
Molineux e o seu Problema
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo investigar o papel do corpo como suporte da percepção entre jovens deficientes
visuais. O levantamento bibliográfico indicou que, na história da psicologia, o século XIX é um marco nas pesquisas
sobre percepção, uma vez que, através da fisiologia experimental, o corpo fisiológico, mecanicamente concebido, é
considerado o suporte e o fundamento da percepção. Diferentemente desta abordagem, nosso trabalho de pesquisa
aponta para o corpo vivido, como o solo a partir do qual se constrói a percepção. O trabalho de campo seguiu uma
postura etnográfica e foi desenvolvido através da observação participante de um grupo de teatro formado por deficientes
visuais, com idades entre 10 e 16 anos. Os resultados sublinham a importância da redefinição do corpo como suporte
da percepção.
INTRODUÇÃO:
O ver e o não-ver no problema de Molyneux
No século XVII, o cientista irlandês William Molyneux endereça carta
ao filósofo John Locke, levantando uma questão acerca de um cego de
nascimento que recupera a visão na vida adulta. Este problema inaugurou
uma série de discussões filosóficas e psicológicas em torno do tema da
percepção. Não é nosso propósito estabelecer um mapeamento exaustivo de
todas as respostas e retomadas que o problema de Molyneux encontrou na
filosofia ocidental. Tal tarefa tem sido levada a cabo por diversos
autores, desde as considerações de Locke ou Diderot até as recentes
pesquisas na área da psicologia cognitiva.
Enunciemos, portanto, a questão levantada pelo cientista irlandês:
Supõe-se um cego de nascença que se tenha tornado homem feito, e a
quem se ensina a distinguir, pelo contato, um cubo e um globo de mesmo
metal e quase de mesma grandeza, de modo que, ao tocar em um ou em
outro, possa dizer qual é o cubo e qual é o globo. Supõe-se que, estando
o cubo e o globo colocados sobre uma mesa, o referido cego venha a
usufruir da visão; e se lhe pergunta se, vendo-os sem tocá-los, poderá
discerni-los e dizer qual é o cubo e qual é o globo (DIDEROT, 1979,
p.21).
Na história da filosofia, o problema de Molyneux tem sido analisado de
diversas perspectivas. De um lado, pode-se perguntar pelo lugar e papel
da experiência no exercício do conhecimento, o que foi amplamente
discutido na filosofia pelos empiristas e racionalistas e que, de algum
modo, aparece mais uma vez na questão de Molyneux. De outro lado, o
problema traz em seu bojo uma interrogação acerca da interconexão entre
os diferentes sentidos. A resposta afirmativa à questão de Molyneux
apoia-se muitas vezes na suposição da existência dos sensíveis comuns1,
isto é, propriedades dos objetos que podem ser apreendidas por sentidos
diversos, como a visão e o tato. Assim, o cego que recuperasse a visão
poderia transferir para o domínio visual o conhecimento adquirido
através do tato.
É certo que se pode considerar a questão do cego que volta a enxergar
também de um ponto de vista empírico, clínico. Mas este enfoque
acrescenta novas dimensões ao problema propriamente dito, já que se faz
necessário analisar o tipo de patologia que acometia a visão, se a
cegueira era total ou parcial, o modo e o quanto da visão foi de fato
recuperado, entre outros pontos. Neste trabalho não nos interessa seguir
essa linha de análise. Consideramos a questão de Molyneux como um
problema teórico e epistemológico que, em maior ou menor medida, é
resgatado pela psicologia no século XIX e é mais uma vez retomado quando
nos interrogamos sobre o modo como se constitui a percepção sem a visão.
A partir deste debate proposto por Molyneux interessa-nos circunscrever
o tema do perceber sem ver. O que é e como ocorre a percepção sem a
visão? Eis o que nos interessa investigar. Na questão levantada pelo
cientista irlandês, o tema do não-ver está relacionado diretamente ao
ver. Como nos adverte Belarmino (2004), no paradoxo de Molyneux o que
está em jogo não é a questão da cegueira, mas o modo de ver de um cego
que recupera a visão. Dito com outras palavras é ainda sobre o ver que o
cientista irlandês levanta sua interrogação. Neste trabalho de pesquisa,
investigamos de um lado o perceber sem ver e de outro lado, perguntamos
pelo papel do corpo na construção da percepção entre jovens cegos e com
baixa visão.
A PSICOLOGIA NO SÉCULO XIX:
a fragmentação do corpo e a centralidade
da percepção visual
Tradicionalmente na psicologia, o estudo da percepção é referido às
possibilidades e aos impasses da quantificação, da previsão e do
controle da experiência (BORING, 1985). Este elo entre a percepção e o
mundo objetivo é central para as pesquisas experimentais. Isso porque o
modelo de pesquisa experimental, inaugurado na modernidade, supõe a
possibilidade de manipulação de um evento – uma causa – e a mensuração
dos efeitos deste evento sobre outro – o fenômeno investigado. Assim,
para conhecer experimentalmente o processo perceptivo é necessário
manipular o mundo, ou seja, os estímulos físicos, e medir a
transformação que esta manipulação provoca na percepção.
Desse modo, para investigar experimentalmente a percepção, é preciso
concebê-la numa dupla articulação: de um lado, como um acontecimento
fisiológico que se origina no e depende do corpo como seu substrato
fisiológico (CRARY, 1990). Daí decorre toda a importância que tem a
fisiologia do século XIX para o estudo da percepção. De outro lado, é
preciso considerá-la como um evento psicológico que, em última
instância, representa o mundo físico, objetivo, concebido mecanicamente
como extensão e movimento. Fazer esta investigação experimental consiste
em definir o fato psicológico através de uma aliança entre a fisiologia
e a física. É a própria definição de psicologia que se vê atrelada a
estas alianças: a psicologia no século XIX é um saber que se situa entre
a física e a fisiologia.
Em suas pesquisas acerca deste tema, Crary (1990, 1999, 2002) sublinha
os impasses encontrados por esta linha de pesquisa. O autor propõe uma
análise histórica e epistemológica da percepção, em particular no século
XIX, sublinhando os limites das pesquisas experimentais neste campo. A
definição da percepção a partir do seu suporte na fisiologia
experimental é para Crary (1990) problemática, uma vez que a fisiologia
do século XIX demarcava as especificidades do corpo, no que diz respeito
às suas reações frente aos estímulos oriundos do mundo físico. Ao
mencionar a fisiologia de J. Muller, Crary (1990) demonstra que a
energia nervosa específica caracteriza a autonomia do corpo em relação
aos estímulos externos, ou seja, indica que o corpo fisiológico tem sua
especificidade, seu modo próprio de reagir aos estímulos físicos, o que
significa dizer que, uma vez que um estímulo chegue a um ponto
sensorial, ele será capturado segundo uma sintaxe própria, específica
desta terminação sensorial. Desse modo, a correspondência entre o mundo
externo – os estímulos – e a percepção é problemática, porque o corpo,
longe de garantir a objetividade da percepção, afirma a sua
parcialidade. Assim, Crary (1999) aponta que, já na psicofísica, é
polêmica a possibilidade de encontrar uma correspondência fiel,
objetiva, entre o universo sensível e perceptivo e o mundo objetivo.
Isso porque as pesquisas sobre a sensação e sobre os limiares da
percepção, levadas a cabo no século XIX no campo da psicofísica,
demarcavam a labilidade do processo perceptivo frente aos estímulos. O
que nos interessa circunscrever nos trabalhos de Crary (1999, 2002) é a
sua tese a respeito dos limites e impasses nos estudos experimentais
acerca da percepção.
Tradicionalmente no pensamento ocidental, o conhecer e o ver estão
diretamente relacionados (CHAUÍ, 1988). A história da psicologia da
percepção é predominantemente uma história sobre a aquisição de
conhecimento através da visão.
Em nosso trabalho de pesquisa, consideramos positivos esses impasses,
ou seja, eles são nossos pontos de partida para buscar outros
referenciais para o estudo do perceber. Podemos dizer que nosso trabalho
situa-se num referencial longe daquele que marcou as primeiras pesquisas
sobre este assunto no século XIX: a previsão, o controle e a
possibilidade de mensuração da experiência psicológica não estão no
centro de nossas investigações. Por esta via, podemos estudar a
percepção através de alianças não só com a física mecanicista e com a
fisiologia, mas também através de alianças entre a psicologia e a
antropologia, a geografia, a arquitetura. Neste campo problemático,
optamos por investigar as alianças entre arte e percepção.
A proposta deste trabalho é, portanto, operar um duplo deslocamento:
Em primeiro lugar, deslocar as alianças da psicologia com a física
mecanicista e com a fisiologia, e afirmar como caminho a aliança com a
arte. Neste ponto, consideramos que nosso trabalho de pesquisa pode ser
situado numa linha indicada por Crary (1990, 2002). Isso porque, como
dissemos acima, este autor aponta para os limites da definição da
percepção como espelho do mundo físico e objetivo.
Em segundo lugar,
deslocar o paradigma visuocêntrico que, segundo Belarmino (2004), marcou
as pesquisas sobre o perceber e o conhecer na filosofia ocidental. Mesmo
se considerarmos a importância do debate suscitado por Molyneux,
concordamos com Belarmino (2004), quando a autora afirma que no debate
aberto pelo cientista irlandês, o que estava em jogo era o ver, isto
é, o que era considerado como um problema a ser investigado era a visão
recém-adquirida por um cego de nascimento. Assim sendo, no paradoxo de
Molyneux o que é afirmado mais uma vez é a centralidade do ver no
exercício do conhecer. O não-ver esteve, portanto, longe do cenário
filosófico e psicológico da modernidade.
O TEATRO, O CORPO E A PERCEPÇÃO
É a partir destes deslocamentos epistemológicos que desenvolvemos,
desde o ano de 2003, o projeto de pesquisa intitulado Arte e Percepção
entre Crianças Deficientes Visuais no Instituto Benjamin Constant (IBC).
Com 150 anos de existência, o IBC é um centro de referência no país,
desenvolvendo uma série de atividades ligadas à educação e à cidadania
da pessoa deficiente visual.
Com este trabalho, investigamos a percepção entre sujeitos cegos e com
baixa visão, partindo da observação das atividades de teatro propostas
em oficina extra-curricular para os alunos regularmente matriculados no
IBC. Perguntamo-nos: de que modo o teatro pode funcionar como
dispositivo cognitivo, disparando a construção da percepção dos sujeitos
da pesquisa? A experiência do teatro com deficientes visuais permite-nos
acompanhar o modo como o sujeito utiliza os sentidos para a elaboração
do mundo e do universo do personagem. O espaço cênico cria um campo de
aprendizagem que engloba diversos pontos fundamentais no desenvolvimento
cognitivo e perceptivo do sujeito deficiente visual: a orientação e a
locomoção, as relações interpessoais, a orientação do corpo no espaço,
etc. O trabalho de construção dos personagens, bem como a memorização do
texto implica, portanto, um dispositivo cognitivo que leva à criação e à
produção de um universo perceptivo cujos efeitos são incorporados pelo
sujeito em seu dia-a-dia. O ponto central a ser destacado neste processo
é aquele que diz respeito ao papel que a arte assume na construção do
mundo cognitivo/perceptivo dos sujeitos. Isso significa dizer que as
percepções e aprendizagens que o teatro viabiliza passam a ser
incorporadas à vida da pessoa deficiente visual, ao seu cotidiano.
Masini (1994) comenta que a educação do deficiente visual é, na maior
parte das vezes, centrada em padrões de aprendizagem adotados pelos
videntes. Segundo a autora, educar deficientes visuais de acordo com
tais padrões produz um desconhecimento das especificidades destes
sujeitos. Assim, conhecer o modo como o deficiente visual conhece o
mundo é fundamental para a elaboração de estratégias pedagógicas
voltadas para estes aprendentes. Desse modo, nosso trabalho de pesquisa
pode servir de ponto de partida para refletirmos sobre o papel do teatro
como recurso pedagógico voltado para o ensino do deficiente visual,
considerado em sua especificidade, em seu modo singular de ser e estar
no mundo.
No teatro, a elaboração de cada personagem passa por diversas etapas
nas quais o que se pode notar é o progressivo envolvimento do sujeito
com o universo daquele. Merece destaque o papel que o corpo assume na
construção e elaboração dos personagens. Falar da importância do corpo
nesta construção ou mesmo na elaboração do universo perceptivo não traz
em si nenhuma novidade. A psicologia, herdeira do cartesianismo, assume
o corpo-máquina como suporte de toda e qualquer percepção. Como dito
anteriormente, no século XIX, o estudo da percepção centrava-se no corpo
fisiológico, isto é, a origem última da percepção remontava a
acontecimentos de ordem sensorial e fisiológica.
Nas atividades de teatro o que está em jogo não é o corpo-máquina, mas
o corpo vivido, experimentado, corpo singular. E mais do que isso, o
processo de construção do personagem parece implicar ao mesmo tempo uma
produção de si e do mundo. Ou seja, na medida em que elabora corporal e
subjetivamente o personagem, o sujeito não só modifica seu modo de estar
no mundo, como também o mundo que ele conhece. A relação é, portanto,
recíproca. É interessante sublinhar que a construção dos personagens não
passa pela visão, mas por outras experiências corporais: pelo manuseio
de objetos, pela audição, pelo olfato, em suma, trata-se de considerar o
corpo como superfície cognitiva, como espaço de elaboração do mundo e de
si mesmo. Desse processo resulta uma experiência perceptiva inteiramente
original. As percepções do espaço, do tempo, entre outras, são
produzidas através da experiência do teatro. Nas palavras de Bavcar
(2003), "para um cego é todo o corpo que de algum modo se torna órgão da
vista, pois qualquer parte do corpo pode olhar de perto um objeto que
lhe seja exterior" (p. 182).
Assim, este trabalho nos leva a problematizar a epistemologia
tradicional da psicologia da percepção, isto é, aquela que circunscrevia
o estudo dos processos perceptivos aos rigores do método experimental.
Investigar o perceber entre sujeitos cegos e com baixa visão nos coloca
diante do desafio de buscar outros referenciais, outras alianças que
definam o campo de investigação da psicologia. Não mais centrada no
modelo experimental, mas uma psicologia que se faça através de uma
aliança com a arte e que aponte para o corpo todo e não apenas para a
visão como ponto de partida para a construção do mundo percebido.
Parece-nos que seria preciso afirmar uma psicologia que se ocupasse com
os processos de criação implicados na percepção, não com a finalidade de
demarcar fronteiras entre criações verdadeiras, legítimas e as falsas,
mas uma psicologia cuja tarefa seria seguir, acompanhar esta criação de
mundos. Pesquisar o que é perceber sem ver é retomar o que ficou de fora
da psicologia tradicional, é perguntar por um conhecer que talvez não
esteja descrito nos grandes manuais de filosofia e de psicologia.
MÉTODO
Este trabalho foi desenvolvido através da postura etnográfica,
seguindo a proposta de Boumard (1999). Para o autor é necessário
distinguir entre etnografia como método e etnografia como postura. Como
método, a etnografia é uma técnica de investigação que se centraliza na
observação participativa e insiste “nas técnicas de trabalho de campo,
nas práticas de observação, no diálogo etnográfico como dispositivo
(...) levando a recortes com as histórias de vida ou algumas formas da
pesquisa-ação” (BOUMARD, 1999, p.1).
Compreender a etnografia como postura consiste em aliar de modo
indissociável metodologia e epistemologia. Isso porque a postura
etnográfica está alicerçada na "idéia de ir ao campo e dele não fazer o
elemento da administração da prova, mas o material indispensável para
que o discurso sobre o outro tenha sentido" (BOUMARD, 1999, p.2).
Desse modo, nosso trabalho de campo privilegia a investigação e o
contato direto das pesquisadoras com os alunos e professores do
Instituto Benjamin Constant, envolvidos com as atividades de teatro, que
acontecem duas vezes por semana, perfazendo um total de 5 horas semanais
de ensaios, vivências e dinâmicas ligadas à construção dos personagens.
Assim, nossa proposta metodológica distancia-se de outros métodos de
pesquisa que supõem a distinção e separação radical entre o pesquisador
e o pesquisado.
Para usar o vocabulário institucionalista [podemos dizer] que o
etnógrafo, definido como tal em função de seu olhar, é ao mesmo tempo
implicado [isto é] (...) a investigação etnográfica dá lugar pleno ao
sujeito numa atitude de atenção flutuante, nunca neutra, sempre à
espreita duma eventual produção de sentido (...) Trata-se evidentemente
de captar o ponto de vista dos membros do grupo estudado, mas não os
observando apenas, nem mesmo pedindo-lhes que explicitem seus atos. Na
tecelagem etnográfica o investigador situa as descrições no seu próprio
contexto, sendo assim levado a considerar as produções dos membros do
grupo estudado como verdadeiras instruções de investigação (BOUMARD,
1999, p.3).
Assim, a postura etnográfica está enredada numa perspectiva
epistemológica que afirma o caráter construído da realidade. Este
aspecto será retomado nas discussões epistemológicas que nosso trabalho
de pesquisa nos leva a formular.
CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA E COLETA DE DADOS
O projeto foi desenvolvido através da observação participante do grupo
de teatro composto por 9 sujeitos deficientes visuais, com idades entre
10 e 16 anos, sendo 4 cegos2 e 5 com baixa visão. Para a coleta de dados
fez-se necessária a elaboração do diário de campo, no qual foram
anotadas as atividades desenvolvidas, as observações das pesquisadoras e
suas implicações com o processo da pesquisa. Foram realizadas
entrevistas semi-estruturadas com os sujeitos que participaram das
atividades de teatro. Destacamos que a pesquisadora participou de todo o
processo de construção, elaboração e desenvolvimento das referidas
atividades.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Foram entrevistados os 9 sujeitos que participaram do grupo de teatro
durante o ano de 2004. As entrevistas foram realizadas em dois momentos:
o primeiro, quando os sujeitos iniciavam os ensaios e o segundo, ao
final do ano, depois da encenação da peça O Mágico de Oz no teatro do
Instituto Benjamin Constant.3
Através das entrevistas constatamos alguns pontos importantes sobre o
papel do corpo na percepção:
-
(...) não tenho dificuldade de me localizar no palco. O teatro faz eu
entender melhor meu corpo, o que é bom para eu fazer outras coisas. Com
o teatro eu fico mais desinibido e eu mostro para todo mundo que o cego
pode fazer um monte de coisas. (sujeito 2, cego, sexo masculino, 13 anos
de idade)
-
-
(...) para conhecer as minhas marcações eu tenho que ficar atento ao
movimento dos outros, aos sons e às falas dos outros personagens. Para
fazer o personagem do homem de lata eu tive que tocar um boneco, feito
um robô, fiquei dias brincando com ele até que comecei a fazer com o meu
corpo os movimentos que eu percebi no boneco. Depois disso eu consegui
inventar a voz do homem de lata (sujeito 3, cego, sexo masculino, 14
anos de idade).
As anotações no diário de campo indicam que os exercícios de
experimentação do corpo, ligados às atividades de teatro, são pontos de
partida para a invenção de posturas corporais inteiramente novas.
Pudemos observar que o envolvimento do sujeito com o espaço lúdico do
teatro faz com que sua imagem corporal seja reelaborada.
Nas falas dos sujeitos encontramos algumas considerações importantes
sobre os efeitos que as atividades de teatro produzem nos seus
cotidianos. Foi apontado que as experimentações e os jogos teatrais
permitem conhecer outros modos de estar no mundo, abrem outras
possibilidades de afetar e ser afetado por ele. Alguns entrevistados
indicaram que o exercício teatral funciona como um dispositivo que
problematiza o lugar do ser cego no contexto social e que retoma de
algum modo o tema da inclusão. Conforme a fala de uma entrevistada:
Na verdade, as pessoas pensam que trabalho de cego não tem que ter
parte estética. Eu gosto de estar bonita no palco, a gente tem que
sentir isso sempre, porque é importante a gente se incluir. A inclusão
não é ter a presença física na sala de aula, é ter a inclusão
intelectual, é isso! (sujeito 4, cega, sexo feminino, 16 anos)
Outra entrevistada também sublinha a relevância do teatro em sua vida
cotidiana e afirma que com o teatro o corpo ficou mais solto e ela mais
desinibida:
-
(...) o teatro deixa meu corpo mole e isso me ajuda muito nas outras
atividades.O que eu mais gosto no teatro é que meu corpo passeia em
outros mundos, nos mundos dos personagens e isso muda o meu jeito de
perceber o meu mundo, este aqui (...) antes [de fazer teatro] eu era
muito tímida, eu chegava lá na escola quando eu era do jardim, eu
chorava que não queria entrar lá pra sala, aí tem até uma amiguinha que
falou: É assim que você quer crescer e ser feliz? Hoje em dia eu me
soltei bastante, depois do teatro, foi aí que eu me soltei. (sujeito 1,
cega, sexo feminino, 12 anos de idade)
O sujeito 3 fala sobre o processo de construção do corpo do personagem
como algo que vai além da memorização da fala e que implica uma
transformação real do seu modo de conhecer o mundo:
-
Eu consigo entrar dentro do personagem, consigo pegar o jeito do
personagem. Não é só você ler e falar o que o personagem tem que falar…
é você tentar entrar dentro do personagem… e eu consigo fazer isso,
entendeu? E isso muda completamente o meu jeito de pensar o mundo, eu
penso o mundo diferente porque no teatro eu vivo coisas diferentes da
minha vida (...) ali no teatro você vive várias coisas, você vive vários
lugares, vários aprendizados também, muitas coisas. Tem horas para a
gente rir e às vezes para chorar, tem todo tipo de aprendizado, como se
fosse um cinema, só que esse cinema é feito por pessoas que a gente
mesmo conhece, é real, na hora realmente, é muito melhor do que um
cinema, do que uma televisão, porque é feito pela gente, é real, muda a
nossa vida de verdade. (sujeito 3, cego, sexo masculino, 14 anos de
idade).
Nosso trabalho de campo nos leva a retomar o tema do corpo como
suporte da percepção, sublinhando que este corpo é construído, elaborado
através das atividades de teatro. Trata-se de entender o corpo num
referencial longe daquele que marcava as pesquisas experimentais.
Através deste trabalho temos buscado novos referenciais teóricos para
refletir sobre o corpo como suporte da percepção entre pessoas cegas e
com baixa visão. No campo da filosofia, retomamos algumas contribuições
do filósofo Michel Serres que entende o corpo como variação, como
diferenciação que implica a construção do mundo e de si. Assim, o
sujeito e o mundo são co-construídos através das atividades do teatro.
Nas palavras do autor "o corpo é o suporte da intuição, da memória, do
saber, do trabalho e, sobretudo, da invenção" (SERRES, 2004, p.36).
Na atualidade, Bruno Latour (1999) afirma que ter um corpo é ser
afetado, movido e efetuado por conexões com outros homens e com nãohumanos.
Isso significa dizer que o corpo é o efeito de redes4 de
articulação que ligam humanos e dispositivos técnicos os mais
heterogêneos e díspares. O interessante deste enfoque é apontar para o
lugar e o papel dos não-humanos na construção do corpo. Assim, podemos
dizer que o teatro, os textos, os personagens, o palco, as marcações, as
experimentações corporais são aliados importantes nas redes que se tecem
para a elaboração do personagem e das posturas corporais do ator. Por
esta via, nosso trabalho indica que as reflexões sobre o corpo como
suporte da percepção exigem nova reflexão sobre a epistemologia da
psicologia. Nossas alianças para refletir sobre este tema não estão mais
articuladas com a fisiologia experimental, mas antes com a arte e com as
epistemologias contemporâneas que nos permitem tratar do corpo longe da
dicotomia sujeito x objeto.
NOTAS DE RODAPÉ
Este trabalho é fruto de projeto de pesquisa financiado pelo PIBIC (FAPERJ / CNPq). Aline Alves de Lima e Carolina
Cardoso Manso são bolsistas de iniciação científica que participam do projeto e colaboraram na elaboração deste artigo.
Agradeço aos profissionais do Instituto Benjamin Constant e, em particular, à professora Marlíria Flávia Coelho da
Cunha, pela possibilidade de realizarmos o trabalho de campo desta pesquisa.
-
Tese que Proust atribui à filosofia aristotélica. Ver Proust, 1997, p.1.
-
Para definir os sujeitos como cegos adotamos uma definição funcional de cegueira, isto é, consideramos cegos
aqueles que fazem uso do braille como sistema exclusivo de escrita e leitura. Foram considerados videntes os que fazem
uso exclusivo da tinta para a escrita e a leitura. A este respeito conferir Amarilian, 1997.
-
A peça O Mágico de Oz foi dirigida pela professora do Instituto Benjamin Constant, Marlíria Flávia Coelho da
Cunha.
-
Consideramos a noção de rede como um plano de imanência no qual se articulam atores heterogêneos e díspares,
humanos e não-humanos. Ver a este respeito Latour, 1999.
REFERÊNCIAS
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ϟ
Márcia Moraes é Professora do Programa de Pós-graduação em Estudos da Subjetividade /
Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
in Revista Benjamin Constant (Rio de Janeiro) , v. 12, n. 33, p. 15-20, 2006.
Δ
17.Out.2014
publicado
por
MJA
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