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Helen Keller

Helen
Keller e Anne Sullivan, fotografia de 1895
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Índice
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A Alexander Graham Bell
Que ensinou os surdos a falar e capacitou quem ouve
a escutar as palavras do Atlântico às Rochosas,
dedico esta história da minha vida
***
PARTE 1
A HISTÓRIA DA MINHA VIDA
CAPÍTULO 1
É com uma espécie de medo que começo a escrever a
história da minha vida. Tenho, como se diz, uma supersticiosa
hesitação em erguer o véu que cobre minha infância como um
nevoeiro dourado. A tarefa de escrever uma autobiografia é
difícil. Quando tento classificar minhas primeiras impressões, noto
que fato e fantasia se assemelham através dos anos que vinculam
o passado ao presente. A mulher cobre as experiências da
criança com sua própria fantasia. Umas poucas impressões se
destacam vividamente dos primeiros anos de minha vida, mas "as
sombras da casa-prisão pairam sobre o resto". Além disso,
muitas alegrias e tristezas da infância perderam sua pungência, assim
como muitos incidentes de importância vital nos primórdios
de minha educação foram esquecidos na excitação das grandes
descobertas. Por isso, a fim de não ser entediante, tentarei
apresentar numa série de esboços somente os episódios que me
parecem os mais interessantes e importantes.
Nasci a 27 de junho de 1880, em Tuscumbia, uma
cidadezinha do norte do Alabama.
Por parte de meu pai, a família descende de Gaspar Keller,
um suíço que se instalou em Maryland. Um de meus ancestrais suíços foi o primeiro professor dos surdos em Zurique e escreveu
um livro sobre a educação deles - uma coincidência singular,
embora seja verdade não haver nenhum rei que não tenha um
escravo entre seus ancestrais, e nenhum escravo que não tenha
um rei entre os seus.
Meu avô, o filho de Gaspar Keller, "penetrou" em grandes
extensões de terra no Alabama e finalmente lá se estabeleceu.
Contaram-me que uma vez por ano ele ia de Tuscumbia à Filadélfia a
cavalo comprar suprimentos para a fazenda, e minha tia guarda
muitas cartas para a família dele que fornecem relatos
encantadores e vivos dessas viagens.
Minha avó Keller era filha de um dos ajudantes-de-ordens
de Lafayette, Alexander Moore, e neta de Alexander Spotswood,
um antigo governador colonial da Virgínia. Era também prima
em segundo grau de Robert E. Lee.
Meu pai, Arthur H. Keller, era capitão do Exército
Confederado e minha mãe Kate Adams, muitos anos mais jovem do
que ele, foi sua segunda esposa. O avô dela, Benjamin Adams,
casou-se com Susanna E. Goodhue e morou em Newbury,
Massachusetts, por muitos anos. Seu filho Charles Adams nasceu
em Newburyport, Massachusetts, e se mudou para Helena, Arkansas. Quando a Guerra Civil estourou, ele lutou ao lado do
Sul e se tornou general-de-brigada. Casou-se com Lucy Helen
Everett, que pertencia à mesma família de Edward Everett e do
dr. Edward Everett Hale. Depois que a guerra acabou, a família
mudou-se para Memphis, Tennessee.
Até a época em que a doença me privou da visão e audição,
eu morava numa pequena casa, que consistia de um grande quarto
quadrado e um pequeno em que a criada dormia. É um
costume do Sul construir uma pequena casa perto da sede principal,
como um anexo para ser usado quando preciso. Tal casa foi
construída por meu pai depois da Guerra Civil e quando ele se casou com minha mãe passaram a morar lá. Era completamente
coberta de videiras, trepadeiras de rosas e madressilvas. Do
jardim, ela parecia um caramanchão. A pequena varanda era
escondida por uma tela de rosas amarelas e esmilaces do Sul. Era o
local favorito para beija-flores e abelhas.
O lar dos Keller, onde a família morava, ficava a poucos
passos de nosso pequeno caramanchão. Era chamado de "Ivy
Green" porque a casa, as árvores e as cercas em torno eram
cobertas de linda hera inglesa. Seu jardim fora de moda foi o
paraíso da minha infância.

Fotografia de
Ivy Green, a casa dos Keller
Mesmo antes da chegada de minha professora, eu costumava
tatear ao longo das quadradas e rígidas cercas de buxo e, guiada
pelo olfato, encontrava as primeiras violetas e lírios. Lá também,
depois de um acesso temperamental, eu ia buscar conforto e
esconder meu rosto quente na relva e nas folhas frescas. Que alegria
era me perder naquele jardim de flores, perambular feliz de um
local para outro até que, esbarrando subitamente numa bela
videira, eu a reconhecesse por suas folhas e flores e soubesse que
era a videira cobrindo a dilapidada casa de verão na extremidade
do jardim! Ali, também, havia trepadeiras de clematites, jasmins
pendentes e algumas raras flores doces chamadas lírios-borboletas
porque suas frágeis pétalas pareciam asas de borboletas. Mas as
rosas eram as mais adoráveis de todas. Jamais encontrei nas
estufas do Norte rosas tão maravilhosas como as rosas-trepadeiras
do meu lar no Sul. Pendiam em compridas guirlandas de nossa
varanda, enchendo todo o ar com sua fragrância, sem serem
afetadas por nenhum outro cheiro; e de manhã bem cedo, lavadas
pelo orvalho, eram tão macias e puras que eu não podia deixar
de imaginar se não se assemelhavam aos asfódelos do jardim
de Deus.
O começo de minha vida foi simples e muito parecido com
o de qualquer outra. Cheguei, vi e venci, como sempre acontece
com o primeiro bebê da família. Houve as discussões habituais a
respeito de meu nome. O primeiro bebê da família não devia ter
um nome qualquer, todos eram enfáticos a esse respeito. Meu pai
sugeriu Mildred Campbell, uma ancestral a quem estimara muito,
e se recusou a continuar participando da discussão. Minha mãe
resolveu o problema seguindo seu desejo, o de me dar o nome
de solteira de sua própria mãe, Helen Everett. Contudo, com o
alvoroço de me levar para a igreja, meu pai esqueceu o nome
pelo caminho, naturalmente, já que era uma escolha da qual se
recusara a participar. Quando o ministro perguntou-lhe o nome,
papai lembrou-se apenas de que fora decidido dar-me o nome
de minha avó, e o forneceu como Helen Adams.
Contaram-me que enquanto eu ainda usava camisolinhas
compridas, já demonstrava sinais de uma disposição ávida e
afirmativa. Insistia em imitar tudo que via os outros fazerem. Aos
seis meses eu conseguia pipilar "Como vai" e certo dia atraí a
atenção de todos dizendo "Chá, chá, chá" de forma decidida.
Mesmo após minha doença, lembro de uma das palavras que
aprendi naqueles primeiros meses. Era "água". E continuei a emitir
um som parecido com o daquela palavra depois que toda a fala
fora perdida. Só parei de emitir o som "ah-uah" quando aprendi
a soletrar a palavra.
Contaram-me que andei quando tinha um ano de idade.
Minha mãe acabara de me tirar da banheira e me segurava no
colo quando fui subitamente atraída pelas sombras oscilantes das
folhas que dançavam ao sol sobre o chão liso. Escorreguei do
colo de mamãe e quase corri para elas. Quando o impulso cessou,
caí e chorei para que mamãe me tomasse nos braços de novo.
Esses dias felizes não duraram muito. Uma curta primavera,
musical pelas canções do rouxinol e do tordo, um verão rico de
frutas e rosas e um outono de ouro e escarlate passaram
rapidamente e deixaram seus presentes aos pés de uma criança ávida,
encantada. Então, no sombrio mês de fevereiro, chegou a doença
que fechou meus olhos e ouvidos, mergulhando-me na
inconsciência de um bebê recém-nascido. Chamaram-na de congestão
aguda do estômago e do cérebro. 1 O médico achou que eu não
conseguiria sobreviver. Numa manhã bem cedo, porém, a febre
foi embora tão súbita e misteriosamente como chegara. Houve
uma grande alegria na família naquela manhã, mas ninguém, nem
mesmo o médico, sabia que eu jamais enxergaria ou ouviria
de novo.
Imagino que eu ainda tenha lembranças confusas da doença.
Lembro-me especialmente da ternura com que mamãe tentava
me consolar em minhas horas acordadas de inquietação e dor e
da agonia e da perturbação com que eu despertava depois de um
sono meio agitado e voltava os olhos tão secos e quentes para a
parede, longe da outrora amada luz, que chegava a mim mais
obscurecida a cada dia. Contudo, exceto por essas lembranças
flutuantes, se é que são lembranças de fato, tudo parece muito
irreal, como um pesadelo. Gradualmente acostumei-me ao
silêncio e à escuridão que me rodeavam e esqueci que algum dia fora
diferente, até que ela chegou - minha professora, a que iria
libertar meu espírito. Mas durante os primeiros 19 meses de
vida eu vislumbrara os extensos campos verdes, um céu
luminoso, árvores e flores que a escuridão posterior não conseguiu
apagar inteiramente. Se vemos uma vez, "o dia é nosso e o que o
dia mostrou".
CAPÍTULO II
Não consigo lembrar-me do que aconteceu durante os
primeiros meses de minha doença. Sei apenas que me sentava
no colo de mamãe ou me agarrava a seu vestido enquanto ela
desempenhava suas tarefas na casa. Minhas mãos tocavam cada
objeto e registravam cada movimento, e assim aprendi a
conhecer muitas coisas. Logo senti a necessidade de alguma comunicação
com os outros e comecei a fazer toscos sinais. Um aperto de
mão significava "Não" e um acenar afirmativo da cabeça "Sim";
um puxão significava "Vem", um empurrão "Vai". Se eu queria
pão, imitava o ato de cortar as fatias e passar-lhes manteiga.
Quando queria que minha mãe fizesse sorvete para o jantar, eu
fazia o sinal de trabalhar com o congelador e tremia demonstrando
frio. Além disso, mamãe conseguia me fazer entender muita coisa.
Sempre sabia quando ela queria que eu lhe levasse algo e corria
ao andar de cima ou a qualquer outro lugar indicado por ela. Na
verdade, devo à sua amorosa sabedoria tudo que era luminoso
e bom em minha longa noite.
Eu entendia boa parte do que estava acontecendo comigo.
Aos cinco anos aprendi a dobrar e guardar as roupas limpas quando
eram trazidas da lavanderia e conseguia distinguir as minhas
das outras. Pelo modo como minha mãe e minha tia se vestiam,
eu sabia quando iam sair e invariavelmente implorava para ir com
elas. Sempre me buscavam quando havia visita e, quando os
convidados se despediam, eu acenava para eles, acho que com uma
vaga lembrança do significado do gesto. Certo dia alguns
cavalheiros visitaram mamãe e senti a porta da frente se fechando e
outros sons que indicavam a chegada deles. Num súbito impulso,
corri escada acima antes que alguém pudesse me deter para vestir
uma roupa que eu imaginava apropriada. Em pé ante o espelho,
como vira outros fazerem, untava minha cabeça de óleo e cobria
generosamente o rosto de pó-de-arroz. Então prendia um véu
na cabeça para que ele me cobrisse o rosto e caísse em dobras até
os ombros e amarrava enormes anquinhas à volta de minha
pequena cintura, de modo que ficavam penduradas atrás, quase
chegando à bainha da saia. Assim arrumada, eu descia para ajudar a
fazer sala para as visitas.
Não me lembro quando percebi pela primeira vez ser
diferente das outras pessoas, mas eu sabia disso antes da vinda de
minha professora. Eu notara que mamãe e meus amigos não
usavam sinais como eu quando queriam algo, mas falavam com a
boca. Às vezes eu ficava entre duas pessoas que conversavam e
tocava seus lábios. Como não conseguia entender, ficava
perturbada. Movia os lábios e gesticulava freneticamente sem resultado.
Isso me deixava às vezes tão zangada que eu chutava e gritava até
ficar exausta.
Acho que tinha consciência de quando me comportava mal,
pois sabia que machucava Ella, minha babá, com meus chutes;
quando meu acesso temperamental passava, eu sentia algo parecido com
o remorso. Entretanto, não consigo lembrar-me de nenhum
exemplo em que esse sentimento me impedisse de repetir o mau
comportamento quando eu não conseguia o que queria.
Naquela época, Martha Washington, uma menina negra filha
de nossa cozinheira, e Belle, uma velha cadela setter que fora uma
grande caçadora em seus tempos, eram minhas companheiras
constantes. Martha Washington entendia meus sinais e eu
raramente tinha dificuldade em conseguir dela exatamente o que queria.
Agradava-me dominá-la e ela geralmente preferia submeter-se à
minha tirania do que se arriscar a um engalfinhamento comigo.
Eu era forte, ativa, indiferente às conseqüências. Conhecia minha
própria mente muito bem e sempre conseguia que minha vontade
prevalecesse, mesmo se tivesse de lutar com unhas e dentes
para isso. Passávamos muito tempo na cozinha, amassando bolas
de farinha, ajudando a fazer sorvete, moendo café, brigando pela
tigela do bolo, alimentando as galinhas e perus que
enxameavam pelos degraus que levavam à cozinha. Muitos eram tão
mansinhos que comiam na minha mão e me deixavam apalpá-los.
Certo dia, um grande peru macho arrebatou um tomate de mim,
fugindo em seguida. Inspiradas talvez pelo sucesso do sr. Peru,
levamos para o depósito de lenha um bolo que a cozinheira tinha
acabado de cobrir e o comemos inteiro. Passei muito mal depois
e imagino que o peru também.
A galinha-d'angola gosta de esconder seus ninhos em lugares
inusitados, e um de meus maiores prazeres era catar seus ovos
na relva alta. Não podia contar a Martha Washington quando eu
queria ir atrás dos ovos, mas dobrava as mãos e as colocava no
chão, o que significava algo redondo na relva; Martha sempre
entendia. Quando tínhamos a sorte de encontrar um ninho, eu
nunca a deixava levar os ovos para casa, dando a entender por
sinais enérgicos que ela podia cair e quebrá-los.
Os galpôes onde o milho era estocado, o estábulo que
abrigava os cavalos e o pátio onde as vacas eram ordenhadas de
manhã e à noite eram fontes infalíveis de interesse para Martha e
para mim. Os ordenhadores me deixavam ficar com as mãos nas
vacas enquanto ordenhavam, e eu era freqüentemente chicoteada
pelo rabo da vaca por minha curiosidade.
A preparação para o Natal era sempre um encantamento
para mim. Claro que eu não sabia o que era aquilo tudo, mas
usufruía os agradáveis odores que enchiam a casa e os bocadinhos
que eram dados a Martha Washington e a mim para nos
aquietarmos. Atravancávamos o caminho, mas isso não interferia
nem um pouco com o nosso prazer. Permitiam que moêssemos
as especiarias, escolhêssemos as passas e lambêssemos as colheres.
Eu pendurava minha meia porque os outros o faziam; contudo,
não me lembro de ficar especialmente interessada na cerimônia,
nem a curiosidade me fazia acordar antes da aurora para
procurar meus presentes.
Martha Washington gostava tanto de encrenca quanto eu.
Duas meninas pequenas sentavam-se nos degraus da varanda numa
quente tarde de julho. Uma era negra como o ébano, com
pequenas massas de cabelo pixaim amarrado com barbante por toda a
cabeça como saca-rolhas. A outra era branca, com longos cachos
dourados. Uma tinha seis anos, a outra mais dois ou três que a
primeira. A mais nova era cega - eu - e a outra era Martha
Washington. Ocupávamo-nos de recortar bonecas de papel, mas
logo nos cansamos dessa diversão. Após cortar os cadarços de
nossos sapatos e aparar todas as folhas da madressilva a nosso
alcance, voltei minha atenção para os cachinhos de Martha. Apesar
de objetar no início, ela finalmente submeteu-se. Pensando ser
justo que fizesse o mesmo, ela pegou a tesoura e cortou um dos
meus cachos, e teria cortado todos não fosse a interferência a
tempo de minha mãe.
Belle, nossa cadela, minha outra companheira, era velha e
preguiçosa e preferia dormir perto de lareiras acesas do que
correr comigo. Tentei repetidamente ensinar-lhe minha linguagem de
sinais, mas ela era obtusa e desatenta. As vezes se sobressaltava e
estremecia de animação, depois ficava totalmente rígida, como
fazem os cães quando estão com um pássaro na mira. Á época,
eu não sabia por que Beile agia dessa forma, mas sabia que ela
não fazia o que eu queria. Isso me irritava e a aula sempre
terminava numa luta de boxe unilateral. Belle levantava, esticava-se
preguiçosamente, dava uma ou duas fungadelas com desprezo, ia
para o lado oposto da lareira e deitava de novo; eu, cansada e
desapontada, saía em busca de Martha.
Guardo muitos incidentes daqueles primeiros anos fixados
na memória, isolados, mas claros e distintos, tornando ainda mais
intenso o sentido daquela vida sem dias, sem objetivo, silenciosa.
Certo dia derramei água no avental e o estendi para secar
ante o fogo que bruxuleava na lareira da sala. O avental não secou
com a rapidez que eu queria, então me aproximei e o estiquei
bem por cima das cinzas quentes. O fogo se avivou, as chamas
me envolveram a um ponto que num instante minhas roupas
queimavam. Fiz um barulhão que fez Viney, minha velha baba,
vir em meu socorro. Ela quase me sufocou jogando um cobertor
sobre mim, mas apagou o fogo. Exceto por minhas mãos e
cabelo, não fiquei muito queimada.
Nessa época, descobri a utilidade de uma chave. Certa
manhã tranquei minha mãe na despensa, onde foi obrigada a
permanecer três horas, enquanto as criadas estavam numa parte
afastada da casa. Ela continuou batendo na porta enquanto eu,
sentada do lado de fora na escada da varanda, ria alegremente ao
sentir as vibrações das batidas. Esse meu último truque de mau
comportamento convenceu meus pais de que eu precisava ser
educada o mais rapidamente possível. Depois da chegada da srta.
Sullivan, minha professora, procurei logo uma oportunidade para
trancá-la em seu quarto. Subi ao andar de cima com algo que
mamãe me fizera entender que eu devia dar a srta. Sullivan; mas
assim que o dei a ela, bati a porta, tranquei-a e escondi a chave
debaixo do guarda-roupa no corredor. Não conseguiram me
fazer contar onde estava a chave. Meu pai foi obrigado a pegar
uma escada e tirar a srta. Sullivan pela janela - para minha
alegria. Meses depois eu apareci com a chave.
Quando eu tinha uns cinco anos, nos mudamos da pequena
casa coberta de videiras para uma casa grande. A família
abarcava meu pai, minha mãe, dois meio-irmãos mais velhos e,
posteriormente, uma irmãzinha, Mildred. Minha mais nítida e
antiga lembrança de meu pai é de abrir caminho por um grande
turbilhão de jornais a seu lado e, com ele sozinho, segurar uma
folha de jornal ante seu rosto. Eu ficava muitíssimo intrigada para
saber o que ele estava fazendo. Imitava essa ação e até mesmo
usava seus óculos, pensando que eles poderiam resolver o
mistério. Mas não descobri o segredo por vários anos. Então eu soube
que papéis eram aqueles, um deles editado por meu pai.
Papai era muito amoroso e indulgente, devotado ao lar,
raramente nos deixando, exceto na estação de caça. Disseram-me
que era um grande caçador e um atirador famoso. Depois da
família, ele amava seus cachorros e sua arma. Sua hospitalidade
era fantástica, quase excessiva, e ele raramente chegava em casa
sem um convidado. Seu orgulho especial era o grande pomar,
onde, dizia-se, criava as melhores melancias e morangos do país;
para mim ele trazia as primeiras uvas maduras e as frutinhas
vermelhas mais selecionadas. Lembro de seu toque acariciante
quando me levava de árvore em árvore, de videira em videira e
como ficava encantado com qualquer coisa que me agradasse.
Era um famoso contador de histórias; depois que adquiri o
uso da linguagem, ele costumava soletrar desajeitadamente em
minha mão seus casos mais inteligentes; nada lhe agradava mais do
que repeti-los para mim num momento oportuno.
Eu estava no Norte, apreciando os últimos bonitos dias do
verão de 1896, quando soube da morte de meu pai. Ele adoeceu,
passou por um curto período de sofrimento agudo e logo tudo
estava acabado. Essa foi a minha primeira grande tristeza -
minha primeira experiência pessoal com a morte.
Como escrever sobre mamãe? Está tão próxima de mim
que parece quase indelicado falar dela.
Por muito tempo encarei minha irmãzinha como uma intrusa.
Eu sabia que deixara de ser a única queridinha da mamãe e o
pensamento me enchia de ciúme. Ela se sentava constantemente
no colo de mamãe, onde eu costumava ficar, e parecia apoderar-se
de todo o tempo e o carinho maternos. Certo dia, aconteceu algo
que me pareceu acrescentar insulto à injustiça.
Naquela época eu tinha uma boneca muito paparicada e mal-
tratada, a quem depois dei o nome de Nancy. Lamentavelmente,
era ela a desamparada vítima de meus rompantes de mau gênio e
de afeição, de modo que suas condições pioravam com o tempo.
Eu tinha bonecas que falavam, choravam e abriam e fechavam os
olhos; mas jamais amei nenhuma como à pobre Nancy. Ela tinha
um berço e freqüentemente eu passava uma hora ou mais
balançando-a. Protegia tanto a boneca quanto o berço com o mais
ciumento cuidado, mas certa vez encontrei minha irmã dormindo
pacificamente no berço. A presunção de alguém a quem eu ainda
não estava ligada por nenhum laço de amor me deixou com
raiva. Voei para o berço, derrubei-o e minha pequena irmã
poderia ter morrido se mamãe não a pegasse quando ela caiu.
Portanto, quando caminhamos no vale de uma dupla solidão,
conhecemos pouco das ternas afeições que se originam das
palavras, ações e companheirismo carinhosos. Mas depois, quando
recuperei minha herança humana, Mildred e eu nos tornamos
muito apegadas e gostávamos de andar de mãos dadas sempre
que queríamos, embora ela não pudesse entender minha linguagem
de sinais nem eu o seu tagarelar infantil.
CAPÍTULO III
Enquanto isso, o desejo de me expressar crescia. Os poucos
sinais que eu usava se tornavam cada vez menos adequados
e meus fracassos em me fazer entender eram invariavelmente
seguidos por explosões. Eu sentia como se mãos invisíveis me
segurassem e fazia esforços frenéticos para me libertar. Eu lutava
- não que lutar ajudasse as coisas, mas o espírito de resistência
era forte em mim; geralmente irrompia em lágrimas e me sentia
fisicamente exausta. Se por acaso mamãe estivesse perto, eu me
jogava em seus braços, infeliz demais para lembrar a causa da
tempestade. Após certo tempo, a necessidade de algum modo
de comunicação se tornou tão urgente que essas explosões
ocorriam diariamente, às vezes de hora em hora.
Meus pais ficaram profundamente aflitos e perplexos.
Morávamos muito longe de qualquer escola para cegos ou surdos e
parecia improvável que alguém viesse a um lugar tão fora de
mão quanto Tuscumbia para ensinar a uma criança surda e cega.
Na verdade, meus amigos e parentes às vezes duvidavam que eu
pudesse ser ensinada. O único raio de esperança de mamãe veio
de "American notes", de Dickens. Ela lera o
relato dele sobre Laura Bridgman 2 e se lembrava vagamente de
que, apesar de surda e cega, ela recebera instrução. Mas lembrava-se
também, com uma fisgada de desesperança, que o dr. Howe, 3
que descobrira o modo de ensinar aos surdos e cegos, morrera
há muitos anos. Seus métodos haviam provavelmente morrido
com ele; e, se não tivessem, como uma menina numa distante
cidadezinha remota do Alabama receberia esse benefício?
Quando eu tinha cerca de seis anos, meu pai ouviu falar de
um eminente oftalmologista de Baltimore que tivera êxito em
muitos casos aparentemente sem esperança. Meus pais imediatamente
resolveram me levar a Baltimore para ver se algo poderia
ser feito por meus olhos.
A jornada, da qual me lembro bem, foi muito agradável. Fiz
amizade com muitas pessoas do trem. Uma das senhoras me deu
uma caixa de conchas. Meu pai fez buracos nelas para que eu
pudesse ligá-las e por muito tempo elas me mantiveram feliz e
contente. O cobrador do trem também foi amável. Geralmente,
quando passava em suas rondas, eu lhe segurava as pontas do
casaco enquanto ele recolhia e picotava os tíquetes. Seu dispositivo
de picotar, com o qual me deixava ficar, era um brinquedo e
tanto. Enroscada num canto do banco, eu me divertia por horas
fazendo pequenos furos engraçados num pedaço de cartolina.
Minha tia me fez uma grande boneca de toalhas. Era a coisa
mais cômica e disforme, aquela boneca improvisada, sem nariz,
boca, orelhas ou olhos - nada que mesmo a imaginação de uma
criança não pudesse converter num rosto. De modo bastante
curioso, a ausência de olhos me causou mais impressão do que
todos os outros defeitos juntos. Destaquei isso para todos com
provocante persistência, mas ninguém parecia estar à altura de
fornecer olhos à boneca. No entanto, uma idéia brilhante surgiu e
o problema foi resolvido. Saí do banco tropeçando e procurei
até encontrar a capa de minha tia, enfeitada com grandes contas.
Puxei duas contas e indiquei a ela que eu queria que as costurasse
na boneca. Ela levou minhas mãos aos seus olhos de um modo
interrogador e concordei energicamente com a cabeça. As contas
foram costuradas no lugar certo e eu não conseguia conter minha
alegria; mas imediatamente perdi todo o interesse na boneca.
Durante a viagem inteira não tive nenhum acesso de mau humor,
havia tantas coisas para ocupar minha mente e meus dedos.
Quando chegamos a Baltimore, o dr. Chisholm nos recebeu
amavelmente, mas nada pôde fazer. Contudo, disse que eu
poderia ser educada. Aconselhou meu pai a consultar o dr. Alexander
Graham Bell, de Washington, que poderia lhe dar informações
sobre escolas e professores de crianças surdas ou cegas.
Obedecendo ao conselho do médico, fomos imediatamente para
Washington ver o dr. Bell, meu pai com um coração pesado e
muitas desconfianças, e eu, inteiramente inconsciente de sua
angústia, tendo prazer na excitação de andar de um lugar para
outro. Mesmo criança, imediatamente senti a ternura e a solidariedade
que tornaram o dr. Bell tão querido a tantos, assim como
suas maravilhosas realizações provocavam admiração. Ele me
sentou em seu colo enquanto eu examinava seu relógio e fez o
relógio dar as horas para mim. Entendeu meus sinais. Eu soube
disso e o adorei imediatamente. Contudo, não imaginei que essa
entrevista seria a porta pela qual eu passaria da escuridão para a
luz; do isolamento para a amizade, o companheirismo, o
conhecimento e o amor.
Dr. Bell aconselhou meu pai a escrever para o sr. Anagnos, 4 diretor da Instituição Perkins em Boston, o cenário dos grandes
esforços do dr. Howe com os cegos, e lhe perguntasse se tinha
um professor competente para iniciar minha educação. Meu pai
o fez imediatamente e, em poucas semanas, chegava uma amável
carta do sr. Anagnos com a reconfortante notícia de que uma
professora fora encontrada. Estávamos no verão de 1886. A srta.
Sullivan, contudo, só chegou em março do ano seguinte.
Assim, deixei o Egito e me defrontei com o Sinai, e um
poder divino tocou meu espírito e lhe deu a visão, para que eu
me deparasse com muitas maravilhas. E da montanha sagrada
ouvi uma voz que dizia: "O conhecimento é amor, luz e visão".
CAPÍTULO IV
O dia mais importante de que me lembro de toda minha
vida é o da chegada de minha professora, Anne Mansfield
Sullivan. Fico maravilhada quando penso no imenso contraste
entre as duas vidas que esse dia ligou. Estávamos a 3 de março de
1887, três meses antes que eu completasse sete anos.

Fotografia de 1887. Helen Keller aos 7 anos.
Na tarde daquele dia agitado, fiquei na varanda, muda,
expectante. Pelos sinais de minha mãe e pelo apressado entra-e-sai
da casa, adivinhei vagamente que algo pouco usual estava prestes
a acontecer; assim, fui para a porta e esperei na escada. O sol da
tarde penetrava na massa de madressilvas que cobria a varanda e
caía no meu rosto virado para cima. Meus dedos pousavam quase
inconscientemente nas folhas e flores familiares que haviam
acabado de brotar saudando a doce primavera do Sul. Eu não
sabia que maravilhas e surpresas o futuro me guardava. Raiva e
amargura haviam continuamente caído sobre mim por semanas,
e um profundo langor sucedera-se a essa luta apaixonada.
Algum dia você já esteve no mar cercado por um denso
nevoeiro, como se uma tangível escuridão branca se fechasse
sobre você e o grande navio, tenso e ansioso, tateasse em busca
do caminho para a costa com uma bola de chumbo e uma sonda
e você esperasse com o coração batendo que algo acontecesse?
Eu era como aquele navio antes de minha instrução começar,
só que não tinha bússola ou sonda, nem meios de saber quão
próximo estava o porto. "Luz! Me dêem luz!" era o grito sem
palavras de minha alma, e a luz do amor brilhou sobre mim
naquela mesma hora.
Senti passos que se aproximavam. Estiquei a mão imaginando
que era mamãe. Alguém a pegou e eu fui levantada e abraçada
bem apertado pela pessoa que viera revelar todas as coisas para
mim e, mais do que todas as coisas, me amar.
Na manhã seguinte à chegada de minha professora, ela me
levou a seu quarto e me deu uma boneca. As criancinhas cegas da
Instituição Perkins a tinham enviado e Laura Bridgman a vestira;
mas eu só soube disso depois. Quando brinquei com a boneca
algum tempo, a srta. Sullivan lentamente soletrou em minha mão a
palavra "b-o-n-e-c-a". Fiquei imediatamente interessada nesse jogo
com dedos e tentei imitá-lo. Quando finalmente consegui fazer as
letras corretamente, fiquei vermelha de prazer e orgulho infantil.
Descendo a escada correndo em busca de minha mãe, estendi a mão e
imitei as letras para boneca. Não sabia que estava soletrando uma
palavra ou mesmo que palavras existiam; eu simplesmente estava
deixando meus dedos macaquearem uma imitação. Nos dias que se
seguiram aprendi a soletrar desse modo incompreensível um grande
número de palavras, entre elas alfinete, chapéu, xícara e alguns verbos,
como sentar, levantar e andar. Mas só depois de minha professora
estar comigo há várias semanas eu entendi que tudo tinha um nome.
Certo dia, enquanto eu brincava com minha nova boneca, a
srta. Sullivan pôs minha grande boneca de trapos no meu colo
também, soletrou a palavra "b-o-n-e-c-a" e tentou me fazer
entender que "b-o-n-e-c-a" se aplicava às duas. Antes, naquele
mesmo dia, tivemos um arranca-rabo por causa das palavras "c-a-n-e-c-a" e "a-g-u-a". A srta. Sullivan tentara me fazer assimilar que "c-a-n-e-c-a" era caneca e "a-g-u-a" era água, mas eu
insistia em confundir as duas. Em desespero, ela deixara o assunto
de lado por um tempo, mas para voltar a ele na primeira
oportunidade. Fiquei impaciente com suas repetidas tentativas e, pegando
a boneca nova, atirei-a no chão. Fiquei extremamente encantada
ao sentir os fragmentos da boneca quebrada a meus pés. Nem
tristeza nem arrependimento seguiram-se à minha apaixonada
explosão. Eu não amara a boneca. No mundo parado e escuro em
que eu vivia não havia nenhuma ternura ou sentimento forte pelos
outros. Senti minha professora varrer os fragmentos para um lado
da lareira e tive uma sensação de satisfação de que a causa de meu
desconforto fora removida. Ela me entregou meu chapéu e eu
soube que ia sair ao sol quente. Tal idéia, se uma sensação sem
palavras se pode chamar assim, fez-me pular e saltitar de prazer.
Descemos o caminho para a casa do poço, atraídas pela
fragrância das madressilvas que a cobriam. Alguém estava tirando
água e a srta. Sullivan colocou minha mão sob o jorro da água.
Enquanto a fria corrente despejava-se sobre uma de minhas mãos,
a srta. Sullivan soletrava na outra a palavra água, primeiro
lentamente, depois rapidamente. Fiquei imóvel, com toda a atenção
fixada nos movimentos de seus dedos. De repente senti uma
consciência envolta em nevoeiro, como de algo esquecido - o
eletrizar de um pensamento que voltava; e de algum modo o
mistério da linguagem foi revelado a mim. Soube então que "á-g-u-a"
significava a maravilhosa coisa fresca que fluía sobre minha mão.
Aquela palavra viva despertou minha alma, deu-lhe luz, esperança,
alegria, enfim, libertou-a! Ainda havia barreiras, é verdade, mas
barreiras que poderiam ser varridas com o tempo. [ Ver carta da srta. Sullivan
]
Eu deixei a casa do poço ansiosa para aprender. Tudo
tinha um nome e cada nome fazia nascer um novo pensamento.
Enquanto voltávamos para casa, cada objeto que eu tocava
parecia estremecer de vida, já que eu via tudo com a nova e estranha
visão que chegara a mim. Ao passar pela porta, lembrei da
boneca que eu quebrara. Tateei o caminho até a lareira, peguei
os pedaços da boneca e tentei em vão juntá-los. Então meus
olhos se encheram de lágrimas; pois percebi o que fizera e, pela
primeira vez, senti arrependimento e tristeza.
Aprendi uma grande quantidade de novas palavras naquele
dia. Não lembro de todas, mas sei que mãe, pai, irmã, professora
estavam entre elas - palavras que deviam fazer o mundo brotar
para mim, "como o bastão de Aarão, com flores". Seria difícil
achar uma criança mais feliz do que eu no final daquele dia
memorável, quando, deitada na minha cama, repassava as alegrias
que ele me trouxera. Pela primeira vez na vida ansiei para que um
novo dia chegasse.
CAPÍTULO V
Lembro-me de muitos incidentes no verão de 1887 que se
seguiram ao súbito acordar de minha alma. Eu explorava
incessantemente com minhas mãos, aprendendo o nome de cada
objeto que tocava; e quanto mais manejava coisas e aprendia seus
nomes e usos, mais alegre e autoconfiante tornava-se minha
noção de parentesco com o resto do mundo.
Quando chegou a época das margaridas e dos botões-de-
ouro, a srta. Sullivan me conduziu pela mão pelos campos, onde
os homens preparavam a terra para semear, até as margens do
rio Tennessee. Lá, sentada na relva quente, tive minhas primeiras
aulas sobre os dons da natureza. Aprendi como o sol e a chuva
fazem crescer do chão cada árvore que é agradável à vista e dá
frutos para se comer, como os pássaros constroem seus ninhos e
vivem e florescem de terra em terra, como o esquilo, o cervo, o
leão e todas as outras criaturas encontram comida e abrigo. A
medida que meu conhecimento sobre as coisas crescia, sentia-me
cada vez mais encantada com o mundo. Muito tempo antes de
eu aprender a somar ou descrever a forma da Terra, a srta. Sullivan
me ensinara a encontrar beleza nos bosques perfumados, em cada
fio de relva e nas curvas e covinhas da mão de minha irmã
pequena. Ela vinculou meus pensamentos mais antigos à natureza
e me fez sentir que "pássaros, flores e eu éramos companheiros
felizes".
Nessa mesma época, porém, uma experiência me ensinou
que a natureza nem sempre é amável. Certo dia, minha professora
e eu estávamos voltando de uma longa perambulação. A manhã
fora bonita, mas estava ficando cada vez mais quente e abafado
quando finalmente começamos a voltar para casa. Por duas ou
três vezes paramos sob uma árvore à margem do caminho. Nossa
última parada foi sob uma cerejeira selvagem, a pouca distância
de casa. A sombra era graciosa e a árvore era tão fácil de escalar
que, com a ajuda de minha professora, consegui me instalar num
assento entre os galhos. Estava tão fresco sob a árvore que a srta.
Sullivan propôs que almoçássemos ali mesmo. Prometi ficar quieta
ali enquanto ela fosse até em casa buscar nosso almoço.
Subitamente uma mudança se passou acima da árvore. Todo
o calor do sol deixara o ar. Eu sabia que o céu estava negro
porque tudo que eu ouvia, que significava luz para mim,
desaparecera da atmosfera. Um odor estranho subia da terra. Eu o
conhecia, era o odor que sempre precede uma tempestade, e um
medo sem nome agarrou meu coração. Sentia-me absolutamente
só, cortada de meus amigos e da terra firme. A imensidão e o
desconhecido me envolveram. Permaneci imóvel e expectante;
senti um frio terror subindo. Eu ansiava pela volta de minha
professora; acima de tudo, eu queria descer da árvore.
Houve um momento de silêncio sinistro e a seguir uma
movimentação variada das folhas. Um estremecimento sacudiu a
árvore, uma rajada de vento que teria me derrubado se eu não
tivesse me agarrado no galho com todas as forças. A árvore
oscilava e sacudia. Os gravetos pequenos quebravam-se e caíam
sobre mim como um chuveiro. Fui tomada por um impulso
selvagem de pular, mas o terror me segurava. Acocorei-me na
forquilha da árvore. Os ramos davam chicotadas à minha volta.
Senti a dissonância intermitente que vinha de vez em quando,
como se algo pesado tivesse caído e o choque fosse subindo até
o galho onde eu sentava. Isso levou meu suspense ao ponto mais
alto, e exatamente quando eu achava que a árvore e eu cairíamos
juntas, a professora pegou minha mão e me ajudou a descer. Eu
me agarrei nela, tremendo de alegria por sentir a terra mais uma
vez sob meus pés. Eu aprendera uma nova lição - que a natureza
"desfecha guerra aberta contra seus filhos, e sob o toque mais
suave esconde garras traiçoeiras".
Após essa experiência passou-se muito tempo antes que eu
subisse em outra árvore. A simples idéia me enchia de terror. Foi
a doce atração da mimosa totalmente florida que finalmente
superou meus temores. Uma linda manhã de primavera, quando eu
estava sozinha na casa de verão, lendo, senti um maravilhoso e
sutil perfume no ar. Tive um sobressalto e instintivamente estiquei
as mãos. Era como se o espírito da primavera tivesse atravessado
a casa de verão. "O que é isso?", perguntei e no minuto seguinte
reconheci o odor das flores de mimosa. Tateei o caminho até a
extremidade do jardim, sabendo que a mimosa estava perto da
cerca, na virada do atalho. Sim, lá estava ela, trêmula aos raios
mornos do sol, os ramos carregados de flores quase tocando a
longa relva. Já teria havido algo tão requintadamente belo no
mundo? Suas flores delicadas encolhiam-se ante o mínimo toque
terreno; a impressão era de que a árvore do paraíso fora
transplantada para a terra. Abri caminho através de um chuveiro de
pétalas até o grande tronco e por um minuto fiquei ali, indecisa;
então, colocando o pé no largo espaço entre as forquilhas dos
galhos, subi na árvore. Senti alguma dificuldade para me segurar,
pois os galhos eram muito largos e a casca feria minhas mãos.
Mas tive a deliciosa sensação de que estava fazendo algo pouco
habitual e maravilhoso, então continuei subindo cada vez mais
alto até chegar a um pequeno assento que alguém construíra lá há
muito tempo, sentindo-me como uma fada numa nuvem rósea.
Depois disso passei muitas horas felizes em minha árvore do
paraíso, tendo belos pensamentos e sonhos luminosos.
CAPÍTULO VI
Eu tinha agora a chave para toda a linguagem e estava ansiosa
para aprender a usá-la. As crianças que ouvem aprendem a
linguagem sem qualquer esforço especial; as palavras que caem
dos lábios alheios são pegas por elas no ar, como se diz,
prazerosamente, enquanto a criança surda precisa prendê-las numa
armadilha através de um lento e geralmente penoso processo.
Contudo, seja qual for o processo, o resultado é maravilhoso. De
nomear um objeto, avançamos gradualmente passo a passo até
atravessarmos a vasta distância entre nossa primeira silaba
gaguejada e o relâmpago de um pensamento num verso de Shakespeare.
No início, quando a professora contava sobre uma coisa nova,
eu fazia muito poucas perguntas. Minhas idéias eram vagas e meu
vocabulário inadequado; mas à medida que meu conhecimento
das coisas crescia e eu aprendia cada vez mais palavras, meu campo
de interrogações se ampliou e eu voltava repetidamente ao
mesmo assunto, ávida por mais informação. Às vezes uma palavra
nova revivia uma imagem que alguma experiência anterior
gravara no meu cérebro.
Lembro-me da manhã em que perguntei pela primeira vez
o significado da palavra "amor". Isso foi antes que eu conhecesse
muitas palavras. Eu encontrara algumas violetas precoces no
jardim e as trouxera para a srta. Sullivan. Ela tentou me beijar mas
naquela época eu não gostava que ninguém me beijasse, exceto
minha mãe. A srta. Sullivan me abraçou gentilmente e soletrou na
minha mão:
- Eu amo Helen.
- O que é amor? - perguntei.
Ela me puxou mais para perto e disse:
- Está aqui - apontando para o meu coração, de cujas
batidas tive consciência pela primeira vez.
Suas palavras me intrigaram muito, porque no momento eu
não entendia nada que eu não tocasse.
Senti o cheiro das violetas em sua mão e fiz, meio em
palavras meio em sinais, uma pergunta que significava:
- Amor é a doçura das flores?
- Não -, disse a srta. Sullivan.
Pensei novamente sobre o assunto. O sol quente brilhava
sobre nós.
- Isso não é amor? - perguntei, apontando na direção de
onde vinha o calor. - Isso não é amor?
Eu achava que não poderia haver nada mais bonito que o
sol, cuja tepidez faz todas as coisas crescerem. Mas a srta. Sullivan
sacudiu a cabeça e fiquei muito intrigada e desapontada. Achei
estranho que minha professora não pudesse me mostrar o que
era amor.
Um ou dois dias depois, eu estava enfiando contas de
diferentes tamanhos em grupos simétricos num fio - duas contas
grandes, três pequenas, e assim por diante. Cometera muitos
erros, e a srta. Sullivan os apontava repetidamente, com uma suave
paciência. Finalmente notei um erro muito óbvio na seqüência e,
por um instante, concentrei minha atenção na aula e tentei pensar
como devia ter arrumado as contas. A srta. Sullivan tocou minha
testa e soletrou com decidida ênfase:
- Pense.
Num relâmpago, eu soube que a palavra era o nome do
processo que estava acontecendo em minha cabeça. Essa foi
minha primeira percepção consciente de uma idéia abstrata.
Fiquei parada por um longo tempo - não estava pensando
nas contas no meu colo, e sim tentando entender um significado
para "amor" à luz daquela nova idéia. O sol tinha estado
encoberto o dia todo e alguns rápidos aguaceiros já haviam desabado;
mas subitamente o sol irrompeu de novo em todo seu esplendor
do Sul.
Mais uma vez perguntei à minha professora:
- Isso não é amor?
- Amor é algo como as nuvens que estavam no céu antes
do sol aparecer - respondeu ela. Então, em palavras mais simples
do que essas, que naquela época eu não poderia ter entendido, ela
explicou:
- Você sabe que não pode tocar as nuvens, mas sente
a chuva e sabe como as flores e a terra sedenta ficam contentes de
recebê-la depois de um dia quente. Da mesma forma, não pode
tocar o amor, mas sente a doçura que ele derrama em tudo. Sem
amor, você não seria feliz nem ia querer brincar.
A bela verdade irrompeu em minha mente - senti que
havia linhas invisíveis estendidas entre meu espírito e o espírito dos
Outros.

Helen com o cão. Fotografia de 1887
Desde o início de minha educação, a srta. Sullivan estabeleceu
a prática de falar comigo como falaria com qualquer criança
dotada de audição; a única diferença era que ela soletrava as frases
na minha mão em vez de dizê-las. Se eu não conhecia as
palavras e expressões necessárias à expressão de meus pensamentos,
ela as fornecia, até sugerindo conversas quando eu era incapaz
de manter minha ponta do diálogo.
Esse processo continuou por vários anos; pois a criança
surda não aprende em um mês, ou mesmo em dois ou três anos, as
inumeráveis expressões idiomáticas e frases usadas na mais
simples comunicação diária. A criancinha que escuta aprende pela
constante repetição e imitação. A conversa que escuta em casa
estimula sua mente, sugere tópicos e faz surgir a expressão
espontânea de suas próprias idéias. Essa troca natural de idéias é
negada à criança surda. Percebendo isso, a professora determinou-se
a fornecer os tipos de estímulos de que eu sentia falta. E o
fez repetindo-me tanto quanto possível, literalmente, o que ela
ouvia e me mostrando como eu poderia participar da conversa.
Mas passou-se muito tempo até que eu me arriscasse a tomar a
iniciativa, e mais tempo ainda antes de poder descobrir algo
apropriado a dizer na hora certa.
O surdo e o cego acham muito difícil dominar as amenidades
da conversa. Como tal dificuldade deve aumentar no caso dos
que são ao mesmo tempo surdos e cegos! Não podem distinguir
o tom da voz ou, sem ajuda, subir e descer a escala de tons que
dão significado às palavras, nem observar a expressão do rosto
de quem fala - e um olhar é às vezes a própria alma daquilo que
se diz.
CAPÍTULO VII
O importante passo seguinte na minha educação foi aprender
a ler.
Assim que consegui soletrar algumas palavras, minha
professora me deu pedaços de cartolina com palavras impressas com letras
em relevo. Aprendi rapidamente que cada palavra impressa
designava um objeto, um ato ou uma qualidade. Eu tinha a moldura em
que poderia arranjar as palavras em pequenas frases; mas antes de
sequer poder colocar frases na moldura, costumava transformá-las
em objetos. Encontrei pedaços de papel que representavam por
exemplo "boneca", "está", "sobre", "cama" e colocava cada nome
em seu objeto; depois coloquei minha boneca na cama com as
palavras "está", "sobre" e "cama" arrumadas ao lado da boneca,
formando assim uma frase com as palavras e ao mesmo tempo
completando a idéia da frase com as próprias coisas.
Certo dia, a srta. Sullivan me contou, eu prendi a palavra
"garota" no meu avental e abri o "guarda-roupa". Na prateleira,
arrumei as palavras "está", "no", "guarda-roupa". Nada me
encantava tanto quanto esse jogo. A srta. Sullivan e eu
brincávamos disso por horas seguidas. Freqüentemente tudo no quarto
era arrumado em frases-objetos.
Do pedaço de cartolina impressa foi só um passo para o
livro impresso. Peguei o meu Leitor para iniciantes e cacei as
palavras que conhecia; quando as descobria, minha alegria era como a
que dá um jogo de esconde-esconde. Assim eu comecei a ler. Da
época em que comecei a ler histórias conectadas falarei depois.
Por muito tempo não tive aulas regulares. Mesmo quando
estudava com mais afinco, aquilo parecia mais um jogo do que
trabalho. Tudo que a srta. Sullivan me ensinava ela ilustrava com
uma bela história ou poema. Sempre que algo me encantava ou
interessava, me falava sobre a coisa como se ela própria fosse
uma menina. Aquilo em que muitas crianças pensam com horror,
como uma penosa excursão na gramática, somas difíceis e
definições ainda mais difíceis, são hoje umas das minhas mais preciosas
lembranças.

Anne Sullivan lê para Helen Keller
Não consigo explicar a solidariedade peculiar que a srta.
Sullivan tinha com meus prazeres e desejos. Talvez fosse o
resultado de um longo convívio com os cegos. Além disso, a
professora tinha uma maravilhosa habilidade para descrever. Ela
passava rapidamente sobre detalhes desinteressantes e nunca me
atormentava com perguntas para ver se eu lembrava da lição
de anteontem. Introduzia detalhes técnicos pouco a pouco,
tornando cada assunto tão real que eu não podia deixar de lembrar
o que ensinava.
Líamos e estudávamos ao ar livre, preferindo os bosques
iluminados pelo sol do que a casa. Todas as minhas aulas antigas
têm nelas o cheiro dos bosques - o odor fino e resinoso das
agulhas de pinheiro mesclado ao perfume de uvas selvagens.
Sentada à sombra graciosa de uma tulipeira silvestre, aprendi a
pensar que tudo tem uma lição e uma sugestão. "O encanto das
coisas me ensinou todo o uso delas." Na verdade, tudo que
zunia, zumbia, cantava ou florescia participava da minha educação
- rãs roucas, gafanhotos e grilos seguros por minha mão até
que, esquecendo seu constrangimento, eles emitiam sua nota
esganiçada, pequenos pintinhos, flores do campo, as flores do
corniso, as violetas silvestres e as árvores frutíferas em botão. Eu
sentia o irromper das vagens do algodão e tateava sua fibra
macia e sementes penugentas; sentia o baixo murmúrio do vento
através do milharal, o sedoso roçar das folhas longas e o
resfolegar indignado de meu pônei, quando o peguei no pasto e pus o
freio em sua boca - minha nossa! como me lembro bem do
cheiro picante de cravo de sua respiração!
Às vezes eu levantava ao alvorecer e ia para o jardim,
enquanto um espesso orvalho cobria relva e flores. Poucos
conhecem a alegria que é sentir as rosas pressionadas suavemente na
mão, ou o belo movimento dos lírios enquanto oscilam na brisa
da manhã. Às vezes eu pegava um inseto na flor que estava
colhendo e sentia o tênue ruído de um par de asas esfregando-se
num súbito terror quando a criaturinha percebia uma pressão do
lado de fora.
Outro local favorito para mim era o pomar, cujos frutos
amadureciam em julho. Os grandes pêssegos macios estendiam-se
para a minha mão e, enquanto a alegre brisa perpassava as árvores,
as maçãs tombavam a meus pés. Ah, o encantamento com
que eu recolhia a fruta no meu avental, pressionava o rosto contra
as faces suaves das maçãs, ainda mornas do sol, e saltitava de
volta para casa!
Nossa caminhada preferida era para Keller's Landing,
um velho e dilapidado píer de tábuas no rio Tennessee, usado
durante a Guerra Civil para o desembarque de soldados.
Passamos lá muitas horas felizes e brincávamos ao aprender geografia.
Eu construía diques com seixos, fazia ilhas e lagos e cavava leitos
de rio por divertimento, e jamais sonhei que estivesse tendo uma
aula. Eu ouvia cada vez mais maravilhada as descrições da srta.
Sullivan sobre o grande mundo redondo com suas montanhas
ardentes, cidades enterradas, rios de gelo movente e muitas
outras coisas estranhas assim. Ela fazia mapas de argila em relevo
para que eu pudesse tatear as cristas das montanhas e os vales, e
seguia com meus dedos o curso sinuoso dos rios. Eu gostava
disso também; mas a divisão da terra em zonas e pólos
confundia e instigava minha mente. Os barbantes e graveto ilustrativos
representando os pólos pareciam tão reais que mesmo hoje a
mera menção de uma zona temperada sugere uma série de círculos
interligados; e acredito que se alguém se decidisse, poderia me
convencer que ursos brancos realmente escalam o Pólo Norte.
A aritmética parece ter sido o único estudo de que não
gostei. Desde o início não me interessei pela ciência dos números.
A srta. Sullivan tentou me ensinar a contar através de contas
desfiadas em grupos e aprendi a somar e diminuir arrumando varetas
usadas no jardim-de-infância. Nunca tive paciência para arrumar
mais de cinco ou seis de cada vez. Quando conseguia isso, minha
consciência ficava em paz por aquele dia e eu saía rapidamente
para procurar meus companheiros de brinquedo.
Desse mesmo modo prazeroso estudei zoologia e botânica.
Certa vez, um cavalheiro, cujo nome esqueci, enviou-me uma
coleção de fósseis - pequenas conchas de molusco lindamente
decoradas e pedaços de arenito com a impressão de patas de
pássaros e uma adorável samambaia em baixo relevo. Essas
foram as chaves que destrancaram os tesouros do mundo
antediluviano para mim. Com dedos trêmulos, eu escutava as
descrições dos terríveis animais por parte da srta. Sullivan, com
nomes estranhos, impronunciáveis, que outrora palmilhavam as
florestas primevas, demolindo os galhos das árvores gigantes em
busca de comida e que morreram nos desolados pântanos de
uma era desconhecida. Por muito tempo essas estranhas criaturas
assombraram meus sonhos, e esse período tenebroso formava um sombrio pano de fundo para o alegre Agora, cheio de
sol, rosas e os ecos da batida suave do casco de meu pônei.
Outra vez me deram uma linda concha e, com a surpresa
e encantamento de uma criança, aprendi como um molusco
mínimo construíra o lustroso espiral para seu local de habitação
e como nas noites quietas, quando não há nenhuma brisa movendo
as ondas, o náutilo navega nas águas azuis do oceano Índico em
seu "navio de pérola". Depois que aprendi muitas coisas
interessantes sobre a vida e os hábitos dos filhos do mar - como os
pequenos pólipos constroem as belas ilhas de coral do Pacífico, no
meio das ondas arrojadas e os foraminíferos, as colinas de calcário
de muitas terras -, a professora leu para mim The chambered nautilus
(O náutilo), mostrando-me que o processo de construção da
concha é um símbolo do desenvolvimento da mente.
Exatamente da mesma forma que o manto fabricante de maravilhas
do náutilo modifica o material que absorve da água e o torna
parte de si, assim os pedacinhos de conhecimento que se
recolhe passam por uma mudança semelhante e se tornam pérolas
de idéias.
Mais uma vez, foi o crescimento de uma planta que
forneceu o texto para uma aula. Compramos um lirio e o colocamos
numa janela ensolarada. Rapidamente os botões pontudos e
verdes deram sinais de que iam se abrir. As folhas finas como
dedos do lado de fora abriram-se lentamente, relutando, acho
eu, para revelar o encanto que escondiam; uma vez tendo dado a
partida, porém, o processo de abertura continuou rapidamente,
mas em ordem e sistematicamente. Havia sempre um botão maior
e mais bonito que o resto, que empurrava sua cobertura externa
de volta com mais pompa, como se a beleza em vestes macias e
sedosas soubesse que era a rainha-lírio por direito divino, enquanto
suas irmãs mais tímidas tiravam seus capuzes verdes, até que a
planta inteira fosse um ramo trêmulo de encantamento e perfume.
Certa vez havia 11 girinos num globo de vidro colocado
numa janela cheia de plantas. Lembro da avidez com que
descobri coisas sobre eles. Era muito divertido mergulhar a mão no
recipiente e sentir os girinos movendo-se brincando por ali e
deixá-los escorregar e deslizar entre meus dedos. Certo dia um
camarada mais ambicioso saltou por cima da borda do recipiente
e caiu no chão, onde o encontrei aparentemente mais morto do
que vivo. O único sinal de vida era um leve tremular de sua cauda.
Mas assim que voltou a seu elemento, disparou para o fundo,
nadando repetidamente em círculos em alegre atividade. Ele dera
o seu salto, vira o grande mundo e estava contente por ficar em
sua bonita casa de vidro sob a grande fúcsia até atingir a dignidade
de rã. Então foi viver no poço folhudo no final do jardim, cujas
noites de verão ele musicava com sua elaborada canção de amor.
Assim, aprendi da própria vida. No início eu era apenas uma
pequena massa de possibilidades. Foi minha professora quem as
desdobrou e desenvolveu. Quando ela veio, tudo em torno de
mim passou a exalar amor e alegria e se tornou cheio de significado.
Desde então ela nunca deixou passar uma oportunidade de
ressaltar a beleza que há em tudo, nem cessou de tentar em
pensamentos, ações e exemplos tornar minha vida doce e útil.
Foi o gênio de minha professora, sua rápida solidariedade,
seu amoroso tato que tornaram tão bonitos os primeiros anos
de minha instrução. Foi o fato de ela capturar o momento certo
para partilhar conhecimento que o fez tão agradável e aceitável para
mim. Ela percebeu que a mente de uma criança é como um
riacho raso que ondula e dança alegremente sobre o curso
pedregoso de sua educação, refletindo aqui uma flor, ali uma moita,
mais além uma nuvem fugidia, e tentou guiar minha mente nesse
caminho, sabendo que, como um riacho, essa mente devia ser
alimentada pelas correntes da montanha e fontes escondidas até
se alargar num rio profundo, capaz de refletir em sua plácida
superfície as colinas ondulantes, as sombras luminosas das
árvores e os céus azuis, assim como o suave rosto de uma flor.
Qualquer professor pode levar uma criança à sala de aula,
mas não é qualquer um que a faz aprender. A criança só trabalhará
alegremente se sentir que é livre, esteja ocupada ou em repouso;
ela precisa sentir o jorro da vitória e o coração afundado de
desapontamento antes que abarque com força de vontade as
tarefas que lhe são desagradáveis e resolva abrir seu caminho
corajosamente por uma rotina monótona de livros didáticos.
A srta. Sullivan está tão próxima de mim que eu mal me
penso à parte dela. Quanto de meu encantamento com todas as
coisas belas é inato e quanto é devido à influência de minha
professora, jamais poderei saber. Sinto que seu ser é inseparável do
meu e que os passos de minha vida estão na dela, O melhor de
mim pertence a ela - não há um talento, uma aspiração ou uma
alegria em mim que não tenha sido despertado por seu toque
amoroso.
CAPÍTULO VIII
O primeiro Natal depois que a srta. Sullivan veio para
Tuscumbia foi um grande acontecimento. Todos na família
prepararam surpresas para mim, mas o que mais me agradou foi a
srta. Sullivan e eu termos preparado surpresas para todo mundo.
O mistério que rodeou os presentes foi o que mais me encantou e
divertiu. Meus amigos fizeram todo o possível para espicaçar minha
curiosidade com insinuações e frases meio soletradas que fingiam
interromper no último segundo. A srta. Sullivan e eu mantivemos
um jogo de adivinhação que me ensinou mais sobre o uso da
linguagem do que qualquer aula poderia ter feito. Toda noite, sentadas
junto a um fulgurante fogo de lenha, jogávamos nosso jogo,
cada vez mais excitante à medida que o Natal se aproximava.
Na véspera do Natal, os escolares de Tuscumbia tiveram
sua árvore, para a qual me convidaram. No centro da sala de aula
ficava uma linda árvore iluminada cintilando na luz suave, os
ramos carregados de frutos maravilhosos e estranhos. Foi um
momento de suprema felicidade. Eu dancei e me movi alegremente
em volta da árvore em êxtase. Quando soube que havia um
presente para cada criança, fiquei encantada e as pessoas amáveis que
haviam preparado a árvore permitiram-me entregar os presentes
para as crianças. No prazer de fazer isso, não parei para olhar
meus próprios presentes; quando fiquei pronta para eles, porém,
minha impaciência para que o verdadeiro Natal começasse ficou
quase fora de controle. Eu sabia que os presentes que já tinha não
eram aqueles aos que meus amigos tinham feito alusões
tantalizantes, e minha professora disse que os presentes que devia
receber seriam ainda melhores do que aqueles. Contudo, fui
convencida a me contentar com os presentes da árvore e deixar
os outros para a manhã seguinte.
Naquela noite, depois que pendurei minha meia, fiquei acordada
por muito tempo, fingindo dormir e me mantendo alerta para
ver o que Papai Noel faria quando viesse. Finalmente adormeci com
uma nova boneca e um urso branco nos braços. Na manhã seguinte,
acordei toda a família com meu primeiro "Feliz Natal!". Descobri
surpresas, não apenas na meia mas também na mesa, nas cadeiras, à
porta, no próprio parapeito da janela; na verdade, eu mal podia
andar sem tropeçar num presente embrulhado em papel de seda.
Mas quando a professora me presenteou com um canário, minha
taça de felicidade transbordou.
O pequeno Tim era tão domesticado que pulava no meu
dedo e comia cerejas cristalizadas de minha mão. A srta. Sullivan
me ensinou a cuidar totalmente de meu novo animal de estimação.
Todas as manhãs depois do desjejum eu preparava o banho dele,
limpava sua gaiola, enchia suas tigelas com semente fresca e água
do poço e pendurava um raminho de mornão no balanço dele.
Certa manhã deixei a gaiola no peitoril da janela enquanto
fui buscar água para o banho de Tim. Quando voltei senti um
gato grande passar por mim enquanto abria a porta. No inicio
não percebi o que acontecera, mas ao colocar a mão na gaiola e
não conseguir tocar as bonitas asas de Tim e notar que suas
pequenas garras pontudas não seguravam meu dedo, soube que
nunca mais veria meu doce cantorzinho de novo.
CAPÍTULO IX
O segundo acontecimento mais importante de minha vida
foi minha visita a Boston, em maio de 1888. Lembro-me
dos preparativos como se fosse ontem, a partida com a
srta. Sullivan e minha mãe, a viagem e, finalmente, a chegada a
Boston. Como essa viagem era diferente da que eu fizera a
Baltimore havia dois anos! Eu não era mais uma criaturinha
inquieta e excitável, exigindo a atenção de todos no trem para me
manter divertida. Sentei-me quietamente ao lado da srta. Sullivan,
absorvendo com ávido interesse tudo que ela me contava estar
vendo pela janela do vagão: o belo rio Tennessee, os amplos
campos de algodão, as colinas e bosques e os grupos de negros
rindo nas estações, que acenavam para as pessoas no trem e
passavam com deliciosos doces e pipocas pelo vagão. No banco
à minha frente sentava-se minha grande boneca de trapo,
Nancy, num novo vestido de algodão riscadinho e um chapéu
franzido para se proteger do sol, olhando-me com seus dois
olhos de conta. Às vezes, quando eu não estava absorvida nas
descrições da srta. Sullivan, lembrava-se da existência de Nancy e
a pegava nos braços, mas geralmente acalmava minha
consciência fazendo-me acreditar que ela dormia.
Como não terei oportunidade de me referir a Nancy de
novo, gostaria de contar aqui a triste experiência que tive pouco
depois de nossa chegada a Boston. Nancy estava coberta de
sujeira - os restos das tortas que eu a obrigara a comer, embora
nunca tivesse mostrado qualquer gosto especial por elas. A lavadeira
da Instituição Perkins secretamente a Levou embora para lhe
dar um banho. Isso foi demais para a pobre Nancy. Na próxima
vez que a vi, ela era um monte de algodão sem forma, que eu não
reconheceria de modo algum não fosse pelos dois olhos de conta
que me encaravam com censura.
Quando o trem finalmente entrou na estação de Boston, era
como se um lindo conto de fadas se tornasse realidade. O "era
uma vez" era naquele momento, o "país distante" estava ali.
Mal tínhamos chegado à Instituição Perkins para Cegos
quando comecei a fazer amizade com as crianças cegas. Fiquei
extasiada ao descobrir que elas conheciam o alfabeto manual.
Que alegria conversar com outras crianças em minha própria
linguagem! Até então eu fora como uma estrangeira falando
através de um intérprete. Na escola onde Laura Bridgman fora
ensinada, eu estava em meu próprio país. Precisei de algum tempo
para apreciar o fato de que meus novos amigos eram cegos. Eu
sabia que não podia ver; mas não parecia possível que todas as
crianças ávidas e amorosas que se amontoaram à minha volta e
se juntaram vigorosamente em minhas alegres brincadeiras
fossem cegas também. Lembro da surpresa e da dor que senti ao
notar que colocavam as mãos na minha quando eu falava com
elas e que liam seus livros com os dedos. Embora já me
tivessem dito isso, e ainda que eu entendesse minhas próprias privações,
mesmo assim pensara vagamente que desde que elas podiam
ouvir, deviam ter uma espécie de "segunda visão"; eu não estava
preparada para encontrar uma criança e outra e mais outra
privadas do mesmo dom precioso. Mas elas estavam tão felizes e
contentes que perdi toda a sensação de dor no prazer de sua
companhia.
Um dia passado com as crianças cegas fez-me sentir
totalmente em casa em meu novo ambiente, e eu passava ansiosamente
de uma experiência agradável para outra enquanto os dias voavam.
Não consegui me convencer de que ainda havia muito mundo por
aí, pois encarava Boston como o início e o fim da criação.
Enquanto estávamos em Boston, visitamos Bunker Hill e
tive ali minha primeira aula de história. A história dos homens
corajosos que haviam lutado naquele lugar me alvoroçou muito.
Subi no monumento, contando os passos e cogitando, à medida
que subia cada vez mais, se os soldados haviam subido aquela
grande escada e disparado no inimigo lá embaixo no chão.
No dia seguinte fomos a Plymouth de barco. Foi a minha
primeira viagem no oceano e num barco a vapor. Como essa
viagem foi cheia de vida e movimento! Mas o rumor da maquinaria
me fez pensar que estivesse trovejando e comecei a chorar,
pois temia que se chovesse não pudéssemos fazer nosso piquenique
ao ar livre. Acho que eu estava mais interessada na grande
rocha onde os Peregrinos desembarcaram do que em qualquer
outra coisa de Plymouth. Eu podia tocá-la e talvez isso tornasse a
chegada dos Peregrinos, seus esforços e grandes feitos
parecerem mais verdadeiros para mim. Tinha freqüentemente segurado
nas mãos um pequeno modelo da Rocha de Plymouth que um
gentil cavalheiro me dera em Pilgrim Hail e eu tateara as curvas
da Rocha, a fenda no centro e os números em relevo "1620",
virando e revirando em minha mente tudo que sabia sobre a
maravilhosa história dos Peregrinos.
Como minha imaginação infantil fulgurava com o esplendor
de seu empreendimento! Eu os idealizava como os mais
bravos e generosos homens que algum dia buscaram um lar numa
terra estranha. Eu pensava que desejavam a liberdade de seus
companheiros humanos tanto quanto a sua. Fiquei vivamente
surpresa e desapontada anos depois ao saber de seus atos de
perseguição que nos cobrem de vergonha, mesmo quando nos
glorificamos com a coragem e a energia que nos deu nosso "Belo
País".
Entre os muitos amigos que fiz em Boston estavam o sr.
William Endicott 5 e sua filha. A amabilidade deles comigo foi a
semente de várias lembranças agradáveis. Certo dia visitamos sua
bela casa em Beverly Farms. Lembro encantada como passeei
por seu jardim de rosas e como seus cachorros, o grande Leo e o
pequeno e crespo Fritz de orelhas compridas, vieram ao meu
encontro, e como Nimrod, o mais rápido dos cavalos, fuçava
minhas mãos atrás de uma carícia ou de um torrão de açúcar.
Lembro também da praia, onde pela primeira vez brinquei na
areia. Era dura e lisa, muito diferente da areia solta e áspera,
misturada com algas e conchas, de Brewstet. O sr. Endicott me contou
sobre os grandes navios que navegavam de Boston para a
Europa. Vi-o muitas vezes depois disso e ele sempre foi um bom
amigo para mim. Na verdade, eu pensava nele quando chamei
Boston de "a Cidade dos Corações Amáveis".
CAPÍTULO X
Pouco antes que a Instituição Perkins fechasse para o verão,
combinou-se que a srta. Sullivan e eu passaríamos as férias em
Brewster, Cape Cod, com nossa querida amiga sra. Hopkins. 6
Fiquei extasiada, pois minha mente estava repleta das alegrias pelo
esperado e pelas maravilhosas histórias que eu ouvira sobre o mar.
Minha lembrança mais viva daquele verão é o oceano. Eu
sempre morei bem longe da costa e jamais sentira sequer o cheiro
de uma lufada de ar salgado; mas tinha lido num grande livro
chamado "Our World" uma descrição do oceano que me
encheu de maravilhamento e de um intenso anseio de tocar o mar
poderoso e sentir seu rugido. Assim, meu coraçãozinho deu pulos
de ansiosa animação quando soube que meu desejo ia finalmente
se realizar.
Assim que me ajudaram a vestir uma roupa de banho, saltei
na areia quente e, sem pensar em medo, mergulhei na água fria.
Senti as grandes ondas oscilarem e afundarem. O movimento
flutuante da água encheu-me de uma alegria trêmula e requintada.
Subitamente meu êxtase deu lugar ao terror, pois meu pé bateu
contra uma rocha e no instante seguinte a água se fechou sobre
minha cabeça. Estiquei as mãos em busca de algum apoio, agarrei
a água e as algas que as ondas me jogavam no rosto. Mas todos
os meus esforços frenéticos foram em vão. As ondas pareciam
brincar comigo e me atiravam de uma para a outra em sua selvagem
alegria. Era apavorante! A terra boa e firme deslizara de
meus pés e tudo parecia excluido desse estranho e abarcante
elemento - vida, ar, calor e amor. Finalmente, porém, como se
cansado de seu novo brinquedo, o mar me atirou de volta na
praia, e um instante depois eu estava nos braços de minha
professora. Ah, o conforto do longo e terno abraço! Assim que me
recuperei suficientemente do pânico para dizer alguma coisa,
perguntei: "Quem põe sal na água?".
Depois que me recobrei da primeira experiência aquática,
achei muito divertido sentar de maiô numa grande pedra e sentir
onda após onda chocar-se contra ela, enviando um chuveiro de
borrifos que quase me cobriam. Sentia os seixos chacoalhando
enquanto as ondas atiravam seu peso poderoso contra a terra; a
praia inteira parecia sacudida pelo terrível ataque das ondas e o ar
latejava com a pulsação delas. A arrebentação recuava para se
reunir e dar um salto mais poderoso e eu me agarrava à pedra,
tensa, fascinada, enquanto sentia o impacto e o rugido do mar
em movimento!
Nunca pude ficar na praia tempo suficiente para o meu gosto.
O cheiro forte do ar marítimo, imaculado, fresco e livre, era como
um pensamento refrescante, pacificador, e as conchas, seixos e
algas com minúsculas criaturas vivas presas neles nunca perderam
seu fascínio para mim. Certo dia, a srta. Sullivan atraiu minha
atenção para um estranho objeto que capturara flanando na água
rasa: era um grande caranguejo - o primeiro que eu via.
Apalpei-o e achei muito estranho que ele tivesse que carregar sua
casa nas costas. Subitamente me ocorreu que ele poderia se
transformar num animal de estimação encantador; então o peguei
pela cauda com as duas mãos e o levei para casa. Tal feito me
agradou enormemente, já que seu corpo era muito pesado e
precisei de toda a minha força para arrastá-lo por 800 metros.
Não deixei a srta. Sullivan em paz enquanto ela não o tivesse
colocado num canal perto do poço onde eu achava que ele
estaria em segurança. Mas, na manhã seguinte fui até o canal e, pronto,
o caranguejo desaparecera! Ninguém sabia para onde tinha
ido ou como escapara. Fiquei amargamente decepcionada à
época; mas pouco a pouco passei a perceber que não era bondoso
nem sábio forçar essa pobre e inarticulada criatura a sair de seu
elemento, e depois de algum tempo me senti feliz ante a idéia de
que ele talvez tivesse voltado para o mar.
CAPÍTULO XI
NO outono, voltei pata o meu lar no Sul com um coração
repleto de alegres lembranças. Quando me lembro daquela
visita ao Norte fico maravilhada com a riqueza e a variedade das
experiências que se amontoam em torno dela. Parece ter sido o
começo de tudo. Os tesouros de um mundo novo e lindo haviam
sido depositados aos meus pés e recebi prazer e informação a
cada momento. Eu vivia a mim mesma em todas as coisas. Nunca
parava um instante, minha vida era tão cheia de movimento quanto
esses pequenos insetos que encapsulam toda uma existência num
único e breve dia. Conheci muitas pessoas que falaram comigo
soletrando em minha mão e, em alegre simpatia, cada pensamento
pulava para encontrar Outro pensamento e, vejam, um milagre
fora construído! Os locais áridos entre minha mente e as mentes
dos Outros floresceram como uma rosa.
Passei os meses de outono com minha família em nosso
chalé de verão, numa montanha a cerca de 20 quilômetros de
Tuscumbia. Era chamado Fern Quarry (Pedreira da Samambaia),
porque próximo a ele havia uma pedreira de calcário há muito
abandonada. Três alegres riachinhos corriam através dela vindos
de fontes nas rochas acima, saltando aqui e tropeçando ali em
cascatas risonhas sempre que as rochas tentavam barrar seu caminho.
A abertura estava cheia de samambaias que cobriam completamente
os leitos de calcário e em certos lugares escondiam os
riachos. O resto da montanha era coberto por um bosque espesso.
Havia ali grandes carvalhos e esplêndidos sempre-verdes com
troncos como pilares musgosos, de cujos ramos pendiam guirlandas
de hera e visco, e caquizeiros cujo odor permeava cada canto do
bosque - algo evocativo e perfumado que alegrava o coração.
Em alguns locais a muscadínea selvagem e suas videiras estendiam-se
de árvore a árvore, fazendo caramanchões que estavam
sempre cheios de borboletas e insetos zumbidores. Era fantástico
perder-se nos ocos verdes daquele emaranhado bosque no final
da tarde e no cheiro dos odores frios e deliciosos que surgiam
da terra no final do dia.
Nosso chalé era uma espécie de acampamento rústico,
lindamente situado no alto da montanha entre carvalhos e
pinheiros. Os pequenos quartos eram dispostos de cada lado de
um longo corredor aberto. Em torno da casa havia uma ampla
varanda onde sopravam os ventos da montanha docemente
perfumados pelos odores do bosque. Vivíamos na varanda a maior
parte do tempo - lá trabalhávamos, comíamos e brincávamos.
À porta dos fundos havia uma grande árvore de noz-manteiga
em torno da qual os degraus haviam sido construídos; e na frente
as árvores ficavam tão perto que eu podia tocá-las e sentir o
vento sacudindo seus galhos, ou as folhas girando para baixo nas
lufadas de outono.
Muitos visitantes vinham a Fern Quarry. À noite, junto à
fogueira, os homens jogavam cartas e passavam as horas conversando
sobre esporte. Contavam histórias de seus feitos maravilhosos
com aves, peixes e quadrúpedes - quantos patos selvagens
e perus haviam abatido, que "truta selvagem" tinham capturado e
como tinham pegado as raposas mais astuciosas, vencido em esperteza os mais inteligentes gambás e ultrapassado o cervo mais
veloz, até que pensei que certamente o leão, o tigre, o urso e o resto
da tribo selvagem não poderiam enfrentar esses astuciosos
caçadores. "Amanhã à caça!" era o grito de boa-noite deles quando o
círculo de alegres amigos se desfazia para dormir. Os homens
dormiam no vestíbulo do lado de fora de nossa porta e eu podia
sentir a respiração profunda deles enquanto jaziam em suas
camas improvisadas.
Na aurora, eu era despertada pelo cheiro de café, o ruído
brusco das armas e os passos pesados dos homens enquanto
perambulavam por ali, prometendo-se a maior sorte da estação.
Eu podia sentir a batida dos cascos dos cavalos que os homens
tinham trazido da cidade e amarrado debaixo das árvores. Os
animais ali ficavam a noite inteira, relinchando alto, impacientes para
partir. Finalmente eles montavam e, como diziam as velhas
canções, então iam os corcéis com as rédeas rangendo, os chicotes
estalando e os cães de caça disparando na frente, e partiam os
caçadores campeões com "para frente, e eia, e vamos!".
Com a manhã adiantada, fazíamos os preparativos para um
churrasco. Acendia-se uma fogueira no fundo de um profundo
buraco no solo, grandes pedaços de graveto eram dispostos
cruzando-se no alto, e a carne pendurada sobre eles em espetos era
virada. À volta do fogo agachavam-se os negros, enxotando as
moscas com ramos longos. O saboroso odor da carne me deixava
com fome muito antes que as mesas fossem postas.
Quando a azáfama e a animação dos preparativos estavam
no auge, o grupo da caça aparecia, chegando em grupos de dois
e três, os homens encalorados e cansados, os cavalos cobertos de
espuma, os cães exaustos, ofegando e combalidos - e sem caça
alguma! Cada um declarava ter visto pelo menos um cervo e que
o animal havia chegado muito perto; contudo, por mais acirradamente
que os cães o perseguissem, por melhor que fosse a pontaria das armas, ao dispararem o gatilho não havia um só cervo à
vista. Tinham tido tanta sorte quanto o menino que disse ter
chegado bem perto de avistar um coelho - já que vira sua trilha. O
grupo, porém, logo esquecia sua decepção e nos sentávamos,
não ante a caça, mas para um banquete mais domesticado de
vitela e porco assado.
Certo verão ganhei um pônei em Fern Quarry. Pus-lhe o
nome de Black Beauty, exatamente como lera no livro, e ele se
parecia de todas as maneiras com seu homônimo, desde a lustrosa
pelagem negra à estrela branca na testa. Passei muitas de minhas
horas mais felizes em sua garupa. Ocasionalmente, quando era
muito seguro, a srta. Sullivan me deixava tomar as rédeas e o
pônei perambulava por ali ou parava segundo seu bel-prazer
para comer a relva ou mordiscar as folhas das árvores que
cresciam ao lado da estreita trilha.
Nas manhãs em que eu não fazia questão de cavalgar, a
professora e eu partíamos depois do café da manhã para um passeio
no bosque e nos deixávamos ir pelo meio das árvores e das
videiras, sem nenhuma estrada para seguir exceto os caminhos
feitos pelas vacas e cavalos. Freqüentemente esbarrávamos em
moitas impenetráveis que nos forçavam a contorná-las. Sempre
voltávamos ao chalé com braçadas de louro, varas-de-ouro,
samambaias e deslumbrantes flores do pântano, como as que
crescem apenas no Sul.
Às vezes eu ia com Mildred e meus priminhos colher caquis.
Eu não os comia,mas adorava seu perfume e gostava de ir atrás
deles entre as folhas e a relva. Também colhíamos frutos secos e
eu os ajudava a quebrar os ouriços das castanhas e as cascas de
nozes - as grandes e doces nozes!
Na base da montanha havia uma estrada de ferro e as
crianças observavam o trem passar sibilando por ali. Às vezes um
assobio terrível nos fazia chegar até a porta da frente e Mlildred
me contava com grande excitação que uma vaca ou um cavalo
tinha se extraviado na trilha. Cerca de um quilômetro e meio de
distância havia uma ponte em cavaletes passando sobre um
profundo desfiladeiro. Era muito difícil andar por ali, os dormentes
eram tão afastados e estreitos que nos sentíamos como se
caminhássemos sobre facas. Eu nunca a atravessara, até o dia em que
Mildred, srta. Sullivan e eu nos perdemos no bosque e perambulamos
por horas sem encontrar um caminho.
De repente Mildred apontou com a mãozinha e exclamou:
"Lá está a ponte!". Deveríamos ter escolhido qualquer outro
caminho menos aquele; mas era tarde, já escurecia e a ponte era
um atalho para casa. Tive de tatear os trilhos com meus pés; mas
não tive medo e prossegui muito bem até que, de repente, veio
um vago "puf, puf" a distância.
"Estou vendo o trem!", exclamou Mildred, e em mais um
minuto o trem estaria em cima de nós se não tivéssemos descido
para o suporte debaixo da ponte enquanto o trem disparava por
cima de nossas cabeças. Senti a quente respiração da máquina no
meu rosto e a fumaça e as cinzas quase nos sufocaram. Enquanto o
trem passava como um trovão, a ponte sacudia e oscilava tanto que
achei que seríamos empurradas para o abismo lá em baixo. Com a
maior dificuldade, conseguimos retornar aos trilhos. Chegamos em
casa muito depois de escurecer e encontramos o chalé vazio; a
família toda estava lá fora procurando por nós.
CAPÍTULO XII
Após minha primeira visita a Boston, eu passava quase todos
os invernos no Norte. Uma vez fui visitar uma aldeia da
Nova Inglaterra com seus lagos gelados e vastos campos cobertos
de neve. Foi então que tive a oportunidade inédita de penetrar
nos tesouros da neve.
Lembro-me de minha surpresa ao descobrir que uma mão
misteriosa desnudara as árvores e moitas, deixando aqui e ali uma
folha encolhida. Os pássaros tinham voado e seus ninhos vazios
nas árvores nuas estavam cheios de neve. O inverno estava sobre a
colina e o campo. A terra parecia entorpecida pelo gélido toque
hibernal e os próprios espíritos das árvores haviam se retirado para
suas raízes e lá, enroscados na escuridão, jaziam adormecidos. Toda a
vida parecia ter se esvaído e mesmo quando o sol brilhava o dia era
Shrunk and cold,
As if her veins were sapless and old,
And she rose up decrepitly
For a last dim look at earth and sea 7
[Encolhida e gelada/como se as suas veias fossem velhas e sem seiva/ e ela
se erguesse decrepitamente/para um último olhar obscurecido sobre a
terra e o mar. (Tradução livre. N da T)]
As moitas e a relva encolhida tinham sido transformadas
numa floresta de estalactites.
Então, chegou um dia em que o gélido ar anunciou uma
tempestade de neve. Corremos para fora para sentir os primeiros e
mínimos flocos caindo. Hora após hora, os flocos de neve caiam
silenciosa e maciamente da alta atmosfera para a terra e o campo se
tornava cada vez mais nivelado. Uma noite nevada fechou-se sobre
o mundo e pela manhã mal se podia reconhecer um traço da
paisagem. Todas as estradas estavam escondidas, nenhum ponto de
referência era visível. Havia apenas uma extensão coberta de neve
com árvores que saiam dela.
A noite soprou um vento nordeste e os flocos voavam de um
lado para outro numa desordem furiosa. Sentamos à volta de
um belo fogo, contamos histórias engraçadas e nos regozijamos,
esquecendo assim que estávamos no meio de uma desolada
solidão, excluídos de qualquer comunicação com o mundo
exterior. Durante a noite, contudo, a fúria do vento aumentou a um
grau tal que nos infundiu um vago terror. As vigas estalavam,
pressionadas, e os galhos das árvores em volta da casa chacoalhavam e
batiam contra as janelas, como se o vento soprasse em tumulto de
cima a baixo da região.
No terceiro dia depois de seu início, a tempestade de neve
parou. O sol irrompeu das nuvens e brilhou sobre uma vasta e
ondulante planície branca. Montes altos, pirâmides empilhadas
em formatos fantásticos e impenetráveis acúmulos de neves jaziam
espalhados em todas as direções.
Atalhos estreitos foram abertos com as pás através dos
montes de neve. Vesti meu capote com capuz e saí. O ar
queimou meu rosto como fogo. Meio que andando pelos atalhos,
meio abrindo caminho pelos montes menores, conseguimos
alcançar um bosque de pinheiros fora de um pasto amplo. As
árvores imóveis e brancas pareciam figuras num friso de
mármore. Não havia nenhum cheiro das agulhas dos pinheiros. Os
raios de sol caíam sobre as árvores fazendo os gravetos
brilharem como diamantes, pendendo em chuveiro quando os
tocávamos. Tão ofuscante era a luz que penetrava até mesmo a
escuridão que vela meus olhos.
À medida que os dias passavam, os acúmulos de neve se
encolhiam gradualmente, mas antes de desaparecerem inteiramente
outra tempestade chegou, de modo que mal senti a terra sob meus
pés uma vez por todo o inverno. A intervalos, as árvores perderam
sua cobertura de gelo e os juncos e a vegetação baixa ficaram
nus; o lago, porém, continuava congelado e duro sob o sol.
Nossa diversão favorita naquele inverno foi andar de tobogã.
Em alguns locais a praia do lago se erguia abruptamente à beira
d'água. Costumávamos costear esses barrancos íngremes. Entrávamos
em nosso tobogã, posto em movimento pelo empurrão
de um garoto, e lá íamos nós! Mergulhando nos acúmulos, saltando
buracos, deslizando para o lago, disparávamos sobre sua
superfície cintilante até a margem oposta. Que alegria! Que loucura
eletrizante! Por um momento contente e selvagem, rebentávamos
os laços que nos prendiam à terra e, de mãos dadas com o vento,
nos sentíamos divinos!
CAPÍTULO XIII
Foi na primavera de 1890 que aprendi a falar. O impulso de
emitir sons audíveis sempre fora forte em mim. Eu costumava
fazer ruídos com uma das mãos na garganta, enquanto
sentia com a outra os movimentos de meus lábios. Ficava
contente com qualquer coisa que fizesse barulho, gostando de sentir
o gato ronronar e o cachorro latir. Também gostava de pôr a
mão na garganta de um cantor, ou num piano que estava sendo
tocado. Antes de perder a visão e a audição, eu estava aprendendo
rapidamente a falar; mas depois de minha doença,
descobriu-se que eu parara de falar porque deixara de ouvir.
Costumava sentar no colo de minha mãe o dia inteiro e manter
as mãos no rosto dela porque me divertia sentir os movimentos
de seus lábios; e movia os lábios também, embora tivesse esquecido
de como era falar. Meus amigos diziam que eu ria e chorava
naturalmente, e por um tempo emitia muitos sons e partes de
palavras, não porque fossem um meio de comunicação, mas
porque a necessidade de exercitar meus órgãos vocais era
imperativa. Contudo, havia uma palavra de cujo significado eu
ainda lembrava, "água". Eu a pronunciava "á-ua". Mesmo isso
se tornou cada vez menos inteligível, até o momento em que a
srta. Sullivan começou a me ensinar. Só parei de usar a palavra
quando aprendi a soletrá-la com meus dedos.
Eu sabia há muito tempo que as pessoas à minha volta usavam
um método de comunicação diferente do meu; e mesmo
antes de saber que se podia ensinar uma criança surda a falar, eu
tinha noção da minha insatisfação com os meios de comunicação
que já possuía. Quem é inteiramente dependente do alfabeto
manual tem sempre uma noção de restrição, de estreiteza. Isso
começou a me agitar com uma aflitiva e ampla sensação de uma
falha que devia ser preenchida. Com freqüência, meus pensamentos
se erguiam e se batiam contra o vento como pássaros e eu
insistia em usar os lábios e a voz. Os amigos tentavam desestimular
essa tendência, temendo que isso acabasse me decepcionando.
Mas eu persistia, e logo ocorreu um acidente cujo resultado foi
derrubar essa última grandiosa barreira - eu aprendi a história
de Ragnhild Kaata.
Em 1890, a sra. Lamson, uma das professoras de Laura
Bridgman que acabara de voltar de uma visita à Noruega e à
Suécia, veio me visitar e me contou sobre Ragnhild Kaata, uma
garota surda e cega da Noruega a quem haviam ensinado
realmente a falar. Mal a sra. Lamson acabara de me contar sobre o
êxito da garota, fiquei eletrizada de ansiedade. Resolvi que também
aprenderia a falar. Não ficaria satisfeita até minha professora me
levar, em busca de conselho e ajuda, à srta. Sarah Fuller, diretora
da Horace Mann School. Essa adorável e afável senhora se
ofereceu para me ensinar, e começamos as aulas no dia 26 de março
de 1890.
O método da srta. Fuller era o seguinte: ela passava minha
mão levemente sobre seu rosto e me deixava sentir a posição de
sua lingua e lábios quando ela emitia um som. Ansiosa para imitar
cada movimento, em uma hora eu aprendera seis elementos da
fala: M, P, A, S, T, I. A srta. Fuller deu-me 11 aulas ao todo. Jamais
esquecerei a surpresa e o encantamento que senti quando pronunciei
minha primeira frase conectada: "Está morno". Na verdade
eram sílabas quebradas e gaguejadas, mas compunham uma fala
humana. Consciente de uma nova força, minha alma saiu da
servidão e, com esses simbolos emitidos imperfeitamente, eu penetrava
em todo conhecimento e toda fé.
Nenhuma criança surda que tente de maneira séria
pronunciar palavras que nunca ouviu - sair da prisão do silêncio, onde
nenhum tom de amor, nenhuma canção de pássaro, nenhuma
melodia jamais penetrou - pode esquecer a exaltação da surpresa,
a alegria da descoberta que lhe chega quando consegue
pronunciar sua primeira palavra. Só alguém assim poderia apreciar a
avidez com que eu falava com meus brinquedos, com pedras,
árvores, pássaros e animais mudos, ou o maravilhamento que sentia
quando, ao meu chamado, Mildred corria para mim ou meus
cachorros obedeciam ao meu comando. Aprender a falar em
palavras com asas que não precisavam de interpretação era um
bônus inominável para mim. Enquanto eu falava, pensamentos
felizes flutuavam de minhas palavras, os mesmos que talvez
pudessem ter lutado para sair de meus dedos em vão.
No entanto, não se deve pensar que eu tenha falado de fato
nesse curto tempo. Eu aprendera apenas os elementos da fala. A
srta. Fuller e a srta. Sullivan podiam me entender, mas a maioria
das pessoas não teria entendido uma palavra entre cem. Nem é
verdade que depois que aprendi aqueles elementos eu mesma
tenha feito o resto do trabalho. Não fosse pelo gênio, incansável
perseverança e devoção da srta. Sullivan, não poderia ter
progredido tanto quanto o fiz em direção à fala natural. Em
primeiro lugar, trabalhei noite e dia antes de poder ser entendida
até pelos amigos mais íntimos; segundo, eu precisava
constantemente da ajuda da srta. Sullivan em meus esforços para articular
cada som claramente e combinar todos os sons de mil modos.
Até hoje ela chama minha atenção todos os dias para palavras
mal pronunciadas.
Todos os professores de surdos sabem o que isso significa,
e só eles podem avaliar as dificuldades peculiares com que tive de
lidar. Lendo os lábios de minha professora, eu era totalmente
dependente de meus dedos: tinha de usar o tato para capturar as
vibrações da garganta, os movimentos da boca e a expressão do
rosto; e esse sentido falhava com freqüência. Em tais casos, eu era
forçada a repetir palavras e frases, às vezes por horas, até sentir a
vibração certa na minha própria voz. Meu trabalho era praticar,
praticar, praticar. Muitas vezes o desânimo e o cansaço me
punham para baixo; no momento seguinte, porém, era estimulada
pela idéia de que logo estaria em casa mostrando para meus
entes queridos o que realizara. Eu ansiava avidamente pelo prazer
deles com o meu feito.
"Minha irmãzinha vai me entender agora", era um pensamento
mais forte do que todos os obstáculos. Eu costumava
repetir extaticamente: "Não sou mais muda". Não podia ficar
desanimada enquanto previa o encantamento de falar com mamãe
e ler as respostas em seus lábios. Ficava pasma em descobrir como
era mais fácil falar do que soletrar com os dedos, e descartei o
alfabeto manual como meio de comunicação de minha parte; a
srta. Sullivan e alguns amigos, contudo, ainda o usavam ao falar
comigo, pois era mais conveniente e mais rápido do que a leitura
labial.
Nesse ponto, talvez, seja melhor explicar nosso uso do alfabeto
manual, o que parece intrigar as pessoas que não nos conhecem.
Quem lê ou fala comigo soletra com sua mão, usando o alfabeto
manual de uma só mão geralmente empregado pelos surdos.
Coloco minha mão na mão de quem fala, muito leve para não
impedir seus movimentos. A posição da mão é tão fácil de sentir
quanto ver. Eu não sinto cada letra mais do que vocês vêem cada
letra separadamente quando lêem. A prática constante torna os
dedos muito flexíveis e alguns amigos meus soletram rapidamente
- mais ou menos tão rapidamente quanto alguém treinado
escreve numa máquina de escrever, O mero soletrar não é mais
consciente, claro, do que escrever.
Quando consegui falar, mal podia esperar para voltar para
casa. Finalmente o momento mais feliz de todos chegara. Eu
fizera a viagem de volta falando constantemente com a srta.
Sullivan; não falando por falar, mas porque estava decidida a
melhorar até o último minuto. Antes que eu percebesse, o trem
parara na estação de Tuscumbia e lá estava na plataforma toda a
família. Meus olhos se enchem de lágrimas quando penso como
mamãe me abraçou apertado, emudecida, trêmula e maravilhada,
assimilando cada sílaba que eu falava, enquanto a pequena Mildred
pegava minha mão livre e a beijava e dançava, e meu pai externava
seu orgulho e afeição num vasto silêncio. Era como se a profecia
de Isaias tivesse sido instilada em mim: "As montanhas e colinas
irromperão cantando ante você e todas as árvores do campo
aplaudirão!".
CAPÍTULO XIV
O inverno de 1892 foi escurecido por uma nuvem no céu
iluminado de minha infância. A alegria abandonou meu
coração e por muito, muito tempo vivi na dúvida, na ansiedade e
no medo. Os livros perderam seu encanto para mim e, mesmo
agora, a lembrança daqueles dias medonhos congela meu coração.
Uma pequena história chamada The frost king, que eu escrevera e
enviara para o sr. Anagnos, da Instituição Perkins para Cegos,
estava na raiz do problema. A fim de esclarecer a matéria,
preciso apresentar os fatos ligados ao episódio, pois a justiça para
com minha professora e comigo mesma me impele a relatar. [ver
o documento sobre essa questão]
Eu escrevera a história em casa, no outono, depois de ter
aprendido a falar. Haviamos ficado em Fern Quarry mais tempo
que o habitual. Enquanto estávamos lá, a srta. Sullivan me descrevera
as belezas da folhagem da estação que avançava, e parece que
suas descrições reviveram a lembrança de uma história que deve ter
sido lida para mim e que inconscientemente devo ter guardado.
Na época pensei que eu estava "inventando uma história", como
as crianças dizem, e me sentei para escrevê-la, avidamente, antes
que as idéias fugissem. Estas fluíram facilmente e senti alegria na
composição. Palavras e imagens vinham à ponta de meus dedos,
e enquanto eu pensava em frase após frase escrevia-as na lousa de
braile. Agora, se as palavras e imagens me chegam sem esforço, é
um sinal nítido de que não são fruto de minha própria mente, mas
idéias extraviadas de outros, que descarto com pena. Naquela época,
eu absorvia prontamente tudo que lia sem pensar um momento
em autoria, e mesmo agora não tenho tanta certeza da fronteira
entre minhas idéias e as que encontro em livros. Parece-me que a
causa disso é que muitas impressões me chegam pelos olhos e
ouvidos dos outros.
Quando terminei a história, li-a para a professora e relembro
agora nitidamente o prazer que senti nos trechos mais bonitos e
minha irritação ao ser interrompida para que me fosse corrigida a
pronúncia de uma palavra. Ao jantar, a história foi lida diante da
família reunida, surpresa que eu pudesse escrever tão bem.
Alguém me perguntou se eu a tinha lido num livro.
Essa pergunta me surpreendeu muito, pois eu não tinha a
mais leve lembrança de alguém me ter lido a história. Eu disse:
"Ah, não, é uma história minha e eu a escrevi para o sr. Anagnos".
Assim, copiei a história e a enviei para o sr. Anagnos como
presente de aniversário. Foi-me sugerido que eu mudasse o título
de "Autumn leaves" para "The frost king" o que fiz. Eu
mesma levei a história ao correio como se caminhasse nas nuvens.
Mal imaginava quão cruelmente pagaria por esse presente de
aniversário.
Sr. Anagnos ficou encantado com "The frost king" e a publicou
em um dos relatórios da Instituição Perkins. Esse foi o auge
da minha felicidade, de onde fui pouco depois empurrada
violentamente para a terra. Eu estava em Boston havia pouco
tempo quando foi descoberto que uma história semelhante ao
"The frost king", chamada "The frost fairies", da srta. Margaret Camby,
8
aparecera antes de meu nascimento num livro chamado "Birdie and
his friends". As duas histórias eram tão
parecidas em idéias e linguagem que era evidente que a história da srta.
Canby me fora lida e que a minha era um plágio. Para mim, foi
difícil entender isso, mas quando consegui, fiquei atônita e ferida.
Nenhuma criança jamais bebeu tanto da taça da amargura.
Eu me cobrira de vergonha; fizera recair suspeita sobre aqueles
que eu mais amava. E mesmo assim, como isso poderia ter
acontecido? Vasculhei minha mente até ficar exausta para ver se
lembrava de ter lido algo sobre o gelo antes de escrever "The frost king",
mas eu não conseguia lembrar de nada, exceto a referência
comum a Jack Frost, e um poema para crianças, "The freaks of the
frost" e eu sabia que não o havia usado em minha história.
Embora profundamente perturbado, inicialmente o sr.
Anagnos pareceu acreditar em mim. Ele era de hábito terno e
amável comigo e por um breve período a sombra foi levantada.
Para agradá-lo, tentei não me sentir infeliz, ficando o mais bonita
possível para a comemoração do aniversário de Washington, que
se realizou pouco depois que recebi a triste notícia.
Eu devia personificar Ceres numa espécie de teatrinho
amador de meninas cegas. Como me lembro bem dos graciosos
drapejados que me envolviam, as brilhantes folhas de outono que
me coroavam a cabeça e os frutos e grãos em meus pés e mãos,
e por baixo da alegria da fantasia a opressora sensação de
desconforto que deixava meu coração pesado.
Na noite que antecedeu a comemoração, uma das professoras
da instituição me fizera uma pergunta relacionada a "The frost king" e eu
lhe contei que a srta. Sullivan me falara sobre Jack Frost e suas
maravilhosas obras. Algo que eu disse a fez pensar ter detectado uma
confissão de que eu me lembrava da história "The frost fairies" da srta.
Canby; então, essa professora levou suas conclusões ao sr. Anagnos,
embora eu lhe tivesse dito enfaticamente que ela estava enganada.
Achando que fora enganado, sr. Anagnos, que tinha muita
ternura por mim, fez ouvidos moucos aos meus protestos de estima
e inocência. Ele acreditou, ou pelo menos suspeitou, que a srta.
Sullivan e eu havíamos deliberadamente roubado as idéias brilhantes
de outrem e as imposto a ele para conquistar sua admiração. Fui
levada ante um tribunal de investigação, composto das professoras
e funcionários graduados da instituição, e pediram à srta. Sullivan
que me deixasse. Então fui interrogada e acareada com o que me
pareceu uma determinação da parte de meus juízes de me forçar a
reconhecer que me lembrava de "The frost fairies" ter sido lida para mim.
Em cada pergunta, eu sentia a dúvida e a suspeita em suas mentes e
sentia também que um amigo querido estava me encarando com
censura, embora eu não pudesse ter colocado tudo isso em
palavras. O sangue bombeava com força meu coração, e eu só
conseguia falar por monossílabos. A própria consciência de que aquilo
era apenas um medonho equívoco não diminuiu meu sofrimento,
e quando finalmente me permitiram deixar a sala, senti-me ofuscada
e não notei os carinhos de minha professora ou as ternas
palavras de meus amigos, chamando-me de menina corajosa e dizendo
estarem orgulhosos de mim.
Deitada em minha cama à noite, chorei como acho que poucas
crianças já choraram. Sentia tanto frio que achava que morreria
antes de o dia clarear, e a idéia me confortava. Penso que se essa
dor tivesse chegado quando eu fosse mais velha, teria danificado
meu espírito além da possibilidade de reparação. Mas o anjo do
esquecimento reuniu as forças e levou para longe boa parte da
infelicidade e toda a amargura daqueles tristes dias.
A srta. Sullivan nunca ouvira falar de "The frost fairies" ou do
livro no qual fora publicada. Com a ajuda do dr. Alexander
Graham Bell, ela investigou a questão cuidadosamente e
finalmente soube-se que a sra. Sophia C. Hopkins tinha um volume
de "Birdie and his friends" da srta. Canby em 1888, o ano em que
passamos o verão com ela em Brewster. A sra. Hopkins não
conseguiu achar o seu volume, mas disse-me que, naquela época,
enquanto a srta. Sullivan estava longe, ela, sra. Hopkins, tentara
me distrair lendo vários livros, embora, como eu, não se
lembrasse de ter lido "The frost fairies", mas tinha certeza de que "Birdie
and bis friends" era um desses livros. Ela explicou o desaparecimento
do livro dizendo que pouco antes vendera a casa e se
desfizera de muitos livros juvenis, como, por exemplo, velhos
livros escolares e de contos de fadas, e que "Birdie and his friends"
provavelmente estava entre eles.
As histórias tinham pouco ou nenhum significado para mim
à época; mas o mero soletrar de palavras estranhas era suficiente
para divertir uma menina que não podia fazer quase nada para se
distrair sozinha; e embora eu não me lembre de uma única
circunstância ligada à leitura das histórias, não posso deixar de
pensar que fiz um enorme esforço para reter as palavras para que
minha professora as explicasse quando voltasse. Uma coisa é certa,
a linguagem estava indelevelmente estampada em meu cérebro,
embora por muito tempo ninguém soubesse disso, e eu menos
que ninguém.
Quando a srta. Sullivan voltou, não falei com ela sobre "The
frost fairies", provavelmente porque ela começou logo a ler "Little lord
Fauntleroy", 9 o que preencheu minha mente excluindo todo o resto.
Mas o fato é que a história da srta. Canby foi lida para mim uma
vez, e que, muito tempo depois de eu a ter esquecido, ela me
voltou tão naturalmente que jamais suspeitei que fosse filha de
outra mente.
Em minha perturbação, recebi muitas mensagens de amor e
solidariedade. Todos os amigos que eu mais amava, exceto um,
continuam meus amigos até hoje. A própria srta. Canby escreveu
amavelmente: "Algum dia você escreverá uma história
maravilhosa vinda de sua própria mente, que será um conforto e uma
ajuda para muitos". Mas tal profecia jamais se realizou. Eu nunca
mais brinquei com as palavras pelo mero prazer do jogo. Na
verdade, desde então tenho sido torturada pelo medo de que o
que escrevo não seja de minha autoria. Por muito tempo, quando
escrevia uma carta, até mesmo para minha mãe, eu era dominada
por uma súbita sensação de terror e soletrava as frases repetidamente,
para me assegurar que não as lera em um livro. Não fosse
o persistente encorajamento da srta. Sullivan, acho que teria desistido
totalmente de tentar escrever.
Depois disso, li "The frost fairies" e também as cartas que escrevi,
nas quais usei outras idéias da srta. Canby. Encontrei em uma delas
- uma carta para o sr. Anagnos datada de 29 de setembro de
1891 - palavras e sentimentos exatamente como os do livro.
Àquela época eu estava escrevendo "The frost king", e essa carta,
como muitas outras, contém frases mostrando que minha mente
estava saturada da história. Coloco minha professora contando-me
sobre as douradas folhas de outono. "Sim, elas são bonitas a
ponto de nos confortar da fuga do verão" - uma idéia diretamente
vinda da história da srta. Canby.
Esse hábito de assimilar o que me agradava e devolvê-lo
novamente como meu aparece em boa parte de minha primeira
correspondência e minhas primeiras tentativas de escrever. Numa
composição que escrevi sobre as velhas cidades da Grécia e da
Itália, pedi emprestadas fulgurantes descrições, com variações, de
fontes que esqueci. Eu sabia do grande amor do sr. Anagnos pela
Antigüidade e sua entusiástica apreciação de todos os belos sentimentos
sobre a Itália e a Grécia. Por isso, reuni de todos os livros
que li um pedacinho de poesia ou história que achava que lhe
dariam prazer. Falando sobre minha composição sobre as
cidades, sr. Anagnos tinha dito: "Essas idéias são poéticas em sua
essência". Mas não entendo como pôde ter achado que uma criança
cega e surda de 11 anos poderia tê-las inventado. Ainda assim, não
consigo achar que minha pequena composição seja destituída de
interesse, mesmo se as idéias não são originais. Isso mostra-me que
eu podia expressar meu gosto pelas idéias belas e poéticas numa
linguagem clara e viva.
Essas primeiras composições eram ginásticas mentais. Eu
aprendia, como todos os jovens inexperientes aprendem, por
assimilação e imitação, a colocar idéias em palavras. Tudo o que
me agradava nos livros eu retinha na memória, consciente ou
inconscientemente, adaptando-o. O jovem escritor, como disse
Stevenson, instintivamente tenta copiar tudo que lhe parece mais
admirável e muda sua admiração com uma versatilidade de
pasmar. Só depois de anos dessa prática é que mesmo os grandes
homens aprenderam a comandar a legião de palavras que invadem
por cada atalho da mente.
Temo não ter completado esse processo ainda. Certamente
nem sempre consigo distinguir meus próprios pensamentos dos
que leio, porque o que leio se torna a própria substância e textura
de minha mente. Conseqüentemente, em quase tudo que escrevo
produzo algo que se parece muito com uma louca colcha de
retalhos que eu costumava fazer assim que aprendi a costurar.
Essa colcha era feita de retalhos de todo o tipo - bonitos pedaços
de seda e veludo; mas os pedaços ásperos que não eram
agradáveis ao toque sempre predominavam. Da mesma forma,
minhas composições são construídas de minhas idéias cruas,
incrustadas dos pensamentos mais brilhantes e das opiniões mais
maduras dos autores que tenho lido. Parece-me que a grande
dificuldade de escrever é fazer a linguagem da mente instruída
expressar nossas idéias confusas, meio sentimentos, meio
pensamentos, quando somos pouco mais que um embrulho variado
de tendências instintivas. Tentar escrever é muito parecido como
fazer um quebra-cabeça chinês. Temos um padrão na mente que
desejamos colocar em palavras. Estas, contudo, não se ajustam
aos espaços, ou, se se ajustam, não combinam com o desenho.
Mas continuamos tentando porque sabemos que outros tiveram
êxito, e não vamos reconhecer a derrota sem relutância.
"Não há nenhum modo de se tornar original, exceto
nascendo assim", diz Stevenson, e embora eu possa não ser original,
espero algum dia superar minhas composições artificiais e
disfarçadas. Então, talvez, minhas idéias e experiências venham à
superfície. Enquanto isso confio, espero e persevero e tento não
deixar a amarga lembrança de "The frost king" impedir meus esforços.
Assim, essa triste experiência pode me ter feito bem e me
posto a pensar sobre alguns dos problemas da composição.
Lastimo apenas que isso tenha resultado na perda de um de meus
amigos mais queridos, o sr. Anagnos.
Depois da publicação de "A história da minha vida" no Ladies'
Home Journal o sr. Anagnos fez uma declaração, numa carta para
o sr. Macy, de que, na época de "The frost king", ele acreditava que eu
era inocente. Diz que a corte de investigação à qual fui levada
consistia de oito pessoas: quatro cegos e quatro pessoas que enxergavam.
Quatro deles, diz ele, achavam que eu sabia que a história
da srta. Canby fora lida para mim e os outros não tinham essa
opinião. O sr. Anagnos declara que deu seu voto com aqueles que
eram favoráveis a mim.
Mas, seja qual for o lado que ele tenha apoiado, quando entrei
na sala onde o sr. Anagnos tinha tantas vezes me sentado em seu
colo e, esquecendo seus cuidados, compartilhara minhas alegrias,
e encontrei lá pessoas que pareciam duvidar de mim, senti que
havia algo hostil e ameaçador na própria atmosfera e eventos
subseqüentes confirmaram tal impressão. Por dois anos ele parece
ter acreditado que eu e a srta. Sullivan éramos inocentes. Então
claramente retirou seu julgamento favorável, por que não sei, assim
como não conheço os detalhes da investigação. Nunca soube
sequer os nomes dos membros do "tribunal", que não falaram
comigo. Eu estava alvoroçada demais para notar qualquer coisa,
assustada demais para fazer perguntas. Na verdade, mal conseguia
pensar no que estava dizendo ou no que me estava sendo dito.
Fiz esse relato sobre o episódio do "The frost king" porque ele
foi importante em minha vida e em minha educação; e a fim de
que não haja nenhum mal-entendido, expus todos os fatos como
me apareceram, sem intenção de me defender ou de pôr a culpa
em quem quer que seja.
CAPÍTULO XV
Passei o verão e o inverno que se seguiram ao incidente do
"The
frost king" com minha família no Alabama. Lembro-me
encantada daquela volta para casa. Tudo se abrira em botões e
florescera. Eu estava feliz. "The frost king" fora esquecido.
Quando o solo estava crivado das folhas douradas e
vermelhas do Outono e as uvas de perfume almiscarado que cobriam
o caramanchão no final do jardim se tornavam de um marrom
dourado ao sol, comecei a escrever um esboço de minha vida -
um ano depois de ter escrito "The frost king".
Eu ainda era excessivamente escrupulosa sobre tudo que
escrevia, atormentada pela possibilidade de escrever algo que não
fosse inteiramente meu. Ninguém sabia desses temores, exceto
minha professora. Uma estranha sensibilidade impedia-me de me
referir ao The "frost king" e, com freqüência, quando uma idéia surgia
no decorrer da conversa, eu soletrava suavemente para ela: "Não
tenho certeza se é minha". Em outras épocas, no meio de um
parágrafo, me dizia: "Suponhamos que descubram que isso foi
escrito por alguém há muito tempo!". Um medo malévolo
paralisava de tal modo minha mão que eu não conseguia escrever mais
naquele dia. E ainda hoje sinto às vezes o mesmo desconforto e
inquietação. A srta. Sullivan consolou-me e me ajudou de todas
as maneiras possíveis, mas a terrível experiência pela qual
passara deixou-me uma impressão duradoura na mente, cujo
significado só agora começo a entender. Foi com a esperança de
restaurar minha autoconfiança que ela me convenceu a escrever
um breve relato da minha vida para o Youth's Companion. Eu tinha
12 anos. Quando olho para trás e vejo minha luta para escrever
aquela pequena história, penso ter tido uma visão profética do bem
que adviria do empreendimento, ou eu certamente teria fracassado.
Escrevi timidamente, com medo, mas de modo resoluto,
incentivada pela srta. Sullivan. Ela sabia que, se eu perseverasse,
recuperaria a autoconfiança em minha mente e dominaria minhas
aptidões. Até a época do episódio "The frost king", eu levara a vida
inconsciente de uma menina pequena; agora meus pensamentos
estavam voltados para dentro e eu tinha consciência de coisas
invisíveis. Emergi gradualmente da penumbra daquela experiência
com a mente mais clara pela provação e com um conhecimento
mais verdadeiro da vida.
Os eventos principais do ano de 1893 foram minha viagem
a Washington durante a inauguração do presidente Cleveland e as
visitas às cataratas do Niágara e à Feira Mundial. Nessas
circunstâncias meus estudos eram constantemente interrompidos e
geralmente postos de lado por muitas semanas, de modo que é
impossível fazer um relato coerente deles.
Fomos às cataratas do Niágara em março de 1893. É difícil
descrever minhas emoções ao ficar no ponto que se debruça
sobre as American Falls e sentir o ar vibrando e a terra tremendo
pelo fragor da água.
Parece estranho para muita gente que eu me impressionasse
com as maravilhas e a beleza das cataratas do Niágara. Sempre
perguntam: "O que significa essa beleza ou essa música para você?
Você não pode ver as ondas rolando até a praia ou ouvir seu
rugido. O que significam então?". No sentido mais evidente,
significam tudo. Não consigo abarcar ou definir esse significado, da
mesma forma que não consigo abarcar ou definir amor, religião
ou bondade.
Durante o verão de 1893, a srta. Sullivan e eu visitamos a
Feira Mundial com o dr. Alexander Graham Bell. Lembro-me
com um inequívoco encantamento desses dias em que mil fantasias infantis
se tornaram uma bela realidade. A cada dia fiz uma
viagem em torno do mundo em imaginação e vi muitas maravilhas
dos lugares mais distantes da terra - maravilhas da invenção,
tesouros da indústria, capacidades e todas as atividades da vida
humana realmente passaram sob meus dedos.
Gostei de visitar o Midway Plaisance. Parecia as Mil e uma
Noites, estava tão atulhado de novidades e coisas interessantes. Ali
estava a Índia de meus livros no curioso bazar com suas Shivas e
deuses-elefantes; ali estava a terra das pirâmides concentrada numa
Cairo modelo, com suas mesquitas e suas longas procissões de
camelos; adiante ficavam os canais de Veneza, onde navegamos a
cada noite quando a cidade e as fontes estavam iluminadas.
Também subi em um navio viking que ficava a uma curta distância da
pequena embarcação. Eu já estivera num navio de guerra antes,
em Boston, e me interessava ver, naquele navio viking, como era
o marinheiro de outrora - como navegava e encarava
tempestade e calmaria com um coração igualmente destemido, e corria
atrás de qualquer um que devolvesse seu grito: "Somos do mar!",
e lutava com mente e nervos, autoconfiante, auto-suficiente, em
vez de ser empurrado para o pano de fundo por uma maquinaria
sem inteligência, como acontece com o homem comum
hoje em dia. Assim será sempre - "só o homem é interessante
para o homem".
A pouca distância desse navio ficava um modelo do Santa
Maria, que também examinei. O capitão me mostrou a cabine de
Colombo e a mesa com uma ampulheta. Esse pequeno objeto me
impressionou muito porque me fez pensar quão entediado o
heróico navegador deve ter se sentido ao ver a areia caindo grão a
grão, enquanto homens desesperados tramavam contra a sua vida.
O sr. Higinbotham, presidente da Feira Mundial, amavelmente
deu-me permissão para tocar os objetos em exibição, e,
com uma avidez tão insaciável como a de Pizarro apossando-se
dos tesouros do Peru, tateei as glórias da Feira com meus dedos.
Era uma espécie de caleidoscópio tangível, essa branca cidade do
oeste. Tudo me fascinava, especialmente os bronzes franceses.
Eram tão parecidos com a vida que achei serem visões de anjo
que o artista capturara e prendera à terra em formas terrenas.
Na Exposição do Cabo da Boa Esperança, aprendi muito
sobre os processos de mineração de diamantes. Sempre que
possivel eu tocava na maquinaria em movimento, para ter uma idéia
mais clara de como as pedras eram pesadas, cortadas e polidas.
Procurei um diamante no local onde o material estava sendo
lavado e o encontrei - o único diamante perfeito, disseram, já
encontrado nos Estados Unidos.

Fotografia de Helen Keller com o
Dr. Alexander Graham Bell, 1902
O
Dr. Bell ia a toda parte conosco e me descrevia de modo
encantador os objetos de maior interesse. No edifício dos aparelhos
elétricos, examinamos os telefones, autofones, fonógrafos e
outras invenções, e ele me explicou como era possível mandar
uma mensagem pelos fios que zombavam do espaço e sobrepujavam
o tempo, e, como Prometeu, retiram fogo do céu.
Visitamos também o departamento antropológico e fiquei muito
interessada nas relíquias do antigo México, nos toscos instrumentos
de pedra que freqüentemente são o único registro de uma era
- os simples monumentos dos iletrados filhos da natureza (assim
pensava eu ao tocá-los) que pareciam destinados a durar enquanto
os memoriais de reis e sábios desmoronavam na poeira-, e nas
múmias egípcias, que eu evitava tocar. Dessas relíquias aprendi
mais sobre o progresso do homem do que tenho lido ou sabido
desde então.
Todas essas experiências acrescentaram muitos termos novos
ao meu vocabulário, e nas três semanas que passei na feira dei um
grande salto do pequeno interesse infantil em contos de fada e
brinquedos para a apreciação do verdadeiro e do sério no mundo
do trabalho cotidiano.
CAPÍTULO XVI
Antes de outubro de 1893, eu estudara vários assuntos por
minha conta de um modo mais ou menos superficial. Li as
histórias da Grécia, de Roma e dos Estados Unidos. Tinha uma
gramática francesa com letras em relevo e, como eu já sabia um
pouco de francês, geralmente me divertia compondo em minha mente
exercícios curtos, usando as palavras novas com que eu esbarrava e,
na medida do possível, ignorando regras e outras tecnicalidades.
Cheguei mesmo a tentar dominar, sem ajuda, a pronúncia do francês,
enquanto achava todas as letras e sons descritos no livro. Claro que
isso era obrigar conhecimentos diminutos a atingir fins maiores, mas
deu-me algo para fazer num dia chuvoso, e adquiri um conhecimento
suficiente de francês para ler com prazer as fábulas de La Fontaine,
Le médecin malgré lui (Médico à força) e trechos de Athalie.
Também dediquei um tempo considerável à melhora de
minha fala. Eu lia alto para a srta. Sullivan e recitava passagens de
meus poetas favoritos, que decorara; ela corrigia minha
pronúncia, ensinando-me o fraseado e a inflexão. Contudo, só em outubro
de 1893, depois que me recuperei da fadiga e do alvoroço
da visita à Feira Mundial, comecei a ter aulas sobre assuntos
especiais em horas fixas.
Nessa época, a srta. Sullivan e eu estávamos em Hulton,
Pensilvânia, visitando a família do sr. William Wade. 10 O sr. Irons,
um vizinho deles, era um grande erudito do latim; combinou-se
que eu devia estudar com ele. Lembro-me dele como um
homem de rara afabilidade e ampla experiência. Ensinou-me
principalmente a gramática latina, mas me ajudava com freqüência na
aritmética, que eu achava tão irritante quanto desinteressante. O
sr. Irons também leu comigo o In memorian (In memoriam: an
authoritative text, backgrounds and sources, criticism. In memoriam: texto
de autoridade, antecedentes, fontes e crítica) de Tennyson. Eu lera
muitos livros antes, mas nunca de um ponto de vista crítico.
Aprendi pela primeira vez a conhecer um autor, a reconhecer seu
estilo como reconhecia o apertar de mão de um amigo.
No início eu não tinha vontade de estudar gramática latina.
Parecia absurdo perder tempo analisando cada palavra com que
me deparava - substantivo, genitivo, singular, feminino - quando
seu significado era bem comum. Achava que poderia muito bem
descrever meu animal de estimação a fim de conhecê-lo -
ordem, vertebrado; divisão, quadrúpede; classe, mamífero; gênero,
felino; espécie, gato; indivíduo, Tabby. Mas à medida que entrava
mais profundamente no assunto ficava mais interessada, e a beleza
da linguagem me encantou. Divertia-me com freqüência lendo
trechos latinos, escolhendo palavras que eu entendia e tentava obter
um sentido com elas. Nunca deixei de gostar deste passatempo.
Acho que não há nada mais belo do que a fuga evanescente
de imagens e sentimentos apresentados por uma linguagem com
a qual acabamos de nos familiarizar - idéias que perpassam pelo
céu mental, moldadas e coloridas pela caprichosa fantasia. A srta.
Sullivan sentava-se a meu lado durante as aulas, soletrando em
minha mão tudo que o sr. Irons dizia e procurando novas palavras
para mim. Eu começara a ler A guerra da Gália, de César,
quando voltei para minha casa no Alabama.
CAPÍTULO XVII
No verão de 1894, assisti à reunião da American Association
to Promote the Teaching of Speech to the Deaf, em
Chautauqua. Foi combinado que eu deveria ir à Wright-Humason
School for the Deaf, na cidade de Nova York. Fui para lá em
outubro de 1894, acompanhada pela srta. Sullivan. Essa escola
fora escolhida especialmente com o objetivo de obter as maiores
vantagens em cultura vocal e treinamento na leitura labial. Além de
meu trabalho nesses assuntos, durante os dois anos em que estive
na escola estudei aritmética, geografia, fisica, francês e alemão.
Srta. Reamy, minha professora de alemão, sabia usar o
alfabeto manual, e depois que dominei um pequeno vocabulário,
conversávamos em alemão sempre que tínhamos oportunidade.
Em poucos meses eu podia entender quase tudo que ela dizia.
Antes do final do primeiro ano li Guilherme Tell, encantada. Na
verdade, acho que fiz mais progressos em alemão do que em
qualquer dos meus estudos. Achei francês muito mais difícil. Eu o
estudei com madame Olivier, uma senhora francesa que não
conhecia o alfabeto manual e que era obrigada a dar suas instruções
oralmente. Eu não conseguia ler seus lábios com facilidade;
assim, meus progressos ficaram muito mais lentos do que em
alemão. Contudo, consegui ler Le médecin malgré lui de novo. Era
muito divertido, mas eu não gostei dele, nem de longe, tanto
quanto gostei de Guilherme Tell.
Meu progresso em leitura labial e fala não era o que minhas
professoras e eu tínhamos esperado. Minha ambição era falar
como as outras pessoas, e minhas professoras acreditavam que
isso podia ser conseguido; mas embora trabalhássemos
arduamente e com fé, não chegamos a alcançar nosso objetivo. Acho
que este era elevado demais e por isso a decepção foi inevitável.
Eu ainda encarava a aritmética como um sistema de armadilhas.
Debruçava-me na perigosa fronteira da "adivinhação", evitando,
com problemas infinitos para mim e para os outros, o largo vale
do raciocínio. Quando não estava adivinhando eu concluía, e essa
falta, além de minha própria estupidez, agravou minhas dificuldades
mais do que era certo ou necessário.
Entretanto, embora tais desapontamentos às vezes me causassem
grande depressão, eu prosseguia meus outros estudos com
inarredável interesse, especialmente geografia fisica. Era uma alegria
aprender os segredos da natureza: como - na pitoresca linguagem
do Velho Testamento - os ventos são feitos para soprar dos quatro
cantos dos céus, como os vapores se levantam dos confins da terra,
como os rios são escavados entre as rochas e as montanhas viradas
pelas raízes e "de que maneira" o homem pode sobrepujar forças
mais poderosas do que ele. Os dois anos em Nova York foram
felizes e lembro-me deles com verdadeiro prazer.
Lembro-me especialmente das caminhadas que fazíamos juntos
no Central Park, a única parte da cidade que combinava
comigo. Nunca perdi um centímetro do meu encantamento com
esse maravilhoso parque. Eu adorava que ele me fosse descrito
cada vez que entrava nele, pois era lindo em todos os seus aspectos;
e estes eram tantos que o parque era bonito de modo diferente
a cada dia dos nove meses que passei em Nova York.
Na primavera, fizemos excursões a vários lugares interessantes.
Navegamos pelo rio Hudson e perambulamos por suas
margens verdes, em que Bryant adorava cantar. 11 Eu gostava da
grandeza simples e selvagem dos altos rochedos. Entre os lugares
que visitei estavam West Point, Tarrytown, lar de Washington
Irving, onde andei pelo "Vale Adormecido".
Os professores na Wright-Humason School estavam sempre
planejando como poderiam dar aos alunos todas as vantagens
usufruídas pelos que ouvem - como poderiam aproveitar as
poucas tendências e lembranças passivas no caso das crianças
pequenas - e retirá-las das confinadas circunstâncias de suas vidas.
Antes que eu deixasse Nova York, esses dias luminosos
foram obscurecidos pela maior tristeza que já tive, com exceção
da morte de meu pai. O sr. John P Spaulding, 12 de Boston,
morreu em fevereiro de 1896. Só aqueles que mais o conheceram e
amaram podem entender o que sua amizade significou para mim.
Ele, que fazia todos felizes de um modo belo e delicado, fora
muito bondoso comigo e com a srta. Sullivan. À medida que
sentíamos sua amorosa presença e sabíamos que tinha um
interesse vigilante em nosso trabalho, açoitado por tantas dificuldades,
não podíamos nos sentir desencorajadas. Sua partida deixou
um vazio em nossas vidas que jamais foi preenchido.
CAPÍTULO XVIII
Em outubro de 1896 entrei para a Cambridge School for
Young Ladies, para ser preparada para Radcliffe.
Quando era menina, visitei Wellesley e surpreendi meus amigos
anunciando: "Algum dia irei para a faculdade, mas irei para
Harvard!". Quando me perguntaram por que não Wellesley,
respondi que lá só tinha garotas. A idéia de ir para a universidade
enraizou-se no meu coração e se tornou um desejo sincero, o que
me impeliu a entrar em competição com as moças que viam e
ouviam ante à forte oposição de muitos amigos verdadeiros e
sábios. Quando deixei Nova York, a idéia se tornara um objetivo
fixo, e ficou decidido que eu devia ir para Cambridge. Essa foi a
abordagem mais próxima que pude chegar de Harvard e da
realização de minha declaração da infância.
Na Cambridge School, o plano era que a srta. Sullivan
assistisse às aulas comigo e interpretasse para mim as instruções dadas.
É claro que a experiência de meus professores era ensinar alunos
normais, e meu único meio de conversar com eles era pela leitura
labial. Meus estudos do primeiro ano foram história inglesa, literatura
inglesa, alemão, latim, aritmética, composição latina e matérias
ocasionais. Até então eu nunca estudara com o objetivo de me preparar
para a faculdade; mas fora bem instruída em inglês pela srta. Sullivan,
e logo se tornou claro para meus professores que eu não precisava
de instrução especial nesse assunto além de um estudo crítico dos
livros indicados pela faculdade. Além disso, eu tivera um bom
começo em francês e recebera seis meses de aulas em latim, mas era
com o alemão que minha familiaridade era maior.
Entretanto, apesar dessas vantagens, havia sérias dificuldades
ao meu progresso. A srta. Sullivan não conseguia soletrar em
minha mão tudo o que os livros requeriam, e era muito difícil ter
livros didáticos impressos em relevo a tempo de me serem
úteis, embora meus amigos em Londres e Filadélfia quisessem
apressar o trabalho. De fato, durante um tempo tive de copiar
meu latim em braile para que pudesse recitar com as outras
moças. Meus professores logo se tornaram bastante familiarizados
com meu falar imperfeito para responder prontamente às
minhas perguntas e corrigir os erros. Eu não podia tomar notas
na aula ou escrever exercícios; mas escrevia todas as minhas
composições e traduções em casa, na máquina de escrever.

Em Radcliffe College, Helen Keller
escrevendo à máquina, cerca de1900
Todos os dias, a srta. Sullivan ia às aulas comigo e soletrava
em minha mão com infinita paciência tudo o que os professores
diziam. Nas horas de estudo, ela precisa procurar novas palavras
para mim e ler e reler notas e livros sem letras em relevo. É dificil
imaginar o tédio de tal trabalho. Frau Grõte, minha professora de
alemão, e sr. Gilman, 13 o diretor, foram os únicos professores na
escola que aprenderam a linguagem manual. Ninguém percebeu
tão profundamente quanto a querida frau Grõte como seu
próprio soletrar era lento e inadequado. Entretanto, na bondade de
seu coração, ela laboriosamente soletrava suas aulas para mim
duas vezes por semana, para dar um pouco de descanso à srta.
Sullivan. Mas embora todos fossem bondosos e prontos a nos
ajudar, havia somente uma mão que podia transformar a tarefa
desagradável em prazer.
Naquele ano terminei aritmética, passei em revista minha
gramática latina e li três capítulos de A guerra da Gália, de César.
Em alemão, li, parcialmente com meus dedos e parcialmente
com a ajuda da srta. Sullivan, A canção do sino e Tauches de Schiller,
Die harzreise, de Heine, Aus dem staat Friedrichs des Grossen, de
Freytag, Fluch der schõnheit, de Riehl, Minna von Barnhelm, de Lessing
e Da minha vida, de Goethe. Tive o maior prazer com esses
livros alemães, especialmente com os versos maravilhosos de Schiller, a história das magníficas realizações de Frederico, o
Grande e o relato da vida de Goethe. Lamentei terminar Die
Harzreise, tão espirituoso, feliz e cheio de encantadoras
descrições de colinas cobertas de vinhedos, correntes que cantam e
ondulam ao sol e regiões selvagens, sagradas para a tradição e a
lenda, as irmãs crepusculares de uma era imaginativa há muito
desaparecida - descrições possíveis de serem feitas somente por
aqueles para quem a natureza é "uma emoção, um amor e um
apetite".
O sr. Gilman deu-me aulas de literatura inglesa parte do ano.
Lemos juntos As you like it (Como queiras), Speech on conciliation
with America (Discurso de conciliação com a América), de Burke,
e Life of Samuel Johnson (Vida de SamuelJohnson), de Macaulay. A
ampla visão do sr. Gilman sobre história e literatura e suas
inteligentes explicações tornaram meu trabalho mais fácil e agradável
do que poderia ser se eu apenas tivesse lido mecanicamente
as anotações com as explicações necessariamente breves dadas
nas aulas.
O Speech, de Burke, foi o mais instrutivo livro sobre tema
politico que eu já tinha lido até então. Minha mente agitou-se com
a época agitada e os personagens à volta dos quais se centralizava
a vida de duas nações em disputa que pareciam se mover diante
de mim. Enquanto o discurso magistral de Burke prosseguia em
poderosos surtos de eloqüência, eu cogitava cada vez mais como
fora possível que o rei George e seus ministros tivessem feito
ouvidos moucos para suas proféticas advertências sobre nossa
vitória e a sua humilhação. A seguir entrei nos melancólicos
detalhes do relato no qual o grande estadista permanece com seu
partido e com os representantes do povo. Pensei como era estranho
que sementes tão preciosas da verdade devessem cair no joio
da ignorância e da corrupção.
De um modo diferente, Life of Samuel Johnson, de Macaulay, era
interessante. Meu coração alinhou-se com o homem solitário que
comeu o pão da aflição em Grub Street e, mesmo assim, no meio
do esforço e cruel sofrimento do corpo e da alma, sempre tinha
uma palavra amável e prestava ajuda aos pobres e desprezados.
Rejubilei-me com todos os seus sucessos, fechei os olhos a seus
defeitos e me surpreendi, não que ele os tivesse, que tais defeitos
não esmagassem ou apequenassem sua alma. Entretanto, apesar do
brilho de Macaulay e sua admirável faculdade de fazer o lugar comum
parecer novo e pitoresco, seu dogmatismo às vezes me cansava,
e seus freqüentes sacrificios da verdade ao efeito me mantinham
numa atitude de questionamento muito diferente da reverência com
que eu ouvira Demóstenes da Grã-Bretanha.
Na escola de Cambridge, pela primeira vez na minha vida,
usufruí da companhia de moças da minha idade que viam e ouviam.
Morei com várias outras numa das agradáveis casas vinculadas à
escola, a casa em que o sr. Howells morara, e todos nós tínhamos
a vantagem de uma vida doméstica. Eu me juntava a elas em
muitos jogos, mesmo cabra-cega, e em alegres brincadeiras na
neve; juntas, fazíamos longos passeios, discutíamos nossos estudos
e liamos alto as coisas que nos interessavam. Algumas moças
aprenderam a falar comigo, de modo que a srta. Sullivan não
tinha de repetir a conversa delas.
No Natal, minha mãe e minha irmã mais moça passaram o
feriado comigo, e o sr. Gilman bondosamente ofereceu que Mildred
estudasse em sua escola. Portanto, minha irmã ficou comigo em
Cambridge e por seis contentes meses mal nos separamos. Fico
muito feliz em lembrar as horas que passamos ajudando-nos uma
a outra nos estudos e compartilhando nosso lazer.
Fiz meus exames preliminares para Radcliffe do dia 29 de
junho a 3 de julho de 1897. Minhas matérias eram alemão básico
e avançado, francês, latim, inglês e história grega e romana,
perfazendo nove horas ao todo. Passei em tudo e recebi "louvor" em
alemão e inglês.
Talvez seja necessária uma explicação sobre o método
utilizado quando fiz meus exames. Exigia-se que o aluno fizesse os
exames em 16 horas - 12 horas nas chamadas matérias básicas e
quatro nas avançadas. Ele tinha de passar cinco horas de cada vez
para que fossem levadas em conta. Os papéis dos exames eram
liberados por Harvard às nove horas e levados a Radcliffe por
mensageiro especial. Cada candidato era conhecido por um
número, não por seu nome. Eu era o número 233 mas, como tinha
de usar máquina de escrever, minha identidade não podia ser
escondida.
Acharam aconselhável que eu fizesse meus exames numa sala
sozinha, pois o barulho da máquina de escrever poderia perturbar
as outras moças. O sr. Gilman leu todos os papéis para mim
por meio do alfabeto manual. Colocaram um homem de guarda
na porta para impedir qualquer interrupção.
No primeiro dia tive alemão. O sr. Gilman sentou-se a meu
lado e leu a prova minuciosamente primeiro, depois frase a frase,
enquanto eu repetia as palavras alto, para certificar-me de que
eu o entendia perfeitamente. As provas eram difíceis e eu estava
ansiosa enquanto escrevia as respostas na máquina de escrever.
O sr. Gilman soletrou-me o que eu havia escrito, fiz as mudanças
que achei necessárias e ele as inseriu. Quero dizer aqui que desde
então nunca tive essa vantagem em qualquer de meus exames.
Em Radcliffe ninguém lê as provas para mim depois que estão
escritas e não tenho oportunidade de corrigir erros, a não ser que
eu termine antes de o tempo se esgotar. Nesse caso corrijo apenas
os erros que lembro nos poucos minutos permitidos e tomo
notas de tais correções no final da prova. Se passei com notas
maiores nas preliminares do que nas finais, há dois motivos. Nas
provas finais, ninguém leu meu trabalho para mim e nas
preliminares os exames eram sobre matérias com as quais eu tinha uma
certa familiaridade antes de estudar na escola de Cambridge; no
início do ano, eu passara nos exames de inglês, história, francês
e alemão, feitos a mim pelo sr. Gilman de provas anteriores de
Harvard.
O sr. Gilman mandou meu trabalho escrito para os examinadores
com um certificado de que eu, candidata n.º 233, o escrevera.
Todos os outros exames preliminares foram realizados
da mesma maneira. Nenhum foi tão difícil quanto o primeiro.
Lembro-me de que no dia em que a prova de latim nos foi
trazida, o professor Schilling entrou e me informou que eu
passara satisfatoriamente em alemão. Isso me encorajou
tremendamente e continuei meu exame rapidamente, com o coração leve
e a mão firme.
CAPÍTULO XIX
Comecei meu segundo ano na escola Gilman cheia de esperança
e determinação de vencer. No entanto, durante as
primeiras semanas, deparei-me com dificuldades imprevistas. O
sr. Gilman concordara que naquele ano eu devia estudar principalmente
matemática. Eu tinha física, álgebra, geometria,
astronomia, grego e latim. Infelizmente, muitos livros de que eu precisava
não haviam sido escritos em relevo a tempo para que eu
começasse com as turmas e me faltava equipamento importante para
alguns estudos. Eu estava em turmas muito grandes e era impossível
que os professores me dessem instrução especial. A srta.
Sullivan era obrigada a ler todos os livros e traduzir as instruções
dos professores para mim e pela primeira vez em 11 anos sua
preciosa mão parecia não estar à altura da tarefa.
Era preciso que eu escrevesse álgebra e geometria em aula e
resolvesse problemas de física, e eu só poderia fazer isso quando
comprasse uma máquina de escrever em braile que me permitisse
estabelecer os degraus e processos de meu trabalho. Não
conseguia seguir com meus olhos as figuras geométricas desenhadas no
quadro-negro e meu único meio de obter uma idéia clara delas era
reproduzi-las sobre uma almofada com arames retos e curvos,
com extremidades encurvadas e pontudas. Como diz o sr. Keith
em seu relato, 14 eu tinha de guardar na mente as letras das figuras,
a hipótese, a conclusão, a construção e a progressão da prova.
Numa palavra, cada estudo tinha seus obstáculos. Às vezes eu perdia
toda coragem e denunciava minhas emoções de um modo
que tenho vergonha de lembrar, especialmente porque os sinais de
minha perturbação foram posteriormente usados contra a srta.
Sullivan, a única, de todos os bondosos amigos que eu tinha lá, que
poderia consertar o torto e aplainar o áspero.
Pouco a pouco, porém, minhas dificuldades começaram a
desaparecer. Os livros em relevo e outros equipamentos
chegaram e me atirei ao trabalho com renovada confiança. Álgebra e
geometria eram os únicos estudos que continuavam a desafiar
meus esforços de compreendê-los. Como já disse antes, não
tinha nenhuma aptidão para a matemática; os pontos diferentes
não me eram explicados tão completamente quanto eu desejaria.
Os diagramas geométricos eram especialmente aflitivos
porque eu não conseguia ver a relação entre as diferentes partes,
mesmo na almofada. Só quando o sr. Keith me ensinou aquilo
tive uma idéia clara da matemática.
Eu começava a superar essas dificuldades quando ocorreu
algo que mudou tudo.
Pouco antes dos livros chegarem, o sr. Gilman começara a
advertir a srta. Sullivan de que eu estava trabalhando demais e,
apesar de meus sinceros protestos, ele reduziu o número de minhas
recitações. No início havíamos concordado que, se necessário,
eu levaria cinco anos para me preparar para a faculdade, mas
no final do primeiro ano o sucesso de meus exames mostrou à
srta. Sullivan, srta. Harbaugh (a diretora do sr. Gilman) e a uma
outra que eu poderia fazer sem muito esforço minha preparação
em mais dois anos. O sr. Gilman inicialmente concordou com
isso, mas quando minhas tarefas se tornaram um tanto mais complexas, insistiu que eu estava trabalhando demais e que devia
continuar em sua escola mais três anos. Não gostei desse plano, pois
queria entrar para a faculdade com a minha turma.
No dia 17 de novembro eu não estava bem e não fui à
escola. Embora a srta. Sullivan soubesse que minha indisposição
não era séria, ao saber dela o sr. Gilman declarou que eu estava
tendo um esgotamento e efetuou mudanças em meus estudos
que impossibilitariam meus exames finais com a minha turma.
Finalmente, a divergência de opiniões entre o sr. Gilman e a srta.
Sullivan fez com que mamãe retirasse minha irmã e eu da
Cambridge School.
Após um certo intervalo, combinou-se que eu continuaria
meus estudos com um professor particular, sr. Merton S. Keith,
de Cambridge. A srta. Sullivan e eu passamos o resto do inverno
com nossos amigos, os Chamberlins, 15 em Wrentham, a 45
quilômetros de Boston.
De fevereiro a julho de 1898, o sr. Keith vinha a Wrentham
duas vezes por semana e me ensinava álgebra, geometria, grego e
latim. A srta. Sullivan interpretava as aulas dele.
Em outubro de 1898, voltamos a Boston. Por oito meses o
sr. Keith me deu aulas cinco vezes por semana, em períodos de
cerca de uma hora. Ele explicava todas as vezes o que eu não
entendera na aula anterior, determinava novo trabalho e levava
para casa com ele os exercícios de grego que eu fizera durante a
semana na máquina de escrever, corrigia-os completamente e
os devolvia.
Desse modo, minha preparação para a faculdade continuou
sem interrupção. Eu achava muito mais fácil e agradável ser
ensinada sozinha do que ter as aulas na turma. Não havia pressa nem
confusão. Meu professor tinha muito tempo para explicar o
que eu não entendia, portanto eu avançava mais rápido e fazia
um trabalho melhor do que na escola. Ainda acho mais difícil
dominar problemas em matemática do que em minhas outras
matérias. Gostaria que a álgebra e a geometria tivessem sido pelo
menos metade tão fácil quanto as linguas e a literatura. Mas o sr.
Keith tornava interessante até a matemática; conseguia minimizar
os problemas a um tamanho suficientemente pequeno para que
penetrassem em minha mente. Mantinha-a alerta e ávida, treinando-a
para raciocinar claramente e buscar as conclusões de um
modo calmo e lógico, em vez de pular alucinadamente no escuro
e não chegar a lugar algum. Era sempre gentil e indulgente por
mais obtusa que eu fosse e, acreditem, minha burrice teria exaurido
com freqüência a paciência de Jó.
Nos dias 29 e 30 de junho de 1899 fiz meus exames finais para
o Radcliffe College. No primeiro dia tive grego elementar e latim
avançado, e no segundo, geometria, álgebra e grego avançado.
As autoridades da faculdade não permitiram que a srta.
Sullivan lesse as provas para mim, portanto, sr. Eugene C. Vining,
um dos professores da Instituição Perkins para Cegos, foi
contratado para copiar as provas para mim em braile. O sr. Vining
era um estranho para mim e só conseguia comunicar-se comigo
em braile. O inspetor de disciplina também era um estranho e
não tentou se comunicar comigo de modo algum.
O braile funcionou muito bem nas línguas, mas quando se tratou da geometria e da
álgebra surgiram as dificuldades. [Ver
carta ]
Eu estava dolorosamente perplexa e me senti desencorajada,
desperdiçando boa parte do precioso tempo, principalmente
em álgebra. É verdade que eu tinha familiaridade com todo o braile literário de uso comum nos Estados Unidos - inglês,
americano e Ponto Nova York; mas os diversos sinais e símbolos
em geometria e álgebra são muito diferentes nos três sistemas, e
eu usara apenas o braiLe inglês em minha álgebra.
Dois dias antes dos exames, o sr. Vining enviou-me uma
cópia em braile de uma velha prova de álgebra de Harvard. Para meu
desalento descobri que estava na notação americana. Sentei-me
imediatamente e escrevi para o sr. Vining, pedindo-lhe que
me explicasse os sinais. Na volta do correio recebi outra prova e uma
tabela de sinais, e me pus a trabalhar para aprender a notação. Na
noite anterior ao exame de álgebra, porém, enquanto eu lutava
com alguns exemplos muito complicados, não conseguia apreender
as combinações de parêntese, colchete e radical. Sr. Keith e eu
ficamos desalentados e cheios de maus pressentimentos para o
dia seguinte; mas fomos para a faculdade um pouco antes do
início dos exames e o sr. Vining me explicou mais amplamente os
simbolos americanos.
Em geometria, minha dificuldade principal era estar acostumada
a ler as questões sempre em linhas impressas, ou tê-las
soletradas na minha mão; e de algum modo, embora as questões
estivessem bem diante de mim, eu achava o braile confuso e não
conseguia fixar claramente na mente o que estava lendo. Mas quando
enfrentei a álgebra, passei por um momento ainda pior. Os
sinais, que aprendera tão recentemente e que pensara conhecer
me deixaram perplexa. Além disso, eu não conseguia ver o que
escrevia em minha máquina. Sempre fizera meu trabalho em braile
ou na cabeça. O sr. Keith confiara demais na minha capacidade
de resolver problemas mentalmente e não me treinara para
escrever os papéis do exame. Em conseqüência disso, meu trabalho
foi penosamente lento e tive de ler repetidamente os exemplos
antes de poder formar qualquer idéia do que precisava fazer. Na
verdade, não tenho certeza de ter lido todos os sinais corretamente.
Achei muito difícil manter o sangue-frio.
Mas não ponho a culpa em ninguém. O conselho
administrativo de Radcliffe não percebeu como estavam tornando meus
exames difíceis, assim como não compreenderam as dificuldades
peculliares que eu tinha de sobrepujar. No entanto, se involuntariamente
colocaram obstáculos no meu caminho, tenho o consolo
de saber que os superei todos.
CAPÍTULO XX
A luta para ser admitida na faculdade terminara e agora
podia entrar em Radcliffe quando quisesse. Antes que eu
entrasse para lá, contudo, foi considerado melhor que eu estudasse
outro ano com o sr. Keith. Assim, apenas no outono de 1900
meu sonho de entrar para a faculdade se realizou.
Lembro-me do meu primeiro dia em Radcliffe, um dia muito
interessante para mim. Eu ansiara por ele há anos. Uma poderosa
força interior, mais forte do que a persuasão de meus amigos,
mais forte até do que os arrazoados do meu coração, impelira-me
a experimentar minha força pelos padrões dos que vêem e
ouvem. Eu sabia que havia obstáculos no caminho, mas estava
ansiosa para superá-los. Levara no coração as palavras do sábio
romano que dissera: "Ser banido de Roma é apenas viver fora de
Roma". Excluída dos grandes caminhos do conhecimento, fui
compelida a fazer a jornada através do país por estradas não
freqüentadas - só isso-; e sabia que na faculdade havia muitos
atalhos onde eu poderia estar em contato com moças que pensavam,
amavam e lutavam como eu.
Comecei meus estudos com avidez. À minha frente eu via abrir-se
um novo mundo de beleza e luz e sentia em mim a capacidade
de conhecer todas as coisas. Na terra maravilhosa da Mente eu
seria tão livre quanto qualquer um. As pessoas, cenários, maneiras,
alegrias e tragédias dessa terra seriam intérpretes vivas e tangíveis
do mundo real. As salas de palestras enchiam-se com o espírito
dos grandes e dos sábios e eu achava que os professores eram a
corporificação da sabedoria. Se desde então aprendi que a
realidade é diferente, não direi a ninguém.
Mas logo descobri que a faculdade não era bem o liceu
romântico que eu imaginara. Muitos sonhos que tinham encantado
minha inexperiência jovem tornaram-se marcadamente menores
e "se desvaneceram à luz do cotidiano". Gradualmente comecei
a descobrir que havia desvantagens em ir para a faculdade.
Uma das que mais senti, e ainda sinto, é a falta de tempo. Eu
e minha mente costumávamos ter tempo para pensar, refletir.
Sentávamos juntas ao anoitecer e ouvíamos as melodias interiores
do espírito, que se ouve apenas em momentos de lazer, quando
as palavras de algum poeta amado toca uma corda profunda e
doce na alma até então silenciosa. Na faculdade, porém, não há
tempo para comungar com os próprios pensamentos. Parece que
se vai para a faculdade para aprender, não para pensar. Ao se
entrar pelos portais do aprendizado, deixam-se os mais caros
prazeres - solidão, livros e imaginação - do lado de fora com
os pinheiros sussurrantes. Acho que devo encontrar algum
conforto na idéia de que estou amealhando tesouros para usufruto
futuro, mas sou imprevidente o bastante para preferir a alegria
atual a estocar as riquezas para um dia de chuva.
Meus estudos no primeiro ano foram francês, alemão,
história, composição de inglês e literatura inglesa. No curso de
francês li alguns trabalhos de Corneille, Moliêre, Racine, Alfred
de Musset e Sainte-Beuve, e no de alemão os trabalhos de
Goethe e Schiller. Passei rapidamente em revista todo o período
da história da queda do Império Romano ao século XVIII, e
na literatura inglesa estudei criticamente os poemas de Milton
e a Aeropagitica.
Perguntam-me freqüentemente como supero as condições
peculiares em que trabalho na faculdade. Na sala de aula fico, é
claro, praticamente só. O professor é tão remoto como se
estivesse falando através de um telefone. As palestras são soletradas
em minha mão tão rapidamente quanto possível e boa parte da
individualidade do palestrante perde-se para mim no esforço de
manter a corrida. As palavras voam por minha mão como cães
de caça perseguindo uma lebre que eles perdem com freqüência.
Mas quanto a isso não acho que me saia muito pior do que as
moças que tomam notas. Se a mente está ocupada com o processo
mecânico de ouvir e colocar palavras no papel numa velocidade
atabalhoada, não creio que se preste muita atenção ao tema sob
consideração ou à maneira como esse é apresentado. Não posso
tomar notas durante as palestras porque minhas mãos estão ocupadas
ouvindo. Geralmente anoto rapidamente o que lembro quando
chego em casa. Escrevo os exercícios, os temas diários, as criticas e
os testes, os exames do meio do ano e os finais em minha máquina
de escrever, para que os professores não tenham qualquer dificuldade
em saber como sei pouco. Quando comecei o estudo da
prosódia latina, inventei e expliquei a meu professor um sistema de
sinais indicando as diferentes variações e quantidades.
Uso a máquina de escrever Hammond. Tentei muitas
máquinas e achei que a Hammond é mais bem adaptada às necessidades
peculiares do meu trabalho. Com essa máquina podem ser
usadas barras de tipos móveis e pode-se ter várias barras, cada
qual com um conjunto diferente de tipos - gregos, franceses ou
matemáticos, segundo o que se queira escrever. Sem ela, duvido
que eu pudesse ir para a faculdade.
Muitos poucos livros exigidos nos diversos cursos são
impressos para os cegos e sou forçada a tê-los soletrados em minha
mão. Conseqüentemente, preciso de mais tempo para preparar
minhas lições do que as outras moças. A parte manual leva mais
tempo e tenho perplexidades que elas não têm. Há dias em que a
grande atenção que preciso dar a detalhes abrasa meu espírito, e
a idéia de que preciso passar horas lendo uns poucos capítulos,
enquanto no mundo lá fora as outras moças estão rindo, cantando
e dançando, me deixa revoltada; mas logo recupero minha
resistência e expulso o desagrado do meu coração com risos. Porque,
afinal, todo mundo que deseja obter verdadeiro conhecimento
precisa escalar a Colina da Dificuldade sozinho, e já que não há
nenhuma estrada fácil para o cume, preciso ziguezaguear ao meu
próprio modo. Escorrego e recuo muitas vezes, caio, fico parada,
corro à beira de obstáculos escondidos, perco a paciência,
encontro o caminho de novo e o conservo melhor; ando com
dificuldade para a frente, avanço um pouquinho, sinto-me
encorajada, fico mais ávida, subo mais alto e começo a ver o horizonte
amplo. Cada luta é uma vitória. Mais um esforço e eu alcanço a
nuvem luminosa, as profundezas azuis do céu, as regiões elevadas
do meu desejo. Mas nem sempre estou sozinha nessas lutas. O sr.
William Wade e o sr. E. E. Allen, diretor da Instituição Pensilvânia
para a Instrução dos Cegos, conseguem-me muitos livros que
preciso em relevo. A atenção deles tem sido de uma tal ajuda e
incentivo para mim que jamais poderão ter noção dela algum dia.
No ano passado, meu segundo ano em Radcliffe, estudei
composição em inglês, a Bíblia como literatura inglesa, os
governos da América e Europa, as odes de Horácio e comédia latina.
A turma de composição foi a mais agradável e muito viva. As
palestras foram sempre interessantes, vivazes e espirituosas, pois
o professor, sr. Charles Townsend Copeland, 16 mais do que qualquer
outro que tive até este ano, faz a literatura reviver diante do
aluno em todo seu frescor e poder original. Por uma curta hora
nos é permitido beber na eterna beleza dos velhos mestres sem
interpretações ou explicações desnecessárias. O aluno se rejubila
ante os seus belos pensamentos. E usufrui com toda a sua alma o
doce trovão do Velho Testamento, esquecendo a existência de
Javé e Eloim; e vai para casa sentindo que teve "um vislumbre
daquela perfeição em que espírito e forma habitam em imortal
harmonia; verdade e beleza produzindo um novo broto no antigo
caule do tempo".
Este ano é o mais feliz porque estou estudando matérias que
me interessam especialmente, economia, literatura elizabetana,
Shakespeare, com o professor George L. Kittredge, 17 e história
da filosofia com o professor Josiah Roycel18 Pela filosofia
entra-se com a solidariedade da compreensão nas tradições de eras
remotas e outros modos de pensamento que algum tempo atrás
pareciam estranhas e sem sentido.
Entretanto, a faculdade não é a Atenas universal que eu
pensara ser. Lá não encontramos os grandes e sábios face a face;
não sentimos nem seu toque vivo. Eles estão lá, é verdade; mas
parecem mumificados. Precisamos extrai-los do muro incrustado
do conhecimento e dissecá-los, analisá-los, antes de nos certificarmos
de que temos um Milton ou um Isaías e não apenas uma
imitação inteligente. Parece-me que muitos estudiosos se esquecem
de que o prazer com as grandes obras da literatura depende
mais da profundidade de nossa simpatia do que de nossa
compreensão. O problema é que pouquíssimas de suas laboriosas
explicações ficam na memória. A mente as deixa cair como um
ramo livra-se do fruto maduro demais. É possível se conhecer
uma flor, raiz, caule e tudo e todos os processos do crescimento
e mesmo assim não se apreciar a flor fresca banhada no orvalho
do céu. Eu perguntava repetidamente, impaciente: "Por que me
preocupar com essas explicações e hipóteses?". Elas voam daqui
para lá em meu pensamento como pássaros cegos movendo-se
no ar com asas ineficazes. Minha intenção não é fazer objeções a
um conhecimento completo das obras famosas que lemos.
Minha objeção dirige-se apenas aos intermináveis comentários e
perturbadoras críticas que só ensinam uma coisa: há tantas
opiniões quanto homens. Mas quando um grande erudito como
o professor Kittredge interpreta o que o mestre disse, é "como se
uma nova visão fosse dada ao cego". Ele traz de volta Shakespeare,
o poeta.
Contudo, há momentos em que anseio varrer para longe
metade das coisas que esperam que eu aprenda, pois a mente
sobrecarregada não pode usufruir o tesouro que amealhou a um
custo enorme. Acho que é impossível ler num dia quatro ou cinco
livros diferentes em linguas diferentes e tratar de temas amplamente
diversos sem perder de vista o próprio motivo por que se
lê. Quando se lê apressada ou nervosamente, tendo em mente
provas escritas e exames, o cérebro torna-se atravancado com
um monte de quinquilharias escolhidas para as quais não parece
haver muita utilidade. No presente, minha mente está tão cheia de
assuntos heterogêneos que quase me desespero de poder colocá-la
em ordem. Sempre que entro na região que era o reino da minha
mente sinto-me como a história do macaco numa loja de louças.
Uma miscelânea de conhecimentos desaba sobre minha cabeça
como granizo, e quando tento escapar dela, demônios-temas e
ondinas de faculdade de todos os tipos me perseguem até que
desejo - ah, possa eu ser perdoada pelo desejo malvado! -
poder esmagar os ídolos que vim cultuar.
Mas os exames são os principais bichos-papões de minha
vida na faculdade. Embora eu os tenha enfrentado muitas vezes e
os tenha derrotado e feito comer poeira, mesmo assim erguem-se
de novo e me ameaçam com olhares pálidos, até que, como Bob
Acres, 19 sinto minha coragem se esvaindo das pontas dos dedos.
Os dias que antecedem tais provas são gastos em preparar
rapidamente a mente com fórmulas místicas e datas indigeríveis -
dietas impalatáveis - até se desejar que livros, ciência e você
mesma estejam, todos, no fundo do mar.
Finalmente chega a hora temível. Você é um ser favorecido
caso se sinta preparado e possa convocar na hora certa os
pensamentos-padrão que o ajudarão naquele supremo esforço.
Acontece com muita freqüência que o chamado de sua
trombeta não é atendido. É de causar perplexidade e exasperação
que exatamente no momento em que você precisa da memória e
de um bom senso de discriminação, essas faculdades criem suas
próprias asas e voem para longe. Os fatos que você estocou
com infinito esforço invariavelmente lhe fogem numa emergência.
"Faça um breve relato de Huss e sua obra." Huss? Quem é
ele e o que fez? O nome parece estranhamente familiar. Você
vasculha seu saco de fatos históricos da mesma forma com que
procuraria um pedaço de seda num saco de retalhos. Você tem
certeza de que ele está em algum lugar de sua mente perto do alto
- você o viu no outro dia quando estava procurando o início da
reforma. Mas onde está agora? Você extrai todo tipo de
quinquilharia de conhecimentos - revoluções, cismas, massacres,
sistemas de governo -, mas onde está Huss? Você se surpreende
com todas as coisas que sabe que não estão na prova. Em
desespero, pega o saco e o esvazia, e lá no canto está o seu homem,
ruminando serenamente seus próprios pensamentos,
inconsciente da catástrofe que fez cair sobre você.
Só então o inspetor de prova a informa que o tempo se
esgotou. Com uma sensação de intenso desgosto, você chuta o
lixo para um canto e vai para casa, a cabeça cheia de esquemas
revolucionários para abolir o direito divino dos professores de
fazer perguntas sem o consentimento do interrogado.
Ocorreu-me que nas duas ou três últimas páginas deste
capítulo utilizei imagens que farão o riso se virar contra mim. Ah, ali
estão elas - as metáforas mistas zombando e se pavoneando
ante mim, apontando para o macaco na loja de louça atacado
pelo granizo e os bichos-papões de aparência pálida, uma espécie
não analisada! Que continuem zombando! As palavras
descrevem tão precisamente a atmosfera em que vivo, de idéias
que tropeçam e se acotovelam, que piscarei para elas de vez
e assumirei um ar decidido para declarar que minhas idéias sobre a
faculdade mudaram.
Enquanto meus dias em Radcliffe ainda pertenciam ao futuro,
estavam envolvidos por um halo romântico que perderam
depois; mas na transição do romântico para o real eu aprendi
muitas coisas que jamais teria conhecido se não tivesse tentado a
experiência. Uma delas é a preciosa ciência da paciência, que nos
ensina que deveríamos levar nossa educação como fazemos um
passeio no campo, prazerosamente, com a mente aberta de modo
hospitaleiro a impressões de todos os tipos. Tal conhecimento inunda
a alma invisível com uma silenciosa onda de pensamento cada vez
mais profunda. "Conhecimento é poder." Mais que tudo, conhecimento
é felicidade, porque ter conhecimento - amplo, profundo
- é saber distinguir os objetivos verdadeiros dos falsos e coisas
sublimes das comuns. Conhecer as idéias e os feitos que marcaram
o progresso do homem é sentir as grandes pulsações da
humanidade através dos séculos; e se alguém não sente nessas
pulsações um impulso em direção ao céu, deve estar realmente
surdo às harmonias da vida.
CAPÍTULO XXI
Até agora tenho esboçado os acontecimentos de minha vida,
mas não mostrei o quanto dependo dos livros, não apenas
para o lazer e pela sabedoria que trazem a todos que lêem, mas
também pelo conhecimento que alcança outros através de seus
olhos e ouvidos. Na verdade, os livros são tão mais importantes
na minha educação do que na dos outros, que recuarei à época
em que comecei a ler.
Li minha primeira história coerente em maio de 1887, aos
sete anos de idade, e daquele dia até hoje devorei tudo em
forma de página impressa que chega ao alcance de meus dedos
famintos. Como já disse, não estudei regularmente durante os
primeiros anos de minha educação; nem li de acordo com a
regra.
No início eu tinha apenas alguns livros impressos em relevo
- "leitores" para principiantes, uma coleção de histórias para
crianças e um livro sobre a terra chamado Our world. Acho que
foi tudo; mas os lia tão repetidamente que as palavras ficaram
gastas e pressionadas a ponto de eu mal conseguir decifrá-las. Às
vezes a srta. Sullivan lia para mim, soletrando em minha mão
pequenas histórias e poemas que sabia que eu entenderia; mas eu
preferia ler sozinha a que lessem para mim, porque gostava de ler
repetidamente as coisas que me agradavam.
Foi durante minha primeira visita a Boston que realmente
comecei a ler a sério. Era-me permitido passar uma parte de
cada dia na biblioteca da instituição, perambular de estante em
estante e retirar qualquer livro no qual meus dedos aterrissassem.
E eu lia, mesmo que entendesse uma ou duas palavras em dez ou
duas numa página inteira. As próprias palavras me fascinavam,
mas eu não tinha consciência do que lia. Minha mente, porém,
deve ter sido muito impressionável naquele período, pois reteve
muitas palavras e frases inteiras de cujo significado eu não tinha a
mais leve pista; e, posteriormente, quando comecei a falar e
escrever, essas palavras e frases surgiam num vislumbre muito
natural, deixando meus amigos impressionados com a riqueza de
meu vocabulário. Devo ter lido partes de muitos livros (naqueles
primeiros dias acho que não li nenhum livro completamente) e
uma grande quantidade de poesia desse modo incompreensível,
até descobrir Little lord Fauntleroy, que foi o primeiro livro
importante que li compreendendo.
Certo dia minha professora me achou num canto da biblioteca
folheando as páginas de A letra escarlate. Eu tinha cerca de
oito anos. Lembro-me de ela ter me perguntado se eu gostara da
pequena Pearl e explicou algumas das palavras que me haviam
intrigado. Então me contou que tinha uma linda história sobre
um garoto e que estava certa de que me agradaria mais do que
A letra escarlate. A história era Little lord Fauntleroy e ela prometeu
lê-la no próximo verão. Mas só começamos a história em agosto;
as primeiras semanas de minha permanência à beira-mar foram
tão cheias de descobertas e animação que esqueci a própria
existência dos livros. Depois a srta. Sullivan foi visitar alguns amigos
em Boston, deixando-me por um breve período.
Quando voltou, praticamente a primeira coisa que fizemos
foi começar Little lord Fauntleroy. Lembro-me nitidamente do
momento e do lugar em que lemos os primeiros capítulos da fascinante
história infantil. Era uma quente tarde de agosto. Estávamos sentadas
juntas numa rede pendurada em dois pinheiros solenes a curta
distância da casa. Tínhamos lavado rapidamente a louça depois do
almoço, a fim de podermos ter uma tarde tão comprida quanto
possível para a história. Enquanto andávamos rapidamente pela
relva longa em direção à rede, os gafanhotos enxameavam em
torno de nós e se prendiam às nossas roupas, e lembro que a srta.
Sullivan insistiu em retirá-los todos antes de sentarmos, o que me
pareceu uma desnecessária perda de tempo. A rede estava coberta
de agulhas de pinheiro, pois não foi usada enquanto minha professora
estivera fora. O sol quente brilhava nas agulhas de pinheiro e
desprendia seu perfume. O ar estava embalsamado, com um
toque de mar. Antes de começarmos a história, a srta. Sullivan explicou-me
o que sabia que eu não entenderia, e enquanto
continuávamos a ler explicava-me as palavras não-familiares. No
início havia muitas palavras que eu desconhecia e a leitura era
constantemente interrompida; mas, assim que passei a compreender
totalmente a situação, fiquei tão absorvida na história que não notei
meras palavras, e temo ter ouvido com impaciência as explicações
que a srta. Sullivan achou necessárias. Quando seus dedos ficaram
cansados demais para soletrar mais uma palavra, tive pela primeira
vez uma sensação aguda da minha privação. Peguei o livro e tentei
tatear as letras com um anseio tão intenso que jamais esquecerei.
Posteriormente, ante meu ansioso pedido, o sr. Anagnos
mandou que a história fosse impressa em relevo, e a li tão repetidamente
que quase a sabia de cor; e por toda a minha infância Little lord
Fauntleroy foi meu doce e gentil companheiro. Dei esses detalhes,
correndo o risco de entediar, porque contrastam vivamente com
minhas vagas, mutáveis e confusas lembranças das primeiras leituras.
De Little lord Fauntleroy dato o início de meu verdadeiro
interesse pelos livros. Durante os dois anos seguintes li muitos livros
em minha casa e em minhas visitas a Boston. Não consigo me
lembrar de todos ou em que ordem os li; mas sei que entre eles
estavam Greek heroes (Heróis gregos), Fábulas, de La Fontaine, O
Livro das maravilhas para meninos e meninas, de Hawthorne, Bible stories
(Histórias da Bíblia), Contos de Shakespeare, de Lamb, A children
history of England (Uma história da Inglaterra para crianças),
de Dickens, As mil e uma noites, A família Robinson, The pilgrim's progress
(O progresso do peregrino), Robinson Crusoé, Mulherzinhas e Heidi
uma linda historiazinha que depois li em alemão. Li-os nos
intervalos entre estudo e lazer com uma sensação de prazer cada vez
maior. Não os estudei ou analisei - não sabia se eram bem
escritos ou não; nunca pensei sobre estilo ou autorias. Eles depositaram
seus tesouros a meus pés e eu os aceitei como se aceita o
sol e o amor dos amigos. Adorei Mulherzinhas porque me deu
um senso de parentesco com meninas e meninos que podiam ver
e ouvir. Apesar de minha vida circunscrita, eu tinha de olhar entre
as capas dos livros notícias do mundo que jaziam fora do meu.
Não liguei muito para The pilgrim's progress, que penso não ter
terminado, ou para as Fábulas. Li as Fábulas de La Fontaine
primeiro numa tradução inglesa e não gostei muito. Mais tarde li
o livro de novo, em francês, e descobri que, apesar dos vivos
quadros pintados pelas palavras e o maravilhoso domínio da
linguagem, não passei a gostar mais dele. Não sei por que, mas
histórias em que animais falam e agem como seres humanos nunca
me atraíram muito. As ridículas caricaturas dos animais ocupam
minha mente com a exclusão da moral.
Além disso, La Fontaine raramente se dirige a nosso senso
moral mais elevado, se é que chega a fazê-lo. Os acordes mais
altos que alcança são os da razão e do egoísmo. Por todas as
fábulas perpassa a idéia de que a moralidade do homem brota
inteiramente do egoísmo, e que se este é dirigido e controlado pela
razão, segue-se necessariamente a felicidade. Bem, tanto quanto posso
julgar, o egoísmo é a raiz de todo o mal; mas certamente
posso estar errada, pois La Fontaine teve muito mais oportunidades de
observar os homens do que provavelmente terei algum dia. Não
faço tanta objeção às fábulas cínicas e satíricas quanto àquelas em
que momentosas verdades são ensinadas por macacos e raposas.
Mas adoro The jungle book (O livro da selva) e Wild animals I
have known (Animais selvagens que conheci). Tenho um genuíno
interesse nos animais em si, porque são verdadeiros, e não caricaturas
de homens. Simpatiza-se com seus amores e ódios, ri-se de
suas comédias e chora-se ante suas tragédias. E se apontam uma
moral, isso é feito de modo tão sutil que não percebemos.
Minha mente abria-se natural e alegremente para uma
concepção da Antigüidade. A Grécia, a Grécia antiga, exercia um
misterioso fascínio sobre mim. Em minha fantasia, os deuses e
deusas pagãos ainda andavam pela terra e conversavam com os
homens face a face, e no meu coração eu secretamente construía
altares para aqueles que mais amava. Conhecia e amava toda a
tribo de ninfas, heróis e semideuses - não, não todos, pois a
crueldade e a cobiça de Medéia e Jasão eram monstruosas
demais para serem perdoadas, e eu costumava cogitar por que os
deuses permitiam que agissem errado e depois os puniam por
serem maus. E o mistério ainda está sem solução. Com freqüência cogito como
God can dumbness keep
While Sin creeps grinning
through His house of Time. 20
[Deus pode manter-se mudo/enquanto o pecado se arrasta sorrindo por
Sua casa do Tempo. (Tradução livre. N da T)]
Foi a Ilíada que tornou a Grécia o meu paraíso. Eu conhecia
a história de Tróia antes de lê-la no original, e conseqüentemente
tive pouca dificuldade em ter acesso aos tesouros das palavras
gregas depois que ultrapassei as fronteiras da gramática. A grande
poesia, seja escrita em grego ou inglês, não precisa de outro
intérprete que um coração que responde. Se a hoste daqueles que
tornam as grandes obras dos poetas odiosas com suas análises,
imposições e comentários laboriosos pudesse aprender essa
simples verdade! Não é necessário poder definir cada palavra,
decompô-la em suas partes principais e determinar sua posição
gramatical na sentença para se compreender e apreciar um belo
poema. Sei que meus cultos professores encontraram na Ilíada
riquezas maiores do que algum dia encontrarei. Mas não sou avara;
fico contente que outros sejam mais sábios do que eu. No entanto,
com todo o amplo e abarcante conhecimento deles, não podem
mensurar seu prazer com aquele esplêndido épico, nem eu.
Quando leio as mais belas passagens da Ilíada, tenho consciência
de um sentido de alma que me ergue acima das circunstâncias
estreitas e atravancantes de minha vida. Minhas limitações físicas
são esquecidas - meu mundo ascende e a extensão, a amplitude
e a liberdade dos céus são minhas!
Minha admiração pela Eneida não é tão grande, mas ainda
assim é verdadeira. Li-a tanto quanto possível sem a ajuda de notas ou
do dicionário, e sempre gostei de traduzir os episódios que me
agradaram especialmente. A capacidade de Virgílio para pintar quadros
com palavras às vezes é maravilhosa; mas seus deuses e homens
movem-se por cenas de paixão, conflitos, piedade e amor como as
graciosas figuras num baile de máscaras elizabetano quando, na Ilíada,
dão três saltos e continuam cantando. Virgílio é sereno e adorável
como um Apoio de mármore à luz do luar, Homero é um belo
jovem cheio de vida em pleno sol, com o vento nos cabelos.
Como é fácil voar nas asas de papel! A jornada de Greek heroes
à Ilíada não se fazia num dia, nem era totalmente agradável. Seria
possível dar a volta ao mundo muitas vezes enquanto eu palmilhava
com dificuldade meu caminho pelos labirintos de gramáticas e
dicionários, ou caía naquelas armadilhas medonhas chamadas exames,
armadas por escolas e faculdades para a confusão daqueles
que buscam o conhecimento. Suponho que esse tipo de Progresso
do Peregrino fosse justificado no final; mas me parecia interminável,
apesar das agradáveis surpresas que vinham ao meu encontro
de vez em quando ao dobrar a estrada.
Comecei a ler a Bíblia muito antes de poder entendê-la. Agora
me parece estranho que tenha havido uma época em que meu
espírito fosse surdo a suas maravilhosas harmonias; mas lembro-me bem
de uma manhã chuvosa de domingo em que, não tendo nada
mais a fazer, implorei à minha prima que lesse para mim uma
história da Bíblia. Embora ela achasse que eu não entenderia,
começou a soletrar em minha mão a história de José e seus irmãos.
Por alguma razão, tal história não me interessou. A linguagem
pouco comum e a repetição fizeram a história parecer irreal e
remota na terra de Canaã e adormeci, e fui para a terra de Nod
antes que os irmãos voltassem com o casaco de muitas cores
para a tenda de Jacó e lhes contasse a malvada mentira! Não
consigo entender por que as histórias dos gregos eram tão cheias
de encanto para mim e as da Bíblia tão despidas de interesse, a
não ser que fosse pelo fato de eu ter conhecido vários gregos em
Boston e sido inspirada por seu entusiasmo com as histórias de
seu país, ao passo que jamais conhecera um único hebreu ou
egípcio, e por isso concluísse que eram apenas bárbaros e as histórias
sobre eles provavelmente todas inventadas, hipótese esta que
explicava as repetições e os nomes esquisitos. De modo bem
curioso, jamais me ocorreu chamar os nomes próprios gregos de
"esquisitos".
No entanto, como falar das glórias que desde então descobri
na Bíblia? Eu a leio por anos com uma noção cada vez mais
ampla de alegria e inspiração; e eu a amo como a nenhum outro
livro. Ainda há muito na Bíblia contra o qual cada instinto meu se
rebela, tanto que lamento a necessidade que me impeliu a lê-la
totalmente do princípio ao fim. Acho que o conhecimento que
obtive de sua história e fontes não me compensa pelos desagradáveis
detalhes para os quais chamou minha atenção. De minha
parte desejo, com o sr. Howells, que a literatura do passado
pudesse ser expurgada de tudo que contém de feio e bárbaro,
embora eu objetasse tanto quanto qualquer um que essas grandes
obras fossem enfraquecidas ou falseadas.
Existe algo impressionante, horrível, na simplicidade e no
modo direto terrível do Livro de Ester. Poderia haver algo mais
dramático do que a cena em que Ester enfrenta seu malvado
senhor? Ela sabe que sua vida está nas mãos dele; não há ninguém
para protegê-la de sua ira. Mesmo assim, superando seu medo
feminino, ela o aborda, animada pelo mais nobre patriotismo e
com apenas um pensamento: "Se eu morrer, morro; mas se
viver, meu povo viverá".
A história de Rute também - como é oriental! Contudo,
como é diferente a vida desse pessoal simples do campo da dos
habitantes da capital persa! Rute é tão leal e amorosa que não
podemos deixar de amá-la quando se mantém com os ceifadores
em meio ao milho oscilante. Seu espírito belo e altruísta brilha
como uma estrela luminosa na noite de uma era obscura e cruel.
Amor como o de Rute, amor que pode se erguer acima de credos
conflitantes e preconceitos raciais profundamente enraizados, é
dificil de achar em todo o mundo.
A Bíblia me dá a sensação profunda e reconfortante de
que as "coisas visíveis são temporais e as coisas invisíveis são
eternas".
Não me recordo de um tempo, desde que amo os livros,
em que não tenha amado Shakespeare. Não posso dizer exatamente
quando comecei Contos de Shakespeare, de Lamb, mas sei que
os li a princípio com uma compreensão e um maravilhamento de
criança. Macbeth é o que parece mais ter me impressionado. Uma
leitura foi suficiente para imprimir cada detalhe da história em
minha memória para sempre. Durante muito tempo os fantasmas e
feiticeiras me perseguiram até mesmo na Terra do Sonho. Eu
podia ver, realmente ver, a adaga e a pequena mão branca de lady
Macbeth - a mancha medonha era tão real para mim quanto
para a rainha devastada pela dor.
Li Rei Lear pouco depois de Macbeth e jamais esquecerei a
sensação de terror ao chegar à cena em que os olhos de Glos ter
são arrancados. Fui dominada pela raiva, meus dedos se
imobilizaram e permaneci rígida por um longo momento, o sangue
pulsando nas têmporas e todo o ódio que uma criança podia
sentir concentrado em meu coração.
Devo ter tomado conhecimento de Shylock e Satã mais ou
menos ao mesmo tempo, pois os dois personagens durante
muito tempo foram associados em minha mente. Lembro-me de
que lamentava por eles. Sentia vagamente que não podiam ser bons
mesmo se quisessem, pois ninguém parecia pronto a ajudá-los ou
dar-lhes uma boa chance. Mesmo agora, não consigo condená-los
completamente em meu coração. Há momentos em que sinto
que os Shylocks, os Judas e mesmo o Demônio são aros
quebrados na grande roda do bem que se tornará inteira no devido
tempo.
Parece estranho que minha primeira leitura de Shakespeare
devesse deixar em mim lembranças tão desagradáveis. As peças
luminosas, suaves e fantasiosas - as de que mais gosto -
parecem não ter me impressionado no início, talvez porque
refletissem a felicidade e a alegria habituais da vida de uma criança.
Mas "não há nada mais caprichoso do que a memória de uma
criança: o que ficará e o que se perderá".
Desde então tenho lido as peças de Shakespeare muitas
vezes e conheço porções delas de cor, mas não consigo saber
quais são as de que mais gosto. Meu encantamento com elas é tão
variado quanto meus estados de espírito. As pequenas canções e
os sonetos têm para mim um significado tão fresco e maravilhoso
quanto os dramas. Mas, com todo meu amor por Shakespeare, é
com freqüência um trabalho fatigante ler todos os significados
entre as linhas dados por críticos e comentaristas. Eu tentava
lembrar-me das interpretações deles, mas essas me desencorajavam e
irritavam; assim, fiz um acordo secreto comigo mesma de não
mais tentar. Só quebrei esse acordo em meu estudo de Shakespeare
com o professor Kittredge. Sei que há muitas coisas em
Shakespeare e no mundo que não entendo, e fico contente de
ver véu após véu levantando-se gradualmente, revelando novas
esferas de idéias e beleza.
Depois da poesia, amo a história. Li todas as obras
históricas nas quais consegui pôr as mãos, de um catálogo de fatos
secos e datas mais secas ainda à imparcial e pitoresca History of the
English people (História do povo inglês), de Green; de History of
Europe (História de Europa), de Freeman, a Middle Ages (Idade
Média), de Emerton. O primeiro livro que me deu uma
verdadeira noção do valor da história foi World history (História
Mundial), de Swinton, que ganhei em meu décimo terceiro
aniversário. Embora talvez não seja mais considerado embasado,
mesmo assim o guardo como um de meus tesouros. Dele aprendi
que as raças dos homens se espalharam de terra a terra e
construíram grandes cidades; como alguns grandes governantes, titãs
terrenos, dominaram tudo e com uma palavra decisiva abriram
os portões da felicidade para milhões e os fecharam para Outros
milhões; como nações diferentes foram pioneiras na arte e no
conhecimento e desbravaram terreno para o desenvolvimento do
futuro; de que modo a civilização suportou o holocausto, como se
diz, de uma época degenerada e se ergueu de novo, como a Fênix,
entre os mais nobres filhos do Norte; e como, pela liberdade,
tolerância e educação, os grandes e sábios abriram caminho para a
salvação do mundo inteiro.
Em minhas leituras de faculdade familiarizei-me um pouco
com a literatura francesa e a alemã. O alemão põe a força antes
da beleza e a verdade antes da convenção, tanto na vida quanto
na literatura. Há uma veemência, um vigor esmagador em tudo
que ele faz. Quando fala, não é para impressionar os outros, mas
porque seu coração explodiria se não achasse um escoadouro
para as idéias que lhe ardem na alma.
Há também na literatura alemã uma fina reserva de que eu
gosto; mas sua principal glória é o reconhecimento, que nela
encontro, da potência redentora do amor auto-sacrificante da
mulher. Essa idéia difunde-se em toda a literatura alemã e é
misticamente expressa em Fausto, de Goethe:
All things transitory
But as symbols are sent
Earth's insufficiency
Here grows to event.
The indescribable
Here is done.
The Woman Soul lead us upward and on!
[Todas as coisas transitórias/são enviadas apenas como símbolos/A
insuficiência da Terra/aqui desabrocha em evento/O indescritível/aqui é
consumado/A Alma da Mulher nos eleva e nos conduz adiante. (Tradução
livre N.da T)]
De todos os escritores franceses que tenho lido, Molière
e Racine são os meus preferidos. Há boas coisas em Balzac e
passagens de Mérimée que nos atingem como uma viva rajada
de vento marinho. Alfred de Musset é insuportável! Admiro Victor
Hugo - seu gênio, seu brilhantismo, seu romantismo, embora
ele não seja uma de minhas paixões literárias. Mas Hugo, Goethe
e Schiller e todos os grandes poetas de todas as grandes nações
são intérpretes das coisas eternas, e meu espírito reverentemente
penetra nas regiões onde a Beleza, a Verdade e a Bondade são
uma só.
Temo ter escrito demais sobre meus amigos livros e
mesmo assim mencionando apenas os autores de que mais gosto;
desse fato pode-se facilmente supor que meu círculo de amigos
é muito limitado e pouco democrático, o que seria uma impressão
bastante errônea. Gosto de muitos escritores por razões
diversas - Carlyle por sua aspereza e seu desprezo pelas
imposturas; Wordsworth, por ensinar a unicidade do homem e da
natureza; encontro um requintado prazer nas estranhezas e surpresas
de Hood, no engenho de Herrick e no palpável perfume de
lirio e rosa de seus versos; gosto de Whittier por seus entusiasmos
e retidão moral. Eu o conheci e a suave lembrança de
nossa amizade dobra o prazer que tenho ao ler seus poemas.
Adoro Mark Twain - quem não o adora? Os deuses também
o amaram e lhe puseram no coração todo tipo de sabedoria;
então, temendo que ele se tornasse um pessimista, envolveram
sua alma com um arco-íris de amor e fé. Gosto de Scott por
seu frescor, arrojo e ampla honestidade. Amo todos os escritores
cujas mentes, como a de Lowell, borbulham ao sol do
otimismo - fontes de alegria e boa vontade, com um ocasional
derramar de raiva e aqui e ali um spray curativo de solidariedade
e piedade.
Numa palavra, a literatura é a minha Utopia. Ali, não sou
deficiente. Nenhuma barreira dos sentidos me exclui do discurso
doce e gracioso de meus amigos livros. Eles me falam sem
embaraço ou constrangimento. As coisas que aprendi e as que
me foram ensinadas parecem ridiculamente sem importância
comparadas com "os grandes amores e as caridades celestiais"
dos livros.
CAPÍTULO XXII
Espero que meus leitores não tenham concluído do capítulo
anterior sobre livros que a leitura é meu único prazer; meus
prazeres e diversões são muitos e variados.
Mais de uma vez, no decorrer de minha história, referi-me a
meu amor pelo campo e os esportes ao ar livre. Bem pequena
ainda, aprendi a remar e a nadar, e durante o verão, quando estou
em Wrentham, Massachusetts, praticamente moro num bote.
Nada me dá mais prazer do que levar meus amigos para passear
num barco a remo quando me visitam. Claro que não consigo
guiar o bote muito bem. Geralmente alguém senta à popa e
maneja o leme enquanto eu remo. Contudo, às vezes remo sem leme.
É divertido tentar me orientar pelo cheiro das relvas aquáticas,
dos lirios e dos arbustos que crescem na praia. Uso remos com
alças de couro, que os mantêm em posição nas forquetas, e sei
pela resistência da água quando os remos estão nivelados. Gosto
de lutar com o vento e a correnteza. Nada é mais revigorante do
que tornar um firme botezinho obediente à nossa vontade e
músculos, deslizar levemente pelas ondulações cintilantes e
inclinadas e sentir o impulso contínuo, imperioso da água!
Também gosto de passear de canoa e acho que provocarei
um sorriso quando disser que gosto de fazê-lo especialmente nas
noites de luar. É verdade que não posso ver a lua escalar o céu
por trás dos pinheiros e navegar suavemente pelo firmamento,
traçando um caminho brilhante para seguirmos, mas sei que ela
está lá, e enquanto fico deitada nas almofadas e ponho minha
mão na água, fantasio que sinto o bruxulear de suas vestes quando
ela passa. As vezes um peixinho ousado escorrega entre meus
dedos e com freqüência um lirio d'água desliza contra a minha
mão. Muitas vezes, quando emergimos do abrigo de uma pequena
baía ou enseada, tenho a súbita noção da amplidão à minha volta.
Um calor luminoso parece me envolver. Se ele vem das árvores
que foram aquecidas pelo sol ou da água, nunca pude descobrir.
Tenho tido a mesma sensação estranha até no coração da cidade.
Sinto isso em noites e dias tempestuosos e gelados. É como o
beijo de lábios quentes no meu rosto.
Minha diversão favorita é navegar. No verão de 1901 visitei
Nova Escócia e tive oportunidades de conhecer o oceano. Após
passar alguns dias em Evangeline's Country, que o belo poema de
Longfellow envolveu numa rede de encantamento, a srta. Sullivan
e eu fomos para Halifax, onde ficamos a maior parte do verão.
O porto foi a nossa alegria, nosso paraíso. Que gloriosos passeios
de barco fizemos para Bedford Basin, McNabb's Island, York
Redoubt e para o Northwest Arm! E, à noite, que horas tranqüilas
e maravilhosas passamos à sombra dos grandes e silenciosos
navios de guerra. Ah, foi tudo tão interessante e bonito! A lembrança
disso é uma eterna alegria.
Certo dia tivemos uma experiência eletrizante. Havia uma
regata no Northwest Arm que teve a participação de barcos dos
diferentes navios de guerra. Embarcamos num barco à vela junto
com muitos outros para assistir às corridas. Centenas de pequenos
barcos à vela oscilavam próximos de um lado para o Outro e
o mar estava calmo. Quando as corridas haviam quase terminado
e nos dispúnhamos a voltar, uma pessoa do grupo notou uma
nuvem negra no céu, que cresceu, se espalhou e aumentou até
cobrir o céu inteiro. O vento começou a soprar e as ondas chocavam-se
raivosamente contra barreiras invisíveis. Nosso pequeno
barco enfrentou destemidamente a ventania; com as velas abertas e
as cordas tensas, ele parecia pousar no vento. Num momento girava
no turbilhão, no outro escalava subitamente uma onda gigante,
para ser atirado para baixo com um assobio e um uivo zangado. A
vela principal veio abaixo. Virando de bordo e bandeando, lutávamos com os ventos que sopravam impelindo-nos de um lado
para outro com uma fúria impetuosa. Nosso coração batia com
força, as mãos trêmulas de alvoroço, mas não de medo, pois
tínhamos coração de vikings e sabíamos que nosso capitão
dominava a situação. Ele enfrentara muitas tempestades com mão
firme e muita perícia marítima. Ao passarem por nós, o grande
navio e os barcos armados no porto nos saudaram e os
marinheiros gritaram cumprimentos ao capitão do único barquinho à
vela que se aventurara na tempestade. Finalmente, gelados,
famintos e cansados, chegamos ao pier.
Passei o último verão num recanto adorável de um dos mais
encantadores povoados da Nova Inglaterra. Wrentham,
Massachusetts, está associado a quase todas as minhas alegrias e
tristezas. Por muitos anos Red Farm, perto de King Philip's Pond,
lar do sr. J. E. Chamberlin e sua família, foi o meu lar. Lembro-me
com a maior gratidão da bondade daqueles queridos amigos e dos
dias felizes passados com eles. A doce companhia de seus filhos
significou muito para mim. Eu me juntava a todos os seus esportes,
perambulações pelos bosques e alegres brincadeiras na água.
O tagarelar dos pequenos e seu prazer com as histórias que eu lhes
contava de elfos e gnomos, heróis e ursos astuciosos são agradáveis
de lembrar. O sr. Chamberlin iniciou-me nos mistérios das
árvores e das flores do campo, até que, com o pequeno ouvido
do amor, escutei a seiva fluir do carvalho e vi o sol cintilar de
folha em folha. De modo que
Even as the roots, shut in the darksome earth,
Share in the tree-top's joyance, and conceive
Of sunshine and wide air and wingéd things,
By sympathy of nature, so do I
Give evidence of things unseen.
[Assim como as raízes, trancadas na terra escura,/partilham a alegria
do cimo da árvore e imaginam/o sol brilhante, o amplo ar e os seres
alados,/ por simpatia com a natureza, também o faço. (Tradução livre. N
da T.)]
Parece-me que há em cada um de nós a capacidade de
compreender impressões e emoções sentidas pela humanidade desde
o início. Cada indivíduo tem uma memória subconsciente da terra
verde e das águas murmurantes, e a cegueira e a surdez não
conseguem roubar esse dom das gerações passadas. Essa capacidade
herdada é uma espécie de sexto sentido - uma noção-de-alma
que vê, ouve e sente, em conjunto.
Tenho muitos amigos em Wrentham. Um deles é um esplêndido
carvalho, orgulho especial do meu coração. Levo todos os
meus amigos para ver essa árvore-rei erguendo-se num penhasco
junto ao Kíng Philip's Pond, e os que conhecem árvores dizem
que ela deve estar lá há 800 ou mil anos. Uma tradição reza que
sob essa árvore o rei Philip, heróico chefe indígena, contemplou
pela última vez a terra e o céu.
Tive outra amiga árvore, amável e mais abordável do que o
grande carvalho - uma tília que crescia no pátio perto da porta
de entrada em Red Farm. Certa tarde, durante uma terrível
tempestade, senti um tremendo choque contra a lateral da casa e soube,
mesmo antes que me dissessem, que a tília fora derrubada. Fomos
lá fora ver a heroína que agüentara tantas tempestades e meu
coração se partiu ao ver totalmente prostrada quem lutara com
tanto vigor.
Mas não devo me esquecer de que ia escrever sobre o último
verão em especial. Assim que meus exames terminaram, a srta.
Sullivan e eu fomos logo para aquele recanto verde, onde
temos um pequeno chalé em um dos três lagos que fazem a fama
de Wrentham. Ali os longos dias ensolarados eram meus e todos
os pensamentos no trabalho, faculdade e a cidade barulhenta eram
afastados para o pano de fundo. Em Wrentham recebíamos ecos
do que estava acontecendo no mundo - guerra, aliança, conflito
social. Soubemos da luta cruel e desnecessária no distante Pacífico e
dos combates entre o capital e o trabalho. Soubemos que além
da fronteira de nosso Éden, homens estavam fazendo história
com o suor do rosto, quando bem poderiam estar ociosos. Mas
quase não prestávamos atenção a essas coisas. Elas passariam; ali
estavam lagos e bosques, amplos campos salpicados de
margaridas e prados docemente perfumados - e estes durarão para
sempre.
Os que pensam que todas as sensações nos chegam pelos
olhos e ouvidos surpreendem-se que eu note qualquer diferença
entre caminhar nas ruas da cidade e nas estradas do campo, a não
ser talvez pela ausência de pavimento. Esquecem-se de que todo
o meu corpo está vivo para as condições em torno de mim. O
rumor e o rugido da cidade esbofeteiam meu rosto e sinto os
passos incessantes de uma multidão invisível e o tumulto dissonante
corrói o meu espírito. O moer de pesadas carroças nos pavimentos
duros e o som monótono da maquinaria são ainda mais torturantes
para os nervos se nossa atenção não é desviada para o
panorama sempre presente nas ruas barulhentas, como ocorre
com as pessoas que podem ver.
No campo vê-se apenas o belo trabalho da Natureza e nossa
alma não se entristece com a luta cruel pela subsistência que ocorre na
cidade atopetada. Por várias vezes visitei ruas estreitas e sujas onde
moram os pobres, e fiquei irritada e indignada ao pensar que boas
pessoas vivem contentes em bonitas casas e se tornam fortes e belas,
enquanto outras estão condenadas a viver em alojamentos medonhos
e sombrios e a se tornar feias, encolhidas e servis. As crianças
que povoam esses becos melancólicos, maltrapilhas e desnutridas,
afastam-se de sua mão estendida como de um golpe. Essas queridas
criaturinhas se encolhem no meu coração e me assombram com
uma sensação constante de dor. Há homens e mulheres também,
todos tortos e disformes. Tenho tocado em suas mãos duras e ásperas
e percebi que sua existência será uma luta interminável - não
mais do que uma série de barulhentas e confusas disputas, tentativas
frustradas de fazer algo. A vida deles parece uma imensa disparidade
entre esforço e oportunidade. O sol e o ar são presentes gratuitos
de Deus para todos, dizemos; mas serão mesmo? Nas aléias sórdidas
da cidade distante o sol não brilha e o ar é ruim. Ah, homem,
como esqueces e prejudicas teu irmão humano enquanto dizes:
"Dai-nos o pão nosso de cada dia", quando teu irmão não tem
nenhum! Ah, se esses homens deixassem as cidades, seu esplendor,
tumulto e ouro e voltassem ao bosque, ao campo e ávida honesta
e simples! Então seus filhos cresceriam majestosos, como nobres
árvores, e seus pensamentos seriam doces e puros como flores à
beira do caminho. É impossível não pensar nisso tudo quando
volto para o campo depois de um ano de trabalho na cidade.
Que alegria é sentir a terra macia e primaveril sob meus pés
mais uma vez, seguir as estradas relvadas que levam aos riachos
cheios de samambaias onde posso banhar meus dedos numa
catarata de notas em movimento, ou escalar um muro de pedra
até os campos verdes que tropeçam e rolam e sobem em
amotinada alegria!
Além de uma caminhada sem pressa, gosto de dar um "giro"
na minha bicicleta para dois. É esplêndido sentir o vento soprando
no rosto e o movimento flexível de meu corcel de ferro. A corrida
rápida pelo ar me dá uma deliciosa sensação de força e flutuação e
o exercício faz minha pulsação dançar e meu coração cantar.
Sempre que possível, meu cachorro me acompanha numa
caminhada ou num passeio a cavalo ou velejando. Tenho tido muitos
amigos cachorros - mastins enormes, spaniels de olhos doces, setters
espertos conhecedores dos bosques e bull terriers honestos e domésticos.

Helen e o cão Phiz. Fotografia de 1902
No presente, meu preferido é um dos bull terriers. Ele tem um
extenso pedigree, um rabo torto e a "fisionomia" mais engraçada do
reino dos cães. Meus amigos cachorros parecem entender minhas
limitações e sempre ficam bem perto de mim quando estou sozinha.
Amo o jeito afeiçoado e eloqüente com que abanam a cauda.
Quando um dia chuvoso me prende em casa, divirto-me ao
jeito das outras moças. Gosto de tricotar e fazer crochê; leio do
modo que adoro, ao acaso, uma linha aqui outra ali; ou talvez
jogue uma ou duas partidas de damas ou xadrez com uma amiga.
Tenho um tabuleiro especial em que jogo. Os quadrados são
escavados, de modo que as peças se ajustam firmemente. As
damas pretas do jogo são achatadas e as brancas são curvas no
alto. Cada dama tem um furo no meio em que se pode colocar
uma bolinha de metal para distinguir o rei das peças comuns. As
peças de xadrez são de dois tamanhos, as brancas mais largas que
as pretas, para que eu não tenha dificuldade em seguir as
manobras de meu oponente, movendo as mãos levemente sobre o
tabuleiro depois de cada jogada. A vibração feita pela mudança
das peças de um buraco para outro me diz quando é a minha vez.
Se por acaso estou sozinha e num estado de espírito
preguiçoso, jogo uma partida de paciência, de que gosto muito. Costumo
usar cartas marcadas no canto superior direito com simbolos braile
que indicam seu valor.
Se há crianças por perto, nada me agrada tanto quanto
brincar animadamente com elas. Acho até mesmo a criança
menorzinha uma companhia excelente e fico contente de dizer
que geralmente gostam de mim. Elas me levam por aí e me
mostram as coisas em que estão interessadas. É claro que os
pequenos não sabem soletrar com seus dedos, mas consigo ler
seus lábios. Se não consigo, eles recorrem à mímica. Às vezes
cometo um equívoco e faço a coisa errada. Um jorro de risos
infantis saúda meu fracasso e a pantomima começa novamente.
Geralmente conto-lhes histórias ou lhes ensino um jogo e as
horas fugazes vão embora e nos deixam muito bem e felizes.
Museus e coleções de arte são também fontes de prazer e
inspiração para mim. Sem dúvida parecerá estranho a muitos que
a mão, sem a ajuda da visão, possa sentir ação, sentimento e beleza
no mármore frio; mesmo assim é verdade que retiro um genuíno
prazer ao tocar as grandes obras de arte. Enquanto as pontas de
meus dedos traçam linhas e curvas, descobrem no rosto de deuses
e heróis ódio, coragem e amor, exatamente como posso detectá-los
em rostos vivos que tenho permissão de tocar. Sinto na postura
de Diana a graça e a liberdade da floresta, o espírito que domestica
o leão da montanha e submete as paixões mais ferozes.
Minha alma se encanta com a imobilidade e as curvas graciosas
da Vênus; e nos bronzes de Barré os segredos da selva me são
revelados.
Um medalhão de Homero está pendurado na parede de
meu escritório, num ponto convenientemente baixo para que eu
possa alcançá-lo com facilidade e tocar o belo rosto triste com
reverência amorosa. Como conheço bem cada linha daquela fronte
majestosa - trilhas de vida e evidências amargas de luta e
pesares; aqueles olhos sem visão buscando, mesmo no gesso frio, a luz
e os céus azuis de sua bem-amada Hélade, mas buscando em
vão; aquela bonita boca, firme, verdadeira e terna. É o rosto de
um poeta e um homem que conhece a tristeza. Ah, como entendo
bem sua privação - a noite perpétua na qual ele habitava
O dark, dark, amid the blaze of noon,
Irrecoverably dark, total eclipse
Without all hope of day!
[Ó trevas, trevas, trevas no ofuscante meio-dia,/Irrecuperáveis trevas,
eclipse total/sem qualquer esperança de luz! (Tradução livre. N da T)]
Na imaginação posso ouvir Homero cantando enquanto
tateia seu caminho com passos pouco firmes e hesitantes, de
acampamento em acampamento - cantando a vida, o amor, a
guerra, as realizações esplêndidas de uma nobre raça. Foi uma canção
maravilhosa, gloriosa, que conquistou para o poeta cego uma
coroa imortal e a admiração de todas as épocas.
Às vezes cogito se a mão não é mais sensível às belezas da
escultura do que o olho. Penso que o fluir maravilhosamente
rítmico das linhas e curvas poderiam ser sentidas mais sutilmente
do que vistas. Seja como for, sei que posso sentir o latejar do
coração dos antigos gregos em seus deuses e deusas de mármore.
Outro prazer, que ocorre mais raramente, é ir ao teatro. Gosto
muito mais de ter uma peça descrita para mim enquanto está
sendo representada no palco do que lê-la, porque no primeiro
caso parece que estou vivendo em meio aos emocionantes
acontecimentos. Tenho tido o privilégio de conhecer alguns grandes
atores e atrizes com tal poder de enfeitiçar o espectador que este
esquece o tempo e o lugar e vive novamente no passado
romântico. Foi-me permitido tocar o rosto e os trajes da srta. Eilen
Terry 23, quando ela representava nosso ideal de rainha; e havia nela
aquela divindade que envolve a dor mais sublime. A seu lado
estava sir Henry Irving, 24 usando os símbolos de cavaleiro; e havia
majestade e intelecto em cada um dos gestos dele, e a atitude e a
realeza que sobrepujam e dominam cada linha de seu rosto
sensível. No rosto do rei, que ele usava como uma máscara, havia um
distanciamento e intangibilidade da dor que jamais esquecerei.
Conheço também o sr. Jefferson 25 e sinto orgulho em contar
isso entre meus amigos. Vou vê-lo sempre quando acontece de
eu estar onde ele está representando. A primeira vez que o vi atuar foi quando estava na escola em Nova York. Ele representava
Rip Van Winkie. Eu lera aquela história repetidamente, mas
nunca sentira o encanto com o jeito lento, elaborado e amável de
Rip como senti na peça. A representação bela e patética me
transportou de encantamento. Tenho um retrato do velho Rip em
meus dedos que estes jamais esquecerão. Após a peça, a srta.
Sullivan levou-me para vê-lo nos bastidores e apalpei seu traje
curioso e seu cabelo e barba flutuantes. O sr. Jefferson me deixou
tocar-lhe o rosto de tal modo que eu podia imaginar como era
sua aparência ao despertar do estranho sono de 20 anos, e ele me
mostrou como o pobre e velho Rip oscilava nos pés.

Helen Keller, Anne Sullivan
and Joseph Jefferson em 1902
Vi-o também em The rivals. Certa vez, quando o visitava em
Boston, ele interpretou as partes mais surpreendentes de The rivals
para mim. A sala de recepção onde ficamos serviu como palco.
Ele e seu filho sentaram-se à grande mesa e Bob Acres escreveu
seu desafio. Eu seguia todos os seus movimentos com as minhas
mãos e captei seus descuidados equívocos e gestos de um modo
que teria sido impossível se fossem soletrados para mim. Então
eles se levantaram para fazer um duelo e eu segui as rápidas
acometidas e defesas das espadas e as hesitações do pobre Bob
enquanto a coragem se desvanecia por seus dedos. Então o grande
ator deu um puxão no casaco e fez um esgar, e num instante
vi-me no povoado de Falhng Water sentindo a cabeça peluda de
Schneider em meus joelhos. O sr. Jefferson declamou seus melhores diálogos de Rip Van Winkie em que as lágrimas estavam
próximas dos sorrisos. Ele me pediu para indicar, tanto quanto
pudesse, os gestos e ação que deviam combinar com as falas. Claro
que eu não tenho nenhuma noção de arte dramática, e só podia
dar palpites ao acaso; mas com arte de mestre ele combinou a
ação com a palavra. O suspiro de Rip quando ele murmura: "Um
homem é então esquecido com tanta rapidez quando desaparece?",
o desalento com que procura seu cachorro e sua arma depois
do longo sono, e sua cômica indecisão de assinar o contrato
com Derrick — tudo isso parece retirado diretamente da vida;
isto é, da vida ideal, onde as coisas acontecem como achamos
que deveriam acontecer.
Lembro-me bem da primeira vez que fui ao teatro, há 12
anos. Elsie Leslie, 26 a pequena atriz, estava em Boston e a srta.
Sullivan me levou para vê-la em O príncipe e o mendigo. Nunca
esquecerei as ondulações de alegria e tristeza alternadas que percorriam
a pequena e bela peça ou a criança maravilhosa que atuava
nela. Depois da apresentação me permitiram ir aos bastidores e
conhecê-la com suas roupas majestosas. Seria difícil encontrar uma
criança mais adorável e afetuosa que Elsie, em sua nuvem de cabelos
dourados flutuando nos ombros, sorrindo luminosamente,
sem mostrar nenhum sinal de timidez ou fadiga, embora tivesse
acabado de representar para um público imenso. Eu acabara
de aprender a falar e repetira previamente o seu nome até
poder dizê-lo com perfeição. Imaginem meu êxtase quando
ela entendeu as poucas palavras que pronunciei e sem hesitar
estendeu a mão para cumprimentar-me.
Não é verdade então que minha vida, com todas as suas
limitações, toca muitos pontos da vida do Belo Mundo? Tudo
tem suas maravilhas, mesmo a escuridão e o silêncio, e por isso
aprendo a ficar contente, seja qual for o estado em que possa
estar.
É verdade que às vezes me sinto envolvida por uma sensação
de isolamento, como um nevoeiro gélido, quando me sento
sozinha e espero ante o portão fechado da vida. Além dele há luz,
música e doce companhia; mas eu não posso entrar. O destino,
cruel e silencioso, barra o caminho. De boa vontade eu questionaria
seu decreto imperioso, pois meu coração ainda é indisciplinado
e apaixonado; mas minha lingua não emitirá as palavras amargas
e fúteis que sobem aos meus lábios e recuam de novo para o
coração como lágrimas não derramadas. O silêncio cai imenso
sobre minha alma. Então, chega a esperança com um sorriso e
sussurra: "Há alegria no esquecimento de si mesmo". Assim, tento
fazer da luz nos olhos de outros o meu sol, a música nos ouvidos
de outros minha sinfonia, o sorriso nos lábios de outros minha
felicidade.
CAPÍTULO XXIII
Pudesse eu enriquecer este esboço com os nomes de todos os
que se empenharam na minha felicidade! Alguns seriam
encontrados em nossa literatura e caros aos corações de muitos,
enquanto Outros seriam inteiramente desconhecidos à maioria dos
leitores. A influência deles, no entanto, embora escape à fama,
viverá para sempre nas vidas que essa influência suavizou e enobreceu.
Os dias em que conhecemos pessoas que nos eletrizam com um
belo poema são marcados com letras vermelhas em nossa vida,
gente cujo aperto de mão está cheio de silenciosa solidariedade e
cuja natureza doce e rica cobre nosso espírito ansioso, impaciente,
com uma paz maravilhosa e, em sua essência, divina. As perplexidades,
irritações e preocupações que nos absorveram passam como
sonhos desagradáveis, e acordamos para ver com novos olhos e
ouvir com novos ouvidos a beleza e a harmonia do verdadeiro
mundo de Deus. Os nadas solenes que enchem nossa vida cotidiana
florescem subitamente em luminosas possibilidades. Numa
palavra, enquanto tais amigos estão perto de nós sentimos que está
tudo bem. Talvez nunca os tenhamos visto antes e pode ser que
jamais cruzem nosso caminho de novo; mas a influência de suas
naturezas calmas e suaves é uma libação derramada em nosso
descontentamento e sentimos seu toque curativo como o oceano
sente o regato da montanha refrescando sua água salgada.
Perguntam-me com freqüência: "As pessoas não a
aborrecem?". Não entendo bem o que isso significa. Acho que as visitas
dos tolos e curiosos, especialmente de repórteres de jornal, são
sempre inoportunas. Também não gosto de pessoas que tentam
falar comigo mais alto, de um modo paternalista, para que eu
possa entender. São como pessoas que, quando caminham com
você, tentam dar passos mais curtos para combinar com os seus;
a hipocrisia nos dois casos é igualmente exasperante.
As mãos daqueles que encontro são silenciosamente eloqüentes
para mim. O toque de algumas mãos é uma impertinência.
Tenho encontrado gente tão despida de alegria, que quando
seguro as pontas de seus dedos congelados é como se estivesse
apertando as mãos de uma gélida tempestade. Há outros cujas
mãos têm raios de sol e cujo aperto aquece meu coração. Pode
ser apenas o toque agarrado da mão de uma criança, mas há uma
tal felicidade em potencial nele como há num olhar amoroso
para outros. Um aperto de mão vigoroso ou uma carta amiga
me dá um genuíno prazer.
Tenho muitos amigos distantes os quais jamais vi. Na
verdade são tantos que não tenho conseguido responder a suas
cartas; mas quero dizer aqui que sou sempre grata por suas palavras
bondosas, por mais insuficientemente que as agradeça.
Um dos mais doces privilégios da minha vida é ter conhecido
e conversado com muitos homens de talento. Só aqueles que
conheceram o bispo Brooks 27 podem avaliar a alegria que foi sua
amizade para os que a possuíram. Quando criança, eu adorava
sentar em seu colo e segurar sua grande mão com uma das minhas, enquanto a Srta.
Sullivan me ia soletrando as palavras
dele sobre Deus e o mundo espiritual. Eu o ouvia com um
maravilhamento e prazer infantis. Meu espírito podia não alcançar o
seu, mas ele me deu uma noção real da alegria na vida, e nunca o
deixei sem transportar comigo pensamentos que cresciam em beleza e profundidade
à medida que também eu crescia. Certa vez,
quando eu estava intrigada em saber por que havia tantas
religiões, ele disse: "Há uma religião universal, Helen - a religião
do amor. Ame seu Pai do Céu com todo seu coração e alma,
ame cada filho de Deus tanto quanto puder, e lembre-se de que
as possibilidades do bem são maiores do que as do mal; e você
terá a chave do Céu." E a vida dele foi uma feliz ilustração dessa
grande verdade. Em sua nobre alma o amor e o mais amplo
conhecimento estavam misturados à fé que se tornara insight.
Ele via
God in all that liberates and lifts,
In all that humbles, sweetens and consoles. 28
[Deus em tudo que libera e faz ascender,/em tudo que torna humilde,
suaviza e consola. (Tradução livre. N da T)]
O bispo Brooks não me ensinou nenhum credo ou dogma
especial; mas marcou minha mente com duas grandes idéias - a
paternidade de Deus e a irmandade do homem -, e me fez
sentir que tais verdades sub jazem todos os credos e formas de
culto. Deus é amor, Deus é nosso Pai, somos Seus filhos; por isso
as nuvens mais escuras se romperão e, embora o certo possa ser
distorcido, o errado não triunfará.
Estou demasiado feliz nesse mundo para pensar muito sobre
o futuro, a não ser quando lembro que tenho amigos queridos
esperando por mim em algum lugar na beleza de Deus. Apesar
do lapso de anos, meus amigos parecem tão perto de mim que
eu não acharia estranho se a qualquer momento enlaçassem
minha mão e pronunciassem palavras carinhosas como faziam
antes de partir.
Desde a época em que o bispo Brooks morreu, já li toda a
Bíblia e também algumas obras filosóficas sobre religião, entre elas
Heaven and hell (Céu e inferno), de Swedenborg 29 e
Ascent of man (Ascensão
de um homem), de Drummond, 30 e nunca encontrei
nenhum credo ou sistema que satisfaça mais a alma do que o credo de
amor do bispo Brooks. Eu conheci o sr. Henry Drummond e a
lembrança de seu forte aperto de mão é como uma bênção. Ele era
o mais solidário dos companheiros. Sabia tanto e era tão afável que
tornava impossível que alguém se sentisse tolo em sua presença.
Lembro-me bem da primeira vez que vi dr. Oliver Wendell
Holmes.31 Ele convidara a srta. Sullivan e eu para visitá-lo numa
tarde de domingo. Era início da primavera, pouco depois que eu
aprendera a falar. Fomos levados logo para sua biblioteca, onde
o encontramos sentado numa grande poltrona junto à lareira que
incandescia e estalava, pensando, disse ele, em dias passados.
- E escutando o murmúrio do rio Charles - sugeri.
- Sim - respondeu. - O Charles tem muitas associações
queridas para mim.
Havia um odor de palavras impressas e couro na sala
informando-me que ali havia muitos livros, e instintivamente estiquei a
mão para tocá-los. Meus dedos pousaram sobre um belo volume
dos poemas de Tennyson, e quando a srta. Sullivan me disse o
que era, comecei a recitar:
Break, break, break
On thy cold gray stones, O sea! 32
[Bate, bate, bate/contra tuas frias pedras cinzas, Ó mar! (Tradução livre.
N da T)]
Mas parei subitamente. Senti lágrimas em minha mão. Eu
fizera meu amado poeta chorar e fiquei muito desalentada. Ele
me fez sentar em sua poltrona enquanto trazia diversas coisas
interessantes para que eu as examinasse, e a seu pedido recitei The
chambered nautilus, que era então meu poema favorito. Depois disso
vi o dr. Holmes muitas vezes e aprendi a amar tanto o homem
quanto o poeta.
Num belo dia de verão, não muito tempo depois de meu
encontro com o dr. Holmes, srta. Sullivan e eu visitamos Whittier
33
em sua tranqüila casa no Merrimac. Sua gentil cortesia e fala
elegante conquistaram meu coração. Ele tinha um volume de seus
poemas impresso em relevo e dele li In school days (Na época da
escola). Ele ficou encantado que eu pudesse pronunciar as
palavras tão bem e disse que não tinha nenhuma dificuldade em me
entender. Então fiz muitas perguntas sobre o poema e li suas
respostas colocando meus dedos em seus lábios. Ele disse que
era o garotinho no poema e que o nome da garota era Sally e
outras coisas que esqueci. Também recitei Laus Deo e, enquanto
eu dizia os versos finais, ele colocou minha mão na estátua de um
escravo de cuja figura agachada as correntes caem, da mesma
forma que dos membros de Pedro quando o anjo o conduz
para fora da prisão. Depois fomos para seu escritório e ele
escreveu uma dedicatória para minha professora:
"Com grande admiração por seu nobre trabalho em liberar da
servidão a mente de sua querida aluna, o amigo leal John G. Whittier."
manifestando
admiração pelo trabalho dela e dizendo-me:
- Ela é sua libertadora espiritual.
Então, ele me levou ao portão e beijou-me ternamente a
testa. Prometi visitá-lo de novo no verão seguinte, mas ele
morreu antes de a promessa ser cumprida.
Dr. Edward Everett Hale 34 é um de meus amigos mais antigos.

Helen Keller, Anne Sullivan e Edward Everett Hale em 1902
Eu o conheço desde meus oito anos, e minha estima por ele
tem aumentado com os anos. Sua inteligência e terna simpatia
têm sido meu apoio e o da srta. Sullivan em épocas de provação
e tristeza, e sua mão forte nos ajudou a atravessar muitos lugares
difíceis; e o que fez para nós também tem feito para milhares
daqueles com obrigações árduas a cumprir. Ele preencheu as velhas
peles do dogma com o vinho novo do amor, mostrando
aos homens aquilo em que se deve acreditar, pelo que se deve
viver e ser livre, O que ele nos tem ensinado vimos lindamente
expresso em sua própria vida - amor pelo país, bondade para
com seus irmãos menos importantes e um desejo sincero de viver
em ascensão e progresso espiritual. Ele tem sido um profeta
e um inspirador para os homens, e um vigoroso agente da Palavra,
amigo de toda a sua raça - Deus o abençoe!
Já escrevi sobre meu primeiro encontro com o dr. Alexander
Graham Bell. Desde então tenho passado muitos dias felizes com
ele em Washington e em sua bela casa no coração de Cape Breton
Island, perto de Baddeck, o povoado tornado famoso pelo livro
de Charles Dudley Warner. 35 No laboratório do dr. Bell ou nos
campos na costa do grande Bras d'Or passei muitas horas
deliciosas ouvindo-o sobre suas experiências e ajudando-o a
empinar pipas através das quais ele espera descobrir as leis que
governarão o futuro navio aéreo. Dr. Bell destaca-se em muitos
campos da ciência e tem a arte de tornar interessantes todos os
objetos que toca, mesmo as teorias mais difíceis de se compreender.
Ele nos faz sentir que, se tivéssemos um pouquinho mais de
tempo, também poderíamos ser inventores. Tem um lado
humorístico e poético, também. Ele é apaixonado por crianças.
Nunca está tão feliz como quando tem uma criancinha surda nos
braços. Seus esforços em benefício dos surdos continuarão
vivendo e abençoarão gerações ainda por nascer; e nós o amamos tanto pelo que ele próprio realizou quanto pelo que tem
despertado nos outros.
Durante os dois anos que passei em Nova York tive muitas
oportunidades de conversar com pessoas ilustres cujos nomes eu
ouvira com freqüência, mas que jamais esperara conhecer. A
maioria delas encontrei pela primeira vez na casa de meu bom amigo,
sr. Laurence Hutton. 36 Foi um grande privilégio visitá-lo e à
querida sra. Hutton em seu adorável lar, ver a biblioteca deles e ler as
belas emoções e os pensamentos brilhantes que amigos talentosos
escreveram para eles. Tem sido dito, com razão, que o sr. Hutton
tem a faculdade de extrair os melhores pensamentos e os sentimentos
mais bondosos de cada um. Não é preciso ler A boy I
knew (O menino que conheço) para entendê-lo - o rapaz mais
generoso e doce que já conheci; um bom amigo em todas as
épocas, que traça as pegadas do amor na vida dos cães assim
como na de seus companheiros homens.
A sra. Hutton é uma amiga verdadeira e leal. Muito do que
considero mais caro e mais precioso devo a ela, que com
freqüência me aconselhou e ajudou em meu progresso na faculdade.
Quando acho meu trabalho especialmente dificil e desencorajador,
ela me escreve cartas que me deixam contente e corajosa, pois é
alguém de quem aprendemos que um dever penoso executado
torna o seguinte mais fácil e comum.
O sr. Hutton me apresentou a muitos de seus amigos literatos,
como William Dean Howells e Mark Twain, os maiores de
todos. Também conheci Richard Watson Gilder e os srs. Edmund
Clarence Stedman, assim como Charles Dudley Warner, o contador
de histórias mais delicioso e o mais adorado amigo, cuja
simpatia era tão ampla que se pode dizer dele com sinceridade que
amava todas as coisas vivas e seu vizinho como a si mesmo. Certa
vez o sr. Warner trouxe para me visitar o querido poeta dos bosques
- John Burroughs. Todos eles foram gentis e simpáticos e
percebi o encanto de suas maneiras como havia percebido o
brilho de seus ensaios e poemas. Eu não conseguia acompanhar
todas essas figuras literárias enquanto pulavam rapidamente de
um assunto para outro e entravam em discussões profundas, ou
faziam a conversa cintilar de epigramas e frases espirituosas. Era
como o pequeno Ascanius, que acompanha com passos desiguais
as grandes passadas heróicas de Enéias em direção a destinos
poderosos. Mas eles me diziam muitas palavras bondosas. O sr.
Gilder me contou sobre as jornadas que fizera ao luar através do
vasto deserto até as Pirâmides, e numa carta ele me escreveu que
fizera sua marca sob a assinatura bem fundo no papel para
que eu pudesse senti-la. Isso me lembra que o dr. Hale costumava
dar um toque pessoal a suas cartas para mim perfurando sua
assinatura em braile. Li dos lábios de Mark Twain uma ou duas
de suas ótimas histórias. Ele tem seu próprio jeito de pensar, dizer
e fazer tudo. Sinto o cintilar de seus olhos em seu aperto de mão.

Helen Keller e Mark Twain - foto de 1902
Mesmo enquanto ele expressa sua sabedoria cínica numa voz
indescritivelmente arrastada, faz-nos sentir que seu coração é uma
Ilíada terna de solidariedade humana.
Há uma multidão de outras pessoas interessantes que conheci
em Nova York: a sra. Mary Mapes Dodge, 37 a adorada editora
da St. Nicholas, e a sra. Riggs (Kate Douglas Wiggin), a doce autora
de Patsy. Recebi delas presentes repletos de afeto, livros com
muita imaginação, cartas iluminadas de alma e fotos que adoro
que me sejam descritas repetidamente. Mas não tenho espaço
para mencionar todos os meus amigos, e na verdade há coisas
sobre eles escondidas por trás das asas de querubim, coisas sagradas
demais para serem expostas em fria matéria impressa. É com
hesitação que sequer cheguei a falar da sra. Laurence Hutton.
Mencionarei apenas dois outros amigos. Um deles é a sra.
William Thaw, 38 cuja casa, em Lyndhurst, tenho visitado com
freqüência. Ela está sempre fazendo algo pela felicidade de alguém e
sua generosidade e sábios conselhos nunca faltaram à minha
professora e a mim em todos os anos que a temos conhecido.
Com um outro amigo tenho uma dívida profunda. Ele é
bem conhecido pela mão poderosa com que guia vastos
empreendimentos e sua maravilhosa capacidade lhe conquistou o respeito
de todos. Amável com cada um, ele vai por aí fazendo o bem de
um modo silencioso e invisível. Mais uma vez toquei no círculo
de nomes honrados que não devo mencionar; mas ficaria
contente de agradecer sua generosidade e o afetuoso interesse que
possibilita meus estudos na faculdade. 39
Portanto, meus amigos vêm construindo a história da minha
vida. De mil maneiras, eles têm transformado minhas limitações
em belos privilégios e me capacitado a caminhar serena e feliz à
sombra lançada pela minha privação.
FIM
UM RELATO SUPLEMENTAR
SOBRE A VIDA
E A EDUCAÇÃO
DE HELEN KELLER
CAPÍTULO 1
É apropriado que
A história da minha vida da srta. Keller
apareça neste momento. O mais notável de sua carreira já foi
concretizado e o que quer que ela realize no futuro será
comparativamente um leve adendo ao sucesso que a distingue agora. Tal
sucesso acaba de ser assegurado, pois é seu trabalho em Radcliffe
nos últimos dois anos que mostrou que ela pode levar sua educação
tão longe como se estudasse em condições normais. Fossem
quais fossem as dúvidas que a própria srta. Keller possa ter tido,
não existem mais agora.
Vários trechos de sua autobiografia, tal como apareceram em
episódios, foram assunto de um sério editorial num jornal de Boston
no qual o redator lamentava a aparente desilusão da srta. Keller
quanto ao valor de sua experiência na faculdade. Citava passagens
em que ela explica não ser a faculdade a "Atenas universal" que
esperara encontrar e citou os casos de outras pessoas notáveis cuja
vida de faculdade se mostrara decepcionante. Mas devemos
lembrar que a srta. Keller escreveu muitas coisas em sua autobiografia
por ser divertido escrevê-las, e a desilusão encarada tão seriamente
pelo redator do editorial é em grande parte humor. A srta. Keller
não considera serem suas opiniões de grande importância, e quando
as emite sobre questões relevantes presume que o leitor as receberá
como o parecer de uma segundanista de faculdade e não de quem
escreve com a sabedoria da maturidade.
Por exemplo, surpreendeu-a que alguns ficassem irritados
com o que ela disse sobre a Bíblia; ela se divertiu com o fato de
que não vissem, embora fosse bastante evidente, que fora obrigada
a ler a Bíblia inteira num curso de literatura inglesa, e não como
um dever religioso determinado pela professora ou por seus pais.
Devo me desculpar com o leitor e com a srta. Keller por
presumir esclarecer o que ela pretende dizer, porém outra explicação
é necessária. No relato sobre sua educação inicial, a srta.
Keller não está dando um registro cientificamente preciso de sua
vida nem dos acontecimentos importantes. Ela não pode saber
com detalhes como foi ensinada e sua lembrança da infância em
certos casos é uma recordação idealizada do que soube depois por
parte de sua professora e de outros. Ela é menos capaz de
lembrar-se de eventos de 15 anos atrás do que a maioria de nós de
relembrarmos a infância, razão pela qual os registros da srta.
Sullivan podem diferir em alguns detalhes do relato da srta. Keller.
O modo como a srta. Keller escreveu sua história mostra,
como nada mais poderia fazê-lo, as dificuldades que precisou
superar. Quando escrevemos, podemos voltar em nosso
trabalho, folhear as páginas, interpolar, rearrumar, ver como os
parágrafos se mostram nas provas e então construir todo o trabalho
visualmente, como um arquiteto constrói seus projetos. Quando
a srta. Keller coloca seu trabalho na forma datilografada, não pode
voltar a ele, a não ser se este for lido para ela através do alfabeto
manual.
Tal dificuldade é minorada, em parte, pelo uso de sua
máquina braile, que fabrica um manuscrito que ela pode ler; mas
como seu trabalho precisa ser transposto para a forma datilografada
final, e como uma máquina braile é algo incômodo, a srta.
Keller passou a ter o hábito de escrever diretamente na máquina
de datilografia. Ela depende tão pouco do manuscrito braile que,
quando começou a escrever sua história, há mais de um ano, e
colocou em braile cem páginas do material, além das notas,
cometeu o erro de destruir essas notas antes de haver terminado o
manuscrito. Assim, ela compôs boa parte de sua história
datilografando e construindo-a como um todo apoiada na memória
para guiá-la na junção dos episódios separados, que a srta. Sullivan
lia para ela.
Em julho passado, ao terminar o capítulo final sob grande
pressão de trabalho, ela se pôs a reescrever toda a história. Seu
bom amigo, sr. William Wade, mandou fazer para ela uma cópia
completa em braile das provas da revista. Então, pela primeira
vez, a srta. Keller teve o manuscrito inteiro nas mãos, viu as
imperfeições na arrumação dos parágrafos e a repetição de frases. Viu
também que sua história ajustava-se adequadamente a capítulos
curtos, e tornou a arrumá-la.
Em parte por temperamento e em parte pelas condições de
seu trabalho, o que ela escreveu foi mais uma série de trechos
brilhantes do que uma narrativa unificada; na verdade, vários
parágrafos de sua história são ensaios curtos escritos em seus
cursos de inglês, e a pequena unidade mostra seus limites iniciais.
Ao reescrever a história, a srta. Keller fez correções em
páginas separadas em sua máquina braile. Datilografou correções longas
com chamadas para indicar o lugar a que pertenciam tais
correções. Depois leu em sua cópia em braile a história inteira,
corrigindo-a enquanto lia, correções essas escritas no manuscrito que ia
para a gráfica. Durante essa revisão, a srta. Keller discutiu
questões de tema e fraseado. Ela corria o dedo sobre o manuscrito
em braile, parando de vez em quando para consultar as notas em
braile em que indicara as correções, o tempo todo lendo alto
para confirmar o manuscrito.
Ela ouviu críticas como qualquer autor ouve de seus amigos
ou de seu editor. A srta. Sullivan, que é uma excelente crítica, fez
sugestões em muitos pontos no decorrer da redação e revisão do
texto. Um jornal sugeriu que a srta. Keller fora levada a escrever o
livro por amigos zelosos, assim como influenciada por eles a
inserir no livro determinadas coisas. Na verdade, a maior parte dos
conselhos que ela recebeu e aceitou provocou mais expurgos que
adições ao texto. O livro é da srta. Keller, e é a prova final de sua
autonomia.
CAPÍTULO II
Mark Twain disse que os dois personagens mais interessantes
do século XIX são Napoleão e Helen Keller. A admiração
com que o mundo a vem considerando é mais do que justificada
pelo que ela tem feito. Ninguém pode dizer qualquer grande verdade
sobre a srta. Keller que já não tenha sido escrita, e o que posso
fazer é somente apresentar mais alguns fatos sobre o seu trabalho,
adicionando um pouco ao que já é conhecido de sua personalidade.
A srta. Keller é-alta, de compleição forte, e tem tido sempre
boa saúde. Parece ser mais nervosa do que é de fato, pois gesticula
mais do que a maioria das pessoas que se expressam em inglês. Um
motivo para o hábito de gesticular é que suas mãos têm sido por
muito tempo seus instrumentos de comunicação, assumindo para
si os rápidos movimentos dos olhos e expressando algumas coisas
que dizemos num relance. Todos os surdos naturalmente gesticulam.
Na verdade, numa determinada época, acreditou-se que o melhor
modo de se comunicarem era através de gestos sistematizados: a
linguagem de sinais inventada pelo Abbé de l'Épée.
Quando a srta. Keller fala, seu rosto se anima e expressa todos
os matizes de seu pensamento as expressões que tornam os
traços eloqüentes e imprimem à fala a metade de seu significado.
Por outro lado, ela não conhece a expressão do outro. No entanto,
quando conversa com um amigo íntimo, sua mão vai rapidamente
para o rosto dele para ver, como ela diz, sua "torção da
boca". Desse modo a srta. Keller pode perceber o significado
daquelas meias-frases que completamos inconscientemente com
o tom da voz ou com uma piscadela de olho.
Sua recordação das pessoas é notável. Ela lembra o toque
da mão que apertou antes e todas as características dos músculos
que tornam o aperto de mão de uma pessoa diferente do de outra.
Talvez o traço mais característico da srta. Keller (e também
da srta. Sullivan) seja o humor. A perícia no uso das palavras e o
hábito de brincar com elas faz com que a srta. Keller seja rápida
com expressões espirituosas e epigramas.
Alguém lhe perguntou se ela gostava de estudar.
- Sim - respondeu -, mas gosto de brincar também e
sinto às vezes como se houvesse uma caixinha de música com
toda uma ária fechada dentro de mim.
Quando ela conheceu o dr. Furness, o estudioso de
Shakespeare, ele a avisou para não deixar os professores da faculdade
lhe contarem muitos fatos imaginados sobre a vida de
Shakespeare; "tudo que sabemos sobre Shakespeare", disse ele,
"é que foi batizado, casou e morreu."
- Bem-replicou ela-, ele parece ter feito as coisas essenciais.
Certa vez um amigo que estava aprendendo o alfabeto
manual continuava fazendo o "g" - que se expressa como o dedo
indicativo da mão apontando a direção numa placa - como se
fosse um "h", que é feito com dois dedos estendidos. Finalmente,
a srta. Keller disse-lhe que "disparasse com os dois canos."
O sr.JosephJefferson certa vez explicava a srta. Keller o que
as saliências na cabeça dela significavam.
- Essa - disse ele - é a saliência de lutadora de boxe.
- Eu nunca luto - replicou ela -, a não ser contra as
dificuldades.
O humor da srta. Keller é daquele tipo mais profundo, que
significa coragem.
Há 13 anos ela resolveu aprender a falar, não dando descanso
à sua professora até que lhe fosse permitido receber aulas, mesmo
que pessoas sensatas, até a srta. Sullivan, a mais sensata de todas,
encarasse aquilo como uma experiência com poucas chances de
êxito e com toda a probabilidade de deixar a srta. Keller infeliz.
Foi essa mesma perseverança que a fez ir para a faculdade.
Depois de passar nos exames e receber seu certificado de admissão,
ela foi aconselhada pelo deão de Radcliffe e outros a não entrar
para a faculdade. Por causa disso, ela esperou um ano. Mas só
ficou satisfeita ao insistir em seu objetivo e entrar para a faculdade.
Sua vida vem sendo uma série de tentativas de fazer tudo o
que as outras pessoas fazem, e fazê-lo bem. Seu sucesso tem sido
completo, pois ao tentar ser como os outros ela se transformou
mais completamente em si mesma. Sua relutância em ser derrotada
desenvolveu-lhe a coragem. Aonde o outro pode ir, ela também
pode. Seu respeito pela bravura física é como o de Stevenson -
o desprezo do garoto pelo companheiro que chora, com um
toque de bravata juvenil. Ela faz cansativas jornadas pelo bosque,
mergulhando no matagal, onde é arranhada e machucada; contudo
não se pode fazê-la admitir que está machucada e certamente não
se pode convencê-la a ficar em casa na próxima vez.
Assim, quando as pessoas fazem experiências com ela, a srta.
Keller exibe uma determinação de esportista para vencer
qualquer competição em que se queira colocá-la, por menos razoável
que seja.
Se não sabe a resposta de uma pergunta, dá palpites com
provocativa segurança. Pergunte-lhe a cor de seu casaco (nenhum
cego pode reconhecer as cores); ela apalpará o casaco e dirá
"preto". Se o casaco for azul e você, triunfante, disser isso à srta.
Keller, ela provavelmente responderá: "Obrigada. Fico contente
por você saber. Por que me perguntou?".
Seu espírito imprevisível e aventureiro lhe dá tanta coragem
que ela é um tema pobre para o psicólogo experimental. Além
disso, a srta. Sullivan não vê por que a srta. Keiler deva ser
submetida à investigação dos cientistas; ela própria não fez muitas
experiências. Quando um psicólogo lhe perguntou se a srta. Keller
soletrava com os dedos em seu sono, a srta. Sullivan respondeu
achar que não valia a pena sentar e observar, pois tais questões
eram de muito pouca importância.
Srta. Keller gosta de ser parte do grupo. Se alguém a quem
está tocando ri de uma brincadeira, ela ri também, exatamente
como se tivesse escutado. Se outros estão extasiados pela música,
um fulgor correspondente, apreendido empaticamente, brilha no
rosto da srta. Keller. Na verdade, ela sente os movimentos da
srta. Sullivan tão minuciosamente que reage a seus estados de
espírito e assim parece saber o que está acontecendo mesmo que a
conversa não tenha sido soletrada para ela por algum tempo. Do
mesmo modo, sua reação à música é em parte empática, embora
ela a usufrua por conta própria.
A música provavelmente pode significar pouco para Helen
a não ser em ritmo e pulsação. Ela não pode cantar ou tocar
piano, embora, como algumas experiências iniciais mostraram,
possa aprender a batucar mecanicamente uma melodia no piano.
No entanto seu gosto pela música é bem genuíno, pois Helen tem
um reconhecimento tátil do som quando as ondas de ar batem
contra ela. Parte de sua experiência do ritmo da música vem, sem
dúvida, da vibração dos objetos sólidos que ela está tocando:
o chão ou, o que é mais evidente, o gabinete do piano no qual
sua mão descansa. Mas ela parece sentir a própria pulsação do
ar. Quando tocaram órgão para ela em St. Bartholomew's, o
edifício inteiro sacudiu-se com os baixos do pedal, mas isso não
explica completamente o que ela sentiu e usufruiu. Enquanto
as notas do órgão cresciam, a vibração do ar fazia a srta. Keller
oscilar em reação. As vezes ela põe a mão na garganta de um
cantor para sentir o tremor e a contração muscular, retirando disso
um sincero prazer. Entretanto, ninguém sabe exatamente que
sensações são. É divertido ler numa revista de 1895 que a srta. Keller
"tem uma justa e inteligente apreciação dos diferentes
compositores por ter literalmente sentido a música deles, sendo Schumann
seu favorito". Se ela conhece a diferença entre Schumann e
Beethoven é porque leu isso, e se o leu, lembra-se disso e pode
dizê-lo quando lhe perguntam.
O esforço da srta. Keller para ir ao encontro das outras
pessoas em seus próprios terrenos intelectuais a tem mantido
informada dos assuntos cotidianos. Quando sua instrução se
tornou mais sistemática e a srta. Keller estava ocupada com os
livros, teria sido muito fácil para a srta. Sullivan deixá-la retirar-se
para dentro de si mesma, se Helen fosse inclinada a isso. Mas
cada pessoa que a srta. Keller conheceu deu suas melhores idéias,
e ela as assimilou. Se no decorrer de uma conversa o amigo que
está próximo pára por uns momentos de soletrar em sua mão,
segue-se inevitavelmente a pergunta: "O que você está falando?".
Assim, ela recolhe os fragmentos do intercurso diário com
as pessoas normais, fazendo com que sua informação seja
singularmente completa e acurada. Ela se sai bem nas conversas sobre
os pequenos assuntos ocasionais da vida.
Boa parte de seu conhecimento lhe chega diretamente. Quando
está caminhando, com freqüência pára subitamente, atraída pelo
odor de um punhado de arbustos. Então estende a mão e toca as
folhas, e o mundo das coisas que crescem se torna dela tão verdadeiramente
quanto é nosso, para ser apreciado enquanto ela
segura as folhas e cheira as flores, e para ser lembrado quando o
passeio termina.
Quando ela está num lugar novo, sobretudo num lugar
interessante como as Cataratas do Niágara, quem quer que a
acompanhe - geralmente a srta. Sullivan, é claro - fica ocupado
dando a srta. Keller uma idéia dos detalhes visíveis. A srta. Sullivan,
que conhece a mente de sua aluna, escolhe da paisagem os
elementos essenciais, que dão uma certa limpidez à visão de um
mundo exterior imaginada pela srta. Keller e que aos nossos olhos
é confusa e sobrecarregada de detalhes. Se seu acompanhante
não lhe dá suficientes detalhes, ela faz perguntas até que tenha
completado a visão de um modo satisfatório para si mesma.
Ela não vê com os olhos e sim através da faculdade interna
que serve como os olhos que nos foram dados. Quando volta de
um passeio e conta sobre ele a alguém, suas descriçôes são precisas
e vivas. Uma experiência comparativa tirada de descrições escritas
e das palavras de sua professora mantém a srta. Keller livre de
erros no uso dos termos sobre o som e a visão. Na verdade, sua
visão da vida é altamente colorida e cheia de exagero poético; o
universo que ela vê é sem dúvida um pouco melhor do que o real.
Mas seu conhecimento dele não é tão incompleto quanto se poderia
supor. Ocasionalmente, a srta. Keller causa perplexidade por
desconhecer algum fato que por acaso ninguém lhe contou; por exemplo,
até seu primeiro mergulho no mar, a srta. Keller não sabia que esse
era salgado. Muitos dos fatos e incidentes isolados da vida cotidiana
passam despercebidos por ela e sobre ela mas a srta. Keller tem um
conhecimento suficientemente detalhado do mundo para impedir
que sua visão dele seja essencialmente imperfeita.
A maior parte do que sabe em primeira mão vem pelo tato.
Tal sentido, contudo, não é tão bem desenvolvido nela como em
outros cegos. Laura Bridgman podia reconhecer diferenças mínimas
na espessura de um fio e fazer uma bela renda. A srta. Keller
sabia tricotar e fazer crochê, mas tinha coisas melhores a fazer. Com
seu potencial e realizações variadas, seu tato não tem sido usado
suficientemente para desenvolver-se muito além do normal. Certo
dia, um amigo mostrou a srta. Keller várias moedas. Ela foi mais
lenta do que ele esperava para identificá-las pelo tamanho e peso
relativos. Mas deveria ser dito que ela quase nunca lida com
dinheiro - por falar nisso, um dos muitos detalhes sórdidos e
mesquinhos da vida dos quais tem sido poupada.
Ela reconhece o tema e a intenção geral de uma estatueta de
13 centímetros de altura. Quanto a expressar uma idéia de beleza,
qualquer coisa mais rasa do que um baixo relevo de centímetro e
meio é um vazio para a srta. Keller. Ela reconhece em seu valor
estético mais elevado grandes estátuas cujas linhas possa circular
inteiramente com a mão. Ela própria sugere que pode conhecê-las
melhor do que nós, porque pode obter as verdadeiras dimensões
e apreciar mais imediatamente a sólida natureza de uma figura
esculpida. Quando ela estava no Museu de Fine Arts, em Boston,
subiu numa escada pequena e percorreu as estátuas com as duas
mãos. Ao tatear um baixo-relevo de moças dançando, perguntou:
"Onde estão as cantoras". Quando as descobriu, disse: "Uma
está em silêncio". Os lábios da cantora estavam fechados.
No entanto, é em sua vida cotidiana que se pode melhor
medir a delicadeza de seus sentidos e sua habilidade manual. Ela
parece ter muito pouco senso de direção. Tateia o caminho sem
muita certeza em aposentos que lhe são muito familiares. A maioria
dos cegos é ajudada pelos sons, portanto é difícil fazer uma
comparação justa, a não ser com outras pessoas surdas e cegas. Sua
destreza não é digna de nota se comparada com a da pessoa
normal, cujos movimentos são guiados pelo olho, ou com a dos
cegos, segundo me disseram. Ela não desenvolveu nenhuma
perícia construtiva que exigisse o uso das mãos. Aos 13 anos, seu
amigo, o artista Albert H. Munsell, deixou-a fazer experiências
com um tablete de cera e um estilete. Ele diz que a srta. Keller
saiu-se bastante bem e conseguiu fazer, com modelos, alguns
desenhos convencionais da silhueta de folhas e rosetas. A única
atividade que ela realiza que exige habilidade com as mãos é seu
trabalho na máquina de datilografia. Embora tenha usado a
máquina desde os 11 anos, ela é mais cuidadosa do que rápida.
Escreve com boa velocidade e absoluta segurança. Seus manuscritos
raramente contêm erros tipográficos quando ela os passa à srta.
Sullivan para que leia. Sua máquina não tem equipamentos
especiais. Ela mantém a posição relativa do teclado por um toque
ocasional dos dedos mínimos na borda exterior do teclado.
A leitura da srta. Keller do alfabeto manual pelo tato parece
causar alguma perplexidade. Até pessoas que a conhecem bastante
bem têm escrito nas revistas sobre as "misteriosas comunicações
telegráficas" da srta. Sullivan com sua aluna. O alfabeto manual é
aquele em uso entre todos os surdos instruídos. A maioria dos
dicionários contém uma gravura das Letras manuais. O surdo com
visão olha para os dedos de seu companheiro, mas é possível
tateá-los também. A srta. Keller coloca os dedos de leve sobre a
mão de quem está falando com ela e compreende as palavras tão
rapidamente quanto são soletradas. Segundo explica, ela não tem
consciência das letras isoladas ou das palavras isoladas. A srta.
Sullivan e outros que vivem constantemente com um surdo
podem soletrar muito rapidamente - suficientemente rápido para
obter uma leitura lenta, mas não tanto para perceber cada palavra
de alguém que fale muito rápido.
Qualquer um pode aprender o alfabeto manual em poucos
minutos, usá-lo lentamente num dia e em 30 dias de uso constante
conversar com a srta. Keller ou outra pessoa surda sem perceber
o que seus dedos estão fazendo. Se um número maior de
pessoas o conhecesse e amigos e parentes das crianças surdas
aprendessem logo o alfabeto manual, os surdos de todo o mundo
seriam mais felizes e mais instruídos.
A srta. Keller lê por meio de letras impressas em relevo ou
nos vários tipos de braile. O livro comum em relevo é feito com
letras romanas, tanto minúsculas quanto maiúsculas. Tais letras são
de um desenho simples, quadrado, anguloso. As minúsculas têm
cerca de 3/16 de polegada, com um relevo na página na espessura
da unha de um polegar. Os livros são grandes, aproximadamente
do tamanho de um volume de enciclopédia. A short history of the
English people (Uma pequena história do povo inglês) de Green foi
distribuída em seis grandes volumes. Os livros não são pesados,
porque as folhas com o tipo em relevo não ficam próximas.
Um dos amigos da srta. Keller diz que o momento em que
percebe com mais impacto sua cegueira é quando se depara
subitamente com a srta. Keller na escuridão e ouve o roçar de seus
dedos pela página.
O tipo de impressão mais conveniente para os cegos é o
braile, que tem diversas variações - na verdade variações
demais: braile inglês, americano, Ponto Nova York. A srta. Keller
lê todos. Os cegos mais cultos conhecem vários, mas se o braile
inglês fosse adotado universalmente, como sugere a srta. Keller, isso evitaria
problemas. Cada tipo (uma letra ou uma contração
especial de braile) é uma combinação feita variando-se local e
número dos pontos em seis posições possíveis. A srta. Keller tem
uma máquina de braile na qual mantém anotações e escreve
cartas para seus amigos cegos. Há seis teclas, e pressionando-se
diferentes combinações num toque (como se toca um acorde em
um piano) o operador faz um tipo de cada vez numa folha de
papel espesso e pode escrever com metade da velocidade que
usaria numa máquina de datilografia. O braile é especialmente útil
em fazer cópias únicas de manuscritos de livros.
Os livros para os cegos são em número muito limitado. São
muito caros de publicar e não vendem o suficiente para se tornarem
lucrativos para o editor; contudo, há diversas instituições com
fundos especiais para encomendar livros em relevo. A srta. Keller
é mais afortunada que a maioria dos cegos pela bondade dos
amigos que têm encomendado livros especialmente para ela e pela
boa vontade de cavalheiros como o sr. E. E. Allen, do Pennsylvania
Institute for the Instruction of the Blind, que em várias ocasiões
mandou imprimir edições de livros de que ela tem precisado.
De modo geral, a srta. Keller não lê muito rapidamente, mas
o faz com ponderação, não tanto porque tateia as palavras com
menos rapidez do que nós a vemos, mas por ter como hábito
mental fazer as coisas minuciosamente e bem. Quando um trecho
a interessa, ou precisa lembrar-se dele para algum uso futuro, ela
passa de leve e rápido os dedos da mão direita sobre ele. As vezes
esse jogo de dedos é inconsciente. A srta. Keller fala distraidamente
consigo mesma no alfabeto manual. Quando está caminhando pelo
corredor ou ao longo da varanda, suas mãos movem-se a seu lado
como uma revoada de pássaros.
Disseram-me que, assim como há uma memória visual e auditiva,
existe uma memória tátil. A srta. Sullivan diz que tanto ela quanto
a srta. Keller lembram "com seus dedos" o que disseram. Para a srta.
Keller, o ato de soletrar uma frase no alfabeto manual fazia com
que ela a gravasse em sua mente exatamente como aprendemos
uma coisa por tê-la ouvido muitas vezes, podendo assim invocar a
lembrança de seu som.
Como todos os surdos ou cegos, a srta. Keller depende de
seu olfato num grau pouco comum. Quando menina, ela conhecia
o cheiro de tudo e sabia onde estava e por que a casa vizinha estava
passando pelos diferentes odores. À medida que seu intelecto cresceu,
ela se tornou menos dependente desse sentido. Até que ponto
ela identifica agora objetos pelos odores é difícil determinar, O
sentido do olfato caiu em desonra e um surdo reluta em falar dele.
O agudo olfato da srta. Keller, porém, explica em parte o
reconhecimento de pessoas e coisas que costumeiramente tem sido
atribuído a um sentido especial, ou ao desenvolvimento pouco
comum do poder que todos parecemos ter de perceber a
proximidade de alguém.
A questão de um "sexto sentido" especial que as pessoas
têm atribuído a srta. Keller é delicada. No entanto, ela certamente
não pode ter qualquer sentido que outras pessoas não tenham, e a
existência de um sentido especial não é evidente para ela ou para
qualquer pessoa que a conheça. A srta. Keller, nitidamente, não é
uma prova singular de teorias ocultas e misteriosas, e qualquer
tentativa de explicá-la desse modo falha em reconhecer sua
normalidade. Ela não é mais misteriosa e complexa do que qualquer
Outra pessoa. Tudo que é, tudo que fez, pode ser explicado
diretamente, exceto as coisas em cada ser humano que nunca podem
ser explicadas. Ela não parece comprovar a existência do espírito
sem matéria, ou de idéias inatas, ou da imortalidade, ou de
qualquer coisa que qualquer outro ser humano não comprove. Os
filósofos têm tentado descobrir qual era sua concepção de idéias
abstratas antes de aprender a linguagem. Se a srta. Keller tinha
qualquer concepção, não há modo de descobri-lo agora, pois ela não
consegue se lembrar e obviamente não há nenhum registro daquela
época. Ela não tinha qualquer concepção de Deus antes de ouvir a
palavra "Deus", como seus comentários mostram claramente.
Seu senso de tempo é excelente, mas se isso se teria desenvolvido
como uma faculdade especial não se pode saber, pois ela
tem relógio desde os sete anos de idade.
A srta. Keller ganhou dois relógios de presente, provavelmente
os únicos de sua espécie na América. Eles têm na parte de trás um
indicador de ouro achatado que pode ser empurrado livremente
da esquerda para a direita até que, por meio de um pino dentro
do estojo, ele se prenda com o ponteiro das horas e assuma uma
posição correspondente. Aponta desse indicador de ouro curva-se
sobre a beira do estojo, em torno do qual estão dispostos 11
pontos em relevo - o eixo forma o décimo segundo. Assim aquele
relógio comum com um mostrador branco para os que enxergam
torna-se, por esse dispositivo especial, um relógio para os cegos,
tendo um ponteiro único de horas e números em relevo. Embora
haja pouco mais de um centímetro entre os pontos - um espaço
que representa 60 minutos -, a srta. Keller pode dizer as horas
quase que exatamente. É preciso esclarecer que qualquer relógio de
estojo duplo com a tampa de cristal removida serve bastante bem
para um cego, cujo toque seja suficientemente delicado para tocar a
posição dos ponteiros e não os prejudicar ou danificar.
Os melhores traços da personalidade da srta. Keller são tão
conhecidos que não se precisa dizer muito a respeito. Bom senso,
bom humor e imaginação mantém seu esquema de coisas sadio e
belo. Os que estão próximos a ela não fazem nenhuma tentativa
para preservar ou desfazer suas ilusões. Quando a srta. Keller era
menina, muitas coisas pouco inteligentes e sem tato ditas para seu
benefício não lhe eram repetidas, graças à sábia vigilância da srta.
Sullivan. Agora que a srta. Keller é adulta, ninguém pensa em ser
menos franco com ela do que com outras jovens inteligentes. O
que seu bom amigo Charles Dudley Warner escreveu sobre ela
no Harper-Magazine em 1896 era verdadeiro à época e continua
verdadeiro agora:
-
Acredito que ela seja o ser humano de mente mais pura que
já existiu (...) Para ela, o mundo é o que é sua mente. Ela nem
sequer aprendeu aquela exibição da qual tantos se orgulham,
da "indignação correta".
Algum tempo atrás, quando um policial matou a cadela da srta.
Keller - uma querida companheira cotidiana - com um tiro,
ela não encontrou em seu coração compassivo nenhuma
condenação para com o homem; apenas disse: "Se ele soubesse
que bom animal ela era, não teria atirado". Dizia-se nos velhos
tempos: "Senhor, perdoa-os, porque não sabem o que fazem".
É claro que surge a seguinte pergunta: se Helen Keller não
tivesse sido protegida do conhecimento do mal, teria sido o
que é hoje? (...) Sua mente não se tornou efeminada pela
fraca e tola literatura, nem viciada pelo que sugere baixeza.
Como resultado, sua mente não é apenas vigorosa, mas pura.
Ela é apaixonada pelas coisas nobres, por nobres pensamentos
e pelas personalidades de homens e mulheres nobres.
A srta. Keller ainda tem uma aversão infantil por tragédias.
Sua imaginação é tão vital que ela se submete completamente à
ilusão de uma história e vive no mundo desta. A srta. Sullivan
escreve numa carta de 1891:
-
Ontem li para ela a história de Macbeth, contada por
Charles e Mary Lamb. Ela ficou muito animada com a
história, dizendo: "É terrível! Ela me faz tremer!". Após
pensar um pouco, acrescentou: "Acho que Shakespeare a
tornou tão medonha para que as pessoas vissem como era
terrível agir errado."
Do mundo real, ela sabe do bem e menos do mal que a maioria
das pessoas. Sua professora não a atormenta com as pequenas
coisas infelizes; mas das importantes dificuldades por que passou a
srta. Keller foi amplamente informada, recebeu sua parcela de sofrimento
e aplicou a mente nos problemas. Ela é lógica e tolerante,
muito confiante num mundo que a tem tratado bondosamente.
Certa vez, quando alguém lhe pediu para definir "amor", ela
respondeu: "Ora, é fácil; é o que todo mundo sente por todo
mundo".
"A tolerância", disse ela certa vez, ao visitar sua amiga sra.
Laurence Hutton, "é o maior dom da mente; exige o mesmo
esforço do cérebro que é exigido de alguém para se equilibrar
numa bicicleta".
Ela exerce uma ampla e generosa solidariedade e tem uma
absoluta afabilidade de temperamento. Sua diferença visível das
outras pessoas é que ela é menos dirigida pela convenção. Tem a
coragem de suas metáforas e deixa que estas a levem na direção
do céu enquanto nós, pobre gente autoconsciente, as acharíamos
livrescas demais para a conversa comum. A srta. Keller sempre
diz exatamente o que pensa, sem medo da simples verdade;
mesmo assim ninguém é mais cheia de tato e habilidade do que ela
para modelar uma verdade desagradável de modo a ferir o
mínimo possível os sentimentos alheios. Nem toda a atenção que lhe
tem sido concedida desde criança a fez encarar-se de modo
excessivamente sério. Às vezes ela começa um sermão muito solene.
Então sua professora a chama de incorrigível pregadora e a srta.
Keller ri de si mesma. Geralmente, contudo, suas sóbrias idéias
não são motivo de riso, pois sua sinceridade envolve os ouvintes.
Não há nunca a mínima pompa formal ou falsa no que ela diz. É
tão verdadeira em tudo que suas próprias citações e os ecos do
que leu são na verdade originais.
Sua lógica e solidariedade estão num excelente equilíbrio. Sua
solidariedade é do mesmo tipo rápido e atuante que, felizmente,
ela tem encontrado com tanta freqüência em outras pessoas. suas
simpatias vão mais adiante, com a srta. Keller transformando
suas opiniões em movimentos políticos e nacionais. Ela foi intensamente
pró-Boer e escreveu uma forte defesa da sua independência.
Quando lhe contaram sobre a rendição do bravo
povozinho, seu rosto turvou-se e ela ficou em silêncio alguns
minutos. Então fez perguntas claras e penetrantes sobre os termos
da rendição e começou a discuti-las.
Os srs. Gilman e sr. Keith, professores que a prepararam
para a faculdade, ficaram impressionados com o poder de raciocínio
construtivo da srta. Keller. Ela era excelente em matemática
pura, embora pareça nunca tê-la apreciado muito. Parte de seus
melhores escritos, ao lado do trabalho fantasioso e imaginativo,
são suas dissertações em exames e temas técnicos e em algumas
cartas que ela considerou necessário escrever para desfazer certos
mal-entendidos, que são modelos de pensamento rigoroso
reforçado por doce veemencia.
Ela é uma otimista e uma idealista.
"Espero", escreve ela numa carta, "que L_____ não seja
prática demais, pois se o for vai perder muito do prazer".
No diário que manteve na Wright-Humason School em Nova
York, ela escreveu em 18 de outubro de 1894: "Descobri que
tenho quatro coisas para aprender aqui na escola e na verdade na
própria vida - pensar claramente sem pressa ou confusão,
gostar de todos sinceramente, agir em tudo pelos mais altos
motivos e confiar sem hesitar no querido Deus".
CAPÍTULO III
Há 65 anos o dr. Samuel Gridley Howe soube que abrira o
caminho, pelos dedos, para a inteligência de Laura Bridgman.
Os nomes de Laura Bridgman e Helen Keller estarão sempre
ligados, e é necessário entender o que ele fez por sua aluna antes
de se chegar a um relato sobre o trabalho da srta. Sullivan. Pois o
dr. Howe é o grande pioneiro de cujo trabalho dependem
imediatamente o da srta. Sullivan e os de outros professores dos
surdos-cegos.
O dr. Samuel Gridley Howe nasceu em Boston a 10 de
novembro de 1801 e morreu na mesma cidade em 9 de janeiro
de 1876. Era um grande filantropo, especialmente interessado
na educação de todos os deficientes, os fracos da mente, os
cegos e os surdos. Bem avançado para seu tempo, advogou
muitas medidas públicas para o alívio do pobre e dos doentes,
o que provocou risos à época, mas que desde então têm sido
implementadas. Como diretor da Instituição Perkins para Cegos,
de Boston, ouviu falar de Laura Bridgman e fez com que a
trouxessem para a Instituição em 4 de outubro de 1837.
Laura Bridgman nasceu em Hanover, New Hampshire, em
21 de dezembro de 1829, tendo portanto quase oito anos quando
o dr. Howe começou suas experiências com ela. Aos 26 meses
de idade, Laura perdera a visão e a audição devido à escarlatina.
Perdera também o olfato e o paladar. Dr. Howe era um
cientista experimental e trazia nele o espírito do transcendentalismo
da Nova Inglaterra, com sua grande fé e grandes beneficências.
Ciência e fé unidas o levaram a tentar abrir caminho na alma
que ele acreditava haver em Laura Bridgman como em qualquer
outro ser humano. Seu plano era ensinar Laura por meio dos
tipos em relevo. Ele colou etiquetas em relevo nos objetos e a
fez combinar as etiquetas com os objetos e os objetos com as
etiquetas. Quando ela aprendeu desse modo a associar palavras
em relevo com coisas, do mesmo modo, o dr. Howe diz, como
um cão aprende truques, ele começou a decompor as palavras
em letras e ensinou Laura a juntar "c-h-a-v-e", "b-o-n-é". Seu
sucesso o convenceu de que a linguagem podia ser transmitida
de um símbolo para a mente da criança surda-cega que, antes
da educação, está no estágio do bebê que não aprendeu a falar;
na verdade, é um estado muito pior, pois o cérebro cresceu
durante anos sem nutrição natural.
Depois do ensino de Laura progredir por dois meses
somente com o uso de letras em relevo, dr. Howe enviou um de
seus professores para aprender o alfabeto manual de uma surda-
muda. A professora o ensinou a Laura e, daquele momento em
diante, o alfabeto manual foi o meio de comunicação com a
menina.
Após o primeiro ou segundo ano, dr. Howe já não ensinava
Laura diretamente; entregou-a a outros professores que, sob sua
direção, continuaram o trabalho de ensinar-lhe a lingua. [Ver The life and education of Laura
D. Bridgman, da sra. Mary Swift
Lamson.]
Muitos elogios podem ser feitos ao trabalho do dr. Howe.
Como investigador, teve sempre a postura do cientista. Nunca
esqueceu de manter seus registros sobre Laura Bridgman, como
alguém que trabalha num laboratório. O resultado é que seus
registros sobre ela são sistemáticos e cuidadosos. Do ponto de
vista científico, é uma pena que tenha sido impossível manter um
registro tão completo do desenvolvimento de Helen Keller. Isso,
em si, é um grande comentário sobre a diferença entre Laura
Bridgman e Helen Keller. Laura sempre permaneceu um objeto
de curioso estudo. Helen Keller tornou-se rapidamente uma
personalidade distinta que manteve a professora numa corrida
esbaforida para estar à altura das necessidades da aluna, sem
tempo ou forças para fazer disso um estudo científico.
De certo modo isso é uma pena. A srta. Sullivan soube desde
o início que Helen Keller seria mais interessante e bem-sucedida
do que Laura Bridgman e externa numa de suas cartas a necessidade
de tomar notas. Mas nem temperamento nem treinamento lhe
permitiram fazer de sua aluna o objeto de qualquer experimento
ou observação que não ajudasse no desenvolvimento da criança.
Assim que algo estava feito, um objetivo definido ultrapassado, a
professora nem sempre olhava para trás e descrevia o modo
como o fizera. A explicação do fato não era importante
comparada com o fato em si e a necessidade de ir em frente depressa.
Há outras duas razões para os registros da srta. Sullivan serem
incompletos. Escrever sempre foi uma sobrecarga para seus olhos,
e ela se sentiu desencorajada de publicar seus dados pelo uso
inexato feito do que forneceu inicialmente.
Quando a srta. Sullivan escreveu pela primeira vez de
Tuscumbia para o sr. Michael Anagnos, genro e sucessor do dr.
Howe como diretor da Instituição Perkins, sobre seu trabalho
com a aluna, os jornais de Boston começaram imediatamente a
publicar relatos exagerados sobre Helen Keller. A srta. Sullivan
protestou. Numa carta datada de 10 de abril de 1887, apenas
cinco semanas depois do início de seu trabalho com Helen Keller,
ela escreveu a um amigo:
-
enviou-me um Boston Herald contendo um
artigo estúpido sobre Helen. Que absurdo total dizer que
Helen "já está falando fluentemente". Ora, pode-se dizer
da mesma forma que uma criança de dois anos conversa
fluentemente só porque diz "maçã dar", ou "bebê andar
vai". Suponho que se incluirmos seus gritos, exclamações
inarticuladas, gemidos, resmungos e guinchos discordantes,
com chutes ocasionais, na conversa dele, isso pode ser
encarado como fluente - e até eloqüente. Depois, é
divertido ler sobre o preparativo elaborado pelo qual passei
para me ajustar à grande tarefa que meus amigos me
confiaram. Lamento que tal preparação não tenha incluído
soletrar; teria me poupado muitos problemas.
Em 4 de março de 1888, ela escreve numa carta:
-
Na verdade, estou extremamente contente por não
saber tudo que está sendo dito e escrito sobre Helen e sobre
mim. Asseguro-lhe que sei o suficiente. Quase toda
correspondência traz alguma declaração absurda, impressa ou
escrita. A verdade não é maravilhosa o suficiente para
agradar os jornais; então eles a aumentam e inventam exageros
ridículos. Um jornal disse que Helen descrevia problemas
de geometria com a ajuda de seus blocos de brinquedo.
-
Espero ouvir a seguir que ela escreveu um tratado sobre a
origem e o futuro dos planetas!
Em dezembro de 1887, apareceu o primeiro relatório do
diretor da Instituição Perkins que trata de Helen Keller. Para esse
relatório a srta. Sullivan preparara, concordando com relutância
com o pedido do sr. Anagnos, um relato de seu trabalho. Este,
com os extratos de suas cartas espalhadas pelo relatório, é a
primeira fonte válida de informação sobre Helen Keller. Sobre tal
relatório a srta. Sullivan escreveu numa carta datada de 30 de
outubro de 1887:
Você viu o trabalho que escrevi para o "relatório"? O
sr. Anagnos ficou encantado com ele. Diz que o progresso
de Helen vem sendo "uma marcha triunfal desde o início
e tem muitas coisas lisonjeiras a dizer sobre sua professora.
Acho que ele é dado ao exagero; de qualquer modo, sua
linguagem é fulgurante demais e fatos simples são
apresentados de tal maneira que perturbam a pessoa. Sem
dúvida o trabalho dos últimos meses lhe parece uma marcha
triunfal; mas as pessoas raramente vêem os tropeções e
passos dolorosos através dos quais o mais insignificante
sucesso é conquistado.
Como o sr. Anagnos era o diretor de uma grande instituição,
o que disse teve muito mais efeito do que os fatos no relato da srta.
Sullivan nos quais ele baseou suas declarações. Os jornais pegaram
o espírito do sr. Anagnos e exageraram cem vezes mais. Um ano
depois de passar a ensinar Helen Keller, a srta. Sullivan viu-se e à sua
aluna no centro de uma estupenda ficção. A seguir os educadores
por todo o mundo deram suas opiniões e isso geralmente não
ajudou a questão. Acumulou-se uma massa de controvérsias que é
divertido ler agora. Os professores dos surdos provaram apriori
que o que a srta. Sullivan fez não podia ser feito e algum descrédito
refletiu-se nas declarações dela, pois estavam rodeadas pela vaga
eloqüência do sr. Anagnos. Assim a história de Helen Keller incrível
quando contada com moderação, teve o infortúnio de ser proclamada
por anúncios exagerados, esbarrando naturalmente numa
credulidade ignorante ou numa hostilidade incrédula.
Em novembro de 1888, surgiu outro relato da Instituição
Perkins com um segundo trabalho da srta. Sullivan, e a seguir
nada oficial foi publicado até novembro de 1891, quando o sr.
Anagnos expediu o último relatório da Instituição contendo
algo sobre Helen Keller. Para tal relatório, a srta. Sullivan escreveu
o mais completo e amplo relato que já escrevera; e neste o Frost
King foi discutido amplamente num último capítulo. A seguir a
controvérsia tornou-se mais feroz do que nunca.
Descobrindo que outros pareciam saber muito mais sobre
Helen Keller do que ela, a srta. Sullivan manteve-se em silêncio, e
assim tem estado há dez anos, exceto no trabalho do primeiro
Souvenir de Helen Keller do Volta Bureau e na comunicação que,
a pedido do dr. Bell, ela preparou em 1894 para a reunião em
Chautauqua da American Association to Promote the Teaching
of Speech to the Deaf. Quando dr. Bell e Outros lhe dizem, o que
certamente é verdade de um ponto de vista impessoal, que ela
devia escrever o que sabe pela causa da educação, ela responde
muito apropriadamente que deve todo o seu tempo e sua energia
à sua aluna.
Embora a srta. Sullivan ache ainda mais divertido do que
aflitivo quando alguém, mesmo um de seus amigos, comete
erros em artigos publicados sobre ela e a srta. Keller, ela ainda
entende que o livro da srta. Keller deva incluir toda a informação
que a professora possa fornecer no presente momento. Assim,
consentiu na publicação de extratos das cartas que escreveu
durante o primeiro ano do trabalho com a aluna. Tais cartas foram
escritas para a sra. Sophia C. Hopkins, única pessoa para quem a
srta. Sullivan já escreveu livremente. A sra. Hopkins tem sido
superintendente na Instituição Perkins por 20 anos, e durante o tempo
em que a srta. Sullivan estudou lá, foi uma mãe para ela. Nessas
cartas temos um registro quase semanal do trabalho da srta.
Sullivan. Alguns detalhes foram esquecidos por ela, à medida que
passou a generalizar cada vez mais. Muitos têm achado que
qualquer tentativa de encontrar os princípios do método da srta. Sullivan
seria apenas uma teoria posterior superimposta ao trabalho dela.
Mas é evidente que, nessas cartas, a srta. Sullivan analisava
claramente o que vinha fazendo. Era sua própria crítica, e apesar de
sua declaração posterior, feita com um modesto descaso, de que não
seguia nenhum método em especial, ela estava nitidamente
aprendendo com sua tarefa e fraseando à época princípios de educação
de valor único não apenas no ensino dos surdos mas no de todas
as crianças. Os extratos de suas cartas e relatos formam uma
importante contribuição à pedagogia e mais do que justificam a
opinião do dr. Daniel C. Gilman, que escreveu em 1893, quando
presidente daJohns Hopkins University:
-
Acabo de ler... seu muito interessante relato sobre os vários
passos dados pela senhorita na educação de sua maravilhosa
aluna e espero que me permita expressar-lhe minha admiração
pela sabedoria que tem guiado seus métodos, e a afeição
que tem inspirado seus esforços.1
Seguem-se as cartas da srta. Sullivan pela ordem e os trechos
mais importantes dos relatórios. Omiti de cada relato que se segue
o que já fora explicado e não precisava ser repetido. Para facilidade
do leitor e com o consentimento da srta. Sullivan, juntei os extratos
de modo a se sucederem continuamente, e forneci palavras de ligação
e as necessárias mudanças resultantes em sintaxe. A srta. Sullivan
fez leves mudanças no fraseado de seus relatórios e também de
suas cartas, que haviam sido escritas com displicência. Também
sublinhei algumas passagens importantes. A srta. Sullivan gostaria
de ampliar e revisar algumas de suas opiniões, o que será sua tarefa
em outro momento. No presente, temos aqui o registro mais
completo que já foi publicado. A primeira carta é datada de
6 de março
de 1887 [três dias depois da chegada de srta. Sullivan em Tuscumbia]:
(...) Eram 6h30 quando cheguei a Tuscumbia. Encontrei
a sra. Keller e o sr. James Keller esperando por mim.
Disseram-me que alguém esperara cada trem por dois dias. A
viagem da estação para a casa, uma distância de
quilômetro e meio, foi adorável e muito sossegada. Fiquei surpresa
em descobrir que a sra. Keller era uma mulher de aparência
muito jovem, creio que não muito mais velha do que
eu. O capitão Keller veio a nosso encontro no pátio e me
deu animadamente as boas-vindas e um vigoroso aperto
de mão. Minha primeira pergunta foi: "Onde está Helen?".
Tentei com todas as forças controlar a ansiedade que me
fazia tremer tanto que mal podia andar. Quando nos
aproximamos da casa, vi uma criança em pé na porta da frente.
O capitão Keller disse: "Lá está ela. Durante o dia inteiro
Helen sabia que esperávamos alguém e se portou de modo
totalmente turbulento desde que a mãe foi à estação
buscar a senhorita". Mal pus os pés na escada da entrada, Helen
correu para mim com tal força que teria me derrubado se
o capitão Keller não estivesse atrás de mim. Ela apalpou
meu rosto, minha roupa e minha bolsa, que tirou de minha
mão e tentou abrir. A bolsa não abre facilmente e Helen
tateou com cuidado para ver se havia um fecho.
Descobrindo que havia, virou-se para mim fazendo o sinal de
virar uma chave e apontando para a bolsa. Nesse ponto
sua mãe interferiu e lhe mostrou, por sinais, que ela não
devia tocar na bolsa. O rosto de Helen enrubesceu e quando
a mãe tentou tomar-lhe a bolsa Helen ficou muito zangada. Atraí sua atenção mostrando-lhe meu relógio e deixando-a
segurá-lo na mão. Então abri a bolsa e ela a percorreu
avidamente, provavelmente esperando encontrar
algo para comer. É provável que os amigos lhe tenham
trazido doces em suas bolsas e ela esperara encontrar algum
na minha. Eu a fiz entender, apontando para um baú
no saguão e para mim mesma e acenando afirmativamente
com a cabeça, que tinha um baú e então fiz o sinal que ela
tinha usado para comer, acenando afirmativamente com a
cabeça de novo. Ela entendeu imediatamente e correu
escada abaixo para dizer à mãe, através de sinais enfáticos,
que havia doce num baú para ela. Voltou em alguns minutos
e me ajudou a guardar as coisas. Era muito engraçado
vê-la colocar meu chapéu e inclinar a cabeça para um lado,
depois para o outro, e olhar no espelho exatamente como
se pudesse enxergar. De alguma forma eu esperara ver
uma criança pálida e delicada - acho que tirei a idéia da
descrição de Laura Bridgman feita pelo dr. Howe quando
ela foi à instituição. Mas não havia nada de pálido ou delicado
em Helen. Ela é grande, forte, corada, de movimentos
tão soltos quanto os de um cavalinho. Não tem nada
dos hábitos nervosos tão visíveis e aflitivos em crianças
cegas. Seu corpo é bem formado e vigoroso, e a sra. Keller
diz que a filha não esteve mais doente desde a enfermidade
que lhe tirou a visão e a audição. Tem uma bonita cabeça,
ajustada harmoniosamente aos ombros. Seu rosto é
difícil de descrever. É inteligente mas lhe falta mobilidade,
ou alma, ou alguma coisa. Sua boca é grande e delicadamente
desenhada. Vê-se num relance que ela é cega. Um
olho é maior do que o outro, visivelmente saliente. Ela
raramente sorri; na verdade, só a vi sorrir uma ou duas
vezes desde que cheguei. Ela não reage e chega a ficar impaciente com carícias de qualquer um que não seja sua mãe.
Tem um temperamento brusco e voluntarioso e ninguém,
exceto seu irmão James, já tentou controlá-la. O maior
problema que terei de resolver é como discipliná-la e
controlá-la sem dobrar seu espírito. Irei devagar no início
e tentarei conquistar sua estima. Não tentarei conquistá-la
só pela força; mas vou insistir numa obediência razoável
desde o início. Uma coisa que impressiona todo mundo é
a incansável atividade de Helen. Ela não fica parada um
momento sequer. Está aqui, ali, em toda parte. Suas mãos
estão em tudo; mas nada retém sua atenção por muito
tempo. Querida criança, seu espírito inquieto tateia na
escuridão. Suas mãos não-educadas e insatisfeitas destroem
o que quer que toquem porque não sabem o que mais
fazer com as coisas.
Ela me ajudou a tirar as coisas do baú quando ele
chegou e ficou encantada quando encontrou a boneca que as
meninas lhe mandaram. Achei aquela uma boa oportunidade
de ensinar-lhe a primeira palavra. Soletrei "d-o-l-l"
(boneca) lentamente em sua mão e apontei para a boneca,
acenando afirmativamente com a cabeça, o que parece ser
para ela o sinal de posse. Sempre que alguém lhe dá algo,
ela aponta para a coisa, depois para si mesma e acena
afirmativamente com a cabeça. Helen pareceu intrigada e tateou
minha mão; então repeti as letras. Ela as imitou muito bem
e apontou para a boneca. Então peguei a boneca, querendo
dizer que lhe daria novamente quando fizesse as letras; mas
Helen achou que eu pretendia tirá-la dela e num instante teve
um acesso temperamental, procurando pegar a boneca.
Sacudi a cabeça e tentei formar as letras com seus dedos, mas
ela ficou cada vez mais raivosa. Forcei-a a se sentar numa
cadeira e a mantive lá até eu ficar quase exausta. Então me
ocorreu que era inútil continuar a luta - eu devia fazer
algo para mudar a corrente de seus pensamentos. Soltei-a,
mas recusei-me a entregar a boneca. Desci ao andar de baixo
e peguei um pedaço de bolo (ela adora doces). Mostrei
o bolo a Helen e soletrei "c-a-k-e" (bolo) em sua mão,
segurando-o perto dela. Claro que ela o quis e tentou tomá-lo;
mas soletrei a palavra novamente e dei uns tapinhas
carinhosos em sua mão. Ela fez as letras rapidamente e eu lhe
dei o bolo, que ela comeu numa grande pressa, pensando,
acho, que eu poderia tirá-lo dela. Então lhe mostrei a
boneca e soletrei a palavra novamente, segurando a boneca
perto dela como segurara o bolo. Ela fez as letras "d-o-l",
eu acrescentei um "l" e lhe dei aboneca. Helen correu para
o andar de baixo com ela e não pôde mais ser convencida
a voltar para o meu quarto o dia inteiro.
Ontem dei-lhe uma cartela de bordado (sewing-card). Fiz
a primeira fileira de linhas verticais e deixei-a apalpá-lo e
notar que havia várias fileiras de pequenos furos. Ela
começou a trabalhar, encantada, e terminou o cartão em
poucos minutos, muito cuidadosamente. Pensei em tentar outra
palavra e soletrei c-a-r-d (cartão). Ela soletrou "c-a" e
parou, pensou, fez o sinal de comer e, apontando para baixo,
empurrou-me em direção à porta, querendo dizer que eu
devia ir lá para baixo pegar uma fatia de bolo. As duas
letras "c-a" a lembraram da "aula"de sexta-feira - não
que ela tivesse qualquer idéia de que cake (bolo) era o nome
da coisa, mas era simplesmente uma questão de associação,
acho eu. Terminei a palavra c-a-k-e e obedeci a seu
comando. Ela ficou encantada. Então soletrei d-o-l-l e
comecei a procurar a boneca. Ela segue com suas mãos cada
movimento que você faz e sabia que eu estava procurando
a boneca. Então apontou para baixo, querendo dizer que a
boneca estava no andar de baixo. Fiz os sinais que ela usara
quando desejara que eu buscasse o bolo e empurrei-a na
direção da porta. Ela começou a andar e então hesitou um
momento, evidentemente conjeturando se queria ir ou não.
Em vez disso, ela decidiu que eu iria. Sacudi a cabeça e
soletrei d-o-l-l mais enfaticamente e abri a porta para ela; mas
Helen obstinadamente recusou-se a obedecer. Ela não
acabara o bolo que comia e eu o afastei, indicando que se ela
trouxesse a boneca eu lhe devolveria o bolo. Ela ficou
totalmente imóvel por um longo momento, com o rosto muito
vermelho; então seu desejo pelo bolo triunfou e ela correu
para baixo e trouxe a boneca; eu, claro, lhe dei o bolo, mas
não consegui convencê-la a entrar no aposento de novo.
Helen estava muito irritante quando comecei a escrever
esta manhã. Insistia em aparecer por trás de mim e colocar
a mão no papel e dentro do tinteiro. Esses borrões são
obra dela. Finalmente lembrei-me das contas do jardim-
de-infância e a pus para enfiar contas. Primeiro coloquei
duas contas de madeira e uma de vidro, depois a fiz apalpar
o barbante e as duas caixas de contas. Ela fez um sinal
afirmativo com a cabeça e começou imediatamente a
encher o barbante com as contas de madeira. Sacudi a cabeça,
retirei todas as contas e fiz Helen apalpar as duas contas
de madeira e a conta de vidro. Ela as examinou
pensativamente e começou de novo. Dessa vez colocou a conta de
vidro primeiro e as duas de madeira a seguir. Retirei-as e
mostrei-lhe que as duas de madeira deviam ser colocadas
primeiro e a seguir a conta de vidro. Não teve mais
problemas e encheu o barbante rapidamente, rápido demais
na verdade. Ela amarrou as duas pontas quando terminou
e colocou as contas no pescoço. Não dei um nó largo o
suficiente no fio seguinte e as contas saíram tão rapidamente quanto ela as colocara; mas ela própria resolveu a
dificuldade passando o fio através de uma conta e
amarrando-o. Achei isso muito esperto. Ela se divertiu com as
contas até a hora do jantar, trazendo-me os fios de vez em
quando para que eu os aprovasse.
Meus olhos estão muito inflamados. Sei que a carta está
escrita de modo muito displicente. Eu tinha muito a dizer
e não podia parar para pensar como as coisas podiam ser
expressas com clareza. Por favor, não mostre a carta a
ninguém. Se quiser, pode lê-la para os meus amigos.
Segunda-feira à tarde:
Tive uma briga fenomenal com Helen esta manhã.
Embora eu tente bastante não forçar as questões, acho
muito difícil evitá-las.
As maneiras de Helen à mesa são chocantes. Ela põe as
mãos em todos os pratos, serve-se e, quando os pratos
são passados, ela os agarra e tira o que quer. Nesta manhã
não a deixei pôr as mãos no meu prato. Ela insistiu e
seguiu-se uma competição de vontades. Naturalmente a
família ficou muito perturbada e saiu da sala. Eu tranquei a
porta da sala de jantar e continuei a tomar meu café da
manhã, embora a comida quase me sufocasse. Helen estava
deitada no chão, gritando, chutando e tentando puxar
minha cadeira. Ela continuou assim por meia hora, então
levantou para ver o que eu estava fazendo. Eu a deixei ver
que eu estava comendo, mas não a deixei pôr as mãos no
prato. Ela me beliscou e eu a esbofeteei a cada vez que ela
fazia isso. Então ela deu a volta à mesa para ver quem
estava lá e, não encontrando ninguém exceto eu, pareceu
perturbada. Após alguns minutos ela voltou ao seu lugar e
começou a comer o desjejum com os dedos. Eu lhe dei
uma colher, que ela atirou no chão. Forcei-a a sair da cadeira
e a fiz pegar a colher. Finalmente consegui fazê-la voltar
para a cadeira, coloquei a colher em sua mão e a obriguei
a pegar a comida com ela e colocá-la na boca. Em poucos
minutos ela cedeu e terminou o café da manhã pacificamente.
Depois tivemos outra luta para dobrar o guardanapo
dela. Quando terminou, jogou o guardanapo no chão
e correu para a porta. Encontrando-a trancada, começou a
chutar e gritar novamente. Passou-se mais uma hora antes
de eu conseguir que ela dobrasse o guardanapo. Então a deixei
sair ao sol tépido e fui para o meu quarto, atirando-me na
cama, exausta. Chorei bastante e me senti melhor. Acho
que terei muitas batalhas desse tipo com essa pequena
antes de ela aprender as duas únicas coisas essenciais que eu
posso ensiná-la, obediência e amor.
Até mais, querida. Não se preocupe; farei o melhor
possível e deixarei o resto a critério de seja lá o poder que
lide com as coisas com que não podemos lidar. Gosto
muito da sra. Keller.
Tuscumbia, Alabama, 11 de março de 1887: Desde que lhe escrevi, Helen e eu passamos a morar
sozinhas numa casinha-jardim a cerca de uns 400 metros
de sua casa, a uma curta distância de Ivy Green, a propriedade
deles. Cheguei rapidamente à conclusão de que não
poderia fazer nada com Helen no meio da família, já que
esta sempre lhe permitiu fazer exatamente o que queria.
Ela tem tiranizado a todos, mãe, pai, criados, os negrinhos
com quem brinca e ninguém jamais contestou seriamente
a vontade dela, exceto ocasionalmente seu irmão James,
até eu chegar; e como todos os tiranos, ela se agarra tenazmente
a seu direito divino de fazer o que lhe agrada. Se
algum dia não conseguiu o que queria foi devido à sua
inabilidade de fazer os vassalos de sua casa entender o que
era. Cada desejo negado era o sinal para uma explosão
temperamental, e à medida que ela está crescendo e vem
se tornando mais forte tais tempestades vão ficando mais
violentas. Quando comecei a ensinar Helen, fui assaltada
por muitas dificuldades. Ela não cedia um ponto sem
contestá-lo até o amargo fim. Eu não conseguia persuadi-la
pacientemente nem entrar num acordo com ela. Para levá-la
a fazer a coisa mais simples, como pentear os cabelos,
lavar as mãos ou abotoar as botas, era necessário usar a
força e, claro, uma cena deprimente se seguia. A família
naturalmente sentia-se inclinada a interferir, especialmente
o pai, que não suporta vê-la chorar. Portanto, todos
cediam de bom grado para obterem a paz. Além disso, as
companhias de Helen e suas experiências passadas estavam
todas contra mim. Vi claramente que era inútil tentar
ensinar-lhe a língua ou qualquer coisa mais até que ela aprendesse
a me obedecer. Tenho pensado muito sobre isso, e
quanto mais penso mais tenho certeza de que essa obediência
é o portão pelo qual o conhecimento, sim, e o amor,
também, entrarão na mente da criança. Como lhe escrevi,
eu pretendia ir lentamente no início. Tinha idéia de que
poderia conquistar o amor e a confiança de minha
alunazinha pelos mesmos meios que eu usaria se ela pudesse
ver e ouvir. Mas logo descobri que eu estava isolada de
todas as abordagens usuais ao coração de uma criança.
Helen aceitava tudo que eu fazia para ela como natural e
recusava-se a ser acariciada, não havia nenhum meio de
apelar para sua afeição ou simpatia ou amor infantil de aprovação.
Ela cedia ou não e pronto. Portanto, é isso: nós
estudamos, planejamos e nos preparamos para uma tarefa,
e quando chega a hora da ação descobrimos que o
sistema que seguimos com tanto esforço e orgulho não
combina com a circunstância; então nada nos resta se não
nos apoiarmos em algo dentro de nós, alguma capacidade
inata para saber fazer, que não sabíamos possuir até que a
hora de nossa grande necessidade a iluminasse.
Tive uma boa e franca conversa com a sra. Keller e lhe
expliquei como seria difícil fazer qualquer coisa com Helen
nas circunstâncias existentes. Disse-lhe que, na minha
opinião, a criança deveria ser separada da família pelo menos
por algumas semanas - pois precisava aprender a
depender de mim e obedecer-me antes que pudéssemos fazer
qualquer progresso. Após um longo momento, a sra. Keller
disse que pensaria no assunto e consultaria a opinião do sr.
Keller a respeito do nosso afastamento. O capitão Keller
concordou com o esquema prontamente e sugeriu que a
casinha-jardim na "casa antiga" fosse aprontada para nós.
Ele disse que Helen poderia reconhecer o lugar, já que tinha
estado lá com freqüência; mas ela não teria idéia de seus
arredores e eles, os pais, poderiam ver todos os dias se tudo
corria bem, subentendendo-se, é claro, que Helen deveria
desconhecer totalmente tais visitas. Apressei ao máximo os
preparativos de nossa vinda e aqui estamos nós.
A casinha é um autêntico pedaço de paraíso. Ela
consiste num grande aposento quadrado com uma grande
lareira, uma espaçosa janela saliente e um pequeno quarto
onde dorme nosso criado, um garotinho negro. Há uma
varanda na frente, coberta de videiras que crescem de modo
tão abundante que é preciso afastá-las para ver o jardim
além. Nossas refeições são trazidas da casa e geralmente
comemos na varanda, O garoto negro se encarrega de
acender a lareira, quando precisamos; portanto, posso dar
toda a minha atenção a Helen.
Ela ficou muito agitada no início e chutava e gritava até
cair numa espécie de estupor; mas quando o jantar era
trazido, comia com vontade e parecia mais animada,
embora se recusasse a me deixar tocá-la. Na primeira noite
dedicou-se às bonecas, e quando chegou a hora de dormir
ela tirou a roupa quietamente; mas quando me sentiu
entrar na cama com ela, pulou para fora pelo outro lado e
nada que eu pudesse fazer conseguiu persuadi-la a voltar
para a cama. Como eu tinha medo de que ela se resfriasse,
insisti que voltasse para a cama. Tivemos uma briga terrível,
posso lhe dizer. A luta durou quase duas horas. Nunca
vi tanta força e capacidade de resistência numa criança.
Mas felizmente para nós duas, sou um pouco mais forte e
tão obstinada quanto ela quando me disponho. Finalmente
consegui fazê-la voltar para a cama e cobri-a, e ela se
enroscou tão perto da beira da cama quanto possível.
Na manhã seguinte estava muito dócil, mas
evidentemente com saudade de casa. Continuava indo até a porta,
como se esperasse alguém, e de vez em quando tocava a
própria face, que era seu sinal para designar a mãe, e sacudia
a cabeça tristemente. Brincou com as bonecas mais do que
o habitual e não queria saber de mim. É divertido e patético
ver Helen com as bonecas. Não acho que ela tenha nenhuma
ternura especial por elas - nunca a vi acariciá-las; mas as
veste e despe muitas vezes ao dia e as maneja exatamente
como vira a mãe e a babá lidarem com sua irmã bebê.
Esta manhã Nancy, a boneca preferida de Helen,
parecia ter alguma dificuldade para engolir o leite que lhe estava
sendo dado em grandes colheradas, pois Helen
subitamente abaixou a xícara e começou a dar uns tapas
nas costas da boneca, virando-a de bruços no colo, fazendo-a
trotar suavemente e dando-lhe pancadinhas delicadas
o tempo todo. Isso durou vários minutos; a seguir esse
estado de espírito passou, Nancy foi atirada impiedosamente
ao chão e empurrada para um lado, enquanto um
grande, corado e penugento membro da família recebia a
atenção total da mãezinha.
Helen conhece várias palavras agora, mas não tem idéia
de como usá-las ou de que tudo tem um nome. Contudo,
acho que aprenderá bastante rápido com o tempo. Como
eu já disse antes, ela é maravilhosamente brilhante, ativa e
de movimentos tão velozes quanto o relâmpago.
13 de março de 1887: Você vai ficar contente de saber que minha experiência
está dando um ótimo resultado. Não tive absolutamente
nenhum problema com Helen ontem ou hoje. Ela
aprendeu três novas palavras e quando lhe dou os objetos cujos
nomes ela aprendeu, ela os soletra sem hesitar; mas parece
contente quando a aula termina.
Fizemos uma brincadeira esta manhã lá no jardim. Helen
evidentemente soube onde estava assim que tocou as
cercas de buxo e fez muitos sinais que eu não entendi. Sem
dúvida eram sinais para os diferentes membros da família
em Ivy Green.
Acabei de saber de algo que me surpreendeu muito.
Parece que o sr. Anagnos ouvira falar de Helen antes de ter
recebido a carta do capitão Keller no verão passado. O sr.
Wilson, um professor de Florença e amigo dos Keller,
estudou em Harvard no último verão e foi para a Instituição
Perkins saber se algo podia ser feito pela filha de seu
amigo. Ele falou com um cavalheiro que imaginou ser o diretor
da Instituição e lhe contou sobre Helen. Contou que o
cavalheiro não ficou especialmente interessado, mas disse
que veria se algo podia ser feito. Não é estranho que o sr.
Anagnos jamais tenha falado dessa entrevista?
20 de março de 1887: Meu coração está cantando de alegria esta manhã. Aconteceu
um milagre! A luz do entendimento brilhou na mente de
minha alunazinha e pronto, todas as coisas estão mudadas!
A alucinada criaturinha de duas semanas atrás
transformou-se numa criança gentil. Ela está sentada a meu lado
enquanto escrevo, o rosto sereno e feliz, fazendo no
croché uma longa peça vermelha de lã escocesa. Ela aprendeu
o ponto esta semana e está muito orgulhosa de sua
realização. Quando conseguiu fazer uma seqüência que
atravessava o aposento, ela própria se deu tapinhas
congratulatórios no braço e pôs amorosamente o primeiro
trabalho de suas mãos contra o rosto. Agora ela me deixa
beijá-la e, quando está num estado de espírito especialmente
gentil, senta no meu colo por um ou dois minutos;
mas não retribuiu os meus carinhos. O grande passo - o
passo que conta - foi dado. A pequena selvagem
aprendeu sua primeira lição de obediência e descobriu que o
arreio é leve. Resta agora minha agradável tarefa de dirigir e
moldar a bela inteligência que está começando a se mover
na alma-criança. As pessoas já notam a mudança em Helen.
Seu pai dá uma espiada em nós de manhã e à noite, quando
ele vai e volta do escritório e a vê enfiando contas, contente,
ou fazendo linhas horizontais na cartela de bordado e
exclama: "Como Helen está quieta!". Quando cheguei, os
movimentos dela eram tão insistentes que se sentia que havia
algo não natural e quase esquisito nela. Notei também que
ela come muito menos, um fato que perturba tanto seu pai
que ele fica ansioso para levá-la para casa. Diz que ela está
com saudade de casa. Não concordo com ele, mas acho
que teremos de deixar nosso pequeno caramanchão muito
em breve.
Helen aprendeu vários substantivos esta semana. M-u-g
(caneca) e m-i-l-k (leite) lhe deram mais trabalho que outras
palavras. Quando ela soletra milk, aponta para a caneca, e
quando soletra mug faz o sinal de derramar ou beber, o
que mostra que confunde as palavras. Ela ainda não tem
idéia de que tudo tem um nome.
Ontem, fiz o garoto negro entrar quando Helen estava
tendo aula e aprender as letras também. Isso lhe agradou
muito e estimulou sua ambição de sobrepujar Percy.
Ficava encantada quando ele cometia um erro e o fazia formar
as letras várias vezes. Quando ele conseguiu formá-las de
modo que a satisfizesse, ela deu uns tapinhas na cabecinha
lanosa tão vigorosamente que achei que algum dos
escorregões de Percy eram intencionais.
Um dia desta semana, o capitão Keller trouxe Belle,
um setter de que tem muito orgulho, para nos visitar. Ele
cogitou se Helen reconheceria sua velha companheira de
brincadeiras. Mas Helen estava dando um banho em Nancy
e não notou a cadela no início. Helen geralmente percebe o
passo mais leve e estica os braços para certificar-se de que
há alguém perto dela. Belle não parecia muito ansiosa para
atrair a atenção da menina. Imagino que às vezes tenha
sido tratada de maneira áspera por sua pequena dona. A
cadela já estava na casa havia meio minuto quando Helen
começou a farejar e deixou a boneca cair na bacia e tateou
pela sala. Então tropeçou em Belle, agachada perto da
janela ante a qual estava o capitão Keller. Era evidente que
Helen reconhecera Belle, pois abraçou-a pelo pescoço e a
apertou. Então sentou-se perto dela e começou a manipular
suas patas. Por um segundo não conseguimos imaginar
o que estava fazendo, mas quando a vimos fazer as letras
d-o-l-l com os próprios dedos, entendemos que estava
tentando ensinar Belle a soletrar.
28 de março de 1887: Helen e eu viemos para casa ontem. Lamento que não
nos deixassem ficar mais uma semana. Acho porém que
fiz o máximo possível para aproveitar as oportunidades
nas duas últimas semanas e não espero ter qualquer
problema sério com Helen no futuro. O maior obstáculo no
caminho do progresso é andar para trás. Acho que "não"
e "sim", transmitidos por um estremecimento ou um
aceno de minha cabeça, tornaram-se fatos tão aparentes para
ela quanto quente e frio, ou as diferenças entre dor e
prazer. E não pretendo que a lição que ela aprendeu à custa de
tanta dor e problema seja desaprendida. Eu ficarei entre
ela e a superindulgência de seus pais. Eu disse ao capitão e
à sra. Keller que eles não devem interferir comigo de
nenhum modo. Tenho tentado ao máximo mostrar-lhes a
terrível injustiça feita a Helen de permitirem que ela faça o
que quiser em tudo e ressaltei que para ensinar crianças não
podemos atender a todas as vontades delas, que isso pode
ser doloroso para a criança e para sua professora.
Prometeram-me deixar-me livre e me ajudar tanto quanto
possível. O progresso da filha, que não podem deixar de ver,
lhes deu mais confiança em mim. É difícil para eles, claro.
Percebo que dói ver sua aflita filhinha punida e obrigada a
fazer coisas contra a vontade. Poucas horas depois de
minha conversa com o capitão e sra. Keller (e eles concordaram
com tudo), Helen resolveu que não usaria seu
guardanapo à mesa. Acho que queria ver o que aconteceria.
Tentei várias vezes colocar o guardanapo no seu pescoço,
mas todas as vezes ela o arrancava, jogava-o no chão
e finalmente começou a chutar a mesa. Levei o prato dela
embora e comecei a tirá-la da sala. Seu pai objetou e disse
que nenhum filho dele seria privado de comida, fosse por
que fosse.
Helen não apareceu no meu quarto depois do jantar e
não a vi de novo até a hora do café da manhã. Ela estava
no seu lugar quando desci. Tinha posto o guardanapo sob
o queixo, em vez de prendê-lo nas costas, como era seu
costume. Ela chamou minha atenção para o novo arranjo
e quando não objetei, pareceu satisfeita e deu uns tapinhas
carinhosos em si mesma. Quando deixou a sala de jantar,
ela pegou minha mão e deu uns tapinhas nela. Cogitei se
estaria tentando "fazer as pazes". Pensei em experimentar
o efeito de um pouco de disciplina tardia. Voltei à sala de
jantar e peguei um guardanapo. Quando Helen subiu para
a aula, arrumei os objetos sobre a mesa como o habitual, à
exceção do bolo, que sempre lhe dou em pedaços como
recompensa quando ela soletra uma palavra rápida e
corretamente. Ela notou imediatamente a falta do bolo e fez
o sinal para ele. Mostrei-lhe o guardanapo e prendi-o em
torno de seu pescoço, então o arranquei, joguei-o no chão
e sacudi a cabeça. Repeti essa atuação várias vezes. Acho
que ela entendeu perfeitamente, pois bateu em sua mão
duas ou três vezes e sacudiu a cabeça. Começamos a aula
como sempre. Dei-lhe um objeto e ela soletrou seu nome
(conhece 12 palavras agora). Após soletrar metade das
palavras, ela parou de súbito, como se um pensamento
irrompesse em sua mente, e tateou em busca do guardanapo.
Então amarrou em torno do pescoço e fez o sinal
do bolo (não lhe ocorrera soletrar a palavra, veja você).
Aceitei isso como uma promessa de que se eu lhe desse
um pedaço de bolo ela seria uma boa menina. Dei-lhe um
pedaço maior do que o habitual e ela riu e deu tapinhas em
si mesma.
3 de abril de 1887: Quase vivemos no jardim, onde tudo está crescendo,
florescendo e fulgurando. Após o café-da-manhã nós saímos
e observamos os homens trabalhando. Helen adora
cavar e brincar na terra como qualquer criança. Nesta
manhã, ela plantou sua boneca e me mostrou que esperava
que ela crescesse tanto quanto eu. Você deve notar que ela
é muito brilhante, mas não tem idéia de como é astuciosa.
As dez, entramos e enfiamos contas por alguns minutos.
Ela pode fazer muitas combinações agora e inventa
novas com freqüência para si. Então deixei-a decidir se ela
costuraria, tricotaria ou faria crochê. Ela aprendeu a
tricotar muito rapidamente e está fazendo um esfregão para a
mãe. Na semana passada fez um avental para a boneca e
estava tão bem-feito quanto o de qualquer criança de sua
idade. Mas fico sempre contente quando este trabalho
encerra o dia. Costurar e fazer crochê são invenções do
demônio, acho eu. Prefiro quebrar pedras na estrada real do
que fazer bainha num lenço. Ás 11 horas temos ginástica.
Ela executa todos os movimentos com as mãos e usa
halteres. Seu pai diz que vai preparar um ginásio para ela na
casa da bomba, mas nós duas gostamos mais de uma boa
e viva brincadeira do que de exercícios estabelecidos. O
período de meio-dia à uma hora é dedicado ao
aprendizado de novas palavras. Mas não pense que esse é o único momento
em que soletro para Helen; pois soletro em sua mão tudo que fazemos
o dia inteiro, embora ela ainda não tenha idéia do que signifique
soletrar. Após o almoço descanso por uma hora e Helen
brinca com as bonecas ou brinca animadamente no pátio
com os negrinhos, seus companheiros constantes antes de
minha vinda. Depois, junto-me a eles e fazemos a ronda
do entorno. Visitamos os cavalos e mulas em suas baias,
procuramos ovos e alimentamos os perus. Freqüentemente,
quando o tempo está bom, passeamos de quatro às seis,
ou vamos visitar a tia de Helen em Ivy Green ou seus
primos na cidade. Helen tem uma inclinação decididamente
social; ela gosta de gente em torno dela e de visitar os
amigos; sobretudo, acho eu, porque eles sempre têm coisas
que ela gosta de comer. Depois do jantar vamos para o
meu quarto e fazemos vários tipos de coisas até as oito,
quando então mudo a roupa da mocinha e a ponho na
cama. Helen dorme comigo agora. A sra. Keller queria
arranjar uma babá para ela, mas concluí que eu preferia ser
sua babá do que tomar conta de uma negra burra e
preguiçosa. Além disso, gosto que Helen dependa de mim
para tudo e acho muito mais fácil ensinar-lhe coisas em
momentos peculiares do que em horas estabelecidas.
Em 31 de março descobri que Helen conhecia 18
substantivos e três verbos. Aqui está uma lista das palavras. As
que vêm seguidas de um X são as que ela própria pediu:
boneca, caneca, alfinete, chave, cachorro, chapéu, xícara, caixa, água,
leite, doce, olho (X), dedo (X), dedo do pé (X), cabeça (X), bolo, bebê,
mãe, sentar, levantar, andar. No dia 1.º de abril ela aprendeu
os substantivos faca, garfo, colher, pires, chá, papai, cama, e o
verbo correr.
5 de abril de 1887: Preciso lhe escrever uma linha esta manhã porque algo
muito importante aconteceu. Helen deu um segundo grande
passo em sua educação. Ela aprendeu que tudo tem um nome
e que o alfabeto manual é a chave para tudo que quer saber.
Numa carta anterior escrevi-me que "caneca" e "leite"
haviam dado a Helen mais trabalho do que todo o resto.
Ela confundia os substantivos com o verbo "beber". Ela
não conhecia a palavra para "beber", mas fazia o gestual
de beber sempre que soletrava "caneca" ou "leite". Esta
manhã, enquanto estava se lavando, quis saber o nome para
"água". Quando ela quer saber o nome de algo, aponta
para a coisa e dá uns tapinhas na minha mão. Eu soletrei
e não pensei mais nisso até depois do café-da manhã.
Então me ocorreu que, com a ajuda dessa nova
palavra, eu poderia ter êxito em solucionar a dificuldade
"caneca-leite". Fomos até a casa da bomba e fiz Helen
colocar sua caneca sob a saída da água enquanto eu bombeava.
Quando a água gelada jorrou enchendo a caneca, eu soletrei
"á-g-u-a" na mão livre de Helen. A palavra vindo tão
próxima da sensação da água gelada escorrendo por sua mão
pareceu espantá-la. Deixou cair a caneca e ficou paralisada.
Uma nova luz surgiu em seu rosto. Ela soletrou "água"
várias vezes. Então deixou-se cair no chão e perguntou pelo
nome deste, e apontou a bomba e a treliça, e subitamente,
virando-se, perguntou meu nome. Soletrei "professora".
Naquele momento a babá entrou na casa da bomba com
a irmãzinha de Helen; esta soletrou "bebê" e apontou para a
babá. Durante todo o caminho de volta à casa Helen estava
altamente excitada e aprendeu o nome de cada objeto que
tocava, de modo que em poucas horas ela acrescentara 30
novas palavras a seu vocabulário. Aqui vão algumas delas:
porta, abrir, fechar, dar, ir, rir e muitas outras mais.
PS. Não terminei a carta a tempo de ser postada na
noite passada, portanto acrescento uma linha. Helen
levantou naquela manhã como uma radiante fada. Ela flutuava
de um objeto a outro perguntando o nome de tudo e me
beijando por puro contentamento. Na noite passada,
quando me deitei, ela correu para os meus braços espontaneamente
e me beijou pela primeira vez. Pensei que meu
coração estouraria, tão cheio de alegria estava.
10 de abril de 1887: Noto progresso em Helen a cada dia, quase de hora em
hora. Tudo precisa ter um nome agora. A qualquer lugar
que vamos, ela pergunta avidamente os nomes das coisas
que não aprendeu em casa. Está ansiosa para ver os amigos
e soletrar para eles e para ensinar as letras a todos que encontra.
Ela deixa de lado os sinais e a encenação que usava antes
logo que tem as palavras para suprir o lugar deles, e a aquisição
de uma nova palavra lhe dá o mais vivo prazer. E
notamos que seu rosto fica mais expressivo a cada dia.
Decidi não dar aulas regulares no momento presente. Vou tratar
Helen exatamente como uma criança de dois anos. Ocorreu-me no
outro dia que é absurdo exigir que uma criança venha a um
determinado lugar numa determinada hora e recite determinada lição, quando
ela ainda não adquiriu um vocabulário de trabalho. Mandei Helen
embora e sentei para pensar. Perguntei a mim mesma: "Como
uma criança normal aprende a língua?". A resposta é simples:
"Por imitação". A criança chega ao mundo com a
capacidade de aprender e aprende sozinha, desde que lhe seja
fornecido suficiente estímulo externo. Ela vê as pessoas
fazendo coisas e tenta fazê-las também. Ouve os outros falarem
e tenta falar. Mas muito antes de emitir a primeira palavra,
ela entende o que lhe é dito. Ultimamente venho observando a
priminha de Helen, de cerca de 15 meses, que já entende
bastante coisa. Em resposta a perguntas, ela move lindamente
o nariz, boca, olho, queixo, face, orelha. Se eu digo
"Onde está a outra orelha do bebê?", ela aponta para a
orelha corretamente. Se lhe entrego uma flor e digo "Dê a
flor para a mamãe", ela a leva para a mãe. Se digo "Onde
está essa levadinha?", ela se esconde atrás da cadeira da
mãe, ou cobre o rosto com as mãos e me espia dali com
uma expressão genuinamente levada. Ela obedece a muitas
ordens como: "Vem", "Beije", "Vá até o papai", "Feche a
porta", "Dê-me o biscoito". Mas ainda não a ouvi tentar
dizer nenhuma dessas palavras, embora tenham sido repetidas
centenas de vezes diante dela e seja totalmente óbvio
que a menina as entende. Tais observações me deram uma
pista para o método a ser seguido para ensinar a lingua a
Helen. Vou falar na sua mão, assim como falamos ao ouvido do bebê.
Vou partir do princípio de que ela tem a capacidade de
assimilação e imitação de uma criança normal. Usarei frases
inteiras ao falar com ela e completarei o significado com gestos
e seus sinais descritivos quando precisar, mas vou tentar não
manter sua mente fixada numa coisa só. Farei todo o
possível para interessá-la e estimulá-la, e espero resultados.
24 de abril de 1887: O novo esquema funciona esplendidamente. Helen
conhece o significado de mais de cem palavras agora e aprende
diariamente novas palavras sem a mínima suspeita de que
está realizando um feito muito difícil. Aprende porque não
pode evitá-lo, exatamente como o pássaro aprende a voar.
Mas não imagine que ela "fala fluentemente". Como sua
priminha bebê, ela expressa frases inteiras por palavras
isoladas. "Leite", com um gesto, significa "Dê-me mais leite";
"Mãe", acompanhada por um olhar interrogativo, significa
"Onde está mamãe?"; "Sair" significa "Eu quero sair". Mas
quando soletro em sua mão "Dê-me um pedaço de pão",
ela me entrega o pão; ou se eu digo "Pegue seu chapéu e
vamos dar uma caminhada", ela obedece instantaneamente.
As duas palavras "chapéu" e "caminhada" teriam o
mesmo efeito; mas a frase inteira, repetida muitas vezes durante o dia,
com o tempo vai se fixar em seu cérebro e aos poucos ela própria a
usará.
Fazemos um joguinho que acho muito útil para
desenvolver o intelecto e que incidentalmente atende ao objetivo
de uma aula de linguagem. É uma adaptação do chicote-queimado. Eu escondo algo, uma bola ou um carretel, e
vamos procurá-lo. Quando fizemos essa brincadeira pela
primeira vez, há dois ou três dias, ela não mostrou nenhuma engenhosidade para encontrar o objeto. Procurava-o
em lugares onde seria impossível colocá-lo. Por exemplo,
quando escondi o carretel, ela o procurou sob a prancheta
de escrever. Outra vez, escondi o carretel, e Helen o
procurou numa caixinha de três centímetros de comprimento e
desistiu logo da procura. Agora posso manter seu interesse
no jogo por uma hora ou mais, e ela demonstra muito mais
inteligência e geralmente grande engenhosidade na busca.
Nesta manhã, escondi uma bolacha. Ela a procurou em toda
parte que pôde imaginar sem sucesso, e estava evidentemente
desesperada quando uma idéia subitamente lhe ocorreu.
Ela veio correndo até mim e me fez abrir bem a boca,
enquanto fazia-me uma investigação total. Não encontrando
nenhum traço da bolacha ali, apontou para o meu estômago
e soletrou "comer", significando "Você a comeu?".
Na sexta-feira fomos à cidade e encontramos um
cavalheiro que deu uma guloseima a Helen; ela comeu, à
exceção de um pequeno pedaço, que guardou no bolso do
avental. Quando chegamos em casa, ela encontrou a mãe e
por sua própria conta disse: "Dar doce bebê". A sra. Keller
soletrou: "Não-bebê come-não". Helen foi até o berço,
tateou a boca de Mildred e apontou para seus próprios
dentes. A sra. Keller soletrou "dentes". Helen sacudiu a
cabeça e soletrou "Bebê dentes-não, bebê come-não",
querendo dizer, é claro, "Bebê não pode comer porque
não tem dentes".
8 de maio de 1887: Não, não quero mais nenhum material de jardim-deinfância.
Usei meu pequeno estoque de contas, cartões e
canudos no início porque não sabia mais o que fazer; mas
a necessidade deles já passou, pelo menos no presente.
Estou começando a suspeitar de todos os sistemas
elaborados e especiais de educação. Eles me parecem
construídos na suposição de que cada criança é uma espécie
de idiota a quem se precisa ensinar a pensar. Pelo contrário,
se a criança for deixada em paz, ela pensará mais e
melhor, embora de forma menos exibida. Vamos deixá-la
ir e vir livremente, tocarem coisas verdadeiras e combinar
suas impressões por si mesma, em vez de colocá-la dentro
dos locais ante pequenas mesas redondas, com um
professor de voz doce sugerindo que ela construa um muro
de pedra com blocos de madeira, ou faça um arco-íris
com tiras de papel colorido, ou plante mudas de árvore
em redondos vasinhos de flores. Tal ensino enche a mente
com associações artificiais que precisam ser alijadas antes
que a criança possa desenvolver idéias independentes a partir
das experiências reais.
Helen está aprendendo adjetivos e advérbios tão facilmente
como aprendeu substantivos. A idéia sempre
precede a palavra. Ela tinha sinais para pequeno e grande muito
antes que eu viesse para cá. Se ela quisesse um pequeno objeto e lhe fosse dado um grande, ela sacudia a cabeça e
pegava um pedacinho da pele de uma mão entre o
polegar e o dedo da outra. Se queria indicar algo grande,
esticava os dedos das duas mãos o máximo possível e os
unia, como para segurar uma grande bola. No outro dia
substituí as palavras pequeno e grande por esses sinais e ela
imediatamente adotou as palavras e descartou os sinais.
Posso agora dizer-lhe para me trazer um livro grande ou
uma travessa pequena, subir lentamente ao andar de cima,
correr e andar rapidamente. Esta manhã ela usou a
conjunção e pela primeira vez. Eu lhe disse para fechar a porta
e ela acrescentou, "e trancar".
Subiu voando ao andar de cima alguns minutos atrás
num estado de grande animação. No início não consegui
entender a causa daquilo. Ela continuava soletrando
"cachorro-bebê" e apontando para seus cinco dedos um depois
do outro e sugando-os. Meu primeiro pensamento foi que
um dos cães machucara Mildred; mas o rosto radiante de
Helen afastou meus temores. Não havia nada a fazer senão
ir com ela a algum lugar para ver alguma coisa. Ela foi na
frente para a casa da bomba e lá no canto estava um dos
setters com cinco engraçadinhos filhotes! Ensinei a Helen a
palavra "filhote" e levei a mão dela até todos eles enquanto
mamavam e soletrei "filhotes". Ela estava muito interessada
no processo de alimentação e soletrou "mãe-cachorro" e
"bebê" várias vezes. Helen notou que os olhos dos filhotes
estavam fechados e disse: "Olhos-fechados. Sono-não",
significando "Os olhos estão fechados mas os filhotes não
estão dormindo". Ela gritou de alegria quando os filhotinhos
guincharam e se contorceram em seus esforços de voltar
para a mãe, e soletrou, "Bebê-come grande". Acho que
sua idéia era "Bebê come muito". Ela apontou para cada
filhote, um depois do outro, e para seus cinco dedos. E eu
lhe ensinei a palavra cinco. Então ela ergueu um dedo e
disse bebê. Eu sabia que ela estava pensando em Mildred,
e soletrei: "Um bebê e cinco filhotinhos". Depois de ter
brincado com eles um pouco, ocorreu-lhe que os filhotinhos
deviam ter nomes especiais, como pessoas, e perguntou o
nome de cada filhote. Eu lhe disse para perguntar a seu pai
e ela respondeu: "Não-mãe". Ela evidentemente pensou
ser mais provável que as mães soubessem sobre bebês de
todos os tipos. Notou que um dos filhotes era muito
menor que os outros e soletrou "pequeno", fazendo o sinal
ao mesmo tempo, e eu disse "muito pequeno". Ela
evidentemente entendeu que muito era o nome da coisa nova
que entrara em sua mente; por todo o caminho de volta à
casa ela usou a palavra muito corretamente. Uma pedra era
"pequena", outra "muito pequena". Quando ela tocou sua
irmãzinha, disse: "Bebê-pequeno. Filhote-muito pequeno".
Logo depois, começou a variar seus passos de grandes
para pequenos, e passos pequenininhos eram "muito
pequenos". Ela está percorrendo a casa agora, aplicando as
palavras novas a todo tipo de objeto.
Desde que abandonei a idéia de aulas regulares, vejo que
Helen aprende muito mais rápido. Estou convencida de
que o tempo gasto pelo professor desencavando da criança
o que colocou nela, para ter a satisfação de que o
ensinamento se enraizou, é um tempo jogado fora. Penso que é
muito melhor presumir que a criança está fazendo sua parte
e que a semente que se plantou dará frutos no devido tempo.
Seja como for, é justo para com a criança e poupa a você
muito esforço desnecessário.
16 de maio de 1887: Começamos a fazer longas caminhadas todas as
manhãs, imediatamente depois do café. O tempo está bom e
o ar cheio do perfume dos morangos. Nosso objetivo é
Keller's Landing, no Tennessee, a uns três quilômetros de
distância. Nunca sabemos como chegar lá, ou onde estamos
num determinado momento; mas isso só faz aumentar
nosso prazer, especialmente quando tudo é novo e estranho. Na verdade, sinto como se nunca tivesse visto nada
até agora; Helen descobre tanto sobre o que perguntar ao
longo do caminho. Corremos atrás das borboletas e às
vezes pegamos uma. Então sentamos sob uma árvore, ou
à sombra de um arbusto, e conversamos sobre a borboleta.
Depois, se esta sobreviveu à aula, nós a deixamos ir,
mas geralmente sua vida e beleza são sacrificadas no altar
do aprendizado, embora em outro sentido ela viva para
sempre. Pois não foi transformada em pensamentos
vivos? É maravilhoso como as palavras geram idéias! Cada
nova palavra que Helen aprende parece levar consigo a
necessidade de outras mais. Sua mente cresce por meio de
sua incessante atividade.
Keller's Landing foi usada durante a guerra para o
desembarque de tropas, mas há muito tempo se
desmantelou e está tomada por musgos e algas. A solidão do local
deixa a pessoa nostálgica. Perto do local há uma bela
fontezinha que Helen chama de "copo de esquilo", pois eu
lhe contei que os esquilos iam ali para beber. Ela apalpou
coelhos, esquilos mortos e outros animais silvestres, e está
ansiosa para ver um "esquilo-anda", que interpretado
significa um "esquilo vivo". Vamos para casa geralmente na
hora do jantar e Helen está ansiosa para contar à mãe tudo
que viu. Esse desejo de repetir o que lhe foi contado mostra um
avanço marcante no desenvolvimento de seu intelecto e é um valioso
estímulo para a aquísição da linguagem. Peço a seus amigos para
estimulá-la a contar-lhes seus feitos e manifestar tanta curiosidade e
prazer com as pequenas aventuras dela quanto puderem. Isto gratifica
o amor da criança pela aprovação e mantém seu interesse
nas coisas. Isso é a base da verdadeira inter-relação.
Ela comete muitos equívocos, claro, torce palavras e
frases, põe o carro na frente dos bois e se mete em tremendos emaranhados de substantivos e verbos; mas a criança
que ouve também o faz. Tenho certeza de que tais dificuldades
vão se diluir sozinhas. O impulso de contar é o que
importa. Forneço uma palavra aqui e ali, às vezes uma frase,
e sugiro algo que ela omitiu ou esqueceu. Portanto seu
vocabulário cresce rapidamente e as novas palavras
germinam e produzem novas idéias; e estas são o material de
que o céu e a terra são feitos.
22 de maio de 1887: Meu trabalho fica mais interessante e absorvente a cada
dia. Helen é uma criança maravilhosa, tão espontânea e
ávida por aprender. Ela conhece agora cerca de 300
palavras e muitas expressões idiomáticas, e só aprendeu a
primeira palavra três meses atrás. É um raro privilégio assistir
ao nascimento, crescimento e primeiras frágeis lutas de uma
mente viva; esse privilégio é meu, sendo-me dada também a
possibilidade de despertar e guiar essa inteligência brilhante.
Se ao menos eu fosse mais capacitada para essa grande
tarefa! Sinto-me cada dia mais inadequada. Minha mente está
cheia de idéias, mas não consigo pô-las em forma de
trabalho. Minha mente é indisciplinada, cheia de pulos e saltos, e
aqui e ali um monte de coisas empilham-se em cantos escuros.
Como anseio por colocá-las em ordem! Se pelo menos
eu tivesse alguém para me ajudar! Eu própria preciso de um
professor tanto quanto Helen. Sei que a educação dessa
criança será o acontecimento marcante da minha vida, se eu
tiver mente e perseverança para realizá-lo. Cheguei a uma
conclusão: Helen precisa aprender a usar livros - na
realidade, ambas precisamos aprender a usá-los, e isso me faz
lembrar - você pode, por favor, pedir ao sr. Anagnos
para conseguir para mim as psicologias de Perez e de Sully?
Acho que me serão úteis.
Temos tido aulas lidas todos os dias. Geralmente
levamos um dos pequenos livros para alfabetização até uma
grande árvore perto da casa e passamos uma ou duas
horas descobrindo as palavras que Helen já conhece. Fazemos
disso uma espécie de jogo e tentamos ver quem pode encontrar
as palavras mais rapidamente, Helen com os dedos ou eu
com os olhos, e ela aprende tantas novas palavras quanto
eu posso explicar com a ajuda daquelas que já conhece.
Quando seus dedos se iluminam sobre as palavras
conhecidas, ela dá gritos de prazer e me abraça e beija de alegria,
especialmente se acha que me derrotou. Você ficaria muito
espantada de ver quantas palavras ela aprende em uma
hora dessa maneira agradável. Depois eu coloco as
palavras novas em pequenas frases num quadro e às vezes é
possível contar uma pequena história sobre uma abelha ou
um gato ou um garotinho desse modo. Posso agora dizer
a Helen para subir ao andar de cima, descer, sair ou entrar
em casa, trancar ou destrancar uma porta, levar ou trazer
objetos, sentar, levantar, andar, correr, deitar, arrastar-se,
rolar ou trepar. Ela está encantada com as palavras-ação;
portanto, não é nenhum problema ensinar-lhe os verbos.
Está sempre pronta para uma aula, e a avidez com que
absorve idéias é maravilhosa. Ela se sente tão triunfante
com a conquista de uma frase quanto um general que
capturou a fortaleza do inimigo.
Um dos velhos hábitos de Helen, o mais forte e difícil
de corrigir, é a tendência a quebrar coisas. Quando ela
encontra algo no caminho, atira-o no chão não importa o
que seja: um copo, uma jarra ou mesmo um lampião. Ela
tem muitas bonecas e todas foram quebradas num acesso
de raiva ou tédio. No outro dia um amigo lhe trouxe uma
nova boneca de Memphis, e pensei em tentar fazer com
que Helen entendesse que não devia quebrar a boneca. Eu
a levei a fazer o movimento de bater com a cabeça da
boneca na mesa e soletrei para ela: "Não, não, Helen é
levada. Professora está triste", e fiz com que ela tocasse a
expressão pesarosa do meu rosto. Então a fiz acariciar a
boneca e beijar o lugar machucado e segurá-la gentilmente
nos braços e soletrei para ela: "Helen boa, professora está
feliz", e deixei-a tocar o sorriso no meu rosto. Ela repetiu
esses movimentos várias vezes, imitando cada um deles,
e então ficou muito quieta por um momento com uma
expressão perturbada no rosto, que subitamente clareou
e ela soletrou: "Helen boa" e torceu o rosto num sorriso
muito grande e artificial. A seguir levou a boneca para o
andar de cima, colocou-a na prateleira do alto no armário
e desde então não tocou mais nela.
Por favor, dê afetuosas lembranças ao sr. Anagnos e
mostre-lhe minha carta, se achar melhor. Soube que há uma
criança surda e cega sendo educada na Instituição de Baltimore.
2 de junho de 1887: O calor está exorbitante. Precisamos tremendamente de
chuva. Estamos todos perturbados com Helen, que se mostra
muito nervosa e excitável. Fica inquieta à noite e não tem
nenhum apetite. É difícil saber o que há com ela. O médico
diz que sua mente está ativa demais; no entanto, como a
impediremos de pensar? Ela começa a soletrar no minuto
em que acorda de manhã e continua por todo o dia. Se me
recuso a falar, ela soletra em sua própria mão e
aparentemente entabula a mais animada conversa consigo mesma.
Dei-lhe minha lousa de braile para brincar, achando
que o mecânico perfurar do papel seria divertido para ela
e lhe descansaria a mente. Mas qual não foi o meu espanto
quando descobri que a feiticeirazinha estava escrevendo
cartas! Eu não tinha idéia de que ela soubesse o que era
uma carta. Ela tem ido freqüentemente comigo até o correio
para postar cartas e acho que repeti para ela coisas que
escrevi para você. Ela sabia também que às vezes escrevo
"cartas para meninas cegas" na lousa, mas eu não imaginava
que ela tivesse uma idéia clara do que fosse uma carta.
Um dia ela me trouxe uma folha de papel onde havia feito
vários furos e queria que eu a colocasse num envelope e a
levasse ao correio. Ela disse: "Frank-carta". Perguntei-lhe
o que havia escrito a Frank. Ela respondeu: "Muitas palavras.
Filhote mãe cachorro-cinco. Bebê-chora. Calor. Helen
anda-não. Fogo sol-mau. Frank-venha. Helen-beijo Frank.
Morangos-muito bons".
Helen está quase tão ansiosa para ler quanto para falar.
Descobri que ela pega o principal de frases inteiras, capturando
pelo contexto o significado de palavras que não
conhece; e suas ávidas perguntas indicam o alcance exterior
de sua mente e seu potencial pouco comum.
Na outra noite, quando fui para cama, encontrei Helen
dormindo profundamente agarrada a um grande livro.
Evidentemente estivera lendo e adormecera. Quando lhe
perguntei sobre ele na manhã seguinte, ela disse: "Livro-grito",
e completou o significado tremendo e dando outros sinais
de medo. Ensinei-lhe a palavra medo e ela disse: "Helen
não tem medo. Livro tem medo. Livro vai dormir com
menina". Eu lhe disse que o livro não tinha medo e precisa
dormir no lugar dele, e que "menina" não deve ler na cama.
Ela fez uma expressão muito levada e aparentemente
entendeu que eu descobri sua astúcia.
Fico contente que o sr. Magnos pense tão bem de mim.
Mas "gênio" e "originalidade" são palavras que não deviamos usar levianamente. Se na verdade elas se aplicam
ainda que remotamente a mim, não vejo por que mereça
qualquer louvor em relação ao assunto.
E aqui mesmo queria dizer algo que é apenas para os
seus ouvidos. Algo dentro de mim me diz que terei um
êxito além dos meus sonhos. Não fossem algumas
circunstancias que tornam tal idéia altamente improvável e
mesmo absurda, penso que a educação de Helen ultrapassaria
em interesse e maravilhamento a realização do dr.
Howe. Sei que ela tem um potencial extraordinário e
acredito que poderei desenvolvê-lo e moldá-lo. Não posso lhe
dizer como sei disso. Não tinha nenhuma idéia de como
iniciar o trabalho; estava tateando no escuro. Mas de algum
modo agora sei, e sei que sei. Não posso explicar,
mas quando as dificuldades surgem não me sinto perplexa
ou em dúvida. Sei como resolvê-las; pareço adivinhar as
necessidades peculiares de Helen. É maravilhoso.
As pessoas já estão tendo um profundo interesse por
Helen. Ninguém pode vê-la sem ficar impressionado. Ela
não é uma criança comum, e o interesse das pessoas em
sua educação também não será um interesse comum. Por
isso, sejamos extremamente cuidadosas com o que dizemos
ou escrevemos sobre ela. Eu lhe escreverei francamente
e contarei tudo, com uma condição. É a seguinte:
você precisa me prometer jamais mostrar minhas cartas
para alguém. Minha linda Helen não será transformada
num prodígio se eu puder evitá-lo.
5 de junho de 1887:
O calor deixa Helen lânguida e quieta. Na verdade, o
pavoroso calor nos reduziu a todos a um estado semiliquido.
Ontem Helen tirou as roupas e ficou em pêlo por toda
a tarde. Quando o sol chegou até a janela onde estava
sentada com seu livro, ela levantou impaciente e fechou a janela.
Mas quando o sol entrava mesmo assim, ela veio até mim
com um olhar pesaroso e soletrou enfaticamente: "Sol é
menino mau. Sol precisa ir para cama".
Ela está um amor de criança agora, a coisa mais bonitínha,
e tão carinhosa! Certo dia, quando quis que ela me
trouxesse um copo d'água, ela disse: "Pernas muito cansadas.
Pernas choram muito".
Ela ficou muito interessada em alguns pintinhos
abrindo caminho para o mundo com pequenas bicadas esta
manhã. Deixei-a segurar uma casca de ovo e sentir o
pintinho fazendo "tec tec". O espanto de Helen ao sentir a
minúscula criatura lá dentro não pode ser transmitido numa
carta. A galinha foi muito gentil e não fez qualquer objeção
às nossas investigações. Além dos pintinhos, temos vários
adendos à família - dois bezerros, um potro e uma penca
de porquinhos engraçados. Você se divertiria ao me ver
segurar um porco guinchando nos braços enquanto Helen
o apalpa todo e faz inúmeras perguntas - perguntas nada
fáceis de responder. Após ver os pintinhos sair do ovo, ela
perguntou: "O porco bebê cresceu num ovo? Onde estão
muitas cascas?".
A cabeça de Helen mede cerca de 53 centímetros, e a
minha, cerca de 55 centímetros. Você vê, a minha tem
apenas dois centímetros a mais!
12 de junho de 1887: O tempo continua quente. Helen está mais ou menos a
mesma coisa - pálida e magra; mas você não deve
pensar que ela esteja de fato doente. Tenho certeza de que o
calor é o responsável por sua condição, e não a natural e
bela atividade de sua mente. É claro que não
sobrecarregarei seu cérebro. Somos bastante importunadas por
gente que assume a responsabilidade do mundo quando Deus
a negligencia. Eles nos dizem que Helen está "fazendo
coisas em excesso", que sua mente está ativa demais (essas
mesmas pessoas achavam que ela não tinha mente alguma
poucos meses atrás!) e sugerem muitos remédios impossíveis
e absurdos. Mas até agora ninguém parece ter pensado
em cloroformizá-la, o que é, penso eu, o único modo
eficaz de parar o exercício natural das faculdades dela. É
esquisito como as pessoas se prontificam sempre com
conselhos em qualquer emergência real ou imaginária, e
por mais que eu lhes mostre repetidamente que estão erradas,
continuam a oferecer suas opiniões como se as
tivessem recebido do Todo-Poderoso!
Estou ensinando Helen a escrever em guia de linha como
uma espécie de distração. Isso lhe dá algo para fazer e a
mantém quieta, o que acho desejável enquanto esse tempo
enervante continuar. Helen tem uma absoluta mania de
contar. Já contou tudo na casa e agora está contando as palavras
em sua cartilha. Espero que lhe ocorra contar os cabelos
da cabeça. Se ela pudesse ver e ouvir, acho que se livraria da
energia supérflua por meios que, talvez, não sobrecarregassem
tanto seu cérebro, embora eu suspeite que a criança
comum encare seu brinquedo bem seriamente. O garotinho
que move em círculos o seu "Trem de Nova York" no
quarto das crianças, fazendo "curvas em ferradura" jamais
sonhadas por engenheiros com menos imaginação, está
concentrando toda a alma em sua locomotiva de brinquedo.
Ela acaba de dizer, com uma expressão preocupada:
"Garota-não conta muito grande (muitas) palavras". Eu
disse: "Não, vá brincar com Nancy". Mas tal sugestão não lhe agradou, pois respondeu: "Não, Nancy está muito doente".
Perguntei qual era o problema e ela disse: "Muito (muitos)
dentes deixam Nancy doente". (Os dentes de Mildred
estão nascendo.)
No outro dia, contei a Helen que a videira na cerca era
uma "trepadeira". Ela achou isso muito divertido e
começou imediatamente a descobrir analogias entre seus
movimentos e o das plantas. Eles correm, trepam, saltam, pulam,
curvam, caem, sobem e balançam; mas me diz maliciosa
que ela é uma "planta-anda".
Na noite passada, Helen segurou um macio pano de lã
enquanto eu o enrolava. Depois começou a girar e girar,
soletrando para si mesma o tempo todo "Vento rápido, vento
lento" e aparentemente gostando muito do seu conceito.
15 de junho de 1887: Tivemos uma gloriosa tempestade de trovões na noite
passada e está muito mais fresco hoje. Estamos todos
refrescados, como se tivéssemos tomado um banho de chuveiro.
Helen mostra-se viva como um grilo. Ela queria saber
se os homens estavam atirando no céu quando sentiu o
trovão e se as árvores e flores beberam toda a chuva.
19 de junho de 1887 [Este trecho foi publicado no Relatório de 1887 da Instituição Perkins.]:
Minha alunazinha continua a manifestar a mesma avidez
por ler quanto no princípio. Cada momento em que
está acordada é gasto no esforço de satisfazer seu inato
desejo de conhecimento, e sua mente trabalha de modo
tão incessante, que chegamos a temer por sua saúde. Mas o
apetite, que a abandonara há algumas semanas, voltou e
seu sono parece mais quieto e natural. Ela fará sete anos no
dia 27 deste mês. Sua altura é de 1,25 m e sua cabeça tem
53 centímetros de circunferência, traçando-se a linha em
torno da cabeça de modo a passar sobre as saliências dos
ossos parietal e frontal. Acima dessa linha a cabeça ergue-se
uns três centímetros.
Durante nossas caminhadas soletramos continuamente
e é uma delícia acompanhar isso com ações como saltar,
pular, correr, andar rápido, andar devagar, e coisas assim.
Quando perde um ponto (no tricô ou crochê), ela diz:
"Helen errada, professora vai chorar". Se quer água, diz: "Dê
Helen água". Ela conhece 400 palavras, além de numerosos
nomes próprios. Numa aula eu lhe ensinei essas
palavras: estrado, colchão, lençol, cobertor, chupeta, colcha, travesseiro.
No dia seguinte descobri que ela se lembrava de todas,
exceto colcha. No mesmo dia, em diferentes momentos,
ela aprendeu as palavras: casa, mato, poeira, balanço, melado,
rápido, lento, xarope-de-bordo e balcão, e não esqueceu nenhuma.
Isso lhe dará uma idéia da capacidade de retenção da
memória dela. Helen pode contar até 30 rapidamente e
escrever sete das letras e as palavras que podem ser feitas
com a guia de linha. Ela parece entender o que é escrever
cartas e está impaciente para "escrever Frank carta". Gosta
de perfurar o papel com um estilete e suponho que seja
porque pode examinar o resultado de seu trabalho; mas
eu a observei um dia e fiquei muito surpresa em descobrir
que ela imaginava estar escrevendo uma carta. Soletrava
"Eva" (uma prima de quem ela gosta muito) com uma mão,
depois fazia de conta que a escrevia; depois soletrava "doente
na cama", e escrevia isso. Continuou assim por quase uma
hora. Ela estava (ou imaginava estar) pondo no papel as
coisas que a tinham interessado. Quando terminou a carta,
levou-a para a mãe e soletrou: "Frank carta", e deu-a ao
irmão para que a levasse ao correio. Ela já havia ido comigo
levar cartas ao correio.
Helen reconhece instantaneamente uma pessoa com
quem já entrou em contato uma vez e soletra seu nome.
Ao contrário de Laura Bridgman, ela gosta de cavalheiros,
e notamos que fica amiga de um cavalheiro mais rapidamente
do que de uma senhora.
Está sempre pronta para partilhar qualquer coisa que
tenha consigo, geralmente guardando muito pouco para si
mesma. Gosta muito de roupas e de todo tipo de enfeites
e objetos bonitos, e fica muito infeliz quando descobre um
furo em qualquer coisa que esteja usando. Mesmo quando
já está tão sonolenta que mal pode ficar de pé, insiste que
se faça papelotes em seu cabelo. Ela achou um furo em sua
bota na Outra manhã e, após o café, foi até o pai e soletrou:
"Helen bota nova Simpson (seu irmão) charrete loja
homem". Pode-se facilmente entender o que quer dizer.
3 de julho de 1887: Houve uma grande perturbação esta manhã. Ouvi Helen
gritando e corri para ver o que estava havendo. Encontrei-a
tendo um terrível acesso de raiva. Eu esperava que isso
jamais acontecesse de novo. Ela vinha sendo tão gentil e
obediente nos últimos dois meses que achei que o amor
tivesse submetido o leão; pelo visto o leão apenas dormia.
De qualquer modo lá estava ela, rasgando, arranhando e
mordendo Viney como uma criatura selvagem. Parece que
Viney, temendo que Helen quebrasse o copo que estava
enchendo de pedras, tentara tirá-lo das suas mãos. Helen
resistira e Viney tentara tirar o copo à força, e suspeito que
tenha esbofeteado a menina ou feito algo para causar essa
explosão incomum de temperamento. Quando peguei a
mão de Helen, ela tremia violentamente e começou a
chorar. Perguntei qual era o problema e ela soletrou: "Viney-má"
e começou a bater nela e chutá-la com renovada
violência. Segurei-lhe firmemente as mãos até que ficasse
mais calma.
Mais tarde Helen foi ao meu quarto parecendo muito
triste e quis me beijar. Eu disse: "Não posso beijar menina
levada". Ela soletrou: "Helen é boa, Viney é má". Eu disse:
"Você bateu em Viney, chutou-a e a machucou. Você
foi muito levada e eu não posso beijar menina levada". Ela
ficou imóvel por um momento e era evidente por seu
rosto congestionado e perturbado que travava uma luta
em sua mente. Então disse: "Helen não amou (ama)
professora. Helen ama mãe. Mãe vai chicotear Viney". Eu lhe
disse que era melhor que ela não falasse mais nisso, mas
pensasse. Ela sabia que eu estava muito perturbada e teria
gostado de ficar perto de mim; mas achei melhor para ela
ficar sozinha. À mesa do jantar ela ficou profundamente
tocada porque eu não comi e sugeriu que "cozinheira faz
chá para professora". Mas eu lhe disse que meu coração
estava triste e não tinha vontade de comer. Ela começou a
chorar, a soluçar e se agarrou a mim.
Estava muito agitada quando subimos; então tentei
interessá-la num curioso inseto chamado bicho-pau. É a
coisa mais esquisita que já vi - um feixezinho de gravetos
amarrados no meio. Não acreditei que estivesse vivo até
que o vi se mover. Mesmo assim ele parecia mais um
brinquedo mecânico do que uma criatura viva. Mas a pobre
menina não conseguia fixar sua atenção. Seu coração estava
muito perturbado e ela queria falar sobre isso.
Ela disse:
"Inseto pode saber sobre menina levada? Inseto está muito
feliz?". Então, me abraçando pelo pescoço, disse: "Eu
sou (vou ser) boa amanhã. Helen é (vai ser) boa todos dias".
Eu disse: "Você vai pedir desculpas a Viney por tê-la
arranhado e chutado?". Ela sorriu e respondeu: "Viney não (sabe)
soletrar palavras". Eu disse: "Vou dizer à Viney que você
pede desculpas. Você vai comigo procurar Viney?". Ela
mostrou muito boa-vontade em ir e deixou Viney beijá-la,
embora não retribuisse o carinho. Desde então ela tem estado
incomumente afetuosa e me parece que há uma doçura, uma
beleza de alma em seu rosto que eu não vira antes.
31 de julho de 1887:
A escrita a lápis de Helen é excelente, como você verá
na carta que incluo e que ela escreveu para sua própria
diversão. Estou lhe ensinando o alfabeto braile e ela está
encantada em poder fazer palavras sozinha e tocá-las.
Helen chegou agora ao estágio interrogativo de seu
desenvolvimento. O dia inteiro é "o quê?", "por quê?", "quando",
mas especialmente "por quê?"; e à medida que sua
capacidade de compreensão cresce, suas perguntas ficam
mais insistentes. Lembro-me de como eu costumava achar
insuportável o interrogatório dos filhos de minhas amigas;
mas sei agora que essas perguntas indicam o crescente
interesse da criança na causa das coisas. O "por quê" é aporta
através da qual ela entra no mundo da razão e da reflexão. "Como
o carpinteiro constrói a casa?" "Quem põe os pintos nos
ovos?" "Por que Viney é negra?" "Moscas mordem, por
quê?" "As moscas não sabem morder?" "Por que pai mata
ovelha?" Claro que ela faz muitas perguntas que não são
tão inteligentes quanto essas. Sua mente não é mais lógica
do que as mentes de crianças comuns. Em geral, suas perguntas são análogas às que são feitas por uma brilhante
criança de três anos de idade, mas seu desejo de conhecimento
é muito sério, as perguntas nunca são tediosas,
embora explorem pesadamente meu escasso estoque de
informações e sobrecarreguem ao máximo minha
engenhosidade.
Recebi uma carta de Laura [Bridgman] no último
domingo. Por favor, diga a ela que mando meu carinho e que
Helen lhe manda um beijo. Li a carta à mesa do jantar e a
sra. Keller exclamou: "Puxa, srta. Annie, Helen escreve quase
tão bem quanto ela agora!". É verdade.
21 de agosto de 1887:
Passamos ótimos dias em Huntsville. Todos ficaram
encantados com Helen e a cobriram de presentes e beijos. Na
primeira noite ela aprendeu o nome de todas as pessoas no
hotel, cerca de 20, acho. Na manhã seguinte ficamos atônitos
ao descobrir que ela se lembrava de todos eles e
reconhecia cada um que conhecera na noite anterior. Ela ensinou
aos jovens o alfabeto e vários deles aprenderam a falar. Uma
das meninas ensinou-a a dançar a polca e um meninozinho
mostrou-lhe seus coelhos e soletrou seus nomes para ela.
Helen ficou encantada e demonstrou seu prazer abraçando
e beijando o rapazinho, o que o deixou muito embaraçado.
Fotografamos Helen com o peludo poodlezinho de
olhos vermelhos, que conquistou as boas graças de minha
dama por truques e astuciosas manobras conhecidos
apenas pelos cães com instinto para obter o que querem.
Ela tem falado incessantemente desde sua volta sobre
o que fez em Huntsville e notamos uma melhora muito
nítida em sua capacidade de usar a linguagem. De modo
bastante curioso, um passeio que fizemos ao alto do Monte
Sano, uma linda montanha não longe de Huntsville, parece
tê-la impressionado mais do que qualquer outra coisa,
exceto o maravilhoso poodle. Helen lembra de tudo que
lhe contei a respeito dele, e ao contá-lo para sua mãe repetiu
as mesmas palavras e frases que eu tinha usado na minha descrição.
Concluindo, ela perguntou à mãe se gostaria de ver
"montanha muito alta e bonita chapéu nuvem". Eu não usara
essa expressão. Eu havia dito: "As nuvens tocam a montanha
suavemente, como belas flores". Veja você, tive de
usar palavras e imagens familiares a ela pelo tato. Mas
parece quase impossível que meras palavras possam transmitir
a alguém que nunca viu uma montanha a mais leve idéia
da grandeza dessa.
E não vejo como alguém possa saber que impressão
ela recebeu, ou a causa de seu prazer no que lhe foi dito.
Tudo que sabemos com certeza é que ela tem uma boa
memória, imaginação e a faculdade de associação.
28 de agosto de 1887:
Eu gostaria de que as coisas parassem de nascer! "Novos
filhotes", "novos bezerros" e "novos bebês’" mantêm o
interesse de Helen no porquê e no objetivo das coisas no
auge do calor. A chegada de um novo bebê em Ivy Green
no outro dia foi a oportunidade de um novo jorro de
perguntas sobre a origem dos bebês e coisas vivas em
geral. "Onde Leila conseguiu novo bebê? Como o médico
sabia onde achar bebê? Leila disse ao médico para pegar
bebê novo pequeno? Onde o médico achou Guy e Prince?"
(filhotes) "Por que Elizabeth é irmã de Evelyn?" etc. etc.
Tais perguntas às vezes eram feitas sob circunstâncias que
as tornavam embaraçosas. Resolvi que algo precisava ser
feito. Se era natural para Helen fazer tais perguntas, era
meu dever respondê-las. Acho que é um grande equívoco
despistar as crianças com falsidades e absurdos, quando o
crescente poder de observação e discriminação excita
nelas um desejo de conhecer as coisas. Desde o início, decidi
responder a todas as perguntas de Helen da melhor forma que minha
habilidade permitia, um modo inteligível para ela e ao mesmo
tempo verdadeiro. "Por que eu trataria essas perguntas de
modo diferente?", perguntei-me. Decidi que não havia
motivo, exceto minha deplorável ignorância dos grandes
fatos que fundamentam nossa existência fisica. Foi sem
dúvida por causa dessa ignorância que enveredei correndo
onde anjos mais experientes temem pisar. Não há uma
alma viva nessa região do mundo a quem eu possa pedir
conselho sobre isso, ou na verdade sobre qualquer outra
dificuldade educacional. A única coisa que posso fazer numa
perplexidade é seguir adiante e aprender com os erros.
Mas nesse caso acho que não cometi erros. Levei Helen e
minha botânica, Como as plantas crescem, até a árvore, onde
freqüentemente vamos para ler e estudar, e contei-lhe em
palavras simples a história da vida das plantas. Lembrei-a
do milho, feijões e melancias que ela plantara na primavera
e disse-lhe que o milho alto na horta e os feijões e as
melancias haviam crescido daquelas sementes. Expliquei-lhe
como a terra guarda as sementes quentes e úmidas até que
as pequenas folhas fiquem fortes o suficiente para brotarem
à luz e ao ar onde podem respirar, crescer, florescer e
fazer mais sementes, das quais outras plantas bebês crescerão.
Tracei uma analogia entre planta e vida animal e contei
a Helen que as sementes são tão ovos quanto os ovos das
galinhas e os ovos dos pássaros - que a mãe galinha
mantém seus ovos quentes e secos até os pintinhos saírem. Fiz
com que entendesse que toda vida vem de um ovo. A mãe
pássaro põe os ovos num ninho e os mantém quentes até
que os ovos sejam rompidos. A mãe peixe põe os ovos
onde sabe que ficarão mais úmidos e seguros até ser
tempo dos peixinhos saírem. Disse-lhe que podia
chamar o ovo de o berço da vida. Disse-lhe também que
outros animais como o cão e a vaca e seres humanos não
põem ovos, mas nutrem os filhos em seu próprio corpo.
Não tive dificuldade em lhe deixar claro que se plantas e
animais não produzissem filhotes da mesma espécie que
eles deixariam de existir e tudo no mundo logo morreria.
Mas passei pela função do sexo tão levemente quanto
possível. Contudo, tentei lhe dar a idéia de que o amor é o
grande continuador da vida. O assunto era difícil e meu
conhecimento inadequado; mas estou contente por não
ter me esquivado de minha responsabilidade; pois mesmo
tropeçando, hesitante e incompleta, minha explicação
tocou profundas cordas de resposta na alma de minha
alunazinha, e a rapidez com que ela compreende os grandes
fatos da vida física confirma minha opinião de que a
criança, quando vem ao mundo, tem adormecida nela
todas as experiências da raça. Tais experiências são como
negativos fotográficos até que a linguagem as desenvolva e
faça surgir as imagens-memória.
4 de setembro de 1887:
Helen recebeu esta manhã uma carta do tio, o doutor Keller. Ele a convidou para ir visitá-lo em Hot Springs. O
nome Hot Springs (fontes quentes) a interessou e ela fez
muitas perguntas a respeito. Helen sabe da existência de
fontes frias. Há diversas perto de Tuscumbia; uma fonte
muito grande forneceu seu nome à cidade. "Tuscumbia" é
uma palavra indígena que significa "grande fonte". Mas ela
ficou surpresa de que água quente saísse do chão. Queria
saber quem acendeu o fogo debaixo do chão e se era como
o fogo nos fogões, e se queimava as raízes das plantas e
árvores.
Ela ficou muito contente com a carta e, depois de fazer
todas as perguntas em que conseguiu pensar, levou-a para
a mãe, que costurava na sala, e a leu para ela. Foi divertido
vê-la segurar a carta ante seus olhos e soletrar as frases nos
dedos, exatamente como eu o fizera. Posteriormente ela
tentou lê-la para Belle (a cadela) e Mildred. A sra. Keller e
eu observamos a comédia infantil da porta. Belle estava
dormindo e Mildred distraída. Helen parecia muito séria
e, uma ou duas vezes, quando Mildred tentou pegar a carta,
ela afastou a mão, impaciente. Finalmente Belle
levantou, sacudiu-se e estava prestes a se afastar quando Helen a
pegou pelo pescoço e a forçou a se deitar de novo.
Enquanto isso, Mildred pegara a carta e se arrastara para longe
com ela. Helen apalpou o chão em sua busca, mas, não
a encontrando ali, evidentemente suspeitou de Mildred; pois
emitiu o pequeno som que significa "Bebê chama". Então
se ergueu e ficou estática, como se escutando com os pés o
"tump, tump" de Mildred. Quando localizou o som,
partiu rapidamente em direção à culpadazinha e a encontrou
mastigando a preciosa carta! Isso foi demais para Helen,
que arrebatou a carta e deu um sólido tapa nas mãozinhas
da irmã. Sra. Keller pegou o bebê nos braços e quando
conseguimos acalmá-la, perguntei a Helen: "O que fez com
o bebê?". Ela pareceu perturbada e hesitou um momento
antes de responder. Então disse: "Menina errada comeu
carta. Helen bateu menina muito errada". Eu disse que
Mildred era muito pequena e não sabia que era errado pôr a
carta na boca. "Eu disse bebê, não, não, não muito (muitas)
vezes", foi a resposta de Helen. Eu disse: "Mildred não
entende seus dedos e temos de ser muito delicadas com
ela". Ela sacudiu a cabeça. "Bebê não pensa. Helen vai dar
bebê carta bonita", e com isso ela subiu correndo ao
andar de cima e trouxe para baixo uma folha cuidadosamente
dobrada, em braile, na qual escrevera algumas
palavras e a deu a Mildred, dizendo: "Bebê pode comer
todas palavras".
18 de setembro de 1887:
Não me espanta que você tenha ficado surpresa de saber
que eu escreveria algo para o relatório. Eu mesma não sei
como aconteceu, a não ser que tenha ficado cansada de
dizer "não", além do capitão Keller insistir comigo para que
eu o fizesse. Ele concordou com o sr. Anagnos que era meu
dever dar a outros o beneficio da minha experiência. Além
disso, eles disseram que a maravilhosa libertação de Helen
poderia ser um presente para outras crianças aflitas.
Quando me sento para escrever, minhas idéias
congelam, e quando as ponho no papel parecem soldadinhos de
chumbo enfileirados e, se por acaso aparece um vivo, eu o
coloco numa camisa-de-força. Contudo, é bastante fácil
dizer que Helen é maravilhosa, porque o é de fato. Fiz um
registro de tudo que ela disse na semana passada e descobri
que conhece 600 palavras. Isso porém não significa que
sempre as use corretamente. As vezes suas frases são como
quebra-cabeças chineses; mas o tipo de quebra-cabeça que
as crianças fazem quando tentam expressar suas idéias meio
formuladas com uma linguagem arbitrária. Helen tem o
verdadeiro impulso da lingua e mostra grande fertilidade
de recursos ao fazer as palavras, ao seu comando, transmitirem
o que ela quer dizer.
Ultimamente anda muito interessada em cor. Descobriu
a palavra "marrom" em sua cartilha e queria saber o
seu significado. Eu lhe disse que seu cabelo era marrom e
ela perguntou: "Marrom é muito bonito?". Depois de
percorrermos a casa toda e de eu ter-lhe dito a cor de tudo que
ela tocava, sugeriu que fôssemos ao galinheiro e ao celeiro;
mas eu lhe disse que tinha de esperar outro dia porque eu
estava muito cansada. Sentamo-nos na rede, mas ali não
havia descanso para os cansados. Helen estava ávida para
conhecer "mais cor". Cogito se ela tem alguma vaga idéia
de cor - qualquer impressão reminiscente de luz e som.
Parece que uma criança que enxergue e ouça até 19 meses
deve reter parte de suas primeiras impressões, ainda que
de forma tênue. Helen fala muito sobre coisas que não
pode conhecer pelo tato. Faz muitas perguntas sobre o
céu, o dia e a noite, os oceanos e montanhas. Ela gosta que
eu lhe conte o que vejo nos quadros.
Mas parece que perdi o fio do meu discurso. "De que
cor é pensar?", foi uma de suas tranqüilas perguntas,
enquanto nos balançávamos de um lado e para outro na rede.
Eu lhe disse que quando estamos felizes nossos
pensamentos têm cores vivas, e quando somos levados eles ficam
tristes. Rápida como um relâmpago, ela disse: "Meu
pensamento é branco, o pensamento de Viney é preto". Veja, a
idéia dela era que a cor de nossos pensamentos combinava
com a de nossa pele. Não pude deixar de rir, pois naquele
mesmo momento Viney estava berrando a plenos pulmões:
"I long to sit on dem jasper walls
And see dem sinners stumble and fall."
[Quero me sentar em seus muros jaspes a luzir/e ver todos os pecadores
tropeçar e cair! (Tradução livre. N da T)]
3 de outubro de 1887:
Meu registro para o relatório foi terminado e enviado.
Tenho duas cópias e vou lhe mandar uma, mas você não
deve mostrá-la a ninguém. É propriedade do sr. Anagnos
até ser publicado.
Suponho que as meninas tenham gostado da carta de
Helen. Ela a escreveu de sua cabeça, como as crianças dizem.
Helen fala muito do que fará quando for a Boston. Outro
dia perguntou: "Quem fez todas as coisas e Boston?". Ela diz
que Mildred não irá porque "Bebê chora todos os dias".
25 de outubro de 1887:
Helen escreveu outra carta para as meninas ontem e seu pai a enviou para o sr. Anagnos. Peça a ele para vê-la. Helen
começou a usar os pronomes por sua própria conta. Esta
manhã, por acaso, eu disse: "Helen vai lá em cima". Ela riu e
disse: "Professora está errada. Você vai lá em cima". Este é
outro grande passo adiante. É sempre assim. As
perplexidades de ontem são estranhamente simples hoje, e as
dificuldades de hoje se tornam o passatempo de amanhã.
O rápido desenvolvimento da mente de Helen é lindo
de se ver. Duvido se algum professor teve algum dia um
trabalho tão interessante e absorvente. Deve haver uma
estrela da sorte nos céus do meu nascimento, e estou
começando a sentir sua influência benéfica.
Recebi duas cartas do sr. Anagnos na semana passada.
Ele está mais grato pelo meu relato do que a lingua inglesa
pode exprimir. Agora quer um retrato "da querida Helen
e sua ilustre professora, para abrilhantar as páginas do
próximo relatório anual".
Outubro, 1887:
O senhor provavelmente já leu, antes, a segunda carta de
Helen para as meninas. Estou consciente de que o progresso
que ela fez entre a redação das duas cartas parece inacreditável.
Somente aqueles que estão com ela diariamente podem
perceber o rápido avanço que vem obtendo na aquisição da
linguagem. O senhor verá pela carta dela que Helen usa
muitos pronomes corretamente. Ela raramente os usa de
forma errada ou os omite numa conversa. Sua paixão por
escrever cartas e pôr os pensamentos no papel torna-se cada
vez mais intensa. Ela agora conta histórias em que a
imaginação desempenha um papel importante. Está começando
também a perceber que não é como as outras crianças. No
Outro dia ela perguntou: "O que meus olhos fazem?". Disse-lhe
que eu podia ver coisas com os olhos e que ela podia
ver com os dedos. Após pensar um momento, ela respondeu:
"Meus olhos são maus!". A seguir, mudou a frase para
"Meus olhos são doentes!".
O primeiro relato da srta. Sullivan, publicado no relatório
oficial da Instituição Perkins para o ano de 1887, é um breve
sumário do que está amplamente registrado em suas cartas. Aqui
se segue a última parte, começando com o grande dia, 5 de abril,
em que Helen aprendeu o significado da palavra water (água).
Em seu relato, a srta. Sullivan fala de "aulas" como se estas
se dessem numa ordem regular. Tal é o efeito de colocar tudo
num sumário. "Aula" é formal demais para o contínuo trabalho
cotidiano.
Certo dia eu a levei para a cisterna. Enquanto a água
jorrava da bomba, soletrei a palavra "á-g-u-a". Instantaneamente
Helen me deu um tapinha na mão para que eu a
repetisse e então fez a palavra sozinha com um rosto
radiante. Naquele momento a babá entrou na casa da cisterna
levando a irmãzinha de Helen. Pus a mão de Helen no
bebê e formei as letras "b-e-b-ê", que ela repetiu sem ajuda
e com a luz de uma nova inteligência no rosto.
Quando voltamos para casa, tudo que Helen tocava
tinha de ser nomeado para ela e raramente a repetição era
necessária. Nem a extensão da palavra nem a combinação
de letras pareciam fazer qualquer diferença para a criança.
Na verdade, ela lembra heliotropio e crisântemo mais rapidamente
do que nomes mais curtos. No final de agosto ela
conhecia 625 palavras.
Essa aula foi seguida por outra sobre palavras indicando
relações-espaço. O vestido dela era guardado dentro do baú
e depois estendido sobre ele, e tais preposições eram soletradas
para ela. Helen aprendeu muito rapidamente as diferenças
entre dentro e sobre, embora algum tempo se passasse
antes dela poder usar tais palavras em suas próprias frases.
Sempre que possível, ela era induzida a bancar o ator na aula
e se encantava de ficar sobre a cadeira e ser colocada dentro
do guarda-roupa. Em conexão com essa aula, ela aprendeu
os nomes dos membros da família e a palavra está. "Helen
está dentro do guarda-roupa", "Mildred está no berço",
"Caixa está na mesa", "Papai está na cama" são tipos de
frases construídas por ela na última parte de abril.
A seguir veio uma aula sobre palavras expressando uma
qualidade positiva. Para a primeira aula eu tinha duas bolas,
uma de lã, grande e macia, e a outra, uma bola comum.
Ela percebeu a diferença de tamanhos imediatamente.
Pegando a bola comum, fez o sinal habitual para pequeno,
isto é, beliscando um pedacinho de pele de uma das mãos.
Então pegou a outra bola e fez o sinal para grande esticando
bem as mãos sobre ela. Substituí os sinais pelos adjetivos
grande e pequeno. Então a atenção dela foi atraída para a
dureza de uma bola e a maciez da outra, e ela aprendeu
macio e duro. Alguns minutos depois ela apalpou a cabeça
da irmãzinha e disse para a mãe: "A cabeça de Mildred é
pequena e dura". A seguir tentei ensinar-lhe o significado
de rápido e lento. Ela me ajudou a enrolar um pouco de lã
no outro dia, primeiro rápido e depois lentamente. Então
eu lhe disse com o alfabeto manual, "enrolar rápido" ou
"enrolar lento", segurando suas mãos e mostrando-lhe como
fazer do modo que eu queria. No dia seguinte, enquanto se
exercitava, ela soletrou: "Helen enrola rápido", e começou a
andar rapidamente. Então disse: "Helen enrola lento",
novamente juntando a ação às palavras.
Pensei então que era tempo de ensiná-la a ler palavras
impressas. Um pedaço de papel onde fora impressa a
palavra caixa em letras em relevo foi colocado sobre o
objeto; tentei a mesma experiência com muitos artigos, mas ela
não compreendeu imediatamente que o nome-etiqueta
representava a coisa. Então peguei uma folha do alfabeto e
coloquei seu dedo sobre a letra A, ao mesmo tempo em
que fazia A com meus dedos. Ela moveu o dedo de um
tipo impresso para outro enquanto eu formava cada letra
nos meus dedos. Ela aprendeu todas as letras num só dia,
tanto as maiúsculas quanto as minúsculas. A seguir virei a
primeira página da cartilha e a fiz tocar na palavra gato,
soletrando-a nos meus dedos ao mesmo tempo. Ela
apreendeu a idéia instantaneamente e me pediu para encontrar
cachorro e muitas outras palavras. Na verdade, Helen estava
muito descontente porque eu não conseguira encontrar o
nome dela no livro. Naquele momento eu não tinha
nenhuma frase em letras em relevo que ela pudesse entender;
mas ela ficou ali por horas tateando cada palavra do livro.
Quando toquei numa que lhe era familiar, uma expressão
especialmente doce iluminou seu rosto, e temos visto sua
fisionomia ficar cada vez mais doce e mais séria a cada dia.
Mais ou menos nessa época, enviei uma lista das palavras
que Helen conhecia ao sr. Anagnos e ele muito amavelmente
as mandou imprimir para ela. A mãe de Helen e eu
cortamos várias folhas de palavras impressas para que ela
pudesse arrumá-las em frases. Isso a encantou mais do que
tudo o que já fizera; e a prática assim obtida preparou o
caminho para as aulas escritas. Não houve qualquer
dificuldade em fazê-la entender como escrever as mesmas frases
com lápis e papel que construía todos os dias com os
pedacinhos de papel e ela logo percebeu que não precisa se
limitar a frases já aprendidas: podia comunicar qualquer
pensamento que passasse por sua mente. Coloquei uma das
tábuas de escrever usadas pelos cegos entre as dobras do papel
na mesa e deixei-a examinar um alfabeto. Então guiei sua
mão para formar a frase "Gato bebe leite". Quando
terminou, estava superfeliz. Levou-a para a mãe, que a soletrou
para ela.
Dia após dia movia o lápis da mesma forma ao longo
do papel com ranhuras, sem demonstrar por um momento
sequer a mínima impaciência ou sensação de fadiga.
Como Helen havia aprendido agora a expressar suas
idéias no papel, a seguir ensinei-lhe o sistema braile. Ela o
aprendeu contente quando descobriu que poderia ler o
que escrevera; isso ainda lhe dá um prazer constante. Por
uma boa parte da noite ela senta à mesa escrevendo seja lá
o que lhe ocorrer à ocupada mente; e raramente encontro
qualquer dificuldade em ler o que ela escreveu.
O progresso de Helen em aritmética tem sido igualmente
notável. Ela pode somar e subtrair com grande
rapidez até 100; e sabe multiplicar até cinco. Ela trabalhava
recentemente com o número 40 quando eu lhe disse:
"Multiplique por dois". Ela respondeu imediatamente: "20
vezes 2 são 40". Mais tarde eu disse: "Faça 15 vezes 3 e conte".
Eu queria que ela fizesse o grupo de três e achava que os
contaria em ordem para saber quanto seria 15 vezes 3. Mas
ela imediatamente soletrou a resposta: "15 vezes 3, 45".
Ao lhe dizerem que era branca e que uma das criadas era
negra, ela concluiu que todos que ocupavam a mesma posição
subalterna tinham a mesma cor; e sempre que eu lhe
perguntava a cor de uma criada, ela dizia "negra". Quando
lhe perguntaram a cor de alguém cuja ocupação ela
desconhecia, ela pareceu perturbada e finalmente disse "azul".
Ainda não lhe foi dito nada sobre morte ou o enterro
do corpo e mesmo assim, ao entrar no cemitério pela
primeira vez na vida, com sua mãe e eu, ao olhar algumas
flores, ela pôs a mão em nossos olhos e soletrou repetidamente:
"chorar-chorar". Seus olhos na verdade se encheram
de lágrimas. As flores não lhe pareceram dar prazer e
ela ficou muito quieta enquanto permanecemos lá.
Em outra ocasião, enquanto caminhava comigo, ela
pareceu consciente da presença do irmão, embora estivéssemos
distante dele. Ela soletrou repetidamente seu nome
e partiu na direção em que ele vinha.
Quando caminhando ou andando a cavalo, ela geralmente
diz os nomes das pessoas que encontramos quase
tão rapidamente quanto nós as reconhecemos.
As cartas retomam o relato.
13 de novembro de 1887:
Levamos Helen ao circo e "nos divertimos como
nunca!", O pessoal do circo ficou muito interessado em Helen,
fazendo tudo o que podia para tornar o primeiro circo
dela um acontecimento memorável. Deixaram-na tocar nos
animais sempre que era seguro. Ela alimentou os elefantes
e permitiram-lhe subir nas costas do maior e sentar no
dorso da "Princesa Oriental", enquanto a elefanta marchava
majestosamente pela arena. Tocou em pequenos leões,
tão mansos quanto gatinhos; mas eu disse a ela que ficariam
selvagens e ferozes quando crescessem. Ela disse ao
tratador: "Eu vou levar os bebês leões para casa e vou
ensinar a eles a serem mansos". O tratador dos ursos fez
um grande urso preto ficar nas patas de trás e estender sua
grande pata para nós, que Helen apertou polidamente. Ela
ficou extremamente encantada com os macacos e manteve
a mão no "ator-principal" enquanto ele fazia seus
truques. E riu com vontade quando ele tirou o chapéu para o
público. Um macaquinho engraçado roubou a fita do
cabelo de Helen e outro tentou arrebatar-lhe as flores do
chapéu. Não sei quem se divertiu mais, se os macacos,
Helen ou os espectadores. Um dos leopardos lambeu as
mãos dela e o homem encarregado das girafas levantou
Helen para que ela pudesse tocar as orelhas dos animais e
ver como eram altos. Ela também tocou uma biga grega,
e o homem que a conduzia teria de bom grado a levado
para dar uma volta pela arena, mas Helen ficou com medo
dos "muitos cavalos velozes". Todos - os cavaleiros,
palhaços e os que andavam na corda bamba - alegremente
permitiram que a menina cega tocasse em suas roupas e
seguisse seus movimentos sempre que possível, e ela
beijou todos eles para mostrar sua gratidão. Alguns choraram,
e o homem selvagem de Bornéu encolheu-se de terror
ante o doce rostinho de Helen. Desde então ela só tem
falado do circo. A fim de responder suas perguntas, fui
obrigada a ler um bocado sobre animais. No momento
presente, sinto-me uma selva sobre rodas!
12 de dezembro de 1887:
Acho difícil imaginar que o Natal esteja quase aí, apesar
de Helen não falar de outra coisa. Lembra que ótimos
momentos tivemos no Natal passado?
Helen aprendeu a dizer as horas finalmente e seu pai vai
lhe dar um relógio como presente de Natal.
Ela é tão ávida para ouvir histórias quanto qualquer
criança dotada de audição que eu conheça. Fez-me repetir
a história de Chapeuzinho Vermelho tantas vezes que acho
que posso repeti-la de trás para frente. Ela gosta de
histórias que a façam chorar - acho que todos nós gostamos,
é tão bom se sentir triste quando não se tem nenhum
motivo em especial para isso. Estou lhe ensinando pequenas
rimas e versos também - que fixam belos pensamentos
em sua memória. Acho também que eles agilizam as
faculdades da criança, porque estimulam a imaginação. Claro
que não tento explicar tudo. Se o fizesse, não haveria
oportunidade para o jogo da fantasia. Explicação demais dirige
a atenção da criança para palavras e frases, impedindo-a
de apreender o pensamento como um todo. Na verdade,
acho que ninguém pode ler ou falar até que esqueça as
palavras e frases no sentido técnico.
12 dejaneiro de 1888:
É maravilhoso sentir que se é de alguma utilidade no
mundo, que se é necessária a alguém. A dependência de
Helen de mim para quase tudo me deixa forte e contente.
A semana do Natal foi muito agitada aqui. Helen foi
convidada para todos os divertimentos das crianças e eu a
levo a tantos quanto posso. Quero que conheça crianças e
esteja com elas o máximo possível. Várias meninas
aprenderam a soletrar com os seus dedos e estão muito
orgulhosas da realização. Nosso garotinho, de uns sete anos, foi
convencido a aprender as letras e soletrou o nome de Helen.
Ela ficou encantada, mostrando sua alegria abraçando-o e
beijando-o, para embaraço dele.
No sábado, as crianças da escola tiveram sua árvore e
eu levei Helen. Era a primeira árvore de Natal que já vira
na vida e ela ficou intrigada, fazendo muitas perguntas.
"Quem fez árvore crescer na casa? Por quê? Quem pôs
muitas coisas na árvore?" Ela objetou à miscelânea de
frutas na árvore e começou a removê-las, evidentemente
pensando que eram todas destinadas a ela. Contudo, não foi
difícil fazê-la entender que havia um presente para cada
criança e, para seu encantamento, foi-lhe permitido
entregar os presentes das crianças. Havia vários presentes para
ela. Helen os colocou numa cadeira, resistindo a todas as
tentações de ver o que eram até que todas as crianças tivessem
recebido os seus. Uma meninazinha recebeu menos
presentes que o resto e Helen insistiu em dividir seus
presentes com ela. Foi muito doce ver o ávido interesse das
crianças em Helen e a facilidade com que se prontificavam
a agradá-la. Os exercícios começaram às nove e deu uma
hora antes que pudéssemos ir embora. Meus dedos e
minha cabeça doíam, mas Helen estava tão viçosa e cheia de
animação como quando saímos de casa.
Depois do jantar começou a nevar e tivemos uma
animada brincadeira e uma aula interessante sobre a neve. Na
manhã de domingo o solo estava coberto e Helen, os
filhos da cozinheira e eu brincamos com bolas de neve. Ao
meio-dia a neve havia sumido. Foi a primeira neve que vi
aqui e isso me fez ter saudade de minha casa. A estação do
Natal forneceu muitas aulas e acrescentou um monte de
novas palavras ao vocabulário de Helen.
Durante semanas não fizemos nada exceto conversar,
ler e contar histórias sobre o Natal uma à outra. Claro que
não tento explicar todas as palavras novas, nem Helen
entende totalmente as historinhas que lhe conto; mas a
repetição constante fixa as palavras e frases em sua mente, e
pouco a pouco o significado virá a ela. Não vejo nenhum
sentido em conversa "de mentira"para ensinar a linguagem. É
estúpido e destituído de vitalidade para aluno e professor. A conversa deve
ser natural e ter como objetivo uma troca de idéias. Se não há nada
na mente da criança para ser comunicado, dificilmente vale
a pena pedir-lhe para escrever no quadro-negro ou soletrar
nos dedos frases cortadas ou secas sobre "o gato", "o
pássaro", "um cachorro". Desde o início venho tentando falar
naturalmente com Helen e ensiná-la a me contar apenas coisas que lhe
interessam e perguntar apenas para descobrir o que quer saber. Quando
vejo que está ansiosa para me contar algo, mas travada por
não conhecer as palavras, eu as forneço, do mesmo modo
que as expressões idiomáticas necessárias, e nos damos muito
bem assim. A avidez e o interesse da criança a fazem transpor
muitos obstáculos que seriam a nossa ruína se parássemos
para definir e explicar tudo. O que acha que aconteceria se
alguém tentasse medir nossa inteligência pela capacidade
de definir as palavras mais comuns que usamos? Temo
que, se me fizessem esse teste, eu seria confinada à classe
mais elementar numa escola para deficientes mentais.
Foi tocante e lindo ver Helen usufruir de seu primeiro
Natal. Ela pendurou sua meia - duas, é claro, para o caso
de Papai Noel esquecer uma - e ficou acordada por muito
tempo, levantando duas ou três vezes para ver se algo
tinha acontecido. Quando eu lhe disse que Papai Noel só
viria quando ela estivesse dormindo, fechou os olhos e
disse: "Ele vai pensar que menina está dormindo". Ela
acordou de manhã assim que pôde e correu para a lareira
à procura da meia; quando descobriu que Papai Noel
enchera as duas, dançou por um minuto e então ficou muito
quieta e veio me perguntar se eu achava que Papai Noel
tinha cometido um engano pensando que havia duas
meninas, e se voltaria para levar de volta os presentes quando
descobrisse seu engano. O anel que você lhe enviou estava
no dedo da meia, e quando eu lhe disse que você o dera
para Papai Noel lhe entregar, ela disse: "Adoro a sra.
Hopkins". Ela ganhou um baú com roupas para Nancy e
seu comentário foi: "Agora Nancy vai à festa". Quando
viu a lousa de braile e papel, disse: "Vou escrever muitas
cartas e agradecer Papai Noel muito". Era evidente que
todos, especialmente o capitão Keller e a sra. Keller, estavam
profundamente comovidos ante a idéia da diferença
entre este animado Natal e o Natal passado, quando a
filhinha deles não participou conscientemente das festas
natalinas. Quando descemos, a sra. Keller me disse com
lágrimas nos olhos: "Srta. Annie, agradeço a Deus todos
os dias de minha vida por enviá-la; mas nunca percebi até
esta manhã que bênção a senhorita tem sido para nós". O
capitão Keller pegou minha mão, mas não conseguiu falar.
Seu silêncio porém foi mais eloqüente do que as palavras.
Meu coração também estava cheio de gratidão e solene
alegria.
No outro dia, Helen deparou-se com a palavra avô numa
historiazinha e perguntou à mãe: "Onde está avô?",
referindo-se a seu avô. A sra. Keller respondeu: "Ele morreu".
"Papai atirou nele?", perguntou Helen e acrescentou: "Eu
vou comer avô no jantar". Até então, seu único conhecimento
da morte estava vinculado a coisas para comer. Ela
sabe que o pai atira em perdizes, cervos e outras caças.
Esta manhã ela me perguntou o significado de "carpinteiro"
e a pergunta forneceu o texto para a aula do dia.
Após falar sobre as várias coisas que os carpinteiros
fazem, ela perguntou: "Carpinteiro me fez?", e antes que eu
pudesse responder, ela soletrou rapidamente: "Não, não,
fotógrafo me fez em Sheffield".
Uma grande fornalha de ferro foi construída em
Sheffield e fomos até lá na outra noite para vê-la dar uma
"rodada". Helen sentiu o calor e perguntou: "O sol caiu?".
9 de janeiro de 1888:
O relatório chegou na noite passada. Agradeço as
palavras amáveis do sr. Anagnos sobre Helen e eu, mas seu
modo extravagante de dizê-las me atinge do modo errado.
Os simples fatos seriam muito mais convincentes! Por
exemplo, por que ele se dá ao trabalho de me atribuir
motivos com os quais nunca sonhei? Você sabe, ele sabe, e
eu sei que meu motivo em vir para cá não foi de modo
nenhum filantrópico. Como é ridículo dizer que eu tinha
bebido tão copiosamente do nobre espírito do dr. Howe,
que fui tomada pelo desejo de resgatar da escuridão e
obscuridade a garotinha do Alabama! Vim para cá
simplesmente porque as circunstâncias tornaram necessário que
eu ganhasse a vida e peguei a primeira oportunidade que
se ofereceu, embora eu não suspeitasse, nem ele, que eu
tivesse qualquer habilidade especial para o trabalho.
26 de janeiro de 1888:
Suponho que tenha recebido a carta de Helen. A tratantezinha meteu na cabeça de não escrever com lápis.
Eu queria que ela escrevesse esta manhã para o tio dela,
Frank, mas ela objetou dizendo: "Lápis é muito cansado na
cabeça. Vou escrever tio Frank carta em braile". Eu disse:
"Tio Frank não sabe ler braile". "Vou ensinar a ele", disse
ela. Expliquei que tio Frank era velho e não poderia
aprender braile facilmente. Num relâmpago, ela respondeu:
"Acho que tio Frank é muito velho (demais) para ler
cartas muito pequenas". Finalmente convenci-a a escrever
algumas linhas, mas ela quebrou o lápis seis vezes antes de
terminar a carta. Eu lhe disse: "Você é uma garota levada".
"Não", respondeu ela, "lápis é muito fraco". Acho que sua
objeção ao lápis é prontamente explicada pelo fato de lhe
terem pedido para escrever muitas amostras para amigos e
estranhos. Você sabe como as crianças na instituição
detestam isso. É tedioso porque o processo é muito lento e elas
não podem ler o que escreveram ou corrigir seus erros.
Helen está cada vez mais interessada nas cores. Quando
eu lhe disse que os olhos de Mildred eram azuis, ela
perguntou: "São como céus pequenininhos?". Depois que disse
que lhe tinham dado uma flor rosada, ela encrespou a
boca e disse: "Lábios são como uma rosa". Eu lhe disse
que eram tulipas, mas é claro que ela não entendeu o jogo
de palavras. Não posso crer que as impressões-cores que
recebeu durante o ano e meio em que podia ver e ouvir
estejam inteiramente perdidas. Tudo que vimos e ouvimos
está em algum lugar da mente. Pode estar vago e confuso
demais para ser reconhecível, mas mesmo assim está lá, como
a paisagem que perdemos quando o crepúsculo se aprofunda.
10 de fevereiro de 1888:
Chegamos em casa na noite passada. Passamos um
período esplêndido em Memphis, mas não descansei muito.
Não houve nada senão agitação do princípio ao fim -
passeios, almoços, recepções e tudo o que acontece quando
você tem uma criança ávida e incansável como Helen
nas mãos. Ela falou incessantemente. Não sei o que eu teria
feito se alguns dos jovens não tivessem aprendido a
conversar com ela. Eles me ajudaram tanto quanto possível.
Mesmo assim não posso nunca ter uma hora quieta para
mim. É sempre: "Ah, srta. Sullivan, por favor venha aqui e
nos conte o que Helen está querendo dizer", ou: "Srta. Sullivan,
por favor, pode explicar isso para Helen? Não conseguimos
fazê-la entender". Acredito que metade da população
branca de Memphis nos visitou. Helen foi tão paparicada e
acariciada que até um anjo ficaria mimado demais por esse
tratamento. Mas acho que não é possível estragá-la, ela é
inconsciente demais de si mesma e afetuosa demais.
As lojas em Memphis são muito boas e consegui gastar
todo o dinheiro que tinha comigo. Certo dia Helen disse:
"Preciso comprar um chapéu muito bonito para Nancy".
Eu disse: "Muito bem, vamos fazer compras esta tarde".
Ela tinha um dólar de prata e dez cents. Quando chegamos
à loja, perguntei a Helen quanto pagaria pelo chapéu
de Nancy. Ela respondeu prontamente: "Dez cents". "O
que vai fazer com o dólar?", perguntei. "Vou comprar boas
guloseimas para levar para Tuscumbia", respondeu.
Visitamos a Bolsa de Valores e um barco à vapor. Helen
ficou extremamente interessada no barco e insistiu que lhe
mostrassem cada centímetro dele, do motor à bandeira
no mastro. Fiquei gratificada ao ler o que o Nation disse
sobre Helen na semana passada.
O capitão Keller recebeu duas cartas interessantes desde
a publicação do "Relatório", uma do dr. Alexander
Graham Bell e outra do dr. Edward Everett Hale. O dr.
Hale reivindica parentesco com Helen e parece muito
orgulhoso da priminha. O dr. Bell escreve que o progresso
de Helen não tem paralelo na educação dos surdos, ou
algo assim, e diz coisas muito simpáticas sobre a professora
dela.
5 de março de 1888:
Não tive uma chance de terminar minha carta ontem.
A srta. Ev. veio me ajudar a fazer uma lista de palavras que
Helen aprendeu. Chegamos até o P e há mais de 900 palavras
a seu crédito. Fiz Helen começar um diário no dia
primeiro de março. Não sei quanto tempo ela o manterá.
É um negócio idiota, acho eu. Nesse momento ela o acha
uma grande diversão. Parece gostar de contar tudo o que
sabe. Isso é o que Helen escreveu no domingo:
Levantei, lavei o rosto e as mãos, penteei o cabelo,
colhi três violetas com orvalho para Professora e tomei
o café-da-manhã. Depois do café brinquei com bonecas
pouco. Nancy estava zangada. Zangada é chorar e
chutar. Li no meu livro sobre animais grandes, ferozes.
Feroz é muito zangado e forte e com muita fome. Eu não
gosto de animais ferozes. Escrevi carta para tio James.
Ele mora em Hotsprings. Ele é médico. Médico faz
menina doente bem. Eu não gosto doente. Depois jantei.
Gosto muito de sorvete muito. Depois do jantar pai foi a
Birmingham de trem muito longe. Recebi carta de Robert.
A maior parte desse diário foi perdida. Felizmente, porém, Hellen Keller
escreveu tantas cartas e exercícios que não há falta de registros desse tipo.
Ele gosta de mim. Ele disse, Querida Helen, Robert
ficou contente de receber uma carta da querida, doce
Helenzinha. Vou visitar você quando o sol brilhar. A sra.
Newsum é a esposa de Robert. Robert é o marido dela.
Robert e eu corremos e pulamos e saltamos e dançamos
e balançamos e falamos de pássaros e flores e árvores e
relva e Jumbo e Pearl vão conosco. Professora vai dizer,
Nós somos tolos. Ela é engraçada. Engraçada nos faz
rir. Natalie é uma boa menina e não chora. Mildred
chora. Ela vai ser uma boa menina em muitos dias e
corre e brinca comigo. Sra. Graves está fazendo vestidos
curtos para Natalie. Sr. Mayo foi para Duckhill e trouxe
para casa flores perfumadas. Sr. Mayo e sr. Farris e sr.
Graves gostam de mim e de Professora. Vou para
Memphis ver eles logo e eles vão me abraçar e beijar.
Thornton vai à escola e fica de cara suja. Menino deve
ter muito cuidado. Depois do jantar eu brinquei com
Professora na cama. Ela me enterrou debaixo dos
travesseiros e então eu cresci bem devagar como árvore
do chão. Agora eu vou para cama.
Helen Keller
16 de abril de 1888:
Acabamos de voltar da igreja. O capitão Keller disse
ao café-da-manhã que gostaria que eu levasse Helen à igreja.
A corporação dos presbíteros estaria presente, e o capitão
queria que os ministros vissem Helen. A aula de catecismo
estava em andamento quando chegamos e gostaria que
você visse a sensação que a entrada de Helen causou. As
crianças estavam tão contentes de vê-la na aula de catecismo
que não prestavam atenção aos professores. Saíram
correndo de seus bancos e nos rodearam. Ela beijou a
todos, meninos e meninas, querendo ou não. Parecia
pensar no início que as crianças todas pertenciam aos ministros
visitantes, mas logo reconheceu alguns amiguinhos entre
eles, e eu lhe disse que os ministros não trazem os filhos.
Ela pareceu desapontada e disse: "Vou mandar muitos
beijos para eles". Um dos ministros quis que eu perguntasse
a Helen "O que os ministros fazem?" Ela disse: "Eles
lêem e falam alto para as pessoas serem boas". Ele anotou
a resposta dela em seu caderno de notas. Quando estava
na hora do serviço começar, ela estava em tal estado de
excitação que achei melhor levá-la embora; mas o capitão
Keller disse: "Não, ela vai ficar bem". Assim, nada havia a
fazer senão ficar. Era impossível manter Helen quieta. Ela
me abraçava e beijava e ao clérigo de aparência quieta
sentado do outro lado dela. Ele lhe deu seu relógio para
brincar, mas isso não a manteve parada. Ela quis mostrá-lo ao
garotinho no banco de trás. Quando o serviço de
comunhão começou, ela sentiu o cheiro do vinho e farejou tão
alto que todos na igreja puderam ouvir. Quando o vinho
foi passado para nosso vizinho, este foi obrigado a levantar
para impedi-la de tirá-lo dele. Nunca fiquei tão contente
de ir embora de um lugar como daquela igreja! Tentei tirar
Helen logo dali, mas ela mantinha o braço esticado e cada
cauda de casaco que tocava precisava se virar e contar
sobre os filhos que deixara em casa e recebia beijos de
acordo com o número deles. Todos riam dos absurdos dela e
era de se pensar que estavam deixando um lugar de diversão
e não uma igreja. O capitão Keller convidou alguns
ministros para jantar. Helen foi irrepreensível. Ela
descreveu o que ia fazer em Brewster com a encenação mais
animada, e complementou soletrando. Finalmente levantou
da mesa e passou a fazer movimentos como se colhesse
algas e conchas, espadanando água, segurando a saia
mais alto do que era apropriado nas circunstâncias. Então
se atirou ao chão e começou a nadar tão energicamente
que alguns de nós achamos que seríamos chutados para
fora das cadeiras! Seus movimentos são geralmente mais
expressivos do que qualquer palavra, e ela é tão graciosa
quanto uma ninfa.
Cogito se os dias parecem tão intermináveis para você
quanto para mim. Só conversamos, planejamos e sonhamos
sobre Boston, Boston, Boston. Penso que a sra. Keller
decidiu de vez ir conosco, mas não ficará todo o verão.
15 de maio de 1888:
Você está notando que esta é a última carta que eu vou
lhe escrever por muito, muito tempo? A próxima que
você receberá de mim será num envelope amarelo, e este
vai lhe dizer quando chegaremos em Boston. Estou
bastante feliz de escrever cartas. Mas preciso lhe contar de
nossa visita a Cincinnati.
Passamos uma semana deliciosa com os "doutores".
O dr. Keller foi ao nosso encontro em Memphis. Quase
todos no trem eram médicos e ele parecia conhecê-los.
Quando chegamos a Cincinnati, o lugar estava cheio de
médicos, entre estes vários doutores importantes do lugar.
Ficamos na Bumet House. As pessoas se mostraram
encantadas com Helen. Os homens cultos se maravilharam com a
inteligência e a alegria dela. Há algo em Helen que atrai as
pessoas; acho que é o seu interesse em tudo e todos.
Onde quer que fosse, Helen era o centro do interesse.
Ficou encantada com a orquestra no hotel e sempre que a
música começava ela dançava pela sala, abraçando e beijando
cada um que tocava. Sua felicidade impressionava;
ninguém pareceu ter pena dela. Um cavalheiro disse ao dr.
Keller "Já vivi muito tempo e vi muitos rostos felizes, mas
jamais um tão radiante como o desta criança nesta noite".
Outro disse: "Que diabo, eu daria tudo que possuo para
ter essa meninazinha sempre perto de mim". Mas não tenho
tempo de escrever todas as coisas agradáveis que disseram
- seria preciso um livro muito grande, e as coisas que
fizeram por nós encheriam outro volume. O dr. Keller
distribuiu os extratos para o relatório que o sr. Magnos me
enviou e poderia ter distribuído mil se os tivesse. Lembra do
dr. Garcelon, governador do Maine vários anos atrás? Ele
nos levou para passear uma tarde e queria dar uma boneca
a Helen, mas ela disse: "Não gosto de filhos demais. Nancy
está doente, Adeline está zangada e Ida é muito má". Nós
rimos de chorar, ela falou aquilo com tanta seriedade. "Do
que gostaria, então?", perguntou dr. Garcelon. "Algumas
luvas bonitas para falar com elas", ela respondeu. O doutor
ficou intrigado. Nunca ouvira falar de "luvas que falam";
mas expliquei-lhe que ela vira uma luva que tinha o alfabeto
impresso e evidentemente achava que isso podia ser
comprado. Eu lhe disse que podia comprar umas luvas
se ela quisesse e faria com que o alfabeto fosse gravado
nelas.
Almoçamos com o sr. Thayer (seu antigo pastor) e a
esposa. Ele me perguntou como eu ensinara a Helen os
adjetivos e os nomes de idéias abstratas como bondade e
felicidade. Essas mesmas perguntas me vêm sendo feitas
cem vezes pelos cultos doutores. Parece estranho que as
pessoas se maravilhem com o que é na verdade tão
simples. Ora, é tão fácil ensinar o nome de uma idéia, se é
claramente formulada na mente da criança, quanto ensinar
o nome de um objeto. Seria de fato uma tarefa hercúlea
ensinar as palavras se as idéias já não existissem na mente
da criança. Se as experiências e as observações dela não a
tivessem conduzido aos conceitos, pequeno, grande, bom, mau,
doce, azedo, ela não teria onde colar as etiquetas-palavras.
Eu, pobre ignorante, me vi explicando aos homens
sábios do Leste e do Oeste verdades tão simples como
essas: se você dá a uma criança algo doce e ela move a lingua,
dá um estalo com os lábios e parece gratificada, ela tem
uma sensação muito definida; e se, a cada vez que ela tem
essa experiência, aprende a palavra doce, ou esta lhe é
soletrada na mão, rapidamente adotará esse sinal arbitrário
para a sua sensação. Da mesma forma, se você colocar
um pedaço de limão na língua da criança, ela vai encrespar
os lábios e tentar cuspi-lo. E depois de ter tido essa
experiência algumas vezes, quando você lhe oferecer um limão
ela vai fechar a boca e fazer caretas, indicando claramente
que lembra da sensação desagradável. Sua etiqueta é azedo
e a criança adota o símbolo que você lhe dá. Se você
tivesse chamado tais sensações respectivamente de preto e
branco, ela os teria adotado também prontamente; mas ia
atribuir a preto e branco os mesmos significados que atribui
a doce e azedo. Da mesma forma, a criança aprende por
muitas experiências a diferenciar seus sentimentos e nós os
nomeamos para ela - bom, mau, suave, áspero, feliz, triste.
Não é a palavra, e sim a capacidade de experimentar a
sensação que conta na educação da criança.
Acrescentei o trecho seguinte de uma das cartas da srta.
Sullivan porque contém opiniões interessantes e informais
estimuladas pela observação de outros métodos.
Visitamos uma pequena escola para surdos. Fomos
amavelmente recebidas e Helen gostou de conhecer as crianças.
Duas das professoras conheciam o alfabeto manual e
conversaram com Helen sem intérprete. Ficaram perplexas
com seu domínio da linguagem. Nem uma única criança
da escola, disseram, tinha qualquer coisa parecida com a
facilidade de expressão de Helen, e algumas estavam
sendo ensinadas há dois ou três anos. Eu estava incrédula no
início. No entanto, depois de observar por umas duas
horas as crianças trabalhando, soube que o que tinham dito
era verdade e não fiquei surpresa. Numa sala, alguns
pequerruchos postavam-se diante de um quadro-negro,
construindo penosamente "frases simples". Uma meninazinha
escrevera: "Tenho um vestido novo. É um vestido
bonito. Mamãe me fez um bonito vestido novo. Eu amo
mamãe". Um meninozinho de cabelos cacheados escrevia:
"Tenho uma bola grande. Gosto de chutar minha bola
grande". Quando entramos na sala, a atenção das crianças
fixou-se em Helen. Uma delas me puxou pela mão e disse:
"Menina é cega". A professora estava escrevendo no
quadro-negro: "O nome da menina é Helen. Ela é surda. Ela
não enxerga. Nós temos muita pena". Eu perguntei: "Por
que você escreve essas frases no quadro? As crianças não
entenderiam se você falasse com elas sobre Helen?". A
professora disse algo sobre dar a instrução correta e
continuou a construir um exercício a respeito de Helen. Eu lhe
perguntei se a menina que escrevera sobre o vestido novo
estava especialmente contente com o vestido. "Não",
respondeu ela, "acho que não; mas as crianças aprendem
melhor se escreverem sobre coisas que lhes digam respeito".
Parecia tudo tão mecânico e difícil que meu coração doeu
pelas pobres criancinhas. Ninguém pensa em fazer uma
criança que ouve dizer: "Eu tenho um bonito vestido
novo", no início. É verdade que essas crianças são mais
velhas que o bebê que balbucia "Papa beija bebê-bonito"
e preenche o que quer dizer apontando para sua roupa
nova; mas a capacidade que têm de entender e usar a
linguagem não é maior.
Havia a mesma dificuldade na escola inteira. Em toda
sala de aula vi frases no quadro-negro, escritas
evidentemente para ilustrar alguma regra gramatical, ou com o
objetivo de usar palavras que haviam sido previamente
ensinadas no mesmo contexto, ou em qualquer outro. Esse
tipo de coisa pode ser necessária em alguns estágios da
educação; mas não é a maneira de se adquirir uma linguagem.
Acho que nada esmaga com mais eficácia o impulso da criança
para falar naturalmente do que esses exercícios no quadro-negro. A
sala de aula não é o local para ensinar a linguagem à criança,
menos ainda à criança surda. Esta deve ser tão inconsciente
quanto a criança que ouve do fato de estar
aprendendo palavras, e devemos permitir que tagarele com os
dedos, ou com o lápis, em monossílabos se ela quiser, até o momento em
que sua crescente inteligência exija afrase. A linguagem não deve
ser associada em sua mente a intermináveis horas na escola,
com perguntas intrigantes sobre gramática ou qualquer coisa
que seja um inimigo da alegria. Mas eu não devo adquirir
o hábito de criticar os métodos de outros muito
severamente. Posso estar tão distante da direção certa quanto eles.
O segundo relatório da srta. Sullivan
vai até 1.º de outubro
de 1888.
Durante o ano passado, Helen gozou de excelente
saúde. Seus olhos e ouvidos foram examinados por especialistas
e, segundo a opinião deles, ela não pode ter a mais
leve percepção de luz ou de som.
É impossível dizer exatamente em que extensão os
sentidos do olfato e do paladar a ajudam a obter informação
com respeito às qualidades físicas; mas, segundo uma
autoridade eminente, tais sentidos exercem uma grande
influência no desenvolvimento mental e moral. Dugald
Stewart diz: "Algumas das palavras mais significativas
relacionadas à mente humana são tiradas do sentido do olfato;
e o lugar visível que suas sensações ocupam na linguagem
poética de todas as nações mostra quão fácil e naturalmente
elas se aliam às refinadas operações da fantasia e as emoções
morais do coração". Helen certamente tira um grande
prazer do exercício desses sentidos. Entrando numa
estufa, sua fisionomia se torna radiante e ela dirá, apenas
pelo olfato, o nome das flores que lhe são familiares. Suas
lembranças das sensações do olfato são muito vivas. Ela
usufrui por antecipação o cheiro de uma rosa ou de uma violeta;
e se lhe é prometido um buquê dessas flores, uma expressão
peculiarmente feliz ilumina seu rosto, indicando que
em imaginação ela percebe a fragrância delas e que isso lhe
é agradável. Acontece freqüentemente que o perfume de
uma flor ou o sabor de uma fruta a faça recordar algum
evento feliz de sua vida no lar ou uma encantadora festa
de aniversário.
Seu tato vem aumentando sensivelmente durante o
ano e ganhou em percepção e delicadeza. Na verdade,
todo o seu corpo é tão finamente organizado que ela
parece usá-lo como um médium para entrar em relações
mais próximas com as criaturas suas companheiras. Ela é
capaz não apenas de distinguir com grande exatidão as
diferentes ondulações do ar e as vibrações do chão feitas por
vários sons e movimentos, reconhecer amigos e conhecidos
no instante em que toca suas mãos ou roupas, como
também percebe os estados de ânimo daqueles em torno dela.
É impossível para qualquer um que esteja especialmente
feliz ou triste esconder de Helen esse fato ao conversar
com ela.
Ela observa a mínima ênfase colocada numa palavra
na conversa e descobre significados em cada mudança de
posição e no variado jogo dos músculos da mão. Reage
rapidamente à gentil pressão da afeição, o tapinha de aprovação,
o movimento de impaciência, o firme gesto de
comando e as muitas outras variações da quase infinita
linguagem dos sentimentos; vem se tornando uma
especialista tão boa em interpretar essa linguagem inconsciente
das emoções que freqüentemente é capaz de adivinhar
nossos próprios pensamentos.
Em meu relato sobre o ano passado de Helen
mencionei vários exemplos em que ela parecia ter utilizado uma
inexplicável faculdade mental; contudo, após considerar
cuidadosamente a questão, agora me parece que tal poder
pode ser explicado pela perfeita familiaridade de Helen
com as variações musculares daqueles com quem ela entra
em contato, causadas pelas emoções deles. Ela tem sido
forçada a depender grandemente desse sentido muscular
como meio de assegurar-se das condições de ânimo
daqueles à sua volta. Ela aprendeu a conectar certos
movimentos do corpo com a raiva, outros com a alegria, outros
com o pesar. Um dia, enquanto caminhava com a mãe e o
sr. Anagnos, um menino atirou um estalinho que assustou
a sra. Keller. Helen sentiu instantaneamente a mudança nos
movimentos da mãe e perguntou: "Do que está com
medo".
Certa vez, quando eu caminhava no parque
público com ela, vi um guarda levando um homem para a
cadeia. A agitação que senti evidentemente produziu uma
mudança física imperceptível, pois Helen perguntou
agitadamente: "O que a senhorita viu?".
Uma impressionante ilustração desse estranho poder
foi mostrada recentemente enquanto Helen era examinada
pelos especialistas em ouvidos de Cincinnati. Foram tentadas
várias experiências para determinar se Helen tinha ou
não qualquer percepção do som. Todos os presentes
ficaram perplexos quando ela pareceu não apenas ouvir um
assobio, mas também um tom de voz comum. Ela virou a
cabeça, sorriu e agiu como se tivesse ouvido o que fora
dito. No momento eu estava em pé ao lado dela, segurando-lhe
a mão. Pensando que ela estava recebendo impressões
de mim, coloquei as mãos sobre a mesa e retirei-me
para o lado oposto da sala. Os especialistas fizeram então
suas experiências com resultados muito diferentes. Helen
permaneceu imóvel durante todas elas, não mostrando nem
uma vez o mínimo sinal de perceber o que estava acontecendo.
Por minha sugestão, um dos cavalheiros pegou a mão
dela e os testes foram repetidos. Dessa vez a fisionomia dela
mudava sempre que se dirigiam a ela, mas não havia uma
nítida iluminação de seus traços como quando eu lhe segurava
a mão.
No relato sobre o ano passado de Helen, foi declarado
que ela não conhecia nada sobre a morte ou o enterro do
corpo; contudo, ao entrar num cemitério pela primeira vez
em sua vida, ela mostrou sinais de emoção seus olhos
realmente se encheram de lágrimas.
Uma circunstância igualmente notável ocorreu no
verão passado. Contudo, antes de relatá-la, mencionarei o
que ela sabe em relação à morte. Mesmo antes de eu
conhecer Helen, ela segurara uma galinha morta, ou um pássaro, ou outro pequeno animal. Algum tempo depois da
visita ao cemitério a que me referi, Helen ficou interessada
num cavalo que ferira muito uma das patas num acidente e
diariamente ia visitá-lo comigo. A pata ferida logo piorou
tanto que o cavalo foi suspenso por uma trave no teto. O
animal gemia de dor e Helen, percebendo seus gemidos,
encheu-se de pena. Finalmente foi preciso matá-lo e quando
Helen, a seguir, pediu para vê-lo, eu lhe disse que estava
morto. Essa foi a primeira vez que tomou conhecimento da
palavra. Então expliquei-lhe que fora preciso dar um tiro
nele para libertá-lo do sofrimento e que ele agora estava
enterrado - colocado dentro do chão. Penso que a idéia
dele ter sido intencionalmente abatido não lhe causou muita
impressão, mas acho que percebeu que a vida fora extinta
no cavalo como nos pássaros mortos em que tocara, e
também que ele fora colocado dentro do solo. Desde essa
ocorrência, tenho usado a palavra morto sempre que a ocasião
exige, mas sem maiores explicações sobre seu significado.
Numa visita a Brewster, Massachusetts, certo dia Helen
me acompanhou e a minha amiga ao cemitério. Ela
examinou uma lápide após a outra e parecia contente quando
conseguia decifrar um nome. Sentia o cheiro de flor mas
não mostrou nenhum desejo de colhê-las; e quando peguei
algumas para ela, ela se recusou a tê-las pregadas no vestido.
Quando sua atenção foi atraída para uma laje de
mármore com o nome FLORENCE escrito em relevo, ela se deixou
cair no chão como se procurasse algo; então virou-se para
mim com o rosto bastante perturbado e perguntou: "Onde
está pobre Florencinha?" Tentei dar uma resposta evasiva,
mas ela insistiu. Virando para minha amiga, ela perguntou:
"A senhora chorou alto pela pobre Florencinha?", e
acrescentou: "Acho que ela está muito morta. Quem pôs ela no
buraco grande?". Enquanto ela continuava a fazer essas
perguntas angustiantes, deixamos o cemitério. Florence era
filha da minha amiga, e uma moça na época de sua morte;
mas nada fora contado a Helen a respeito, nem ela sabia
que minha amiga tivera uma filha.
Helen ganhara de
presente uma cama e um carrinho para suas bonecas, que
recebera e usava como qualquer outro presente. Ao voltar
para casa depois de sua visita ao cemitério, correu para o
armário onde eram guardados aqueles brinquedos elevou-os
para minha amiga, dizendo: "São da pobre Florencinha".
Isso era verdade, embora ficássemos atordoadas, sem saber
como Helen o adivinhara. Uma carta escrita para sua mãe
no decorrer da semana seguinte deu um relato de suas
impressões, em suas próprias palavras:
Pus meus bebezinhos para dormir na caminha de
Florence e levei eles para passear no carrinho dela. A
pobre florencinha morreu. Ela estava muito doente e
morreu. A sra. H. chorou alto por sua querida filhinha.
Ela foi para dentro do chão e está muito suja e está fria.
Florence era muito adorável como Sache e sra. H. beijou
ela e abraçou ela muito. Florence está muito triste no
buraco grande. O doutor deu remédio para ela ficar bem
mas a pobre Florence não ficou bem. Quando ela estava
muito doente ela tossia e gemia na cama. A sra. H.
vai ver ela logo.
Apesar da atividade da mente de Helen, ela é uma criança
muito natural. Gosta de diversão e brincadeiras e adora
estar com outras crianças. Nunca está mal-humorada ou
irritável e jamais a vi impaciente com seus companheiros
de brinquedo quando eles não a entendem. Brinca por horas
com crianças que não entendem uma única palavra soletrada
por ela e é patético observar os gestos ansiosos e a
excitada pantomima pelos quais ela exprime suas idéias e
emoções. Ocasionalmente algum garoto ou garota tenta
aprender o alfabeto manual. Então é lindo observar com
que paciência, doçura e perseverança Helen se esforça para
colocar os descontrolados dedos do amiguinho na posição
apropriada.
Um dia, quando Helen usava um casaquinho de que
tinha muito orgulho, sua mãe disse: "Há uma pobre menina
que não tem nenhum agasalho para aquecê-la. Você lhe
dará o seu?". Helen começou a tirar o casaco, dizendo:
"Preciso dar ele para a pobre meninazinha estranha".
Ela gosta muito de crianças mais novas do que ela e um
bebê invariavelmente invoca todos os instintos maternais
de sua natureza. Lidará com o bebê tão ternamente como
a mais cuidadosa babá poderia desejar. É agradável
também notar como é atenciosa com as criancinhas e como
está pronta a ceder a seus caprichos.
Helen tem uma disposição muito sociável e adora a
companhia dos que podem seguir os rápidos movimentos
de seus dedos; mas se deixada consigo mesma, ela se
diverte sozinha por horas a fio tricotando ou costurando.
Ela lê muito. Debruça-se sobre os livros com uma
expressão de intenso interesse, e enquanto o indicador de
sua mão esquerda corre ao longo da linha, ela soletra as
palavras com a outra mão. Mas geralmente seus
movimentos são tão rápidos que se mostram ininteligíveis até
mesmo para aqueles acostumados a ler os rápidos e variados
movimentos de seus dedos.
Cada tom de emoção é expressado por seus traços
móveis. Seu comportamento é fácil e natural, e é encantador
devido a sua franqueza e evidente sinceridade. Seu
coração é destituído de egoísmo e cheio de afeição para
tolerar um vislumbre de medo ou de falta de bondade.
Ela não percebe que alguém pode ser outra coisa que não
bondoso e terno. Não tem consciência de nenhum motivo
para ser desajeitada; conseqüentemente, seus movimentos
são livres e graciosos.
Ela gosta muito de todas as coisas vivas em sua casa, e
não aceita que sejam maltratadas. Quando está passeando
de carruagem não permite que o condutor use o chicote
porque, como ela diz: "Os pobres cavalos vão chorar". Certa
manhã ficou muito desalentada ao descobrir que um dos
cachorros tinha um bloco preso a sua coleira. Explicamos
que aquilo era para impedir Pearl de fugir. Helen demonstrou
muita solidariedade e durante o dia, em cada oportunidade,
ia atrás de Pearl e carregava o bloco de um lado para
O Outro.
Seu pai lhe escreveu no verão passado que os pássaros e
abelhas estavam comendo todas as suas uvas. No início ela
ficou muito indignada e disse que as pequenas criaturas eram
"muito erradas"; mas pareceu satisfeita quando lhe expliquei
que os pássaros e abelhas estavam com fome e não
sabiam que era egoísta comer todas as frutas. Numa carta
escrita logo depois, diz Helen:
Lamento muito que os mangangás e vespões e pássaros
e grandes moscas e minhocas estejam comendo
todas as uvas deliciosas de meu pai. Eles gostam de comer
frutas suculentas assim como as pessoas e ficam com
fome. Eles não estão muito errados de comer uvas
demais porque eles não sabem muito.
Ela continua a fazer rápidos progressos na aquisição da
linguagem à medida que suas experiências aumentam.
Enquanto estas eram poucas e elementares, o vocabulário
de Helen era necessariamente limitado; mas conforme
aprende mais sobre o mundo em torno dela, seu julgamento
se torna mais acurado, seu poder de raciocínio mais
forte, ativo e sutil, e a linguagem na qual expressa essa
atividade intelectual ganha em fluência e lógica.
Quando está viajando, ela se embebeda de pensamento
e linguagem. Sentada a seu lado no trem, descrevo o que
vejo pela janela - colinas, vales e rios; campos de
algodão e hortas em que crescem morangos, pêssegos, pêras,
melões e legumes; grupos de vacas alimentando-se em
amplos prados e rebanhos de ovelhas nos flancos das
colinas; as cidades com suas igrejas e escolas, hotéis e armazéns
e as atividades das pessoas. Enquanto lhe comunico
essas coisas, Helen manifesta interesse e, na falta de
palavras, indica por gestos e pantomima seu desejo de aprender
mais de seus arredores e das grandes forças que operam
em toda parte. Desse modo, ela aprende inúmeras expressões
novas sem qualquer esforço aparente.
Desde o dia em que Helen captou pela primeira vez a
idéia de que todos os objetos têm nomes e que estes podem
ser comunicados por certos movimentos dos dedos,
tenho falado com ela exatamente como se ela pudesse ouvir,
apenas dirijo as palavras a seus dedos e não a seus ouvidos.
Naturalmente no início houve uma forte tendência da parte
dela de usar apenas as palavras importantes numa frase.
Ela dizia: "Helen leite". Eu pegava o leite, para mostrar-lhe
que ela usara a palavra correta, mas não a deixava beber
até que ela tivesse, com a minha ajuda, feito uma frase
completa, como: "Dê a Helen leite para beber". Nessas
primeiras aulas, eu a encorajei a usar diferentes formas de
expressão para transmitir a mesma idéia. Se ela estava
comendo uma guloseima eu dizia: "Por favor, será que Helen
pode dar um pedaço de doce à professora?", ou "A professora gostaria de comer um pedaço do doce de Helen",
enfatizando o de. Ela logo percebeu que a mesma idéia
podia ser expressada de muitos modos. Dois ou três
meses depois que comecei a ensiná-la, ela dizia: "Helen quer ir
para a cama" ou "Helen está com sono e Helen vai para a
cama".
Fazem-me constantemente a pergunta: "Como conseguiu
ensinar a Helen o significado de palavras que expressam
qualidades intelectuais e morais?". Acredito que foi mais
pela associação e repetição do que por qualquer explicação
minha. Isso ocorreu sobretudo nas primeiras aulas, quando
o conhecimento da lingua por parte de Helen era tão tênue
que tornava qualquer explicação impossível.
Sempre exerci a prática de usar as palavras que descreviam
emoções, ou ações e qualidades morais ou intelectuais,
vinculadas às circunstâncias que exigiam tais palavras. Logo
depois que me tornei sua professora, Helen quebrou a boneca
nova, da qual gostava muito. Ela começou a chorar. Eu lhe
disse: "Professora lamenta muito". Após algumas repetições,
ela passou a associar a palavra ao sentimento.
Aprendeu a palavra feliz da mesma forma, assim como
certo, errado, bom, mau e outros adjetivos. A palavra amor ela
aprendeu como outras crianças - associando-a às carícias.
Certo dia fiz-lhe uma simples pergunta sobre uma
combinação de números que eu tinha certeza de que ela
sabia. Helen respondeu ao acaso. Eu a observei; ela estava
imóvel, a expressão do rosto mostrando claramente que
pensava. Toquei-lhe a testa e soletrei "p-e-n-s-e". A palavra,
assim ligada ao ato, pareceu imprimir-se em sua mente da
mesma forma como se eu tivesse colocado sua mão
sobre um objeto e lhe soletrasse o nome. Desde aquele dia
ela tem sempre usado a palavra pense.
Num período posterior comecei a usar palavras como
talvez, supor, esperar, esquecer, lembrar. Se Helen perguntasse
"Onde está mãe agora?", eu respondia: "Não sei. Talvez
esteja com Leila".
Ela está sempre ávida para aprender o nome das
pessoas que encontramos nas charretes ou em outro lugar e
saber onde estão indo e o que farão. São freqüentes as
conversas desse tipo:
HELEN: Qual é o nome do menino?
PROFESSORA: Não sei, é um desconhecido; mas talvez
se chame Jack.
HELEN: Para onde ele vai?
PROFESSORA: Pode estar indo para o parque brincar com
Outros meninos.
HELEN: Ele vai jogar o quê?
PROFESSORA: Suponho que vá jogar bola.
HELEN: O que os garotos estão fazendo agora?
PROFESSORA: Talvez estejam aguardando Jack,
esperando por ele.
Depois que as palavras se tornaram familiares a ela,
Helen as usa em combinações.
26 de setembro [1888]:
Esta manhã a professora e eu ficamos à janela e
vimos um meninozinho andando na calçada. Estava
chovendo muito forte e ele tinha um guarda-chuva muito
grande para deixar de fora as gotas de chuva.
Não sei que idade ele tinha mas acho que podia ter seis
anos. Talvez seu nome fosse Joe. Não sei onde estava indo
porque era um menino desconhecido. Mas talvez sua mãe
o tenha mandado a uma loja comprar algo para o jantar.
Ele tinha uma bolsa numa mão. Suponho que a estivesse
levando para sua mãe.
Ao ensiná-la a usar a lingua, não me limitei a qualquer
sistema ou teoria em particular. Observei os movimentos
espontâneos da mente da minha aluna e tentei seguir as
sugestões que isso me proporciona.
Dado o temperamento nervoso de Helen, foram
tomadas todas as precauções para evitar excitar indevidamente
seu cérebro já ativo. Passamos a maior parte do ano
viajando e visitando lugares diferentes, e as aulas dela foram
sugeridas pelos diversos cenários e experiências pelos quais
ela passou. Helen continua a manifestar a mesma avidez
para aprender do início. Nunca é necessário incitá-la a
estudar. Na verdade, sou forçada com freqüência a induzi-la
a abandonar um exemplo ou uma redação.
Embora sem confiar em qualquer determinado
sistema de ensino, venho tentando fazer acréscimos à sua
inteligência e informação geral, alargar seu conhecimento das
coisas a sua volta e levá-la a iniciar um relacionamento fácil
e natural com as pessoas. Estimulei-a a escrever um diário,
do qual foi tirado o trecho seguinte:
22 de março de 1888:
O sr. Anagnos veio me ver quinta-feira. Fiquei
contente em abraçá-lo e beijá-lo. Ele toma conta de 60
meninas cegas e 70 meninos cegos. Gosto muito deles.
Meninas cegas me mandaram uma bonita cesta de
costura. Achei tesoura e linha e uma cartela de agulhas com
muitas agulhas e uma agulha de crochê, esmeril, dedal,
caixa, fita métrica, botões e almofada para alfinetes. Vou
escrever uma carta para as meninas cegas agradecendo.
Vou fazer roupas bonitas para Nancy, Adeline e Allie. Vou
a Cincinnati em maio e comprarei outro filho. Então
vou ter quatro filhos, O nome do novo bebê será Harry.
Sr. Wilson e sr. Mitchell vieram nos visitar domingo. Sr.
Anagnos foi para Louisville na segunda-feira ver crianças
cegas. Mãe foi para Huntsville. Eu dormi com pai e Mildred
dormiu com professora. Eu aprendi sobre calma. Quer
dizer quieta e feliz. Tio Morrie me mandou bonitas
histórias. Eu li sobre pássaros. A codorna põe 15 ou 20 ovos e
eles são brancos. Ela faz seu ninho no solo. O azulão faz
seu ninho num oco de árvore e seus ovos são azuis. Os
ovos do rouxinol são verdes.
Aprendi uma canção sobre a
primavera. Março, abril e maio são primavera.
Now melts the snow.
The warm wind blow
The waters flow
And robin dear,
Is come to show
That Spring is here.
[A neve derrete agora./O vento quente já sopra/A água se põe a fluir,
o querido rouxinol,/veio para exibir/a primavera que chega.
(Tradução
livre.N da T.)]
James matou narcejas para o café da manhã. Pintinhos
ficaram com muito frio e morreram. Lamento.
Professora e eu fomos passear no rio Tennessee, num barco.
Vi sr. Wilson e James remarem. Barco deslizou
rapidamente e eu pus mão na água e senti ela correndo.
Peguei peixe com anzol, linha e caniço. Subimos na
alta colina e professora caiu e machucou a cabeça. Comi
peixe muito pequeno de jantar. Li sobre vaca e bezerro.
A vaca adora comer relva assim como garota gosta de
pão com manteiga e leite. Bezerrinha corre e salta no
campo. Ela gosta de pular e brincar, pois fica feliz quando
o sol está brilhante e quente. Menino adora sua bezerra.
E disse, vou beijar você, bezerrinha, e abraçou o pescoço
da bezerra e beijou-a. A bezerra lambeu o rosto do bom
menino com sua comprida língua áspera. Bezerra não
deve abrir a boca muito para beijar. Estou cansada e
professora não quer que eu escreva mais.
No outono, Helen foi ao circo. Enquanto estávamos
diante da jaula o leão rugiu; Helen sentiu a vibração do ar
tão nitidamente que foi capaz de reproduzir o barulho com
muita exatidão.
Tentei descrever-lhe a aparência de um camelo; mas
como não nos foi permitido tocar o animal, temi que ela
não tivesse tido uma idéia correta da forma dele. Alguns
dias depois, no entanto, ouvindo barulhos na sala de aula,
fui até lá e encontrei Helen de quatro com um travesseiro
amarrado nas costas de modo a deixar um oco no meio,
fazendo assim uma corcova dos dois lados. Entre essas
corcovas ela colocou sua boneca, com quem estava dando
um passeio pela sala. Observei-a mover-se por algum tempo,
tentando dar longas passadas para concretizar a idéia
que eu lhe tinha dado dos passos do camelo. Quando lhe
perguntei o que estava fazendo, ela respondeu: "Sou um
camelo muito engraçado".
Durante os dois anos seguintes nem o sr. Anagnos, que ficou
na Europa por um ano, nem a srta. Sullivan escreveram nada
sobre Helen Keller para publicação. Em 1892 apareceu o
relatório de 1891 da Instituição Perkins, contendo um relato completo
sobre Helen Keller, inclusive muitas cartas suas, exercícios e redações.
Como algumas das cartas e a história do Frost King estão
publicadas aqui, não há necessidade de publicar mais amostras
dos textos de Helen Keller durante o terceiro, o quarto e o quinto
anos de sua educação. Foram os dois primeiros anos que contaram. Forneço os comentários mais importantes da srta. Sullivan
que constam desse relatório, assim como material biográfico,
porque não aparecem em outra parte do presente volume.
Tais trechos foram retirados pelo sr. Anagnos das notas e
recordações da srta. Sullivan.
Um dia, quando seu pônei e sua mula estavam lado a
lado, Helen foi de um para o Outro, examinando-os
atentamente. Finalmente parou com a mão sobre a cabeça de
Neddy e se dirigiu a ele do seguinte modo: "Sim, querido
Neddy, é verdade que você não é tão lindo quanto
Black Beauty. Seu corpo não é tão elegante, você não tem
nenhuma expressão orgulhosa no rosto e seu pescoço não
se arqueia. Além disso, suas orelhas compridas o deixam
com uma aparência um pouco engraçada. Claro, você não
pode evitar isso e eu o adoro como se você fosse a criatura
mais bela do mundo".
Ela ficou extremamente interessada na história de Black
Beauty (Beleza negra). Para mostrar como Helen capta e
associa idéias rapidamente, eu lhe darei um exemplo que
todos que leram o livro poderão apreciar. Eu estava lendo
o seguinte parágrafo para ela:
"A égua baia era velha e cansada, com um pêlo mal
cuidado e ossos que apareciam claramente sob ele; seus
jarretes eram protuberantes e as patas da frente muito pouco
firmes. Eu tinha comido um pouco de feno; o vento fez
rolar uma pequena quantidade dele naquela direção e a
pobre criatura esticou o comprido pescoço e o pegou,
virando-se depois à procura de mais. Havia um olhar
desesperançado no olho baço que não consegui deixar de
notar, e então, enquanto estava pensando que eu já vira
aquela égua antes, ela olhou em cheio para mim e disse,
"Black Beauty é você?"."
Nesse ponto, Helen apertou minha mão para me fazer
parar. Ela estava soluçando convulsivamente. "Era a
pobre Ginger", foi tudo que pôde dizer inicialmente.
Depois, quando conseguiu falar a respeito, ela disse: "Pobre
Ginger! As palavras formaram um quadro distinto na
minha mente. Eu podia ver a aparência de Ginger; toda a sua
beleza desaparecida, o lindo pescoço arqueado, caído, todo
o espírito desaparecido de seus olhos cintilantes, todo o
jeito brincalhão sumido. Ah, como foi terrível! Eu nunca
soube antes que poderia haver tal mudança numa coisa.
Tinha havido muitos poucos momentos de sol na vida da
pobre Ginger e as tristezas eram tantas!". Após um
momento, Helen acrescentou tristemente: "Acho que a vida
de algumas pessoas é como a de Ginger".
Esta manhã Helen estava lendo pela primeira vez o
poema de Bryant, Ah, mãe de uma poderosa raça! Então eu lhe
disse: "Depois que você ler todo o poema, diga-me quem
você acha que é a mãe". Quando ela chegou na linha "Há
liberdade em teus portões e repouso", exclamou: "Significa
América! Acho que o portão é a cidade de Nova York e
Liberdade é a grande Estátua da Liberdade". Depois que
leu The battle field (O campo de batalha), do mesmo autor,
eu lhe perguntei que verso ela achava mais bonito. Ela
respondeu, "Gosto mais desse:
Truth crushed to earth shall rise again;
The eternal year of God are hers;
But Error, wounded, writhes with pain,
And dies among his worshipers.
[A verdade esmagada contra o solo se erguerá de novo;/os eternos anos
de Deus pertencem a ela;/e o Erro, ferido, encolhe-se de dor,/e morre
entre seus cultuadores. (Tradução livre. N da T.)]
Ela é imediatamente transportada para o meio dos
acontecimentos da história. Rejubila-se quando a justiça vence,
fica triste quando a virtude está em baixa e seu rosto fulgura
de admiração e reverência ante a descrição de feitos
heróicos. Chega até a entrar no espírito da batalha e diz: "Acho
certo que os homens lutem contra o que está errado e os
tiranos".
Começa aqui o relato da srta. Sullivan
vinculado ao relatório
de 1891:
Durante os últimos três anos, Helen continuou a fazer
rápidos progressos na aquisição da linguagem. Ela tem uma
vantagem sobre as crianças comuns: nada do exterior
distrai sua atenção dos estudos.
Mas tal vantagem envolve uma desvantagem correspondente,
o perigo de aplicação mental inadequadamente
excessiva. Sua mente é constituída de tal modo que Helen
fica num estado de excitação febril quando tem noção de
que há algo que não compreende. Nunca soube que tivesse
vontade de deixar uma aula ao sentir que havia nesta
algo que não entendesse. Se sugiro que deixe um problema
de aritmética para o dia seguinte, ela responde: "Acho
que resolvê-lo agora vai fortalecer minha mente".
Algumas noites atrás falávamos sobre tarifas, com Helen
me pedindo que eu as explicasse. Recusei: "Você ainda não
pode entendê-las". Ela ficou quieta por um momento, então
perguntou espirituosamente: "Como sabe que não posso
entender? Tenho uma boa mente! Querida professora,
precisa lembrar que os pais gregos eram muito cuidadosos
com os filhos, costumavam deixá-los escutar palavras
sábias, e acho que eles entendiam algumas". A partir daí achei
melhor deixar de dizer que ela não pode entender algo,
pois é quase certo que fique muito agitada.
Não muito tempo atrás, tentei ensinar a Helen construir
uma torre com blocos. Como o projeto era um tanto
complicado, a menor falha fazia a estrutura cair. Após um tempo,
fiquei desanimada; disse que achava que ela não poderia
pô-la de pé, então eu a construiria; Helen não aprovou
esse plano. Estava resolvida a construir ela própria a torre
e por quase três horas trabalhou naquilo, recolhendo
pacientemente os blocos quando caíam e começando de novo
até que finalmente sua perseverança foi coroada de êxito.
A torre foi completada em todas as suas partes.
Até outubro de 1889, eu julgara melhor não confinar
Helen a qualquer curso regular e sistemático de estudos.
Nos primeiros dois anos de sua vida intelectual, ela era
como uma criança num país estranho, onde tudo era novo
e causava perplexidade. Até conquistar o conhecimento da
linguagem, não foi possível estabelecer para Helen um curso
definido de instrução.
Além disso, sua curiosidade intelectual era tão grande
nesses anos que, se uma consideração sobre as questões que
lhe ocorriam constantemente tivesse de ser adiada até o
término da aula, isso teria interferido em seu progresso na
aquisição da linguagem. Provavelmente, Helen teria esquecido a
questão e uma boa oportunidade para lhe explicar algo de
seu verdadeiro interesse estaria perdida. Por isso sempre me
pareceu melhor ensinar qualquer coisa todas as vezes que
minha aluna precisava saber, estivesse ou não ligada à
planejada lição; as perguntas de Helen geralmente nos levam para
longe do assunto sob consideração imediata.
Desde outubro de 1890, seu trabalho tem sido mais regular,
incluindo aritmética, geografia, zoologia, botânica e leitura.
Ela tem feito progressos consideráveis no estudo da
aritmética. Explica prontamente os processos da multiplicação,
adição, subtração e divisão e parece entender as
operações. Ela quase terminou a aritmética mental de
Colburn, seu último trabalho foi sobre frações impróprias.
Helen também vem trabalhando bem na aritmética escrita.
Sua mente funciona tão rapidamente que, com freqüência,
quando lhe dou um exemplo, ela me dá a resposta correta
antes que eu tenha tempo de escrever a pergunta. Ela não
presta muita atenção à linguagem usada na enunciação de
um problema e raramente pára para perguntar o significado
de palavras ou frases desconhecidas até que esteja pronta
para explicar seu trabalho.
Certa vez, quando uma questão
a intrigou muito, sugeri que fizéssemos uma caminhada,
quem sabe depois ela a entenderia. Helen sacudiu a cabeça
e disse: "Meus inimigos vão pensar que eu estava fugindo.
Preciso ficar e conquistá-los agora." E o fez.
O progresso intelectual de Helen nos últimos dois anos
é demonstrado com maior clareza - mais do que em
qualquer outro ramo de sua educação - no maior
domínio da linguagem e na capacidade de reconhecer melhores
nuances de significados no uso das palavras.
Não se passa um dia em que ela não aprenda muitas
palavras novas; estas não são apenas nomes de objetos
tangíveis e perceptíveis. Por exemplo, certo dia ela desejou
saber o significado das seguintes palavras: fenômeno, abranger,
energia, reprodução, extraordinário, perpétuo e mistério. Algumas
dessas palavras têm sucessivos passos de significado,
começando com o que é simples e conduzindo ao que é
abstrato. Teria sido uma tarefa sem esperança fazer Helen
compreender os significados mais ocultos da palavra mistério;
mas ela entendeu logo que significava algo escondido
ou oculto, e quando fizer um progresso maior captará seu
significado mais oculto tão facilmente quanto o faz agora
com o significado mais simples. Ao se investigar qualquer
assunto, ocorrem no início palavras e frases que não
podem ser adequadamente entendidas até que o aluno faça
um avanço considerável; contudo, acho melhor continuar
dando à minha aluna definições simples, pensando que,
embora possam ser um tanto vagas e provisórias, irão ajudar
umas às outras, e o que é obscuro hoje será comum
amanhã.
Encaro minha aluna como um ser ativo e livre, cujos
próprios impulsos espontâneos devem ser o meu guia mais
seguro. Sempre falei com Helen exatamente como falaria
com uma criança dotada de audição e visão, e insisto com
outras pessoas para que façam o mesmo. Quando alguém
me pergunta se ela entenderá esta ou aquela palavra,
sempre respondo: "Não importa se entende ou não cada
palavra isolada de uma frase. Ela perceberá os significados
das novas palavras por sua conexão com as outras que ja
conhece".
Ao selecionar livros para Helen, nunca escolho os que
fazem referência à sua surdez ou cegueira. Ela sempre lê
os livros que são lidos e usufruídos pelas crianças de sua
idade que ouvem e enxergam. No início, é claro, foi
necessário descrever coisas familiares e interessantes, e num
inglês puro e simples. Lembro nitidamente sua primeira
tentativa de ler uma pequena história. Ela conhecera as letras
em relevo e, por algum tempo, divertira-se construindo
pequenas frases, usando pedaços de papel com palavras
com letras em relevo; mas tais frases não tinham nenhuma
relação especial umas com as outras. Certa manhã pegamos
um camundongo e me ocorreu - com um camundongo
e um gato vivos para estimular o interesse de Helen - que
poderia arrumar algumas frases de modo a formar uma
pequena história e assim lhe dar uma nova concepção do
uso da lingua. Então enquadrei as seguintes frases e dei-as
a Helen. "O gato gostaria de comer o camundongo. Não
deixe o gato pegar o camundongo. O gato pode tomar
um pouco de leite e o camundongo comer um pouco
de bolo." Ela não conhecia o artigo the (o), e é claro que
quis que eu o explicasse. No estágio em que se encontrava,
teria sido impossível explicar-lhe o uso da palavra; assim,
não tentei fazê-lo, movendo seu dedo para a próxima
palavra, que ela reconheceu com um sorriso luminoso.
Então, quando coloquei sua mão sobre um gato em cima
da caixa, ela emitiu uma pequena exclamação de surpresa e
o resto da frase tornou-se perfeitamente claro para ela.
Quando leu as palavras da segunda frase, mostrei-lhe que
havia realmente um camundongo na caixa. Ela então moveu
o dedo para a linha seguinte com uma expressão de ávido
interesse. "O gato pode ver o camundongo." Então fiz o
gato olhar para o camundongo e deixei Helen tocar o gato.
A expressão de Helen mostrou que estava perplexa. Chamei
sua atenção para a linha seguinte e, embora ela só conhecesse
as três palavras, gato, comer e camundongo, captou a idéia. Puxou
o gato e o colocou no chão, ao mesmo tempo que cobria
a caixa com o quadro com as palavras. Quando leu "Não
deixe o gato pegar o camundongo!", ela reconheceu a
negação na sentença e pareceu saber que o gato não devia
pegar o camundongo. Pegar e deixe eram palavras novas.
Ela conhecia as palavras da última frase e ficou encantada
quando lhe foi permitido vivê-las. Por sinais, ela me fez
entender que queria outra história e eu lhe dei um livro
contendo histórias muito curtas, escritas no estilo mais
elementar. Ela passou os dedos pelas linhas, encontrando
as palavras que sabia e adivinhando o significado de outras,
de um modo a convencer o educador mais conservador
de que uma criança surda aprenderá a ler tão fácil e
naturalmente quanto uma criança comum, se lhe for dada
a oportunidade.
Estou convencida de que o uso do inglês por Helen
deve-se amplamente à sua familiaridade com os livros. Ela
geralmente lê por duas ou três horas seguidas, pondo o
livro de lado com relutância. Certo dia, quando
deixávamos a biblioteca, notei que ela estava mais séria do que o
normal e lhe perguntei por quê. "Estou pensando como
sempre estamos mais sabidos quando saímos daqui do que
quando chegamos", foi a resposta.
Certa vez, quando lhe perguntaram porque gostava tanto
de livros, ela respondeu: "Porque eles me contam tantas
coisas interessantes que não posso ver e nunca estão cansados
ou perturbados como as pessoas". Eles "me contam
uma porção de vezes o que eu quero saber".
Enquanto líamos A child history of England (A história
de uma criança da Inglaterra), de Dickens, nos deparamos
com a frase: "Mesmo assim o espírito dos bretões não foi
esmagado". Perguntei a Helen o que entendia por aquilo.
Ela respondeu: "Acho que significa que os bravos bretões
não ficaram desanimados porque os romanos tinham
vencido tantas batalhas e quiseram expulsá-los ainda mais".
Teria sido impossível para ela definir as palavras nessa
sentença, mas mesmo assim ela apreendera a intenção do autor,
e foi capaz de transmiti-la com suas próprias palavras. As
linhas seguintes eram ainda mais idiomáticas: "Quando
Suetônio deixou o país, eles caíram sobre suas tropas e
retomaram a ilha de Anglesea". Eis a interpretação da sentença
por parte de Helen: "Significa que quando o general
romano tinha ido embora, os bretões começaram a lutar de
novo; e como os soldados romanos não tinham nenhum
general para dizer a eles o que fazer, foram superados pelos
bretões e perderam a ilha que tinham capturado".
Ela prefere ocupações intelectuais a manuais e não é
tão adepta a trabalhos de agulha quanto muitas crianças
cegas; mesmo assim fica ansiosa para juntar-se a elas no
que quer que estejam fazendo. Há menos de um mês
praticando, aprendeu a usar a máquina de escrever de caligrafia
e escreve corretamente, embora não tão rápido.
Há mais de dois anos, um primo de Helen ensinou-a o
alfabeto telegráfico fazendo os pontos e traços no dorso
de sua mão com o dedo dele. Sempre que Helen encontra
alguém familiarizado com esse sistema, fica encantada em
usá-lo para conversar. Descobri que é um conveniente meio
de me comunicar com Helen quando ela está a alguma
distância de mim, pois me permite falar com ela batendo
no chão com meu pé. Ela sente as vibrações e entende o
que lhe é dito.
Esperava-se que alguém tão peculiarmente dotado pela
natureza quanto Helen, se deixada inteiramente com seus
próprios recursos, lançaria alguma luz sobre questões
psicológicas cuja investigação não tenha sido esgotada pelo dr.
Howe; mas as esperanças dessa gente não se concretizaram.
No caso de Helen, como no de Laura Bridgman, a decepção
foi inevitável. Impossível isolar uma criança no meio da
sociedade de modo a que ela não seja influenciada pelas
crenças daqueles a quem está vinculada. No caso de Helen,
tal objetivo não podia ser atingido sem privá-la das relações
com os outros, essenciais à sua natureza.
Deve ter sido evidente, para os observadores do
rápido desdobramento das faculdades de Helen, que não seria
possível impedir o seu curioso espírito, por qualquer
extensão de tempo, de querer apreender os insondáveis
mistérios da vida. Mas muito cuidado tem sido tomado para
não conduzir prematuramente seus pensamentos à
consideração de assuntos que deixam perplexas e confusas todas
as mentes. As crianças fazem perguntas profundas, mas
recebem geralmente respostas rasas ou, mais precisamente,
são caladas por tais respostas.
"De onde vim?" e "Para onde irei quando morrer?"
foram perguntas que Helen fez aos oito anos de idade. Mas
as explicações que ela podia entender naquela época não a
satisfizeram, embora a forçassem a silenciar até que sua mente
começasse a apresentar um potencial maior e pudesse
generalizar a partir de inúmeras impressões e idéias que corriam
para ela de livros e por suas experiências cotidianas. Sua mente
desejava muito saber a causa das coisas.
À medida que a observação dos fenômenos por parte
de Helen se tornou mais extensa e seu vocabulário mais rico
e sutil, permitindo-lhe expressar as próprias concepções e
idéias claramente, assim como compreender os pensamentos
e experiências dos outros, ela entrou em contato com o
limite do poder criativo humano. Percebeu que algum poder
não humano, devia ter criado a terra, o sol e os milhares de
objetos naturais com os quais ela tem perfeita familiaridade.
Finalmente, certo dia, perguntou o nome do poder,
cuja existência ela já concebera na própria mente.
Através de Greek heroes, de Charles Kingsley, ela se familiarizou
com as belas histórias dos deuses e deusas gregos e deve
ter se deparado com as palavras Deus, céu, alma e grande
quantidade de expressões similares nos livros.
Ela nunca perguntou o significado de tais palavras, nem
fez qualquer comentário a respeito quando surgiram; até
fevereiro de 1889, ninguém falara com ela sobre Deus.
Naquela época, uma parente querida, que era também uma
zelosa cristã, tentou contar a Helen sobre Deus; mas como
não usasse palavras adequadas à compreensão da criança,
elas causaram pouca impressão na sua mente. Quando
posteriormente conversei com ela, Helen disse: "Tenho uma
coisa muito engraçada para lhe contar. A. diz que Deus me
fez e fez todo o mundo da areia; mas deve ser brincadeira.
Sou feita de carne e osso e sangue, não sou?". Nesse
momento ela examinou o próprio braço com evidente satisfação,
rindo vigorosamente consigo mesma. Após um
momento, continuou: "A. diz que Deus está em toda parte e
que Ele é todo amor; mas não acho que uma pessoa pode ser
feita toda de amor. Amor é apenas algo em nosso coração.
Então A. disse outra coisa muito engraçada. Ela disse que
Ele (querendo dizer Deus) é meu pai querido. Isso me fez
rir muito, pois eu sei que meu pai é Arthur Keller".
Expliquei-lhe que ela ainda não podia entender o que lhe
fora dito e assim facilmente levei-a a ver que seria melhor
não falar de tais coisas até que pudesse compreendê-las.
Helen deparara-se com a expressão Mãe Natureza no
decorrer de suas leituras e por muito tempo adquiriu o
hábito de atribuir à Mãe Natureza qualquer coisa que sentia
estar além do poder do homem realizar. Ela dizia, falando
do crescimento de uma planta: "Mãe Natureza manda o sol
e a chuva para fazer as árvores, a relva e as flores crescerem".
Os trechos seguintes de minhas notas mostrarão quais
eram suas idéias naquela época:
Helen parecia um pouco séria após o jantar e a sra. H.
lhe perguntou o que pensava. "Estou pensando como a
Mãe Natureza está ocupada na primavera", respondeu.
Quando lhe foi perguntado por que, Helen disse: "Porque
ela tem tantos filhos para cuidar. Ela é a mãe de
tudo; das flores, das árvores e dos ventos".
"Como a Mãe Natureza cuida das flores?", perguntei.
"Ela manda o sol e a chuva para fazer elas crescerem",
respondeu Helen; e após um momento acrescentou:
"Acho que o sol é o sorriso quente da Natureza e as
gotas de chuva são suas lágrimas".
Mais tarde ela disse: "Não sei se a Mãe Natureza me
fez. Acho que minha mãe me pegou do céu, mas não sei
onde é esse lugar. Sei que margaridas e amores-perfeitos
vêm de sementes postas no solo; mas crianças não crescem
do solo, tenho certeza. Nunca vi uma planta-criança!
Mas não posso imaginar quem fez a Mãe Natureza,
você pode? Adoro a bela primavera porque as árvores
florescendo e as flores se abrindo e as folhas verdes e
delicadas enchem meu coração de alegria. Agora preciso
ver meu jardim. As margaridas e amores-perfeitos vão
pensar que eu esqueci deles".
Após maio de 1890, tornou-se evidente para mim que,
no ponto em que ela estava, seria impossível mantê-la à
parte das crenças religiosas daqueles com quem Helen
tinha um contato diário. Ela quase me esmagava com
perguntas, resultado natural da crescente rapidez de sua
inteligência.
No início de maio, ela escreveu em sua prancheta a
seguinte lista de perguntas:
Eu gosto de escrever sobre coisas que não entendo.
Quem fez a terra e os mares e tudo?
O que faz o sol
quente?
Onde eu estava antes de vir para minha mãe?
Sei que as plantas crescem de sementes no solo, mas tenho certeza de que as pessoas não crescem assim. Nunca
vi uma planta-criança. Passarinhos e galinhas saem dos
ovos. Eu já vi. O que era o ovo antes de ser ovo? Por que
a terra não cai, se é tão grande e pesada? Me diga algo
que o Pai Natureza faz. Posso ler o livro chamado
Bíblia? Por favor, diga à sua aluninha muitas coisas quando
tiver muito tempo.
Alguém pode duvidar, depois de ler essas perguntas,
que a criança capaz de fazê-las era também capaz de
entender pelo menos suas respostas elementares? Ela não
podia, claro, apreender as abstrações que uma resposta
completa a essas perguntas envolveria; mas a vida de
alguém nada mais é do que um contínuo avanço na
compreensão do significado e escopo de tais idéias.
Pela educação de Helen, tenho invariavelmente
presumido que ela pode compreender tudo que seja desejável
que saiba. Se não houvesse na mente de Helen um
processo intelectual como as perguntas indicam, qualquer
explicação dessas perguntas teria sido ininteligível para ela. Sem
esse grau de atividade e desenvolvimento mentais que
percebe a necessidade de um poder criativo super-humano,
não é possível nenhuma explicação de fenômenos naturais.
Depois que Helen conseguiu formular as idéias que
vinham lentamente crescendo em sua mente, essas pareceram
subitamente absorver todos os seus pensamentos; quis
com impaciência que tudo lhe fosse explicado. Enquanto
passávamos por um grande globo pouco tempo depois
de ter escrito as perguntas, ela parou diante dele e disse:
"Quem fez o mundo real?". Respondi: "Ninguém sabe
como a terra, o sol e todos os mundos que chamamos
estrelas surgiram; mas vou contar a você como homens
sábios tentaram explicar a origem deles e interpretar as
grandes e misteriosas forças da natureza".
Ela sabia que os gregos tinham muitos deuses aos quais
atribuíam vários poderes, porque acreditavam que o sol, o
relâmpago e centenas de outras forças naturais eram
poderes independentes e super-humanos. Mas eu lhe disse
que após muito pensarem e estudarem, os homens
passaram a crer que todas as forças eram manifestações de um
poder e deram a esse poder o nome de Deus.
Ela ficou muito quieta por alguns minutos, evidentemente
pensando seriamente. Então perguntou: "Quem fez
Deus?". Senti-me impelida a ser evasiva, pois não lhe
poderia explicar o mistério de um ser auto-existente. Na
verdade, muitas de suas ávidas perguntas teriam intrigado
alguém muito mais sábio do que eu. Aqui estão algumas
delas: "Do que Deus fez os novos mundos?", "Onde
conseguiu o solo e a água e as sementes e os primeiros
animais?", "Onde está Deus?", "A senhorita já viu Deus algum
dia?". Eu disse a ela que Deus estava em toda parte e que
ela não devia pensar Nele como uma pessoa, e sim como
a vida, a mente, a alma de tudo. Ela me interrompeu: "Tudo
não tem vida. As rochas não têm vida e não podem
pensar". Freqüentemente é necessário lembrar a ela que há uma
infinidade de coisas que nem os mais sábios do mundo
podem explicar.
Nenhum credo ou dogma tem sido ensinado a Helen,
nem qualquer esforço feito para impor crenças religiosas à
sua atenção. Totalmente consciente de minha própria
incompetência para dar-lhe qualquer explicação adequada
dos mistérios que jazem sob os nomes de Deus, alma e
imortalidade, sempre me senti obrigada, por um senso de
dever em relação à minha aluna, a dizer tão pouco quanto
possível sobre questões espirituais. O reverendíssimo Phillips
Brooks tem explicado a ela, de um belo modo, a
paternidade de Deus.
Ainda não permiti que Helen lesse a Bíblia porque não
vejo como possa fazê-lo no presente sem obter uma
concepção errada dos atributos de Deus. Já contei a ela numa
linguagem simples sobre a vida bela e útil de Jesus e sua
morte cruel. A narrativa afetou-a grandemente quando a
ouviu pela primeira vez.
Quando Helen referiu-se à nossa conversação
novamente, foi para perguntar: "Por que não foi embora, para
que seus inimigos não pudessem achá-Lo?". Considerou
os milagres de Jesus muito estranhos. Quando lhe foi dito
que Jesus andou sobre o mar para ir ao encontro dos
discípulos, ela disse com decisão: "Não quer dizer andar, quer
dizer nadar". Quando ouviu que Jesus fez o morto
levantar, mostrou-se muito perplexa, dizendo: "Eu não sabia
que a vida podia voltar ao corpo morto!".
Certo dia ela comentou com tristeza: "Sou cega e surda.
É por isso que não posso ver Deus". Ensinei-lhe a palavra
invisível e lhe disse que não podíamos ver Deus com os
nossos olhos porque Ele era um espírito; mas que quando
nosso coração estava cheio de bondade e suavidade nós
O víamos, porque então éramos mais parecidos com Ele.
Em outro momento ela perguntou: "O que é uma
alma?". "Ninguém sabe como é uma alma", respondi, "mas
sabemos que não é o corpo e é a parte de nós que pensa,
ama e tem esperança, e que os cristãos acreditam que viverá
para sempre depois que o corpo morrer". Então eu lhe
perguntei: "Você consegue pensar em sua alma como
separada do corpo?". "Ah, sim!", respondeu ela, "porque
há uma hora atrás eu estava pensando muito no sr. Anagnos
e então minha mente" - e mudando a palavra - "minha
alma estava em Atenas, mas meu corpo estava aqui no
escritório". Nesse momento, outro pensamento disparou por
sua mente e ela acrescentou: "Mas o sr. Anagnos não falou
com a minha alma". Expliquei-lhe que a alma também é
invisível, ou, em outras palavras, que não tem forma aparente.
"Mas se eu escrevo o que minha alma pensa", disse
ela, "então será visível e as palavras serão o seu corpo".
Há muito tempo Helen me disse: "Eu gostaria de viver
600 anos". Quando lhe foi perguntado se não gostaria de
viver para sempre num lindo país chamado céu, sua
primeira pergunta foi: "Onde é o céu?". Fui obrigada a
confessar que não sabia, mas sugeri que poderia estar numa
das estrelas. Um momento depois ela disse: "Por favor,
pode ir lá primeiro e me contar tudo sobre ele?", e
acrescentou: Tuscumbia é uma cidadezinha muito bonita.
Passou-se mais de um ano até ela voltar novamente ao
assunto, e quando o fez, suas perguntas foram numerosas
e persistentes. Ela perguntou: "Onde é o céu e como ele é?
Por que não podemos saber tanto sobre o céu como
sobre países estrangeiros?" Eu lhe disse, numa linguagem
muito simples, que havia muitos lugares chamados céu,
mas que este era essencialmente uma condição - o
preenchimento do desejo do coração, a satisfação de seu anseio;
e que o céu existia sempre que o certo fosse reconhecido,
acreditado e amado.
Ela evita a idéia da morte com evidente consternação.
Recentemente, ao lhe ser mostrado um cervo derrubado
por seu irmão, ela ficou muito angustiada, perguntando
com tristeza: "Por que tudo tem de morrer, mesmo o cervo
ligeiro?". Em outro momento perguntou: "Acha que
seríamos muito mais felizes sempre se não tivéssemos de
morrer?". Eu disse: "Não, porque se não houvesse morte,
nosso mundo ficaria logo tão apinhado de criaturas vivas
que seria impossível para qualquer delas viver confortavelmente".
"Mas", Helen afirmou, "acho que Deus poderia
fazer mais alguns mundos tão bem como fez este aqui".
Quando amigos lhe contaram sobre a grande felicidade
que a espera em sua outra vida, Helen imediatamente
perguntou: "Como é que você sabe, se ainda não morreu?".
O sentido literal que às vezes confere a palavras e
expressões idiomáticas comuns mostra como é necessário nos
certificarmos de que ela receba seu significado correto. Quando
lhe foi dito recentemente que os húngaros era musicistas
natos, ela perguntou surpresa: "Eles cantam quando
nascem?". Quando seu amigo acrescentou que alguns
estudantes que vira em Budapeste tinham mais de cem melodias na
cabeça, ela disse rindo: "Acho que a cabeça deles deve ser
muito barulhenta". Ela vê o ridículo rapidamente e, em vez
de ficar seriamente perturbada com a linguagem
metafórica, freqüentemente se diverte com sua própria concepção
excessivamente literal do significado.
Quando lhe foi dito que a alma não tinha forma, Helen
ficou muito perplexa ante as palavras de Davi: "Ele
conduziu a minha alma". "A alma tem pés? Ela pode andar?
É cega?", perguntou ela. Pois em sua mente a idéia de ser
conduzido estava associada à cegueira.
De todos os assuntos que perturbam Helen e a deixam
perplexa, nenhum a aflige tanto quanto o conhecimento da
existência do mal e do sofrimento que dele resulta. Por
muito tempo foi possível manter esse conhecimento longe
dela e seria sempre comparativamente fácil impedi-la de
entrar em contato pessoal com o vício e a maldade. O
fato de que o pecado exista e que dele resulte uma grande
infelicidade ocorreu-lhe gradualmente, à medida que
entendia cada vez com mais clareza a vida e a experiência
daqueles em torno dela. A necessidade de leis e punição
teve de lhe ser explicada. Ela achou muito difícil
reconciliar a presença do mal no mundo com a idéia de Deus que
lhe tinha sido apresentada.
Certo dia ela perguntou: "Deus toma conta de nós o
tempo todo?". Foi-lhe respondido que sim. "Então por
que ele deixou irmãzinha cair esta manhã e machucar tanto
a cabeça?". Outra vez ela perguntava sobre o poder e a
bondade de Deus. Quando soube de uma terrível tempestade
no mar em que várias pessoas haviam morrido, ela
perguntou: "Por que Deus não salvou essas pessoas, se
pode fazer todas as coisas?".
Rodeada por amigos afetuosos e as influências mais
gentis, como Helen sempre foi, ela tem, desde os
primeiros estágios de seu esclarecimento intelectual, agido
corretamente de modo voluntário. Ela sabe com um inequívoco
instinto o que é certo e o faz com alegria. Ela não acha que
um ato errado é inofensivo, outro sem importância e
outro não-intencional. Para sua alma pura todo mal é
igualmente desagradável.
As seguintes passagens do trabalho preparado pela srta.
Sullivan para a reunião em Chautauqua, em julho de 1894, da
American Association to Promote the Teaching of Speech to the
Deaf contêm o último relato escrito por ela sobre seus métodos.
Não se deve pensar que, assim que Helen captou a idéia
de tudo ter um nome, ela passou a dominar imediatamente
o tesouro da lingua inglesa. Ou que "suas faculdades
mentais emergiram, totalmente armadas, de seu então túmulo
vivo, como Palas Atena da cabeça de Zeus", como um de
seus entusiásticos admiradores teria nos feito acreditar. No
início, as palavras, frases e sentenças que usava para expressar
seus pensamentos eram todos reprodução do que
havíamos usado em conversas com ela e que sua memória
retivera inconscientemente. De fato, isso é verdade quanto
à linguagem de todas as crianças, que é a lembrança do que
ouvem falar em seus lares. Incontáveis repetições de
conversas da vida cotidiana imprimem certas palavras e frases
em sua memória, e quando essas crianças passam a falar, a
memória fornece as palavras que balbuciam. Da mesma
forma, a linguagem de pessoas instruídas é a lembrança da
linguagem dos livros.
A linguagem nasce da vida, de suas necessidades e
experiências. No início, a mente de minha pequena aluna
estava totalmente vazia. Ela estava vivendo num mundo que
não podia perceber. Linguagem e conhecimento estão
indissoluvelmente ligados; são interdependentes. O bom trabalho
em linguagem pressupõe e depende de um real conhecimento
das coisas. Assim que Helen captou a idéia de que
tudo tinha um nome e que por meio do alfabeto manual tais
nomes podiam ser transmitidos de uma pessoa para
outra, passei a aprofundar seu interesse nos objetos cujos
nomes ela aprendera a soletrar com tão evidente alegria.
Jamais ensinei a linguagem com o OBJETIVO de ensiná-la, e sim,
invariavelmente, usei a linguagem como um meio para a
comunicação do pensamento; portanto, o aprendizado da
linguagem coincidiu com a aquisição do conhecimento. Para
utilizar a linguagem de modo inteligente, precisa-se ter algo
sobre o que falar, e algo sobre o que falar é o resultado de
ter experiências; nenhuma quantidade de treinamento de
linguagem capacitará nossas criancinhas a usar a linguagem
com facilidade e fluência, a menos que tenham claramente
em mente o que desejam comunicar, ou a menos que
tenhamos êxito em despertar nelas o desejo de saber o que
está na mente dos outros.
Inicialmente, procurei não confinar minha aluna em
qualquer sistema. Sempre tentei encontrar o que a interessava
mais, fazendo disso o ponto de partida para uma nova aula,
tivesse isso qualquer relação ou não com a aula que eu havia
planejado. Durante os primeiros dois anos da vida intelectual
de Helen, pedi que ela escrevesse muito pouco. Para se
escrever, é preciso ter algo sobre o que escrever, e tal coisa
exige alguma preparação mental. A memória precisa de um
estoque de idéias e a mente tem de estar enriquecida com
conhecimento, antes que escrever se torne um esforço
natural e prazeroso. Com freqüência excessiva, penso eu, exige-se
que as crianças escrevam antes que tenham algo a dizer.
Se as ensinarmos a pensar, ler e falar sem auto-repressão,
elas escreverão porque não poderão evitá-lo.
Helen adquiriu a linguagem mais pela prática e pelo
hábito do que pelo estudo de regras e definições. A gramática,
com sua intrigante disposição de classificações, nomenclaturas
e paradigmas foi totalmente descartada da educação
de Helen. Ela aprendeu a linguagem ao ser posta em contato
com a própria linguagem viva; foi levada a lidar com ela
na conversação diária e em seus livros, e a movê-la de
diversos modos até ser capaz de usá-la corretamente. Sem
dúvida, falei muito mais com os dedos, mais constantemente
do que devia ter feito com a boca, pois se Helen
pudesse ver e ouvir, teria sido menos dependente de mim
para entretenimento ou instrução.
Acredito que cada criança tem, escondidas em algum
lugar de seu ser, capacidades nobres que podem ser avivadas
e desenvolvidas se lidarmos com elas da maneira certa,
mas jamais desenvolveremos apropriadamente a natureza
mais elevada de nossos pequeninos enquanto continuarmos
a preencher suas mentes com os chamados rudimentos.
A matemática nunca os fará afetuosos, nem o preciso
conhecimento do tamanho e da forma do mundo os ajudará
a apreciar suas belezas. Vamos conduzi-los nos
primeiros anos a encontrar seu maior prazer na Natureza.
Que corram pelos campos, aprendam sobre os animais e
observem coisas reais. As crianças educarão a si próprias
nas condições certas. Elas requerem muito mais orientação
e solidariedade do que instrução.
Penso que boa parte da fluência com que Helen usa a
linguagem deve-se ao fato de que quase toda impressão
que recebe vem por meio da linguagem. Mas fazendo-se a
devida concessão à sua natural aptidão para adquirir
linguagem e à vantagem resultante de seu meio ambiente
peculiar, acho que mesmo assim descobriremos que a
companhia constante de bons livros tem sido de suprema
importância na sua educação. É possível, como sustentam
alguns, que a linguagem não possa expressar para nós muito
além do que temos vivido e experimentado, mas tenho
observado sempre que as crianças manifestam o maior
encanto pela linguagem de qualidade elevada e poética, que
consideramos apressadamente estar além da compreensão
delas.
"Isso é tudo que vocês vão compreender", disse
uma professora para uma turma de crianças pequenas,
fechando o livro que estivera lendo para elas. "Ah, por favor, leia o resto, mesmo se não entendermos", pediram
elas, encantadas com o ritmo e a beleza que sentiram,
mesmo sem poder explicá-los. Não é necessário que uma criança
entenda cada palavra de um livro antes de poder lê-lo
com prazer e proveito. Na verdade, tais explicações só
devem ser dadas se forem realmente essenciais. Helen
bebeu numa linguagem que inicialmente não podia entender,
e esta permaneceu em sua mente até ser necessitada, quando
então ajustou-se natural e facilmente às suas conversas e
composições. Na verdade, é de opinião de alguns que ela
lê demais, que boa parte da força criativa é dissipada no
fruimento dos livros; que quando ela puder ver e dizer
coisas por si mesma, só as verá pelos olhos dos outros e as
dirá na linguagem deles; mas estou convencida de que uma
redação original sem ser preparada por muita leitura é
impossível. Helen tem sido apresentada constantemente aos
melhores e mais puros modelos de linguagem, e sua
conversa e escrita são reproduções inconscientes do que tem
lido. Penso que a leitura deva ser mantida independentemente
dos exercícios escolares regulares. As crianças
devem ser encorajadas a ler por puro encantamento com a
atividade. A atitude da criança em relação a seus livros deve
ser de uma receptividade inconsciente. As grandes obras
da imaginação devem tornar-se uma parte de sua vida,
como já foram outrora a própria substância dos homens
que as escreveram. É verdade que, quanto mais sensível e
imaginativa for a mente que recebe os quadros-pensamentos
e as imagens da literatura, mais bem serão reproduzidas
as linhas mais belas.
Helen tem a vitalidade da emoção, o
frescor e a avidez do interesse e o insight espiritual do
temperamento artístico; e naturalmente tem uma alegria mais
ativa e intensa na vida, simplesmente como vida e natureza,
livros e pessôas, do que mortais menos bem-dotados. Sua
mente está tão cheia de belos pensamentos e idéias dos grandes poetas que nada
parece lugar-comum para ela, pois sua imaginação cobre toda a vida com seus
próprios tons ricos.
CAPÍTULO IV
As duas pessoas que escreveram com autoridade sobre a fala
da srta. Keller e seu modo de aprendizado são a srta. Sarah
Fuller, da Horace Mann School for the Deaf, em Boston,
Massachusetts, que deu a srta. Keller as primeiras aulas, e a srta.
Sullivan que, por sua incansável disciplina, levou adiante o sucesso
daquelas primeiras aulas.
Antes que eu cite o relato da srta. Sullivan, gostaria de tentar
dar uma impressão da fala da srta. Keller e da sua qualidade de
voz no presente.
Sua voz é baixa e agradável de se ouvir. Sua fala carece de
variedade e modulação; assemelha-se a uma melopéia quando ela
está lendo alto; e quando a srta. Keller fala com uma altura razoável,
sua voz paira cerca de dois ou três tons médios. Sua voz tem
uma qualidade aspirada; parece sempre haver respiração demais
para a quantidade de tom. Algumas de suas notas são musicais
e encantadoras. Quando conta uma história de criança, ou uma
história que contém pathos (sentimentos), sua voz corre em bonitos
amalgamas de um tom para outro. E como o efeito de retardar-se em palavras compridas, não muito bem manejadas, que se
nota numa criança contando uma história solene.
Faltam-lhe principalmente a tônica na sentença e a variedade
na inflexão de frases. A srta. Keller pronuncia cada palavra como
um estrangeiro quando ainda está elaborando os elementos
da sentença, ou como as crianças lêem às vezes na escola, quando
têm de escolher cada palavra.
Ela fala francês e alemão. Seu amigo, sr. John Hitz, cuja lingua
materna é o alemão, diz que sua pronúncia é excelente. Outro
amigo, que tem familiaridade tanto com o francês quanto com o
inglês, acha o francês dela muito mais inteligível do que seu inglês.
Quando a srta. Keller fala inglês, distribui a ênfase como em
francês e, assim, não coloca suficientemente tensão em sílabas
acentuadas. Por exemplo, ela fala "pro'-vo'-ca'-tion'", "in'-di'-vi'-du'-at'",
sempre com uma pequena diferença entre o valor das sílabas e
uma grande quantidade de inconsistência na pronúncia da mesma
palavra de um dia para o outro. Acho que seria difícil fazê-la
sentir como pronunciar dictionary (dicionário) sem que a palavra se
extravie para dictionayry ou para dictionry, já que a palavra não é
uma coisa nem outra. Nenhum sistema de marcação num léxico
pode dizer a alguém como pronunciar uma palavra; o único modo
é ouvi-la, especialmente numa lingua como o inglês, tão cheia de
vogais e semivogais insoletráveis e suprimidas.
As vogais da srta. Keller não são firmes. Seu awful (horrível)
é quase awfil. A ondulação é causada pela ausência de inflexão em
ful pois ela pronuncia full corretamente.
Ela às vezes pronuncia erradamente quando lê alto e se
depara com uma palavra que talvez nunca tenha pronunciado,
embora possa tê-la escrito muitas vezes. Essa dificuldade e algumas
outras podem ser corrigidas quando ela e srta. Sullivan tiverem
mais tempo. Desde 1894, estão tão mergulhadas em seus livros
que negligenciaram tudo que não fosse necessário à tarefa imediata
de passar os anos da escola com êxito. A srta. Keller nunca foi
capaz, acho eu, de falar alto sem destruir a qualidade agradável e
a nitidez de suas palavras, mas pode fazer muito para tornar sua
fala mais clara.
Quando a srta. Keller estava na Wright-Humason School
em Nova York, dr. Humason tentou melhorar-lhe a voz, não
apenas a pronúncia das palavras mas a voz em si, dando-lhe aulas de
tom e exercícios vocais.
É difícil dizer se a fala da srta. Keller é ou não fácil de
entender. Alguns a entendem prontamente, outros não. Seus
amigos acostumaram-se com a fala dela e esquecem que é diferente
de qualquer outra. As crianças raramente têm qualquer dificuldade
de entendê-la, o que sugere que o discurso deliberado e
medido da srta. Keller é como o delas, antes de chegarem ao
truque adulto de fazer todas as palavras de uma frase passarem
correndo num único movimento da respiração. Disseram-me que
a srta. Keller fala melhor do que a maioria dos outros surdos.
O trecho seguinte é o seu discurso na quinta reunião da American Association to Promote the Teaching of Speech to the
Deaf, em Mt. Airy, Filadélfia, Pensilvânía, 8 de julho de 1896.
Discurso de Helen Keller em Mt. Airy
Se vocês soubessem de toda a alegria que sinto ao ser
capaz de falar para vocês hoje, acho que teriam uma idéia
do valor da fala para o surdo e entenderiam por que desejo
que cada criança surda por todo esse grande mundo tenha a
oportunidade de aprender a falar. Sei que muito tem sido
dito e escrito sobre esse assunto e que há uma grande
divergência de opinião entre professores de surdos com
relação à instrução oral. Parece-me muito estranho que haja
tal divergência; não consigo entender como qualquer um
interessado em nossa educação possa deixar de avaliar a
satisfação que sentimos em poder expressar nossas idéias
em palavras vivas. Ora, usamos a fala constantemente e
consigo lhes dizer todo o prazer que me dá fazê-lo. Sei, é
claro, que nem sempre é fácil para os estranhos me entenderem,
mas pouco a pouco o será. Enquanto isso tenho a
inominável felicidade de saber que minha família e meus
amigos se rejubilam com minha capacidade de falar.
Minha irmãzinha e meu irmão ainda bebê adoram que eu
lhes conte histórias nas longas noites de verão, quando
estou em casa; e minha mãe e minha professora geralmente
me pedem para ler para elas meus livros favoritos.
Também discuto a situação politica com meu querido pai e
decidimos as questões mais perturbadoras muito satisfatoriamente
para nós como se eu pudesse ver e ouvir. Portanto, vocês
vêem que bênção é a fala para mim. Ela produz uma relação
mais próxima e terna com os que amo e torna possível para
mim usufruir a doce companhia de muita gente de quem eu
estaria inteiramente separada se não pudesse falar.
Lembro-me do tempo anterior a meu aprendizado da
fala e de como eu lutava para expressar as idéias por meio
do alfabeto manual - como essas idéias debatiam-se contra
as pontas dos meus dedos como passarinhos esforçando-se
para ganhar a liberdade, até que um dia a srta. Fuller
escancarou a porta da prisão e as deixou escapar. Cogito
se ela se lembra quão ávida e alegremente as idéias abriram
as asas e voaram para longe. No início, é claro, não foi fácil
voar. As asas-fala eram fracas e quebradas e tinham perdido
toda graça e beleza de outrora; na verdade, nada sobrara
exceto o impulso de voar, mas isso já era alguma coisa. A
pessoa não pode se permitir rastejar quando sente um
impulso de pairar nas alturas. Apesar disso, porém, parecia-me
às vezes que eu jamais poderia usar minhas asas-fala como
Deus pretendeu que eu as usasse; havia tantas dificuldades
no caminho, tanto desencorajamento; mas continuei
tentando, sabendo que paciência e perseverança venceriam no
final. E, enquanto eu trabalhava, construía os mais belos
castelos no ar e tinha sonhos, os mais agradáveis sobre a
época em que pudesse falar como as outras pessoas; a idéia do prazer que daria à minha mãe ouvir minha voz
mais uma vez também suavizava cada esforço e fazia de
cada fracasso um incentivo para tentar com mais afinco na
vez seguinte. Portanto, quero dizer àqueles que estão
tentando aprender a falar e aos que os estão ensinando:
tenham ânimo. Não pensem nas falhas de hoje e sim no
sucesso que pode chegar amanhã. Vocês empreendem uma
tarefa difícil, mas terão êxito se persistirem; e vão
descobrir uma alegria em superar obstáculos - um
encantamento em escalar ásperos caminhos que vocês jamais
sentiriam se às vezes não escorregassem para trás e se a
estrada fosse sempre suave e agradável. Lembrem-se,
nenhum esforço que fazemos para atingir algo belo é perdido.
Em algum momento, em algum lugar, de algum modo
encontraremos o que buscamos. Vamos falar sim e cantar
também, como Deus pretendeu que falássemos e cantássemos.
Ninguém pode ler a autobiografia da srta. Keller sem sentir
que ela escreve num inglês extraordinariamente elegante.
Qualquer professor de redação sabe que pode levar os alunos a
escreverem sem erros na sintaxe ou na escolha das palavras. É
exatamente tal precisão que a educação inicial da srta. Keller fixa
como o ponto ao qual qualquer criança saudável pode ser levada
e que a análise daquela educação explica. Os que tentam fazer
da srta. Keller uma exceção, que não pode ser explicada por
qualquer análise de sua instrução inicial, fortalecem sua posição por
um apelo à notável excelência do uso da linguagem pela srta.
Keller mesmo quando era criança.
Tal reivindicação é válida até certo ponto pois, de fato, essas
harmonias adicionais da linguagem e belezas de pensamento que
fazem o estilo são presentes dos deuses. Nenhum professor
poderia ter feito Helen Keller ser sensível à beleza da linguagem e
ao mais sutil jogo de pensamento, que exige expressão num
agrupamento melodioso de palavras.
Ao mesmo tempo, o dom inato do estilo pode morrer de
fome ou ser estimulado. Nenhum gênio inato pode inventar uma
bonita linguagem. A matéria de que o bom estilo é feito precisa
ser dada à mente de fora, e dada habilidosamente. Uma filha das
musas não pode escrever um bom inglês a não ser que um bom
inglês tenha sido a sua nutrição. Nisso, como em todas as outras
coisas, a srta. Sullivan tem sido uma sábia professora. Se ela não
tivesse tido gosto e entusiasmo pelo bom inglês, Helen Keller
poderia ter sido educada com a Juvenile literature (Literatura juvenil),
que diminui a linguagem fingindo usar frases simples para
crianças, como se um livro infantil não pudesse ter um bom estilo,
como A ilha do tesouro, Robinson Crusoé ou O livro da selva.
Se a srta. Sullivan escrevesse num inglês elegante, a beleza do
estilo de Helen Keller seria em parte imediatamente explicável.
Mas os trechos das cartas e relatos da srta. Sullivan, embora claros
e precisos, não têm a beleza que distingue os textos da srta. Keller.
Seus serviços como professora de inglês não devem ser medidos
por sua própria habilidade em composição. O motivo que a fez
ler para a aluna tantos bons livros é devido ao fato, em certa
medida, de que só tivesse recobrado a própria visão há pouco
tempo. Quando se tornou professora de Helen Keller, a srta.
Sullivan acabara de despertar para as boas coisas que estão nos
livros, das quais estivera afastada durante os anos de cegueira.
Na biblioteca do capitão Keller, ela encontrou livros excelentes,
Contos de Shakespeare, de Lamb e, melhor ainda, Montaigne. Mais
ou menos após o primeiro ano de trabalho elementar, ela juntou-se
à aluna em termos de igualdade e ambas liam e usufruiam bons
livros juntas.
Além da escolha de bons livros, há outro motivo para a
excelência do texto da srta. Keller, para a qual a srta. Sullivan merece
um crédito ilimitado. É sua incansável e incessante disciplina,
evidente em todo o seu trabalho. Ela jamais permitiu que a aluna
mandasse cartas contendo ofensas ao bom gosto; fazia com que
a srta. Keller as escrevesse repetidamente até ficarem não apenas
corretas mas também encantadoras e num bom estilo.
Qualquer um que já tentou escrever sabe o quanto a srta.
Keller deve à interminável prática que a srta. Sullivan exigia dela.
Se um professor com gosto pelo bom estilo insistir com uma
criança para que escreva repetidamente um parágrafo até ficar
mais do que correto, ele estará treinando, além de seu próprio
poder de expressão, o poder de expressão na criança.
Até que ponto a srta. Sullivan levou esse processo de refinamento
e seleção é evidente no bem-humorado comentário do
dr. Bell: que ela fizera de sua aluna uma velhinha, extremamente
diferente das crianças comuns por sua maturidade de pensamento.
Quando dr. Bell disse isso, ele estava defendendo seu próprio
ponto de vista, pois fora o primeiro a ver os princípios que
norteiam o método da srta. Sullivan e a explicar o processo pelo
qual Helen Keller absorveu a linguagem dos livros.
Além disso, há mais um motivo pelo qual Helen Keller
escreve um bom inglês, que jaz na própria ausência de visão e
audição. As desvantagens de ser surda e cega foram superadas e as
vantagens continuaram. Ela se destaca entre os outros surdos
porque foi ensinada como se fosse normal. Por outro lado, o
valor peculiar que a linguagem tem para ela, linguagem essa que
as pessoas comuns consideram garantida, uma parte necessária,
como a mão direita, fez a srta. Keller pensar na linguagem e amá-la.
A linguagem foi a sua libertadora, e desde o início ela a
considerou um bem precioso.
A prova de sua habilidade prematura no uso do inglês e o
comentário final sobre a excelência de todo esse método de ensino
está contido num incidente que, embora à época parecesse um
infortúnio, não pode mais ser lamentado. Refiro-me ao episódio
do The frost king, que explicarei com detalhes. A srta. Keller fez seu
relato dele e a questão inteira foi discutida no primeiro Souvenir
do Volta Bureau, do qual cito por extenso:
Hon. John Hitz
Superintendente do Volta Bureau,
Washington, DC.
Caro senhor: desde que meu trabalho foi preparado
para a segunda edição do Souvenir "Helen Keller", alguns
fatos trazidos à minha atenção mostraram-se de interesse
com relação à aquisição da linguagem por parte de minha
aluna, e se não for tarde demais para sua publicação neste
número, ficarei contente de ter a oportunidade de explicá-los
em detalhe.
Talvez seja lembrado que em meu texto, onde há uma
alusão à memória notável de Helen, observei que ela parece
reter na mente muitas formas de expressão que provavelmente
não entende quando recebidas; porém, com a
aquisição de informação ulterior, a linguagem retida na lembrança
de Helen encontra expressão total ou parcial em sua conversa
ou em seus textos, segundo o maior ou menor valor para
ela quanto à justeza de sua aplicação à nova experiência. Sem
dúvida isso é verdade no caso de todas as crianças inteligentes
e talvez não devesse ser considerado digno de menção
Nesse texto a srta. Sullivan diz: "Durante este inverno (1 891-92) fui com
ela ao pátio enquanto nevava levemente e a deixei sentir os flocos que caíam.
Helen pareceu gostar muito da experiência. Enquanto entrávamos, ela
repetia as palavras: "O inverno sacode a neve das dobras de nuvem de sua
roupa".
Perguntei-lhe onde havia lido isso; ela não lembrava de tê-lo lido, nem
parecia saber que o havia aprendido. Como eu jamais ouvira aquilo,
perguntei a vários amigos meus se lembravam das palavras; ninguém conseguiu
lembrar-se delas. Os professores da Instituição opinaram que a descrição
não aparecia em nenhum livro impresso em relevo; contudo uma senhora,
a srta. Marrett, assumiu a tarefa de examinar livros de poesia em tipo
comum, e foi recompensada encontrando os seguintes versos num dos
poemas menos importantes de Longfellow chamado Snow flakes.
No caso de Helen, exceto pelo fato de não se esperar que
uma criança privada da visão e da audição seja mentalmente
tão dotada quanto esta menina; assim, é bem possível
que possamos tender a classificar como maravilhosas muitas
coisas que descobrimos no desenvolvimento da mente dela
que não mereçam tal conotação.
Na esperança de que eu possa ser perdoada se pareço
superestimar a notável capacidade mental e poder de
compreensão e discriminação de minha aluna, desejo
acrescentar que, embora sempre tenha tido conhecimento do grande
uso feito por Helen de tais descrições e comparações por
apelarem para sua imaginação e natureza poética,
desenvolvimentos recentes em seus textos me convencem de
que no passado eu não tinha uma noção exata de até que
ponto ela absorve a linguagem de seus autores preferidos.
No período inicial de sua educação, eu tinha total conhecimento
de todos os livros que ela lia e de quase todas as
histórias que lhe eram lidas, e podia traçar sem dificuldade
a fonte de qualquer adaptação observada em seus textos
ou conversas; e sempre fiquei muito contente de observar
quão apropriadamente ela aplica as expressões de um
autor favorito em suas próprias redações.
Parece que Helen aprendera e guardara na memória esses versos do poeta, e
a manhã com a tempestade de neve evocara sua aplicação."
Os trechos seguintes de algumas de suas cartas
publicadas mostram quanto tem sido valioso para Helen o
poder de reter a lembrança de uma bela linguagem. Um
dia ensolarado e tépido no início da primavera, quando
estávamos no Norte, a balsâmica atmosfera parece ter
trazido à mente de Helen o sentimento expressado por
Longfellow em Hiawatha, e ela quase cantou com o poeta:
"O solo estava todo trêmulo de nova vida. Meu coração
cantava de pura alegria. Pensei em minha casa querida. Eu
sabia que naquela terra ensolarada, a primavera chegara
com todo o esplendor. Todos os seus pássaros e todos os
seus botões, todas as suas flores e todas as suas relvas."’
Aproximadamente na mesma época, em carta para um
amigo em que ela faz menção a seu lar no Sul, Helen
reproduz com tanta semelhança um poema de um de seus
autores preferidos que darei trechos da carta de Helen e
do próprio poema.
Trechos da carta de Helen^:
[A carta completa está publicada no Relatório da
Instituição Perkins de 1891]
O azulão com suas plumas azul-céu, o tordo todo
envolto em marrom, o rouxinol golpeando com sua
garganta espasmódica, o papafigo se afastando como um
floco de fogo, o triste-pia animado e sua companheira
feliz, o pássaro-das-cem-línguas imitando as notas de
todos, o cardeal com seu único e doce trinado e a
ocupada cambaxirrazinha, todos fazem das árvores em nosso
pátio da frente ressoarem com suas canções alegres.
Trechos do poema Spring, de Oliver Wendell Holmes
O azulão respirando de suas plumas azul-céu
O perfume que lhe empresta as flores de pervinca;
O tordo, pobre errante, descendo humildemente,
Envolto em seus restos de marrom outonal;
O papafigo, afastando-se como um floco de fogo
Roubado por um turbilhão de uma cúpula fulgurante;
O rouxinol, golpeando com a garganta espasmódica,
Repete imperioso sua nota staccato;
O doidinho triste-pia corteja a companheira maluca,
Pousado num junco bêbado com o seu peso:
Além disso, na gaiola, canta o canário solitário,
Sente o ar suave e estende as asas ociosas.
No último dia de abril, Helen usa outra expressão do
mesmo poema, que é mais uma adaptação do que uma
reprodução:
"Amanhã abril esconderá suas lágrimas e
rubores sob as flores do adorável maio".
Em uma carta para uma amiga da Instituição Perkins,
datada de 17 de maio de 1889, ela reproduz uma história
de Hans Christian Andersen que eu lera para ela não muito
tempo antes. Tal carta está publicada no Relatório da Instituição
Perkins (1891), p. 204.
A história original foi lida
para ela de um volume dos Contos de Andersen, publicadas
por Leavitt & Allen Bros. e pode ser encontrada na p. 97
da parte 1 daquele volume.
Sua admiração pelas impressionantes explicações que o
bispo Brooks lhe dera sobre a Paternidade de Deus é bem
conhecida. Em uma das cartas dele, explicando como Deus
nos fala, de todos os modos, sobre Seu amor, diz o bispo:
"Acho que ele escreve que é o nosso Pai até nos muros da
grande casa da natureza em que vivemos". No ano seguinte,
em Andover, Helen disse: "Parece que o mundo está cheio
de bondade, beleza e amor; e como devemos ser gratas a
nosso Pai celestial, que nos deu tanto para usufruir! Seu amor
e cuidados estão escritos em todos os muros da natureza".
Nesses últimos anos, desde que Helen começou a se
relacionar com tantas pessoas capazes de conversar livremente
com ela, entrou em contato com parte da literatura
com a qual não estou familiarizada; também achou em
livros impressos em relevo, em cuja leitura não consegui
acompanhá-la, muito material para o cultivo do seu gosto
pela imagem poética. As páginas do livro que lê se tornam
para ela pinturas a que seu poder imaginativo dá vida e
cor. Ela é imediatamente transportada para o meio dos
acontecimentos retratados na história que lê ou lhe é
contada e os personagens e descrições tornam-se reais para
ela; Helen rejubila-se quando a justiça vence e se entristece
quando a virtude não é recompensada. Os quadros que a
linguagem pinta em sua memória parecem causar uma
impressão indelével; e muitas vezes, quando ocorre a Helen
uma experiência semelhante, a linguagem se destaca com a
maravilhosa exatidão do reflexo de um espelho.
A mente de Helen é tão bem-dotada pela natureza que
ela parece entender com um leve toque de explicação cada
variedade possível de relações externas. Certo dia, no
Alabama, enquanto colhia flores do campo perto das
fontes nos flancos da colina, ela pareceu entender pela
primeira vez que as fontes eram rodeadas por montanhas e então
exclamou: "As montanhas estão se amontoando à volta
das fontes para olhar para seus belos reflexos!". Não sei
onde ela obteve essa linguagem, mas é evidente que lhe
deve ter chegado de fora, pois seria quase impossível que
tal idéia se originasse numa pessoa privada da visão.
Mencionando uma visita a Lexington, Mass., ela escreve:
"Enquanto rodávamos por ali podíamos ver os monarcas da
floresta curvando suas formas orgulhosas para ouvir as
criancinhas dos bosques sussurrando seus segredos. A
anêmona, a violeta selvagem, a hepática e as engraçadas
samambaiazinhas enrodilhadas, todas nos espiavam por
baixo das folhas marrons". Ela encerra essa carta com "Eu
preciso ir para cama, pois Morfeu tocou minhas pálpebras
com sua varinha dourada". Mais uma vez sou incapaz de
dizer onde ela adquiriu tais expressões.
Helen sempre pareceu preferir histórias que exercitam
a imaginação e capturam e retêm o espírito poético em tal
literatura; mas só no inverno tive noção de que sua
memória absorvia a linguagem exata em tal extensão que ela
própria é incapaz de rastrear a fonte original.
Isso é demonstrado numa pequena história que escreveu
em outubro passado, na casa de seus pais em Tuscumbia,
a qual ela chamou de Folhas do outono. Trabalhava nela há
cerca de duas semanas, escrevendo um pouco a cada dia,
para seu próprio prazer. Quando a história foi terminada
e a lemos em família, provocou muitos comentários pela
beleza das imagens, e não podíamos entender como Helen
conseguia descrever tais quadros sem a ajuda da visão.
Como jamais havíamos visto ou ouvido tal história antes,
perguntamos a ela onde a lera; ela respondeu: "Não a li; é
a minha história para o aniversário do sr. Anagnos".
Embora eu ficasse surpresa de que ela pudesse escrever assim,
eu não estava mais perplexa do que já ficara muitas vezes
ante os feitos inesperados de minha alunazinha, especialmente quando já havíamos trocado muitas idéias bonitas
sobre o tema da glória da folhagem amadurecendo
durante o outono desse ano.
Antes de Helen fazer sua cópia final da história, foi-lhe
sugerido que mudasse o título para The frost king como
mais apropriado ao assunto tratado pela história; ela
concordou de bom-grado. A história foi escrita por Helen em
braile, como de hábito, e copiada por ela da mesma
maneira; então intercalei o manuscrito [com inglês comum] para
maior conveniência dos que desejavam lê-lo. Helen escreveu
uma pequena carta e, incluindo o manuscrito, despachou-os
pelo correio para o sr. Anagnos pelo aniversário deste.
A história foi publicada no número de janeiro do Mentor,
e, por uma resenha dela na Goodson Gazette, fiquei espantada
ao descobrir que uma história muito semelhante fora
publicada em 1873, sete anos antes de Helen nascer. Essa
história, The frost fairies, aparecera num livro escrito pela
srta. Margaret T. Canby chamado Birdie and his fairy friends
(Birdie e suas amigas fadas). Os trechos citados das duas
histórias eram tão parecidos em idéia e expressão que me
convenceram de que a história da srta. Canby deve ter sido
em algum momento lida para Helen.
Como eu jamais lera essa história ou ouvira falar do
livro, perguntei a Helen se ela sabia algo a respeito e
descobri que não. Ela foi totalmente incapaz de lembrar-se do
nome da história ou do livro. Um exame cuidadoso foi
feito nos livros em relevo da biblioteca da Instituição
Perkins, para ver se qualquer trecho daquele volume podia
ser encontrado lá; mas nada foi descoberto. Então concluí
que a história devia ter sido lida para ela há muito tempo,
já que sua memória geralmente retém com grande clareza
fatos e impressões confiados à sua guarda.
Após cuidadoso inquérito, consegui obter a
informação de que nossa amiga, a sra. S. C. Hopkins, tinha uma
edição daquele livro de 1888, que fora presenteado à sua
filhinha em 1873 ou 1874. Helen e eu passamos o verão de
1888 com a sra. Hopkins em sua casa em Brewster, Mass.,
onde ela amavelmente se revezou comigo, parte do tempo,
nos cuidados com Helen. Ela divertiu e distraiu Helen
lendo-lhe de uma coleção de publicações juvenis, entre as
quais estava o volume de Birdie and his fairy friends e embora
a sra. Hopkins não se lembre de The frost fairies, ela tem
certeza de que leu trechos, se não histórias inteiras, daquele
volume para Helen. Mas como não conseguiu encontrar
seu volume, e solicitações nas livrarias de Boston, Nova
York, Filadélfia, Albany e outros lugares resultassem em
fracasso, a pesquisa foi dirigida para a própria autora. Isso
se tornou uma tarefa difícil, já que seus editores na Filadélfia
haviam se retirado do negócio há muitos anos; entretanto,
descobriu-se posteriormente que sua residência é em
Wilmington, Delaware, e volumes da segunda edição do
livro, de 1889, foram obtidos da autora. Então a srta. Canby
guardou um volume da primeira edição e o despachou
para mim.
A srta. Canby enviou as cartas mais generosas e gratificantes
aos amigos de Helen e trechos delas são reproduzidos
aqui. Em 24 de fevereiro de 1892, após mencionar a
ordem da publicação das histórias na revista, a srta. Canby
escreve:
Todas as histórias foram revisadas antes da publicação
em forma de livro; fizeram-se adições quanto ao
número na publicação inicial, acho eu, e alguns títulos
podem ter sido mudados.
Na mesma carta ela escreve:
Espero que Helen entenda que fiquei contente de ela
ter gostado de minha história e que espero que o novo
livro lhe dê prazer, renovando sua amizade com as Fadas.
Escreverei a ela dentro em pouco. Fiquei tão impressionada
com o que tenho sabido sobre Helen que escrevi
um pequeno poema intitulado "Uma cantora silenciosa",
que posso enviar para a mãe dela futuramente. Pode me
dizer em que jornal apareceu o artigo acusando Helen de
plágio e publicando trechos das duas histórias? Eu gostaria
muito de vê-lo e de obter alguns números se possível.
Na de 9 de março de 1892, a srta. Canby escreve:
No Relatório que a senhorita tão amavelmente me
enviou, encontro vestígios de a pequena Helen ter ouvido
outras histórias além de Frost fairies. Na página 132,
numa carta, há um trecho que deve ter sido sugerido
por minha história que se chama The rose fairies (As fadas
das rosas) (ver p. 13-16 de Birdie) e nas páginas 93 e 94
do Relatório a descrição de uma tempestade é muito
parecida com a idéia de Birdie em Dew fairies (As fadas
do orvalho) nas páginas 59 e 60 do meu livro. Que
mente maravilhosamente ativa e retentiva deve ter essa criança
tão bem-dotada! Se ela tivesse se lembrado e escrito
um conto, com precisão, e isso logo depois de ouvi-lo,
teria sido uma maravilha; mas lê-lo uma vez, três anos
atrás, sem que nem os pais nem a professora pudessem
ter aludido a ele para refrescar-lhe a memória, e depois
reproduzi-lo tão vivamente, acrescentando até alguns
toques próprios que combinam perfeitamente com o resto,
o que realmente melhora o original, é algo que poucas
meninas mais maduras cronologicamente e com todas
as vantagens da visão, da audição e mesmo um grande
talento para a composição poderiam ter feito tão bem
- se é que poderiam fazê-lo. Em tais circunstâncias,
não vejo como alguém possa ser tão pouco amável a
ponto de chamar isso de plágio; é um feito maravilhoso
de memória e se destaca sozinho, indubitavelmente como
boa parte de seu trabalho no futuro, se seus poderes
mentais crescerem e se desenvolverem com os anos de
modo tão poderoso quanto no passado. Tenho conhecido
bem muitas crianças, estive rodeada delas por toda a
vida e adoro mais do que tudo falar com elas, diverti-las
e quietamente observar traços de sua mente e
personalidade; mas não me lembro de uma garota da idade de
Helen que tivesse o amor, a sede de conhecimento, o
estoque de informação literária e geral e a habilidade de
redação que Helen possui. Ela é de fato uma "criança-
prodígio". Agradeço-lhe muito pelo Relatório, a Gazette
e o Diário de Helen. O último me fez perceber, melhor
que antes, a grande decepção da querida criança. Por
favor, transmita a ela meu carinho e diga-lhe para não se
sentir mais perturbada com isso. Ninguém pensará que
houve alguma coisa errada, e algum dia ela escreverá
uma grande e linda história ou poema que deixará as
pessoas felizes. Diga-lhe que há algumas gotas amargas
na taça de todos, e o único modo é tomar o amargo
pacientemente, e o doce gratamente. Vou adorar saber
como Helen recebeu o livro e o que acha das histórias
que são novas para ela.
Agora (março de 1892) já li para Helen The frost fairies,
The rose fairies e um pedaço de The dew fairies, mas ela é incapaz de esclarecer
a questão. Ela as reconheceu imediatamente como suas próprias histórias,
com variações, e ficou muito intrigada de saber como puderam ser
publicadas antes de ela nascer! Acha maravilhoso que duas pessoas
escrevam histórias tão parecidas; mas ainda considera a sua como a
original.
Declaração da própria Helen Keller
(A entrada seguinte feita por Helen em seu diário fala por si mesma.)
30 de janeiro de 1892:
Esta manhã tomei um banho e quando a professora
subiu para pentear meu cabelo, ela me deu uma notícia
muito triste que me deixou infeliz o dia todo. Alguém
escreveu ao sr. Anagnos que a história que lhe enviei como
presente de aniversário e que eu mesma escrevi não era
de modo nenhum minha, mas de uma senhora que a
escrevera muito tempo atrás. A pessoa disse que a história
da senhora se chamava Frost fairies. Tenho certeza de que
eu nunca soube dela. Imaginar que as pessoas achassem
que fomos mentirosas e más fez com que nos sentíssemos
muito mal. Meu coração se encheu de lágrimas, pois eu
amo a bela verdade com todo o meu coração e mente.
Isso me perturba muito agora. Não sei o que farei.
Nunca pensei que as pessoas pudessem cometer tais
equívocos. Tenho total certeza de ter escrito a história eu
mesma, O sr. Anagnos está tão perturbado. Entristece-me
muito pensar que eu tenha sido a causa de sua infelicidade,
mas é claro que não pretendi fazer isso.
Pensei sobre minha história no outono, porque a
professora me contou sobre as folhas de outono enquanto
caminhávamos nos bosques em Fern Quarry. Eu
achava que as fadas deviam ter pintado elas porque eram tão
maravilhosas e pensei também que o rei Gelo devia ter
jarros e vasos contendo tesouros preciosos, porque eu
sabia que outros reis tempos atrás tinham isso e porque
a professora me contou que as folhas eram pintadas de
rubi, esmeralda, ouro, escarlate e marrom; então pensei
que a tinta devia ser pedras derretidas. Eu sabia que elas
deviam fazer as crianças felizes porque são tão adoráveis,
e fiquei muito feliz de pensar que as folhas eram tão
bonitas e que as árvores fulguravam tanto, embora eu
não pudesse vê-las.
Achei que todos pensavam o mesmo sobre as folhas,
mas agora não sei. Pensei muito sobre as tristes notícias
quando a professora foi ao médico; ela não estava aqui
para o jantar e senti falta dela.
Sinto que não posso acrescentar mais nada que possa
interessar. Meu próprio coração está demasiado "cheio de
lágrimas" quando lembro como minha alunazinha sofreu
quando soube "que as pessoas achassem que fomos
mentirosas e más", pois eu sei que ela de fato "ama a bela
verdade com todo o seu coração e mente".
Sinceramente,
Annie M Sullivan
O episódio teve um efeito devastador em Helen Keller e na
srta. Sullivan, que temia ter permitido que o hábito da imitação, o
qual na verdade fez da srta. Keller uma escritora, tivesse ido longe
demais. Mesmo hoje em dia, quando a srta. Keller modela uma
bela frase, a srta. Sullivan diz num desespero bem-humorado:
"Cogito de onde ela terá tirado isso". Mas a srta. Sullivan sabe
agora, desde que estudou com sua aluna na faculdade os problemas
da redação, sob a inteligente orientação do sr. Charles T.
Copeland, que o estilo de cada escritor e, na verdade, de cada ser
humano, analfabeto ou culto, é uma reminiscência composta de
tudo que leu e ouviu. Na maior parte, ele é tão inconsciente das
fontes de seu vocabulário quanto do momento em que ingeriu o
alimento que construiu um pedaço da unha de seu polegar. Na
maioria de nós, as contribuições das diferentes fontes são misturadas,
cruzadas e confundidas. Uma criança com poucas fontes
pode manter diferenciado o que retira de cada uma. Nesse caso
Helen Keller manteve quase intactas na memória, não misturadas
com outras idéias, as palavras de uma história que não entendera
completamente na época em que fora lida para ela. A
importância disso não pode ser superestimada. Mostra como a
mente da criança recolhe em si palavras que ouviu e como elas
espreitam ali, prontas para surgirem quando a chave que libera a
fonte é tocada. O motivo de não notarmos esse processo em
crianças comuns é porque raramente as observamos e porque
elas são alimentadas de tantas fontes que as lembranças são
confusas e mutuamente destrutivas. A história do The frost king,
contudo, não saiu intacta da mente de Helen Keller, mas assumiu
ela própria o molde do temperamento da criança e inspirou-se
num vocabulário que, até algum ponto, foi fornecido de outros
modos. O estilo de sua versão é, em alguns pontos, até melhor
do que o estilo da história da srta. Canby. Ele tem a credulidade
imaginativa de uma história folclórica primitiva, enquanto a
história da srta. Canby é evidentemente contada para crianças por uma
pessoa mais velha, que adota a maneira de um conto de fadas e
não consegue esconder o ânimo maduro que permite frases
didáticas como "Jack Frost, como ele é às vezes chamado", "Meio-dia,
quando o Senhor Sol está mais forte". A maioria das pessoas
sentirão a qualidade imaginativa superior do parágrafo de
abertura de Helen Keller. Certamente o escritor precisa tornar-se uma
criança para ver coisas assim. "Doze ursos brancos com aparência
de soldado" é uma pincelada de gênio e há beleza de ritmo por
toda a narrativa da criança. É original, da mesma maneira que é
original a versão de uma velha história feita por um poeta.
Essa pequena história faz surgir todas as questões de linguagem
e da filosofia de estilo. Algumas conclusões podem ser brevemente
sugeridas.
Todo uso da linguagem é imitativo e o estilo de alguém é
construído de todos os outros estilos que esse alguém conheceu.
A maneira de escrever bom inglês é lê-lo e ouvi-lo. Portanto,
pode-se ensinar qualquer criança a usar um inglês correto se
não lhe for permitido ler ou escutar qualquer outro tipo de linguagem.
Numa criança, a seleção do melhor não é consciente; ela é a
serva de sua experiência-palavra.
O homem comum jamais se livrará da falácia de que as
palavras obedecem ao pensamento, que a pessoa pensa primeiro
e fraseia depois. Tem de haver primeiro, é verdade, a intenção, o
desejo de emitir algo, mas a idéia geralmente não se torna específica,
não toma forma até que seja fraseada; certamente, uma idéia
é uma coisa diferente em virtude de ser fraseada. As palavras
freqüentemente fazem o pensamento, e o mestre das palavras dirá
coisas maiores do que estão nele. Um exemplo notável disso é
um parágrafo do esboço da srta. Keller no Youth's Companion.
Escrevendo sobre o momento em que aprendeu que tudo tinha
um nome, diz ela: "Encontramos a enfermeira carregando meu
priminho; e professora soletrou "bebê". E pela primeira vez fiquei
impressionada com a pequenez e o desamparo de um bebezinho,
e mesclado a esse pensamento havia outra de mim, e fiquei
contente de ser eu mesma e não um bebê". Foi uma palavra que
criou tais pensamentos em sua mente. Assim, o senhor das
palavras é senhor dos pensamentos que as palavras criam e diz
coisas maiores do que de Outro modo poderia saber. Ao escrever
The frost king, Helen estava construindo melhor do que sabia e
dizendo mais do que pretendia.
Qualquer um que faz uma sentença, expressa não a sua
sabedoria mas a sabedoria da raça cuja vida está nas palavras, embora
estas nunca tenham sido agrupadas daquela forma antes. O
homem que pode escrever histórias pensa em histórias para
escrever, O meio faz surgir a coisa que ele transmite, e quanto
mais grandioso o meio, mais profundos são os pensamentos.
O homem culto é aquele cujo modo de se expressar é culto.
A substância do pensamento é a linguagem, e linguagem é a coisa
essencial a se ensinar à criança surda e a todas as outras crianças.
Adquirindo a linguagem, ela obtém a própria matéria de que
aquela lingua é feita, o pensamento e a experiência de sua raça. A
linguagem deve ser a usada por uma nação, não algo artificial. O
volapuque é um paradoxo, a não ser que a pessoa fale francês,
inglês ou alemão ou outra lingua qualquer que se desenvolveu
numa nação.
[O volapuque (que significa língua mundial) foi criado em 1879 pelo
padre alemão Johann Martin Schleyer (1831-1912), em Badem, na
Alemanha. Schleyer pensava que Deus lhe tinha dito num sonho para criar uma
língua internacional. Realizaram-se convenções de volapuque em 1884,
1887 e 1889. (N. da T.)]
A criança surda que tem apenas a linguagem dos
sinais de De l'Épée é um Philip Nolan intelectual, um alienígena
de todas as raças, e suas idéias não são as idéias de um inglês, de
um francês ou de um espanhol. A oração do Senhor em sinais
não é a oração do Senhor em inglês.
Em seu ensaio sobre o estilo, De Quincey diz que o melhor
inglês é o encontrado nas cartas da mulher culta da elite, porque
ela leu apenas alguns bons livros e não foi corrompida pelo estilo
dos jornais e o jargão da rua, do mercado ou da assembléia.
São exatamente essas circunstâncias externas que explicam o
uso do inglês por Helen Keller. Nos primeiros anos de sua
educação, ela só leu boas coisas; algumas eram, de fato, triviais e não
excelentes no estilo, mas nenhuma era positivamente má em modo
ou substância. Essa feliz condição foi obtida através de sua vida.
Ela tem sido embalada em literatura da imaginação e recolheu
em sua vigorosa e tenaz memória o estilo de grandes escritores.
"Uma nova palavra abre seu coração para mim", escreve ela numa
carta; e quando usa a palavra, o coração desta ainda está aberto.
Quando Helen Keller tinha 12 anos, perguntaram-lhe que livro
levaria numa longa viagem de trem. Paradise lost, respondeu e ela
o leu no trem.
Até o último, ou últimos dois anos, ela não era dona de seu
estilo; seu estilo era o mestre dela. Só quando Helen Keller passou
a fazer da composição um estudo mais consciente, ela cessou de
ser vítima da frase; a sortuda vítima, felizmente, da boa frase.
Quando em 1892 foi estimulada a escrever um esboço de
sua vida para o Youth's Companion, na esperança de que a
tranqüilizasse e ajudasse a se recuperar do efeito do The frost king, ela
apresentou um texto que é muito mais notável e em si mais divertido
em alguns pontos do que a parte correspondente a sua
história naquele livro. Quando recontou a história numa forma
mais completa, o eco das frases que escrevera há nove anos ainda
estava em sua mente. Mesmo assim ela não vira seu esboço no
Youth's Companion desde que o escrevera, exceto dois trechos que a
srta. Sullivan lera para lembrá-la de coisas que devia dizer nessa
autobiografia e para lhe mostrar, quando seu estilo a incomodasse,
como se saía melhor quando menina.
Tirei alguns trechos do primeiro esboço que, sem levar muito
em conta a diferença no tempo, me parecem quase tão bons
como qualquer coisa que Helen Keller escreveu desde então.
Descobri o modo verdadeiro de andar quando tinha
um ano e nos radiosos dias de verão que se seguiram não
parei um minuto (...)
Então, quando meu pai chegava à noite, eu corria para
o portão ao encontro dele, que me pegava em seus braços
fortes, afastava os cachos despenteados de meu rosto, e
me beijando muitas vezes dizia: "O que a minha garotinha
andou fazendo hoje?".
Mas o verão mais brilhante tem o inverno atrás dele.
No mês gelado e melancólico de fevereiro, quando eu
estava com 19 meses, fiquei muito doente. Ainda tenho
lembranças confusas daquela doença. Mamãe sentada ao
lado de minha caminha tentando consolar meus gemidos
febris, enquanto em seu perturbado coração ela rezava:
"Pai do Céu, poupe a vida do meu bebê!". Mas a febre
aumentou e queimou meus olhos, e por vários dias o bom
médico achou que eu ia morrer.
Mas certa manhã bem cedo a febre foi embora tão
misteriosa e inesperadamente como tinha vindo e caí num
sono sereno. Então meus pais viram que eu ia viver e
ficaram felizes. Durante algum tempo depois de minha
recuperação eles não souberam que a febre cruel tirara minha
visão e audição; tirara toda a luz, a música e o contentamento
de minha pequena vida.
Mas eu era muito jovem para perceber o que acontecera.
Quando acordei e descobri que tudo estava escuro e quieto,
acho que pensei que era noite e devo ter cogitado por que
o dia demorava tanto a chegar. Mas aos poucos me
acostumei ao silêncio e à escuridão que me rodeavam e esqueci
que tinha havido luz algum dia.
Esqueci de tudo, menos do terno amor de mamãe.
Em breve até minha voz de criança silenciou, porque eu
deixara de ouvir qualquer som.
Mas nem tudo estava perdido! Afinal de contas, visão e
audição são apenas duas das lindas bênçãos que Deus me
deu. O mais precioso, o mais maravilhoso de Seus
presentes ainda era meu. Minha mente continuava clara e ativa,
"embora afastada para sempre da luz".
Assim que minhas forças voltaram, comecei a me
interessar pelo que as pessoas à minha volta estavam fazendo.
Eu me agarrava ao vestido de mamãe enquanto ela
realizava as tarefas de casa e minhas mãozinhas apalpavam cada
objeto e observavam cada movimento; assim aprendi uma
grande quantidade de coisas.
Ao ficar um pouco mais velha, senti a necessidade de
algum meio de comunicação com os que me rodeavam e
comecei a fazer sinais simples que meus pais e amigos
prontamente entenderam; mas acontecia com freqüência de não
conseguir me expressar de modo inteligível, e às vezes eu
era dominada completamente pela raiva (...)
Duas semanas depois que a Professora estava comigo,
eu já aprendera 18 ou 20 palavras, antes que aquele pensamento
explodisse na minha mente como o sol irrompe no
mundo adormecido; e naquele instante de iluminação, o
segredo da linguagem foi revelado a mim e tive um
vislumbre do lindo país que eu estava prestes a explorar.
Por toda a manhã, a Professora tinha tentado me fazer
entender que a caneca e o leite na caneca tinham nomes
diferentes; mas eu era muito burra e continuava soletrando
leite para caneca e caneca para leite, até que a Professora
deve ter perdido toda a esperança de me fazer compreender
o erro. Finalmente ela levantou, me deu a caneca e saiu
porta afora comigo na direção da bomba d'água. Alguém
estava bombeando água e quando o jorro frio e fresco
irrompeu, a Professora me fez pôr a caneca debaixo do
jorro e soletrou "á-g-u-a". Água!
A palavra provocou um sobressalto na minha alma e
ela despertou, cheia do espírito da manhã, como uma
canção alegre e exultante. Até aquele dia, minha mente fora
como um quarto escuro, esperando que as palavras entrassem
e acendessem o lampião, que é o pensamento (...)
Aprendi muitas palavras novas naquele dia. Não me
lembro de todas, mas sei que mâe, pai, irmã e professora eram
algumas delas. Seria difícil achar criança mais feliz do que
eu naquela noite, deitada na minha caminha e pensando de
novo na alegria que o dia me trouxera. Pela primeira vez
esperei com ansiedade que um novo dia chegasse.
Na manhã seguinte acordei com alegria no coração.
Tudo que tocava parecia estremecer de vida. Isso porque
eu via tudo com a nova visão, estranha e bela, que me tinha
sido dada. Nunca mais fiquei com raiva depois daquilo,
pois entendia o que meus amigos diziam e estava muito
ocupada aprendendo muitas coisas maravilhosas. Jamais
ficava parada durante os primeiros e alegres dias da minha
liberdade. Estava sempre soletrando e representando as
palavras enquanto as soletrava. Eu corria, saltava, pulava e
balançava sem ligar para onde estivesse. Tudo estava em
botão, florescendo. A madressilva pendia em longas
guirlandas, deliciosamente perfumadas e as rosas nunca tinham
sido tão bonitas. A Professora e eu vivíamos ao ar livre de
manhã à noite e eu me alegrava muito com a luz e o sol
esquecidos e encontrados de novo.
Na manhã seguinte da nossa chegada, acordei cedo e
alegre. Um belo dia deverão tinha nascido, o dia em que eu
ia conhecer um amigo sombrio e misterioso. Levantei e me
vesti rapidamente, correndo para o andar de baixo. Encontrei
a Professora no vestíbulo e implorei que me levasse para
o mar imediatamente. "Ainda não", respondeu ela, rindo.
"Precisamos tomar o café-da-manhã primeiro." Assim que
o café terminou fomos rapidamente para a praia. Nosso
caminho passava por colinas baixas e arenosas, e enquanto
andávamos apressadas por elas, eu prendia muitas vezes meus
pés nas hastes longas e ásperas de mato e tropeçava rindo na
areia brilhante e morna. O ar tépido e belo estava especialmente
perfumado e notei que, à medida que íamos avançando,
tudo ficava mais fresco e mais frio.
De repente paramos e eu soube, sem que me dissessem,
que o Mar estava a meus pés. Sabia também que era
imenso! medonho! e por um momento parte da luz do sol
pareceu ter deixado o dia. Mas acho que não estava com
medo; pois, mais tarde, quando já tinha vestido minha roupa
de banho e as ondazinhas subiam pela praia e beijavam
meus pés, eu gritei de alegria e mergulhei sem medo nas
ondas. Mas infelizmente bati com o pé numa rocha e caí
para a frente na água gelada.
Então uma sensação de perigo estranha e terrível me
aterrorizou. A água salgada me encheu os olhos e tirou
minha respiração e uma grande onda me atirou para a
praia com tanta facilidade como se eu fosse um pequeno
seixo. Por vários dias depois daquilo fiquei muito medrosa
e mal podia ser convencida a chegar até a água; aos
poucos, contudo, minha coragem voltou e pouco antes de o
verão terminar eu achava a maior diversão ser sacudida de
um lado para o outro pelas ondas (...)
Não sei o que é mais notável, se a diferença ou a semelhança
de fraseado entre a versão da criança e a da mulher. A primeira
história é mais simples e mostra menos artificio deliberado, embora
mesmo então a srta. Keller fosse prematuramente consciente do
estilo; mas a arte da última narrativa, como na passagem sobre o
mar, ou o trecho sobre o medalhão de Homem, é certamente o
cumprimento da promessa da primeira história. Foi num desses
primeiros dias que dr. Holmes escreveu para ela: "Estou encantado
com o estilo de suas cartas. Não há nenhuma afetação nelas e assim
como saem diretas de seu coração, chegam diretas ao meu".
Nos anos em que a srta. Keller saía da infância, seu estilo
perdeu a antiga simplicidade, tornando-se rígido e, como ela
diz, "escamoteado". Nesses anos, a srta. Sullivan temeu muitas
vezes que o sucesso da criança pudesse cessar com a infância.
Por vezes parecia faltar flexibilidade a srta. Keller; suas idéias
corriam para dispor frases que ela parecia não ter o poder de
revisar ou moldar de uma nova maneira.
Então veio o trabalho na faculdade - texto de matéria
original com novos ideais de composição, ou pelo menos novos
métodos de sugerir tais ideais. A srta. Keller começou a obter o
melhor de sua velha e amigável feitora, a frase. Este livro, sua
primeira experiência madura no texto, esclarece de vez a questão
da capacidade da srta. Keller para escrever.
O estilo da Bíblia está por toda parte no trabalho da srta.
Keller, assim como no estilo dos maiores escritores ingleses.
Stevenson, de quem a srta. Sullivan gosta e costumava ler para sua
aluna, é outra influência marcante. Na autobiografia dela há muitas
citações, principalmente da Bíblia e de Stevenson, destacadas do
contexto ou entretecidas a ele, sendo a tessitura inteira bem da
concepção da srta. Keller. Seu vocabulário tem todas as frases que os
outros usam e a explicação disso e sua razoabilidade já deveriam
ser evidentes. Não há motivo para que ela risque de seu
vocabulário todas as palavras sobre som e visão. Escrevendo para outras
pessoas, em muitos casos a srta. Keller tem de ser mais fiel ao
fato externo do que à sua própria experiência. Na medida em
que use as palavras corretamente, deve ser-lhe garantido o
privilégio de usá-las livremente, e não que se espere dela confinar-se a
um vocabulário vinculado à sua falta de visão e audição. No seu
estilo, como no que escreve, precisamos conceder à artista o que
negamos à autora da autobiografia. Isso devia explicar também
que olhar e ver são usados pelos cegos e ouvir pelos surdos, no
sentido de perceber; são apenas palavras mais simples e convenientes.
Somente uma pessoa literal pode pensar em atar os cegos à
percepção ou aperceber-se, quando ver e olhar são muito mais fáceis e
têm, além disso, na fala de todos os homens, o significado de
reconhecimento intelectual, assim com o o de reconhecimento pela
visão. Quando a srta. Keller examina uma estátua, enquanto seus
dedos percorrem o mármore, ela diz em seu idioma natural:
"A aparência é de uma cabeça de Flora".
Por outro lado, é verdade que nas descrições da srta. Keller
seu ponto de vista artístico é melhor quanto mais ela é fiel a suas
próprias sensações; e isso é exatamente verdadeiro para todos os
artistas.
Sua instrução recente ensinou-a a pôr de lado muito
convencionalismo e escrever sobre experiências da vida peculiares a
si mesma e que, como a tempestade na cerejeira, significam mais
e invocam o fraseado mais verdadeiro. Ela tem aprendido cada
vez mais a abrir mão do estilo que captava dos livros e tentava
usar por querer escrever como as outras pessoas; aprendeu que
mostra o melhor de si quando "sente" os lirios oscilarem, deixa
que as rosas se pressionem contra suas mãos e fala do calor que
para ela significa luz.
A autobiografia da srta. Keller contém quase tudo que ela
sempre pretendeu publicar. Vale a pena, contudo, citar alguns de
seus fragmentos, que não são tão informais quanto suas cartas nem
tão cuidadosamente redigidos como a história da sua vida. Tais
trechos foram retirados de seus exercícios no curso de redação, no
qual se mostrou, no início de sua vida na faculdade, sem rival entre
as colegas. O sr. Charles T. Copeland, por muitos anos professor
particular de inglês e conferencista sobre literatura inglesa em Harvard
e Radcliffe, me disse: "Em parte de seu trabalho, ela tem mostrado
que pode escrever melhor do que qualquer aluno que já tive,
homem ou mulher. Ela demonstra um excelente "ouvido" para o fluxo
das sentenças". Seguem-se os trechos:
Alguns versos da poesia de Omar Khayyám acabam
de ser lidos para mim e sinto como se tivesse passado a
última meia hora num magnífico sepulcro. Sim, é um
túmulo em que a esperança, a alegria e o poder de agir
nobremente jazem enterrados. Cada bela descrição, cada
pensamento profundo desliza insensivelmente para o mesmo
canto elegíaco sobre a brevidade da vida, a lenta
decadência e dissolução de todas as coisas terrenas. As brilhantes
lembranças de amor, juventude e beleza do poeta são tochas
fúnebres espalhando sua luz nesse túmulo ou, modificando
um pouco a imagem, são as flores que brotam nele, regadas
com lágrimas e alimentadas por um coração que sangra.
Ao lado do túmulo está uma alma fatigada e que não se
rejubila com as alegrias do passado nem com as possibilidades
do futuro, mas busca consolo no esquecimento. Em
vão o mar inspirador grita para essa alma lânguida, em vão
os céus engalfinham-se com sua fraqueza; ela ainda insiste
em seus remorsos e busca refúgio no esquecimento das
fisgadas da aflição de agora. Por vezes ela capta algum
débil eco do vivo e alegre mundo real, um cintilar da
perfeição do que deve ser; e eletrizada por seu desalento, sente-se
capaz de elaborar um grandioso ideal mesmo "no
pobre, miserável e confinado presente", onde está situada;
mas num momento a inspiração, a visão, desaparece e essa
alma grande e muito sofrida é de novo envolvida pela
escuridão da incerteza e do desespero.
É maravilhoso o tempo que as pessoas boas passam
lutando contra o demônio. Se pelo menos gastassem a
mesma quantidade de energia amando seus semelhantes, o
demônio morreria em sua própria trilha de tédio.
Penso freqüentemente que as belas idéias embaraçam tanto
as pessoas quanto a companhia dos grandes homens. Elas
são consideradas mais apropriadas em livros e discursos
públicos do que na sala de visita ou à mesa. Claro que não
me refiro aos belos sentimentos, mas às verdades mais
sublimes relacionadas à vida cotidiana. Poucas pessoas que
conheço parecem fazer uma pausa em suas relações
cotidianas para cogitar dos belos pedacinhos de verdade que
recolheram durante seus anos de estudo. Com freqüência, quando
falo entusiasticamente de algo na história ou na poesia, não
recebo qualquer resposta e sinto que preciso mudar de assunto
e voltar aos tópicos mais comuns, tais como o clima, o
modo de vestir, esportes, doenças, "tristezas" e "preocupações".
Para ter certeza, assumo o interesse mais agudo em
tudo que diz respeito aos que me rodeiam; é esse mesmo
interesse que torna tão difícil para eu prosseguir numa conversa
com certas pessoas que não falam ou dizem o que pensam;
mas não devo lamentar ter mais amigos prontos para conversar
comigo agora e depois sobre as coisas maravilhosas que
leio. Não precisamos ser como Les femmes savantes (As sabichonas);
mas devíamos ter algo a dizer sobre o que aprendemos,
bem como sobre aquilo que precisamos fazer, e o que nossos
professores dizem, ou como corrigem nossos ensaios.
Hoje almocei com a Classe das Calouras de Radcliffe.
Foi minha primeira experiência real na vida da faculdade, e
que experiência encantadora! Pela primeira vez desde
minha entrada em Radcliffe tive a oportunidade de fazer
amizade com todas as minhas colegas de turma,
juntamente com o prazer de saber que me encaravam como
uma delas, em vez de pensar em mim como vivendo à
parte e sem nenhum interesse nas insignificâncias cotidianas
de suas vidas, como por vezes eu temera que fariam.
Freqüentemente tenho sido surpreendida por essa opinião
expressada ou implicita por parte das moças de minha
idade e mesmo por pessoas avançadas em anos. Certa vez
alguém me escreveu que em sua mente eu era sempre "doce
e séria, pensando apenas no que é sábio, bom e interessante"
- como se me achasse uma dessas tediosas santas que
existem demais no mundo! Sempre ri dessas noções tolas
e asseguro aos meus amigos que é muito melhor ter alguns
defeitos e ser animada e receptiva apesar de todas as
privações, do que se retirar para sua própria concha,
paparicar a própria aflição, vesti-la de santidade e então
estabelecer-se como um monumento de paciência, virtude,
bondade e tudo o mais; mas mesmo enquanto rio sinto
uma fisgada no coração, porque me parece difícil que
alguém possa imaginar que não sinto os ternos vínculos
ligando-me às minhas jovens irmãs - as simpatias jorrando
do que temos em comum - juventude, esperança, uma
atitude meio ansiosa, meio tímida em relação à vida diante
de nós e acima de tudo a realeza da condição de donzelas.
Sainte-Beuve diz "Il vient un âge peut-être quand on n'écrit
plus". Essa é a única alusão que já li sobre a possibilidade das
fontes da literatura, por mais variadas e infinitas que
pareçam agora, se exaurirem um dia. Surpreende-me descobrir
que tal idéia tenha passado pela cabeça de alguém, especialmente
de um crítico altamente bem-dotado. O próprio fato
do século XIX não ter produzido muitos autores com que
o mundo pudesse contar entre os maiores de todos os
tempos não justifica, na minha opinião, a observação "Pode
chegar um tempo em que as pessoas deixem de escrever?".
Em primeiro lugar, as fontes da literatura são
alimentadas por dois vastos mundos, um da ação e outro do
pensamento, por uma sucessão de criações num dos mundos
e de mudanças no outro. Novas experiências invocam novas
idéias e impelem os homens a fazer perguntas não imaginadas
antes e buscar uma resposta definitiva nas profundezas
do conhecimento humano.
Em segundo lugar, se é verdade que muitos séculos
precisam passar antes que o mundo se torne perfeito, como
passaram antes que se tornasse o que é hoje, a literatura
certamente será incalculavelmente enriquecida pelas
tremendas mudanças, aquisições e melhorias que não podem deixar
de ocorrer no futuro distante. Se o gênio tem estado
silencioso por um século, não está ocioso. Pelo contrário,
vem coletando novo material não apenas do passado
remoto mas também da era do progresso e
desenvolvimento, e talvez no novo século haja erupções de esplendor nos
mais diversos ramos da literatura. No presente, o mundo
está passando por uma total revolução, e em meio a sistemas
e impérios desmoronando, credos e teorias em conflito,
descobertas e invenções, é algo de maravilhoso que
alguém possa chegar a produzir grandes obras literárias.
Esta é uma era de trabalhadores, não de pensadores. A
canção hoje em dia é:
Let the dead past bury its dead,
Act, act in the living present,
Heart within and God over head!
[Deixe o passado morto seus mortos enterrar,/aja, aja no vivo
presente,/coração no peito e Deus a pairar! (Tradução livre. N da T.)]
Um pouco mais tarde, quando o jorro e o calor da
realização se acalmarem, poderemos começar a ter
expectativas quanto ao aparecimento de grandes homens que
celebrem em gloriosa prosa e poesia os feitos e triunfos
dos últimos séculos.
É muito interessante observar uma planta crescer - é
como tomar parte na criação. Quando tudo do lado de
fora está gelado e branco, quando as crianças do bosque
vão para seus quartos na terra morna e os ninhos vazios
nas árvores nuas se enchem de neve, minha janela-jardim
fulgura e sorri, criando o verão aqui dentro enquanto é
inverno lá fora. É maravilhoso ver as flores se abrirem no
meio de uma tempestade de neve! Senti um botão
"timidamente levantar seu capuz verde e se abrir com uma
sedosa erupção de som", enquanto os dedos gelados da neve
batem contra as vidraças da janela. Que secreto poder,
cogito eu, causou esse milagre de florescimento? Que força
misteriosa guiou a pequena semente da terra escura até a
luz, através da folha, caule e botão, para a gloriosa realização
da flor perfeita? Quem poderia ter sonhado que tal
beleza, emboscada na terra escura, estava latente na minúscula
semente que plantamos? Bela flor, você me ensinou a
ver um pequeno caminho escondido no coração das coisas.
Agora entendo que em toda parte a escuridão pode conter
possibilidades melhores até do que minhas esperanças.
Uma tradução livre de Horácio:
Não sou um daqueles a quem a fortuna desdenha
sorrir. Minha casa não é resplandecente de marfim e ouro,
nem adornada com arcadas de mármore descansando em
graciosas colunas trazidas das pedreiras da África distante.
Para mim, nada de valorosas tecelãs fiando na roca
vestimentas púrpuras. Não me tornei inesperadamente herdeiro
de propriedades principescas, de títulos de poder; mas
tenho algo mais desejado que todos os tesouros do mundo
- o amor de meus amigos e fama honrosa, conquistada
por meu próprio esforço e talento. Apesar de minha
pobreza, é meu privilégio ser companheiro dos ricos e
poderosos. Sou extremamente grato por todas essas bênçãos
para desejar mais dos príncipes, ou dos deuses. Minha
pequena fazenda sabinense é cara a meu coração, pois ali passo
meus dias mais felizes, longe do ruído e do esforço do
mundo.
Ah, tu que vives no meio do luxo, que buscas belos
mármores para novas vilas que sobrepujem as antigas em
esplendor, tu nunca sonhastes que a sombra da morte pende
sobre tua morada. Esquecido do túmulo, colocas as
fundações de teus palácios. Em tua louca busca de prazer,
roubas o mar de sua praia e dessacralizas o solo sagrado.
Mais ainda, em tua maldade, destróis os lares pacíficos
de teus clientes! Sem um toque de remorso, expulsas o
pai de sua terra, prendendo a seu peito os deuses lares e
seus filhos meio nus.
Esqueces que a morte chega tanto para o rico quanto
para o pobre e chega para sempre; mas lembre-se, Aqueronte
não pôde ser subornado por ouro para conduzir o astucioso
Prometeu de volta ao mundo iluminado pelo sol. Tântalo,
também, apesar de tão grande e tão acima de todos os
mortais, desceu ao reino dos mortos para jamais voltar.
Lembra também que, embora a morte seja inexorável, ela é justa;
pois traz retribuição ao rico por sua maldade e dá ao pobre
o eterno descanso de seu esforço e pesar.
Ah, os truques que as ondinas da Terra dos Sonhos nos
pregam enquanto dormimos! Parece-me que "são bufões
na Corte do Céu". Elas tomam freqüentemente a forma
de assuntos diários para zombar de mim; exibem-se no
palco do Sono como virgens tolas, só que carregam
caprichados caderninhos de notas em vez de lampiões
vazios. Outras vezes me examinam e me interrogam sobre
todos os estudos que fiz e invariavelmente me fazem
perguntas tão fáceis de responder quanto esta: "Qual era o
nome do primeiro camundongo que preocupou
Hippopotamuns, sátrapa de Cambridge sob Astyagas, avô
de Cito, o Grande?". Acordo aterrorizada com as palavras
ressoando em meus ouvidos: "A resposta ou a vida!".
Tais são as fantasias distorcidas flutuando pela mente
de alguém que está na faculdade e vive como eu numa
atmosfera de idéias, concepções, semipensamentos e semi-sentimentos que tropeçam uns nos outros e se acotovelam
até deixar-me quase louca. Raramente tenho sonhos que
não se relacionem com o que realmente penso ou sinto,
mas uma noite minha própria natureza pareceu mudar e
enfrentei o olho do mundo como um homem poderoso
e terrível. Naturalmente amo a paz e odeio a guerra e tudo
que lhe diz respeito; não vejo nada admirável na
implacável carreira de Napoleão, exceto seu término. Entretanto,
nesse sonho o espírito daquele impiedoso matador de
homens entrou em mim! Jamais esquecerei como a fúria
da batalha me latejava nas veias - parecia que as
tumultuadas batidas de meu coração fariam minha respiração
parar. Eu montava um vivo cavalo de caça - posso sentir
o impaciente movimento de sua cabeça agora e o
estremecimento que o percorreu ao primeiro rugir do canhão.
Do alto da colina onde eu estava, vi meu exército
surgindo numa planície batida de sol como ondas furiosas, e
enquanto elas se moviam, vi o verde dos campos, como
os túneis frios entre as ondulações. Trombeta respondeu à
trombeta acima da contínua batida de tambores e o ritmo
de pés marchando. Esporei meu garanhão ofegante,
brandindo a espada bem alto e gritando: "Estou indo!
Contemplem-me, guerreiros, Europa!". Mergulhei nas ondulações
que chegavam, como um forte nadador mergulha nos
vagalhões, e atingi, ai de mim, é verdade, o pilar da cama!
Agora raramente durmo sem sonhar; mas antes da vinda
da srta. Sullivan, meus sonhos eram poucos e distanciados,
despidos de pensamento ou coerência, exceto os de uma
natureza puramente física. Em meus sonhos algo estava
sempre caindo súbita e pesadamente e às vezes minha babá
parecia me punir por maltratá-la durante o dia e retribuia
com juros de usurário meus chutes e beliscões. Eu
acordava com um sobressalto ou lutando freneticamente para
escapar de minha atormentadora. Eu gostava muito de
bananas e certa noite sonhei que encontrava um cacho delas
na sala de jantar, perto do guarda-louças, todas descascadas
e deliciosamente maduras, e tudo que eu tinha a fazer era
ficar ao lado delas e comer tanto quanto pudesse.
Após a vinda da srta. Sullivan, quanto mais eu aprendia,
mais freqüentemente sonhava; porém, com o despertar de
minha mente, chegaram muitas fantasias sombrias e vagos
terrores que perturbaram meu sono por muito tempo. Eu
temia a escuridão e adorava a lenha acesa. Seu toque quente
parecia uma carícia humana e eu de fato a considerava um
ser que sentia, capaz de me amar e proteger. Uma gelada
noite de inverno eu estava sozinha em meu quarto. A srta.
Sullivan apagara a luz e fora embora, achando que eu dormia
profundamente. De súbito senti minha cama sacudir e
um lobo pareceu saltar sobre mim e rosnar no meu rosto.
Era só um sonho, mas eu o considerava real e meu coração
afundou. Eu não ousava gritar e não ousava ficar na
cama. Talvez isso fosse uma lembrança confusa da história
que eu ouvira não muito tempo antes sobre Chapeuzinho
Vermelho. De qualquer modo, deslizei para fora da cama
e me aninhei perto do fogo que não se apagara. No instante
em que senti seu calor fiquei tranqüilizada e permaneci um
longo tempo observando-o subir cada vez mais alto em
ondas brilhantes. Finalmente o sono me surpreendeu e,
quando a srta. Sullivan voltou, encontrou-me embrulhada
num cobertor junto à lareira.
Geralmente, quando sonho, pensamentos me
atravessam a mente como sombras encapuzadas, silenciosas e
remotas, e então desaparecem. Talvez sejam fantasmas de
idéias que habitaram outrora a mente de um ancestral.
Outras vezes, as coisas que aprendi e as que me foram
ensinadas vão embora, como o lagarto deixa sua pele, e
vejo minha alma como Deus a vê. Há também raros e
belos momentos em que vejo e ouço na Terra do Sonho.
E se quando eu estivesse desperta um som atravessasse as
câmaras silenciosas da audição? E se um raio de luz
atravessasse as câmaras escuras de minha alma? O que
aconteceria, pergunto-me muitas vezes. A tensão corda-arco da
vida rebentaria? O coração, sobrecarregado de súbita
alegria, pararia de bater por excesso de felicidade?
Cartas
(1887-1901)
por Jokn Macy
As cartas de Helen Keller são importantes não apenas como
uma história suplementar de sua vida mas também como uma
demonstração de seu desenvolvimento em pensamento e expressão
- desenvolvimento que, em si, a fez se destacar.
Contudo, tais cartas não são notáveis apenas como
produções de uma moça surda e cega, para serem lidas com curiosidade
e surpreso maravilhamento; são ótimas cartas praticamente
desde a primeira. As melhores passagens são aquelas em que a srta.
Keller fala de si mesma e nos oferece seu mundo em termos de
sua experiência. As opiniões que emite sobre o movimento dos
equinócios não são importantes, mas muito importante é o relato
sobre o que a fala significou para ela, de como tocou as estátuas,
os cães, as galinhas na exposição de aves de criação e como se
postou na nave da igreja de St. Bartholomew e sentiu o tumor do
órgão. São esses trechos que nos fazem pedir mais. O motivo de
serem comparativamente poucos é que por toda a sua vida Helen
Keller vem tentando ser "como as outras pessoas", e assim
descreve com freqüência as coisas não como lhe parecem, mas como
parecem a alguém que vê e ouve.
Um motivo de excelência das cartas da srta. Keller é o grande
número delas. São os exercícios que a treinaram para escrever.
Ela viveu cada período em partes diferentes do país, tendo sido
portanto separada da maioria dos parentes e amigos. De seus
amigos, muitos foram pessoas ilustres para quem - freqüentemente
sem o sacrifício da espontaneidade, penso eu - ela achou
necessário escrever bem. Para eles e para uns poucos amigos a
quem está mais estreitamente ligada, ela escreve com uma
franqueza íntima sobre o que está pensando. Sua ingenuidade em
recontar uma história de criança que ouviu, como a de Little Jakey
(O pequeno Jack), que ela ensaia para o dr. Holmes e o bispo
Brooks, é encantadora, e sua solene paráfrase da aula do dia de
geografia ou botânica, sua repetição de papagaio do que ouviu e
sua consciente exibição de novas palavras são fascinantes e
instrutivas, pois mostram não apenas o que estava aprendendo, como
também que, ao escrevê-la, ela se apropriava do novo conhecimento
e das novas palavras.
Assim, essa seleção da correspondência da srta. Keller foi
feita com dois objetivos - mostrar seu desenvolvimento e
preservar as passagens mais significativas e que mais entretêm das
centenas de cartas. Muitas das escritas antes de 1892 foram
publicadas nos relatos da Instituição Perkins para Cegos.
Todas as cartas até aquele ano foram impressas integralmente pelo
interesse legítimo que suscitam quanto ao grau de habilidade
mostrado pela criança ao escrever, mesmo nos detalhes da pontuação;
assim, tratou-se de preservar uma integridade literal de
reprodução. Das cartas depois do ano de 1892, selecionei, no espírito
de alguém fazendo uma antologia, os trechos de melhor estilo e
mais importantes do ponto de vista da biografia. Onde consegui
cotejar as cartas originais, preservei tudo como a srta. Keller
escreveu, pontuação, ortografia e tudo o mais. Apenas escolhi e
cortei.
As cartas estão dispostas em ordem cronológica. Uma ou
duas cartas do bispo Brooks, do dr. Holmes e de Whittier são
colocadas imediatamente depois das cartas a que respondem.
Exceto por duas ou três cartas importantes de 1901, essa seleção
se detém no ano de 1900. Neste ano, a srta. Keller entrou para a
faculdade. Agora que é adulta, suas cartas mais maduras devem
ser julgadas como as de qualquer outra pessoa. Talvez seja melhor
que sua correspondência não seja mais publicada, a não ser
que ela se destaque por Outros motivos que não o fato de ser a
única pessoa surda e cega com educação superior no mundo.
CARTAS
A srta. Sullivan começou a ensinar Helen Keller,
quando esta tinha ainda 6 anos, em 3 de
março de 1887. Três meses e meio depois que a primeira palavra
foi soletrada na mão da aluna, esta escreveu a lápis a seguinte carta:
Para sua prima Anna (sra. George T Turner):
[Tuscumbia, Alabama. 17 de junho de 1887]
helen escreve anna george vai dar helen maçã simpson vai
atirar numa ave vai dar helen um doce médico vai dar
remédio mildred mãe vai fazer vestido novo mildred
[sem assinatura]
Vinte dias depois, enquanto Helen Keller estava longe de
casa numa curta visita, ela escreveu à sua mãe. Suas palavras são
quase ilegíveis e a angulosa letra de imprensa inclina-se para todas
as direções.
Para a sra. Kate Adams Keller
[Huntsville, Alabama, 12 de julho de 1887]
Helen vai escrever carta mamãe papai deu remédio helen
mildred vai sentar no balanço mildred beijou helen professora
deu helen pêssego george está doente na cama braço george
está machucado anna deu helen limonada cachorro levantou.
condutor picotou tíquete papai deu helen água no carro
carlotta deu helen flores ama vai comprar helen chapéu
novo bonito helen vai abraçar e beijar mãe helen vai para
casa avó ama helen
adeus
[sem assinatura]
No mês de setembro seguinte, Helen mostra progressos na
construção das frases e conexões de pensamento mais desenvolvidas.
Para as meninas cegas da Instituição Perkins de
South Boston (sul de Boston)
[Tuscumbia, setembro de 1887]
Helen vai escrever meninazinhas cegas uma carta Helen
e professora irão ver meninazinhas cegas Helen e
professora irão de carro a vapor para boston Helen e meninas
cegas vão se divertir meninas cegas podem falar com os
dedos Helen vai ver sr anagnos sr anagnos vai gostar e
beijar Helen Helen vai para escola com meninas cegas
Helen pode ler e contar e soletrar e escrever como meninas
cegas mildred não vai a boston Mildred chora prince
e jumbo vão para boston papai atira em patos com arma
e patos caem na água e jumbo e marnie nadam na água e
trazem patos na boca para papai Helen brinca com cachorros Helen anda a cavalo com professora Helen dá na
mão capim para handee professora dá chicotada em
handee para ir rápido Helen é cega Helen vai colocar
carta no envelope para meninas cegas
adeus
Helen Keller
Algumas semanas depois, seu estilo é quase correto e tem
um movimento mais livre. Ela melhora nas expressões idiomáticas,
embora ainda omita artigos e use erradamente os tempos verbais,
o que é comum nas crianças.
Para as meninas cegas da Instituição Perkins
[Tuscumbia, 24 de outubro de 1887]
queridas meninas cegas
vou escrever uma carta para vocês agradeço a vocês a
bonita escrivaninha escrevi para mãe em Memphis sobre
isso mãe e mildred vinham para casa quarta-feira mãe me
trouxe um bonito vestido novo e chapéu papai foi caçar em
Huntsville ele me trouxe maçãs e doces eu e professora
vamos a boston e vamos ver vocês nancy é minha boneca
ela chora eu nino nancy até ela dormir mildred está doente
médico vai dar remédio para ela ficar bem. Eu e professora
fomos na igreja domingo sr. Jane leu num livro e falou
senhora tocou órgão. Eu dei homem dinheiro na cesta. Eu
vou ser boa menina e professora vai fazer cachos em meu
adorável cabelo. Vou abraçar e beijar meninazinhas cegas sr.
anagnos vai vir me ver.
adeus
Helen Keller
Para o sr. MichaeL Anagnos, diretor da
Instituição Perkins
[Tuscumbia, novembro de 1887]
querido sr. anagnos vou lhe escrever uma carta. Eu e
professora tiramos retratos. professora vai mandar pra voce.
fotógrafo faz retratos. carpinteiro faz casas novas. jardineiro
cava e capina o solo e planta legumes. minha boneca nancy
está dormindo. ela está doente. mildred está bem tio frank
tinha ido caçar cervo, vamos ter caça para café da manhã
quando ele voltar para casa. Eu andei de carrinho de mão e
professora empurrou ele. simpson me deu pipoca e nozes,
prima rosa foi ver a mãe dela. pessoas vão à igreja domingo.
Eu lia em meu livro sobre raposa e caixa. raposa pode
sentar na caixa. Eu gosto de ler meu livro, o senhor gosta de
mim. Eu gosto do senhor.
adeus
Helen Keller
Para o dr. Alexander Graham Bell
[Tuscumbia, novembro de 1887]
Querido sr. Bell.
Estou contente de escrever uma carta para o senhor. Pai
vai mandar um retrato. Eu e Pai e tia fomos ver o senhor
em Washington. Eu brinquei com o seu relógio. Eu gosto
do senhor. Fui a médico em Washington. Ele olhou os meus
olhos. Posso ler história no meu livro. Posso escrever e
soletrar e contar. boa garota. Minha irmã pode andar e correr. A
gente se diverte com Jumbo. Prince não é bom cachorro.
Ele não pode pegar pássaros. Rato matou pombas bebês.
Lamento. Rato não conhece errado. Eu e mamãe e
professora vamos a Boston em junho. Vou ver meninas cegas.
Nancy vai comigo. Ela é uma boa boneca. Pai vai me
comprar lindo relógio novo. Prima Anna me deu uma boneca
bonita. O nome dela é Allie.
Adeus,
Helen Keller
No início do ano seguinte, suas expressões idiomáticas estão
mais seguras. Aparecem mais adjetivos, inclusive os que
expressam cores. Embora não possa ter nenhuma noção sensorial de
cor, ela consegue usar as palavras como usamos a maioria de
nosso vocabulário, intelectualmente, com veracidade, não para
impressionar, mas de verdade. Essa carta é para uma colega da
Instituição Perkins.
Para a srta. Sarah Tomlinson
Tuscumbia, Ala., 2 de jan. de 1888
Querida Sarah
Estou feliz de escrever a você esta manhã. Espero que sr. Anagnos venha me ver logo. Vou a Boston em junho e
vou comprar luvas para meu pai e para James um bonito
colarinho e punhos para Simpson. Vi a srta. Betty e seus
alunos. Eles tinham uma bonita árvore de Natal e com
muitos presentes nela para as criancinhas. Eu ganhei uma caneca
e passarinho e doce. Ganhei muitas coisas bonitas de
Natal. Tia me deu um baú para Nancy e roupas. Fui a festa
com professora e mãe. Dançamos e brincamos e comemos
nozes e doce e bolo e laranjas e me diverti com
meninos e meninas. Sra. Hopkins me mandou um lindo anel,
eu gosto muito dela e de meninas cegas.
Homens e meninos fazem tapetes em fábricas. A lã cresce
nas ovelhas. Homens cortam lã da ovelha com grandes
tosquiadeiras e mandam ela para fábrica. Homens e
mulheres fizeram pano de lã nas fábricas.
Algodão cresce de grandes caules nos campos. Homens e
meninos e meninas e mulheres colheram algodão. Fazemos
fio e vestidos de algodão do algodão. Algodão tem bonitas
flores brancas e vermelhas. Professora rasgava o vestido dela.
Mildred chora. Eu vou cuidar da Nancy Mãe vai me
comprar aventais e vestido novo lindos para levar para Boston.
Fui a Knoxville com pai e tia. Bessie está fraca e pequena. As
galinhas da sra. Thompson mataram as galinhas de Leila. Eva
dormia na minha cama. Eu gosto de meninas boas.
Adeus
Helen Keller
As próximas duas cartas mencionam a visita de Helen em
janeiro a seus parentes em Memphis, Tennessee. Ela foi levada a
uma Bolsa de Valores de algodão. Quando Helen apalpou os
mapas e quadros-negros ela perguntou: "Homens vão para a
escola?". Escreveu no quadro-negro os nomes de todos os
cavalheiros presentes. Em Memphis, visitou um dos grandes vapores
do Mississippi.
Para o dr. Edward Everett Hale
Tuscumbia, Alabama, 15 de fevereiro [1888]
Querido sr. Hale,
Eu estou feliz de escrever para o senhor esta manhã.
Professora me contou sobre amável cavalheiro para quem
vou ler contente história bonita eu leio histórias em meu
livro sobre tigres e leões e ovelhas.
Vou para Boston em junho para ver meninas cegas e
vou visitar o senhor. Fui a Memphis para ver avó e Tia
Nannie. Professora me comprou um vestido novo lindo e
chapéu e aventais. Pequena Natalie é um bebê muito fraco
e pequeno. Pai nos levou para ver o barco a vapor. Era
num rio grande. O barco é como casa. Mildred é um bom
bebê. Adoro brincar com irmãzinha. Nancy não foi uma
boa criança quando fui a Memphis. Ela chorou alto. Eu
não vou mais escrever hoje. Estou cansada.
Adeus
Helen Keller
Para o sr. Michael Anagnos
Tuscumbia, Ala., 24 fev. de 1888
Meu querido sr. Anagnos,
Estou contente de escrever uma carta para o senhor
em braile. Nessa manhã Lucien Thompson me mandou
um lindo buquê de violetas e crocos e junquilhos. Domingo
Adeline Moses me trouxe uma boneca linda. Ela veio de
Nova York. O nome dela é Adeline Keller. Ela pode
fechar os olhos e curvar os braços e sentar e levantar reta.
Ela tem um vestido vermelho bonito. Ela é a irmã de
Nancy e eu sou a mãe delas. Allie é prima delas. Nancy foi
uma criança má quando fui para Memphis ela chorou alto,
eu bati nela com uma bengala.
Mildred alimenta as pequenas galinhas com migalhas.
Eu adoro brincar com irmãzinha.
Professora e eu fomos a Memphis ver tia Nannie e avó.
Louise é tia da filha de Nannie. Professora me comprou um
lindo vestido novo e luvas e meias e colarinhos e avó me fez
uma quente roupa de flanela e tia Nannie me fez aventais.
Senhora me fez um bonito chapéu. Eu fui ver Robert e
sr. Graves e sra. Graves e pequena Natalie e sr. Farris e sr.
Mayo e Mary e todo o mundo. Eu adoro Robert e
professora. Ela não quer que eu escreva mais hoje. Eu estou cansada.
Encontrei caixa de doce no bolso do sr. Graves. Pai
nos levou para ver o barco a vapor ele é como casa. Barco
estava num rio muito largo. Yates arou o terreno hoje para
plantar grama. Mula puxou o arado. Mãe vai fazer uma
horta de legumes. Pai vai plantar melões e vagens e feijão.
Primo Bell vem nos ver sábado. Mãe vai fazer sorvete
para jantar, vamos ter sorvete e bolo para jantar. Lucien
Thompson está doente. Lamento por ele.
Professora e eu fomos passear no pátio e aprendi como
as flores e as árvores crescem. Sol levanta no leste e se põe
no oeste. Sheffield é norte e Tuscumbia é sul. Nós vamos
a Boston em junho. Eu vou brincar com meninas cegas.
Adeus
Helen Keller
O "tio Morde" da próxima carta é o sr. Morrison Heady, de
Normandy, Kentucky, que perdeu a visão e audição quando era
garoto. É o autor de alguns versos louváveis.
Para o sr. Morrison Heady
Tuscumbia, Ala., 1º de março de 1888
Meu querido tio Morrie -
Estou feliz de lhe escrever uma carta, eu amo você e
vou abraçar e beijar você quando eu vir você.
Sr. Anagnos vem me ver na segunda-feira. Eu adoro
correr e pular e saltitar com Robett no sol quente e
brilhante. Eu conheço menina em Lexington Ky. ela se chama
Katherine Robson.
Vou a Boston em junho com mãe e professora, vou
brincar com meninas cegas e sr. Hale vai me mandar bonita
história. Eu leio histórias em meu livro sobre leões e tigres
e ursos.
Mildred não vai a Boston, ela chora. Eu adoro brincar
com irmãzinha, ela é um bebê fraco e pequeno. Eva está
melhor.
Yates matou formigas, formigas picaram Yates. Yates
está cavando no jardim. Sr. Anagnos viu laranjas, elas pareciam
maçãs douradas.
Robert vem me ver domingo quando o sol brilha e
vou brincar com ele. Meu primo Frank mora em Louisville.
Eu vou a Memphis de novo pra ver sr. Farris e sra. Graves
e sr. Mayo e sr. Graves. Natalie é uma boa menina e não
chora e ela vai estar grande e sra. Graves está fazendo
vestidos curtos para ela. Natalie tem um carrinho. Sr. Mayo
está em Duck Hill e trouxe flores cheirosas para casa.
Com muito amor e um beijo
Helen A. Keller
Nesse relato do piquenique obtemos um esclarecedor
vislumbre da habilidade da srta. Sullivan em ensinar sua aluna durante
as horas de lazer. Esse foi um dia em que o vocabulário da criança
cresceu.
Para o sr. Michael Anagnos
Tuscumbia, Ala., 3 de maio de 1888
Querido sr. Anagnos,
Estou contente de escrever para o senhor esta manhã,
porque gosto muito do senhor. Fiquei muito feliz em receber livro bonito e doce bom e duas cartas do senhor. Eu
irei ver você logo e vou fazer muitas perguntas ao senhor
sobre países e o senhor vai adorar boa menina.
Mamãe está me fazendo lindos vestidos novos para
usar em Boston e eu vou aparecer bonita para ver meninas
e meninos e o senhor. Sexta-feira professora e eu fomos a
um piquenique com crianças. Fizemos jogos e jantamos
debaixo das árvores e achamos samambaias e flores do
campo. Tem choupo e cedro e pinheiro e carvalho e
freixo e castanha e bordo. Elas fazem uma sombra agradável
e os passarinhos adoram cantar e saltitar de um lado para
o outro suavemente nas árvores. Coelhos pulam e esquilos
correm e feias cobras se arrastam nos bosques. Gerânios e
rosas jasmins e camélias são flores cultivadas. Ajudo
mamãe e professora regar elas toda noite antes do jantar.
Primo Arthur me fez um balanço no freixo. Tia Eva foi
para Memphis. Tio Frank está aqui. Ele está colhendo morangos
para o jantar. Nancy está doente de novo, dentes novos
deixam ela doente. Adeline está bem e pode ir a Cincinnati
segunda-feira comigo. Tia Ev vai me mandar um boneco,
Harry vai ser irmão de Nancy e Adeline. Irmã pequena é
uma boa menina. Estou cansada agora e quero ir no andar
de baixo. Mando muitos beijos e abraços com carta.
Sua querida criança
Helen Keller
No final de maio, a sra. Keller, Helen e a srta. Sullivan partiram
para Boston. No caminho, passaram alguns dias em Washington,
onde estiveram com o dr. Alexander Graham Bell e visitaram o
presidente Cleveland. A 26 de maio chegaram a Boston e foram
à Instituição Perkins; ali Helen encontrou-se com as meninas cegas
com quem se correspondera no ano anterior.
No início de julho, ela foi para Brewster, Massachusetts, onde
passou o resto do verão. Ali ocorreu seu primeiro encontro com
o mar, sobre o qual tem escrito desde então.
Para a srta. Mary C. Moore
South Boston, Mass., set. 1888
Minha querida srta. Moore
Está muito contente de receber uma bonita carta de sua
querida amiguinha? Eu gosto muito da senhora porque a
senhora é minha amiga. Minha querida irmãzinha está muito
bem agora. Ela gosta de sentar na minha cadeirinha de
balanço e pôr o gatinho dela para dormir. A senhora gostaria
de ver a querida pequena Mildred? Ela é um bebê muito
bonito. Seus olhos são muito grandes e azuis e as faces
macias e redondas e rosadas e o cabelo dela é muito brilhante e
dourado. Ela é muito boa e doce quando não chora alto.
No verão que vem Mildred vai sair no jardim comigo e
colher os grandes morangos doces e então ela vai ficar
muito feliz. Espero que ela não coma demais a deliciosa
fruta pois ia ficar muito doente.
Em algum momento a senhora vai vir ao Alabama e me
visitar? Meu tio James vai me dar um pônei muito manso e
uma bonita charrete e eu vou ficar muito feliz de levar a
senhora e Harry para passear. Espero que Harry não fique
com medo do meu pônei. Acho que meu pai vai me
comprar um bonito irmãozinho algum dia. Eu vou ser muito
carinhosa e paciente com meu novo irmãozinho. Quando
visito muitos países estanhos meu irmão e Mildred vão
ficar com avó porque eles vão ser muito pequenos para
verem muita gente e acho que vão chorar alto no grande
oceano agitado.
Quando o cap. Baker ficar bem ele vai me levar no seu
grande navio para a África. Então eu vou ver leões, tigres
e macacos. Eu vou pegar um leão bebê e um macaco branco
e um urso mansinho para trazer para casa. Passei um tempo
muito agradável em Brewster. Fui tomar banho quase
todos os dias e Carne e Frank e a pequena Helen e eu nos
divertimos. Nós enlameamos e pulamos e andamos na água
funda. Agora não tenho medo de boiar. Harry sabe boiar
e nadar? Fomos a Boston na quinta-feira passada e sr.
Anagnos ficou encantado de me ver e me abraçou e
beijou. As meninas vão voltar para a escola na próxima
quarta-feira.
Por favor pode dizer a Harry para me escrever uma
carta bem comprida logo? Quando a senhorita vier à
Tuscumbia para me ver espero que meu pai tenha muitas
maçãs doces e pêssegos suculentos e boas pêras e uvas
deliciosas e grandes melancias.
Espero que pense em mim e goste de mim porque eu
sou uma boa menina.
Com muito amor e dois beijos
De sua amiguinha
Helen A. Keller
Nesse relato de uma visita a alguns amigos, o pensamento
de Helen é bem o que se esperaria de uma criança comum de
oito anos, a não ser talvez por sua satisfação ingênua com a
audácia dos jovens cavalheiros.
Para a sra. Kate Adams Keller
South Boston, Mass., 24 de set. [1888]
Minha querida mãe,
Acho que a senhora ficará contente de saber tudo
sobre minha visita a West Newton. A professora e eu
passamos um tempo adorável com muitos amigos bondosos.
West Newton não é longe de Boston e fomos para lá
rapidamente de carro a vapor.
A sra. Freeman e Carne e Ethel e Frank e Helen vieram
à estação nos receber numa imensa carruagem. Fiquei
encantada de ver meus queridos amiguinhos e dei abraços e
beijos neles. Então rodamos por muito tempo para ver
todas as coisas bonitas de West Newton. Muitas casas
bonitas e grandes e macios gramados verdes em torno delas
e flores coloridas e fontes. O nome do cavalo era Prince e
era manso e gostava de trotar muito rápido. Quando
voltamos para casa vimos oito coelhos e dois gordos filhotes
de cachorro e um simpático poneizinho branco e dois
gatinhos e um bonito cachorro cacheado chamado Don. O
nome do pônei era Mollie e eu dei uma boa volta na sua
garupa; não tive medo. Espero que meu tio me dê um
poneizinho e uma pequena charrete muito em breve.
Clifton não me beijou porque não gosta de beijar
garotinhas. É tímido. Fico muito contente que Frank e Clarence
e Robbie e Eddie e Charles e George não fossem muito
tímidos. Brinquei com muitas garotas e nos divertimos.
Andei no triciclo de Carde e colhi flores e comi fruta e
pulamos e saltamos e dançamos e fomos andar a cavalo.
Muitas senhoras e cavalheiros vieram nos ver. Lucy e Dora
e Charles nasceram na China. Eu nasci na América e o sr.
Anagnos nasceu na Grécia. Sr. Drew diz que garotinhas na
China não sabem falar com os dedos mas acho que quando
eu for à China vou ensinar a elas. A babá chinesa veio me
ver, ela se chama Asu. Ela me mostrou um pequeno atze
que senhoras muito ricas na China usam porque seus pés
nunca ficam grandes. Ama significa babá. Viemos para casa
de charrete porque era domingo e os carros a vapor não
saem com freqüência no domingo. Condutores e maquinistas
ficam muito cansados e vão para casa descansar. Vi
o pequeno Willie Swan no trem e ele me deu uma pêra
suculenta. Ele tem seis anos. O que eu fazia quando tinha
seis anos? Por favor, pode pedir a papai que venha de
trem encontrar comigo e minha professora? É uma pena
que Eva e Bessie estão doentes. Espero que eu possa ter
uma bela festa meu aniversário, e quero que Carne e Ethel
e Frank e Helen venham ao Alabama para me visitar.
Mildred vai dormir comigo quando eu vier para casa?
Com muito amor e mil beijos.
De sua filhinha querida.
Helen A. Keller
Durante o inverno, a srta. Sullivan e sua aluna trabalharam na
casa de Helen em Tuscumbia e com um bom resultado, pois na
primavera Helen tinha aprendido a escrever com fluência.
Depois de maio de 1889, não encontro quase nenhuma imprecisão
em suas cartas, exceto alguns evidentes escorregões do lápis. Ela
usa as palavras com exatidão e constrói sentenças de um modo
fácil e fluente.
Para o sr. Michael Anagnos
Tuscumbia, Ala., 18 de maio de 1889
Meu querido sr. Anagnos:
O senhor não pode imaginar como fiquei encantada em
receber uma carta sua na noite passada. Lamento que o
senhor vá para tão longe. Vamos sentir muita, muita falta do
senhor. Eu adoraria visitar muitas cidades bonitas com o
senhor. Quando eu estava em Huntsville estive com o dr. Bryson
e ele me disse que tinha estado em Roma, Atenas, Paris e
Londres. Ele subiu as altas montanhas da Suíça e visitou
muitas igrejas belas na Itália e na França e viu muitos castelos
antigos e grandiosos. Espero que o senhor por favor me
escreva de todas as cidades que visitar. Quando for para a
Holanda por favor dê minhas lembranças à adorável
princesa Wilhelmina. Ela é uma garotinha querida e quando
estiver velha o bastante será a rainha da Holanda. Se o
senhor for à Romênia por favor pergunte à boa rainha Elizabeth
por seu irmãozinho inválido e diga a ela que lamento muito
que sua querida garotinha tenha morrido. Eu gostaria de
mandar um beijo para Vittorio, o principezinho de Nápoles, mas
a professora teme que o senhor não vá lembrar de tantos
recados. Quando eu tiver 13 anos vou visitar eles eu mesma.
Eu lhe agradeço muito pela linda história sobre lord
Fauntleroy e minha professora também.
Estou contente por Eva vir ficar comigo este verão.
Vamos passar um tempo divertido juntas. Dê minhas
lembranças carinhosas a Howard e diga a ele para responder
minha carta. Quinta-feira fizemos um piquenique. Estava
muito agradável lá nos bosques sombreados e todos nós
gostamos muito do piquenique.
Mildred está lá fora no pátio brincando e mamãe está
colhendo os morangos deliciosos. Papai e tio Frank estão
no centro. Simpson vem para casa logo. Tiraram retratos
de Mildred e meu quando estávamos em Huntsville. Vou
lhe mandar um.
As rosas andam lindas. Mamãe tem muitas rosas bonitas.
A La France e a Lamarque são as mais perfumadas; mas a
Marechal Neil, Solfaterre,Jacqueminot, Nipheots, Etoile
de Lyon, Papa Gontier, Gabrielle Drevet e a Perle des
Jardines são todas adoráveis.
Por favor diga aos garotos e garotas que mando beijos.
Penso neles todos os dias e gosto muito deles do fundo
do coração. Quando o senhor voltar da Europa espero
que esteja bem e muito feliz por chegar em casa de novo.
Não esqueça de dar meu beijo a srta. Calliope Kehayia e
ao sr. Francis Demetrios Kalopothakes.
Amorosamente, sua amiguinha,
Helen Adams Keller
Para o sr. Wilhiam Wade
South Boston, Mass., 20 de novembro de 1889
Meu querido sr. Wade:
Acabo de receber uma carta de minha mãe dizendo
que a bela filhote de mastim que o senhor me mandou
chegou com segurança a Tuscumbia. Muito obrigada pelo
belo presente. Lamento muito que eu não estivesse em
casa para dar as boas-vindas a ela; mas minha mãe e minha
irmãzinha vão ser muito boas para ela enquanto a dona
estiver longe. Espero que ela não esteja solitária e infeliz,
acho que filhotes podem ter muita saudade de casa, assim
como as meninas. Eu gostaria de pôr nela o nome de
Lioness, como o seu cachorro. Posso? Espero que ela seja
muito fiel - e corajosa também.
Estou estudando em Boston, com minha querida
professora. Aprendo muitas coisas novas e maravilhosas.
Estudo sobre a terra, os animais e gosto extremamente de
aritmética. Aprendo novas palavras também.
"Extremamente" é uma que aprendi ontem. Quando eu vir Lioness
vou dizer a ela muitas coisas que vão fazer ela ficar muito
surpresa. Acho que ela vai rir quando eu lhe contar que ela
é vertebrada, mamífera e quadrúpede, eu vou lamentar muito
contar a ela que ela pertence à ordem dos carnívoros. Eu
estudo francês também. Quando falar francês com Lioness
vou chamar ela de mon beau chien. Por favor diga a Lion que
eu vou tomar bastante conta de Lioness. Vou ficar feliz de
receber uma carta do senhor quando o senhor tiver vontade
de me escrever.
De sua afeiçoada amiguinha,
Helen A. Keller
P S. Eu sou estudante da instituição Perkins para cegos.
Para o dr. Edward Everett Hale
South Boston, 8 de jan., 1890
Meu querido sr. Hale:
As lindas conchas chegaram na noite passada. Eu lhe
agradeço muito por elas. Vou guardar sempre elas e vou
ficar muito feliz de pensar que o senhor as achou naquela
ilha distante, da qual Colombo navegou para descobrir nosso
querido país. Quando eu fizer 11 anos vão ser 400 anos
desde que ele partiu com os três pequenos navios para
cruzar o grande estranho oceano. Ele era muito corajoso. As
garotas ficaram encantadas de ver as adoráveis conchas. Eu
contei a elas tudo que sabia sobre as conchas. Ficou muito
contente de que o senhor possa fazer tantas felizes? Eu fico.
Eu vou ficar muito feliz em ir e lhe ensinar o braile um dia,
se o senhor tiver tempo de aprender, mas acho que o
senhor é ocupado demais. Alguns dias atrás recebi uma caixinha
de violetas inglesas de lady Meath. As flores estavam
murchas mas a bondosa atenção que veio com elas foi tão
perfumada e fresca como violetas que a gente acaba de colher.
Com afeiçoadas lembranças para os priminhos e sra.
Hale e um doce beijo para o senhor,
De sua amiguinha,
Helen A. Keller
Para o dr. Qliver Wendell Holmes
[South Boston, Mass., abril de 1891]
Querido dr. Holmes:
Suas lindas palavras sobre a primavera têm sido como
música para meu coração, nesses claros dias de abril. Adoro
cada palavra de Spring e Spring has come. Acho que o
senhor vai ficar contente de saber que esses poemas me
foram ensinados para que eu usufruísse e amasse a bela
época da primavera, ainda que eu não possa ver as flores
bonitas e frágeis que anunciam sua vinda, ou escutar o
alegre chilrear dos pássaros que voltam para casa. Mas
quando li Spring has come, ah! Eu não sou mais cega, pois
vejo com seus olhos e ouço com seus ouvidos. A doce Mãe
Natureza não pode ter nenhum segredo para mim quando
meu poeta está próximo. Escolhi este papel porque quero
que o raminho de violetas no canto leve ao senhor o meu
afeto agradecido. Quero que o senhor veja o menino Tom,
a criança cega, surda e muda que acaba de ir para o nosso
bonito jardim. Ele está pobre e desamparado e solitário
agora, mas antes de abril que vem a instrução terá levado
luz e alegria para a vida de Tommy. Se o senhor vier, vai
querer pedir às pessoas boas de Boston para ajudar a
iluminar toda a vida de Tommy. Sua afeiçoada amiga,
Helen Keller
Em maio de 1892, Helen deu um chá para ajudar o jardim-
de-infância para os cegos. Foi sua própria idéia, e foi realizado na
casa da sra. Mahlon D. Spaulding, irmã do sr. John P. Spaulding, [Reproduzida com permissão da Century Co.]
uma das mais bondosas e generosas amigas de Helen. O chá
trouxe mais de dois mil dólares para as crianças cegas.
Para a srta. Caroline Derby
South Boston, 9 de maio de 1892
Minha querida srta. Carne:
Fiquei muito contente de receber sua amável carta.
Preciso dizer que fiquei mais do que encantada de saber que a
senhorita está realmente interessada no "chá"? É claro que
não podemos desistir. Em breve vou partir para longe, para
o meu próprio lar, no ensolarado sul, e sempre ficarei feliz
em pensar que a última coisa que meus queridos amigos em
Boston fizeram para me agradar foi ajudar a deixar boa e
feliz a vida de muitas crianças sem visão. Sei que gente
bondosa não pode deixar de sentir uma terna solidariedade
pelos pequeninos que não podem ver a bela luz, ou
qualquer das coisas maravilhosas que dão prazer a eles; e me
parece que a amorosa solidariedade deve se expressar em
atos de bondade; e quando os amigos das desamparadas
crianças cegas entendem que estamos trabalhando pela
felicidade delas, elas virão e farão de nosso "chá" um sucesso
e tenho certeza de que serei a garota mais feliz do mundo.
Por favor avise o bispo Brooks de nossos planos, para que
ele possa dar um jeito de estar conosco. Fico contente de
que a srta. Eleanor esteja interessada. Por favor mande a ela
o meu abraço. Vou ver a senhorita amanhã e então
podemos fazer o resto de nossos planos. Por favor dê um beijo
na sua querida tia da parte de minha professora e minha e
diga a ela que gostamos muito de nossa visitinha.
Afetuosamente sua,
Helen Keller
No final de junho, a srta. Sullivan e Helen foram para casa
em Tuscumbia.
Para a srta. Caroline Derby
Tuscumbia, Alabama, 9 de julho de 1892
Minha querida Carne
Considere uma positiva prova de meu carinho por você
que eu lhe escreva hoje. A semana inteira tem sido "gelada,
escura e árida" em Tuscumbia e devo confessar que a chuva
contínua e o tempo feio me enchem de pensamentos
sombrios e torna quase impossível escrever cartas, ou ter
qualquer ocupação agradável. Apesar disso preciso lhe
dizer que estamos vivas, que chegamos em casa em segurança,
que falamos de você todos os dias e adoramos suas
interessantes cartas. Fiz uma bela visita a Hulton. Tudo estava
fresco e primaveril e ficamos ao ar livre o dia inteiro.
Chegamos até a tomar o café da manhã na varanda. Às vezes
sentamos na rede e a professora lê para mim. Andei a
cavalo quase todas as noites e certa vez galopei por oito
quilômetros num galope rápido. Ah, foi muito divertido!
Você gosta de andar a cavalo? Tenho uma bonita charretezinha
agora e se alguma hora parar de chover a professora
e eu vamos dar um passeio todas as noites. E tenho outro
belo mastim - o maior que já vi - e ele vai conosco para
nos proteger. Seu nome é Eumer. Nome esquisito, não é?
Acho que é saxão. Esperamos ir para as montanhas na
semana que vem. Meu irmãozinho Phillips não está bem e
achamos que o ar puro da montanha vai fazer bem a ele.
Mildred é uma boa irmãzinha e tenho certeza de que você
a adoraria. Agradeço-lhe muito por sua fotografia. Gosto
de ter os retratos dos meus amigos mesmo que não possa
vê-los. Achei muita graça da idéia de você escrever. Eu não
escrevo numa tabuleta de braile, como você imagina, mas
numa tábua com ranhuras como a peça que eu incluo aqui.
Você não saberia ler braile; pois é escrito em pontos, nada
parecido com as cartas comuns. Por favor, dê minhas
lembranças à srta. Derby e diga a ela que dê muitos beijos de
minha parte na Ruthinha. Qual foi o livro que você me
mandou de aniversário? Recebi vários e não sei qual o que
veio de você. Ganhei um presente que me agradou
especialmente. Foi uma linda capa feita em croché para mim,
por um cavalheiro de 75 anos. E cada ponto, escreveu ele,
representa uma espécie de voto pela minha saúde e felicidade.
Diga a seus priminhos que acho melhor eles ficarem
em cima do muro comigo até depois da eleição; pois há
tantos partidos e candidatos que duvido que políticos tão
jovens sejam uma escolha sábia. Por favor, dê lembranças
a Rosy quando você escrever e creia-me
Sua afeiçoada amiga
Helen Keller
PS. O que achou dessa carta datilografada? H.K
Para a sra. Glover Cleveland
Minha querida sra. Cleveland,
Estou lhe escrevendo uma cartinha nessa linda manhã
porque gosto muito da senhora e da querida Rutbinha e
também porque quero lhe agradecer pela carinhosa
mensagem que me enviou pela srta. Derby. Fico muito, muito
contente que uma pessoa tão amável e bonita goste de mim.
Gosto da senhora há muito tempo, mas achava que a
senhora nunca tinha ouvido falar de mim até a chegada de
sua carinhosa mensagem. Por favor beije sua filhinha por
mim e diga a ela que tenho um irmãozinho de quase 16
meses. Ele se chama Phillips Brooks. Dei a ele o nome de
meu querido amigo Phillips Brooks. Com esta carta lhe
envio um bonito livro que minha professora acha que pode
lhe interessar e meu retrato. Por favor aceite-os com o amor
e os bons votos de sua amiga,
Helen Keller
Tuscumbia, Alabama.
Quatro de novembro [1892]
Até aqui as cartas foram reproduzidas integralmente; a partir
deste ponto há trechos omitidos, sendo as omissões indicadas.
Em março, Helen e a srta. Sullivan foram para o Norte e
passaram alguns meses viajando e visitando amigos.
Ao lermos a carta seguinte sobre Niágara, devemos lembrar
que a srta. Keller conhece distância e forma e que o tamanho do
Niágara foi incluído em sua experiência depois que ela explorou
as cataratas, atravessou a ponte e desceu no elevador. Especialmente
importantes são os detalhes sobre sua sensação com o
jorro da água ao colocar a mão na janela. Dr. Bell deu a ela uma
almofada de sentar, que ela segurou junto a si para aumentar as
vibrações.
Para a sra. Kate Adams Keller
South Boston, 13 de abril de 1893
(...) A Professora, sra. Pratt e eu resolvemos de repente
fazer uma viagem com o querido dr. Bell (...) Sr. Westervelt,
um senhor que meu pai conheceu em Washington, tem uma
escola para surdos em Rochester. Fomos lá primeiro (...)
O sr. Westervelt nos ofereceu uma recepção certa tarde.
Muitas pessoas apareceram. Algumas fizeram perguntas
esquisitas. Uma senhora se mostrou surpresa de que eu
gostasse de flores, já que eu não podia ver as lindas cores
delas e quando lhe afirmei que gostava delas, a senhora
disse: "Sem dúvida você sente as cores com os dedos".
Mas é claro que não é só pelas cores vivas que gostamos
das flores (...) Um cavalheiro me perguntou o que significava
beleza para a minha mente. Devo confessar que no
início fiquei intrigada, mas um minuto depois respondi que
a beleza era uma forma de bondade, e ele foi embora.
Quando a recepção acabou, voltamos para o hotel e a
professora dormiu profundamente, sem noção da surpresa
que a esperava. O sr. Bell e eu planejamos a coisa juntos e
ele fez todos os arranjos antes de contarmos qualquer
coisa à professora. Essa foi a surpresa - eu ia ter o
prazer de levar minha querida professora para ver as
cataratas do Niágara! (...)
O hotel era tão perto do rio que eu podia sentir o seu
jorro quando passava colocando minha mão na janela. Na
manhã seguinte o sol brilhava quente e levantamos rapidamente
pois estávamos com uma agradável expectativa (...)
A senhora não pode imaginar como me senti na presença
do Niágara até ter as mesmas sensações misteriosas. Eu mal
podia perceber que era água o que eu sentia jorrando e caindo
com fúria impetuosa a meus pés. Parecia alguma coisa
viva correndo para um destino terrível. Gostaria de poder
descrever a catarata como é, sua beleza, a terrível grandeza e
o temível e irresistível mergulho de suas águas sobre a borda
do precipício. A pessoa se sente desamparada e esmagada
na presença de uma força tão vasta. Tive a mesma sensação
uma vez, antes, quando me deparei pela primeira vez com o
grandioso oceano e senti as ondas batendo contra a praia.
Acho que a senhora sente isso também, quando contempla
as estrelas na quietude da noite, não? (...) Descemos quase 40
metros num elevador de onde se podia ver os violentos
redemoinhos e vórtices na profunda garganta abaixo das
cataratas. A uns três quilômetros delas há uma maravilhosa
ponte suspensa. É lançada através da garganta a uma altura
de 80 metros acima da água e sustentada em cada margem
por torres de rocha sólida, que ficam a 240 metros uma da
outra. Quando atravessamos para o lado canadense eu gritei:
"Deus salve a Rainha!". A professora disse que eu era uma
traidorazinha, mas acho que não. Eu fazia apenas o que os
canadenses fazem, enquanto estava no país deles, e além disso,
tenho um grande respeito pela boa rainha da Inglaterra (...)
A senhora vai ficar contente, mãe querida, de saber que
uma senhora bondosa, srta. Hooker, está se esforçando
para melhorar a minha fala. Ah, eu espero e rezo para
poder falar bem algum dia! (...)
O sr. Munsell passou a noite do último domingo conosco.
Como a senhora teria gostado de ouvi-lo contando sobre
Veneza! Com suas belas descrições, é como se estivéssemos
sentados à sombra de San Marco, sonhando, ou navegando
no canal iluminado pela lua (...) espero que quando eu visitar
Veneza, como certamente farei um dia, sr. Munsell vá comigo.
Esse é o meu sonho dourado. Sabe, nenhum de meus amigos
descreve coisas de um modo tão vivo e lindo como ele (...)
Helen descreve sua visita à Feira Mundial numa carta ao sr.
John E Spaulding, que foi publicada na St. Nicholas e é muito
parecida com a carta que se segue. Numa nota introdutória que a srta. Sullivan escreveu para Sr. Nicholas, ela conta que lhe diziam
freqüentemente: "Helen vê mais com os dedos do que nós com
os olhos". O presidente da Exposição deu a ela esta carta:
Para os chefes dos departamentos e funcionários
encarregados dos prédios e exposições
Cavalheiros,
A portadora, srta. Helen Keller, acompanhada da srta.
Sullivan, deseja fazer uma inspeção completa em todos os
Departamentos da Exposição. Ela é cega e surda mas pode
conversar e me foi apresentada como tendo uma
maravilhosa capacidade de entender os objetos que visita,
possuindo um alto grau de inteligência e cultura muito além de
sua idade. Por favor, facilitem sua visita a todas as dependências
para examinar as exposições nos diversos
Departamentos e tenham com ela todas as cortesias possíveis.
Agradecendo-lhes de antemão, respeitosa e sinceramente,
(assinado) H. N. Higinbotham, presidente
Para a srta. Caroline Derby
Hulton, Pen., 17 de agosto de 1893
(...) Todo mundo na Feira foi muito amável comigo (...)
Quase todos os expositores pareciam ter enorme boa
vontade em me deixar tocar as coisas mais delicadas e
foram muito simpáticos para me explicarem tudo. Um
cavalheiro francês, cujo nome não consigo lembrar, me
mostrou os grandes bronzes franceses. Acho que eles me
deram mais prazer do que qualquer outra coisa na Feira:
eram tão reais e maravilhosos ao meu toque. O próprio
dr. Bell foi conosco ao edifício da eletricidade e nos
mostrou alguns dos telefones históricos. Vi aquele em que
o imperador D. Pedro escutou as palavras, "Ser, ou não
ser" no Centenário. O dr. Gillett, de Illinois, nos levou aos
edifícios das Artes Liberais e o da Mulher. No primeiro
visitei a exposição da Tiffany's e segurei o belo diamante
Tiffany, avaliado em 100 mil dólares, e toquei muitas
outras coisas raras e caras. Sentei na poltrona do rei Ludwig
e me senti uma rainha quando o dr. Gillett observou que
eu tinha muitos súditos leais. No edifício da Mulher,
encontramos a princesa Maria Schaovskoy da Rússia e uma
bela senhora síria. Gostei muito das duas. Fui ao
departamento japonês com o prof. Morse, que é um
palestrante bem conhecido. Nunca tinha percebido que povo
maravilhoso é o japonês até que vi sua exposição bem
interessante, O Japão deve ser de fato um paraíso para
crianças, a se julgar pelo grande número de brinquedos
manufaturados lá. Os instrumentos musicais japoneses, de
aparência esquisita, e suas belas obras de arte eram
interessantes. Os livros japoneses são muito esquisitos. Há 47
letras no alfabeto deles. O prof. Morse sabe muito sobre
o Japão e é muito amável e sábio. Ele me convidou para
visitar seu museu em Saiem da próxima vez que eu for a
Boston. Mais do que qualquer coisa na Feira, acho que
gostei mais dos barcos a vela na lagoa tranqüila e das
cenas adoráveis que meus amigos descreveram para mim.
Uma vez, enquanto estávamos na água, o sol afundou-se
no horizonte e lançou uma luz rosada e suave sobre a
White City, fazendo-a parecer mais do que nunca a Terra
dos Sonhos.
Claro, visitei o Midway Plaisance. Foi um lugar fascinante
e perturbador. Entrei nas ruas do Cairo e andei de
camelo. Foi uma ótima diversão. Também andamos na
roda-gigante, na ferrovia do gelo e viajamos num vapor
de carga (...)
Na primavera de 1893, presidido pela sra. Keller, foi
inaugurado um clube em Tuscumbia para estabelecer ali uma biblioteca
pública. A srta. Keller diz:
"Escrevi para meus amigos sobre a obra e consegui a
simpatia deles. Várias centenas de livros, inclusive alguns ótimos,
foram-me enviados num curto espaço de tempo, assim como
dinheiro e incentivos. Essa generosa ajuda estimulou as senhoras,
que desde então continuam a colecionar e comprar livros e agora
já têm uma biblioteca pública muito respeitável na cidade".
Para a sra. Charles E. Inches
Hulton, Pen., 21 de outubro de 1893
(...) Passamos setembro em Tuscumbia (...) e ficamos
todos muito felizes juntos (...) Nosso quieto lar na montanha
estava especialmente atraente e repousante depois da
excitação e fadiga de nossa visita à Feira Mundial. Usufruímos
a beleza e a solidão mais do que nunca.
E agora estamos em Hulton, Pensilvânia, de novo, onde
vou estudar neste inverno com um professor particular
ajudado por minha querida professora. Estudo aritmética,
latim e literatura. Gosto muito de minhas aulas. É tão agradável
aprender sobre novas coisas. Cada dia descubro
como sei pouco, mas não me sinto desanimada já que Deus
me deu uma eternidade para aprender mais. Na literatura
estou estudando a poesia de Longfellow. Sei muitas de cor,
pois gostava delas muito antes de distinguir uma metáfora
de uma sinédoque. Eu dizia que não gostava muito de
aritmética, mas agora mudei de idéia. Vejo como é um
estudo bom e útil, embora deva confessar que minha mente
se afasta dela às vezes! pois por mais útil que seja a aritmética,
não é tão interessante quanto um belo poema ou uma
história encantadora. Mas minha nossa, como o tempo
voa. Só me sobram alguns momentos para responder suas
perguntas sobre a Biblioteca Pública Helen Keller.
1. Acho que há umas três mil pessoas em Tuscumbia,
Ala., e talvez metade delas são negras. 2. No momento
presente, não há nenhuma biblioteca de qualquer tipo na
cidade. Foi por isso que pensei em começar uma. Minha
mãe e várias outras senhoras amigas disseram que me
ajudariam e formaram um clube cujo objetivo é
trabalhar para o estabelecimento de uma biblioteca pública
grátis em Tuscumbia. Elas têm agora cerca de 100 livros
e uns 55 dólares em dinheiro, e um bondoso cavalheiro
nos deu um terreno para construir o prédio da biblioteca.
Mas enquanto isso o clube alugou uma salinha numa
parte central da cidade e os livros que já temos estão livres
para todos. 3.Só alguns de meus amigos em Boston sabem
da biblioteca. Eu não gostei de incomodá-los quando
tentava conseguir dinheiro para o pobre Tommy, mas é
claro que era mais importante que ele fosse instruído do
que meu povo tivesse livros para ler. Não sei que livros
temos, mas deve ser uma miscelânea (acho que a palavra éessa)(...)
PS. Minha professora acha que seria mais formal dizer que
uma lista dos contribuintes para o fundo do prédio será
guardada e publicada no jornal de meu pai, o North
Alabamian. H.K.
Para o dr. Edward Everett Hate
Hulton,
Pensilvãnia, 14 de janeiro [de 1894]
Meu Querido Primo:
Pensei em lhe escrever muito antes em resposta à sua
amável carta que me deixou tão contente e lhe agradeço
pelo lindo livrinho que mandou; mas tenho estado
ocupada desde o inicio do Ano Novo. A publicação de minha
historinha no Youth's Companion me trouxe uma grande
quantidade de cartas - na semana passada recebi 61! -, e
além de responder a algumas dessas cartas, tenho muitas
aulas, entre elas de aritmética e latim e, você sabe, César
ainda é César, imperioso e tirânico, e se uma menina quer
entender um homem tão ilustre e as guerras e conquistas
sobre as quais ele conta na bela língua latina, ela precisa
estudar e pensar muito, e estudo e pensamento tomam tempo.
Vou guardar para sempre com carinho o livrinho, não
apenas por seu próprio valor; mas por causa da associação
dele com você. É encantador pensar em você como o
doador de um de seus livros no qual, tenho certeza, você trabalhou
sua imaginação e emoções, e lhe agradeço muito por
lembrar de mim de um modo tão bonito (...)
Em fevereiro, Helen e a srta. Sullivan voltaram a Tuscumbia,
onde passaram o resto da primavera lendo e estudando. No
verão, assistiram ao encontro em Chautauqua da American
Association for the Promotion of the Teaching of Speech to the
Deaf onde a srta. Sullivan leu um trabalho sobre a educação de
Helen Keller.
No outono, Helen e a srta. Sullivan entraram para a Wright-
Humason School em Nova York, especializada em leitura labial e
cultivo da voz.
Para a srta. Caroline Derby
The Wright-Humason School
Nova York, 15 de março de 1895
(...) Penso que melhorei um pouco em leitura labial,
embora ainda ache muito difícil ler uma fala rápida; mas
tenho certeza de que algum dia vou conseguir, se
perseverar. O dr. Humason ainda está tentando melhorar
minha fala. Ah, Carne, como eu gostaria de falar como
as outras pessoas! Eu trabalharia de boa vontade dia e
noite se isso fosse possível. Pense que alegria seria para
todos os meus amigos me ouvirem falar naturalmente!!
Fico pensando por que é tão difícil para uma criança surda
aprender a falar quando é tão fácil para outras pessoas;
mas tenho certeza de que falarei perfeitamente algum dia,
se for paciente (...)
Apesar de estar tão ocupada, tenho achado tempo
para ler muito (...) Ultimamente li Guilherme Tell, de Schiller
e The lost vestal (Vestal perdida) (...) Agora estou lendo
Nathan the wise (Nathan, o sábio), de Lessing e ReiArthur,
da srta. Mulock.
Você sabe que nossos bondosos professores nos
levam para ver tudo que acham que vai nos interessar e
aprendemos muito desse modo maravilhoso. No aniversário
de George Washington fomos todos à Exposição
de Cães, e embora houvesse uma grande multidão no
Madison Square Garden e apesar da perturbação causada
pela variedade de sons feitos pela orquestra de cachorros,
muito confusa para os que podiam ouvir, usufruímos bem
a tarde. Entre os cachorros que receberam mais atenção
estavam os buldogues. Eles se permitiam liberdades
espantosas quando os acariciávamos, quase se empilhando
nos braços das pessoas e se adiantando sem cerimônia para
beijos, aparentemente sem notar a impropriedade de seu
comportamento. Minha nossa, que animaizinhos pouco
educados! Mas eles são de gênio tão bom e amigável que
não se pode deixar de gostar deles.
Dr. Humason, a Professora e eu deixamos os outros na
Exposição e fomos a uma recepção dada pelo Metropolitan
Club (...) Ele é chamado às vezes de Clube dos Milionários.
O edifício é magnífico, construído em mármore branco;
os aposentos são grandes e esplendidamente mobiliados;
mas devo confessar que tanto esplendor é opressivo para
mim; e não invejei nem um pouco toda a felicidade que
seus deslumbrantes ambientes supostamente trazem
àquelas pessoas (...)
Para o dr. Edward Everett Hale
Cambridge, 10 de novembro de 1901
Minha professora e eu esperamos estar presentes no
encontro de amanhã em comemoração ao centésimo
aniversário de nascimento do dr. Howe; mas tenho muitas
dúvidas se teremos uma oportunidade de falar com o
senhor; portanto escrevo-lhe agora para dizer o quanto
estou encantada de que vá falar na reunião, pois sinto que o
senhor, melhor do que qualquer outro que conheço, expressará
a profunda gratidão daqueles que devem sua educação,
oportunidades e felicidade àquele que abriu os olhos
dos cegos e deu aos surdos a linguagem labial.
Sentada aqui em meu escritório, rodeada por meus
livros, usufruindo a doce e íntima companhia dos grandes e
sábios, tento imaginar o que minha vida poderia ter sido, se
o dr. Howe tivesse falhado na grande tarefa que Deus lhe
deu. Se ele não tivesse assumido a responsabilidade da
instrução de Laura Bridgman e a tirado do poço de Aqueronte,
devolvendo-lhe sua herança humana, seria eu uma
segundanista do Radcliffe College hoje? Quem pode
dizer? Mas é ocioso especular sobre algo com relação à grande
realização do dr. Howe.
Acho que somente os que escaparam da morte-em-vida,
da qual Laura Bridgman foi resgatada, podem perceber
como uma alma fica isolada, amortalhada na escuridão
e confinada por sua própria impotência à ausência de
pensamento, fé ou esperança. As palavras são impotentes
para descrever a desolação dessa prisão, ou a alegria da
alma libertada de seu cativeiro. Quando comparamos as
necessidades e o desamparo dos cegos antes que o dr.
Howe começasse seu trabalho e a atual utilidade e
independência deles, percebemos que grandes coisas foram
feitas em nosso meio. E se as condições físicas tivessem
construído altos muros em torno de nós? Graças a nosso
amigo e benfeitor, nosso mundo é ascendente; a extensão,
a amplitude e o alcance dos céus são nossos!
É um prazer pensar que os nobres feitos do dr. Howe
receberão o devido tributo de afeição e gratidão, na cidade
que foi o cenário de seus grandes esforços e esplêndidas
vitórias para a humanidade.
Com amáveis cumprimentos, nos quais minha
professora se junta a mim, sou,
com todo o afeto, sua amiga,
Helen Keller
Para o hon. George Frisbie Hoar
Cambridge, Mass., 25 de novembro de 1901
Meu caro senador Hoar:
Fiquei contente por ter gostado de minha carta sobre o dr. Howe. Foi escrita de coração e talvez por isso tenha
encontrado uma resposta solidária em outros corações. Vou
pedir ao dr. Hale para me emprestar a carta, para que eu
possa fazer uma cópia para o senhor.
Sabe, eu uso uma máquina datilográfica - é o meu
braço direito, como se diz. Sem ela não vejo como poderia
ter entrado para a faculdade. Escrevo nela todos os meus
ensaios e exames, até grego. Na verdade, só tem uma
desvantagem, provavelmente encarada como uma vantagem
pelos professores: é que os meus equívocos podem ser
detectados numa olhadela, pois não há chance de escondê-los
numa letra ilegível.
Sei que o senhor se divertirá quando eu lhe disser que
estou profundamente interessada em política. Gosto que
os jornais sejam udos para mim e tento entender as
grandes questões do dia; mas tenho medo que meu
conhecimento seja muito instável, pois mudo minhas
opiniões com cada novo livro que leio. Eu pensava que quando
estudasse governo civil e economia, todas as minhas dificuldades
e perplexidades iam florescer em belas certezas, mas
ai de mim, vejo que há mais joio do que trigo nesses férteis
campos de conhecimento (...)
TRECHO DE "THE WORLD I LIVE IN"
XI. ANTES DO ALVORECER DA ALMA
Antes da vinda de minha professora, eu não sabia quem
eu era. Vivia num não-mundo. Não posso esperar descrever
adequadamente aquele tempo inconsciente, embora consciente,
do vazio. Eu não tinha noção de saber coisa alguma, ou que
vivia, agia ou desejava. Não tinha vontade nem intelecto. Era
arrastada para objetos e atos por um certo ímpeto cego natural.
Tinha uma mente que me fazia sentir raiva, satisfação, desejo.
Esses dois fatos fizeram os que me cercavam supor que eu
tinha vontade e pensamento. Consigo me lembrar de tudo isso
não porque soubesse que era assim, mas porque tenho
memória tátil. Ela me lembra que jamais contraí a testa no ato de
pensar. Nunca considerei nada de antemão, ou o escolhi. Recordo
também, em termos de tato, o fato de que nunca num
sobressalto de corpo ou numa batida do coração senti que
amava ou me importava com alguma coisa. À época, minha vida
interior era um vazio sem passado, presente ou futuro, sem
esperança ou expectativa, sem nenhuma ocorrência
surpreendente, alegria ou fé.
It was not night - it was not day,
But vacancy absorbing space,
And fixedness, without a place;
There were no stars - no earth - no time -
No check - no change - no good - no crime.
[The prisoner of Chillon (1816), por
George Gordon, Lord Byron.]
[Não era noite - nem dia/(. ..)/mas o vácuo absorvendo o espaço,/e
fixidez sem lugar;/nenhuma estrela - nem terra - nem tempo que redime
-/ou parada-ou mudança - ou bem - ou crime. (Tradução livre. N da T.)]
Meu ser adormecido não tinha nenhuma idéia de Deus ou
imortalidade, nenhum temor da morte.
Recordo, também através do toque, que eu tinha poder de
associação. Sentia tatilmente dissonâncias como a batida de um
pé, a abertura de uma janela ou o seu fechar, o bater de uma
porta. Depois de sentir repetidamente o cheiro da chuva e o
desconforto da umidade, eu agia como os que estavam em torno de
mim: corria para fechar a janela. Mas isso não era pensamento
em qualquer sentido. Era o mesmo tipo de associação que faz o
animal abrigar-se da chuva. Pelo mesmo instinto de imitação, eu
dobrava as roupas que vinham da lavanderia e separava as
minhas, alimentava os perus, costurava olhos de conta no rosto de
minha boneca e fazia muitas outras coisas das quais eu tinha
lembrança tátil. Quando queria algo de que gostava - sorvete, por
exemplo, de que eu gostava muito -, vinha-me um delicioso
paladar na língua (que, por falar nisso, não o tenho agora) e sentia
em minha mão o girar da sorveteira. Eu fazia o sinal e mamãe
sabia que eu queria sorvete. Eu "pensava" e desejava com os
dedos. Se eu tivesse feito um homem, certamente poria seu cérebro e
alma nas pontas dos dedos. De reminiscências como essas concluí
que é a abertura de duas faculdades, a liberdade de vontade, ou
escolha, e a racionalidade, ou o poder de pensar de uma coisa a
outra, que faz que seja possível nos tornarmos primeiro criança,
depois adulto.
Já que eu não tinha nenhum poder de pensamento, não
comparava um estado mental a outro. Portanto, não tinha consciência
de qualquer mudança ou processo ocorrendo no cérebro quando
a srta. Sullivan começou a me ensinar. Eu apenas me encantava
por obter com mais facilidade o que queria por meio dos
movimentos dos dedos ensinados por ela. Eu pensava apenas em objetos,
e apenas nos objetos que queria. Era o girar da sorveteira
numa escala maior. Quando aprendi o significado de "eu" e "mim"
e descobri que era algo, comecei a pensar. Então a consciência
começou a existir para mim. Portanto, não foi o sentido do tato
que me trouxe conhecimento. Foi o despertar de minha alma o
primeiro a dar valor a meus sentidos, ao conhecimento de
objetos, nomes, qualidades e atributos, O pensamento me tornou
consciente do amor, da alegria e de todas as emoções. Eu estava ansiosa
para saber, depois para entender, posteriormente para refletir no
que eu sabia e entendia, e o ímpeto cego, que tinha antes me
impelido de um lado para outro ao sabor das sensações,
desapareceu para sempre.
Não consigo evocar com mais clareza do que qualquer outra
pessoa as mudanças graduais e sutis das primeiras impressões
para as idéias abstratas. Mas sei que minhas idéias fisicas, isto é, as
idéias derivadas dos objetos materiais, me aparecem primeiro
em idéias semelhantes às do toque. Instantaneamente elas se transformam
em significados intelectuais. Posteriormente o significado
encontra expressão no que é chamado "discurso interior".
Quando eu era criança, meu discurso interior era um soletramento
interior. Embora eu seja ainda agora muitas vezes surpreendida
soletrando para mim mesma nos dedos, também falo comigo
mesma com os lábios, e é verdade que, assim que aprendi a falar,
minha mente descartou os símbolos dos dedos e começou a
articular. Entretanto, quando tento lembrar o que alguém me
disse, tenho consciência de uma mão soletrando na minha.
Perguntam-me com freqüência quais foram minhas primeiras
impressões do mundo em que me descobri. Mas quem chega a
pensar em suas primeiras impressões sabe o enigma que isso é.
Nossas impressões crescem e mudam sem ser notadas, de modo
que o que achamos que pensamos quando crianças pode ser muito
diferente do que realmente experimentávamos em nossa infância.
Só sei que após o começo de minha educação, o mundo que
estava dentro do meu alcance ficou todo vivo. Eu soletrava para
meus blocos de armar e meus cachorros. Eu me solidarizava
com as plantas quando as flores eram colhidas, porque achava
que isso as feria e que elas se entristeciam por seu florescer perdido.
Passaram-se anos antes de me fazerem acreditar que meus cachorros
não compreendiam o que eu dizia, e eu sempre lhes pedia desculpas
quando esbarrava ou tropeçava neles.
À medida que minhas experiências se ampliavam e se
aprofundavam, os sentimentos indeterminados e poéticos da infância
começaram a se fixar em pensamentos definidos. A natureza -
o mundo que eu podia tocar - era abraçada e preenchida
comigo mesma. Estou inclinada a acreditar nesses filósofos que
declaram que não conhecemos nada de nossos sentimentos e idéias.
Com um pequeno raciocínio engenhoso pode-se ver no mundo
material simplesmente um espelho, uma imagem de sensações
mentais permanentes. Em cada esfera do autoconhecimento está
a condição e o limite de nossa consciência. Por essa razão, talvez,
é que muitas pessoas conhecem tão pouco do que está além de
seu curto espectro de experiência. Elas olham para dentro de si
- e não encontram nada! Por isso concluem que não há nada
fora delas também.
Seja como for, mais tarde passei a procurar uma imagem de
minhas emoções e sensações nos outros. Tive de aprender os
sinais externos de sentimentos internos. O sobressalto do medo, a
tensão suprimida e controlada da dor, a pulsação de músculos
felizes em outros, tiveram de ser percebidos e comparados com
minhas próprias experiências antes que eu pudesse traçá-las até a
alma intangível do outro. Tateando incerta, finalmente encontrei
minha identidade, e após ver meus pensamentos e sentimentos
repetidos nos outros, gradualmente construí meu mundo de
homens e de Deus. Enquanto lia e estudava, descobri que isso é o
que o resto da raça tem feito. O homem olha para dentro de si
mesmo e, com o tempo, encontra a medida e o significado do
universo.
TRECHO DE "OUT OF THE DARK"
A MULHER MODERNA
1. A mulher instruída
O que tentarei dizer nas páginas seguintes tem a ver com uma
resposta em conjunto a cartas de moças que pedem meu conselho
sobre a educação pela qual deveriam lutar e o uso da educação que
têm. O espírito prevalecente dessas correspondentes é um ávido
desejo de serem úteis. Suas cartas são ao mesmo tempo deliciosas e
chocantes; elas me enchem de uma mistura de orgulho e timidez.
Revelam uma imensa vontade de servir, um incalculável estoque de
poderio-de-alma, como um reservatório de montanha, a ser liberado
em irresistíveis enchentes de retidão, capaz também de uma
devastadora direção errada. Todo esse poder me pergunta nas
seguintes palavras: "Diga-nos o que fazer".
Meu senso de responsabilidade orienta-se pela consideração
de que as pessoas não aceitam o conselho de outro, mesmo quando
é bom e o buscam. As ações humanas são moldadas por mil
forças mais fortes do que a sabedoria escrita do guia mais sábio
que já existiu. O melhor que os profetas da raça descobriram há
séculos não tem, parece, se tornado um motivo controlador
mesmo nas vidas de seus seguidores. Se o conselho das eras não
é considerado, um ser moderno comum não pode esperar que
suas palavras tenham influência definitiva. Entretanto, um pedido
sincero exige uma anuência sincera. Uma vez que minhas
correspondentes pensam que meu conselho lhes pode ser útil, sugerirei
alguns problemas para estudarem, pois elas podem ser mais
adequadas ao trabalho humanitário.
Como sou conhecida pelo meu interesse em melhorar a
condição dos cegos, muitas de minhas correspondentes, cujo coração
se comove ante a idéia da cegueira, se oferecem para ajudar seus
irmãos na escuridão e me perguntam por onde começar. Ultimamente
descobri que minhas cartas, em resposta às das que desejam
ajudar os cegos, contêm um parágrafo sobre os sem visão e a
seguir passam para outras coisas. Tenho cogitado às vezes se
minhas amigas não ficavam mais intrigadas do que ajudadas
por minhas respostas. Uma turma de moças da faculdade de uma
instituição perto de grandes cidades fabris e minas de carvão me
pediu para iniciá-las em esforços filantrópicos para os sem visão.
Eu lhes disse para estudarem a vida que se enxameia nas suas próprias
portas - os trabalhadores das fábricas e os mineiros. Cogito
se entenderam a minha resposta. Tentei dizer-lhes o que tem sido
dito muitas vezes, que o ser humano mais bem instruído é aquele
que entende mais sobre a vida em que está situado; que o cego, por
mais pungente que seu sofrimento apele para nossos corações, não
é uma pessoa isolada, separada, cujo problema possa ser resolvido
por si mesmo, e sim um sintoma do desajuste social.
Isso parece desalentadoramente vago e cósmico e pode ter
deixado perplexas as moças para quem escrevi. Elas me perguntaram como ajudar os cegos, como educar a si mesmas para
que pudessem ser úteis a seus desafortunados companheiros
humanos e eu lhes ofereci o universo - recomendei gravemente
que estudassem a economia industrial. Meu conselho de estudarem
a vida que as rodeia foi talvez a única parte não paradoxal da
minha receita, pois a situação toda é paradoxal e confusa. A
sociedade é uma unidade; as partes dependem umas das outras;
uma parte do mundo sofre porque o resto não está direito. E
mesmo assim cada um de nós só pode saber muito pouco sobre
o todo da sociedade. Além disso, essas garotas de faculdade,
vivendo uma vida que não conheço, mandam suas perguntas a mim
a três mil quilômetros de distância - a mim que preciso tatear
uma biblioteca de algumas centenas de livros, enquanto elas têm
todos os livros do mundo ante elas. Podem visitar e falar com dez
pessoas enquanto eu soletro minha comunicação com um só deles.
Instrução? Como pode alguém que tem olhos para ver e
ouvidos para ouvir e tempo livre para ler e estudar permanecer
não instruída? Os "educadores" estarão falhando? Está faltando
algo nos que administram as escolas e faculdades? Cogito sobre
essas coisas e examino intrigada os detalhes de minha mensagem
com crescente perplexidade.
Os desafortunados não são apenas aqueles cuja enfermidade
apela para nossa solidariedade pelo seu visível e palpável terror
- o cego, o surdo, o mudo, o manco, o torto, o de mente fraca,
os moralmente doentes. Os desafortunados incluem o vasto
número daqueles que são destituídos dos meios e confortos que
promovem a vida correta e o autodesenvolvimento. O modo
de ajudar os cegos ou qualquer outra classe deficiente é entender,
corrigir, remover as incapacidades e desigualdades de toda a nossa
civilização. Estamos nos esforçando para impedir a cegueira.
Tecnicamente sabemos como preveni-la, como sabemos tecnicamente
ter casas limpas, comida saudável e estradas de ferro seguras.
Socialmente não sabemos. Socialmente ainda somos ignorantes.
A ignorância social está no fundo de nossas misérias, e se a
função da educação é corrigir a ignorância, a educação social é, nessa
hora, o tipo mais importante de educação.
Então, a mulher instruída é a que conhece a base social de
sua vida e da vida daqueles a quem ajudaria, os filhos dela, seus
empregadores, seus empregados, o mendigo à sua porta e
seu congressista em Washington. Quando Shakespeare escreveu
Hamlet, ou se o escreveu ou não, parece relativamente pouco
importante se comparado à questão se as trabalhadoras em sua
cidade recebem um salário que dê para viver e criam seus filhos
em locais adequados. A história da Guerra Civil americana, como
é ensinada nas escolas, é incompleta se 50 anos depois as filhas e
netas dos veteranos não entendem proposições tão simples como:
"A mulher que tem um filho arrisca sua vida pelo país".
São tais questões fundamentais relacionadas aos problemas
da vida que a educação escolar parece ignorar. Na escola e na
faculdade passamos muito tempo dedicadas a questões triviais.
Não consigo me lembrar muito do que aprendi no Radcliffe
College, algo que agora se destaque em minha mente como de
importância primordial. A pouca teoria econômica que aprendi
foi admiravelmente ensinada, mas nunca consegui harmonizá-la
com os fatos econômicos que aprendi desde então. Os cursos a
que assisti eram tão elementares que eu não devia julgar as
oportunidades oferecidas por Radcliffe para o estudo de economia.
Simplesmente acontece, como acontece na experiência de muitos
estudantes, que a sabedoria acadêmica que tive o privilégio de
compartilhar não tocou nos problemas que vim a encontrar mais tarde.
Se as mulheres devem aprender as coisas fundamentais da
vida, precisamos nos educar, e umas às outras. E as poucas de
nós que são injustamente chamadas de instruídas porque
estiveram na faculdade precisam aprender muito e esquecer muito, se
não quiserem parecer ociosas inúteis para milhões de trabalhadoras
na América. Qualquer moça que vai à escola pode estudar e
descobrir algumas coisas que uma americana instruída devia saber.
Por exemplo, por que nesta terra de grande riqueza há grande
pobreza? Qualquer moça inteligente como as que me escrevem,
ávidas para ajudar os cegos ou qualquer outra classe desafortunada,
pode aprender por que um trabalho importante como
fornecer comida, roupas e abrigo é mal recompensado, por que
crianças se esfalfam nas fábricas enquanto milhares de homens
não conseguem trabalho, por que mulheres que não fazem nada
têm milhares de dólares por ano para gastar.
Há uma causa econômica para essas coisas. A mulher americana
precisa saber por que milhões estão afastados de todos os
benefícios de tal educação, arte e ciência que a raça aprimorou até
agora. Nós, mulheres, temos de enfrentar questões que os
homens sozinhos evidentemente não têm sido capazes de resolver.
Precisamos saber por que uma mulher que é dona de bens não
tem voz na escolha dos homens que fazem as leis que afetam seus
bens. Precisamos saber por que uma mulher que ganha salário
não tem nada a dizer sobre a escolha dos homens que fazem leis
que governam seus salários. Precisamos saber por que cem ou 50
de nossas irmãs foram mortas em Nova York num incêndio numa
fábrica de camisas no outro dia e ninguém foi responsabilizado.
Precisamos saber por que nossos pais, irmãos e maridos são mortos
em minas e em estradas de ferro. Nós mulheres, que somos
conservacionistas naturais, precisamos descobrir por que os filhos
que trazemos ao mundo são postos em fila e alvejados.
Precisamos nos organizar com nossos irmãos mais esclarecidos e
declarar uma greve geral contra a guerra. Meu pai era um soldado
confederado, e eu respeito soldados. Mas passei a suspeitar cada
vez mais do poder politico que tira os homens de seus trabalhos
e os coloca disparando uns nos outros. Nem todos os poemas
militares que li despertaram em mim um desejo heróico de dar as
boas-vindas a meu irmão que volta com uma bala no coração.
Nós mulheres temos o privilégio de ficar famintas enquanto nossos
homens estão em batalha, e é nosso direito ficar viúva e órfã pela
estupidez politica e o caos econômico. Sem dúvida não nos
permitem votar contra o congressista que declara guerra; mas
podemos instruir-nos não oficialmente nessas questões.
O que quero dizer quando me refiro a uma mulher instruída
ficou mais claro? Deve ficar claro; pois tudo que tenho dito foi
dito antes de eu nascer e dito por homens; portanto não pode
haver nenhuma falha na lógica. Nós, mulheres, precisamos nos
educar a nós mesmas e sem delongas. Não podemos mais esperar
que economistas politicos resolvam problemas tão vitais como
ruas limpas, casas decentes, roupas quentes, comida substancial,
salários condizentes, minas e fábricas seguras, escolas públicas boas.
Essas são as nossas questões. As mulheres já estão falando, e
falando nobremente; e os homens estão falando conosco. Certamente
alguns homens e mulheres estão falando contra nós, mas a
discussão deles é com o espírito da vida. A mulher de Lot virou-se
para trás, mas ela é uma exceção. É notório que as mulheres
conseguem aquilo que se inclinem a conseguir, e as circunstâncias as
estão impelindo para a educação.
No outro dia os jornais continham um item que é pertinente
aqui, já que estamos lidando com mulheres e educação. A Harvard
Corporation votou para que não seja permitido que qualquer sala
da universidade seja aberta a palestras e conferências proferidas
por mulheres, exceto quando especialmente convidadas pela
corporação. Não havia tal regra até que um clube de formandas
pediu à sra. Pankhurst que falasse. Então a regra foi instituída.
A corporação tem direito de fazer tal regra. Mas por que a fez
discriminando as mulheres? Um homem instruído é alguém que
recebe, estimula e contribui para o melhor pensamento de seu
tempo. Por essa definição, os homens da Harvard Corporation
são instruídos?
Felizmente a educação não depende de instituições
educacionais, da mesma forma que a religião não depende de igrejas.
Bacon diz em Novum Organum: "Nos costumes e instituições de
escolas, academias e faculdades e organismos similares destinados
a ser o abrigo dos homens cultos e ao cultivo do aprendizado,
tudo é adverso ao progresso da ciência, pois as palestras e os
exercícios são ali tão ordenados que pensar ou especular sobre
algo fora do modo comum dificilmente pode ocorrer a alguém,
e se um ou dois têm a ousadia de usar qualquer liberdade de
julgamento, têm que empreender a tarefa sozinhos; não podem ter
nenhuma vantagem da companhia dos outros. E se podem suportar
isso, também, descobrirão que sua engenhosidade e largueza de
mente não são um obstáculo pequeno à sua fortuna, pois os estudos
nesses lugares são confinados e, como se diz, aprisionados
nos textos de certos autores. E se qualquer um diverge deles é
imediatamente apontado como turbulento e inovador".
Talvez a primeira lição a ser aprendida por nós mulheres,
inclinadas a nos educar sozinhas, é que somos dóceis demais em
relação à instrução formal. Aceitamos com muito pouco
questionamento o que os instruídos nos dizem. A razão, ou seja lá
que substituto o céu nos deu, não fica à porta da receptividade e
desafia quem busca ser admitido. Fico surpresa ao descobrir
que muitos campeões das mulheres, detentores de "idéias avançadas",
exaltam a inteligência da assim chamada mulher culta. Eles a
retratam como um prodígio intelectual a quem o homem mais
sábio entregaria sua biblioteca e seu laboratório com uma
sensação de desalentada incompetência. Não se deve insistir sobre a
inteligência da mulher, e sim sobre suas necessidades, suas
responsabilidades, suas funções. A mulher que trabalha a um dólar
por dia tem tanto direito quanto qualquer outro ser humano de
dizer quais deveriam ser as condições de seu trabalho. E exatamente
isso, lamento descobrir, que as mulheres instruídas nem sempre
entendem. Elas argumentam que, já que George Eliot escreveu
grandes romances e Joana d'Arc liderou exércitos para a vitória, a
mulher tem tanta capacidade quanto os homens; assim, elas insistem
no curso de pensamento que não é o ponto crucial da questão.
Os que argumentam contra os direitos para os quais somos plenamente
qualificadas não se esquivam da questão com incerteza mais
oscilante do que nós mesmas mostramos ao nos defendermos.
Não estou disposta a elogiar a mulher instruída, como utilizamos
comumente o termo. Eu a considero estreita e carente de
visão. Poucas mulheres que encontro têm um interesse profundo
nas importantes questões atuais. Mostram-se entediadas com
qualquer problema não imediatamente relacionado com seus
desejos e ambições. Sua conversa é trivial e errática. Não dedicam
tempo suficiente a um assunto para descobrir que não sabem
nada sobre ele. Como é raro que a moça de faculdade que provou
o gosto da filosofia e estudou história relacione filosofia e as
crônicas do passado aos tremendos processos da vida que fazem
história a cada dia! O reputado juízo prático dela e sua rápida
solidariedade parecem tornar-se inoperantes na presença de
qualquer questão que alcance um horizonte amplo. Sua mente
trabalha rapidamente na medida em que segue uma trilha tradicional.
Tire-a de lá e ela se torna inerte e sem recursos. Ela carece
de reflexão, originalidade, independência. Em face da oposição a
um interesse privado ou a um instinto primitivo, ela pode ser
corajosa e vivamente inteligente. Mas recua das idéias gerais como
se estas não lhe dissessem respeito, quando na verdade a vida
civilizada está compreendida em idéias gerais.
Tal mulher chega às mais graves responsabilidades como
as virgens tolas que rumam apressadas para o casamento sem
nenhum óleo em seus lampiões. Ela não está preparada para a
batalha da vida. Antes que saiba, pode estar no meio da batalha,
indisciplinada e desorganizada, lutando por tudo que lhe é precioso
contra um inimigo sobre cuja posição ela não fez o reconhecimento.
Manda seus filhos e filhas para as ruas da vida sem o
conhecimento que protege. A ignorância lhe dá confiança e ela é
destemida por falta de compreensão.
Não é possível atribuir-se uma dificuldade complexa a uma
causa única. Ás vezes, contudo, parece que a algema mais pesada
nos pulsos de mulheres delicadas e bem cuidadas é a falsa noção
de "pureza e feminilidade". Geração após geração nos é ensinado
que pureza e feminilidade são as únicas armas de que precisamos
no embate da vida. Com esse escudo estamos cumuladas de toda
segurança possível num mundo essencialmente duro. O inimigo,
porém, não luta de modo justo. Ele descarta feminilidade e pureza.
As mulheres aprenderam isso num sofrimento da vida inteira.
Mesmo assim algumas que mais sofreram agarram-se ao ideal e
o passam a suas filhas, como os escravos ensinam seus filhos a
beijar as próprias correntes. Sobre questões que afetam nossas
próprias vidas nos advertem para falarmos com a "respiração
contida", para não ofender as conveniências e provocar uma
desaprovação ruborizada. O ideal da mulher cheia de confiança,
pura e ignorante é lisonjeiro e doce para sua alma timorata. Mas
não é, acredito, o produto de sua própria imaginação. Cresceu na
fantasia cultuadora do homem romântico - seu poeta e seu amo.
Chegou a hora da mulher submeter esse ideal a uma crítica
agudamente sagaz.
Δ
1. Alexander Graham Bell (1847-1922), o inventor do telefone (aparelho
que surgiu de sua pesquisa para criar um dispositivo de auxílio à audição,
ou "máquina de falar", que pudesse reproduzir sons vocais) devotou
a maior parte de sua carreira à educação dos surdos. Conheceu Helen
Keller em 1886 e foi seu amigo e benfeitor até morrer.
PARTE 1:
A HISTÓRIA DA MINHA VIDA -
Notas
1-1. A doença que fechou meus olhos e ouvidos (...) do estômago e do cérebro: a
doença de Keller nunca foi identificada com certeza. Recentemente, os
médicos acreditam ter sido escarlatina ou meningite.
1-2. Laura Bridgman (1829-89), a primeira pessoa surda e cega a receber uma
educação formal. Ela perdera a visão e a audição aos dois anos de
idade, depois de ter escarlatina. Conheceu SamueL Gridley Howe em
1837 e morou a maior parte de sua vida na Instituição Perkins para
Cegos. No início da década de 1880, Bridgman compartilhou brevemente
um quarto na instituição com Anne Sullivan.
1-3. Dr. Howe: Samuel Gridley Howe (1801-1876), médico, educador e reformador
social. Em 1832, Howe tomou-se diretor do recém-criado New England
Asylum for the Blind, que foi rebatizado em 1839 Perkins Institution for
the Blind [Instituição Perkins para Cegos] (hoje, Perkins School for the
Blind). Howe criou um sistema de Letras em relevo (o "Tipo Howe")
amplamente usado por Leitores cegos até o desenvolvimento do braile.
1-4. Sr. Anagnos: Michael Anagnos (1837-1906), genro de Samuel GridLey
Howe e seu sucessor como diretor da Instituição Perkins. Ele iniciou
uma gráfica e uma biblioteca na Perkins para livros com tipos em
relevo.
1-5. William Endícott: William Crowninshield Endicott (1826-1900),
advogado e figura política de Boston. Foi membro da Suprema Corte
do estado de Massachusetts (1 873-82) e serviu como secretário da
Guerra no gabinete do presidente Grover Cleveland (1885-89).
1-6. Sra. Hopkins: Sophia C. Hopkins (1 842-1917); enviuvou aos 22 anos,
perdeu sua filha única em 1883. Posteriormente, no mesmo ano,
tornou-se superintendente na Instituição Perkins, onde ajudou a jovem
Anne Sullivan, de 16 anos. Sullivan e Hopkins permaneceram amigas
próximas até a morte de Hopkins. SuLlivan e Helen Keller foram
convidadas freqüentes no lar dos Hopkins, em Cape Cod.
1-7. Shrunk and cold... earth and sea: de The visíon of Sir Launfal (1848), por
James Russell Lowell.
1-8. Margaret T. Canby: embora uma figura importante no início da vida de
Helen Keller, Margaret Tatnall Canby, autora de Birdie and his lady
friends (1874), publicou apenas um outro livro, Flowers from the battle
field, and other poems (1864), e sabe-se muito pouco sobre sua vida.
1-9. Little lord Fauntleroy: romance de Frances Hodgson Burnett (1849-
1924), publicado em 1886. Imensamente popular em seu tempo
entre crianças e adultos, a obra agora quase não é lida. Conta a história
de um garoto norte-americano que entra para a aristocracia inglesa.
Embora o título seja agora uma frase que indica um jovem afetado e
pretensioso, os leitores do final do século XIX viram o personagem
do título como uma figura moral exemplar.
1-10. William Wade (1835-1911), fazendeiro, soldado da União, político e
filantropo. Wade serviu na legislatura do Missouri de 1881 a 1884 e no
Congresso norte-americano de 1885 a 1891. Wade tinha um grande
interesse pelos surdos e publicou The deaf-blind (1901), um livro
detalhando as realizações dos surdos-cegos nos Estados Unidos.
1-11. Bryant: William Cullen Bryant (1794-1878), poeta, editor e
advogado. Filho de um médico de Massachusetts e descendente de
um viajante do Mayflower, William Cullen Bryant tornou-se o
primeiro poeta dos Estados Unidos a conquistar atenção
internacional, especialmente com o poema Thanatopsis. Bryant estudou
por si mesmo para tornar-se advogado, quando seu pai não pôde
pagar seus estudos em Yale. Por muitos anos foi editor e escritor
político para o New York Evening Post, um ativista da causa anti-
escravagista. Posteriormente, Bryant traduziu a Ilíada de Homero,
dizendo que traduzir, mais do que escrever poesia, era a vocação
apropriada para a velhice.
1-12.
John P. Spaulding (? -1896), um importante benfeitor de Helen Keller.
Com sua morte em 1896, descobriu-se que além de ajudar a custear a
educação de Helen, ele emprestara 1.500 dólares a seu pai. O capitão
Keller morrera alguns meses antes e o espólio Spaulding não obteve
êxito em recuperar o dinheiro.
1-13. Gilman: Arthur Gilman (1837-1909), uma figura importante no avanço
da educação superior para as mulheres. Gilman foi um dos fundadores
do Radcliffe College e seu primeiro diretor. Depois fundou e foi
diretor da Cambridge School for Young Ladies.
1-14. Sr. Keith: Merton S. Keith (1851-1920), orientador de Keller. Além de
ensinar, Keith era autor de estudos guiados para alunos de ginásio e
faculdade em história grega e romana e física.
1-15. Chamberlin: Joseph Edgard Chamberlin, crítico literário do Boston
transcript e um grande amigo de Helen Keller. Foi essencial na ajuda
para que Anne Sullivan permanecesse com Helen em 1897, quando a
sra. Keller estava prestes a dar a custódia da filha para Arthur Gilman,
da Cambridge School for Young Ladies.
1-16. Charles Townsend Copeland (1860-1952) ministrou cursos de
composição e de textos de Samuel Johnson, Walter Scott e os poetas
românticos ingleses. Além de Helen Keller, os alunos de Copeland em Harvard
incluiram T. S. Eliot, Conrad Aiken, John Dos Passos, John Reed,
Walter Lippmann, Malcom Cowley e Van Wyck Brooks. Seu estilo
teatral de ensino obtinha reações mistas. Keller e Redd o adoravam;
Ebot e Dos Passos não.
1-17. George L. Kitzredge (1860-1941), distinto erudito e professor especializado
em Chaucer e Shakespeare, nunca recebeu um Ph.D. Diz-se que ele
cogitou: "Quem me examinaria?".
1-18. Josiah Royce (1 855-1916), eminente filósofo norte-americano, foi
recrutado da Universidade da Califórnia-Berkeley por William James e
começou a ensinar em Harvard em 1882. Seu trabalho mais importante
é The world and the individual (2 vols., 1899,1901).
1-19. Bob Acres, um personagem da peça The rivals (1775), de Richard
Sheridan.
1-20.
God can dumbness keep... house of Time: do poema Acknowledgement, de
Sidney Lanier.
1-21. Even as the roots...so do I: de The cathedral, de James Russell Lowell.
1-22. O dark, dark, dark... hope of day! de Samson Agonistes, de John Milton.
1-23. Eilen Terry: membro da segunda geração de uma grande família do
teatro, Dame Ellen Terry (1847-1928) foi pioneira na interpretação
moderna, desenvolvendo uma técnica mais natural, psicologicamente
matizada, semelhante à que Stanislavsky ensinava na mesma época na
Rússia. Era amiga próxima de George Bernard Shaw. Sir John Gielgud
era seu sobrinho-neto.
1-24. Henry Irving (1838-1905), o ator britânico de maior êxito em seu tempo
e o primeiro ator a receber o título de cavaleiro. Atuava numa
grande variedade de peças populares, mas não atuou na obra dos
novos dramaturgos mais importantes, como Ibsen e Shaw.
1-25. Jefferson: nascido numa família de atores, Joseph Jefferson III (1829-
1905) começou a representar com a idade de quatro anos e não recebeu
nenhuma educação formal. Seu maior sucesso foi no papel de Rip Van
Winkle, que ele representou muitas vezes por todo os Estados Unidos.
1-26. Elsie L.eslie (1 881-1966), atriz infantil aclamada por atuações nas
versões para palco de Little lord Fauntlerqy (1888) e O príncipe e o
mendigo
(1890). Após retirar-se do palco por oito anos, Leslie voltou a ele já
moça, mas sem seu antigo sucesso.
1-27. Bispo Brooks: Phillips Brooks (1835-93), ilustre clérigo de Boston,
abolicionista. Após a Guerra Civil, Brooks foi um ativista na National
Freedman's Relief Association. Foi reitor da Trinity Church em Boston
e indicado bispo episcopal de Massachusetts em 1891.
1-28. God in all that liberates and lits...sweetness and consoles: de The
cathedral, de
James Russel Lowell.
1-29. Swedenborg: Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, teólogo e
místico sueco. Swedenborg trabalhou como engenheiro metalúrgico e de
minas, publicou artigos sobre matemática, física e química, desenvolveu
uma teoria sobre a estrutura do átomo e fez contribuições significativas
para o estudo da fisiologia. Depois, após uma série de visões místicas,
Swedenborg desenvolveu sua própria religião, uma variante do Cristianismo
que rejeitava a Trindade e a divindade de Jesus. Swedenborg
descreveu em suas visões como ele via as ligações entre os mundos
físico e espiritual. Sua crença de que a realidade visível é uma sombra do
invisível deve ter tido um apelo óbvio para Helen Keller.
1-30. Drummond: Henry Drummond (1851-97), escritor e palestrante
religioso escocês. Seu objetivo era reconciliar o Cristianismo com as teorias
evolucionistas de Darwin. Em Ascent ofman (1894), Drummond
argumentava que os instintos altruístas, mais que os competitivos,
fornecem o ímpeto para a seleção natural.
1-31. Oliver Wendell Holmes (1809-1894), poeta, médico e pai do juiz da
Suprema Corte norte-americana Oliver Wendell HolmesJr. Ensinou
medicina em Harvard e Dartmouth, publicou artigos sobre técnicas
médicas e conquistou sua maior popularidade, como escritor, com
seus ensaios em The autocrat of the breakfast-table (1858), publicados
originalmente como uma série nos primeiros números da Atlantic
monthly (1857), da qual Holmes foi um dos fundadores.
1-32. Break, break, break... O sea!: do poema Break, break, break, de Alfred
Tennyson.
1-33. Whittier: poeta, jornalista, abolicionista e filho de pais quaker, John
Greenleaf Whittier (1807-1892) teve pouca instrução formal e aprendeu
sozinho a escrever lendo a Bíblia, o Pilgrim- progress, as obras de escritores
quakers e a poesia de Robert Burns. Foi membro fundador da
Sociedade Antiescravista e serviu por um período na legislatura estadual
de Massachusetts. Whittier foi um dos fundadores da Atlantic monthly.
1-34. Ednard Everett Hale (1822-1909), escritor, professor e ministro
unitarista. Hale foi pastor da South Congregational Church de Boston
(1856-1901) e serviu como capelão do Senado norte-americano de
1903 até sua morte. Foi autor de ensaios e contos, o mais famoso The
man whitout a country (1863).
1-35. Charles Dudley Warner(1829-1900), escritor, editor e benfeitor de Helen
Keller. Warner foi mais conhecido por seus ensaios humorísticos e
textos de viagem. Publicou 23 livros, inclusive quatro romances.
1-36. Laurence Hutton (1843-1904), escritor, editor, colecionador de livros e
benfeitor de Helen Keller. Hutton era um crítico teatral de Nova York
e escreveu uma série de recordações e livros de viagem populares. Foi
editor literário da Harper's Magazine de 1886 a 1898. Sua esposa era
Eleanor Varnum Mitchell.
1-37. Mary Mapes Dodge (1831? - 1905), filha de escritor, autora de Hans
brinker, or the silver skates. Por muito tempo editora da St. Nicholas
Magazine, a revista infantil mais importante de sua época, Dodge
publicou trabalhos de Jack Landon, Henry Wadsworth Longfellow,
Robert Louis Stevenson e Lousia May Alcott. Ela também editou em
série a primeira publicação de Little lord Fauntleroy, de Frances Hodgson
Burnett.
1-38. Sra. William Thaw: Mary Sibbet Copley Thaw, esposa de William Thaw
(1818-89), um magnata da navegação e das estradas de ferro de
Pittsburgh. Sra. Thaw era também a mãe de Harry K. Thaw, o notório
marido da modelo e artista do teatro de variedades Evelyn Nesbit e
assassino do amante desta, o arquiteto Stanford White.
1-39. Ele é bem conhecido [...] meus estudos na faculdade: dado o poder e a
reticência
que Keller atribui a seu misterioso benfeitor, ela pode estar se referindo
a J. P. Morgan, o financista dominante daquela época.
Δ
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The wild child (L'enfant sauvage). Dir. François Truffaut. Les Films du
Carrosse, Les Productions Artistes Associés, 1970. (No Brasil, O
garoto selvagem.)

Helen Keller, 1880-1968
"A história da minha vida:
com suas cartas (1887-1901) e um relato
suplementar sobre sua educação, incluindo trechos das narrativas e cartas da
professora, Anne Mansfield Sullivan"
Edição de John Albert Macy, 1903
Tradução: Myriam Campello, 2008
ϟ
21 Outubro
2009
Publicado por
MJA
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