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 Sobre a Deficiência Visual

Ver e Não Ver — sobre o Corpo como Suporte da Percepção entre Jovens Deficientes Visuais

Márcia Moraes
 


Molineux e o seu Problema

 

RESUMO Este trabalho teve como objetivo investigar o papel do corpo como suporte da percepção entre jovens deficientes visuais. O levantamento bibliográfico indicou que, na história da psicologia, o século XIX é um marco nas pesquisas sobre percepção, uma vez que, através da fisiologia experimental, o corpo fisiológico, mecanicamente concebido, é considerado o suporte e o fundamento da percepção. Diferentemente desta abordagem, nosso trabalho de pesquisa aponta para o corpo vivido, como o solo a partir do qual se constrói a percepção. O trabalho de campo seguiu uma postura etnográfica e foi desenvolvido através da observação participante de um grupo de teatro formado por deficientes visuais, com idades entre 10 e 16 anos. Os resultados sublinham a importância da redefinição do corpo como suporte da percepção.

 

INTRODUÇÃO:

O ver e o não-ver no problema de Molyneux

No século XVII, o cientista irlandês William Molyneux endereça carta ao filósofo John Locke, levantando uma questão acerca de um cego de nascimento que recupera a visão na vida adulta. Este problema inaugurou uma série de discussões filosóficas e psicológicas em torno do tema da percepção. Não é nosso propósito estabelecer um mapeamento exaustivo de todas as respostas e retomadas que o problema de Molyneux encontrou na filosofia ocidental. Tal tarefa tem sido levada a cabo por diversos autores, desde as considerações de Locke ou Diderot até as recentes pesquisas na área da psicologia cognitiva.

Enunciemos, portanto, a questão levantada pelo cientista irlandês:

Supõe-se um cego de nascença que se tenha tornado homem feito, e a quem se ensina a distinguir, pelo contato, um cubo e um globo de mesmo metal e quase de mesma grandeza, de modo que, ao tocar em um ou em outro, possa dizer qual é o cubo e qual é o globo. Supõe-se que, estando o cubo e o globo colocados sobre uma mesa, o referido cego venha a usufruir da visão; e se lhe pergunta se, vendo-os sem tocá-los, poderá discerni-los e dizer qual é o cubo e qual é o globo (DIDEROT, 1979, p.21).

Na história da filosofia, o problema de Molyneux tem sido analisado de diversas perspectivas. De um lado, pode-se perguntar pelo lugar e papel da experiência no exercício do conhecimento, o que foi amplamente discutido na filosofia pelos empiristas e racionalistas e que, de algum modo, aparece mais uma vez na questão de Molyneux. De outro lado, o problema traz em seu bojo uma interrogação acerca da interconexão entre os diferentes sentidos. A resposta afirmativa à questão de Molyneux apoia-se muitas vezes na suposição da existência dos sensíveis comuns1, isto é, propriedades dos objetos que podem ser apreendidas por sentidos diversos, como a visão e o tato. Assim, o cego que recuperasse a visão poderia transferir para o domínio visual o conhecimento adquirido através do tato.

É certo que se pode considerar a questão do cego que volta a enxergar também de um ponto de vista empírico, clínico. Mas este enfoque acrescenta novas dimensões ao problema propriamente dito, já que se faz necessário analisar o tipo de patologia que acometia a visão, se a cegueira era total ou parcial, o modo e o quanto da visão foi de fato recuperado, entre outros pontos. Neste trabalho não nos interessa seguir essa linha de análise. Consideramos a questão de Molyneux como um problema teórico e epistemológico que, em maior ou menor medida, é resgatado pela psicologia no século XIX e é mais uma vez retomado quando nos interrogamos sobre o modo como se constitui a percepção sem a visão.

A partir deste debate proposto por Molyneux interessa-nos circunscrever o tema do perceber sem ver. O que é e como ocorre a percepção sem a visão? Eis o que nos interessa investigar. Na questão levantada pelo cientista irlandês, o tema do não-ver está relacionado diretamente ao ver. Como nos adverte Belarmino (2004), no paradoxo de Molyneux o que está em jogo não é a questão da cegueira, mas o modo de ver de um cego que recupera a visão. Dito com outras palavras é ainda sobre o ver que o cientista irlandês levanta sua interrogação. Neste trabalho de pesquisa, investigamos de um lado o perceber sem ver e de outro lado, perguntamos pelo papel do corpo na construção da percepção entre jovens cegos e com baixa visão.
 

A PSICOLOGIA NO SÉCULO XIX:

a fragmentação do corpo e a centralidade da percepção visual Tradicionalmente na psicologia, o estudo da percepção é referido às possibilidades e aos impasses da quantificação, da previsão e do controle da experiência (BORING, 1985). Este elo entre a percepção e o mundo objetivo é central para as pesquisas experimentais. Isso porque o modelo de pesquisa experimental, inaugurado na modernidade, supõe a possibilidade de manipulação de um evento – uma causa – e a mensuração dos efeitos deste evento sobre outro – o fenômeno investigado. Assim, para conhecer experimentalmente o processo perceptivo é necessário manipular o mundo, ou seja, os estímulos físicos, e medir a transformação que esta manipulação provoca na percepção.

Desse modo, para investigar experimentalmente a percepção, é preciso concebê-la numa dupla articulação: de um lado, como um acontecimento fisiológico que se origina no e depende do corpo como seu substrato fisiológico (CRARY, 1990). Daí decorre toda a importância que tem a fisiologia do século XIX para o estudo da percepção. De outro lado, é preciso considerá-la como um evento psicológico que, em última instância, representa o mundo físico, objetivo, concebido mecanicamente como extensão e movimento. Fazer esta investigação experimental consiste em definir o fato psicológico através de uma aliança entre a fisiologia e a física. É a própria definição de psicologia que se vê atrelada a estas alianças: a psicologia no século XIX é um saber que se situa entre a física e a fisiologia.

Em suas pesquisas acerca deste tema, Crary (1990, 1999, 2002) sublinha os impasses encontrados por esta linha de pesquisa. O autor propõe uma análise histórica e epistemológica da percepção, em particular no século XIX, sublinhando os limites das pesquisas experimentais neste campo. A definição da percepção a partir do seu suporte na fisiologia experimental é para Crary (1990) problemática, uma vez que a fisiologia do século XIX demarcava as especificidades do corpo, no que diz respeito às suas reações frente aos estímulos oriundos do mundo físico. Ao mencionar a fisiologia de J. Muller, Crary (1990) demonstra que a energia nervosa específica caracteriza a autonomia do corpo em relação aos estímulos externos, ou seja, indica que o corpo fisiológico tem sua especificidade, seu modo próprio de reagir aos estímulos físicos, o que significa dizer que, uma vez que um estímulo chegue a um ponto sensorial, ele será capturado segundo uma sintaxe própria, específica desta terminação sensorial. Desse modo, a correspondência entre o mundo externo – os estímulos – e a percepção é problemática, porque o corpo, longe de garantir a objetividade da percepção, afirma a sua parcialidade. Assim, Crary (1999) aponta que, já na psicofísica, é polêmica a possibilidade de encontrar uma correspondência fiel, objetiva, entre o universo sensível e perceptivo e o mundo objetivo.

Isso porque as pesquisas sobre a sensação e sobre os limiares da percepção, levadas a cabo no século XIX no campo da psicofísica, demarcavam a labilidade do processo perceptivo frente aos estímulos. O que nos interessa circunscrever nos trabalhos de Crary (1999, 2002) é a sua tese a respeito dos limites e impasses nos estudos experimentais acerca da percepção.

Tradicionalmente no pensamento ocidental, o conhecer e o ver estão diretamente relacionados (CHAUÍ, 1988). A história da psicologia da percepção é predominantemente uma história sobre a aquisição de conhecimento através da visão.

Em nosso trabalho de pesquisa, consideramos positivos esses impasses, ou seja, eles são nossos pontos de partida para buscar outros referenciais para o estudo do perceber. Podemos dizer que nosso trabalho situa-se num referencial longe daquele que marcou as primeiras pesquisas sobre este assunto no século XIX: a previsão, o controle e a possibilidade de mensuração da experiência psicológica não estão no centro de nossas investigações. Por esta via, podemos estudar a percepção através de alianças não só com a física mecanicista e com a fisiologia, mas também através de alianças entre a psicologia e a antropologia, a geografia, a arquitetura. Neste campo problemático, optamos por investigar as alianças entre arte e percepção.

A proposta deste trabalho é, portanto, operar um duplo deslocamento:

Em primeiro lugar, deslocar as alianças da psicologia com a física mecanicista e com a fisiologia, e afirmar como caminho a aliança com a arte. Neste ponto, consideramos que nosso trabalho de pesquisa pode ser situado numa linha indicada por Crary (1990, 2002). Isso porque, como dissemos acima, este autor aponta para os limites da definição da percepção como espelho do mundo físico e objetivo.

Em segundo lugar, deslocar o paradigma visuocêntrico que, segundo Belarmino (2004), marcou as pesquisas sobre o perceber e o conhecer na filosofia ocidental. Mesmo se considerarmos a importância do debate suscitado por Molyneux, concordamos com Belarmino (2004), quando a autora afirma que no debate aberto pelo cientista irlandês, o que estava em jogo era o ver, isto é, o que era considerado como um problema a ser investigado era a visão recém-adquirida por um cego de nascimento. Assim sendo, no paradoxo de Molyneux o que é afirmado mais uma vez é a centralidade do ver no exercício do conhecer. O não-ver esteve, portanto, longe do cenário filosófico e psicológico da modernidade.


O TEATRO, O CORPO E A PERCEPÇÃO

É a partir destes deslocamentos epistemológicos que desenvolvemos, desde o ano de 2003, o projeto de pesquisa intitulado Arte e Percepção entre Crianças Deficientes Visuais no Instituto Benjamin Constant (IBC).

Com 150 anos de existência, o IBC é um centro de referência no país, desenvolvendo uma série de atividades ligadas à educação e à cidadania da pessoa deficiente visual.

Com este trabalho, investigamos a percepção entre sujeitos cegos e com baixa visão, partindo da observação das atividades de teatro propostas em oficina extra-curricular para os alunos regularmente matriculados no IBC. Perguntamo-nos: de que modo o teatro pode funcionar como dispositivo cognitivo, disparando a construção da percepção dos sujeitos da pesquisa? A experiência do teatro com deficientes visuais permite-nos acompanhar o modo como o sujeito utiliza os sentidos para a elaboração do mundo e do universo do personagem. O espaço cênico cria um campo de aprendizagem que engloba diversos pontos fundamentais no desenvolvimento cognitivo e perceptivo do sujeito deficiente visual: a orientação e a locomoção, as relações interpessoais, a orientação do corpo no espaço, etc. O trabalho de construção dos personagens, bem como a memorização do texto implica, portanto, um dispositivo cognitivo que leva à criação e à produção de um universo perceptivo cujos efeitos são incorporados pelo sujeito em seu dia-a-dia. O ponto central a ser destacado neste processo é aquele que diz respeito ao papel que a arte assume na construção do mundo cognitivo/perceptivo dos sujeitos. Isso significa dizer que as percepções e aprendizagens que o teatro viabiliza passam a ser incorporadas à vida da pessoa deficiente visual, ao seu cotidiano.

Masini (1994) comenta que a educação do deficiente visual é, na maior parte das vezes, centrada em padrões de aprendizagem adotados pelos videntes. Segundo a autora, educar deficientes visuais de acordo com tais padrões produz um desconhecimento das especificidades destes sujeitos. Assim, conhecer o modo como o deficiente visual conhece o mundo é fundamental para a elaboração de estratégias pedagógicas voltadas para estes aprendentes. Desse modo, nosso trabalho de pesquisa pode servir de ponto de partida para refletirmos sobre o papel do teatro como recurso pedagógico voltado para o ensino do deficiente visual, considerado em sua especificidade, em seu modo singular de ser e estar no mundo.

No teatro, a elaboração de cada personagem passa por diversas etapas nas quais o que se pode notar é o progressivo envolvimento do sujeito com o universo daquele. Merece destaque o papel que o corpo assume na construção e elaboração dos personagens. Falar da importância do corpo nesta construção ou mesmo na elaboração do universo perceptivo não traz em si nenhuma novidade. A psicologia, herdeira do cartesianismo, assume o corpo-máquina como suporte de toda e qualquer percepção. Como dito anteriormente, no século XIX, o estudo da percepção centrava-se no corpo fisiológico, isto é, a origem última da percepção remontava a acontecimentos de ordem sensorial e fisiológica.

Nas atividades de teatro o que está em jogo não é o corpo-máquina, mas o corpo vivido, experimentado, corpo singular. E mais do que isso, o processo de construção do personagem parece implicar ao mesmo tempo uma produção de si e do mundo. Ou seja, na medida em que elabora corporal e subjetivamente o personagem, o sujeito não só modifica seu modo de estar no mundo, como também o mundo que ele conhece. A relação é, portanto, recíproca. É interessante sublinhar que a construção dos personagens não passa pela visão, mas por outras experiências corporais: pelo manuseio de objetos, pela audição, pelo olfato, em suma, trata-se de considerar o corpo como superfície cognitiva, como espaço de elaboração do mundo e de si mesmo. Desse processo resulta uma experiência perceptiva inteiramente original. As percepções do espaço, do tempo, entre outras, são produzidas através da experiência do teatro. Nas palavras de Bavcar (2003), "para um cego é todo o corpo que de algum modo se torna órgão da vista, pois qualquer parte do corpo pode olhar de perto um objeto que lhe seja exterior" (p. 182).

Assim, este trabalho nos leva a problematizar a epistemologia tradicional da psicologia da percepção, isto é, aquela que circunscrevia o estudo dos processos perceptivos aos rigores do método experimental.

Investigar o perceber entre sujeitos cegos e com baixa visão nos coloca diante do desafio de buscar outros referenciais, outras alianças que definam o campo de investigação da psicologia. Não mais centrada no modelo experimental, mas uma psicologia que se faça através de uma aliança com a arte e que aponte para o corpo todo e não apenas para a visão como ponto de partida para a construção do mundo percebido.

Parece-nos que seria preciso afirmar uma psicologia que se ocupasse com os processos de criação implicados na percepção, não com a finalidade de demarcar fronteiras entre criações verdadeiras, legítimas e as falsas, mas uma psicologia cuja tarefa seria seguir, acompanhar esta criação de mundos. Pesquisar o que é perceber sem ver é retomar o que ficou de fora da psicologia tradicional, é perguntar por um conhecer que talvez não esteja descrito nos grandes manuais de filosofia e de psicologia.
 

MÉTODO

Este trabalho foi desenvolvido através da postura etnográfica, seguindo a proposta de Boumard (1999). Para o autor é necessário distinguir entre etnografia como método e etnografia como postura. Como método, a etnografia é uma técnica de investigação que se centraliza na observação participativa e insiste “nas técnicas de trabalho de campo, nas práticas de observação, no diálogo etnográfico como dispositivo (...) levando a recortes com as histórias de vida ou algumas formas da pesquisa-ação” (BOUMARD, 1999, p.1).

Compreender a etnografia como postura consiste em aliar de modo indissociável metodologia e epistemologia. Isso porque a postura etnográfica está alicerçada na "idéia de ir ao campo e dele não fazer o elemento da administração da prova, mas o material indispensável para que o discurso sobre o outro tenha sentido" (BOUMARD, 1999, p.2).

Desse modo, nosso trabalho de campo privilegia a investigação e o contato direto das pesquisadoras com os alunos e professores do Instituto Benjamin Constant, envolvidos com as atividades de teatro, que acontecem duas vezes por semana, perfazendo um total de 5 horas semanais de ensaios, vivências e dinâmicas ligadas à construção dos personagens.

Assim, nossa proposta metodológica distancia-se de outros métodos de pesquisa que supõem a distinção e separação radical entre o pesquisador e o pesquisado.

Para usar o vocabulário institucionalista [podemos dizer] que o etnógrafo, definido como tal em função de seu olhar, é ao mesmo tempo implicado [isto é] (...) a investigação etnográfica dá lugar pleno ao sujeito numa atitude de atenção flutuante, nunca neutra, sempre à espreita duma eventual produção de sentido (...) Trata-se evidentemente de captar o ponto de vista dos membros do grupo estudado, mas não os observando apenas, nem mesmo pedindo-lhes que explicitem seus atos. Na tecelagem etnográfica o investigador situa as descrições no seu próprio contexto, sendo assim levado a considerar as produções dos membros do grupo estudado como verdadeiras instruções de investigação (BOUMARD, 1999, p.3).

Assim, a postura etnográfica está enredada numa perspectiva epistemológica que afirma o caráter construído da realidade. Este aspecto será retomado nas discussões epistemológicas que nosso trabalho de pesquisa nos leva a formular.
 

CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA E COLETA DE DADOS

O projeto foi desenvolvido através da observação participante do grupo de teatro composto por 9 sujeitos deficientes visuais, com idades entre 10 e 16 anos, sendo 4 cegos2 e 5 com baixa visão. Para a coleta de dados fez-se necessária a elaboração do diário de campo, no qual foram anotadas as atividades desenvolvidas, as observações das pesquisadoras e suas implicações com o processo da pesquisa. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os sujeitos que participaram das atividades de teatro. Destacamos que a pesquisadora participou de todo o processo de construção, elaboração e desenvolvimento das referidas atividades.
 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Foram entrevistados os 9 sujeitos que participaram do grupo de teatro durante o ano de 2004. As entrevistas foram realizadas em dois momentos: o primeiro, quando os sujeitos iniciavam os ensaios e o segundo, ao final do ano, depois da encenação da peça O Mágico de Oz no teatro do Instituto Benjamin Constant.3

Através das entrevistas constatamos alguns pontos importantes sobre o papel do corpo na percepção:

(...) não tenho dificuldade de me localizar no palco. O teatro faz eu entender melhor meu corpo, o que é bom para eu fazer outras coisas. Com o teatro eu fico mais desinibido e eu mostro para todo mundo que o cego pode fazer um monte de coisas. (sujeito 2, cego, sexo masculino, 13 anos de idade)

 

(...) para conhecer as minhas marcações eu tenho que ficar atento ao movimento dos outros, aos sons e às falas dos outros personagens. Para fazer o personagem do homem de lata eu tive que tocar um boneco, feito um robô, fiquei dias brincando com ele até que comecei a fazer com o meu corpo os movimentos que eu percebi no boneco. Depois disso eu consegui inventar a voz do homem de lata (sujeito 3, cego, sexo masculino, 14 anos de idade).

As anotações no diário de campo indicam que os exercícios de experimentação do corpo, ligados às atividades de teatro, são pontos de partida para a invenção de posturas corporais inteiramente novas.

Pudemos observar que o envolvimento do sujeito com o espaço lúdico do teatro faz com que sua imagem corporal seja reelaborada.

Nas falas dos sujeitos encontramos algumas considerações importantes sobre os efeitos que as atividades de teatro produzem nos seus cotidianos. Foi apontado que as experimentações e os jogos teatrais permitem conhecer outros modos de estar no mundo, abrem outras possibilidades de afetar e ser afetado por ele. Alguns entrevistados indicaram que o exercício teatral funciona como um dispositivo que problematiza o lugar do ser cego no contexto social e que retoma de algum modo o tema da inclusão. Conforme a fala de uma entrevistada:

Na verdade, as pessoas pensam que trabalho de cego não tem que ter parte estética. Eu gosto de estar bonita no palco, a gente tem que sentir isso sempre, porque é importante a gente se incluir. A inclusão não é ter a presença física na sala de aula, é ter a inclusão intelectual, é isso! (sujeito 4, cega, sexo feminino, 16 anos) Outra entrevistada também sublinha a relevância do teatro em sua vida cotidiana e afirma que com o teatro o corpo ficou mais solto e ela mais desinibida:

(...) o teatro deixa meu corpo mole e isso me ajuda muito nas outras atividades.O que eu mais gosto no teatro é que meu corpo passeia em outros mundos, nos mundos dos personagens e isso muda o meu jeito de perceber o meu mundo, este aqui (...) antes [de fazer teatro] eu era muito tímida, eu chegava lá na escola quando eu era do jardim, eu chorava que não queria entrar lá pra sala, aí tem até uma amiguinha que falou: É assim que você quer crescer e ser feliz? Hoje em dia eu me soltei bastante, depois do teatro, foi aí que eu me soltei. (sujeito 1, cega, sexo feminino, 12 anos de idade)

O sujeito 3 fala sobre o processo de construção do corpo do personagem como algo que vai além da memorização da fala e que implica uma transformação real do seu modo de conhecer o mundo:

Eu consigo entrar dentro do personagem, consigo pegar o jeito do personagem. Não é só você ler e falar o que o personagem tem que falar… é você tentar entrar dentro do personagem… e eu consigo fazer isso, entendeu? E isso muda completamente o meu jeito de pensar o mundo, eu penso o mundo diferente porque no teatro eu vivo coisas diferentes da minha vida (...) ali no teatro você vive várias coisas, você vive vários lugares, vários aprendizados também, muitas coisas. Tem horas para a gente rir e às vezes para chorar, tem todo tipo de aprendizado, como se fosse um cinema, só que esse cinema é feito por pessoas que a gente mesmo conhece, é real, na hora realmente, é muito melhor do que um cinema, do que uma televisão, porque é feito pela gente, é real, muda a nossa vida de verdade. (sujeito 3, cego, sexo masculino, 14 anos de idade).

Nosso trabalho de campo nos leva a retomar o tema do corpo como suporte da percepção, sublinhando que este corpo é construído, elaborado através das atividades de teatro. Trata-se de entender o corpo num referencial longe daquele que marcava as pesquisas experimentais.

Através deste trabalho temos buscado novos referenciais teóricos para refletir sobre o corpo como suporte da percepção entre pessoas cegas e com baixa visão. No campo da filosofia, retomamos algumas contribuições do filósofo Michel Serres que entende o corpo como variação, como diferenciação que implica a construção do mundo e de si. Assim, o sujeito e o mundo são co-construídos através das atividades do teatro.

Nas palavras do autor "o corpo é o suporte da intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo, da invenção" (SERRES, 2004, p.36).

Na atualidade, Bruno Latour (1999) afirma que ter um corpo é ser afetado, movido e efetuado por conexões com outros homens e com nãohumanos.

Isso significa dizer que o corpo é o efeito de redes4 de articulação que ligam humanos e dispositivos técnicos os mais heterogêneos e díspares. O interessante deste enfoque é apontar para o lugar e o papel dos não-humanos na construção do corpo. Assim, podemos dizer que o teatro, os textos, os personagens, o palco, as marcações, as experimentações corporais são aliados importantes nas redes que se tecem para a elaboração do personagem e das posturas corporais do ator. Por esta via, nosso trabalho indica que as reflexões sobre o corpo como suporte da percepção exigem nova reflexão sobre a epistemologia da psicologia. Nossas alianças para refletir sobre este tema não estão mais articuladas com a fisiologia experimental, mas antes com a arte e com as epistemologias contemporâneas que nos permitem tratar do corpo longe da dicotomia sujeito x objeto.


NOTAS DE RODAPÉ

Este trabalho é fruto de projeto de pesquisa financiado pelo PIBIC (FAPERJ / CNPq). Aline Alves de Lima e Carolina Cardoso Manso são bolsistas de iniciação científica que participam do projeto e colaboraram na elaboração deste artigo. Agradeço aos profissionais do Instituto Benjamin Constant e, em particular, à professora Marlíria Flávia Coelho da Cunha, pela possibilidade de realizarmos o trabalho de campo desta pesquisa.

  1. Tese que Proust atribui à filosofia aristotélica. Ver Proust, 1997, p.1.

  2. Para definir os sujeitos como cegos adotamos uma definição funcional de cegueira, isto é, consideramos cegos aqueles que fazem uso do braille como sistema exclusivo de escrita e leitura. Foram considerados videntes os que fazem uso exclusivo da tinta para a escrita e a leitura. A este respeito conferir Amarilian, 1997.

  3. A peça O Mágico de Oz foi dirigida pela professora do Instituto Benjamin Constant, Marlíria Flávia Coelho da Cunha.

  4. Consideramos a noção de rede como um plano de imanência no qual se articulam atores heterogêneos e díspares, humanos e não-humanos. Ver a este respeito Latour, 1999.

 

REFERÊNCIAS

  • AMARILIAN, M. L. T. Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estorias - São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
  • BARROS, A. Práticas discursivas ao olhar. Notas sobre a vidência e a cegueira na formação do pedagogo. Rio de Janeiro: E-papers, 2003.
  • BAVCAR, E. O corpo espelho partido da história. In: Novaes, A. (org) O homem-máquina. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003.
  • BELARMINO, J. Aspectos comunicativos da percepção tátil:a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC (SP), 2004.
  • BORING, E. G. Historia de la Psicología Experimental. Mexico: Editorial Trillas, 1985.
  • BOUMARD, P. O lugar da etnografia nas epistemologias construtivistas. Revista de Psicologia Social e Institucional - UEL, vol.1, nº 2, 1999. Documento eletrônico, disponível em: <http://www2.uel.br/ccb/psicologia/revista/textov1n22.htm> Acesso em: 2003.
  • CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, A. (org) O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
  • CRARY, J. Techniques of the observer. On vision and modernity in the nineteenth century. England: Mit Press, 1990.
  • CRARY, J. Suspensions of perception. Culture, spectacle and modern culture. Cambridge: The Mit Press, 1999.
  • CRARY, J. A Visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX. In: CHARNEY, L. & SCHUARTZ, V. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.
  • DIDEROT, D. Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem  In: Textos escolhidos. Diderot. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
  • LATOUR, B. How to talk about the body? The normative dimension of science studies Documento eletrônico, 1999. Disponível em: <http://www.ensmp.fr/~latour/articles/article/077.html>. Acesso em: dez. 2004.
  • LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
  • LATOUR, B. & Woolgar, S. A vida de laboratório. A produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
  • LIÉBANA, I. El ciego de Molyneux: un problema metafísico sobre iterconexión sensorial, 1998. Documento eletrônico. Disponível em: <http://www.cepmalaga.com/actividades/Interedvisual/ftp/ismael_ml_moline ux.doc>. Acesso em: dez. 2004.
  • MASINI, E. O Perceber e o Relacionar-se do Deficiente Visual - Brasília: Coordenadoria Nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, 1994.
  • MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
  • PROUST, J. Perception et intermodalilité. Approches acutelles de la question de Molyneux. Paris: Presses Universitaires, 1997.
  • SERRES, M. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

 

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Márcia Moraes é Professora do Programa de Pós-graduação em Estudos da Subjetividade / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
in Revista Benjamin Constant (Rio de Janeiro) , v. 12, n. 33, p. 15-20, 2006.

 

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17.Out.2014
publicado por MJA