembranças a Rosy quando você escrever e creia-me

Sua afeiçoada amiga

Helen Keller

PS. O que achou dessa carta datilografada? H.K

 

Para a sra. Glover Cleveland

Minha querida sra. Cleveland, Estou lhe escrevendo uma cartinha nessa linda manhã porque gosto muito da senhora e da querida Rutbinha e também porque quero lhe agradecer pela carinhosa mensagem que me enviou pela srta. Derby. Fico muito, muito contente que uma pessoa tão amável e bonita goste de mim.

Gosto da senhora há muito tempo, mas achava que a senhora nunca tinha ouvido falar de mim até a chegada de sua carinhosa mensagem. Por favor beije sua filhinha por mim e diga a ela que tenho um irmãozinho de quase 16 meses. Ele se chama Phillips Brooks. Dei a ele o nome de meu querido amigo Phillips Brooks. Com esta carta lhe envio um bonito livro que minha professora acha que pode lhe interessar e meu retrato. Por favor aceite-os com o amor e os bons votos de sua amiga, Helen Keller Tuscumbia, Alabama.

Quatro de novembro [1892]

 

Até aqui as cartas foram reproduzidas integralmente; a partir deste ponto há trechos omitidos, sendo as omissões indicadas.

Em março, Helen e a srta. Sullivan foram para o Norte e passaram alguns meses viajando e visitando amigos.


Ao lermos a carta seguinte sobre Niágara, devemos lembrar que a srta. Keller conhece distância e forma e que o tamanho do Niágara foi incluído em sua experiência depois que ela explorou as cataratas, atravessou a ponte e desceu no elevador. Especialmente importantes são os detalhes sobre sua sensação com o jorro da água ao colocar a mão na janela. Dr. Bell deu a ela uma almofada de sentar, que ela segurou junto a si para aumentar as vibrações.

Para a sra. Kate Adams Keller South Boston, 13 de abril de 1893

(...) A Professora, sra. Pratt e eu resolvemos de repente fazer uma viagem com o querido dr. Bell (...) Sr. Westervelt, um senhor que meu pai conheceu em Washington, tem uma escola para surdos em Rochester. Fomos lá primeiro (...)

O sr. Westervelt nos ofereceu uma recepção certa tarde.

Muitas pessoas apareceram. Algumas fizeram perguntas esquisitas. Uma senhora se mostrou surpresa de que eu gostasse de flores, já que eu não podia ver as lindas cores delas e quando lhe afirmei que gostava delas, a senhora disse: "Sem dúvida você sente as cores com os dedos".

Mas é claro que não é só pelas cores vivas que gostamos das flores (...) Um cavalheiro me perguntou o que significava beleza para a minha mente. Devo confessar que no início fiquei intrigada, mas um minuto depois respondi que a beleza era uma forma de bondade, e ele foi embora.

Quando a recepção acabou, voltamos para o hotel e a professora dormiu profundamente, sem noção da surpresa que a esperava. O sr. Bell e eu planejamos a coisa juntos e ele fez todos os arranjos antes de contarmos qualquer coisa à professora. Essa foi a surpresa - eu ia ter o prazer de levar minha querida professora para ver as cataratas do Niágara! (...)

O hotel era tão perto do rio que eu podia sentir o seu jorro quando passava colocando minha mão na janela. Na manhã seguinte o sol brilhava quente e levantamos rapidamente pois estávamos com uma agradável expectativa (...)

A senhora não pode imaginar como me senti na presença do Niágara até ter as mesmas sensações misteriosas. Eu mal podia perceber que era água o que eu sentia jorrando e caindo com fúria impetuosa a meus pés. Parecia alguma coisa viva correndo para um destino terrível. Gostaria de poder descrever a catarata como é, sua beleza, a terrível grandeza e o temível e irresistível mergulho de suas águas sobre a borda do precipício. A pessoa se sente desamparada e esmagada na presença de uma força tão vasta. Tive a mesma sensação uma vez, antes, quando me deparei pela primeira vez com o grandioso oceano e senti as ondas batendo contra a praia.

Acho que a senhora sente isso também, quando contempla as estrelas na quietude da noite, não? (...) Descemos quase 40 metros num elevador de onde se podia ver os violentos redemoinhos e vórtices na profunda garganta abaixo das cataratas. A uns três quilômetros delas há uma maravilhosa ponte suspensa. É lançada através da garganta a uma altura de 80 metros acima da água e sustentada em cada margem por torres de rocha sólida, que ficam a 240 metros uma da outra. Quando atravessamos para o lado canadense eu gritei: "Deus salve a Rainha!". A professora disse que eu era uma traidorazinha, mas acho que não. Eu fazia apenas o que os canadenses fazem, enquanto estava no país deles, e além disso, tenho um grande respeito pela boa rainha da Inglaterra (...)

A senhora vai ficar contente, mãe querida, de saber que uma senhora bondosa, srta. Hooker, está se esforçando para melhorar a minha fala. Ah, eu espero e rezo para poder falar bem algum dia! (...)

O sr. Munsell passou a noite do último domingo conosco.

Como a senhora teria gostado de ouvi-lo contando sobre Veneza! Com suas belas descrições, é como se estivéssemos sentados à sombra de San Marco, sonhando, ou navegando no canal iluminado pela lua (...) espero que quando eu visitar Veneza, como certamente farei um dia, sr. Munsell vá comigo.

Esse é o meu sonho dourado. Sabe, nenhum de meus amigos descreve coisas de um modo tão vivo e lindo como ele (...)

Helen descreve sua visita à Feira Mundial numa carta ao sr. John E Spaulding, que foi publicada na St. Nicholas e é muito parecida com a carta que se segue. Numa nota introdutória que a srta. Sullivan escreveu para Sr. Nicholas, ela conta que lhe diziam freqüentemente: "Helen vê mais com os dedos do que nós com os olhos". O presidente da Exposição deu a ela esta carta:

Para os chefes dos departamentos e funcionários encarregados dos prédios e exposições

Cavalheiros, A portadora, srta. Helen Keller, acompanhada da srta. Sullivan, deseja fazer uma inspeção completa em todos os Departamentos da Exposição. Ela é cega e surda mas pode conversar e me foi apresentada como tendo uma maravilhosa capacidade de entender os objetos que visita, possuindo um alto grau de inteligência e cultura muito além de sua idade. Por favor, facilitem sua visita a todas as dependências para examinar as exposições nos diversos Departamentos e tenham com ela todas as cortesias possíveis.

Agradecendo-lhes de antemão, respeitosa e sinceramente, (assinado) H. N. Higinbotham, presidente

Para a srta. Caroline Derby
Hulton, Pen., 17 de agosto de 1893

(...) Todo mundo na Feira foi muito amável comigo (...)

Quase todos os expositores pareciam ter enorme boa vontade em me deixar tocar as coisas mais delicadas e foram muito simpáticos para me explicarem tudo. Um cavalheiro francês, cujo nome não consigo lembrar, me mostrou os grandes bronzes franceses. Acho que eles me deram mais prazer do que qualquer outra coisa na Feira: eram tão reais e maravilhosos ao meu toque. O próprio dr. Bell foi conosco ao edifício da eletricidade e nos mostrou alguns dos telefones históricos. Vi aquele em que o imperador D. Pedro escutou as palavras, "Ser, ou não ser" no Centenário. O dr. Gillett, de Illinois, nos levou aos edifícios das Artes Liberais e o da Mulher. No primeiro visitei a exposição da Tiffany's e segurei o belo diamante Tiffany, avaliado em 100 mil dólares, e toquei muitas outras coisas raras e caras. Sentei na poltrona do rei Ludwig e me senti uma rainha quando o dr. Gillett observou que eu tinha muitos súditos leais. No edifício da Mulher, encontramos a princesa Maria Schaovskoy da Rússia e uma bela senhora síria. Gostei muito das duas. Fui ao departamento japonês com o prof. Morse, que é um palestrante bem conhecido. Nunca tinha percebido que povo maravilhoso é o japonês até que vi sua exposição bem interessante, O Japão deve ser de fato um paraíso para crianças, a se julgar pelo grande número de brinquedos manufaturados lá. Os instrumentos musicais japoneses, de aparência esquisita, e suas belas obras de arte eram interessantes. Os livros japoneses são muito esquisitos. Há 47 letras no alfabeto deles. O prof. Morse sabe muito sobre o Japão e é muito amável e sábio. Ele me convidou para visitar seu museu em Saiem da próxima vez que eu for a Boston. Mais do que qualquer coisa na Feira, acho que gostei mais dos barcos a vela na lagoa tranqüila e das cenas adoráveis que meus amigos descreveram para mim.

Uma vez, enquanto estávamos na água, o sol afundou-se no horizonte e lançou uma luz rosada e suave sobre a White City, fazendo-a parecer mais do que nunca a Terra dos Sonhos.

Claro, visitei o Midway Plaisance. Foi um lugar fascinante e perturbador. Entrei nas ruas do Cairo e andei de camelo. Foi uma ótima diversão. Também andamos na roda-gigante, na ferrovia do gelo e viajamos num vapor de carga (...)

Na primavera de 1893, presidido pela sra. Keller, foi inaugurado um clube em Tuscumbia para estabelecer ali uma biblioteca pública. A srta. Keller diz: "Escrevi para meus amigos sobre a obra e consegui a simpatia deles. Várias centenas de livros, inclusive alguns ótimos, foram-me enviados num curto espaço de tempo, assim como dinheiro e incentivos. Essa generosa ajuda estimulou as senhoras, que desde então continuam a colecionar e comprar livros e agora já têm uma biblioteca pública muito respeitável na cidade".

Para a sra. Charles E. Inches
Hulton, Pen., 21 de outubro de 1893

(...) Passamos setembro em Tuscumbia (...) e ficamos todos muito felizes juntos (...) Nosso quieto lar na montanha estava especialmente atraente e repousante depois da excitação e fadiga de nossa visita à Feira Mundial. Usufruímos a beleza e a solidão mais do que nunca.

E agora estamos em Hulton, Pensilvânia, de novo, onde vou estudar neste inverno com um professor particular ajudado por minha querida professora. Estudo aritmética, latim e literatura. Gosto muito de minhas aulas. É tão agradável aprender sobre novas coisas. Cada dia descubro como sei pouco, mas não me sinto desanimada já que Deus me deu uma eternidade para aprender mais. Na literatura estou estudando a poesia de Longfellow. Sei muitas de cor, pois gostava delas muito antes de distinguir uma metáfora de uma sinédoque. Eu dizia que não gostava muito de aritmética, mas agora mudei de idéia. Vejo como é um estudo bom e útil, embora deva confessar que minha mente se afasta dela às vezes! pois por mais útil que seja a aritmética, não é tão interessante quanto um belo poema ou uma história encantadora. Mas minha nossa, como o tempo voa. Só me sobram alguns momentos para responder suas perguntas sobre a Biblioteca Pública Helen Keller.

1. Acho que há umas três mil pessoas em Tuscumbia, Ala., e talvez metade delas são negras. 2. No momento presente, não há nenhuma biblioteca de qualquer tipo na cidade. Foi por isso que pensei em começar uma. Minha mãe e várias outras senhoras amigas disseram que me ajudariam e formaram um clube cujo objetivo é trabalhar para o estabelecimento de uma biblioteca pública grátis em Tuscumbia. Elas têm agora cerca de 100 livros e uns 55 dólares em dinheiro, e um bondoso cavalheiro nos deu um terreno para construir o prédio da biblioteca.

Mas enquanto isso o clube alugou uma salinha numa parte central da cidade e os livros que já temos estão livres para todos. 3.Só alguns de meus amigos em Boston sabem da biblioteca. Eu não gostei de incomodá-los quando tentava conseguir dinheiro para o pobre Tommy, mas é claro que era mais importante que ele fosse instruído do que meu povo tivesse livros para ler. Não sei que livros temos, mas deve ser uma miscelânea (acho que a palavra éessa)(...)

PS. Minha professora acha que seria mais formal dizer que uma lista dos contribuintes para o fundo do prédio será guardada e publicada no jornal de meu pai, o North Alabamian. H.K.

Para o dr. Edward Everett Hate Hulton,
Pensilvãnia, 14 de janeiro [de 1894]

Meu Querido Primo: Pensei em lhe escrever muito antes em resposta à sua amável carta que me deixou tão contente e lhe agradeço pelo lindo livrinho que mandou; mas tenho estado ocupada desde o inicio do Ano Novo. A publicação de minha historinha no Youth's Companion me trouxe uma grande quantidade de cartas - na semana passada recebi 61! -, e além de responder a algumas dessas cartas, tenho muitas aulas, entre elas de aritmética e latim e, você sabe, César ainda é César, imperioso e tirânico, e se uma menina quer entender um homem tão ilustre e as guerras e conquistas sobre as quais ele conta na bela língua latina, ela precisa estudar e pensar muito, e estudo e pensamento tomam tempo.

Vou guardar para sempre com carinho o livrinho, não apenas por seu próprio valor; mas por causa da associação dele com você. É encantador pensar em você como o doador de um de seus livros no qual, tenho certeza, você trabalhou sua imaginação e emoções, e lhe agradeço muito por lembrar de mim de um modo tão bonito (...)

Em fevereiro, Helen e a srta. Sullivan voltaram a Tuscumbia, onde passaram o resto da primavera lendo e estudando. No verão, assistiram ao encontro em Chautauqua da American Association for the Promotion of the Teaching of Speech to the Deaf onde a srta. Sullivan leu um trabalho sobre a educação de Helen Keller.

No outono, Helen e a srta. Sullivan entraram para a Wright- Humason School em Nova York, especializada em leitura labial e cultivo da voz.

Para a srta. Caroline Derby
The Wright-Humason School
Nova York, 15 de março de 1895

(...) Penso que melhorei um pouco em leitura labial, embora ainda ache muito difícil ler uma fala rápida; mas tenho certeza de que algum dia vou conseguir, se perseverar. O dr. Humason ainda está tentando melhorar minha fala. Ah, Carne, como eu gostaria de falar como as outras pessoas! Eu trabalharia de boa vontade dia e noite se isso fosse possível. Pense que alegria seria para todos os meus amigos me ouvirem falar naturalmente!!

Fico pensando por que é tão difícil para uma criança surda aprender a falar quando é tão fácil para outras pessoas; mas tenho certeza de que falarei perfeitamente algum dia, se for paciente (...)

Apesar de estar tão ocupada, tenho achado tempo para ler muito (...) Ultimamente li Guilherme Tell, de Schiller e The lost vestal (Vestal perdida) (...) Agora estou lendo Nathan the wise (Nathan, o sábio), de Lessing e ReiArthur, da srta. Mulock.

Você sabe que nossos bondosos professores nos levam para ver tudo que acham que vai nos interessar e aprendemos muito desse modo maravilhoso. No aniversário de George Washington fomos todos à Exposição de Cães, e embora houvesse uma grande multidão no Madison Square Garden e apesar da perturbação causada pela variedade de sons feitos pela orquestra de cachorros, muito confusa para os que podiam ouvir, usufruímos bem a tarde. Entre os cachorros que receberam mais atenção estavam os buldogues. Eles se permitiam liberdades espantosas quando os acariciávamos, quase se empilhando nos braços das pessoas e se adiantando sem cerimônia para beijos, aparentemente sem notar a impropriedade de seu comportamento. Minha nossa, que animaizinhos pouco educados! Mas eles são de gênio tão bom e amigável que não se pode deixar de gostar deles.

Dr. Humason, a Professora e eu deixamos os outros na Exposição e fomos a uma recepção dada pelo Metropolitan Club (...) Ele é chamado às vezes de Clube dos Milionários.

O edifício é magnífico, construído em mármore branco; os aposentos são grandes e esplendidamente mobiliados; mas devo confessar que tanto esplendor é opressivo para mim; e não invejei nem um pouco toda a felicidade que seus deslumbrantes ambientes supostamente trazem àquelas pessoas (...)

 

Para o dr. Edward Everett Hale

Cambridge, 10 de novembro de 1901

Minha professora e eu esperamos estar presentes no encontro de amanhã em comemoração ao centésimo aniversário de nascimento do dr. Howe; mas tenho muitas dúvidas se teremos uma oportunidade de falar com o senhor; portanto escrevo-lhe agora para dizer o quanto estou encantada de que vá falar na reunião, pois sinto que o senhor, melhor do que qualquer outro que conheço, expressará a profunda gratidão daqueles que devem sua educação, oportunidades e felicidade àquele que abriu os olhos dos cegos e deu aos surdos a linguagem labial.

Sentada aqui em meu escritório, rodeada por meus livros, usufruindo a doce e íntima companhia dos grandes e sábios, tento imaginar o que minha vida poderia ter sido, se o dr. Howe tivesse falhado na grande tarefa que Deus lhe deu. Se ele não tivesse assumido a responsabilidade da instrução de Laura Bridgman e a tirado do poço de Aqueronte, devolvendo-lhe sua herança humana, seria eu uma segundanista do Radcliffe College hoje? Quem pode dizer? Mas é ocioso especular sobre algo com relação à grande realização do dr. Howe.

Acho que somente os que escaparam da morte-em-vida, da qual Laura Bridgman foi resgatada, podem perceber como uma alma fica isolada, amortalhada na escuridão e confinada por sua própria impotência à ausência de pensamento, fé ou esperança. As palavras são impotentes para descrever a desolação dessa prisão, ou a alegria da alma libertada de seu cativeiro. Quando comparamos as necessidades e o desamparo dos cegos antes que o dr. Howe começasse seu trabalho e a atual utilidade e independência deles, percebemos que grandes coisas foram feitas em nosso meio. E se as condições físicas tivessem construído altos muros em torno de nós? Graças a nosso amigo e benfeitor, nosso mundo é ascendente; a extensão, a amplitude e o alcance dos céus são nossos!

É um prazer pensar que os nobres feitos do dr. Howe receberão o devido tributo de afeição e gratidão, na cidade que foi o cenário de seus grandes esforços e esplêndidas vitórias para a humanidade.

Com amáveis cumprimentos, nos quais minha professora se junta a mim, sou, com todo o afeto, sua amiga,

Helen Keller

Para o hon. George Frisbie Hoar

Cambridge, Mass., 25 de novembro de 1901

Meu caro senador Hoar: Fiquei contente por ter gostado de minha carta sobre o dr. Howe. Foi escrita de coração e talvez por isso tenha encontrado uma resposta solidária em outros corações. Vou pedir ao dr. Hale para me emprestar a carta, para que eu possa fazer uma cópia para o senhor.

Sabe, eu uso uma máquina datilográfica - é o meu braço direito, como se diz. Sem ela não vejo como poderia ter entrado para a faculdade. Escrevo nela todos os meus ensaios e exames, até grego. Na verdade, só tem uma desvantagem, provavelmente encarada como uma vantagem pelos professores: é que os meus equívocos podem ser detectados numa olhadela, pois não há chance de escondê-los numa letra ilegível.

Sei que o senhor se divertirá quando eu lhe disser que estou profundamente interessada em política. Gosto que os jornais sejam udos para mim e tento entender as grandes questões do dia; mas tenho medo que meu conhecimento seja muito instável, pois mudo minhas opiniões com cada novo livro que leio. Eu pensava que quando estudasse governo civil e economia, todas as minhas dificuldades e perplexidades iam florescer em belas certezas, mas ai de mim, vejo que há mais joio do que trigo nesses férteis campos de conhecimento (...)

 

Δ

 



APÊNDICE I

TRECHO DE "THE WORLD I LIVE IN"

XI. ANTES DO ALVORECER DA ALMA

Antes da vinda de minha professora, eu não sabia quem eu era. Vivia num não-mundo. Não posso esperar descrever adequadamente aquele tempo inconsciente, embora consciente, do vazio. Eu não tinha noção de saber coisa alguma, ou que vivia, agia ou desejava. Não tinha vontade nem intelecto. Era arrastada para objetos e atos por um certo ímpeto cego natural.

Tinha uma mente que me fazia sentir raiva, satisfação, desejo.

Esses dois fatos fizeram os que me cercavam supor que eu tinha vontade e pensamento. Consigo me lembrar de tudo isso não porque soubesse que era assim, mas porque tenho memória tátil. Ela me lembra que jamais contraí a testa no ato de pensar. Nunca considerei nada de antemão, ou o escolhi. Recordo também, em termos de tato, o fato de que nunca num sobressalto de corpo ou numa batida do coração senti que amava ou me importava com alguma coisa. À época, minha vida interior era um vazio sem passado, presente ou futuro, sem esperança ou expectativa, sem nenhuma ocorrência surpreendente, alegria ou fé.

It was not night - it was not day,
But vacancy absorbing space,
And fixedness, without a place;
There were no stars - no earth - no time -
No check - no change - no good - no crime.

[The prisoner of Chillon (1816), por George Gordon, Lord Byron.]

[Não era noite - nem dia/(. ..)/mas o vácuo absorvendo o espaço,/e fixidez sem lugar;/nenhuma estrela - nem terra - nem tempo que redime -/ou parada-ou mudança - ou bem - ou crime. (Tradução livre. N da T.)]

Meu ser adormecido não tinha nenhuma idéia de Deus ou imortalidade, nenhum temor da morte.

Recordo, também através do toque, que eu tinha poder de associação. Sentia tatilmente dissonâncias como a batida de um pé, a abertura de uma janela ou o seu fechar, o bater de uma porta. Depois de sentir repetidamente o cheiro da chuva e o desconforto da umidade, eu agia como os que estavam em torno de mim: corria para fechar a janela. Mas isso não era pensamento em qualquer sentido. Era o mesmo tipo de associação que faz o animal abrigar-se da chuva. Pelo mesmo instinto de imitação, eu dobrava as roupas que vinham da lavanderia e separava as minhas, alimentava os perus, costurava olhos de conta no rosto de minha boneca e fazia muitas outras coisas das quais eu tinha lembrança tátil. Quando queria algo de que gostava - sorvete, por exemplo, de que eu gostava muito -, vinha-me um delicioso paladar na língua (que, por falar nisso, não o tenho agora) e sentia em minha mão o girar da sorveteira. Eu fazia o sinal e mamãe sabia que eu queria sorvete. Eu "pensava" e desejava com os dedos. Se eu tivesse feito um homem, certamente poria seu cérebro e alma nas pontas dos dedos. De reminiscências como essas concluí que é a abertura de duas faculdades, a liberdade de vontade, ou escolha, e a racionalidade, ou o poder de pensar de uma coisa a outra, que faz que seja possível nos tornarmos primeiro criança, depois adulto.

Já que eu não tinha nenhum poder de pensamento, não comparava um estado mental a outro. Portanto, não tinha consciência de qualquer mudança ou processo ocorrendo no cérebro quando a srta. Sullivan começou a me ensinar. Eu apenas me encantava por obter com mais facilidade o que queria por meio dos movimentos dos dedos ensinados por ela. Eu pensava apenas em objetos, e apenas nos objetos que queria. Era o girar da sorveteira numa escala maior. Quando aprendi o significado de "eu" e "mim" e descobri que era algo, comecei a pensar. Então a consciência começou a existir para mim. Portanto, não foi o sentido do tato que me trouxe conhecimento. Foi o despertar de minha alma o primeiro a dar valor a meus sentidos, ao conhecimento de objetos, nomes, qualidades e atributos, O pensamento me tornou consciente do amor, da alegria e de todas as emoções. Eu estava ansiosa para saber, depois para entender, posteriormente para refletir no que eu sabia e entendia, e o ímpeto cego, que tinha antes me impelido de um lado para outro ao sabor das sensações, desapareceu para sempre.

Não consigo evocar com mais clareza do que qualquer outra pessoa as mudanças graduais e sutis das primeiras impressões para as idéias abstratas. Mas sei que minhas idéias fisicas, isto é, as idéias derivadas dos objetos materiais, me aparecem primeiro em idéias semelhantes às do toque. Instantaneamente elas se transformam em significados intelectuais. Posteriormente o significado encontra expressão no que é chamado "discurso interior".

Quando eu era criança, meu discurso interior era um soletramento interior. Embora eu seja ainda agora muitas vezes surpreendida soletrando para mim mesma nos dedos, também falo comigo mesma com os lábios, e é verdade que, assim que aprendi a falar, minha mente descartou os símbolos dos dedos e começou a articular. Entretanto, quando tento lembrar o que alguém me disse, tenho consciência de uma mão soletrando na minha.

Perguntam-me com freqüência quais foram minhas primeiras impressões do mundo em que me descobri. Mas quem chega a pensar em suas primeiras impressões sabe o enigma que isso é.

Nossas impressões crescem e mudam sem ser notadas, de modo que o que achamos que pensamos quando crianças pode ser muito diferente do que realmente experimentávamos em nossa infância.

Só sei que após o começo de minha educação, o mundo que estava dentro do meu alcance ficou todo vivo. Eu soletrava para meus blocos de armar e meus cachorros. Eu me solidarizava com as plantas quando as flores eram colhidas, porque achava que isso as feria e que elas se entristeciam por seu florescer perdido.

Passaram-se anos antes de me fazerem acreditar que meus cachorros não compreendiam o que eu dizia, e eu sempre lhes pedia desculpas quando esbarrava ou tropeçava neles.

À medida que minhas experiências se ampliavam e se aprofundavam, os sentimentos indeterminados e poéticos da infância começaram a se fixar em pensamentos definidos. A natureza - o mundo que eu podia tocar - era abraçada e preenchida comigo mesma. Estou inclinada a acreditar nesses filósofos que declaram que não conhecemos nada de nossos sentimentos e idéias.

Com um pequeno raciocínio engenhoso pode-se ver no mundo material simplesmente um espelho, uma imagem de sensações mentais permanentes. Em cada esfera do autoconhecimento está a condição e o limite de nossa consciência. Por essa razão, talvez, é que muitas pessoas conhecem tão pouco do que está além de seu curto espectro de experiência. Elas olham para dentro de si - e não encontram nada! Por isso concluem que não há nada fora delas também.

Seja como for, mais tarde passei a procurar uma imagem de minhas emoções e sensações nos outros. Tive de aprender os sinais externos de sentimentos internos. O sobressalto do medo, a tensão suprimida e controlada da dor, a pulsação de músculos felizes em outros, tiveram de ser percebidos e comparados com minhas próprias experiências antes que eu pudesse traçá-las até a alma intangível do outro. Tateando incerta, finalmente encontrei minha identidade, e após ver meus pensamentos e sentimentos repetidos nos outros, gradualmente construí meu mundo de homens e de Deus. Enquanto lia e estudava, descobri que isso é o que o resto da raça tem feito. O homem olha para dentro de si mesmo e, com o tempo, encontra a medida e o significado do universo.

 

Δ

 


APÊNDICE II

TRECHO DE "OUT OF THE DARK"

 

A MULHER MODERNA

1. A mulher instruída

O que tentarei dizer nas páginas seguintes tem a ver com uma resposta em conjunto a cartas de moças que pedem meu conselho sobre a educação pela qual deveriam lutar e o uso da educação que têm. O espírito prevalecente dessas correspondentes é um ávido desejo de serem úteis. Suas cartas são ao mesmo tempo deliciosas e chocantes; elas me enchem de uma mistura de orgulho e timidez.

Revelam uma imensa vontade de servir, um incalculável estoque de poderio-de-alma, como um reservatório de montanha, a ser liberado em irresistíveis enchentes de retidão, capaz também de uma devastadora direção errada. Todo esse poder me pergunta nas seguintes palavras: "Diga-nos o que fazer".

Meu senso de responsabilidade orienta-se pela consideração de que as pessoas não aceitam o conselho de outro, mesmo quando é bom e o buscam. As ações humanas são moldadas por mil forças mais fortes do que a sabedoria escrita do guia mais sábio que já existiu. O melhor que os profetas da raça descobriram há séculos não tem, parece, se tornado um motivo controlador mesmo nas vidas de seus seguidores. Se o conselho das eras não é considerado, um ser moderno comum não pode esperar que suas palavras tenham influência definitiva. Entretanto, um pedido sincero exige uma anuência sincera. Uma vez que minhas correspondentes pensam que meu conselho lhes pode ser útil, sugerirei alguns problemas para estudarem, pois elas podem ser mais adequadas ao trabalho humanitário.

Como sou conhecida pelo meu interesse em melhorar a condição dos cegos, muitas de minhas correspondentes, cujo coração se comove ante a idéia da cegueira, se oferecem para ajudar seus irmãos na escuridão e me perguntam por onde começar. Ultimamente descobri que minhas cartas, em resposta às das que desejam ajudar os cegos, contêm um parágrafo sobre os sem visão e a seguir passam para outras coisas. Tenho cogitado às vezes se minhas amigas não ficavam mais intrigadas do que ajudadas por minhas respostas. Uma turma de moças da faculdade de uma instituição perto de grandes cidades fabris e minas de carvão me pediu para iniciá-las em esforços filantrópicos para os sem visão.

Eu lhes disse para estudarem a vida que se enxameia nas suas próprias portas - os trabalhadores das fábricas e os mineiros. Cogito se entenderam a minha resposta. Tentei dizer-lhes o que tem sido dito muitas vezes, que o ser humano mais bem instruído é aquele que entende mais sobre a vida em que está situado; que o cego, por mais pungente que seu sofrimento apele para nossos corações, não é uma pessoa isolada, separada, cujo problema possa ser resolvido por si mesmo, e sim um sintoma do desajuste social.

Isso parece desalentadoramente vago e cósmico e pode ter deixado perplexas as moças para quem escrevi. Elas me perguntaram como ajudar os cegos, como educar a si mesmas para que pudessem ser úteis a seus desafortunados companheiros humanos e eu lhes ofereci o universo - recomendei gravemente que estudassem a economia industrial. Meu conselho de estudarem a vida que as rodeia foi talvez a única parte não paradoxal da minha receita, pois a situação toda é paradoxal e confusa. A sociedade é uma unidade; as partes dependem umas das outras; uma parte do mundo sofre porque o resto não está direito. E mesmo assim cada um de nós só pode saber muito pouco sobre o todo da sociedade. Além disso, essas garotas de faculdade, vivendo uma vida que não conheço, mandam suas perguntas a mim a três mil quilômetros de distância - a mim que preciso tatear uma biblioteca de algumas centenas de livros, enquanto elas têm todos os livros do mundo ante elas. Podem visitar e falar com dez pessoas enquanto eu soletro minha comunicação com um só deles.

Instrução? Como pode alguém que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir e tempo livre para ler e estudar permanecer não instruída? Os "educadores" estarão falhando? Está faltando algo nos que administram as escolas e faculdades? Cogito sobre essas coisas e examino intrigada os detalhes de minha mensagem com crescente perplexidade.

Os desafortunados não são apenas aqueles cuja enfermidade apela para nossa solidariedade pelo seu visível e palpável terror - o cego, o surdo, o mudo, o manco, o torto, o de mente fraca, os moralmente doentes. Os desafortunados incluem o vasto número daqueles que são destituídos dos meios e confortos que promovem a vida correta e o autodesenvolvimento. O modo de ajudar os cegos ou qualquer outra classe deficiente é entender, corrigir, remover as incapacidades e desigualdades de toda a nossa civilização. Estamos nos esforçando para impedir a cegueira.

Tecnicamente sabemos como preveni-la, como sabemos tecnicamente ter casas limpas, comida saudável e estradas de ferro seguras.

Socialmente não sabemos. Socialmente ainda somos ignorantes. A ignorância social está no fundo de nossas misérias, e se a função da educação é corrigir a ignorância, a educação social é, nessa hora, o tipo mais importante de educação.

Então, a mulher instruída é a que conhece a base social de sua vida e da vida daqueles a quem ajudaria, os filhos dela, seus empregadores, seus empregados, o mendigo à sua porta e seu congressista em Washington. Quando Shakespeare escreveu Hamlet, ou se o escreveu ou não, parece relativamente pouco importante se comparado à questão se as trabalhadoras em sua cidade recebem um salário que dê para viver e criam seus filhos em locais adequados. A história da Guerra Civil americana, como é ensinada nas escolas, é incompleta se 50 anos depois as filhas e netas dos veteranos não entendem proposições tão simples como: "A mulher que tem um filho arrisca sua vida pelo país".

São tais questões fundamentais relacionadas aos problemas da vida que a educação escolar parece ignorar. Na escola e na faculdade passamos muito tempo dedicadas a questões triviais.

Não consigo me lembrar muito do que aprendi no Radcliffe College, algo que agora se destaque em minha mente como de importância primordial. A pouca teoria econômica que aprendi foi admiravelmente ensinada, mas nunca consegui harmonizá-la com os fatos econômicos que aprendi desde então. Os cursos a que assisti eram tão elementares que eu não devia julgar as oportunidades oferecidas por Radcliffe para o estudo de economia.

Simplesmente acontece, como acontece na experiência de muitos estudantes, que a sabedoria acadêmica que tive o privilégio de compartilhar não tocou nos problemas que vim a encontrar mais tarde.

Se as mulheres devem aprender as coisas fundamentais da vida, precisamos nos educar, e umas às outras. E as poucas de nós que são injustamente chamadas de instruídas porque estiveram na faculdade precisam aprender muito e esquecer muito, se não quiserem parecer ociosas inúteis para milhões de trabalhadoras na América. Qualquer moça que vai à escola pode estudar e descobrir algumas coisas que uma americana instruída devia saber.

Por exemplo, por que nesta terra de grande riqueza há grande pobreza? Qualquer moça inteligente como as que me escrevem, ávidas para ajudar os cegos ou qualquer outra classe desafortunada, pode aprender por que um trabalho importante como fornecer comida, roupas e abrigo é mal recompensado, por que crianças se esfalfam nas fábricas enquanto milhares de homens não conseguem trabalho, por que mulheres que não fazem nada têm milhares de dólares por ano para gastar.

Há uma causa econômica para essas coisas. A mulher americana precisa saber por que milhões estão afastados de todos os benefícios de tal educação, arte e ciência que a raça aprimorou até agora. Nós, mulheres, temos de enfrentar questões que os homens sozinhos evidentemente não têm sido capazes de resolver.

Precisamos saber por que uma mulher que é dona de bens não tem voz na escolha dos homens que fazem as leis que afetam seus bens. Precisamos saber por que uma mulher que ganha salário não tem nada a dizer sobre a escolha dos homens que fazem leis que governam seus salários. Precisamos saber por que cem ou 50 de nossas irmãs foram mortas em Nova York num incêndio numa fábrica de camisas no outro dia e ninguém foi responsabilizado.

Precisamos saber por que nossos pais, irmãos e maridos são mortos em minas e em estradas de ferro. Nós mulheres, que somos conservacionistas naturais, precisamos descobrir por que os filhos que trazemos ao mundo são postos em fila e alvejados.

Precisamos nos organizar com nossos irmãos mais esclarecidos e declarar uma greve geral contra a guerra. Meu pai era um soldado confederado, e eu respeito soldados. Mas passei a suspeitar cada vez mais do poder politico que tira os homens de seus trabalhos e os coloca disparando uns nos outros. Nem todos os poemas militares que li despertaram em mim um desejo heróico de dar as boas-vindas a meu irmão que volta com uma bala no coração.

Nós mulheres temos o privilégio de ficar famintas enquanto nossos homens estão em batalha, e é nosso direito ficar viúva e órfã pela estupidez politica e o caos econômico. Sem dúvida não nos permitem votar contra o congressista que declara guerra; mas podemos instruir-nos não oficialmente nessas questões.

O que quero dizer quando me refiro a uma mulher instruída ficou mais claro? Deve ficar claro; pois tudo que tenho dito foi dito antes de eu nascer e dito por homens; portanto não pode haver nenhuma falha na lógica. Nós, mulheres, precisamos nos educar a nós mesmas e sem delongas. Não podemos mais esperar que economistas politicos resolvam problemas tão vitais como ruas limpas, casas decentes, roupas quentes, comida substancial, salários condizentes, minas e fábricas seguras, escolas públicas boas.

Essas são as nossas questões. As mulheres já estão falando, e falando nobremente; e os homens estão falando conosco. Certamente alguns homens e mulheres estão falando contra nós, mas a discussão deles é com o espírito da vida. A mulher de Lot virou-se para trás, mas ela é uma exceção. É notório que as mulheres conseguem aquilo que se inclinem a conseguir, e as circunstâncias as estão impelindo para a educação.

No outro dia os jornais continham um item que é pertinente aqui, já que estamos lidando com mulheres e educação. A Harvard Corporation votou para que não seja permitido que qualquer sala da universidade seja aberta a palestras e conferências proferidas por mulheres, exceto quando especialmente convidadas pela corporação. Não havia tal regra até que um clube de formandas pediu à sra. Pankhurst que falasse. Então a regra foi instituída.

A corporação tem direito de fazer tal regra. Mas por que a fez discriminando as mulheres? Um homem instruído é alguém que recebe, estimula e contribui para o melhor pensamento de seu tempo. Por essa definição, os homens da Harvard Corporation são instruídos? Felizmente a educação não depende de instituições educacionais, da mesma forma que a religião não depende de igrejas.

Bacon diz em Novum Organum: "Nos costumes e instituições de escolas, academias e faculdades e organismos similares destinados a ser o abrigo dos homens cultos e ao cultivo do aprendizado, tudo é adverso ao progresso da ciência, pois as palestras e os exercícios são ali tão ordenados que pensar ou especular sobre algo fora do modo comum dificilmente pode ocorrer a alguém, e se um ou dois têm a ousadia de usar qualquer liberdade de julgamento, têm que empreender a tarefa sozinhos; não podem ter nenhuma vantagem da companhia dos outros. E se podem suportar isso, também, descobrirão que sua engenhosidade e largueza de mente não são um obstáculo pequeno à sua fortuna, pois os estudos nesses lugares são confinados e, como se diz, aprisionados nos textos de certos autores. E se qualquer um diverge deles é imediatamente apontado como turbulento e inovador".

Talvez a primeira lição a ser aprendida por nós mulheres, inclinadas a nos educar sozinhas, é que somos dóceis demais em relação à instrução formal. Aceitamos com muito pouco questionamento o que os instruídos nos dizem. A razão, ou seja lá que substituto o céu nos deu, não fica à porta da receptividade e desafia quem busca ser admitido. Fico surpresa ao descobrir que muitos campeões das mulheres, detentores de "idéias avançadas", exaltam a inteligência da assim chamada mulher culta. Eles a retratam como um prodígio intelectual a quem o homem mais sábio entregaria sua biblioteca e seu laboratório com uma sensação de desalentada incompetência. Não se deve insistir sobre a inteligência da mulher, e sim sobre suas necessidades, suas responsabilidades, suas funções. A mulher que trabalha a um dólar por dia tem tanto direito quanto qualquer outro ser humano de dizer quais deveriam ser as condições de seu trabalho. E exatamente isso, lamento descobrir, que as mulheres instruídas nem sempre entendem. Elas argumentam que, já que George Eliot escreveu grandes romances e Joana d'Arc liderou exércitos para a vitória, a mulher tem tanta capacidade quanto os homens; assim, elas insistem no curso de pensamento que não é o ponto crucial da questão.

Os que argumentam contra os direitos para os quais somos plenamente qualificadas não se esquivam da questão com incerteza mais oscilante do que nós mesmas mostramos ao nos defendermos.

Não estou disposta a elogiar a mulher instruída, como utilizamos comumente o termo. Eu a considero estreita e carente de visão. Poucas mulheres que encontro têm um interesse profundo nas importantes questões atuais. Mostram-se entediadas com qualquer problema não imediatamente relacionado com seus desejos e ambições. Sua conversa é trivial e errática. Não dedicam tempo suficiente a um assunto para descobrir que não sabem nada sobre ele. Como é raro que a moça de faculdade que provou o gosto da filosofia e estudou história relacione filosofia e as crônicas do passado aos tremendos processos da vida que fazem história a cada dia! O reputado juízo prático dela e sua rápida solidariedade parecem tornar-se inoperantes na presença de qualquer questão que alcance um horizonte amplo. Sua mente trabalha rapidamente na medida em que segue uma trilha tradicional.

Tire-a de lá e ela se torna inerte e sem recursos. Ela carece de reflexão, originalidade, independência. Em face da oposição a um interesse privado ou a um instinto primitivo, ela pode ser corajosa e vivamente inteligente. Mas recua das idéias gerais como se estas não lhe dissessem respeito, quando na verdade a vida civilizada está compreendida em idéias gerais.

Tal mulher chega às mais graves responsabilidades como as virgens tolas que rumam apressadas para o casamento sem nenhum óleo em seus lampiões. Ela não está preparada para a batalha da vida. Antes que saiba, pode estar no meio da batalha, indisciplinada e desorganizada, lutando por tudo que lhe é precioso contra um inimigo sobre cuja posição ela não fez o reconhecimento.

Manda seus filhos e filhas para as ruas da vida sem o conhecimento que protege. A ignorância lhe dá confiança e ela é destemida por falta de compreensão.

Não é possível atribuir-se uma dificuldade complexa a uma causa única. Ás vezes, contudo, parece que a algema mais pesada nos pulsos de mulheres delicadas e bem cuidadas é a falsa noção de "pureza e feminilidade". Geração após geração nos é ensinado que pureza e feminilidade são as únicas armas de que precisamos no embate da vida. Com esse escudo estamos cumuladas de toda segurança possível num mundo essencialmente duro. O inimigo, porém, não luta de modo justo. Ele descarta feminilidade e pureza.

As mulheres aprenderam isso num sofrimento da vida inteira.

Mesmo assim algumas que mais sofreram agarram-se ao ideal e o passam a suas filhas, como os escravos ensinam seus filhos a beijar as próprias correntes. Sobre questões que afetam nossas próprias vidas nos advertem para falarmos com a "respiração contida", para não ofender as conveniências e provocar uma desaprovação ruborizada. O ideal da mulher cheia de confiança, pura e ignorante é lisonjeiro e doce para sua alma timorata. Mas não é, acredito, o produto de sua própria imaginação. Cresceu na fantasia cultuadora do homem romântico - seu poeta e seu amo.

Chegou a hora da mulher submeter esse ideal a uma crítica agudamente sagaz.

Δ

 


 

NOTAS
DEDICATÓRIA
1. Alexander Graham Bell (1847-1922), o inventor do telefone (aparelho que surgiu de sua pesquisa para criar um dispositivo de auxílio à audição, ou "máquina de falar", que pudesse reproduzir sons vocais) devotou a maior parte de sua carreira à educação dos surdos. Conheceu Helen Keller em 1886 e foi seu amigo e benfeitor até morrer.
 
Δ
PARTE 1:
A HISTÓRIA DA MINHA VIDA - Notas
1-1. A doença que fechou meus olhos e ouvidos (...) do estômago e do cérebro: a doença de Keller nunca foi identificada com certeza. Recentemente, os médicos acreditam ter sido escarlatina ou meningite.
1-2. Laura Bridgman (1829-89), a primeira pessoa surda e cega a receber uma educação formal. Ela perdera a visão e a audição aos dois anos de idade, depois de ter escarlatina. Conheceu SamueL Gridley Howe em 1837 e morou a maior parte de sua vida na Instituição Perkins para Cegos. No início da década de 1880, Bridgman compartilhou brevemente um quarto na instituição com Anne Sullivan.
1-3. Dr. Howe: Samuel Gridley Howe (1801-1876), médico, educador e reformador social. Em 1832, Howe tomou-se diretor do recém-criado New England Asylum for the Blind, que foi rebatizado em 1839 Perkins Institution for the Blind [Instituição Perkins para Cegos] (hoje, Perkins School for the Blind). Howe criou um sistema de Letras em relevo (o "Tipo Howe") amplamente usado por Leitores cegos até o desenvolvimento do braile.
1-4. Sr. Anagnos: Michael Anagnos (1837-1906), genro de Samuel GridLey Howe e seu sucessor como diretor da Instituição Perkins. Ele iniciou uma gráfica e uma biblioteca na Perkins para livros com tipos em relevo.
1-5. William Endícott: William Crowninshield Endicott (1826-1900), advogado e figura política de Boston. Foi membro da Suprema Corte do estado de Massachusetts (1 873-82) e serviu como secretário da Guerra no gabinete do presidente Grover Cleveland (1885-89).
1-6. Sra. Hopkins: Sophia C. Hopkins (1 842-1917); enviuvou aos 22 anos, perdeu sua filha única em 1883. Posteriormente, no mesmo ano, tornou-se superintendente na Instituição Perkins, onde ajudou a jovem Anne Sullivan, de 16 anos. Sullivan e Hopkins permaneceram amigas próximas até a morte de Hopkins. SuLlivan e Helen Keller foram convidadas freqüentes no lar dos Hopkins, em Cape Cod.
1-7. Shrunk and cold... earth and sea: de The visíon of Sir Launfal (1848), por James Russell Lowell.
1-8. Margaret T. Canby: embora uma figura importante no início da vida de Helen Keller, Margaret Tatnall Canby, autora de Birdie and his lady friends (1874), publicou apenas um outro livro, Flowers from the battle field, and other poems (1864), e sabe-se muito pouco sobre sua vida.
1-9. Little lord Fauntleroy: romance de Frances Hodgson Burnett (1849- 1924), publicado em 1886. Imensamente popular em seu tempo entre crianças e adultos, a obra agora quase não é lida. Conta a história de um garoto norte-americano que entra para a aristocracia inglesa. Embora o título seja agora uma frase que indica um jovem afetado e pretensioso, os leitores do final do século XIX viram o personagem do título como uma figura moral exemplar.
1-10. William Wade (1835-1911), fazendeiro, soldado da União, político e filantropo. Wade serviu na legislatura do Missouri de 1881 a 1884 e no Congresso norte-americano de 1885 a 1891. Wade tinha um grande interesse pelos surdos e publicou The deaf-blind (1901), um livro detalhando as realizações dos surdos-cegos nos Estados Unidos.
1-11. Bryant: William Cullen Bryant (1794-1878), poeta, editor e advogado. Filho de um médico de Massachusetts e descendente de um viajante do Mayflower, William Cullen Bryant tornou-se o primeiro poeta dos Estados Unidos a conquistar atenção internacional, especialmente com o poema Thanatopsis. Bryant estudou por si mesmo para tornar-se advogado, quando seu pai não pôde pagar seus estudos em Yale. Por muitos anos foi editor e escritor político para o New York Evening Post, um ativista da causa anti- escravagista. Posteriormente, Bryant traduziu a Ilíada de Homero, dizendo que traduzir, mais do que escrever poesia, era a vocação apropriada para a velhice.
1-12. John P. Spaulding (? -1896), um importante benfeitor de Helen Keller. Com sua morte em 1896, descobriu-se que além de ajudar a custear a educação de Helen, ele emprestara 1.500 dólares a seu pai. O capitão Keller morrera alguns meses antes e o espólio Spaulding não obteve êxito em recuperar o dinheiro.
1-13. Gilman: Arthur Gilman (1837-1909), uma figura importante no avanço da educação superior para as mulheres. Gilman foi um dos fundadores do Radcliffe College e seu primeiro diretor. Depois fundou e foi diretor da Cambridge School for Young Ladies.
1-14. Sr. Keith: Merton S. Keith (1851-1920), orientador de Keller. Além de ensinar, Keith era autor de estudos guiados para alunos de ginásio e faculdade em história grega e romana e física.
1-15. Chamberlin: Joseph Edgard Chamberlin, crítico literário do Boston transcript e um grande amigo de Helen Keller. Foi essencial na ajuda para que Anne Sullivan permanecesse com Helen em 1897, quando a sra. Keller estava prestes a dar a custódia da filha para Arthur Gilman, da Cambridge School for Young Ladies.
1-16. Charles Townsend Copeland (1860-1952) ministrou cursos de composição e de textos de Samuel Johnson, Walter Scott e os poetas românticos ingleses. Além de Helen Keller, os alunos de Copeland em Harvard incluiram T. S. Eliot, Conrad Aiken, John Dos Passos, John Reed, Walter Lippmann, Malcom Cowley e Van Wyck Brooks. Seu estilo teatral de ensino obtinha reações mistas. Keller e Redd o adoravam; Ebot e Dos Passos não.
1-17. George L. Kitzredge (1860-1941), distinto erudito e professor especializado em Chaucer e Shakespeare, nunca recebeu um Ph.D. Diz-se que ele cogitou: "Quem me examinaria?".
1-18. Josiah Royce (1 855-1916), eminente filósofo norte-americano, foi recrutado da Universidade da Califórnia-Berkeley por William James e começou a ensinar em Harvard em 1882. Seu trabalho mais importante é The world and the individual (2 vols., 1899,1901).
1-19. Bob Acres, um personagem da peça The rivals (1775), de Richard Sheridan.
1-20. God can dumbness keep... house of Time: do poema Acknowledgement, de Sidney Lanier.
1-21. Even as the roots...so do I: de The cathedral, de James Russell Lowell.
1-22. O dark, dark, dark... hope of day! de Samson Agonistes, de John Milton.
1-23. Eilen Terry: membro da segunda geração de uma grande família do teatro, Dame Ellen Terry (1847-1928) foi pioneira na interpretação moderna, desenvolvendo uma técnica mais natural, psicologicamente matizada, semelhante à que Stanislavsky ensinava na mesma época na Rússia. Era amiga próxima de George Bernard Shaw. Sir John Gielgud era seu sobrinho-neto.
1-24. Henry Irving (1838-1905), o ator britânico de maior êxito em seu tempo e o primeiro ator a receber o título de cavaleiro. Atuava numa grande variedade de peças populares, mas não atuou na obra dos novos dramaturgos mais importantes, como Ibsen e Shaw.
1-25. Jefferson: nascido numa família de atores, Joseph Jefferson III (1829- 1905) começou a representar com a idade de quatro anos e não recebeu nenhuma educação formal. Seu maior sucesso foi no papel de Rip Van Winkle, que ele representou muitas vezes por todo os Estados Unidos.
1-26. Elsie L.eslie (1 881-1966), atriz infantil aclamada por atuações nas versões para palco de Little lord Fauntlerqy (1888) e O príncipe e o mendigo (1890). Após retirar-se do palco por oito anos, Leslie voltou a ele já moça, mas sem seu antigo sucesso.
1-27. Bispo Brooks: Phillips Brooks (1835-93), ilustre clérigo de Boston, abolicionista. Após a Guerra Civil, Brooks foi um ativista na National Freedman's Relief Association. Foi reitor da Trinity Church em Boston e indicado bispo episcopal de Massachusetts em 1891.
1-28. God in all that liberates and lits...sweetness and consoles: de The cathedral, de James Russel Lowell.
1-29. Swedenborg: Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, teólogo e místico sueco. Swedenborg trabalhou como engenheiro metalúrgico e de minas, publicou artigos sobre matemática, física e química, desenvolveu uma teoria sobre a estrutura do átomo e fez contribuições significativas para o estudo da fisiologia. Depois, após uma série de visões místicas, Swedenborg desenvolveu sua própria religião, uma variante do Cristianismo que rejeitava a Trindade e a divindade de Jesus. Swedenborg descreveu em suas visões como ele via as ligações entre os mundos físico e espiritual. Sua crença de que a realidade visível é uma sombra do invisível deve ter tido um apelo óbvio para Helen Keller.
1-30. Drummond: Henry Drummond (1851-97), escritor e palestrante religioso escocês. Seu objetivo era reconciliar o Cristianismo com as teorias evolucionistas de Darwin. Em Ascent ofman (1894), Drummond argumentava que os instintos altruístas, mais que os competitivos, fornecem o ímpeto para a seleção natural.
1-31. Oliver Wendell Holmes (1809-1894), poeta, médico e pai do juiz da Suprema Corte norte-americana Oliver Wendell HolmesJr. Ensinou medicina em Harvard e Dartmouth, publicou artigos sobre técnicas médicas e conquistou sua maior popularidade, como escritor, com seus ensaios em The autocrat of the breakfast-table (1858), publicados originalmente como uma série nos primeiros números da Atlantic monthly (1857), da qual Holmes foi um dos fundadores.
1-32. Break, break, break... O sea!: do poema Break, break, break, de Alfred Tennyson.
1-33. Whittier: poeta, jornalista, abolicionista e filho de pais quaker, John Greenleaf Whittier (1807-1892) teve pouca instrução formal e aprendeu sozinho a escrever lendo a Bíblia, o Pilgrim- progress, as obras de escritores quakers e a poesia de Robert Burns. Foi membro fundador da Sociedade Antiescravista e serviu por um período na legislatura estadual de Massachusetts. Whittier foi um dos fundadores da Atlantic monthly.
1-34. Ednard Everett Hale (1822-1909), escritor, professor e ministro unitarista. Hale foi pastor da South Congregational Church de Boston (1856-1901) e serviu como capelão do Senado norte-americano de 1903 até sua morte. Foi autor de ensaios e contos, o mais famoso The man whitout a country (1863).
1-35. Charles Dudley Warner(1829-1900), escritor, editor e benfeitor de Helen Keller. Warner foi mais conhecido por seus ensaios humorísticos e textos de viagem. Publicou 23 livros, inclusive quatro romances.
1-36. Laurence Hutton (1843-1904), escritor, editor, colecionador de livros e benfeitor de Helen Keller. Hutton era um crítico teatral de Nova York e escreveu uma série de recordações e livros de viagem populares. Foi editor literário da Harper's Magazine de 1886 a 1898. Sua esposa era Eleanor Varnum Mitchell.
1-37. Mary Mapes Dodge (1831? - 1905), filha de escritor, autora de Hans brinker, or the silver skates. Por muito tempo editora da St. Nicholas Magazine, a revista infantil mais importante de sua época, Dodge publicou trabalhos de Jack Landon, Henry Wadsworth Longfellow, Robert Louis Stevenson e Lousia May Alcott. Ela também editou em série a primeira publicação de Little lord Fauntleroy, de Frances Hodgson Burnett.
1-38. Sra. William Thaw: Mary Sibbet Copley Thaw, esposa de William Thaw (1818-89), um magnata da navegação e das estradas de ferro de Pittsburgh. Sra. Thaw era também a mãe de Harry K. Thaw, o notório marido da modelo e artista do teatro de variedades Evelyn Nesbit e assassino do amante desta, o arquiteto Stanford White.
1-39. Ele é bem conhecido [...] meus estudos na faculdade: dado o poder e a reticência que Keller atribui a seu misterioso benfeitor, ela pode estar se referindo a J. P. Morgan, o financista dominante daquela época.

Δ

 



BIBLIOGRAFIA

TRABALHOS de e sobre HELEN KELLER
  • BRADY (Henney), Nella. Anne Sullivan Macy: the story behind Helen Keller. Garden City, N.Y: Doubleday, Doran & Co., 1933.
  • CUTSWORTH, Thomas. The blindin school and society: a psychological study. 1933.
  • Reedição, Nova York: American Foundation for the Blind, 1951.
  • FONER, Phillip S., ed. Helen Keller: her socialist-years. Nova York: International Publishers, 1967.
  • HERRMANN, Dorothy. Helen Keller: a life Nova York: Alfred A. Knopf, 1998.
  • KELLER, Helen. Out of the dark: essays, letters, and addresses on physical and social vision. Garden City, N.Y: Doubleday, Page & Co., 1913.
  • _____. The world I live in. Nova York: Century Co., 1908.
  • LASH,Joseph P. Helen and Teacher: the story of Helen Keller and Anne Sullivan Macy. Nova York: Delacorte Press; Seymour Lawrence, 1980.
  • SWAN.Jim. Touching words: Helen Keller,plagiarism, authorship. Cardozo Arts & Entertainment Law Journal 10 (1992): 321-64.
  • VILLEY-DESMESERETS, Pierre. The world of the blind: a psychological study. Nova York: Macmillan, 1930.

ESTUDOS SOBRE DEFICIÊNCIA
  • BAYNTON, Douglas C. Forbidden signs:American culture and the campaign against sign language. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
  • COUSER, G. Thomas. Recovering bodies: illness, disability, and life writing. Madison: University of Wisconsin Press, 1997.
  • DAVIS. Lennard J. Enforcing normalcy: disability deafness, and the body. Londres e Nova York: Verso 1995.
  • GRANDIN, Temple. Thinking in pictures: and other reports from my Life with Autism. Nova York: Vintage Books, 1996.
  • KLAGES, Mary. Woeful afflictions: disability and sentimentality in Victorian America. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1999.
  • LANE, Harlan. When the mind hears: a history of the deaf Nova York: Random House, 1984.
  • MITCHELL, David T., Sharon L. Snyder. Narrative prosthesis: disability and the dependencies of discourse. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2000.
  • ____. The body and physical difference: discourses of disability. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1997.
  • SACKS, Oliver. Seeing voices: a journey into the world of the deaf. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1989.
  • _____. The man who mistook his life for a hat: and other clinical tales. Nova York: Touchstone Books, 1998.
  • SAFER, Jeanne. The normal one: life with a difficult or damaged sibling. Nova York: The Free Press, 2002.
  • VAN CLEVE,John Vickrey, Barry A. Crouch. A place of their own: crealing the deaf community in America. Washington, DC.: Gallaudet University Press, 1989.

FILOSOFIA, CIÊNCIA, CULTURA E LINGUAGEM
  • ARNOLD, Matthew Culture and anarchy: an essay in political and social criticism. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965.
  • BENJAMIN, Walter. Illuminations. Ed. Hannah Arendt. Trad. Harry Zohn. Nova York: Schocken, 1969.
  • BERCOVITCH Sacvan. The function of the literary in a time of cultural studies. In Culture and the problem of the disciplines. Ed. John Carlos Rowe. Nova York: Columbia University Press, 1998.
  • BERGER, James. Testing literature: Helen Keller and Richard Powers' implementation [H]elen. Arizona-Quarterly 58 (2002): 109-137.
  • Bourdieu, Pierre. Distinction: a social critique of the judgement of taste. Trad. Richard Nice. Cambridge: Harvard University Press, 1984.
  • BYRNE, Richard. The thinking ape: evolutionary origins of intelligence. Oxford e Nova York: Oxford University Press, 1995.
  • CARRUTHERS, Peter, Jill Boucher, eds. Language and thought: interdisciplinary themes. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
  • DAMASIO, Antonio. The feeling of what happens: body and emotion in the making of consciousness. Nova York: Harcourt, Brace & Co., 1999.
  • DAVIDSON, Donald. Inquiries into truth and interpretation. Oxford e Nova York: Clarendon Press, 1984.
  • DEACON, Terrence W. The symbolic species: the co-evolution of language and the brain. Nova York e Londres: W.W. Norton and Company, 1997.
  • DENNETH, Daniel C. Consciousness explained. Boston: Little, Brown & Co., 1991.
  • EAGLETON, Terry. The idea of culture. Oxford: Blackwell, 2000.
  • EDELMAN, Gerald M. The remembered present: a biologícal theocy of consciousness. Nova York: Basic Books, 1989.
  • GRIFFIN, Donald R. Animal minds: beyond cognition to consciousness. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
  • JAMESON, Fredric. The political unconscious: narrative as a socially symbolic acty Ithaca, N.Y: Cornell University Press: Londres: Methuen. 1981.
  • LANE, Harlan. The wild boy of Aveyron. Cambridge: Harvard University Press, 1976.
  • LEVINE, Lawrence W Highbrown/Lowbrow: The emergence of cultural hierarchy in America. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
  • MARCUSE, Herbert. The affirmative character of culture. In Negations: essays in critical theory. Trad. Jeremy J. Shapiro. Boston: Beacon Press, 1968.
  • MASSON,Jeffrey Moussaieff. Lostprince: the unsolved mystery of Kaspar Hauser. Nova York: The Free Press, 1996.
  • MIDRASH RABBAH, Genesis. Ed. e trad. H. Freedman e Maurice Simon. Londres e Nova York: Soncino Press, 1983.
  • NUSSBAUM, Martha C. Poetic justice: the literary imagination and public life. Boston: Beacon Press, 1995.
  • PEIRCE, Charles S. Selected writings. Ed. Philip P. Wiener Nova York Dover, 1958.
  • PINKER, Steven. The language instinct. Nova York: W. Morrow, 1994.
  • RALEIGH, John Henry. Matthew Arnold and american culture. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1957.
  • REE, Jonathan. I see a voice: deafness language and the senses - a philosophical history. Nova York: Metropolitan Books, 1999.
  • RORTY, Richard. Contingency, irony, and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
  • RYMER, Russ. Genie: an abused child'e flight from silence. Nova York: HarperCollins, 1993.
  • SAID, Edward W The world. the text, and the critic. Cambridge: Harward University Press, 1983.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. Course in general linguistics. Trad. Wade Baskin. 1915. Reedição, Nova York: McGraw-Hill, 1959.
  • SCHOLES, Robert. The rise and fall of English: reconstructing English as a discipline. New Haven e Londres: Yale University Press, 1998.
  • SHATTUCK, Roger. The forbidden experiment: the story of the wild boy of Averyron. Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1980.
  • WEISKRANTZ, L., ed. Language whithout thought. Oxford: Clarendon Press, 1988.
  • WILLIAM, Raymond. Culture and society: 1780-1950. 1958. Reedição, Nova York: Columbia University Press, 1983.

LITERATURA
  • AUSTER, Paul. City of glass. in The New York trilogy. 1985. Reedição, Nova York: Penguin Books, 1990.
  • COETZEE, J.M. Foe. Nova York: Penguin Books, 1986.
  • _____. Life & times of Michael K. Nova York: Penguin Books, 1983.
  • CONRAD, Joseph. The secret agent. 1907. Reedição, Nova York: Penguin Books, 1984.
  • DELILLO, Don. White noise. Nova York: Penguin Books, 1985.
  • DOSTOIEVSKI, Fiodor. The idiot. 1869. Reedição, trad. David Magarshack. Nova York: Penguin Books, 1955.
  • FAULKNER, William. The sound and the fury. 1929. Reedição, Nova York: Vintage Books, 1984.
  • GIBSON, William. The miracle worker. Nova York: Bantam, 1960.
  • KESEY, Ken. One flew over the cuckoo's nest. 1962. Reedição, Nova York: Penguin Books, 1976.
  • KINGSTON, Maxine Hong. The woman warrior. 1976. Reedição, Nova York: Vintage Books, 1989.
  • KOSINSKI, Jerzy. Being there. Nova York: Bantam, 1970.
  • LETHEM,Jonathan. Motherless Brooklyn. Nova York: Vintage Books, 1999.
  • MCCULLERS, Carson. The heart is a lonely hunter. 1940. Reedição, Boston: Mariner; Nova York: Houghton Mifflin, 2000.
  • MEDOFF, Mark. Children of a lesser God. Clifton, NJ.:James T. White, 1980.
  • MELVILLE, Herman. Billy Bud, Sailor. 1924. Reedição, Nova York: Washington Square Press, 1999.
  • MOODY,Rick. Purple America. Boston: Back Bay Books, 1997.
  • NICHOLS, Peter.A day in the death of Joe Egg. Nova York: Grove Press, 1967.
  • POWERS, Richard. Galatea 2.2. Nova York: HarperCollins, 1995.
  • RUSHDIE, Salman. Shame. Nova York: Vintage Books, 1983.
  • SHAKESPEARE, William. The tempest.
  • SHELLEY, Mary Frankenstein. 1818. Reedição, Nova York: Penguin Books, 1992.
  • STEINBECK, John. Of mice and men. Nova York: Modern Library, 1937.
  • WELLS, H. G. New worlds for old. Nova York: The Macmillan Company, 1908.

FILMES
  • Children of a lesser God. Dir. Rand Haines. 1986. (No Brasil, Filhos do Silêncio.)
  • The enigma of Kaspar Hauser (Feder fur sich und Gott gegen alle). Dir. Werner Herzog Filmproduktion, 1974. (No Brasil, O enigma de Kaspar Hauser.)
  • The heart is a lonely hunter. Dir. Robert Ellis Miller. 1968.
  • The miracle worker. Dir. Arthur Penn. MGM / United Artists, 1962. (No Brasil, O milagre de Anne Sullivan.)
  • Nell. Dir. Michael Apted. 1994. (No Brasil, Nell.)
  • The other sister. Dir. Garry Marshall. Touchstone Pictures, 1999.
  • The piano. Dir. Jane Campion. Miramax, 1993. (No Brasil, O piano.)
  • Rain Man. Dir. Barry Levinson. MGM/ United Artists, 1988. (No Brasil, Rain Man.)
  • Shine. Dir. Scott Hicks. Momentum Films, 1996. (No Brasil, Shine.)
  • Sling blade. dr. Billy Bob Thornton. Shooting Gallery, 1996.
  • What's eating Gilbert Grape? Dir. Lasse Hallström. Paramount, a Matalon Teper Ohlsson Production, 1993. (No Brasil, Gilbert Grape, aprendiz de sonhador.)
  • The wild child (L'enfant sauvage). Dir. François Truffaut. Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés, 1970. (No Brasil, O garoto selvagem.)


The Story of my Life - História | Pontofrio | 14650695

Helen Keller, 1880-1968
"A história da minha vida: com suas cartas (1887-1901) e um relato suplementar sobre sua educação, incluindo trechos das narrativas e cartas da professora, Anne Mansfield Sullivan"
Edição de John Albert Macy, 1903
Tradução: Myriam Campello, 2008
 

ϟ


Fotografias retiradas da obra:
The Story of My Life - versão digital 2009
American Foundation for the Blind

Δ

21 Outubro 2009
Publicado por MJA