Elcie Salzano Masini
Alfonso Castelao, 1941
OS CAMINHOS DA FENOMENOLOGIA
A obra da Prof.ª Elcie Masini, "O perceber e o relacionar-se do
Deficiente
Visual" - em sua parte metodológica inspirada na Fenomenologia, traz
à
discussão mais uma vez a questão dos caminhos do movimento
fenômenológico.
Reconhecida como uma das mais notáveis manifestações
filosóficas deste século, a Fenomenologia inaugurada por Edmund
Husserl, desperta grande interesse não só por parte dos filósofos, mas
também por parte de cientistas sociais e educadores.
A história é feita de pensamento em ato, e pensar esses
pensamentos é filosofar.
Em seu início, o projeto husserliano despertou ceticismo. As suas
"investigações Lógicas"publicadas em 1900 e 1901, provocaram, no
pensamento filosófico, uma revolução decisiva porém lenta. Seu
caráter eminentemente abstrato e especulativo dificultou a leitura e
compreensão. Com esta obra encaminhou Husserl, em 1905, sua
candidatura ao cargo de Professor
Ordinário (titular) na Universidade de Cóttingen. Foi rejeitado. A razão
alegada pelo Conselho da Universidade: "falta de interesse cientifico".
Fica patente, hoje, que a comissão examinadora não compreendeu o
que leu, supondo, naturalmente, que tenha conseguido ler! Algo
mudou, no entanto, pois no ano seguinte Husserl conseguiu o cargo
pleiteado.
No início de sua trajetória encontramos Husserl preocupado com a
questão do fundamento absoluto das ciências e com o ideal da
Filosofia como ciência rigorosa, sendo a Fenomenologia a filosofia
capaz de cumprir a tarefa de fundamentação das ciêncías.
No final de sua vida, no entanto, Husserl, na sua obra "A crise das
ciências européias e a Fenomenologia Transcendental", revê sua
própria posição. O diagnóstico de crise formulado às ciências tem um
sentido ético e antropológico. Tais ciências ao não se interessarem
pela questão do próprio fundamento, desviam-se também da
subjetividade humana. "As questões feitas o sobre o sentido ou a
ausência de sentido da existência humana, indaga Husserl sobre a
razão e a não-razão, sobre nós mesmos enquanto sujeitos de
liberdade o que a ciência tem a nos dizer?"
Considerada um mito, ou mais recentemente uma moda, é
necessário 'compreender afirma Merleau-Ponty no prefácio à sua
Fenomenologia de Percepção o prestígio desse mito e a origem dessa
moda; e a sociedade filosófica traduzirá tal situação dizendo que a
Fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como maneira e como
estilo, ela existe como movimento, antes de ter chegado à completa
consciência filosófica".
Com seu projeto Husserl tentou elaborar um fundamento radical
para a Filosofia e para as ciências.
A Fenomenologia nas trilhas da busca da evidência herdada de
Descartes - evidencia que para Husserl deveria ser a política, vale
dizer, imune a qualquer dúvida - como método de evidenciação,
conduzida pela pedra angular de seu método que é a redução, não
conseguiu impôr-se de modo indubitável. Tal método das reduções,
através da "epoché" não despertou interesse em nenhum dos
seguidores.
As seduções, através da "epoché" (suspensão do juízo, colocação
entre parêntese visavam basicamente a mudança de atitude. A atitude
natural, onde vivemos espontaneamente e consideramos os objetos
como exteriores à consciência, existentes em si, deve transformar-se,
pelas reduções, numa atitude transcendental para a qual a realidade
exterior, (transcendente), dos objetos era colocada entre parênteses,
pela suspensão do juízo sobre sua existência real (exterior), sendo,
então, estes objetos considerados como meramente significados - os
objetos intencionados.
Pela "epoché", o que é posto entre parênteses é a nossa certeza
espontânea na realidade transcendente, isto é, exterior à consciência.
Para Husserl o fundamento absoluto deveria estar no objeto enquanto
consciente- noema -, pois a consciência do objeto exterior (noese) é
mais evidente do que o próprio objeto exterior. A crença no objeto
exterior é praticamente certa, porém, corno o filósofo não pode
contentar-se com certezas meramente práticas, deve buscar uma
certeza numa evidência apolítica. O campo de investigação está,
então, estabelecido para Husserl: será o campo da consciência pura e
seus estados, frente ao objeto puro, o objeto intencional, o fenômeno.
Estamos no âmago do idealismo transcendental fenomenológico. A
teoria fenomenológica do objeto intencional - a coisa como revelada à
consciência, corno fenômeno - é uma forte crítica ao idealismo,
enquanto considera essa realidade como meramente idealizada, fruto
da consciência. Husserl sustenta um idealismo metódico, somente ao
nível da atitude transcendental. Ele não é idealista ao nível da atitude
natural.
Muito se tem escrito sobre a Fenomenologia; tem sido ela muito
criticada. Tais leituras e críticas externas não conseguem muitas
vezes nem perceber a falha de sua argumentação. Primeiro pela
generalização, considerando a Fenomenologia como um sistema
monolítico, fechado,. não vendo que ela é, antes um movimento, um
caminho que se lança em várias direções. Segundo, reduzem a
Fenomenologia às obras de Husserl. A crítica externa elabora sempre
uma caricatura do objeto a ser criticado, a partir de seus próprios
supostos. A crítica externa se reduz a um confronto de forças, a um
esforço em "fazer valer um ponto de vista parcial contra outros pontos
de vista não menos parciais ela é, então, polêmica sectária " (Hegel).
Além de apresentar uma ineficácia prática, toda crítica externa revela
uma incapacidade radical de transformar o objeto de crítica ao
desqualificar de antemão, qualquer exigência de crítica interna. A
crítica externa na sua ineficácia, nada faz senão abandonar a razão
substituindo-a pela violência desmistificadora, deixando intacto o
objeto da crítica e leva a tachar o pensamento filosófico criticado como
insignificante.
A reação provocada pelo projeto husserliano foi notável, a ponto de
levar Paul Ricoeur, o mais eminente fenomenólogo vivo, a afirmar que
a história da fenomenologia é a história de uma heterodoxia. Eugen
Fink, aluno e último colaborador de Husserl considera estranho que
todos os efeitos notados da fenomenologia não provêm de uma
compreensão concreta mas se sustentam sobre apropriações
periféricas da obra de Husserl.
As críticas contemporâneas não lograram, segundo Fink,
compreender o verdadeiro sentido do projeto husserliano. Muitas
foram as etiquetas atribuídas à fenomenologia de Husserl: lógica,
ciência eidética, teoria do conhecimento, idealismo, intuicionismo
dogmático. E, curiosamente cada uma dessas denominações podem
encontrar fundamento em uma ou outra passagem das obras de
Husserl. O sentido próprio central da fenomenologia permanece no
entanto, desconhecido (Fink, De la phénoménologie p. 177). Muitos
consideram Husserl como uma vítima de seu próprio anseio de radical
evidenciação "Pôr tudo rigorosamente entre parênteses, a fim de parar
na mera significação equivale a afirmar que se significa, ultimamente,
aquilo que não existe e portanto, aquilo que não se pode significar
(Fragata, j. - "Problemas da fenomenologia de Husserl",p. 41).
Diversos filósofos se inspiraram nas intuições de Husserl e em seu
projeto, e teceram com suas reflexões próprias, os caminhos da
fenomenologia. Todos porém sentiram a necessidade de depurá-la do
"idealismo transcendental". Heidegger salientou os inconvenientes da
"atitude transcendental", (em nota ao artigo de Husserl publicado na
"Enciclopédia Britânica") e a incompreensão do "eu absoluto ". A
proposta husserliana, através do método de evidenciação que
impunha aos filósofos e aos cientistas, manterem-se na atitude
transcendental, transcendendo a atitude natural, não teve
prosseguimento para os seus seguidores. Porém, como método
descritivo analítico-reflexivo, teve aceitação não só no âmbito da
filosofia mas também nas ciências humanas sobretudo na psicologia.
Heidegger, primeiro assistente de Husserl, afirma em seu "Ser é
Tempo ": "as explicitações do conceito preliminar de fenomenologia
demonstrara que o que ela possui de essencial não é ser uma
"corrente" real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade.
A compreensão da fenomenologia depende primeiramente de se
apreendê-la como possibilidade." (p. 69-70, tradução brasileira).
Eis a primeira heterodoxia.
Merleau-Ponty, no citado prefácio, afirma: "É em nós mesmos que
encontramos a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido ".
"Apropriar-se do projeto fenomenológico não é reinstalar por um jogo
hermenêutico a tarefa atribuída à filosofia por Husserl, não é buscar as
significações tanto de ordem filosófica como de ordem metodológica
estabelecidas, não é reviver a trajetória da obra de Husserl
recuperando, pelos meandros das diversas temáticas, o
entrecruzamento das vias iniciadas e interrompidas". (cf. Von Zubem,
N.A.: "A fenomenologia em questão:
desafios de um projeto", em "Paradigmas filosóficos da atualidade"
(org. por Carvalho, M.C. - Editora Papirus).
Merleau-Ponty nos deixou um legado: a perplexidade perante o
mundo e o anseio constante em reaprender a ver esse mundo. Ele
percebeu o caráter inacabado da fenomenologia. Aliás, o próprio
Husserl já reconhecera, no fim da vida, este inacabamento e o caráter
incoativo de sua reflexão, quando, com fino humor e modéstia,
declarava que se lhe fosse concedida a idade de Matusalém poderia
ainda aspirar à elaboração de uma filosofia e tornar-se um "Filosofo".
Percebeu-se, ao contrário, como um eterno principiante, observando
diante de si a "terra prometida" da verdadeira filosofia. Está aqui
patente a fenomenologia como "possibilidade".
Merleau-Ponty via no inacabamento da fenomenologia não o índice
de um fracasso ou de indefinição, mas o próprio reconhecimento de
sua fertilidade e de sua autêntica tarefa: "revelar o mistério do mundo
e o mistério da razão" (prefácio). E, aliás, neste prefácio, que se pode,
no meu entender, apreender a sua concepção de filosofia que ele
denominou fenomenologia retornando por sua conta e reassumindo
por força de sua criatividade as trilhas iniciadas por Husserl.
Paul Ricoeur, por sua parte, opera verdadeira subversão da
fenomenologia, pois é o mundo em geral, e os textos (que a "epoché"
colocara entre parênteses) que se converte no núcleo temático no qual
a reflexão se funda. Merleau-Ponty já observara também a
impossibilidade de redução total. Para ele a redução, ao invés de nos
distanciar da realidade do mundo nos faz lançar para ele. Para
Ricoeur, a atividade reflexiva se transforma igualmente,
quanto à função que lhe era atribuída, tanto na filosofia reflexiva
quanto na fenomenologia. Para a filosofia reflexiva e para a
fenomenologia o problema residia na compreensão de si como sujeito
de operações intelectuais, volitivas, etc. Pelo enxerto da hermenêutica,
para Ricoeur, abandona-se a ilusão fenomenológica do eu
transcendental e a atividade reflexiva é doravante entendida como
atividade interpretativa de símbolos e sinais nos quais o eu se objetiva.
A reflexão não é intuição nem compreensão direta de si: Ela é
mediatizada pelos sinais e símbolos. Ricoeur evita a "via curta" trilhada
por Heidegger e toma a "via longa" através do desvio pelos símbolos.
No entanto, tornando-se hermenêutica, a fenomenologia parece ter
mostrado em Ricoeur uma tendência, imoderada pela linguagem e
pelos jogos ilimitados que esta permite, explorando quase que
exclusivamente as incitações retóricas das palavras (a hermenêutica
dos textos) sem se preocupar com um possível "hors-langage", um
fora-de-linguagem. Não poderia ser um certo enclausuramento na
linguagem?
Isso se entende, uma vez que a fenomenologia se situa no seio de
uma tradição filosófica cujo eixo central é a dimensão logo-teórica do
homem. Logos - discurso e theorcin - contemplação.
O primado da teoria remonta aos primórdios da filosofia grega, que
afirmava a vida contemplativa como a mais eminente, a mais elevada.
A vida contemplativa prevalecia sobre a vida prática. O saber foi ao
longo da história ocidental identificado com um projeto teórico. Esta
teoria se apresentava igualmente em um logos, um discurso racional.
O homem, ao interrogar-se sobre o real, sobre sua essência, sua
origem, seu fim, fala. Aristóteles o qualificou "zoon logon e echon ",
isto é, o homem é um ser falante, um ente de linguagem. A linguagem
pressupõe toda questão e toda resposta. A diferença específica do
homem se situa na sua capacidade de linguagem. O saber é então
uma logo-teoria, discurso e contemplação. Tal foi a característica da
ciência clássica. Pela natureza teorética impôs-se o privilégio absoluto
do olhar, da visão (Theorein). É este privilégio que a ciência moderna
veio romper, com suas principais características que são a
experimentação e a matematização, duas formas do operatório. Bacon
e Descartes recusando o saber livresco e especulativo da escolástica
reafirmaram o poder operativo da ciência moderna. Mas esta questão
ultrapassa os âmbitos deste texto.
A fenomenologia, desde Husserl até os seus desdobramentos,
pode trazer fértil contribuição às Ciências Humanas, como esta
também contribuiu com o pensar fenomenológico "O problema das
ciências humanas, anota Lyotard, não é subsidiário ao pensamento
fenomenológico. Pode-se dizer ao contrário, que em certo sentido, se
encontra no seu centro. Com efeito da crise do psicologismo, do
sociologismo, do historicismo que Husserl empreende a tentativa de
restituir a validade à ciência em geral e às ciências humanas" (A
Fenomenologia, p. 47).
Muitos cientistas, sobretudo da área das ciências humanas têm,
com efeito, buscado na fenomenologia um suporte, subsídios
metodológicos, ou até um parceiro de diálogo, visando a auto-reflexão
crítica, responsável pelo clima de mais rigor nas investigações, clima
esse em grande parte, tributário do impulso do projeto fenomenológico
de Husserl.
Para Lyotard, "a fenomenologia constitui uma introdução lógica às
ciências humanas, enquanto procura definir-lhe eideticamente o
objeto, anteriormente a qual quer experimentação e uma retomada
filosófica dos resultados da experimentação, na medida em que
procura apreender-lhe a significação fundamental em especial quando
procede à análise crítica da ferramenta mental utilizada. Num primeiro
sentido, a fenomenologia é a ciência eidética correspondente às
ciências humanas empíricas (em especial a psicologia); num segundo
sentido, instala-se no âmago destas ciências, no coração do fato,
assim realizando a verdade da filosofia, que consiste em extrair a
essência do interior do próprio concreto: é então, o revelador das
ciências humanas" (idem p.50.
A fenomenologia busca uma volta ao que é efetivamente vivido.
"Ora, ainda observa Lyotard, para apreender o que é efetivamente
vivido, importa ater-se a uma descrição que abrace estreitamente as
modificações de consciência: o conceito de certeza, proposto por
Stuart Mill para descrever a verdade como vivida de consciência, não
se dá de modo algum conta do que é realmente vivido. E então
patente a necessidade de uma descrição de consciência
extremamente fina e maleável, cuja heptose de trabalho é a redução
fenomenológica (idem, p. 48-49).
Desculpe-me o caro leitor, estas citações um tanto longas, mas
senti sua pertinência para se poder perceber como a obra da Prof
Elcie está atenta às contribuições metodológicas da fenomenologia,
entendendo-a corretamente como "possibilidade". Acertada, a meu
ver, a escolha de seu principal inspirador e interlocutor, Merleau-Ponty.
O trabalho da Prof Elcie Masini visa a orientação da educação do
portador de deficiência visual. Sem dúvida é um trabalho de especial
relevância para a literatura educacional atual tanto quanto eu possa
perceber. O tema é relevante, atual, o tratamento é rigoroso evitando a
linguagem sofisticada e esotérica. Nota-se sua segurança ao dialogar
com diversos autores da área especializada, e sua fértil leitura da
Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty. Creio que se pode
considerar tal investigação como realização de uma "possibilidade" da
fenomenologia.
A própria temática levou-a desde logo à denúncia severa e
pertinente
de uma situação paradoxal na qual, ingenuamente, instalaram-se e
instalam-se a maioria se não a totalidade (isso não me aventuro
afirmar uma vez que desconheço a literatura referente à temática) da
literatura atual existente. Trata-se do referencial utilizado para lidar
com o portador de deficiência visual. Tal referencial teórico e as
práticas que nele se fundam, têm sido elaboradas com o amparo de
um referencial próprio ao "vidente ". Aceitaram, sem mais a tradição
logo-teórica segundo a qual o conhecimento se funda de modo
eminente no olhar, na visão (theorein = contemplar, ver).
A rigor, mais do que arbitrária no caso, tal situação tem um aspecto
de totalitária, não se preocupando com a "diferença", na medida em
que é insensível à alteridade. O normal, o sábio é o que vê. Impor ao
deficiente visual as estruturas do mundo "visto" ou "visível ", chega a
constituir-se num contra-senso, anulando até o próprio projeto
educacional voltado para o deficiente visual que é considerado a partir
de sua deficiência e não de sua possibilidade e de sua potencialidade.
Tais concepções apresentam-se como racionalizações, inserindo-se,
de fato, na vertente logo-teórica da cultura ocidental não podem deixar
de salientar o "olhar" como o sentido por excelência, mediante o qual o
homem relaciona-se com aquilo que é, com o ser. Em outros termos,
isso leva a considerar a temática das relações do cognoscente com a
realidade como girando, de modo eminente, em torno do "olhar" - da
luz - o homem como lúmen naturale -. O homem, ser do olhar é
também aquele que fala o seu olhar. Este princípio universal, uma vez
que considera-se como fazendo parte da essência do homem. Tal
princípio, por ser universal, é abstrato e constitui-se sobre o
esquecimento e o encobrimento das diferenças individuais. Aí se
encontra a racionalização. Leva, além disso, a uma homogeneização
que, por isso, não está isenta de riscos ao eliminar a diferença a
diversidade. Assim o diferente é desprezado como inferior, anormal, a-racional. Em vez de desprezar o diferente o que se impõe é
compreender a diferença. E exatamente o contrário que é proposto por
estas atuais concepções sobre o assim denominado "deficiente
visual". Ao elidir a busca de compreensão da diferença optam pela via
curta, a da razão preguiçosa, da racionalização. Tal razão é fechada,
redutora, na medida em que rejeita uma parte da realidade que é
assim encarada como contingente. Ao desviar-se da compreensão da
diferença, levam, mesmo que de modo involuntário, à rejeição do
singular que é esmagado sob a generalidade opressora. Levam à
desvalorização do "não-vidente". Aliás, a própria expressão "deficiente
visual" pode refletir uma degenerescência, uma anomalia, uma
carência, assim como a razão fechada lança ao inassimilável a des-razão. O alargamento da razão nos leva a reconhecer o a-racional.
Para a vertente do olhar erigido como senhor absoluto na ordem do
conhecimento, o não-olhar, o a-teórico seria o anômalo, o impossível,
impróprio, incapaz de alçar-se ao patamar do teórico, da
contemplação, em suma da ciência. Não seria preferível evitar-se a
conotação de carência, na expressão "deficiência visual" e privilegiar
seu caráter de diferente? Pois, o não-olhar, o não-vidente não são
absurdos ou racionais, simplesmente são. O "não-olhar" é uma outra
maneira de ser no-mundo.
A Prof Elcie elabora, sem dúvida, uma subversão na área da
educação do não-vidente inspirada pelas reflexões de Merleau-Ponty
que, embora se situem ainda na perspectiva logo-teórica, permitem,
com suas reflexões sobre a corporeidade, um alargamento da
percepção, do conhecimento, além do logos-teórico, contemplativo -, o
olhar.
O que busca a Profª Elcie em sua obra? "Compreender o aluno em
situações de sala de aula, nas suas características próprias de pensar
sentir agir". Para ela o "caminho adequado" foi indicado pela
"Daseinsanalyse" que tenta aproximação com o existir humano para
poder compreendê-lo. (Outra possibilidade da fenomenologia). O
mundo da vida cotidiana, o pré-refletido, será a base para a tarefa de
recuperação, pela reflexão, da compreensão do existir. Atenção ao
fenômeno, tal como aparece. Inspirada nas meditações de Merleau-Ponty expostas em sua Fenomenologia de Percepção, a Prof Elcie
Masini, por tê-lo assimilado bem, não deixa de provocar uma
subversão da fenomenologia, alargando pelas suas competentes
pesquisas com o "existir" do não-vidente, a noção de percepção.
Elabora, também, assim uma subversão na própria concepção da
educação do não-vidente. Sua cuidadosa leitura da literatura referente
a Educação especial e à educação do "deficiente visual" lhe permite
elaborar uma crítica, como já me referi acima, ao "desvio" de todas
essas teorias, vale dizer, de seus fundamentos equivocados ao não
levarem na devida conta a realidade especifica do não-vidente.
Consideram, ao lado do "normal" - o vidente - o "deficiente visual" com
"incorreto ", "do caminho certo", "carente", esquecendo-se que uma
das possibilidades do "ser- no-mundo" é o ser não-vidente. A
educação que lhe é proposta é uma educação compensatória.
Equivocam-se no seu suporte, ao falharem a aproximação para
conhecer o aluno naquilo que lhe é próprio - seu agir, seu sentir, suas
experiências, seu pensar, seu não vidente".
Em certo momento de seu trabalho, a Profª Elcie resgata o
significado do conceito de "orientação ". Seria demasiada ousadia de
minha parte, chegar a pensar que tais teorias na área de educação do
"deficiente visual" apesar de tentarem oferecer orientação pecam
justamente por carência de orientação. Eis aí a carência da " da
fenomenologia, a auto-reflexão crítica. Falharam na origem da
construção de seu edifício. E isso pode ser fatal! Grande edifício
construído em fundação frágil. Recordo da observação sagaz e irônica
de Kierkgaard ao referir-se ao esplendidamente bem construído
palácio que Hegel havia edificado (o de sua filosofia); pena que o
homem mesmo habitava numa cabana!
Como acertadamente observa a Prof Elcie (p. 78 de sua obra): "na
orientação de um aluno para deixá-lo revelar-se em sua própria forma
de se o educador precisa pois. estar atento à maneira dele (aluno)
perceber e explicar o que o rodeia; organizar o que apreende;
comunicar-se com os outros e com o meio que o cerca.
A força original desta obra não reside tão somente em sua
denúncia crítica dos pressupostos mal fundados das teorias vigentes.
Reconhecendo as dificuldades do caminho, ela avança, de modo
ao mesmo tempo prudente mas decidido, apontando um projeto de
orientação do "não-vidente" para professores especializados. Alia,
desta maneira, a teoria à prática, superando a primazia da teoria.
E mais, o vigor de suas análises e propostas não se revelam a
partir de, e não se fundam sobre pressupostos meramente
especulativos ou metafísicos. Vinculam-se a um princípio, a um
"arché" oriundo da experiência vivida. Aplica-se a esta obra, sem
dúvida, a observação da grande mestra Hannah Arendt em sua obra
"Entre o passado e o futuro "; "meu pressuposto é que o próprio
pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve
permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter
orientação."
Sem dúvida, aprenderá muito o leitor com essa obra da Prof Elcie
Masini. É, na verdade, uma contribuição de significado especial na
literatura educacional contemporânea.
NEWTON AQUILES Von ZUBEN
Professor Titular
Faculdade de Educação
UNICAMP - Outubro/1993
Җ
De que modo um aluno deficiente visual encontra fora da sala de
aula seus companheiros? Como ele adquire autonomia no ambiente
escolar para ir à secretaria, diretoria, sala de professores? Quais os
recursos para ensinar-lhe à localização da Amazônia? E possível esse
aprendiz ter noção de arranha-céu, via elevada, microscópio? Como
ele aprende o que é largura, altura, comprimento, horizonte?
Essas perguntas que dizem respeito a diretrizes de um
professor para educar o portador de deficiência visual (D.V.)
definem o campo de preocupações deste trabalho - a orientação [Orientação usada no seu sentido etimológico - de orrigo-inis -
que significa fonte-orogem, i.e., tornar claro o indivíduo.]
educacional do aluno portador de deficiência visual.
Este tema particular de pesquisa sobre educação escolar foi
revelando uma abrangência universal, ultrapassando os limites
institucionais. Nas várias situações de investigação do aluno junto ao
professor ou colegas, ficou claro que algumas dificuldades do D.V.
implicavam questões mais amplas, referentes a modos diferentes do
ser humano perceber e relacionar-se com o mundo ao seu redor.
A análise da bibliografia especializada sobre o D.V. (Capítulo II)
mostrou que seu desenvolvimento e aprendizagem são definidos a
partir de padrões adotados para os videntes. Verificou-se, com certa
surpresa, que, nos instrumentos e propostas examinados, o
"conhecer" esperado na educação do D.V. tem como pressuposto o
"ver", e que, portanto, não se leva em conta as diferenças de
percepção do D.V. e do vidente. A desconsideração dos autores a
essas diferenças, pode-se supor que tenha sido determinada pela
desatenção à predominância da visão, ou àquilo que ficou encoberto
pela familiaridade, oculto pelo hábito, linguagem e senso comum, em
uma cultura de videntes.
A questão epistemológica do entrelaçamento do "conhecer e do
ver" é discutida no Capítulo IV, onde se relata que, histórica e
etimologicamente, na civilização ocidental, o "conhecer" se faz com o
"ver"; o "ver" é condição para o "conhecer" e em certas interpretações
os dois significados se confundem. Daí se desvela à situação do D.V.
de pertencer a uma cultura na qual o "conhecer" se confunde com uma
forma de percepção que ele não dispõe; condição intensificada na
sociedade de massa do século XX, onde tudo se mostra ao olhar e é
produzido para ser visto.
Assim, o D.V. permanece oculto ao ser apresentado pela
percepção unidimensional da visão. Apenas na literatura de ficção, na
saída encontrada por um artista, o "sem visão" aparece e revela uma
outra maneira de perceber o mundo. No livro "The Country of Blind",
Wells relata a estória de Nunez, um camponês que, numa escalada
perigosa, ao separar-se de seus companheiros de caravana, caiu de
uma montanha e descobriu o Vale dos Cegos. Lembrando-se do dito
popular "Em terra de cego quem tem um olho é rei", aspirou governar
o Vale. Descobriu porém que isso não era tão fácil quanto ele
esperava e que sua visão não era sempre uma vantagem.
Quando foi encontrado por três homens do Vale, eles tentaram
descobrir quem era aquela estranha criatura.
"Vamos levá-lo para os mais velhos", disse Pedro.
"Grite primeiro", disse Correa, "senão poderemos assustar as
crianças".
Assim eles gritaram, e Pedro foi na frente e pegou Nunez pela mão,
para guiá-lo para as casas.
Ele puxou sua mão "Eu posso ver". disse.
"Ver?" disse Correa.
"Sim, ver." disse Nunez, virando-se em direção a ele e tropeçando.
"Seus sentidos são ainda imperfeitos" disse o terceiro cego. "Ele
tropeça e diz palavras sem sentido. Guie-o pela mão".
"Como você quiser", disse Nunez e deixou-se guiar, rindo.
Parecia que eles nada sabiam de visão.
Nunez começou a perceber que muito da imaginação dos cegos
havia desaparecido sem a sua visão e eles haviam feito para si um
novo mundo onde predominava a sensibilidade do ouvido e do tato.
Lentamente, Nunez percebeu que ele estava errado em esperar que
as pessoas ficassem impressionadas com a sua origem e habilidades.
Eles pensavam que ele fosse um novo ser e eram incapazes de
entender suas sensações. E assim, após entender que não aceitariam
suas explanações sobre a visão, ele tornou-se quieto e começou a
ouvir o que tinham para lhe dizer.
E chegou o dia em que Nunez apaixonou-se por Medina e queria
casar-se com ela. O pai, Yacobs, solicitou uma reunião dos mais
velhos para decidirem o que fazer. Eles estranhavam muito as falas e
comportamentos de Nunez. Após um tempo de discussão o velho
Yacobs comentou: "Algum dia ele estará tão são quanto nós". A
vontade de curá-lo de suas peculiaridades permanecia.
Após algum tempo, um dos mais velhos, o grande médico entre
eles, expôs sua idéia criativa:
"Eu examinei Bogotá" (como eles o chamavam) "e o caso é claro
para mim", disse. "Penso que muito provavelmente ele deverá ficar
curado".
"Isso é o que eu sempre desejei", disse o velho Yacobs.
"Sua mente está afetada", disse o doutor cego.
Os mais velhos concordaram, murmurando "Bem, o que o afeta?"
"Ahm?" Disse o velho Yacobs.
"Isto", disse o doutor, respondendo à pergunta. "Estas coisas
esquisitas chamadas olhos - e que existem para fazer uma agradável
e macia depressão na face - estão doentes. Isto está afetando sua
mente. Seus olhos são muito grandes e seus cílios e pálpebras
movem-se. Assim sua mente está sendo prejudicada".
"É", disse o velho Yacobs 'É isso".
"E eu penso que, para curá-lo completamente, nós precisamos
fazer uma operação fácil - para remover esses olhos".
"E então ele ficará são?"
"Sim, ele ficará perfeitamente são, e se tornará um excelente
cidadão".
"Graças a Deus, pela ciência", disse o velho Yacobs, e foi contar a
Nunez suas pretensões.
No Vale, e a fala do cego que constitui maioria; é ela que passa a
ser ouvida por Nunez, quando este descobre que a sua visão a nada
leva. Assim, uma outra maneira de perceber o mundo aparece... e
com ela conceitos, valores e crenças se impõem ... em nome da
ciência.
No mundo dos videntes, como não poderia deixar de ser, a fala que
se impõe, é a sua. Seria absurdo negar este fato. Antes, ele deve ser
considerado para que se possa identificar os conceitos, valores,
definições do senso comum, ditados pelo sentido da visão, pois este,
quando utilizado como referencial na educação do D.V., impedem-no
de compreender, levando-o a uma aprendizagem mecânica.
Como entrar em contato com o D.V.,
saber sobre ele e sobre sua
percepção,
para poder orientá-lo educacionalmente?
Esta pergunta guiou a organização e realização deste trabalho. A
pesquisa aqui apresentada partiu do vivido por grupos de deficientes
visuais, com uma professora e uma aconselhadora em cada grupo;
buscou-se restituir a eles a palavra ao dizerem o que e como
percebiam e ao discutirem suas experiências perceptivas. Para
compreender o D.V. foi necessário, pois, aproximar-se dele, para ouvi-
lo e percebê-lo na totalidade de seu relacionar-se e perceber. Esta
Pesquisa orientou-se por questões levantadas a partir da
"Fenomenologia da Percepção" de Merleau-Ponty, delineando um
horizonte de pensamentos onde a experiência sensível, que se dá no
corpo - na sua estrutura de relações com as coisas ao redor - foi
retomada como fundamento das construções do conhecimento.
Assim, procurou-se perceber do D.V., seus estilos de explorar os
objetos e sua maneira de usar o corpo para tal; os movimentos antigos
se integrando em uma nova dinâmica, os aspectos anteriormente
percebidos reencontrando significações mais ricas. Buscou-se em
diferentes situações, o sentido que para o D.V. tinha o objeto na sua
relação com as pessoas e as coisas ao seu redor. Um bom exemplo,
para ilustração, é o uso da bengala pelo cego. Para este a bengala
torna-se um instrumento familiar. O mundo dos objetos táteis recua.
Ele não mais começa na epiderme da mão, mas na ponta do bastão.
Através das sensações produzidas pela pressão do bastão na mão, o
cego vitaliza-a em diferentes posições. A bengala não é mais um
objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele
percebe - é um apêndice do cego, uma extensão - da sua síntese
corporal - uma maneira própria dele explorar o mundo que o cerca. Em
resumo, o que se procurou registrar foi esse sentido do objeto para o
D.V., na totalidade da situação, em diferentes momentos.
Isso, porém não constituiu tarefa fácil. A dificuldade de perceber a
totalidade da situação para captar os significados do D.V. e
compreendê-lo no seu viver, esteve sempre presente. O cuidado com
o caminho que possibilitasse registrar a dinâmica das relações dos
D.Vs. com a professora, com os outros participantes do grupo e com
as coisas ao redor, fez parte integrante da Pesquisa. Aparecem no
Capítulo IV, no item A e B (2ª. e 3ª. etapas) a sistemática e os
recursos utilizados para isso.
Da Análise Fenomenológica dos Relatos (Capítulo IV) emergiram
características de cada um dos participantes e das possibilidades e
limites do perceber e relacionar-se dos D.Vs.. No item, "Comentário
Síntese", retomou-se as relações estabelecidas nos grupos e
enfatizou-se os recursos que auxiliaram o D.V. no seu perceber e
relacionar-se.
Este trabalho apontou uma diretriz central para a ação educativa da
professora especializada: o D.V. "conhece" através de seu corpo, na
sua maneira própria de perceber; para saber-se sobre o D.V. e seus
significados, é necessário acompanhá-lo nesse trajeto, lembrando que
o seu referencial de percepção não é o da visão. Esta diretriz deu
origem ao Projeto de orientação educacional do D.V. exposto no
Capítulo V.
Antecedentes de um Projeto em Educação Especial
Minha experiência com deficientes visuais (D.V) estava muito
distante, quando fui convidada a retornar à Educação Especial. Eu
havia deixado de trabalhar nessa área pouco depois do nascimento de
meu filho. Na época em que me propuseram lecionar na habilitação de
ensino de D.V., na USP, ele terminava a Faculdade.
Assumir encargos ligados à Educação Especial após tanto tempo,
sem ter acompanhado o que aí se fazia, parecia-me temerário. No
entanto, quando eu rememorava as atividades que havia
desenvolvido, durante anos, com alunos e profissionais ligados à
Escola; quando retomava mentalmente os marcos dessa linha de
trabalho que havia construído a partir de questões surgidas da prática
da sala de aula, das reflexões sobre ela, e das pesquisas aí
realizadas; quando refazia as etapas de busca para compreender o
que sucede quando o aluno aprende (as tentativas de encontrar as
condições para esse aprender e para superar as dificuldades nesse
sentido)... a situação afigurava-se diferentemente... e parecia-me
desafiante saber no que essa experiência poderia contribuir para a
Educação Especial.
Para chegar a uma linha de trabalho com alunos "normais" eu havia
passado por muitas e diferentes fases. Três delas, sobretudo
merecem ser citadas, pois permanecem entrelaçadas ate hoje.
A primeira embora submersa nas lembranças vagas dos primórdios
de minha escolarização, foi desencadeadora da trajetória que percorri
profissionalmente. Liga-se a impressões que ficaram impregnadas em
mim e que fui reencontrando, ao longo do meu trabalho, em
estudantes desde o primário até a pós-graduação: de que na escola
se falava de um outro mundo diferente do vivido, com a obrigação de
fazer tarefas, sem entender, tendo que adivinhar as respostas para
não sofrer repressões. Essas sensações, com as quais eu me deparei
em diferentes momentos, foram se transformando pouco a pouco em
interrogações: o aluno poderia aprender sem experimentar a
arbitrariedade de quem ensina? Como isso seria possível?
Essas perguntas estiveram presentes em meu trabalho quer
desenvolvido diretamente com alunos, quer indiretamente, na
formação ou assessoramento a profissionais da Educação. Orientada
por eles, descobri aos poucos um outro lado da problemática ensino-aprendizagem, ou ensinante-ensinado: o do despreparo do
profissional de educação quanto à maneira da criança aprender E
compreendi que as formas rígidas de procedimento e avaliação do
professor, vinculavam-se aos limites de seu conhecimento.
A segunda fase foi a da tentativa de superar esse despreparo
referente aos processos de aprendizagem através da sistematização
da Teoria da Aprendizagem Significativa (TAS) de Ausubel e sua
aplicação em sala de aula. Esta etapa teve início com a Pesquisa de
minha Dissertação de Mestrado, feita nesse enfoque cognitivista. A
idéia central da Teoria é de que o fator isolado mais importante
influenciando a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já sabe.
Segundo seu autor, a aprendizagem significativa ocorre quando o
novo material a ser aprendido liga-se àquilo que o aluno tem disponível em sua
estrutura cognitiva [Estrutura cognitiva – conteúdo substantivo da estrutura de
conhecimento de um indivíduo e suas propriedades organizacionais
principais num campo de conhecimento particular num determinado
momento. Refere-se à estabilidade, clareza e organização de um
assunto do conhecimento do aluno em uma dada disciplina (Ausubel,
1968 pg. 76).]
(representações/conceitos/princípios) e é por ela assimilado. Esta
consideração à estrutura cognitiva do aluno surgiu para mim como
uma possibilidade de superação do sentimento de arbitrariedade.
Além disso, vários pontos dessa abordagem atraíram meu interesse: o
de voltar-se para a compreensão, descrevendo as condições para a
aprendizagem significativa e deduzindo daí diretrizes para esse
processo de aprendizagem em sala de aula; o de considerar que a
escola tem como objetivo levar o aluno a adquirir informações sobre
diferentes campos; o de que cada área de conhecimento apresenta
uma rede conceitual que forma sua estrutura, mas que só poderá ser
adquirida com clareza pelos alunos, se apoiada (ou ancorada) naquilo
que ele já sabe.
Assim, passei a utilizar a proposta de Ausubel em aulas,
assessoramento a professores, supervisão de psicólogos escolares. A
exposição da teoria em aulas, em cursos regulares ou esporádicos e
sua sistematização para aplicação em diferentes áreas de
conhecimento ocorreram de forma tranqüila. Apesar de algumas
dificuldades devidas ao referencial não habitual e à terminologia
especifica, alguns alunos universitários (de graduação e pós-graduação) chegaram a fazer planejamentos de aulas nela
fundamentados.
Sua utilização no assessoramento a professores ligados à Escola
foi menos fácil, pois exigiu mudanças na maneira deles trabalharem.
Habitualmente os programas das disciplinas constituíam adoção de
tópicos do currículo oficial, sem grandes análises por parte dos
docentes.
Procurou-se rever este ponto, pois a construção da rede conceitual
(condição para a facilitação da AS) requeria do docente uma
organização clara e lógica das relações de conceitos e representações
do material a ser ensinado. Apesar da complexidade envolvida nessa
mudança, foi possível organizar, com professores e psicólogos
escolares, em várias situações, o procedimento de ensino de acordo
com as diretrizes da TAS:
1. estabelecer a hierarquia conceitual a ser adquirida pelo aluno;
2. definir os pontos de ancoragem (conceitos e representações) que o
aprendiz necessitava dispor em sua estrutura cognitiva, para receber
as novas informações.
A grande dificuldade surgiu no primeiro passo da aplicação do que
havia sido sistematizado; no detectar se o aluno dispunha ou não dos
pontos de ancoragem para receber as novas informações. Eu podia,
como no meu Mestrado, ter utilizado os resultados de avaliações
anteriores feitas pela professora. No entanto, no acompanhamento do
dia a dia da sala de aula isso não me pareceu mais válido. Se o mais
básico era, segundo a TAS, considerar a estrutura cognitiva do aluno,
o mais importante era procurar ir a ela. Considerar o "satisfatório",
atribuído pela professora, como confirmação de que o aluno dispunha
dos pontos de ancoragem, era aceitar um referencial exterior à
estrutura cognitiva do aluno. Assim ao invés de ter acesso ao
conteúdo e organização do conhecimento do aluno, eu obtinha era a
valoração das respostas dadas por ele, segundo o referencial do
professor; a prática havia mostrado que a avaliação se fazia dessa
forma sem análise do processo de aprendizagem que levara a ela.
Com isso eu me desviava do fator mais importante... e me apoiava no
"critério padrão" das provas organizadas pelo professor. Era uma
forma modificada da arbitrariedade que eu me perguntava se seria
possível superar ao estabelecer como perspectiva de trabalho: a
sistematização dos princípios gerais do ensino para facilitação da
aprendizagem significativa em sala de aula. Os limites, no entanto,
que apareceram na prática, quer na pesquisa aplicada, quer no
assessoramento à professora, fizeram-me retornar a proposta de
Ausubel. A releitura desta evidenciou que a importância à facilitação
do processo de aprendizagem correspondia a "maior preocupação
com a importância e qualidade de treinamento intelectual na escola e
maior ênfase na aquisição do conhecimento em si mesmo". Esses dois
pontos fizeram-me situar com mais clareza lacunas que o enfoque
apresentava para aquilo que eu buscava. Primeiramente, ao explicitar
a prioridade a objetivos intelectuais e conhecimento em si, revelava,
contrariamente ao que o contacto com o aprendiz havia mostrado, a
suposição de que se pode lidar com o intelectual e com o
conhecimento isoladamente do contexto de vida. Em segundo lugar,
implicitamente, isso revelava a crença num pensar correto, que
poderia ser desenvolvido através de treinamento e cujo critério de
validação estava na lógica racional do conhecimento em si. Reduzindo
desta forma o conhecimento a definições e conceitos, a TAS enfatiza o
significado denotativo e desconsidera o conotativo e "idiossincrático".
Dessa forma, embora criticando os experimentos de laboratório,
Ausubel repete-os de outra forma ao deixar de lidar com o aluno na
totalidade de seu pensar, sentir e agir, com seus valores e hábitos.
Trabalhava com um modelo abstrato, investigando apenas o pensar
racional e buscando as regras para bem desenvolvê-lo na aquisição
do conhecimento "correto". Dessa forma lida com um aprendiz
abstrato e não com o aluno que está na sala de aula, com seus
interesses, dificuldades, experiências e idiossincrasias.
Assim, para o que eu buscava, ficou da Teoria de Ausubel, a
importância de se considerar: "aquilo que o aluno sabe", como ponto
de partida para realizar sua aprendizagem significativa; a organização
hierárquica do conteúdo a ser ensinado; a clareza de que, para a
aprendizagem ser significativamente elaborada pelo aluno, era
necessário encontrar um caminho.
A terceira fase caracterizou-se pela busca desse caminho que
permitisse compreender o aprendiz em suas próprias particularidades
de pensar, agir e sentir Concretizou-se numa Proposta de
Aconselhamento Escolar, fundamentada na Fenomenologia
Existencial [Fenomenologia Existencial interpretada por Boss e Spanoudis-Daseinsanalyse], que assinalava os pontos básicos para compreender o
aluno e a situação educacional.
Este enfoque esclarecia questões para as quais eu me voltava. A
primeira, em termos de importância, diz respeito ao sentido do "saber",
não mais considerado como aspecto isolado de um ser, mas sim um
saber colocado no mundo da vida. Num "pensar" que surge no
confronto com os valores, as crenças, a ação conjunta pelo qual o ser-humano se reconhece como aquele que reflete a partir desse fundo
anônimo que o cerca e aí se visualiza como protagonista no mundo da
vida. Nesta perspectiva o pensar verdadeiro deixa de ser o da verdade
do conhecimento científico, fundado numa concepção racional
cartesiana, no qual o conceito de verdade objetiva já está de antemão
determinado. O conceito de verdade é retomado frente a uma filosofia
rigorosa que leva em conta a subjetividade, O pensar verdadeiro -
entendendo-se verdade como alethéia, ou o que surge do
desvelamento - se dá pela relação de abertura do homem com o outro,
ou com as coisas que o cercam.
Intrinsecamente ligado a esse conceito de "saber" e de "verdade"
está o de "entendimento". Como diz Boss (1967 pg. 3 e 4) ..."O
homem e todos os entes não humanos formam uma unidade
inseparável; nenhuma coisa pode ser sem uma adequada
compreensão. Sem o entendimento do homem não se pode dizer que
uma coisa é... O "é" não tem sentido sem a presença do homem, pois
é só ao seu entendimento que algo pode ser apresentado, pode
aparecer...
Essas concepções do "saber" da "verdade" e do "entendimento"
Contribuíram para o que eu buscava: compreender o aluno nas
situações de sala de aula nas suas características próprias de pensar,
sentir e agir. Isso porém só se tornaria possível através de um
caminho adequado e que constituiu o segundo ponto básico de
contribuição deste enfoque para meu trabalho na área educacional. De
forma bastante simplificada, a Daseinsanalyse pode ser definida como
"um método para que nos aproximemos do existir humano e
possamos compreendê-lo" Dessa forma visa: trazer à luz de modo
cada vez mais diferenciado o que se mostra dos próprios fatos;
penetrar o sentido [Sentido entendido como das relações significativas, tomadas na
sua totalidade.] das coisas factuais cada vez com maior precisão,
atento às referências qualitativamente significativas, para ver sem
preconceitos aquilo que se apresenta. Dessa maneira, como afirma
Spanoudis, "é uma fenomenologia hermenêutica, que nos possibilita
ver os fenômenos como eles se mostram e desvendar o sentido
fundamental de tudo que encontramos''. O termo fenômeno é derivado
do grego "plicimestai" e significa aquilo que se mostra e que precisa
ser desocultado.
Assim a Daseinsanalyse ofereceu-me um caminho para chegar ao
aluno como ele é e ajudou-me a perceber a necessidade desse
método, pois os fenômenos não estão evidentes para nosso olhar
habitual, mas ao contrário, estão velados pelos nossos conceitos,
valores, hábitos e crenças. O que este enfoque trouxe para meu
trabalho não foi uma resposta, mas sim um ponto de partida o de
voltar-me para o aluno e buscar seus significados, na sua maneira de
ser no mundo e compreendê-lo na totalidade de sua vida em
diferentes situações, compartilhar do que ele faz, diz, pensa e
expressa, em suas relações com pessoas e objetos.
Parte desse trabalho realizado junto a alunos constituiu uma
Pesquisa fundamentada, documentada e analisada num enfoque
Daseinsanalítico. Dela emergiu a Proposta de Aconselhamento
Escolar, não feita em termos normativos, mas assinalando os pontos
básicos para compreender o aluno e o que sucede na situação
educacional.
Para registrar o que o aluno mostrava foi feita uma Descrição com
palavras do cotidiano e não através de explanação ou forma de falar
própria da ciência, que revela uma consciência sofisticada. A fala do
dia a dia revela uma consciência ingênua (condição para chegar ao
fenômeno), anterior à qualquer classificação ou explicação. Como o
interesse era na experiência do aluno, assinalava-se o que ele dizia,
como dizia, a entonação de sua voz, seus gestos, sua expressão,
seus silêncios, enfim tudo que ele mostrava em diferentes situações
descrevendo da mesma maneira o outro com quem ele se relacionava.
Ao lado disso era feita uma Interpretação que procurava atingir o
significado da maneira da criança agir na Escola, relacionando aquilo
que foi registrado na descrição como acesso ao sentido da ação na
sua existência.Para utilização apropriada desse método
fenomenológico, diferentes recursos foram utilizados. Ao refletir sobre
as anotações da vivência com a criança buscava-se ver com mais
clareza o que se havia mostrado nas situações e identificar o que era
da criança e o que se interpunha da pesquisadora, impedindo-a de
perceber a criança.
A análise das situações evidenciou pontos de convergência nas
vivências educacionais, tanto naquilo que propiciou abertura de
possibilidades do aluno, como naquilo que constituiu limite. O que
essa pesquisa mostrou foi a possibilidade da Pesquisadora aproximar-se do aluno, ao buscar situações em que este pode trazer suas
experiências cotidianas: os objetos incorporados nas suas vidas; as
brincadeiras com os amigos; as obrigações em casa; os hábitos da
família. A pesquisadora tentando reencontrar os significados que
surgiram do vivido pelo aluno, reencontrou o fio de significados
próprios que dá sentido às coisas que ele faz e quer. Ao mostrar-se
atenta, ouvindo-o, afinada com suas disposição naquilo que ele fazia
ou relatava de seu vivido, estabeleceu-se o diálogo Pesquisadora-pesquisado e o contato do aprendiz com suas possibilidades próprias.
Nesses momentos a pesquisadora esteve voltada para o aluno e não
para suas dificuldades de aprendizagem, ou para os objetivos de
ensino. Buscou junto a ele desvelar suas características próprias,
clareando sua maneira de aprender e situando suas dificuldades a
partir do que, introduzia os recursos necessários. Dessa maneira
propiciava-lhe a possibilidade de superá-las.
Nos momentos em que a Pesquisadora voltou-se para os
procedimentos de ensino, repetindo pressupostos e expectativas da
Escola, não percebeu o aluno, não facilitou a aprendizagem
significativa, não clareou suas dificuldades e nada se modificou.
A análise deixou claro que "aquilo que o aluno sabe" vai se
formando na sua vivência. Seus significados constituem uma moldura
(um horizonte) através do qual ele passa a perceber e conhecer as
coisas ao redor; circunscrevem seu caminho, prevenindo-o de perder-se, propiciando que ele se situe e pense. Seria, pois impossível
aproximar-se "daquilo que o aluno sabe" através de medidas, testes,
observações de aspectos isolados. Ficava assim enfatizada a
necessidade de conviver e compartilhar de suas atividades para
propiciar ao aluno uma aprendizagem significativa - pela qual ele se
situa e elabora a partir de seu horizonte - ao invés de repetir,
simplesmente, dados que lhe são fornecidos.
Tanto a Pesquisa como os assessoramentos a profissionais da
educação mostraram que valores, expectativas e a própria maneira de
agir habitual da Pesquisadora (ou da Professora) emergiam nas
relações dela com o aluno. Muitas vezes, mesmo após comentar a
impropriedade de sua maneira de agir habitual a Professora repetia as
mesmas atitudes a que havia se referido. Isso evidenciou nas
conclusões da Pesquisa e dos requisitos de trabalho em sala de aula,
a necessidade de que a reflexão do profissional de educação
acompanhe sempre sua prática, ao lado das informações teóricas
específicas das áreas de conhecimento. Para superar esses limites
foram feitas sugestões que apareceram na Proposta de
Aconselhamento Escolar (Masini, 1984 página 113) para a formação
de profissionais de educação.
Essa Proposta exige, ao mesmo tempo, a posse e a destruição do
conhecimento que vai se construindo em diferentes momentos, nas
aulas. O agir-refletir-agir surgem incorporados nessa busca de ampliar
as possibilidades de um ser-humano junto ao outro, compartilhando
significados. A reflexão sobre os dados da Pesquisa tornou claro que
os limites evidenciados na relação educacional (Aconselhador-Aconselhando ou Professor-Aluno) só poderão ser superados num
contínuo pensar e agir do Profissional, enquanto vivendo essa
situação.
Assim, havia se evidenciado para mim a importância de que o
professor estivesse atento não ao conhecimento de teorias e
treinamento no uso de técnicas, mas sim à sua relação com o outro
nas situações educacionais isto é como percebia a si, ao outro,, e para
definir os momentos em que teorias e recursos poderiam contribuir
para ampliar as possibilidades do aluno no seu pensar, sentir e agir.
Dessa forma, passei a ministrar cursos e a realizar supervisões e
assessoramentos, não mais de informativo, envolvendo extensas
bibliografias e as respectivas avaliações. Minha preocupação passou a
ser com o profissional em ação, oferecendo-lhe situações que lhe
propiciassem reflexão sobre sua vivência auxiliada por leituras. O
objetivo era não mais de uma formação que se fazia sobre textos e
teorias a serem posteriormente aplicadas, e debatidas num nível
restrito a citações, mas sim de uma formação que pudesse ser
acompanhada da refutação do estabelecido, das teorias aceitas e dos
valores nela implícitos, pela consciência dos limites vindos da prática.
O que eu buscava era a formação de um profissional da educação,
capaz de uma crítica teórico-prática da ciência que lhe era oferecida e
da ideologia a ela subjacente. Isso exigia participação ativa na área de
trabalho; e uma prática que se oferecesse à reflexão, como parte
integrante de qualquer disciplina. Assim foram organizados os cursos
que passei a ministrar: de graduação para formação de psicólogos e
pedagogos; e de pós-graduação, em Educação, Psicopedagogia e
Psicologia Educacional.
Foi enquanto desenvolvendo essas atividades que recebi o convite
para lecionar na Habilitação do Ensino de Deficientes Visuais; e foi
com essa perspectiva de trabalho que retornei à Educação Especial.
Retornando à Educação Especial
A. Expectativas
Reingressei nesta área com a intenção de desenvolver essa
proposta de formar professoras, especializadas em ensino de D.Vs.,
que tivessem atitude crítica de sua ação junto ao portador dessa
deficiência. Isso implica saber dos significados de seus objetivos no
contexto educacional; da utilização dos recursos para o
desenvolvimento do D.V.; da consideração às características dele
(pertencente a uma cultura com suas especificidades, num
determinado momento histórico).
Como responsável pela disciplina Orientação Educacional do D.V.;
na Habilitação [Habilitação - O Curso de Pedagogia - estruturado deforma
docente e especialistas de educação mediante habilitações
especificas - tem uma parte comum de matérias básicas e
outra diversificada segundo a especialização pedagógica.] do Ensino de D.Vs., fiz a programação assinalando a
importância da professora buscar uma linha diretriz no seu trabalho
junto ao D.V., isto é, definir a orientação a ser dada ao D.V.,
educacionalmente.
Isso exigia por um lado clareza sobre as características do D.V.,
para propor situações e recursos apropriados a seu desenvolvimento e
aprendizagem; por outro lado exigia prática junto ao D.V. para que ela,
enquanto professora pudesse refletir sobre sua relação com ele.
O programa foi organizado de forma que as atividades
desenvolvidas pelas alunas junto ao D.V., nos estágios, constituíssem
conteúdos de discussão em classe, auxiliados pela leitura
especializada. Assim o agir-refletir-agir contribuiria, de um lado para
que as situações vividas possibilitassem maior aproveitamento das
leituras, propiciando às alunas oportunidade de criticá-las a partir da
própria prática. Por outro lado os debates sobre o ocorrido junto ao
D.V., iluminados pela fundamentação teórica, permitiriam tornar mais
claro o que havia se passado no estágio.
Para isso era importante a organização de bibliografia que pudesse
ajudar nessa reflexão e que evidentemente estivesse fundamentando
o estágio.
Meu passo inicial foi o de buscar o que se conhecia de
características do portador de deficiência visual (D.V.). Realizei nesse
sentido um levantamento bibliográfico junto aos professores de
Educação Especial e junto às bibliotecas da Faculdade de Educação e
Instituto de Psicologia da USP.
B. Definindo Cegueira e Visão Sub Normal
Antes de fazer referência aos dados encontrados, é importante
assinalar que, educacionalmente, os D.Vs. são divididos em dois
grupos: cegos e portadores de visão subnormal. Tradicionalmente a
classificação tem sido feita a partir da Acuidade Visual: sendo cego
aquele que dispõe de 20/200 de visão no melhor olho, após correção;
e portador de visão subnormal aquele que dispõe de 20/70 de visão
nas mesmas condições. Essa delimitação pela acuidade visual tem,
porém, para fins educacionais mostrado ser pouco apropriada, dando-se preferência àquela referente à eficiência visual. Dessa forma, neste
trabalho fui adotada a definição sugerida pela Americam Foundation
for the Blind (1957 pg 55), na qual criança cega é aquela "cuja perda
de visão indica que pode e deve funcionar em seu programa
educacional, principalmente através do uso do sistema Braille, de
aparelhos de áudio e de equipamento especial, necessário para que
alcance seus objetivos educacionais com eficácia, sem o uso da visão
residual. Portadora de visão subnormal a que conserva visão limitada,
porém, útil na aquisição da educação, mas cuja visual, depois de
tratamento necessário, ou correção ou ambos, reduz o progresso
escolar em extensão tal que necessita de recursos educativos".
A esse respeito, Aschcroft (1971) assinala a importância de tomar a
criança globalmente para a programação educacional, ao invés de
fazê-lo de forma limitada, a partir de uma definição precoce de sua
deficiência. Ilustra sua posição citando o estudo de Jones (1961) com
14.125 crianças diagnosticadas como cegas (categoria 20/200) das
quais 80% liam tipos impressos e 5% liam Braille e tipo impresso.
Sendo sua preocupação com a criança D.V., no que esta é
semelhante à vidente e não no que esta é diferente dela, considera
que o educador deverá conhecer as características dos indivíduos
D.V. (físicas, mentais, sociais e emocionais) no que eles tem em
comum (a limitação no emprego da visão). Nesse sentido enfatiza a
necessidade de convívio e de observação da eficiência visual a partir
do comportamento do aluno em diferentes situações. Comenta a falta
de concordância de dados de pesquisa sobre as características
intelectuais da criança com visão limitada, afirmando: alguns autores
consideram que a deficiência visual não prejudica as funções
intelectuais; outros, ao contrário, consideram que afeta todas as
atividades mentais; outros ainda desenvolvem adaptações de testes
que não fornecem validamente dados sobre a criança.
Como Aschcroft foi um dos especialistas responsáveis pelo Projeto
inicial de instalação das Habilitações de Educação Especial da
FEUSP, suas afirmações constituíram orientação para a seleção das
Pesquisas que são citadas a seguir, e que ilustram suas afirmativas.
C. Pesquisas sobre o D.V.
Swalow (1976) reitera a posição de Aschcroft, evidenciando
controvérsias em Pesquisas de enfoque piagetiano sobre o
desenvolvimento da criança cega em diferentes estágios e comenta
que os resultados têm oferecido pouca informação útil à professora.
Para ilustrar aborda algumas Pesquisas piagetianas, objetivando
deduzir daí princípios básicos para educação dos D.V.. Cita: Hatwell
(1966) que observou diferença de 2 a 3 anos na performance da
conservação de tarefas com massa entre crianças cegas e videntes; e
a réplica de Cromer (1973) que não encontrou diferença na idade em
que crianças de 5 a 9 anos (cegas/videntes e videntes vendadas)
obtém conservação [Conservação – principio fundamental de que certas
propriedades do objeto (como quantidade peso, volume etc)
permanecem inalterados mesmo quando se modifica sua
forma ou disposição espacial.] mas sim na maneira que essas crianças
processam o ambiente. Cromer sugere que a realização de uma
conservação total pode ser notada nos cegos devido ao
empobrecimento de esquemas perceptuais.
Swalow retoma os fatores associados ao desenvolvimento mental
analisando-os na criança D.V.. A maturação relacionada ao
desenvolvimento físico do sistema nervoso central é dependente das
ações e experiências. Assim a coordenação visão-preensão no
vidente ocorre aos 4 meses enquanto na criança cega a coordenação
audição - preensão ocorre aproximadamente aos 6 meses. No
entanto, bebês cegos de 5 meses apropriadamente estimulados, como
mostra Fraiberg (1966), fazem movimentos e exploram o ambiente;
enquanto que os bebês com ausência de estimulação externa
apresentam retardamento marcante, provocando perda de experiência
necessária para o conhecimento das propriedades dos objetos e de
suas funções e significados. Isso torna-a mais dependente da mãe,
para estimulação e contato social. A Pesquisa de Bell (Apud Swalow,
1976) evidencia ser a permanência do objeto influenciada pela
qualidade da interação mãe-criança e conclui: a criança cega pode ser
mais prejudicada se a figura da mãe não estiver envolvida num
programa de estimulação da criança. Quanto às diferenças no
desenvolvimento das estruturas cognitivas, no que se refere à
classificação, há explicações diferentes entre os pesquisadores, como
se pode ler a seguir. Simpkins e Stephens (1974) apontam deficiência
no raciocínio lógico.
Sujeitos de Ql médio nas Escalas Wechsler (num período de 12
anos de IC - dos 6 aos 18 anos) indddicam que embora ocorra
progresso no raciocínio concreto, no pensamento lógico (que envolve
orientação espacial e imagens mentais) apresentam inabilidade
contínua. Tarefas envolvendo pensamento formal ou abstrato não
foram atingidas pelos de 18 anos. Higgins (1973) considera que a
cegueira total congênita não é suficiente para produzir atraso na
formação das estruturas intelectuais subjacentes à classificação, e que
as deficiências em tarefas de classificação parecem ser figurativas
(perceptuais) e simbólicas, ao invés de serem de origem operacional.
Discutindo a formação simbólica autora evidencia o papel
unificador da visão na observação. Assim o D.V. apresenta resultados
deficitários em vários aspectos na formação do símbolo na criança,
segundo a Psicologia Genética de Piaget [Símbolo para Piaget é a imagem que serve para traduzir uma
experiência particular (1971 pg 93), preparado pelo
esquematismo pré-representativo, (pg 12) é um significante
(pg 13). Imagens e percepções são classificadas como
aspectos figurativos do funcionamento cognitivo em oposição
aos operacionais (ações - operações).]: na imitação postergada, no
jogo simbólico (pela limitação na variedade de experiências de vida);
no conhecimento de perspectivas de adolescentes de baixa visão,
revelando conceitos espaciais imperfeitos. Atribui-se essa eficiência
visual baixa à pobreza da imagem visual, verificada através das
imagens reprodutivas nas descrições verbais do meio ambiente,
conforme ilustra o estudo de Mephart, Mephart e Schwartz (Apud
Swallow, 1976) - a criança D.V. refere-se a menos partes do corpo na
descrição do amigo e nos detalhes da própria casa.
No que diz respeito à linguagem, Swalow refere-se a vários autores
para mostrar o atraso gradativo da criança cega. Friedman e Pasnak
(1973) afirmam que crianças cegas e videntes são equivalentes em
classificação, aproximação e seriação aos 8 anos e depois começam a
ficar atrasadas, especialmente em tarefas verbais, quando estas
envolvem capacidades conceituais. Hopkins e McGuire (1966); Tillman
(1967); Gilbert e Rubin (1965) assinalam que as crianças cegas
apresentam escores mais baixos na Escala Weschler de Inteligência
para Crianças (WISC) nos subtestes de Vocabulário, Semelhanças e
Compreensão. Tillman (1967, pg 112) afirma que cegos tendem a
aproximar problemas conceituais abstratos a um nível concreto e
funcional, apresentando atraso em relação aos videntes.
Dessa pesquisas Swallow conclui da necessidade:
1. de direcionar experiências concretas para crianças cegas, tais como
experiências físicas diretas com objeto real (relacionando o conceitual
com o objeto concreto) e a interação verbal apropriada entre crianças
e adultos (para ajudá-la no conhecimento da realidade que a cerca);
2. de formação do professor que possa lidar com a incorporação
sistemática de níveis de representação e níveis de operação,
desenvolvendo a criança D.V. segundo seu potencial.
Rowland (1984) pesquisando a comunicação pré-verbal de
crianças cegas e suas mães, reitera Swalow, como se pode ler a
seguir. A importância de trocas precoces entre a mãe e a criança
precisa ser enfatizada. Das crianças por ela pesquisadas, a única que
não ficou seriamente atrasada em várias áreas de desenvolvimento foi
àquela reconhecida como cega e orientada com um programa
educacional apropriado. A falha para estabelecer mútua comunicação
de interação satisfatória durante os primeiros meses é difícil de
remediar e pode afetar negativamente a interação social. O tempo
requerido para desfazer padrões ineficientes e forjar novos e efetivos,
pode de longe exceder o tempo requerido para estabelecer os padrões
imperfeitos.
Gottesman (1976) realizou estudo com os objetivos de:
1. explorar as possibilidades de adaptar a metodologia das pesquisas
de Piaget e resultados ao estudo e compreensão das crianças cegas;
2. localizar-se na comparação de idades desenvolvimentais e estágios
de crianças videntes e cegas;
3. observar similaridades e diferenças entre padrões de realização de
grupos de cegos e videntes;
4. avaliar o significado do papel da visão na aquisição de tarefas.
Como Swalow, apontou também controvérsias nos resultados de
vários pesquisadores, como se pode ver a seguir. Canning (1957)
descobriu que crianças cegas adquiriam conservação de quantidade
global de água num recipiente, depois do que os videntes. Hatwell
(1966) encontrou diferenças entre crianças cegas e videntes, na
realização de tarefas piagetianas. As crianças cegas congênitas, ou
crianças videntes com cegueira adquirida, eram 2 a 3 anos mais
velhas do que as videntes no trabalho de testagens. Miller (1969)
estudou conservação de sub (peso e volume) em crianças de 7 - 10
anos em uma escola residencial para crianças cegas (17 sem visão e
9 parcialmente cegas, que foram vendadas para controlar a diferença
de visão), O grupo parcialmente vidente foi significativamente melhor
do que os sem visão, O pesquisador concluiu que a visão intacta pode
ser uma determinante importante no desenvolvimento do raciocínio.
Simpkins e Stephens (1973) concluíram numa avaliação de várias
tarefas concretas e formais - conservação, classificação, memória,
imagem mental, operações formais, que as crianças cegas mostravam
atraso de 4 a 8 anos no desenvolvimento cognitivo. Swalow e Poulson
(1973) relataram que crianças visualmente limitadas mostravam
dificuldades de aquisição em tarefas de projetos topológicos e
espaciais euclidianos.
Tollbin (1973) investigando conservação de substâncias em 189
crianças cegas, e parcialmente videntes concluiu que a idade media,
em que a conservação era obtida, era mais demorada nos
Visualmente deficientes. Em contrapartida cita as pesquisas de
Higgins (1973) e Gromer (1973), já mencionadas por Swalow,
assinalando respectivamente as afirmações dos autores: os cegos não
revelaram falhas de desenvolvimento que possam ser relacionadas a
qualquer atraso intelectual e não foram encontradas diferenças entre
cegos, videntes e videntes vendados, na idade em que a conservação
era adquirida.
Os resultados do estudo de Gottesman mostraram que nos vários
níveis de idade, não havia diferença significativa na realização do cego
e do vidente. A análise dos resultados evidenciou que os sujeitos do
experimento (não videntes) pareciam bem ajustados e integrados com
suas famílias e ambientes. Eram tratados primeiro como crianças e
depois como cegas. Eram bem aceitas pelos familiares e realizavam
rotinas domésticas para os irmãos e irmãs. O grau de liberdade dado
pelos pais parecia ser o fator crucial para seu bem estar. Os videntes
apresentavam diferença dos não videntes em alto grau de
significância.
Gottesman em suas conclusões gerais assinala que a tarefa para
os que lidam com as crianças deficientes é entender como essas
crianças concebem seu ambiente e como suas concepções mudam,
de forma que se possa suprir oportunidades pelas quais podem
adquirir seu potencial. Os sujeitos não manifestaram nenhum déficit de
desenvolvimento que pudesse ser atribuído à inabilidade de crianças
cegas para integrar informações perceptualmente nos níveis mais
iniciais. Os estágios de Piaget de funcionamento eram igualmente
apropriados para cegos e videntes, apesar de papel significante que a
visão desempenha na obtenção desses conceitos. Assim, com base
nos resultados obtidos, sugere o pesquisador que padrões e critérios
podem ser estabelecidos, para maximizar a função potencial das
crianças cegas menos capazes. Currículo e material educacional
podem ser produzidos para responder aos vários níveis de
necessidades.
Amanda Hall (1981) acrescenta uma nova perspectiva às de
Gottesman, Swalow e Aschcroft. No estudo de imagens mentais [Imagem mental segundo Hall é a semelhança mental de um
fenômeno percebido ou perceptível representado sob a forma visual
auditiva, tátil ou outras formas sensoriais; serve como meio para
representação do ambiente e para formulação de pensamentos e da
linguagem. Hall adota o termo equivalência para referir-se às semelhanças e
diferenças que as representações põem em relevo.]
sustenta que estas desempenham papéis diferentes nos processos
cognitivos em desenvolvimento nos cegos congênitos. Para isso,
retoma algumas Pesquisas que se referem ao atraso do cego e
reinterpreta-as, como se pode ler a seguir. Mephart, Mephart e
Schwartz (1974) concluíram que as crianças cegas tinham
concepções limitadas e muitas vezes imprecisas. Hans (1976)
verificou que as imagens mentais táteis, ligadas a palavras específicas
diferiam em cegos congênitos e videntes, concluindo que essas
diferenças eram decisivas para a capacidade de cegos congênitos
resolverem problemas verbais. Fraiberg (Apud Hall, 1981) descobriu
atraso em crianças cegas na inteligência representacional aos 2 e 3
anos no uso significativo de palavras e de combinação de duas
palavras. O pesquisador atribuiu esse atraso ao maior potencial de
"memória pictórica" do vidente em comparação com a "memória de
reconhecimento tatu-auditivo" da criança cega. Foster (Apud Hall,
1981) num estudo piagetiano descobriu que nas crianças cegas, as
imagens são basicamente reprodutivas, isto é, permanecem estáticas
e são incapazes de antecipar processos desconhecidos. De acordo
com Piaget, as imagens mentais ajudam na formulação de operações
do pensamento, assim as limitações do sistema de imagens pode
afetar o processo cognitivo. Carroll (Apud Hall, 1981) Omwake e Solnit
(Apud Hall, 1981), Zweibelson e Barg (1976) mostraram que a perda
de visão prejudica a capacidade de organizar e reter representações
mentais, afetando o pensamento racional de seus portadores.
Hall retoma esses resultados por um lado a partir do
conceptualismo instrumental de Bruner, pelo qual considera que cada
tipo de representação põe em relevo diferentes aspectos do ambientes
- suas semelhanças e diferenças a representação inativa faz
equivalências de funções; a representação icônica usada para
equivalências que envolvem características perceptivas para
agrupamentos; a representação simbólica que conduz a
agrupamentos nominais (como sinonímia, subordinação ou
contabilidade sintática). Por outro lado, toma as descobertas de Olver
e Hornsby (1966) cujas afirmações assinalam que as tarefas pictóricas
provocam mais explanações nominais de semelhanças e diferenças
do que as tarefas verbais e que, portanto para as crianças é mais
apropriado associar uma figura com uma palavra do que uma palavra
com outra. A partir desses autores Hall conclui:
"A diferença de desempenho de sujeitos cegos e videntes pode não
ter mostrado uma fraqueza no pensamento de processo secundário
usado pelos cegos, mas em vez disto, pode ter refletido o fato de que
os cegos tiveram que realizar uma tarefa que exigia diferentes
habilidades cognitivas".
Da mesma forma Hall retoma Paivio (1971) que afirma serem as
imagens visuais superiores ao sistema verbal para o processamento
de aspectos ligados ao sentido espacial. Com isso reinterpreta os
baixos resultados dos cegos, no trabalho de Hartlage (1969, 1976) que
comparou raciocínio verbal espacial e não espacial em crianças cegas
evidentes. "As crianças cegas podem ter tido que apoiar-se em
sistemas de representação menos eficientes para tratar as relações
espaciais, isto é, representações inativas e simbólicas, antes que
icônicas".
Sob esse mesmo referencial a autora retoma a concepção do
verbalismo, reinterpretando-a como "aplicação de uma compreensão
restrita de palavras aprendidas primariamente no nível simbólico, a
tarefas que requerem o uso de significados acessíveis aos cegos" ... e
"aplicação pelo uso, do sistema verbal, a tarefas que podem ser
realizadas mais eficientemente através de outros sistemas de
processamento".
Como uma das implicações disso, Hall concluiu que é necessário
rever testes de inteligência, elaborados para videntes e usados para
cegos, pois poderão estar atingindo diferentes processos de
pensamento.
Considerando alguns desses resultados de Pesquisa citados e
outros Anderson (1984) propõem-se a examinar os efeitos da falta de
no conceito que as crianças cegas tem de objetos comuns, pelos
atributos que elas usam para descrevê-los. Comparando os atributos
que ele tem de memória, com os que descreve pelo tato, o autor
busca: ter uma visão da natureza das representações de crianças
cegas (imagem mental); verificar se a linguagem que elas usam reflete
sua experiência e forma própria da representação mental do objeto, ou
o conhecimento da linguagem de pessoas videntes. Tomando os
dados como um todo, o autor concluiu que os cegos desenvolveram
suas imagens mentais ou conceitos dos objetos, de sua experiência
própria com o mundo e a linguagem que elas usam reflete sua
experiência e suas formas de representação mental e não a das
pessoas videntes. De seus resultados o autor levanta algumas
implicações para a prática, como segue. A necessidade de prover
crianças cegas com programas de atividades orientados para amplas
oportunidades de explorar e fazer experimentações com objetos;
ensiná-lo a usar métodos mais apropriados e sistemáticos de obter
informações táteis; organizar o currículo do Jardim e Primário de forma
a encorajar as crianças cegas congênitas a investigar mais
criativamente o uso de objetos comuns.
Amiralian (1986) realizou pesquisa com a população brasileira, em
São Paulo com o objetivo de esclarecer como a cegueira interfere nas
diferentes áreas de desenvolvimento cognitivo e quais os
procedimentos mais adequados ao diagnóstico. Realizou estudo com
o WISC Verbal [Weschler Inteligence Scale for Children. A autora Justifica ter
usado apenas o WISC Verbal devido à dificuldade de adaptação e
aplicação de testes de execução para D. V.] e o BLAT [BLAT- Blind Learning Aptitude Test.] para: compreender o funcionamento
cognitivo do cego congênito; verificar se existe um perfil cognitivo
característico deste grupo de sujeitos; analisar a eficiência dos testes
verbais e de execução no diagnóstico de crianças cegas. A
interpretação dos resultados mostrou que no BLAT os índices mais
elevados eram referentes á tarefas de manipulação e os mais baixos
ao desempenho verbal; e que as crianças da Pesquisa mostraram
melhor desempenho nos processos referentes às capacidades (de
identificar, discriminar e estabelecer relações), do que no produto da
aprendizagem. A autora inferiu daí que os procedimentos de
aprendizagem utilizados para o desenvolvimento das crianças com
cegueira congênita não atendiam às suas necessidades básicas, não
proporcionando habilidades para o desempenho que exige a
expressão dos produtos de aprendizagem. Levanta como uma das
razões possíveis para explicar isso, o empenho em se exigir do cego
adaptação ao processo de desenvolvimento dos videntes. Comenta
que a ausência de visão estabelece organização perceptiva própria, O
que exige condições específicas para formação das estruturas
cognitivas. A análise das habilidades verbais do WISC apontaram um
desempenho abaixo da média em todos os subtestes, principalmente
Compreensão. Como este subteste exige a utilização de experiências
paralelas, a autora concluiu que os resultados baixos em sua Pesquisa
com crianças brasileiras comprova a inadequação do conteúdo do
teste ás condições sócio culturais. A análise qualitativa do subteste
Informação (itens de natureza prática, aprendidos da vida diária, e
negados ao cego, na ausência de orientação adequada), relaciona-se
a um déficit de estimulação e experiência.
Partindo dos resultados e conclusões, Amiralian chama atenção para
os seguintes pontos: necessidade de orientação familiar e
procedimentos educacionais do D.V. baseados em princípios
psicológicos; inadequação de diagnóstico baseado apenas em
habilidades verbais, evidenciado pela falta de equivalência encontrada
entre habilidades verbais e de execução; necessidade de um conjunto
de dados obtidos de diferentes procedimentos, além das necessidades
verbais e de execução.
1. Sintetizando conclusões das Pesquisas sobre D.V.
O que essas Pesquisas e estudos assinalaram, de um modo geral
(apesar das controvérsias em seus resultados e explicações), é que o
atraso encontrado no desenvolvimento dos D.Vs deve-se:
a) aos aspectos perceptuais ou representacionais caracterizados pelo
empobrecimento de imagens, e não a dificuldades situadas no aspecto
operacional;
b) à utilização de níveis cognitivos não apropriados à compreensão e
organização das situações (fazendo o D.V. aproximação de problemas
conceptuais abstratos, através de um nível concreto e funcional;
aproximação de tarefas que envolvem representações ou imagens,
através de níveis conceituais), num esforço de compensar déficits;
c) às condições educacionais (familiares e escolares) -que não
supriam as necessidades de desenvolvimento dos D.Vs. e nem
forneciam oportunidades para maximizar suas possibilidades - e não
aos limites provenientes da deficiência visual.
Um outro aspecto frisado pelos pesquisadores refere-se à
inadequação dos recursos diagnósticos utilizados com o D.V., e que
se manifesta em:
a) impropriedade na utilização dos testes verbais de inteligência,
elaborados para videntes e usados para cegos;
b) dificuldades de adaptação de testes de execução para avaliação
dos D.V.
A esses dois itens levantados pelos pesquisadores, cabe
acrescentar um terceiro:
c) impropriedade dos critérios (para conhecimento da experiência do
sujeito e sua formação simbólica) tomados como referencial de
comparação entre D.V. e vidente.
Como ilustração do item c, são retomados a seguir alguns dados
encontrados por Mephart, Mepharte Schwartz (1974): assinalam déficit
das crianças D.V. na descrição das pessoas e do ambiente, por elas
se referirem a menos partes do corpo dos amigos. Esquecem, no
entanto, que na cultura ocidental as partes do corpo são
características percebidas visualmente. Poder-se-ia afirmar que as
imagens pobres ou concepções imprecisas dos D.Vs., encontradas
por esses autores simplesmente estão reiterando que a descrição do
ambiente se faz habitualmente pelo visual. As conclusões de Foster
(1977) de que as imagens das crianças cegas são basicamente
reprodutivas, isto é, permanecem estáticas, é uma outra ilustração
disto; a ausência de referencial perceptivo próprio (tátil, auditivo,
olfativo, cinestésico) faz com que a criança cega fique presa
estaticamente a informações recebidas, repetindo-as, impedida de
com elas operar.
2. Refletindo sobre as Pesquisas com D.V.
- Os dados e conclusões evidenciaram, que pouco se sabe sobre o
D.V. O "empobrecimento de imagens" estará revelando características
de sua percepção ou ausência de recursos para conhecimento dessas
características? "A utilização de níveis cognitivos não apropriados à
compreensão e organização das situações", estará se referindo a
deficiências do D.V. ou das condições educacionais que não
propiciaram a ele essa apropriação?
Por outro lado, as conclusões enfatizaram a inadequação dos
recursos para diagnóstico do D.V.
No entanto, apesar disso, os autores das Pesquisas, de um modo
geral em suas conclusões, apresentaram sugestões para a Educação
do D.V., chamando atenção para a relação do desenvolvimento do
D.V. com suas condições educacionais. E importante lembrar que
Gottesman, cujos estudos não apontam diferenças entre os D.Vs. e os
videntes, caracteriza os sujeitos de seus experimentos, como bem
ajustados e integrados; bem aceitos pelos familiares, tendo sido
tratados primeiro como crianças e depois como portadores de
deficiência. O autor refere-se ao grau de liberdade dado pelos pais,
como fator crucial para seu bem estar. Gottesman chama, porém
atenção para o fato de que seus sujeitos constituem um grupo
selecionado. Suas conclusões exatamente por isso parecem-me
importantes, pois ilustram que quando as condições educacionais são
apropriadas, o D. V. desenvolve suas possibilidades.
Por essas razões, busquei registros de propostas educacionais
cuja prática tem sido desenvolvida entre nós, com a intenção de
conhecer que características do D.V. os planejamentos educacionais
tomam em consideração.
D. A Educação do D.V.
As pesquisas chamaram a atenção para a questão perceptual.
Voltada para esse ponto, a análise referente às propostas
educacionais, neste item, tem como preocupação focalizar: a
concepção de percepção que fundamenta cada trabalho; e como se
considera as características do D.V. para sua educação.
Não há pretensão de fazer um levantamento exaustivo, mas tão
somente tomar exemplos referentes à propostas de educação, que
orientam a prática com D.Vs em, São Paulo, a fim de analisá-las
nesse sentido.
Foram escolhidos três dos programas existentes e divulgados para
Educação do D.V. no Brasil. Um deles se refere ao D.V. em geral:
Proposta Curricular para o D.V. - Projeto Prioritário "Reformulação de
Currículos para Educação Especial" - do Centro Nacional de Educação
Especial (CENESP) do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Outro
se refere à educação do portador de visão subnormal - Programa para
desenvolver a eficiência do funcionamento visual, da autoria de
Barraga e Morris, traduzido e publicado pela Fundação para o Livro do
Cego no Brasil. Esses dois órgãos de âmbito nacional dispensam
justificativas que enfatizem a importância de suas publicações, numa
área desprovida de bibliografia especializada. O terceiro diz respeito
especificamente ao cego - Manual para Treino de Orientação e
Mobilidade de Cegos - Tese de doutorado defendida no Instituto de
Psicologia da USP - primeira sobre esse tema no Brasil, defendida por
Bueno, professor de Habilitação de Ensino de D.Vs. da Faculdade de
Educação da USP e especialista em treino de Orientação e Mobilidade
de Cegos.
1. Os Deficientes Visuais
A primeira preocupação, no Brasil, com a educação de deficientes
apareceu a 12 de setembro de 1854. O Imperador Pedro II baixou o
Decreto Imperial n.º 1428 criando o Imperial Instituto de Meninos
Cegos - marco inicial da educação de deficientes visuais no Brasil e
América Latina. Após o advento da República esse Instituto passou a
denominar-se Benjamin Constant, única instituição encarregada da
educação de deficientes visuais no Brasil, até 1926 quando foi
inaugurado em Belo Horizonte o Instituto São Rafael. Em 1934 o
Instituto Benjamin Constant foi autorizado a ministrar o curso Ginasial,
que em 1946 foi equiparado ao Colégio Pedro II.
Em 1927 foi fundado em São Paulo, o Instituto para Cegos "Padre
Chico" ["Padre Ghico" em homenagem ao Monsenhor Francisco de Paula
Rodrigues], que adquiriu personalidade jurídica em 1928, sendo
reconhecido de utilidade pública Estadual e Federal em 1960 e 1968,
respectivamente.
Em 1935, é apresentado por Cornélio Ferreira França à Assembléia
um projeto de lei com o objetivo de criação do lugar do professor de
primeiras letras para cegos e surdo mudos.
Em 1945 foi implantado no Instituto de Educação Caetano de
Campos em São Paulo o primeiro curso de especialização de
professores, oficializado através do Decreto Lei no. 16.392, de
02/12/1946.
Em 1946 foi criada a Fundação para o Livro do Cego no Brasil,
instituição para imprimir livros em caracteres Braille - passo importante
para a descentralização da Educação Especializada.
Em 1947 o Instituto Benjamin Constante a Fundação Getúlio
Vargas, em regime de cooperação, realizaram o curso de caráter
intensivo destinado á especialização de professores para deficientes
visuais. A partir de 1951 foram realizados cursos de especialização de
professores e inspetores para D.V., com alunos de diferentes unidades
federativas.
Em 1950, em caráter experimental, foi instalada nas escolas
comuns
a 1.ª classe Braille do Estado de São Paulo. Sua oficialização se deu
em 1953,
pela lei n.º 2.287, regulamentada pelo Decreto n.º 26.258, de
12/08/56. Nessa mesma década se admitiu a matrícula do aluno cego
no 2.º ciclo do curso secundário e o Conselho Nacional de Educação
permitiu oficialmente o ingresso de estudantes cegos em Faculdades
de Filosofia.
A Freqüência em escolas comuns ampliou-se e não deixou
dúvidas quanto a possibilidade de ajustamento social do aluno D.V. e
ao nível satisfatório de seu desempenho de aprendizagem. Foi com
essa crença que, de 1975 a 1977, a Universidade do Estado do Rio de
janeiro, em convênio com o Centro Nacional de Educação Especial
(CENESP), trabalharam no Projeto de Reformulação de Currículos
para Deficientes Visuais. Como se pode ler no Volume 1, pg. 8, "...é
evidente que o bom desempenho do aluno D.V. na escola comum está
condicionado, por um lado ao indispensável aparelhamento do
sistema, a fim de que se diminua o descompasso de aprendizagem do
aluno excepcional e, por outro lado, ao oferecimento de condições
satisfatórias para garantir atendimento educacional adequado".
1.1 Análise da Proposta Curricular para Deficientes Visuais -
(CENESP)
Volume 1 - 1.a Série.
A intenção aqui é a de buscar como a programação leva em conta
a percepção e as características do D.V. e não a de analisá-la do
ponto de vista pedagógico.
Seus autores consideram que a falta de visão gera problemas
evidentes de organização e estruturação espaço-temporais. Afirmam
que "esses problemas podem ser superados levando-se em conta o
desenvolvimento compensado das correspondências e correlações
entre as demais formas de percepção motricidade, audição, tato e
olfato" (Vol. 1, pg. 32, grifo meu). A partir dessa idéia foi dosada a
seleção e organização das experiências que o programa propõe.
A fundamentação psicológica da Proposta é a Teoria de Campo de
Lewin (Vol. 1 pág 23), por ser considerada a descrição teórica sobre a
conduta que mais se aproxima da realidade psicológica do D.V.. Nela
a pessoa é representada espacialmente como um conceito estrutural,
compondo com seu meio regiões interdependentes no "espaço de
vida" - ela é uma função do meio, e o meio é uma função da pessoa. O
"espaço de vida" é visto como o universo psicológico, contendo a
totalidade dos fatos possíveis, capazes de determinar o
comportamento do indivíduo (página 24). Ele é circundado por fatos
não psicológicos que Lewin denomina "ecologia psicológica". Há dupla
comunicação entre esses dois domínios, o que implica a possibilidade
de um fato do mundo não psicológico influenciar o espaço de vida.
Devido a isso é frisada a importância da análise da situação, ao invés
da predição do que a pessoa irá provavelmente fazer no futuro.
Frente a essa fundamentação, os autores acabam por concluir que
o D.V. sofre frustrações devido a seus limites, como se pode ler na
seguinte afirmação da página 26: "Concebendo-se o deficiente da
visão em relação ao 'espaço de vida', percebe-se sua acentuada
dificuldade de acesso ao meio, limitando sua ação e
conseqüentemente seu 'espaço de vida'. As variáveis psicológicas ao
que tudo indica, devem pesar sobre ele, gerando frustrações".
Essa concepção do D.V. como pessoa deficitária é que definirá a
Orientação Metodológica? Essa pergunta não fica respondida quando
se depara na Fundamentação com conceitos aparentemente
contraditórios, como se pode ler a seguir.
Na citação da pg. 26 "espaço de vida" é tomado como espaço
objetivo, enquanto considera que ele é limitado no D.V. devido à sua
dificuldade de acesso ao meio. Nesse sentido é contraditório com a
definição anteriormente citada da página 24, no qual "espaço de vida"
se refere ao aspecto idiossincrático como "universo psicológico,
contendo a totalidade de fatos possíveis para o próprio sujeito".
A definição da pg. 26 revela que os autores partem de um
referencial do vidente, à deficiência visual são atribuídas limitações e
frustrações do D.V. Isso justifica uma orientação de tipo "educação
compensatória", apontada na citação já feita da pg. (grifo meu). Nesse
sentido o D.V. é colocado na mesma ordem do "carente" cultural. Isto
é, assim como na expressão "carente" está implícito um juízo de valor
de que a cultura dominante é "natural" e "correta"; da mesma forma na
afirmação sobre o D.V., está implícito o juízo de valor de que a ação e
o "espaço de vida" fundados no visual é que são "naturais" e
"corretos". Por essa definição a orientação se identificaria com os
programas compensatórios, (da década de 60 nos EUA e de 70 no
Brasil) visando promover efetivamente igualdade de oportunidades
aos deficitários: estimular a criança a perceber aspectos do mundo
que a rodeia; desenvolver repertório verbal, raciocínio, criatividade e
adquirir capacidade de atenção e concentração. Esta comparação do
D.V. com o "carente" será retomada após a análise das Propostas
Educacionais.
Por outro lado a definição citada da página 24, e a ênfase na
importância da análise da situação (ao invés de predições de
comportamento), identifica-se com a fundamentação da Gestalt e
aponta assim para uma orientação metodológica que busca lidar como
comportamento globalmente, em suas relações. O todo nesse enfoque
não resulta da soma das partes e as estruturas não encontram
equivalência na reunião das seqüências independentes. O
comportamento, mesmo no caso de simples atividades motoras, é
sempre mais que um desenrolar de acontecimentos que se
determinam fisicamente. Visto como estrutura que contém o passado
e antecipa o futuro, não pode pois se no tempo e espaços objetivos,
em uma série de acontecimentos físicos.
Como ficou exposto a Fundamentação Psicológica sugere, embora
sem explicitar, uma Metodologia Gestáltica para a Programação. No
entanto o sub item denominado Orientação Metodológica, pelo
contrário não deixa dúvidas quanto à sua linha Associacionista, como
é apresentada no Volume 1, pg. 33 e que é transcrita a seguir.
a) Associação de Bases Sensoriais
Situação espontânea na qual a noção será percebida
simultaneamente de maneira multidimensional: corporalmente
(motricidade); pelo ouvido, pelo olfato, pelo paladar.
b) Separação das Bases Sensoriais
Em situações provocadas, passa-se a permitir que uma noção seja
percebida ou expressa em função de uma única avaliação sensorial.
As diversas sensações serão sucessivamente exploradas.
c) Transposição Perceptivo Motriz
No mesmo processo contínuo é indispensável estabelecer
solidamente as relações e correspondências entre as diversas bases
sensoriais e motoras. Por ex.: o que se ouve deve poder ser traduzido
em movimentos que serão comunicados aos demais (tradução do que
se tenha percebido, para transmitir ao outro sob forma de expressão)
d) Expressão Simbólica
As diferentes formas de expressão adquirem um valor simbólico. O
aluno demonstra ter aprendido quando é capaz de expressar as
diferentes noções através de todos os meios de expressão (vivencia
motriz/expressão gráfica/expressão oral).
1.2. Comentários sobre a Proposta
Diferentemente da Gestalt - que conceitua a percepção como
estrutura, numa configuração global, investida de significado - a
Proposta analisa a percepção através da sensação.
O conceito de sensação é encontrado nas origens do empirismo, no
qual o conhecimento é considerado uma representação passiva de um
mundo que se encontra separado do cognoscente. A faculdade
cognoscitiva do homem é vista como tabula rasa e a realidade do
mundo é que predomina. O marco inicial do conhecimento é a
sensação, definida como ação pontual exercida sobre o corpo e
concebida por via de abstração: por um lado a anatomia e a fisiologia
formando uma representação do corpo, um conjunto de processos
orgânicos (suscetíveis de serem ativados por um estímulo externo)
que subentende um percurso anatômico, ligando um receptor a
determinado posto de registro; por outro lado o estímulo agindo por
propriedades que a química e a física definem objetivamente. Assim, o
mundo externo age sobre os sentidos de modo fragmentário e a
interioridade do ser fica reduzida às propriedades do objeto
transformadas nas qualidades experimentadas como funções
orgânicas.
Os itens da Orientação Metodológica apresentados a seguir
ilustram o que ficou exposto.
No itens a, "Associação das bases sensoriais" e "Separação das
bases sensoriais", fica evidenciado que a percepção não é
considerada como um processo de estruturação, mas como resultado
obtido a partir da simplicidade de elementos primitivos. O processo é
visto no caso do aluno, na mesma exterioridade que se vê as coisas e
assim se ofusca os horizontes nos quais se desenvolve a vida de cada
um, tanto "cultural" corno "humana".
Para ilustração, será transcrita a seguir uma situação de
aprendizagem que aparece na pg. 44 do Programa Curricular, Vol. 1.
Objetivos:
Reconhecer pelo tato e nomear diferentes partes do corpo
SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM:
-
Apalpar seu próprio corpo,
descobrindo suas diferentes partes, nomeá-las.
-
Identificar o formato do corpo humano, e suas partes, utilizando
bonecos de pano desmontáveis ou não.
Dessa forma o corpo é reduzido a um objeto entre objetos, a uma
realidade composta de partes. Entre suas partes ou entre ele mesmo e
outros objetos só se entende as relações exteriores e mecânicas. No
caso o tato é a via de alcançar o objeto para representá-lo.
Já no item c "Transposição perceptivo motriz", a visão, a audição, o tato são modos diversos de alcançar o objeto e receber os estímulos.
São consideradas pois diferentes vias para chegar à representação
do objeto. Procura-se desenvolver no aprendiz relações e
correspondências entre as diversas bases sensoriais e motoras. Isso
implica a crença numa experiência tátil, uma experiência auditiva, etc.,
ao invés de uma experiência integral onde é impossível dosar as
diferentes contribuições sensoriais.
Para ilustração são transcritas a seguir algumas situações de
aprendizagem. As páginas onde foram encontradas aparecem ao lado
dos objetivos.
Objetivos:
Reconhecer os objetos pelo tato
Situações de Aprendizagem:
Colocando na caixa objetos como lápis, bola de papel amassado,
borracha, moedas e cubos. Pedir que nomeiem: devagar, depressa
Objetos:
Utilizar a noção de grandeza, pela percepção do espaço que seu
corpo pode ocupar
Situações de aprendizagem:
Levantar-se e em seguida dizer: "Fiquei grande".
Objetivos
Reconhecer substancias pelo odor, nomeando-as.
Situações de aprendizagem:
Cheirar algodão embebido em determinadas substâncias, identificá-las, renomeando-as.
Objetivos:
Reconhecer substâncias pelo sabor e pelo cheiro.
Situações de aprendizagem:
Provar o sal, o açúcar, o gelo, beterraba, laranja ácida, para distinguir
sabores
Esse procedimento, subentende que o indivíduo passe por essas
etapas, fragmentadamente. Ele não é considerado na sua totalidade,
na situação em que se dá a percepção, cada sensação tátil, olfativa,
cinestésica gustativa é apresentada uma separada da outra.
Já no item d Expressão simbólica", o aluno revelará que aprendeu
uma noção quando for capaz de representá-la através de diferentes
meios: motor, gráfico, oral. Assim a motricidade, o grafismo, a
linguagem são considerados manifestações de uma operação interior;
constituem os símbolos exteriores de um conhecimento interior.
Como ficou exposto, a Proposta Curricular baseia-se na concepção
de que a falta de visão gera problemas patentes de organização e
estruturação. Isso mostra que o referencial para a educação do D.V. é
aquilo de que ele não dispõe, isto é, a visão. Conseqüentemente a
diretriz educativa é a da Superação dos problemas, através da
compensação, pelo uso de outras formas de percepção.
Desse modo o D.V. não é considerado na sua totalidade, como um
indivíduo com características próprias, das quais uma delas é a
deficiência visual. A programação, ao contrário disso, focaliza-o como
indivíduo deficiente e não leva em conta sua maneira própria de
perceber.
2. Educação do portador de visão subnormal
Natalie Barraga - Professora do Departamento de Educação
Especial e Coordenadora dos Programas de Graduação em Educação
Especial e de Educação de Deficientes Visuais na Universidade de
Texas, em Austin, EUA. - assinala a importância da avaliação educacional
voltada para o prognóstico do que o D.V. pode aprender e para um
planejamento educacional mais efetivo, que forneça bases para
programas de aprendizagem. Chama atenção para as diferenças da
avaliação dos cegos e dos portadores de visão subnormal: a primeira
lidando com os diferentes tipos de aprendizagem do cego; a segunda
lidando com a capacidade visual em pessoas que tem alguma visão
residual. Barraga (1977) menciona a tendência tanto na educação,
como na habilitação de tratar diferentes pessoas sob o rótulo de
"cego", ao invés de reorganizar seus comportamentos funcionais para
fortalecer a utilização da visão que possuam. Enfatiza a necessidade
de uma avaliação adequada e completa dos comportamentos e
habilidades funcionais e acadêmicas da criança D.V.: como ela realiza
suas atividades pessoais; como se relaciona com outras pessoas;
como usa seu corpo e seus sentidos como é seu desempenho na sala
de aula; quais as habilidades que lhe permitiu tornar-se parte da
Sociedade mais ampla. Sugere que se esteja atenta ao que significa
seu nível de funcionamento (se devido à experiência, à formação, a
problemas neurológicos ou a problemas de aprendizagem além dos
problemas visuais). Propõe que se focalize o que a pessoa tem e pode
usar mais do que quanto perdeu ou não tem; frisa que cada indivíduo
tem características próprias, o que permite poucas generalizações a
respeito do trabalho com o D.V.
2.1 Análise de um Programa
Como pesquisadora e educadora de D.Vs., voltou-se para os
portadores de visão subnormal, pois os poucos dados normativos de
sua educação baseiam-se em seres totalmente cegos. Em co-autoria
com Morris (1985) publicou "Programa para desenvolver a eficiência
no funcionamento visual". Ciente das dificuldades de um planejamento
abrangente, apropriado a todos, propôs esse programa para servir
como base, podendo ser modificado ou adaptado para preencher as
necessidades dos alunos com os quais se trabalha. Nele são
apresentados recursos materiais e ópticos para auxiliar a visão
subnormal e um guia para planejamento de lições.
Não são feitas referências, nem arrolados aqui os recursos
materiais ou ópticos, pois o interesse deste trabalho está voltado para
os processos do
D.V.
Antes de analisar alguns dados sobre o guia para planejamento
das lições, cabe ainda assinalar que há muitas perguntas sem
respostas sobre visão subnormal. Barraga e Morris apesar de terem
organizado seu "Programa para desenvolver a eficiência..." levantam
várias perguntas nesse sentido. Duas delas, apresentadas a seguir,
merecem destaque e constituem pontos de reflexão para o presente
trabalho:
Por que algumas pessoas com graves prejuízos visuais trabalham em
níveis marcadamente mais altos do que outros com imperfeições
menores?
É o próprio prejuízo, ou outras características pessoais que inibem ou
limitam a aprendizagem e o funcionamento visual, especialmente nas
crianças?
Apesar dessas perguntas, da preocupação de focalizar o que a
criança tem (ao invés do que não tem) de buscar o significado do nível
de funcionamento, o Programa de Barraga e Morris não parece
coincidir com esses pontos levantados pelos autores. Esse ponto será
comentado mais adiante.
Conforme afirmam, o "Guia de planejamento" parte da concepção
de que as funções visuais desenvolvem-se de acordo com um padrão
influenciado por 3 fatores principais: o tipo e alcance da estimulação e
as experiências disponíveis para promover a função do olhar; a
variedade de tarefas visuais realmente executadas sob todas as
condições ambientais; a motivação e a capacidade para o
desenvolvimento consistente e progressivo, tanto perceptível como
cognitivo. Contém 150 lições estruturadas para auxiliar o estudante a
usar sua visão ao máximo. As lições estão organizadas em seções
que refletem as oito categorias de etapas de desenvolvimento
pertencentes a três diferentes funções, como segue:
Funções ópticas
Habilidades relacionadas com o controle e uso dos músculos internos
e estrutura do olho.
a) Lições organizadas para estimular a consciência dos objetos no
campo visual e para favorecer a procura e exploração visual a fim de
que a informação visual possa ser recebida. (1 a 3 meses)
b) Lições organizadas para desenvolver
e fortalecer o controle voluntário dos
movimentos dos olhos. Os objetos visuais sugeridos foram escolhidos
para estimular a atenção visual e favorecer o desenvolvimento da
discriminação de cor e de tamanho. (1 a 12 meses)
Funções ópticas e perceptivas
Habilidades relacionadas com o concreto e uso dos músculo externos
e internos e estrutura do olho, para receber as informações num
determinado momento.
c) Esta seção preocupa-se com a exploração e manipulação de
objetos
concretos. Através destas atividades haverá estimulação para
discriminação, reconhecimento e uso dos objetos e finalidades
intencionais.
(1 a 3 anos)
d) As lições nesta seção concentram-se
na discriminação e identificação de
cor, forma e detalhes em objetos e
figuras de objetos, pessoas e ações.
As atividades viso motoras são
proporcionadas para reforçar a
coordenação olho-mão e a
manipulação através da observação e
imitação. (2 a 4 anos)
Funções ópticas, perceptíveis e viso perceptíveis
Exigem eficiência na identificação e percepção da relação entre tipos
de objetos e materiais visuais.
e) As lições nesta seção concentram-se na memória para detalhes de
figuras e modelos complexos e na relação de partes para o todo da
imagem visual. As atividades oferecidas para encorajar a
discriminação de figura-fundo e compreensão de perspectiva próximo
distante. (3 a 5 anos)
f) As lições desta seção tratam principalmente com habilidades de
discriminação, identificação, seqüência e reprodução de figuras e
símbolos abstratos (4 a 5 anos)
g) As lições desta seção estão organizadas para desenvolver a
discriminação, identificação e percepção de relações entre figuras de
objetos, figuras abstratas e símbolos. (5 a 6 anos)
h) As lições desta seção estão organizadas para desenvolver a
identificação e reprodução de símbolos isolados e combinados. A
percepção de relações entre símbolos leva à exata identificação das
palavras.
(6 a 7 anos)
Cada categoria é prevista numa idade média de desenvolvimento
cronológico, que aparece entre parênteses nos itens de a a h. Os
autores entretanto afirmam que o "programa" é válido para escolares
de nível primário, secundário e para adultos. Há segundo eles uma
tendência de se pressupor que os portadores de visão subnormal
estão funcionando com eficiência visual satisfatória. Sugerem que as
lições podem ampliar a variação do funcionamento visual em todos os
ambientes de vida diária.
A seguir são reproduzidos itens de uma lição de cada uma das
seções e no que constituíram pontos de reflexão para mim.
2.2 Comentários sobre Lições do Programa para Desenvolvimento
Visual
Lição nº 7 – Seção A
Objetivo: O estudante reagirá ante um objeto visual.
Tarefa Visual: Observar visualmente o objeto.
Procedimento: O experimentador (professor) dá ordens:
"Toque a bola"; e posiciona-se conforme indicação do material: "Olhe
para esta "bola". "Dê-me a bola".
Espera-se do estudante a resposta prevista.
Comentários:
Neste exemplo de lição, tanto no Objetivo como no Procedimento
estão presentes os conceitos realistas que caracterizam o pensamento
causal: desarticulação de comportamento em processos parcelados
recompostos por um procedimento associacionista. Subentende que
um estímulo (ordem) é associado a uma reação simples que se dá
num processo isolado, O material recorre a situações que não levam
em consideração a experiência do estudante. Ao invés de ser uma
descrição fiel do comportamento cotidiano, é uma construção
inspirada nos postulados atomistas da análise de realidades materiais;
transpõe para atividades orgânicas (no caso ópticas) os modelos que
convém a um universo de coisas (objetivos físicos).
Assim o funcionamento visual reduz-se a situações pré-delimitadas
e pré-estabelecidas. Esta proposta esquece que a função tem uma
realidade própria; ela não é uma simples conseqüência da existência
de órgãos e de sua estimulação; e o comportamento não pode ser
conhecido em unidades fragmentadas, nem pela Fisiologia, nem pela
Psicologia.
Lição n 20 - Seção B
Objetivo: O estudante rolará a bola, seguir visualmente e irá até onde
ela estiver parada.
Tarefa Visual: Manter contato visual com o objetivo e ir até ele.
Procedimento: O professor executa atividades em ambientes conforme
o estabelecido nas lições e dá ordens: "Olhe para a bola indo na sua
direção. Pegue-a". "Vá pegue a "bola".
Espera-se do estudante a resposta prevista.
Comentários:
Esta lição da seção B só considera os caracteres do ponto de vista
dos estímulos apresentados; não há referência a um sujeito, nem
expressa o modo de ação do organismo. Não leva em conta que nem
o indivíduo, nem o organismo são passivos. Até o organismo modifica
o mundo circundante com certa autonomia, e não é movido apenas
por estímulos.
As reações perceptivas não podem explicar-se por modelos físicos,
a não ser nos casos em que os isolamos artificialmente do complexo
de ações, em que elas se inserem naturalmente. Esse procedimento
não parece pois coerente com uma programação para desenvolver a
eficiência do funcionamento visual.
Como está organizada a lição, o comportamento aparece em
unidades estanques, fragmentado nas respostas esperadas, sem
considerar sua unidade de significação. O comportamento não se
desenvolve no tempo e espaço objetivo, com uma série de
acontecimentos físicos. As relações, quer do indivíduo, quer do
organismo com seu meio, são dialéticas e fazem surgir outras novas.
O termo "reações" não serve para referir-se nem ao individuo, nem ao
organismo, pois supõe uma passividade não encontrada no ser vivo: o
individuo desenvolve relação efetiva com seu meio, o organismo para
ser compreendido precisa ser considerado à luz de seu significado
vital para ele atos relacionados de forma dinâmica com o ambiente e
não do tipo função variável.
Lição nº 38 - Seção C
Objetivo: O estudante indicará as partes do corpo através de pista
verbal.
Tarefa Visual: Observar e identificar características distintas.
Procedimento: O professor indica partes do seu corpo e dá instruções
verbais para o estudante indicar partes do seu próprio corpo e do
corpo de sua boneca, e do corpo do professor.
Espera-se a resposta prevista.
Comentários:
Esta lição conserva a distinção realista das causas e das condições
E-R. Trata o corpo como se fosse inerte, referindo-se a ele como uma
coisa:
"Mostre-me o seu ombro."
Não diferencia a percepção humana da percepção animal: "Mostre-me
a perna da boneca". A criança enquanto deve tocar as partes do corpo
da boneca, não difere do macaco, que identifica a forma do prato em
que receberá o alimento. A lição não considera que a significação
humana é dada antes dos sinais sensíveis. O valor sensorial de cada
elemento é determinado por sua função no conjunto e varia com ela,
de acordo com seu engajamento com o mundo humano. A aparência
da boneca para a criança emerge da totalidade sonora, tátil, motora,
visual, imanente das intenções práticas da criança na relação com a
boneca.
A lição é organizada como se lidasse com o organismo no
laboratório, desengajado do comportamento de fato. Não cogita que a
dialética do organismo humano não pode ser concebida fora das
situações onde ela se encarna.
Lição nº 93 - Seção D
Objetivo: O estudante reconhecerá objetos específicos nas figuras.
Tarefa Visual: Selecionar elementos únicos nas figuras.
Procedimento: O professor indica verbalmente elementos de uma
figura para que o estudante aponte e nomeie os objetos solicitados.
Espera-se do estudante que indique e nomeie o que foi indicado.
Comentários:
Nesta lição está implícita uma concepção de percepção vista como
um processo somativo de impressões: o mundo externo agindo sobre
os sentidos de um modo fragmentado, e não como uma configuração
global. A relação entre o estímulo e o receptor seria portanto uma
relação entre coisas. A percepção não é um trajeto anatômico que
conduz de um receptor, por um transmissor a um ponto registrado; ela
os estrutura, faz entrar numa configuração global, os investe de
significado.
Quando se percebe um objeto, se percebe um termo de um campo
e não de elementos. Tudo que se percebe nunca está isolado, mas é
uma relação a um conjunto, em termos de totalidade. Tudo que se
percebe está ligado a todo o resto, por isso requer que se verifique o
significado da situação - a unidade de significação. Percepção é pois
um momento de vida total e tem como objeto as ações intencionais de
quem percebe, bem como a dos outros seres humanos da cultura a
qual pertence o objeto.
Na lição, a indicação do professor para que o estudante
passivamente aponte os objetos, perde de vista a configuração global,
e o significado que ela possa ter para o estudante. Cai assim no
fisicalismo, no modelo da realidade física, numa redução do processo
de percepção.
Lição nº 106 - Seção E
Objetivo: O estudante observará, imitará e relacionará a seqüência da
ação das figuras.
Tarefa Visual: Imitar ações das figuras.
Procedimento: O professor mostra cartões com figuras em seqüência
e pede que o estudante mostre o que foi feito em primeiro lugar e o
que foi feito depois e em seguida imite as ações das figuras.
Comentários:
Esta lição implica um pensamento objetivo, que reduz o espaço
vivido num espaço pré-delimitado de um meio inerte, onde cada
acontecimento se define pelas condições físicas apresentadas. Assim,
reedifica o comportamento e a percepção numa multiplicidade de
fixações objetivas.
As práticas do ser vivo em face do mundo são reduzidas a um
mecanismo comportamental. As intenções do ser vivo são convertidas
em movimentos objetivos: a percepção compreendida como imitação e
desdobramento do que foi executado pelo professor; a resposta
esperada subentendendo o reencontro das características das figuras
apresentadas.
Na percepção há uma atividade estruturante que vai além da ação
de uma exterioridade sobre a interioridade e que não é descritível pela
passividade do ser, implícita nesta lição - onde o ser imita ou executa
a ordem recebida e não se considera nem sua experiência, nem sua
vivencia.
Lição nº 111 – Seção F
Objetivo: O estudante combinará e identificará figuras com linhas retas
e curvas.
Tarefa Visual: Combinar e selecionar figuras de acordo com as linhas.
Procedimentos: O professor apresenta ao estudante cartão com
desenho de formas e dá ordens para que o estudante identifique em
figuras em outros cartões.
Lição nº 137 – Seção G
Objetivo: O estudante selecionará no cartão a palavra que combina
com a palavra vista à distância.
Tarefa Visual: Combinar palavra com palavra.
Procedimento: O professor apresenta um conjunto de cartões com
palavras em corpo pequeno, para o estudante identificar com o
modelo em corpo grande.
Lição nº 141 – Seção H
Objetivo: O estudante combinará letras de vários tipos.
Tarefa Visual: Perceber constâncias nas letras.
Procedimento: O professor apresenta modelos de letras maiúsculas e
minúsculas e dá ordens para que o estudante faça agrupamentos,
diferenciando as letras maiúsculas e minúsculas.
Comentários sobre as Lições 111/137/141
Estas lições enfatizam discriminação de formas e de seu traçado e
a capacidade de acompanhar um texto com os olhos, isto é, um
conjunto de técnicas perceptivo-motoras para a aprendizagem da
leitura e escrita.
Está subentendido nisso que o mundo objetivo confia aos órgãos
dos sentidos mensagens que devem ser conduzidas, depois
decifradas, de maneira que reproduzam no ser, o texto original.
Resulta, em princípio, uma correspondência entre estímulo e
percepção elementar.
As partes de uma coisa são ligadas entre si por uma simples
associação exterior que resultaria de sua solidariedade constatada
durante os movimentos do objeto. Pressupõe que entre os fenômenos
perceptíveis existe uma ligação completamente exterior, definível
através de leis mecanicistas, leis da associação; onde, ver uma
"figura" significa possuir simultaneamente as sensações que a
compõem, numa justaposição redutiva de visões locais, onde o
"derredor" não entra, nem é levado em conta. O sentido fica pois
reduzido semelhança confusa, ou à associação por contigüidade; não
considera a percepção como um processo de estruturação em curso,
mas como resultado obtido por dedução, a partir da simplicidade dos
elementos primitivos. Assim, um contorno (curvo ou reto) não é nada
mais do que uma soma de visões locais; sua ordem no espaço e sua
maneira de coexistir é a soma de suas existências separadas. A
identificação de letras se dá pela associação por semelhança de
elementos isolados entre si e desvinculados da vida do indivíduo.
O que essas lições não consideram é o ser humano e sua
experiência - seu pensar, perceber e sentir. O ser ativo (que age sobre
o mundo a seu redor e recebe a ação desse mundo), numa relação
dialética, não condiz com esse ser (que espera, passivamente, alguém
propor-lhe questões as quais deverá responder de forma já prevista).
Para o ser ativo que aprende basicamente através de suas próprias
ações sobre o mundo a seu redor, o percebido é "intencional" e surge
de uma unidade significativa, no horizonte de sentidos de sua
experiência.
3. Os Cegos
Muitos pesquisadores e educadores afirmam que 85% das
experiências educacionais são visuais. Como a criança cega esta
privada desse tipo de experiência, conforme Tolford e Sawrey (1971)
frisam, "a adaptação para sua educação existir transferência de visão
para os sentidos, auditivo, tátil, cinestésico, como vias de instrução,
aprendizagem, orientação".
Scholl (1975), num certo, sentido reitera isso ao enfatizar a
importância do cego tirar o máximo proveito da escrita, por ser privado
de informações visuais do ambiente e pela dificuldade de encontrar
material em braille nos níveis mais adiantados dos estudos. Assinala o
uso do tato para exploração de materiais concretos, do ábaco, e do
braille nas diferentes áreas de conhecimento. Refere-se a trabalhos
manuais feitos em três dimensões, para atividades criativas "pois não
requerem modificações especiais em sua apresentação" (pg. 47). Kirk
e Gallagher (1987) referem-se também ao desenvolvimento da escrita
do tato na educação do cego; e chamam atenção para a adaptação
dos modelos ou mapas táteis, representando as relações espaciais
que as crianças podem dominar através do tato.
Sem discordar desses autores, alguns pontos de suas afirmações,
envolvendo a concepção de percepção, permaneceram pouco claros
para mim. Por exemplo, o que significa transferência da visão para os
sentidos auditivo, tátil, etc? Significaria substituição de representações
visuais de um mundo objetivo, para representações táteis? Se assim
for, está pressupondo a delimitação de dados visuais puros, para
dados táteis puros, o que constitui uma objetivação do organismo
humano (como um sistema físico) que, em presença de estímulos
procura reconstituí-los. Em outras palavras subentende um
pensamento que introduz o comportamento e a percepção num
universo objetivo e pré-constituído, no qual o corpo é apenas um
mecanismo sem interioridade. Concorda pois com a explicação
clássica da percepção, já referida, que procura reconstituir a
percepção efetiva, descobrindo as leis segundo as quais se
fundamenta o próprio conhecimento, para formular uma ciência
objetiva da subjetividade. Numa teoria que constrói objetos
despojados de qualquer equívoco, puros, absolutos (ideais de
conhecimento), numa explicação que não considera a percepção
como um processo de estruturação em curso, mas sim o resultado
obtido por dedução, a partir de elementos primitivos.
Assim constituída é uma teoria que se fundamenta na certeza do
saber - do que é sentir, do que é escutar, do que é ver - ao propor que
a educação deverá desenvolver alguns desses aspectos para
compensar a ausência de outros; ao afirmar que trabalhos manuais,
por serem feitos em três dimensões, servem ao deficiente visual, não
querendo modificações especiais; ao sugerir modelos em relevo, para
aqueles que não são possíveis de serem percebidos visualmente.
Dessa maneira o critério de verdade da percepção é considerado
fora dela própria, em leis abstratas, ao invés de buscá-lo no sentido
imanente na experiência perceptível.
Como já foi relatado na Introdução, esse caminho que lida com
modelos abstratos, não havia respondido às minhas buscas para
chegar ao aluno que ali estava na escola; para compreendê-lo com
suas características próprias (suas possibilidades e seus limites).
Da mesma forma agora, em Educação Especial, parecia-me
importante saber como é o perceber do cego e como se lida com ele.
Isso eu não havia encontrado nos autores já citados; nada deixaram
explicitado sobre o cotidiano do cego e sua percepção desse mundo
que o rodeia. O mesmo pode ser dito de Aschcroft (1971) ao referir-se
aos programas educacionais para crianças cegas, onde salienta três
pontos básicos:
-
o domínio da locomoção e orientação;
-
a aquisição de
conceitos de forma apropriada, evitando o verbalismo;
-
o
desenvolvimento de habilidades de comunicação para aquisição e
transmissão de conhecimento (braille, auxílios auditivos, datilografia,
mapas em relevo, materiais concretos).
Não há referência ao como se
desenvolvem os processos educacionais, e como se considera a
percepção do D.V., para atender a esses três pontos.
Guiada por essa preocupação procurei analisar o "Manual para
treino de orientação e mobilidade de cegos" de Bueno - tema de sua
tese de doutoramento defendida no Instituto de Psicologia da USP.
Esse material foi escolhido por ser esse professor o especialista nesta
área mais qualificado no Brasil. E ele professor na Habilitação de
Ensino de D.V. na Faculdade de Educação da USP, e instrutor de
cegos em orientação e mobilidade. Minha intenção, ao voltar-me para
o Manual, era de buscar de que modo leva em conta a percepção do
cego e como lida com ela.
3.1 Análise do Manual para Treino de Orientação e Mobilidade de
Cegos
Referindo-se a seu estudo o autor afirma : "A preocupação central
deste trabalho é a orientação e a mobilidade da pessoa cega,
buscando uma que facilite o desenvolvimento destas habilidades,
ampliando seu repertório básico". Orientação conceituada como "o
processo de utilizar os sentidos remanescentes para estabelecer sua
posição e o relacionamento com os objetos significativos do ambiente
(página 18; e mobilidade como "a locomoção de um indivíduo da
posição em que se encontra para uma outra posição desejada No
caso do cego, a mobilidade é alcançada através de sistemas de treinamento que envolvem a utilização de recursos mecânicos (como
bengalas); ópticos (como lentes especiais); eletrônicos (como o uso de
raio laser, guias sônicos, etc); animais (como a utilização de cães
treinados)" (Bueno, 1988 pp 17/18/19, grifo meu).
Segundo o autor, os problemas de orientação e mobilidade de
cegos são decorrentes do não atendimento às necessidades básicas
da criança cega, entre elas as habilidades físicas e perceptivo
motoras. Nesse sentido propõe-se a estudá-las nos aspectos:
equilíbrio, postura e marcha; imagem corporal; orientação espacial.
Será apresentado a seguir uma proposta do autor e comentados
separadamente cada um desses itens.
Quanto à equilíbrio, postura e marcha Bueno parte da análise da
locomoção normal do ponto de vista da mecânica do andar, da qual
foram destacadas as seguintes afirmações : "O olho e o único órgão
dos sentidos que possibilita ao homem reagir em tempo para estar
certo de que uma batida exata do calcanhar no chão restituirá o seu
equilíbrio no momento preciso..." O andar do cego tende a ficar
instável, porque a visão é a parte fundamental da atuação total dos
sentidos de manutenção do equilíbrio (páginas 30 e 31) "..." É possível
que não haja alteração mecânica no desenvolvimento da locomoção
de uma criança cega no estágio do engatinhamento, surgindo as
inibições apenas quando a criança começa a dar os primeiros passos
sozinha Antes disso, as bases de gravidade proporcionadas pelas
plantas dos pés da criança auxiliadas pelas mãos que se apoiam em
móveis ou pessoas, não possibilitam a perda de equilíbrio (pág 31) "...
A necessidade de compensação mecânica do andar é determinada
por seis causas : 1) rotação pélvica; 2) inclinação pélvica; 3) flexão do
joelho; 4) movimento do pé e tornozelo; 5) movimento do joelho; 6)
movimento lateral do pélvis". O autor acrescenta a partir daí sugestões
referentes a 6 itens para evitar-se perda de equilíbrio, afirmando que
outros ajustamentos mecânicos poderão ser feitos, como a diminuição
do passo para o comprimento de 30 cm (grifos meus).
3.2 Comentários sobre a Proposta para Treino de Orientação e
Mobilidade
Retomando essas afirmações, sobretudo aquelas grifadas, caberia
comentar alguns pontos. Antes de mais nada é importante frisar que
Bueno, ao propor uma alternativa tecnológica para o desenvolvimento
das habilidades de orientação e mobilidade revela: conceber
orientação e locomoção como habilidades separadas de tudo o que o
indivíduo é no seu mundo de valores, crenças e ações junto aos que o
rodeiam; considerar suficiente aplicar de modo pragmático, técnicas,
para desenvolvimento dessas habilidades, sem necessidade de
aplicações epistemológicas ou filosóficas. Assim, coerentemente com
esse posicionamento são dadas as conceituações de "orientação" e
"mobilidade". Em ambas, a posição e o relacionamento do sujeito com
os objetos reduz-se a coordenadas exteriores como fica evidenciado
pelos grifos. E dessa forma o autor deixa de lado qualquer referência à
experiência corporal, lidando com a espacialidade objetiva.
Em decorrência desse ponto de vista, para prevenir ou superar os
problemas de orientação e mobilidade, Bueno propõe um treinamento
específico de habilidades básicas nele envolvidas. Com isso, fica
subentendido que o progresso do comportamento é fruto de uma
prática desprovida de intenções. As habilidades são definidas
objetivamente, a partir de uma análise da locomoção normal do ponto
de vista da mecânica do andar.
Cabe chamar atenção para o fato que a locomoção normal está
totalmente fundamentada na visão e na visão e para que o cego possa
atingi-Ia o autor
propõe a compensação mecânica.
Reiteramos o que ficou dito anteriormente. Parte-se de um
referencial do vidente para definir "locomoção normal", o que justifica
uma proposta compensatória para o trabalho com o cego. Assim,
como a "Proposta Curricular" do CENESP,o cego é também colocado
na mesma ordem de definição do "carente" cultural. Valem pois
novamente os comentários feitos anteriormente pois visa-se promover
efetivamente igualdade de oportunidades aos cegos, através de
treinamento: diminuir o plano do centro de gravidade e evitar perda de
equilíbrio; fazer ajustamentos mecânicos quanto ao tamanho do passo
para uma medida padrão menor; corrigir a inclinação do corpo, do
movimento da cabeça, etc.
Quanto à imagem corporal Bueno define-a como "nosso
conhecimento das partes do corpo, as funções que cada uma delas
exerce e sua relação quanto ao nosso ambiente espacial (pg. 33).
Considera que o desenvolvimento da imagem do corpo se processa
em dois níveis: um inconsciente perceptivo que começa ao nascer;
outro verbal cognitivo, ensinado a partir dos 18 meses.
O primeiro nível tem origem nos reflexos que a criança dispõe ao
nascer e que evoluem para movimentos voluntários, onde deve ser
auxiliada. Para elucidar como fazê-lo propõe que se imagine os
movimentos dos membros do recém nascido em 4 cones espaciais
onde o vértice de cada um consiste na ligação entre ombros e bacia.
Como afirma : "a criança cega precisa ser ensinada a 'observar' seus
membros... de que eles tem uma certa conformação de tamanho e
peso e de que há quatro membros dispostos em várias posições ao
redor de seu corpo como a frente, costas e lados" (pg. 35). "Assim,
nos primeiros anos de vida da criança, os pais devem concentrar-se
em favorecer movimentos de dois tipos de 'cápsulas'. A primeira
'cápsula' refere-se aos cones e a segunda é um tipo de cápsula
denominada 'tubo vertical' no qual a criança pode mover seu tronco"
(pg. 36, grifos meus).
Assim, o corpo é concebido como um objeto do qual se faz
representações esquemáticas, a partir das quais se treina as crianças.
Dessa forma a proposta organiza-se desengajada do comportamento
de fato e não considera que o organismo humano se transforma,
dialeticamente, em cada situação.
No segundo nível, quando a criança cresce e adquire
comportamento verbal é possível treiná-la em imagem corporal Nesse
sentido o autor apresenta algumas conclusões, ao examinar dados
relativos à resposta verbal à perguntas para identificar componentes
da imagem corporal E termina apresentando as quatro fases que as
crianças revelaram na sua compreensão de sua imagem corporal,
conforme segue:
1º. fase - percepção das partes do rosto, membros, alguns
movimentos corporais inadequados freqüentes, costas e lados e a
colocação de objetos ce relação ao corpo;
2º. fase - descrição dos lados do corpo e a relação do corpo com
objetos;
3º. fase - conhecimento completo do corpo e do relacionamento corpo-objeto, identificação dos membros;
4º. fase - identificação das partes do corpo e movimento de outras
pessoas.
Como se pode verificar, Bueno trata da "imagem
corporal' num universo objetivo e pré constituído, reduzindo o corpo a
um mecanismo sem interioridade. Assim, a definição refere-se a um
esquema, um resumo da experiência corpórea, provinda de
associações de imagens progressivamente constituídas. O esquema
corporal assim conceituado, desenvolve-se, pouco a pouco, no
decorrer da infância, na medida que os conteúdos táteis, cinestésicos,
articulares se associam entre si e sua representação, resultante de um
centro de imagens, forma a imagem corporal. O corpo fica então
reduzido a um objeto. Como conseqüência, entre suas partes, ou entre
ele mesmo e outros objetos, só existem relações exteriores e
mecânicas (quer de movimentos recebidos e transmitidos, quer numa
relação de função e variável).
O autor atesta coerência no seu posicionamento ao falar dos
reflexos; ao dar sugestões aos pais para ajudarem a criança a
desenvolver a imagem corporal; e ao enfatizar o comportamento
verbal para treiná-la em imagem corporal Revela assim, crença em:
processos rígidos, herdados, independentes das situações; efeitos das
estimulações pontuais, sem preocupações com o mundo vivido do
sujeito; processos experimentais do mundo físico, válidos para o
mundo humano.
Quanto à orientação espacial já foi feito comentário anteriormente
sobre a conceituação do autor a este respeito. De acordo pois com
sua linha de conduta, afirma serem necessários julgamentos sobre o
movimento eficiente por parte das crianças e jovens cegos. Propõe,
então, treinamentos específicos que envolvem estimativas enquanto o
corpo está fixo ou em movimento. Alguns julgamentos básicos, feitos
em contextos unidimensionais, bidimensionais e tridimensionais.
Tendo o autor sempre a exterioridade como referencial para
orientação não leva em conta em nenhum momento o ponto de vista
do sujeito em treinamento.
A proposta do Manual é bastante coerente quanto a esses pontos
assinalados. Como ficou já visto anteriormente, e cabe aqui mais uma
vez. repetir seu ponto de referência é a visão utilizada para definir o
procedimento padrão para treinamento de orientação e mobilidade do
cego.
Como ficou ilustrado pelos comentários feitos sobre os três
programas o referencial utilizado é o do vidente ou "normal". Isso
reitera de um lado, como já foi assinalado, que o D.V. é comparado
com o portador de visão a partir das características deste. De outro
lado desvela (por parte dos educadores e especialistas) a crença na
objetividade dos instrumentos (testes e estudos de processos
'mecânicos' do comportamento) para conhecer e educar o D.V.
4. Refletindo sobre a Educação do D.V.
A bibliografia especializada que eu havia analisado ofereceu-me outra
perspectiva de trabalho. Dois pontos principalmente contribuíram para
isso: não ter encontrado características do D.V., que me
possibilitassem definir um trabalho educacional junto a ele; não dispor
de bibliografia que fundamentasse o trabalho com o D.V. a partir de
seu próprio referencial perceptual.
Assim modifiquei a programação num ponto. As discussões sobre
os conteúdos do estágio, auxiliados pela leitura especializada, seriam
guiados sempre pelas seguintes perguntas:
1. Qual a característica do D.V. que a situação do estágio mostrou?
2. O autor da bibliografia descreve alguma característica do D.V., ou
refere-se a ele comparando-o com as características do vidente?
3. O trabalho (ou procedimento) proposto considera a maneira própria
do D.V. perceber?
4. O autor da bibliografia, descreve características da percepção do
D.V., ou torna como referencial a percepção visual?
Desse modo a proposta de formar professoras aptas a criticar a
própria ação junto ao D.V. ia se fazendo de maneira simples, no seu
cotidiano de aluna e estagiária.
Esse encaminhamento pouco a pouco deixou claro para mim a
necessidade de sistematizar o que se discutia e conhecia. Um ponto
decisivo para que eu me dispusesse a isso, realizando um Projeto de
Pesquisa guiado pelas perguntas citadas, foi o contacto com as
cartilhas para cegos. Elas traziam de modo mais paupável o que a
análise dos programas havia mostrado.
As cartilhas são transcrições para o braille, das conhecidas
"Caminho suave" e "Tempo de escola", com os desenhos em relevo.
Cabe lembrar que os desenhos, nas cartilhas originais, fazem parte
das "palavra chave". Por exemplo, a palavra elefante tem a ilustração
de um elefante que forma com a tromba, para auxiliar a memorização
da letra. Em braille, no entanto a letra não apresenta nenhuma
semelhança com o desenho do elefante e a ilustração permanece a
mesma. Não deixa dúvida pois quanto ao referencial visual na cartilha
para cegos.
Os desenhos pareciam-me, além disso, perceptíveis apenas
visualmente, pois, sendo extremamente complexos, dificilmente
seriam percebidos pelo tato. Solicitei a alguns videntes vendados que
através do tato me dissessem o que eram os desenhos. Fiz o mesmo
com alguns deficientes visuais. Para ambos a percepção dessas
figuras pelo tato foi difícil.
À guisa de ilustração apresento alguns diálogos que tive com os
D.Vs., sobre alguns dos desenhos (Anexos).
São apenas trechos de diálogos sobre a cartilha. São aqui trazidos
para ilustrar de maneira simplificada o que constitui referencial do
vidente para a educação do D.V..
Nos debates com vários D.Vs. (adultos) sobre esses desenhos,
aqueles que haviam tido contacto anteriormente com as figuras eram
capazes, algumas vezes, de identificá-las. Isso acontecia quando as
linhas eram simples e ofereciam pontos de referência facilmente
identificáveis.
Cabe ainda lembrar que as cartilhas foram impressas pela
Fundação para o Livro do Cego no Brasil (Hoje Fundação Dorina de Gouveia Nowill), instituição de
abrangência nacional.
Assim esse material utilizado para o ensino do D.V., tanto quanto
as Pesquisas e Programas analisados, seguem o modelo do vidente.
Desse modo, como já foi dito anteriormente, ao ser avaliado através
desse referencial o portador de deficiência visual é colocado em
condições semelhantes aos indivíduos pertencentes às chamadas
classes oprimidas.
Como discute Patto (1981) essa classe é impropriamente
denominada classe baixa, desprivilegiada ou desfavorecida. Essa
denominação utilizada por alguns autores baseia-se na crença de que
os problemas apresentados na idade escolar são originados nas
experiências vividas em ambientes que não transmitem os padrões
culturais necessários ao desempenho adequado às tarefas escolares
e às experiências de sociedade.
"A partir dessa conceituação na qual os membros das classes
exploradas são considerados carentes ou deficientes quando
comparados com os padrões da cultura dominante" (pág.209) os
pesquisadores das ciências humanas e educadores buscaram
propostas educacionais para viabilização de igualdade de
oportunidades para todos. Surgem daí os programas de educação
compensatória.
Para o D.V. a perspectiva dos programas compensatórios é
também de incorporá-los efetivamente no sistema social vigente,
ajudando-o a superar "deficiências" pela "correção" através de
programas educacionais e terapêuticos. Assim, para sua educação, o
D.V. não é considerado a partir de suas possibilidades, mas de suas
deficiências.
As constatações da análise dos programas, das pesquisas e do
trabalho com as alunas na disciplina OE de D.V., trouxeram de volta,
transformadas as perguntas que fiz ao retornar à Educação Especial:
como se conhecer as características do portador de deficiência visual?
E fizeram surgir uma outra pergunta: como lidar com o D.V., deixando
de lado o referencial do vidente?
Essas perguntas guiaram a Pesquisa "O perceber e relacionar-se
do D.V. - recursos que auxiliam o D.V. nesses aspectos", apresentada
no Capítulo V.
Impasses sobre o Conhecer e o Ver
A. Preâmbulos
A bibliografia lida e analisada (Capítulo II) havia revelado nas entre
linhas que o "saber" origina-se basicamente do ver. Isso colocava-me
num impasse ao retornar à Educação Especial. De um lado minha
experiência, no período de distanciamento desta área, havia tornado
claro que é importante o "aproximar-se" para conhecer o aluno naquilo
que é próprio dele (seu agir, seu sentir, suas experiências, seu
pensar): como ponto de partida de sua educação, propiciando-lhe, no
contacto com o novo, elaboração própria para organizar os
conhecimentos. De outro lado, no levantamento de Pesquisas e
Programas, eu havia encontrado propostas, instrumentos e
fundamentações para trabalhar com o D. V., cujo referencial básico
era exatamente o que não é próprio dele, isto é, à visão.
Isso trazia-me a necessidade de retomar conceituações e teorias
do conhecimento. Enquanto responsável pela disciplina "Orientação
Educacional do D.V." e sem possibilidade de dizimar essa questão
difícil, naquele momento organizei o curso levando em conta os limites
de informações de que dispunha. Considerei que a definição do turno
a ser seguido Pelo educador poderia ter como passo inicial o resgate
do sentido etimológico de "orientação". Esse termo, em português
sinônimo de "direção", "guia", vem do latim "origo-inis", que significa
"fonte", "origem". Assim, em seu sentido original, fazer orientação é
tornar clara a origem, isto é, o indivíduo e o que ele manifesta. Para a
orientação de um aluno, para deixá-lo revelar-se em sua própria forma
de ser, o educador precisa pois: estar atento á maneira dele (aluno):
perceber e explorar o que o rodeia; organizar o que aprende;
comunicar-se com os outros e com o meio que o cerca. Isso porém
requer, daquele que educa, que se volte para a sua própria relação
com o educando perguntando: considera as características próprias da
criança para trabalhar a partir delas, ou desconsidera-as usando
referencial de programas e comportamentos que não são organizados
a partir daquele com quem lida.
Assim, em 1984, passei a ministrar o curso de "Orientação" tendo
como preocupação central sensibilizar as futuras professoras de D.V.,
para essa problemática e para a relação com o outro. Eram realizados
exercícios de percepção e vivências de situações cotidianas, sem o
uso da visão. Com isso eu pretendia que, assuntos como orientação
familiar, orientação psicopedagógica, orientação afetiva, orientação
profissional (tópicos do curso), fossem discutidos e enriquecidos pela
própria experiência de cada aluna, e não ficassem apenas nas idéias
dos autores dos textos indicados.
Em 1985 iniciei um Projeto de Pesquisa (Capítulo V) para trabalhar
junto ao D.V. de Escola Pública. Procurei com isso aprofundar estudos
para saber do mundo do D.V. e de como ele se relaciona com o que o
cerca e o desvela, sem a visão. Eu buscava para isso uma postura, e
uma fundamentação teórica que interrogasse (quando o D.V.
estivesse explorando o mundo a seu redor) como ele conhece, à
maneira dele, o que aí está.
A fenomenologia ao se propor a realizar a descrição da experiência
original anterior a qualquer conhecimento científico, pareceu-me o
caminho que eu procurava - uma atitude para perceber melhor aquilo
que esta aí. A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty,
deslocando o Sujeito epistemológico, para o Sujeito encarnado "Sou
meu corpo", oferecia uma possibilidade para minhas buscas. Encontrei
perspectivas para meu trabalho em "Fenomenologia da Percepção",
quando Merleau-Ponty evidencia a função primordial pela qual
fazemos existir, o objeto e o espaço, descrevendo o corpo enquanto
se da essa apropriação; fala do corpo como conjunto de significações
vividas, que segue no sentido de seu equilíbrio.
Procurei elaborar essas idéias num grupo de estudos sobre esse
filósofo. Coincidentemente, no mesmo período, realizava-se em São
Paulo o curso "O Olhar", organizado pela FUNARTE. Este pareceu-me
um contraponto para o que eu procurava. O simples título havia sido
suficiente para atrair minha atenção. Constituindo tema de um ciclo de
conferências, reiterava para mim a importância atribuída à visão e
trazia de volta a pergunta: ver é condição para conhecer?
Dos conferencistas os que mais contribuíram para esclarecer-me
nesse sentido foram Novaes, Chauí e Bosi, no que em seguida passo
a relatar.
B. Conhecer é ver?
Adauto Novaes (1988) - coordenador do Curso e organizador de
sua publicação - na conferência de apresentação afirma que o saber
depende da visão. Fazendo suas as palavras de Giordano Bruno,
retoma seus pensamentos do livro dedicado aos olhos "Heróicos
Furores" "Os olhares são as razões pelas quais o objeto (como se ele
nos olhasse) se faz presente em nos". Faz distinção de dois
significados: o ver concreto ou a faculdade de ver; e a própria ação de
ver. Sobre este último escreve o diálogo entre os olhos e o coração,
no qual o coração se queixa do fogo que o consome, acusando os
olhos como o causador disso. "Perceber, ver, conhecer, eis em
verdade, o que o desejo acende. É pois, graças aos olhos que o
coração é incendiado"..."Os olhos apreendem as aparências e as
propõem ao coração; elas se tornam então, para o coração, objeto de
desejo e esse desejo se transmite aos olhos; estes concebem a luz,
irradiam-na e nela inflamam o coração; este, abrasado, espalha sobre
os olhos o seu humor. Assim, primeiro a cognição emite a faculdade
afetiva, que por sua vez e em seguida, emite a cognição". (página 18).
Chauí (1988) em sua palestra "janela da alma, espelho do mundo"
retoma o significado do uso cotidiano da palavra e seus derivados.
Mostra que revelam um enfoque realista de mundo. Falamos em ver,
rever, visionário, "porque cremos nas palavras e nela cremos porque
cremos em nossos olhos; cremos que as coisas e os outros existem
porque os vemos e os vemos porque existem" (página 32). De
diferentes maneiras essa concepção realista do mundo está presente
em nossa fala: na distinção, por exemplo, entre as palavras alucinado
e lúcido, isto é, loucura e sanidade, designados como ausência ou
presença de luz; quando achamos graça da criança que fecha os
olhos ao brincar de esconde-esconde supondo que o outro deixa de
vê-la (subjetivismo que expressa a crença de que a visão depende de
nós, muito mais do que das coisas) e atribuindo aos olhos o poder de
irrealização.
Propõe então que se reflita a respeito, perguntando "o que é ver?",
relatando a etimologia desse verbo. Da raiz indo - européia (Weid
olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Este laço
entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não
apenas espectador desatento, é o que o eidô (do grego) significa: ver,
observar, examinar, fazer, instruir, instruir-se, informar, conhecer,
saber. Em grego ao dizer "eidô" (eu vejo), estou dizendo que vejo e sei
o forma própria de uma coisa - o que ela é em si mesma, na essência
- a idéia. Quem vê eidós conhece e sabe a idéia.
Como afirma a autora, "Dos cinco sentidos somente a audição
(referida à linguagem) rivaliza com a visão no léxico do conhecimento".
Cita trechos de Aristóteles e Santo Agostinho, onde aparece o
privilégio da visão sobre os demais sentidos, para a obtenção do
conhecimento. Assim, não dizemos "ouve como brilha", "cheira como
resplandece", "saboreia como reluz", "apalpa como cintila". No entanto
podemos dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só
dizemos "vê como isto brilha" - pois só os olhos podem sentir - mas
também "vê como isto soa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê
como é duro".
Chauí, em sua explanação, mostra que desde seu nascimento, a
filosofia fez uma cisão do olhar: ou a visão depende das coisas
(causas ativas do ver); ou depende dos olhos (que fazem as coisas
serem vistas). A tradição de Demócrito, Epícuro e Lucrécio refletem a
primeira alternativa, fiel ao sentido latino de percepio [percepio - do latim, que se origina em capio significa agarrai
prende', empreender, receber, suporta captar], tornando-se
mais tarde conhecida como teoria perceptiva. A tradição nascida em
Empédocles (ptagóricos, platônicos e neoplatônicos) decide-se pela
segunda alternativa, denominada de teoria emissiva, na qual os olhos
iluminam as coisas para fazê-las visíveis. Aristóteles conciliando a
teoria perceptiva e a emissiva afirmava que o sentido da vista é
potencialidade do olho agindo sobre o meio. "O objeto da visão é o
visível, e o visível é a superfície colorida e também um certo tipo de
coisa" (Aristóteles apud Chauí, 1988 pg. 42)
Isso contudo não modificou o curso da filosofia, quanto à essa
cisão. Conviveram e convivem: o realismo, que crê na percepção
como coincidência entre Sujeito e coisa; o idealismo, que crê na
percepção como síntese operada pelo Sujeito; o empirismo, que
procura explicar a percepção como síntese passiva das sensações; o
intelectualismo, que pela reflexão busca objetivar a sensação,
fazendo-a aparecer como matéria do conhecimento. Há nessas
posturas uma transformação: a passagem da fé perceptiva à atitude
analítica, que decompõe a visão em qualidades (das coisas) e
sensações (dos olhos). Esta desliga-se e desfaz as próprias coisas
para que sejam refeitas, quer como causas ativas, quer na condição
passiva resultante de sínteses subjetivas (do cérebro no empirismo ou
da consciência no intelectualismo). Há pois uma passagem de ponto
de vista: passa-se da experiência de ver, para a explicação racional
dessa experiência. Na primeira, a visão serve de paradigma para
pensar; na segunda, o pensar neutraliza tudo quanto na visão seria
rebelde e irredutível à intelocção. Isto marca pois urna cisão entre o
olhar e o inundo, como entre os olhos do corpo e do espírito ou
intelecto. E na explicação racional uma outra cisão aparece entre o
olhar e a palavra. No racionalismo, o conceito de verdade tem como
critério as regras do bem pensar (o pensar matemático - o pensar
lógico) havendo desarticulação da linguagem, pois a verdade
evidência é alcançada pelo silêncio da intuição intelectual. Numa
posição radicalmente oposta a essa, no conceito de verdade como
alethéia, fica englobada a palavra e o olhar, no desocultamento das
coisas na experiência, pois alethéia é a palavra do visionário ou do
oráculo.
Para ilustrar o ponto de vista do racionalismo é interessante
retomar o hino que Descartes entoa aos olhos: "O olho, pelo qual a
beleza do universo é revelada á nossa contemplação, é de tal
excelência que todo aquele que se resignasse á sua perda privar-se-ia
de conhecer todas as obras da Natureza, cuja vista faz a alma ficar
feliz na prisão do corpo, graças aos olhos que lhe representam a
infinita variedade da criação (Descarte apud Chauí, 1988 pg. 54).
Assim completa Chauí: "A experiência de ver só poderá servir a arte
de ver, sem passar pelo crivo de uma teoria físico-matemática da luz e
uma fisiologia da visão, baseados nos princípios da nova mecânica".
Galileu assume uma concepção semelhante ao afirmar que o
telescópio tem a propriedade de fazer ver o que não existe,
modificando luminosidades, distâncias, movimentos, grandezas.
Considera-o um instrumento de correção, pois a verdadeira visão é
proporcionada pela geometria da luz e das lentes, e com isso, o
telescópio prova que os olhos não sabem ver.
Essas afirmações de Descartes, Galileu e outros falam de um
paradigma da visão para o saber. Porém o modelo não é propriamente
do olhar, mas de uma teoria sobre o olhar que serve, de um lado,
como suporte para o conhecimento, enquanto representação; de
outro, como correção intelectual das ilusões visuais, para que se
possa aproveitar o que é visto e trabalhado pelo intelecto. A pergunta
"quem é o Sujeito do olhar?" sem dúvidas estes responderiam: o
intelecto, o entendimento, a consciência, como poder constituinte do
objeto enquanto significação.
Chauí convida a um regresso ao vidente, perguntando: "Que
aconteceria... se após a longa jornada pelo interior do olho do espírito,
interrogasse, ainda uma vez, a experiência de ver, o olhar?" (pagina
58). Retorna então a fenomenologia de Merleau Ponty e fala do corpo:
essa coisa extraordinária entre as coisas, cuja peculiaridade está em
ser sensível para si, porque se sente enquanto sente as outras coisas,
visível e visto, mas também vidente. Esta "filosofia figurada da visão"
impede a concepção do olhar como operação intelectual, que se refere
ao mundo como representação ou conceito. "A visão se faz no meio
das coisas e não fora delas. Ali onde um visível se põe a ver e se vê
vendo..." (pg. 59).
Bosi (1988) retoma esta concepção de olhar enraizado na
corporeidade enquanto sensibilidade e motricidade e critica o olho do
racionalismo clássico que " examina, compara, esquadrilha, mede,
analisa, separa ...", considera-se rodeado por um conjunto de coisas e
não em uma situação em que os sujeitos se reconhecem uns nos
outros. E cita Goethe reclamando outro modo de ver para os seres
animados, uma epistemologia para as ciências humanas, diferente da
epistemologia das ciências biológicas; exigindo um olhar que não
fosse a percepção físico-matemática de Descartes. Assim "o olhar não
seria apenas comparável à luz que entra e sai pelas pupilas como
sensação e impressão, mas seria também propriedades dinâmicas de
energia e calor graças a seu enraizamento nos afetos e na vontade.
Refere-se à contribuição do Marxismo e da Psicanálise,
evidenciando que o olhar não se parece com esse foco de luz
permanente e inatingível do pensamento clássico que dá segurança à
própria visão da Natureza e da Sociedade. Mas, ao contrário,
assinalam como ele pouco tem de transparência, enredado nas
ideologias e sentimentos das próprias constelações familiares e
sociais; pois são esses contextos (de valores e hábitos do cotidiano) a
escola do olhar e da sua capacidade. Assim é introduzida uma
suspeita nas certezas da razão e do olhar.
Bosi apresenta dois filósofos de tendências diferentes que "olham
com suspeita" e buscam caminhos para um outro modo de ver:
Simone Weil e sua "pedagogia do olhar" e Merleau Ponty e seu "olhar
fenomenológico".
Weil respeitou a tradição cartesiana, admitindo a atividade superior
da mente. Contudo sua militância junto a operários - enfrentando de
perto os limites que a vida da espécie sofre numa sociedade marcada
por dominações culturais - fez com que ela superasse os limites do
racionalismo, desenvolvendo um pensamento em situação. Como
filósofa enfatiza a força da atenção, para que a praxis não submerja
em um mar de ilusões. Propõe sua "pedagogia do olhar", ou educação
da atenção, para desenvolver: um olhar atento, profundo e despojado,
que deve vencer a angústia da pressa, mas que também aja e colha
as contradições e mudanças dos homens e das coisas. Para Simone
Weil a unidade do homem (espírito) e mundo será uma reconquista
que depende do olhar que perfure a opacidade.
Merleau com seu "olhar fenomenológico" tentou levar até o fim a
crítica ao dualismo clássico atento às zonas ambíguas da percepção.
Para isso retoma o mundo vivido, pré categoria onde o olho e o visível
se implicam mutuamente.
Em "L'oeil et l'esprit", ele faz uma fenomenologia do olhar. Inicia o
ensaio afirmando "A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las". Faz-se mister que o pensamento da ciência (e o pensamento em
geral) tome lugar no solo do mundo visível, no mundo tal como é em
nossa vida, para o nosso corpo. Emprestando seu corpo ao mundo é
que o pintor transforma o mundo em pintura. Imerso no visível pelo
seu corpo, o vidente se aproxima do que vê pelo seu olhar. Abre-se ao
mundo, ao invés de apropriar-se dele. Visível e vidente, o corpo
próprio de cada um está no mundo - olha todas as coisas e também
pode olhar a si - se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível
por si mesmo, e a partir daí é que cada um pensa. "A visão não é um
certo modo do pensamento ou da presença a si, é o meio que me é
dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão
do Ser, só no término do qual eu me fecho sobre mim" (Merleau Ponty,
1975 página 29).
Os olhos tem o dom do visível como se diz que o homem tem o
dom das línguas - que desenvolve pelo exercício. A visão retoma seu
poder de fazer manifestar-se o visível, o espaço e a luz que aí estão.
O pintor não imita o que vê e faz disso uma representação, mas ao
contrário "torna visível" um segredo: a animação interna, essa
irradiação que provém da indivisão irredutível do sentiente e do
sentido. Operante e móvel o corpo realiza um entrelaçamento da visão
e do movimento e, fugidio, o espetáculo do mundo altera-se sempre.
Merleau-Ponty volta-se para a totalidade do ser em situação e fala
do sensível, do tátil, do audível, do visível. Porém, ao descrever a
percepção o faz em geral a partir da visão. Seu ensaio não é sobre o
conjunto dos outros sentidos, ou sobre a audição. Mas sim sobre "O
olho e o espírito", sobre "O visível e o invisível". E, dessa forma, ele
assinala a importância da visão, como de maneiras diferentes outros o
fizeram.
Chauí reitera a ênfase à visão ao afirmar "Se o olhar usurpa os
demais sentidos fazendo-se cânone de todas as percepções é porque,
como dizia Merleau Ponty, ver é ter a distância. O Olhar apalpa as
coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se
apropria. 'Resume' e ultrapassa os outros sentidos porque se realiza
naquilo que lhes é vedado pela finitude do corpo, a saída de si, sem
precisar de mediação alguma, e a volta a si, sem sofrer qualquer
alteração material" (1988, página 40)... "Só ao término da visão - de
minha ausência de mim mesma - fecho-me sobre mim. O que a
filosofia da visão ensina a filosofia? Que ver não é pensar e pensar
não é ver, mas sem a visão não podemos pensar..." (pg. 60).
Assim, embora ficasse respondido que conhecer não é ver, este
permanecia como condição daquele. No entanto, caberia ainda
comentar que se está falando da maioria dos seres que aí estão,
existindo como videntes e percebendo pela predominância da visão
sobre os demais sentidos. Não seria possível pensar de uma outra
maneira? Assim como Husserl remonta ao critério de certeza que
define o homem como animal racional, e pergunta sobre seus
fundamentos, não se poderia fazer o mesmo nesta situação? Porque
não perguntar como é o pensar daquele que aí está e não é vidente?
Afirmar que sem visão não podemos pensar, não será uma redução
que impede um aprofundamento sobre o "compreender" humano e o
seu "saber"? Não seria então válido perguntar como se dá o
conhecimento na ausência da visão?
C. Conhecer sem ver?
Em contrapartida às afirmativas que colocavam a visão como
cânone da percepção e condição para o pensar, estava minha
experiência com crianças que não dispunham de visão. Atenta às suas
participações nas 'vivências" [Vivências em grupos, descritas no Cap. V. referente à Pesquisa] de situações do cotidiano, eu
dispunha de um outro ponto de vista.
Guiada pela mesma linha dada ao Curso de "Orientação do D.V.",
também na Pesquisa eu buscava acompanhar e registrar a
espontaneidade das relações, percebendo nelas as características do
pensar, sentir e agir de cada criança. Cuidava para não distanciar-me
das interrogações que me haviam encaminhado para esta
investigação. Estava atenta para não sucumbir ao fascínio das
explicações consistentes das Teorias, fechando, precipitadamente,
minhas possibilidades de saber sobre o D.V.
Eu procurava, nas relações da criança D.V., ao participar de
atividades com seus colegas, professora e aconselhadora: como ela
manifestava sua própria maneira de perceber e organizar-se; como
suscitava seu interlocutor, deficiente visual ou vidente, a compartilhar
do que fazia e pensava.
As atividades desenvolvidas emergiam do grupo, não havendo
portanto situações impostas ou que estimulassem repetições de
comportamentos pré-estabelecidos. Assim, quando participava de
forma mais espontânea daquilo que se fazia, cada criança
comunicava-se com o outro para realizar o que havia sido decidido,
com o que dispunha de seus sentidos, de seu modo de pensar e agir.
Não havia pois condutas estereotipadas. Como partícipe de algo que
era feito em comum e escolhido pelo grupo, os movimentos de cada
criança e sua maneira de agir tinham para ela uma significação
imanente, própria de sua forma de perceber e organizar a situação.
Ao vê-las propondo alternativas e integrando-se num grupo,
fazendo atividades e discutindo com os outros o que haviam feito, eu
me permitia discordar de que "sem a visão não podemos pensar". O
que cada criança manifestava (ao relacionar-se com os outros no
grupo, e fazer algo) era pleno de sentido ligado a essa vivência. Como
isso se dava eu não saberia dizer, mas parecia-me um ponto
importante a ser considerado para saber sobre o D.V..
Senti necessidade de fundamentos para tornar mais claro o que
sucedia. Decidi retomar o que havia visto como perspectiva para o
meu trabalho com o D.V.. A leitura de Merleau Ponty constituiu um
convite para aprofundar o que me parecia um direcionamento para
saber das possibilidades de uma pessoa deficiente da visão..
Em Fenomenologia da Percepção ele fala de conteúdos
particulares (ou
a especificidade e formas de percepção (ou generalidade) Os
conteúdos são
os dados sensoriais (visão, tato, audição) e a forma a organização
total desses
dados, que é fornecida pela função simbólica. Há uma dialética entre
conteúdo e forma: não se pode organizar nada se não houver dados,
mas estes quando fragmentados (dissociados da função simbólica) de
nada adiantam.
Os dados sensíveis, "primeiro alicerce", fundamento da consciência
e da ação, através da dialética entre forma e conteúdo, são retomados
pela consciência e recebem dela um sentido original. Assim, entre o
corpo e a consciência não existem relações de dependência, mas de
implicações recíprocas. A consciência consiste em estar nas coisas
por intermédio do corpo. A experiência do corpo faz cada um
reconhecer o emergir do sentido aderido aos conteúdos, unidade de
implicação em que as diversas funções se desenvolvem
dialeticamente.
Quando as funções estão dissociadas o Sujeito não dispõe de
abertura para o mundo que o rodeia. E o que para Merleau Ponty
caracteriza estar doente. Sem outras possibilidades o doente está
fechado no imediato que o cerca; tem o pensamento e a percepção
conservados, mas dissociados. Ele dispõe da generalidade das
funções como qualquer outro ser humano, mas apresenta uma
especificidade na sua doença que diz respeito ao conteúdo, ou seja,
os dados sensoriais nele aparecem fragmentados.
Para compreender o indivíduo e sua maneira de relacionar-se no
mundo em que o cerca, há sempre a considerar sua estrutura própria
que exprime ao mesmo tempo sua generalidade e especificidade (o
conteúdo e a forma) e a dialética entre essa especificidade e
generalidade.
No caso do deficiente visual, por exemplo, ele tem a possibilidade
de organizar os dados, como qualquer outra pessoa e estar aberto
para o mundo, em seu modo próprio de perceber e de relacionar-se;
ou, ao contrário, estar doente, isto é, fechado ao imediato que o cerca
e a ele restrito. O que não se pode desconhecer é que o deficiente
visual tem uma dialética diferente, devido ao conteúdo - que não é
visual, e à sua organização cuja especificidade é a de referir-se ao
tátil, auditivo, olfativo, cinestésico. É dessa dialética entre o específico
e o geral que se pode definir a estrutura própria do deficiente visual e
perguntar como ela é.
Para aprofundar a questão sobre a estrutura própria do D.V. e
investigá-la, cabe assinalar alguns pontos que considerei importantes
em Merleau Ponty no direcionamento deste trabalho.
1. Nem Empirismo, Nem Racionalismo
Sem negar o valor e a contribuição das ciências, Merleau Ponty
introduz questionamentos que levam a novos caminhos as ciências do
homem. Elogia o Empirismo quando este chama atenção para o
fenômeno e critica-o quando transforma tudo em acontecimentos ou
eventos, sem referir-se ao Sujeito, mas sim a uma consciência
impessoal. Elogia o Intelectualismo (Racionalismo) quando este
enfatiza um Sujeito que unifica o conhecimento e critica-o, mostrando
que esse Sujeito não é o da experiência vivida, mas do pensamento.
O Empirismo trata a percepção como um assunto do mundo físico.
Considera o Sujeito no momento em que percebe e procura descrever
o que se passa: assim o faz com as sensações e seus substratos, da
mesma forma que o faz com as sensação e seus substratos, da
mesma forma que o faz com uma montanha distante, sem atentar ao
que ele próprio percebe. Faz predominar a realidade do mundo
constituído.
O Intelectualismo não fala dos sentidos, está voltado para a
consciência - um lugar fora do mundo para perceber os
acontecimentos. Não se refere mais à realidade, pois o mundo passa
a correlativo de um pensamento do mundo: só existe para um
constituinte (a referência ao mundo se dá através de urna simples
mudança de estilo, onde se acrescenta a cada termo a cláusula
consciência de).
Assim, tanto o Empirismo, como o Intelectualismo ignoram o
Sujeito da percepção. Tomando-os corno embasamento, a ciência
clássica, caracteriza-se por manipular as coisas, renunciando a habitá-las - pensar é definido como ensaiar, operar, transformar, sob a
reserva de um controle experimental. O pensamento "operatório" se
torna um artificialismo, para sistematizar o pensamento do mundo.
Merleau Ponty propõe um caminho diferente: que a ciência "torne a
colocar-se num há prévio, no solo do mundo sensível e do mundo
lavrado tais como são em nossa vida para nosso corpo, não esse
corpo possível do qual é lícito sustentar que é uma máquina de
informação, mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que
se porta silenciosamente sob minhas palavras e sobre meus atos"
(Merleau Ponty 1975 pg 276). A característica marcante, que o
diferencia das duas correntes filosóficas é a ênfase dada ao corpo. A
experiência perceptiva (que é corporal) não surge da associação que
vem dos órgãos dos sentidos (tal como é vista pelos Empiristas), mas
sim da relação dinâmica do corpo como um sistema de forças no
mundo. Assim, o corpo não é mais visto como um amontoado de
órgãos, mas fonte de sentidos [Sentido entendido como significação da relação do Sujeito no
mundo; Sujeito sempre orientado em seu agir] e o Sujeito da percepção não é visto
como consciência [Consciência da qual provém o conhecimento e que é separada
da experiência vivida] mas... como corpo. Merleau Ponty volta-se
dessa forma, para a experiência original (onde se enraíza tudo,
inclusive a ciência) e reflete sobre ela.
2. O Corpo
O corpo é então visto numa totalidade, na sua estrutura de relação
com as coisas ao seu redor. Seu esforço é de mostrar que o sentido já
é imanente ao movimento, pois a relação no mundo é sempre
significativa; dá-se numa totalidade (não é fragmentada) pois o homem
ao se movimentar já esta dirigido para alguma coisa e caminha num
espaço significativo.
Merleau-Ponty diz que, ao caminhar, o homem leva consigo o
mundo - o mundo vai com ele, pois está organizado por ele próprio.
Poder-se-ia dizer, em outras palavras, que o espaço de cada um é um
espaço orientado, não é um espaço objetivo "... não haveria mais para
mim espaço se eu não tivesse o meu corpo"' (Merleau Ponty 1971 pg
113) - o espaço é originariamente corporal e só tem sentido derivado
da experiência. Isto não significa negar o espaço inteligível, objetivo,
homogêneo, do físico ou do matemático, que trabalha com
representações - uma das formas de consciência e nunca a única,
nem a original. O que não se pode fazer é reduzir à representação a
experiência, original ou primária. O erro é substituir a própria
experiência pelo conhecimento representativo. Preocupado com o
vivido, Merleau-Ponty volta-se para o corpo próprio [Corpo próprio - expressão usada para referir-se à experiência
corporal própria de cada um] e diz que o
corpo sabe, o corpo compreende e é nele que o significado se
manifesta. No gesto, no ato corporal, esta a consciência, que ele
denomina consciência encarnada - termo utilizado ao invés de
consciência e que posteriormente é substituído por consciência
intencional e mais tarde simplesmente por corpo.
A experiência do corpo próprio ensina a enraizar o espaço na
existência - ser corpo é estar unido a um mundo. Na unidade do corpo
encontra-se a estrutura de implicação com relação ao espaço - os
movimentos do corpo, das mãos, a contração dos músculos das
pernas englobam-se uns nos outros, em combinações
antecipadamente dadas, à partir de sua significação comum frente ao
objeto.
Assim vista, a conexão dos segmentos do próprio corpo e da
experiência visual, tátil, auditiva, é feita globalmente em cada um no
corpo próprio e não por acumulação, ligando as partes do corpo uma a
uma. O que reúne as sensações táteis", das mãos próprias às das
"percepções visuais" das mesmas *'mãos, a dos outros segmentos, é
um certo estilo dos movimentos dos seus dedos e que contribui para
certa atitude de seu corpo próprio.
Merleau-Ponty compara o corpo à obra de arte, como um nó de
significações vivas; as percepções táteis, visuais auditivas, participam
sempre de um mesmo movimento inteligível, fazendo juntos um
mesmo gesto. O corpo é um conjunto de significações vividas que
segue no sentido de seu equilíbrio: um novo nó de significações.
"Nem o corpo, nem a existência [Existência - consciência enraizada na vida intencional, sua
organização típica e sua estrutura concreta na contingência das
perspectivas vividas] podem passar como o original do
ser humano, pois cada um pressupõe o outro; isto porque o corpo é a
existência fixa ou generalizada e a existência uma encarnação
perpétua" (Merleau Ponty 1971 pg 177). Mesmo separado do círculo
da existência o corpo nunca recai completamente sobre si mesmo
enquanto possui órgãos dos sentidos (que constituem os canais de
abertura do corpo no mundo).
Dispor de todos os órgãos dos sentidos é diferente de contar com a
ausência de um deles: muda o modo próprio de estar no mundo e de
relacionar-se. Isto assinalava para mim a importância de retornar o
estilo dos movimentos e atitudes do D.V. em diferentes situações.
Trabalhar com ele, tomando como modelo a maneira do vidente
adquirir cultura era desconsiderar seu corpo. Isso poderia levá-lo a
distorções e fragmentações naquilo que ele é, e na forma de
relacionar-se, proporcionando a doença, como a define Merleau Ponty.
3. A Percepção
Merleau-Ponty ao falar da percepção chama atenção
principalmente para três pontos:
a) Os fenômenos não são coisas, mas acontecem num campo do qual
o Sujeito faz parte e - o Sujeito e os fenômenos do mundo constituem
juntos um sistema.
b) O que caracteriza a identidade do mundo percebido é a
temporalidade isto é, a síntese temporal através das próprias
perspectivas do Sujeito que percebe; a perspectiva presente anuncia a
outra e retém a precedente num encadeamento. São várias
perspectivas que vão se construindo em movimentos de retomada do
passado e abertura para o futuro, sempre sendo possível novas
perspectivas.
c) Para compreender a Percepção é necessário evitar a alternativa
natural (dos acontecimentos que se ligam entre si e causam uns aos
outros) e a alternativa naturante (do Sujeito que constitui o mundo e
que dá sentido ao mundo). Em outras palavras, a perspectiva da
Objetividade (do mundo existente em si) ou da Subjetividade (do
mundo existente para si ou para uma consciência) são duas posições
na qual o Sujeito da percepção é ignorado.
Merleau-Ponty ultrapassa essas alternativas ao considerar o
Sujeito no mundo, como corpo no mundo - corpo que sente, que sabe,
que compreende. Este "saber" do corpo, essa experiência original que
é pré-consciente, pré-emocional, pré-categorial, faz desaparecer a
divisão corpo e alma. Nesse sentido, diz-se que as coisas "se pensam"
em cada Sujeito porque não é um pensar intelectual, no sentido de
funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto - ao entrar cm contacto com o objeto o Sujeito entra em
contacto consigo. "A coisa e o mundo são dadas como partes de meu
corpo, não por sua "geometria natural", mas sim numa conexão
comparável, ou mais certamente idêntica àquela que existe entre as
partes de meu corpo" (Merleau-Ponty 1971 pg 212).
Essa conexão se renova em cada um, em seu próprio corpo, na
mais simples das percepções, como exploração sensorial. Os sentidos
(visual, tátil, auditivo) se traduzem uns aos outros sem necessidade de
um intérprete, ao fazerem do corpo o Sujeito da percepção. Cada
órgão dos sentidos interroga o objeto à sua maneira: a visão não é
nada sem um certo uso do olhar, ou seja, a maneira que o Sujeito
dirige e passeia seu olhar é de um modo diferente da de sua mão
explorando tatilmente. Nunca o campo tátil esta inteiramente presente
em cada uma de suas partes como o objeto visual.
"Os sentidos são distintos um dos outros, e distintos da intelecção,
tanto que cada um traz consigo uma estrutura do ser que não é nunca
exatamente transponível" (Merleau-Ponty, 1971 pg. 231). No entanto a
série das experiências de cada indivíduo se dá como concordante
porque: cada aspecto da coisa percebida é um convite a perceber
além (constitui uma parada no processo perceptivo); a síntese
perceptiva possui o segredo do corpo próprio e não o do objeto.
Assim, falar da percepção é falar do corpo, pois como afirma
Merleau Ponty (1971, pg 241) "meu corpo é a textura comum de todos
os objetos e ele é, pelo menos em relação ao mundo percebido o
instrumento geral de minha compreensão". "O mundo percebido é o
conjunto dos caminhos de meu corpo" (Merleau-Ponty, 1984 pg 224).
Não se poderia, pois pensar na percepção senão a partir do ser
vivente na sua facticidade. Isso tornava claro para mim que era
preciso partilhar com o D.V. do conjunto dos caminhos de seu corpo,
no fazer do dia a dia, para saber da sua percepção. Nesta perspectiva
um novo ponto merece atenção: a relação com o outro.
4. O eu e o outro
Cada um de nós não está apenas em um mundo físico, mas esta
cercado de objetos que têm a marca humana: utensílios, no uso dos
quais (interpretando a conduta de quem os fez pela sua própria)
aprende o sentido e a intenção dos gestos de seu criador.
O primeiro objeto cultural é o corpo do outro como portador de uma
experiência humana. Não é um simples fragmento do mundo, mas o
lugar de uma certa elaboração, de um certo horizonte. Através de seu
corpo vivo, que tem a mesma estrutura do meu, sei que e como o
outro se serve de objetos familiares. Cada corpo - sistema único - tem
em comum com os outros o estar engajado num mesmo mundo físico
e cultural como vivente. Cada um é a vida aberta que não se esgota
em certo número de funções biológicas ou sensoriais.
Um objeto cultural que tem papel importante na relação com o
outro é a linguagem. Na experiência do diálogo entre um ser e o outro,
é constituído um terreno comum, um único tecido - ambos
colaboradores numa reciprocidade onde as perspectivas de um
deslisam na do outro e coexistem num mesmo mundo. No diálogo
cada um libera os pensamentos do outro, trazendo nova dimensão a
esse pensamento. A objeção clareia e traz ângulos que o próprio
individuo não sabia possuir. Se a comunicação for muito fácil e o
sentido de um e de outro for exatamente o mesmo, pode-se pensar
que está sendo apagada a individualidade. Se for eliminado o conflito
e se considerar tranqüila a comunicação, isso não significa ter
resolvido essa questão. Apesar de comunicarem-se um com o outro e
mutuamente, um não tem acesso ao outro tal como é, mas sim ao seu
comportamento, ao que ele diz. Comunico-me com o D.V. e leio nele o
significado do gesto, do comportamento, do que diz, mas sua
experiência me é inacessível, porque eu não sou o D.V.. O fato, porém
de não ser ele e de não poder viver como ele, não elimina o estar no
mesmo mundo físico e cultural, percebendo-o de diferentes maneiras.
Essa situação comum poderá ser reveladora para ambos, quando se
cria juntos um campo de reciprocidade, do qual compartilha cada um a
seu modo próprio, e a respeito do qual se estabelece um diálogo.
Mas, como Merleau-Ponty chama atenção, mesmo no diálogo há
meandros de incompreensão: o que escapa; o desencontro. Isto faz
parte do viver e para saber do outro preciso lidar com os opostos que
acontecem simultaneamente, considerando as ambigüidades.
No caso do D.V., por exemplo, o significado do olhar para ele se
faz pela ausência, por estar num mundo onde o olhar está presente. A
importância da visão é da experiência do vidente e se faz pelo
convívio com ele, onde a comunicação é predominantemente findada
no visual. Nesta situação a identidade do D.V. é a ausência da visão,
ao invés de ser a presença dos sentidos de que dispõe. Assim o não
vidente (ou portador de deficiência visual) pode transformar-se em
objeto, pois a presença do outro (vidente) é tão marcante que o rouba
da sua própria.
Se a comunicação se estabelece a partir do visual, não se poderá
saber do D.V., daquilo que lhe é próprio, O que se terá acesso, é a
seu comportamento e ao que ele diz do mundo, adquirido do vidente.
Dessa forma ficam eliminados os conflitos emergentes de experiências
diferentes, pois o aspecto visual é tomado como critério de certeza do
conhecimento. E o diálogo se estabelece em torno das diferentes
participações referentes a esse critério. Assim sucede quando se parte
de um referencial já definido, no qual o Sujeito que percebe é
anônimo, bem como o outro que com ele compartilha. A situação se
transforma, porém, quando se parte da experiência perceptiva, onde
se fala de uma imersão do sujeito no mundo, de tal sorte que a ação
surge sempre como um movimento significativo e intencional num
campo de articulação de sentido. "O Sujeito penetra no objeto pela
percepção e através de seu corpo o objeto regula diretamente seus
movimentos..." (Merleau-Ponty, 1971 pg. 143).
Numa situação junto ao D.V. onde se cria um campo de
reciprocidade para o diálogo sobre as experiências de videntes e não
videntes a comunicação possivelmente não será tranqüila: aparecerá
à pluralidade de significados, o conflito, o inacessível, o
incompreensível. E como se poderia saber do D.V. sem enfrentar essa
tensão que surge do estar frente a frente com o outro, com toda sua
experiência, plena de significados diferentes dos meus?
Esse é o caminho que Merleau Ponty propõe para chegar-se ao
conhecimento "partir da percepção e de suas variantes, descritas tal
como se apresentam, para tentar compreender como se pode
construir o universo do saber" (Merleau-Ponty, 1971 pg. 154). Mas
isso requer uma atitude reflexiva, para que o Sujeito se desembarace
desse entrelaçamento (com que seu olhar, ouvir, tatear, envolvem e
vestem o objeto) para poder saber como ele é.
5. A Reflexão
Merleau-Ponty reitera em vários momentos de sua obra que, para
tornar a reflexão possível, é preciso uma freqüentação ingênua do
mundo; ou seja, que nada retenha o indivíduo longe das coisas,
nenhuma representação", "nenhum pensamento", "nenhuma imagem",
nem qualquer qualificação de si próprio de "espírito", "Ego", "alma" ou
outra expressão semelhante. Para isso nada se deve pressupor, nem
a idéia ingênua de ser consciência, nem a idéia correlata de um ser de
representação.
A freqüentação ingênua do mundo pode ser efetuada olhando
ativamente despertando para o mundo, e não assistindo a ele como
espectador. Isso sucede numa percepção que guarde, do fundo de si,
todas as relevâncias corporais dela: as coisas passam por dentro do
Sujeito, assim como o Sujeito por dentro das coisas, O mundo é o que
se percebe, mas sua profundidade absoluta transforma-se
habitualmente em distância irremediável. E o que sucede na rotina da
vida: o "homem natural" [Nota: homem natural - que adota a atitude estabelecida culturalmente,
sem reflexão, sem voltar-se para a experiência própria, privilegiando
assim a "objetividade] pensa ao mesmo tempo em que sua
percepção penetra nas coisas e isso se faz aquém de seu corpo.
Assim, percepção e pensamento coexistem sem esforço, logo
reduzidos a enuncia dos e conceitos, destruindo-se mutuamente,
deixando-o confundido.
"Refletir é desembaraçar-se das coisas, das percepções, do
mundo, e da percepção do mundo, submetendo-os a uma variação
sistemática, núcleos inteligíveis que lhe resistem, caminhando de um a
outro de tal maneira que a experiência não desminta, mas, nos de
apenas seus contornos universais, de sorte que deixa intato, por
princípio, o duplo problema da gênese do mundo existente e a gênese
da idealização reflexionante" (Merleau-Ponty, 1974 pg. 53).
O mundo está aí, antes de qualquer análise que se possa fazer
dele e refletir não é coincidir com o fluxo desde sua fonte até suas
últimas ramificações. Como Merleau-Ponty (1974, pg. 56) afirma"... só
me foi dado chamar o mundo e os outros a mim e tomar conhecimento
da reflexão, porque desde o início estava fora de mim, no mundo,
junto aos outros, sendo que a todo momento essa experiência vem
alimentar minha reflexão...".
É, pois a reflexão sobre o vivido e através dessa atenção
concentrada que se desvelam os significados daquilo que é percebido.
Assim concebida, a reflexão do D.V. surge de sua experiência de
habitar o mundo por meio de seu corpo: na apalpação tátil onde
aquele que interroga e o que é interrogado estão mais próximos do
que na investigação pelo olhar; na velocidade e direção de suas mãos
que são capazes de fazê-lo sentir as texturas do liso e do rugoso. Sua
mão direita apalpada e sua mão esquerda apalpante; um momento da
tateação e o seguinte; sua voz ouvida e sua voz articulada estão
unidas no ser total de seu corpo no mundo e compreendido pela
reflexão sobre cada uma dessas experiências.
Merleau-Ponty mostra que essa unidade de reflexão não é soma ou
resultado, mas que é preciso, sentir de alguma maneira para poder
pensar, e que todo pensamento advém de uma carne. Para poder
saber do D.V., é, pois necessário aproximar-se de seu corpo e da
experiência que ele tem através dos sentidos de que dispõe, de
maneira total e não fragmentada.
Assim, repetindo Merleau-Ponty e Chauí, fiz uma tentativa de
freqüentação ingênua do mundo sem o olhar, procurando com isso
ilustrar que experiência seria importante buscar junto ao D.V..
A Filosofia figurada da percepção impede que concebamos o ouvir
como operação intelectual (repetindo Merleau-Ponty, 1974 pg. 294 e
Chauí, 1988 pgs. 59 e 60).
Quando caminho numa praia em direção ao mar ouço o marulhar
incessante das águas, de quando em vez ampliado pela arrebentação
de uma onda maior, que faz coro com o ronco ao longe das lanchas a
motor, misturado ao vozerio de homens e mulheres entrecortado por
risadas e gritinhos de crianças.
Como seria essa praia ouvida por psicólogos experimentalistas
(empiristas ou intelectualistas)? Ao ouvi-los, descobrimos que julgam
ouvir o mar, apesar do vozerio, das risadas e do ronco do motor,
distinguindo o que supõem ser essencial (o marulhar das águas e a
arrebentação das ondas) do que julgam acidental (o motor da lancha)
e do que consideram estorvo (vozerio/risadas/gritinhos). Esse ouvir
analítico desfaz a percepção da praia como praia, para reduzi-la a
partes dispersas, como se fossem separáveis. Não percebem a praia,
pois percebê-la é ouvi-la com o ruído incessante das águas e do que
por elas navega, e ouvir aqueles que habitam suas areias, misturados
aos sons do mar, o que é peculiar na audição que purifica a
promiscuidade do audível? O ouvido de um espírito descarnado que
só pode conhecer sob a condição expressa de não ouvir, que nasce
do eu penso, e não originado do corpo como um sensível. A audição
se faz no meio das coisas e se ouve, ouvindo. Ali persiste a carne do
mundo, a indivisão irredutível do sentiente e do sentido.
Não nos engana nem nos mente a fé perceptiva quando
experimenta a audição como espantosa reversibilidade entre nossos
ouvidos e as coisas, a simultaniedade do ativo e do passivo, a audição
fazendo-se das coisas para nós e de nós para elas.
O que pedem as coisas ao ouvido e particularmente, ao ouvido do
músico? Que desvele os meios audíveis pelos quais elas são audíveis
aos nossos ouvidos. Que mostre como muitos sons, timbres, melodia
só tem existência audível quando ele, músico, mostra como elas se
arranjam para fazer com que disso tudo haja alguma coisa harmônica.
O ouvido inspirado do músico interroga o audível para compor o
talismã do mundo, para nos fazer ouvir o inaudível, ensinando-nos
porque afinal há o audível.
A música é transubstanciação do sensível, passagem da carne do
mundo na carne do músico para que dela se faça presente um novo
audível, a melodia, audível do audível, feito por um ouvinte que
participa da audibilidade. Entrelaço de audibilidade, mobilidade e tato,
o corpo operante do músico e emblema do nosso, quando este
desperta para suas próprias operações no sensível. Se a música é
filosofia figurada da audição, é porque nos ensina algo que
compartilhamos com o músico, o simples ouvir quando nossos ouvidos
ouvem.
Numa situação em que o D.V. possa expor sua experiência,
através dos sentidos de que dispõe, será ele que fará falar o mundo
que nós videntes não percebemos - pelo não uso dos sentidos dos
quais não dispomos ao entrar em contato com as coisas que nos
rodeiam. E dessa forma, criando um campo de reciprocidade na
relação com o D.V., a nossa própria percepção de videntes poderá se
ampliar.
Essas idéias é que inspiraram a Pesquisa com D.V., exposta no
Capítulo V.
A Pesquisa com portadores de deficiência visual (D.V.)
A. Contexto
Esta é a sistematização de uma busca de "educação" significativa [Educação significa entendida como aquela que se enraíza na
experiência do aprendiz e passa a fazer parte dela, enriquecendo-a]
para o D.V.
Surgiu e se desenvolveu à partir de tudo que ficou anteriormente
exposto: minha experiência em psicologia educacional; os dados de
pesquisas relatando defasagem da cognição do D.V. em relação ao
vidente; as propostas educacionais reiterando esse posicionamento ao
apresentarem uma orientação compensatória; a mudança de
perspectiva sobre a situação do D.V., ao se tomar a percepção como
experiência originária do homem no mundo.
No meu assessoramento a professoras em suas atividades em sala
de aula, e no atendimento a alunos com problemas de escolarização
havia ficado claro que: para o educador não era o conhecimento de
teorias e técnicas que mais importava, mas sim o compartilhar de
situações educacionais; estar atento ao educando, à sua relação com
ele e aos momentos em que teoria e recursos poderiam contribuir para
ampliar as possibilidades dele, no seu pensar, sentir e agir.
Os dados e conclusões das Pesquisas haviam mostrado que pouco
se sabe sobre o D.V.. Suas dificuldades foram localizadas na área
perceptual e os autores, de um modo geral, atribuíam isso à ausência
de preparo adequado na infância. Os programas educacionais
analisados baseavam-se num referencial visual, e este constituía o
critério de avaliação das realizações do D.V.. Tanto as Pesquisas,
como os Programas traziam implícitos, em seus objetivos e
metodologia, a crença na objetividade dos instrumentos e nos estudos
feitos a partir de um modelo abstrato (quadros classificatórios de
desenvolvimento da cognição do vidente.
Como a ciência tradicional e a reflexão por ela desenvolvida, havia
deixado intacto o conhecimento sobre o D.V. e seu mundo, conviria
interrogá-lo sem nada pressupor. Para isso, nesse momento de
antemão eu não sabia qual seria minha interrogação e qual seria o
meu método. Como afirma Merleau-Ponty (1984, pág. 155) "A forma
de questionar prescreve certo tipo de resposta e fixá-lo desde agora
seria decidir da solução".
Um novo horizonte sobre essa problemática surgiu para mim com a
leitura de Merleau Ponty, tornando claro que não tem sentido estudar
a cognição como aspecto isolado, como o fazem as teorias de
desenvolvimento e de aprendizagem.
É necessário buscar as raízes do conhecimento no mundo vivido,
no contacto com a experiência original - na situação em que o sujeito,
através do próprio corpo (que sabe, que sente, que compreende)
encontra o objeto. Assim o sentido tradicional de percepção do objeto
e da maneira como suas características são apreendidas foi aqui
deixada de lado. A atenção voltou-se para a descrição da experiência
perceptiva, ignorada pela filosofia da cons ciência (base das teorias de
aprendizagem), tanto na sua versão intelectualista quando empirista.
Na experiência perceptiva o sujeito penetra no objeto através de seu
corpo e o objeto torna-se "falante" e significativo e vai dispondo ao
redor do sujeito um mundo que lhe diz dele mesmo e no qual instala
seus pensamentos. Desse modo, a experiência perceptiva, que fala do
corpo e não do objeto, oferece-se como possibilidade para que se
conheça o sujeito pensante. Esta foi à perspectiva que me trouxe a
"Fenomenologia da Percepção", ao mostrar ser o corpo (textura
comum de todos os objetos em relação ao mundo percebido) o
instrumento de compreensão. Pareceu-me ser um caminho possível
para conhecer o D.V.. Assim este horizonte de pensamentos orientou
minha pesquisa "O perceber e o relacionar-se do D.V. - recursos que
auxiliam o D.V. nesses aspectos".
B. Delimitações
1. Definição do Projeto
Meu ponto de partida ao retornar à Educação Especial havia sido o
de buscar as características do D.V. para poder orientá-lo
educacionalmente. Esta longa caminhada, que aparece nos Capítulos III e
IV, havia deixado claro que dele pouco se conhece e que era
necessário pesquisar para saber do D.V., de seu perceber e de seu
conhecer. Assim este limite que eu havia encontrado constituía uma
possibilidade que se oferecia à investigação: o de buscar saber como
é o D.V. para definir uma orientação apropriada para sua educação.
Dessa forma optei por um Projeto que focalizasse o D.V. em
situação educacional.
Trabalhando na formação de futuras professoras (como docente da
disciplina Orientação Educacional do Deficiente Visual) decidi por uma
pesquisa que se fizesse junto à professoras especializadas. Assim,
ficou definido que a investigação se faria a partir de situações
vivenciais dessas professoras com grupos de D.V..
Ao tomar essa decisão, asssumi as dificuldades, nela implícitas, de
registrar o vivido na sua totalidade, sem fragmentar o que emergisse
dos participantes e de suas relações.
2. Definição do Método
Considerando o que ficou exposto, procurei orientar-me pelo que
Merleau-Ponty sugeria em "Fenomenologia da Percepção": partir da
facticidade dessa situação educacional, para perceber a professora e
o D.V., se dava fazendo uma descrição [Descrição - é considerada em Fenomenologia um caminho de
aproximação do que se dá, da maneira que se dá e tal como se dá.
Refere-se ao que é percebido do que se mostra (ou do fenômeno).
Não se limita à enumeração dos dados, mas pressupõe alcançar a
essência do fenômeno.] direta dessa experiência,
tal como é sem levar em conta a sua gênese psicológica e as
explicações causais do cientista. Merleau-Ponty restituiu-me a
confiança nesta maneira que eu encaminhava a investigação sobre o
D.V. ao afirmar que cada um sabe do mundo, a partir de sua visão
pessoal, ou de sua experiência, sem a qual os símbolos da ciência de
nada significariam. Contribuiu para que eu valorizasse o relato escrito
e as possibilidades que ele oferecia, ao afirmar: "A verdadeira filosofia
reaprende a ver o mundo e neste sentido uma história contada pode
significar o mundo com tanta "profundidade" quanto um tratado de
filosofia (Merleau-Ponty, 1971).
Isso havia deixado claro que fazer fenomenologia não é utilizar um
método previamente considerado, mas cingir-se a regras formais
dirigidas especialmente ao fenômeno (fenômeno entendido como
aquilo que se mostra como é, ou que se mostra a si mesmo). Não
existe "o" ou "um" método fenomenológico, mas uma atitude - atitude
de abertura do ser humano para compreender o que se mostra, livre
de preconceitos ou definições. Está-se livre quando se sabe dos
próprios valores, conceitos, definições e se volta para o que se mostra,
cuidando de possíveis distorções.
O método fenomenológico trata de desentranhar o fenômeno, pô-lo
a descoberto além da aparência. Exatamente porque os fenômenos
não estão evidentes de imediato com regularidade faz-se necessária a
fenomenologia.
Assim busquei o meu caminho para desvelar "o perceber e
relacionar-se do D.V.".
->
Descrição
Ficou definido que se faria um relato do que ocorria nos grupos (o
que cada participante manifestava), fazendo uma descrição com
palavras do cotidiano e não através de explanação, ou forma de falar
própria da ciência, que revela uma consciência sofisticada. Essa
descrição com palavras do cotidiano, e que revela uma consciência
ingênua, é condição para chegar ao fenômeno (aquilo que se mostra),
pois é uma consciência anterior a qualquer classificação ou
explicação. Era feita a descrição daquilo que sucedia da maneira que
se apresentava. Como o interesse era na experiência do D.V.,
registrava-se: o que ele dizia, como dizia, a entonação da voz, seus
gestos, sua expressão, nas diferentes situações em que isso se dava
junto aos demais participantes do grupo; descrevendo-os também.
Uma questão sempre presente neste registro da situação de
vivência era a seguinte: como saber se a descrição ao que se
mostrava e não estava a serviço de impressões, experiências
anteriores, valores, teorias, etc?
Um caminho que se tornou viável para clarear esse ponto foram às
discussões na "supervisão" (como será exposto mais adiante)
compartilhando a pesquisadora e as outras auxiliares de pesquisa da
reflexão [Reflexão - esforço para aprender o sentido ou essência do vivido,
como aparece no Capítulo IV.] daquela que descrevia o ocorrido no grupo de D.V.,
procurando com ela identificar o que dela se interpunha na situação,
impedindo-a de perceber os D.Vs. e demais participantes e as
relações, como se mostravam.
Nos "encontros de discussões" e na "formação das
aconselhadoras" (exposto mais adiante) aparecem diferentes recursos
utilizados para que se possa fazer o melhor possível à descrição. São
propostas situações vivenciais partindo-se do pressuposto que: para
compreender o outro é necessário uma atitude de abertura - para
perceber o que se mostra; - compreender sua própria posição frente
ao outro sabendo dos próprios valores, sentimentos, conhecimentos.
No entanto, para isso é necessário reconhecer a própria
historicidade, isto é, o próprio universo de símbolos [símbolo - "estrutura de significado em que um sentido direto,
primário, literal, designa por acréscimo outro indireto, secundário
figurado que não pode ser entendido senão através do primeiro ".] e a ideologia
[Ideologia entendida como lógica da ocultação e dissimulação
que se baseia na idéia de uma Sociedade e não no que acontece
nessa Sociedade. As pessoas pensam, sentem, agem guiados por
essa ilusão da Sociedade, sem estarem atentas ao que acontece. A
consciência fica na aparência e forja explicações a partir das idéias da
Sociedade.]
da cultura a que se pertence. Esta tarefa de decifração dos símbolos é
interpretativa, assinalando ser insuficiente fazer-se apenas a
descrição.
->
Interpretação [Interpretação - "trabalho do pensamento que consiste em decifrar
o sentido aparente, em desdobrar os sinais de significação implicados
na significação literal.., há interpretação onde houver sentido múltiplo e
é na interpretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta ".
Interpretação e símbolo são aqui definidos no sentido que o faz
Ricover em Conflito das Interpretações - ensaios de hermenêutica, Rio
de Janeiro, Editora Imago, 1978.]
O problema próprio da Interpretação ou Hermenêutica é o da
extração do sentido. Pertence à Hermenêutica como afirma Ricoeur
(1977) "este gesto de reconhecimento das condições históricas a que
está submetida toda compreensão humana sob o regime da finitude".
A ela cabe desvendar o que cada um fala de um lugar diferente,
definido pelo seu momento histórico e sua maneira própria de vivê-lo e
compreendê-lo.
"Fazendo-se hennenêutica, a fenomenologia insiste na
originalidade do fenômeno humano simbólico e polissêmico,
comportando várias interpretações e se beneficiando de seu
conflito"(Rezende, 1984). Como afirma esse autor, a hermenêutica e a
fenomenologia hennenêutica acabam tendo um alcance prático: ouvir
o outro na sua alteridade torna mais clara para quem ouve a
identidade própria, proporcionando abertura e acesso a outros
sentidos.
Assim, nesta Pesquisa, buscou-se atingir o significado imanente da
ação do D.V. e dos Outros participantes da situação atentos à
dimensão histórica de cada um. Aquilo que foi registrado na descrição,
nos diferentes momentos é retomado, podendo ultrapassar-se em
diferentes significações, possibilitando à pesquisadora e auxiliares,
acesso ao sentido da ação na existência do D.V..
Da mesma maneira que na Descrição, foi necessário, por parte da
pesquisadora e auxiliares uma reflexão rigorosa sobre a Interpretação;
para se ter certeza que ela surgia do conjunto do que se mostrava na
Descrição e não de teorias ou experiências anteriores, distorcendo o
que aparecia da criança.
Fica sempre aberta a possibilidade de que outras interpretações
sejam feitas, ampliando assim a compreensão sobre os D.Vs. e os
demais participantes.
C. Estrutura
Esta Pesquisa foi desenvolvida como parte de minhas atividades
junto as Departamento de História e Filosofia da Educação (E.D.F.) na
Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Composta de três etapas
recebeu da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), apoio financeiro, na 2ª e 3ª etapa, para as auxiliares de
Pesquisa e para material de consumo.
A descrição dos momentos básicos de seu desenvolvimento vem
sumariamente indicados a seguir, referindo-se a:
1. Etapa Preparatória - Projeto
2. Etapa de Vivências - Ação
3. Etapa de Análise - Projeto
1. Etapa Preparatória - 1985
Participante: Pesquisadora
Matéria Prima: Livros e revistas referentes ao portador de deficiência
visual.
Nesta fase foi feito levantamento bibliográfico; seleção de material,
análise e definição do tema a ser investigado; organização do Projeto
de Pesquisa; definição dos participantes de cada etapa; contacto com
os possíveis interessados, para convidá-los para a 2ª Etapa.
Objetivo desta etapa:
1. Levantar as características do D.V. para definir sua orientação
educacional
2. Organizar o Projeto de Pesquisa
2. Etapa de Vivências - 1986
Participantes:
- Pesquisadora
- Auxiliares de Pesquisa (Aconselhadoras
e Professoras especializadas)
- Grupo de D.Vs.
Matéria Prima: Grupos de vivência de D.Vs.
Esta etapa constituiu-se de encontros de discussão e supervisão
sobre os grupos de D.Vs.. Teve a duração de 2 semestres: da 2
quinzena de fevereiro à 1ª semana de julho; da 1ª semana de agosto à
meados de dezembro. Os encontros e a supervisão perfaziam um total
de 4 horas semanais.
2.1 Grupos de Discussão
Visando assessorar a auxiliares de pesquisa junto aos D.Vs. foram
desenvolvidas dois tipos de atividades:
a) vivências e exercícios de percepção:
- exploração de objetos e descrição por escrito - debate
- exploração de objetos com olhos vendados - debate
- debates sobre descrições referentes à percepção
tatil/térmica/olfativa/cinestési-ca/auditiva (de trechos literários)
- debates sobre descrições referentes à percepção visual (de trechos
literários)
b) discussão sobre textos e pontos relevantes da fundamentação da
pesquisa:
- leitura de textos referentes à Aprendizagem Significativa e
atendimentos fundamentados na Daseinsanalyse
- debates sobre pesquisas com D.Vs. que assinalavam limites em seu
desenvolvimento representacional, cognitivo e social
- leitura e debates sobre excertos da "Fenomenologia da Percepção"
Objetivos destes grupos junto às auxiliares de Pesquisa:
- experienciar o caminho do D.V. perceber o mundo ao redor,
explorando objetos sem o uso da visão crianças que poderiam
participar do grupo
- descrever a própria experiência perceptiva
- dialogar sobre as características da cada experiência perceptiva
descrita oralmente
- refletir sobre essas características (diferença e semelhança)
- assinalar a importância da comunicação verbal estar baseada na
experiência perceptiva
- clarear os fundamentos do trabalho desenvolvido nos grupos de
D.V., facilitando a discussão sobre as vivências.
- buscar recursos que propiciem ao D.V. sua própria maneira de
perceber e ralacionar-se.
- refletir nos grupos de D.Vs. sobre os recursos propostos, avaliando-os como auxiliares para sua orientação no cotidiano
2.2 Supervisão dos grupos de D.Vs.
A supervisão constituiu uma situação de vivência da equipe
formada pelas aconselhadoras, professoras especializadas e
pesquisadoras. Cada grupo de D.Vs. era coordenado por uma
aconselhadora e uma professora especializada. Cada par descrevia
na supervisão o ocorrido no seu grupo de D.Vs., de forma que os
outros compartilhassem dessa situação. Os que não haviam estado
presentes naquela vivência com os D.Vs. ouviam a experiência
descrita pelas auxiliares de pesquisa e o sentido (interpretação) que
elas davam. A descrição propiciava que cada participante se
aproximasse do vivido pelo grupo de D.Vs. e trouxesse para a
supervisão sua interpretação a respeito. Assim diferentes aspectos
emergiam na discussão, dando maior plenitude ao sentido inicialmente
comunicado pelo par responsável.
Dessa forma, cada sessão de supervisão, onde eram focalizadas
situações concretas já experimentadas, constituía também momento
de reflexão para o alcance dos objetivos desta etapa.
Algumas decisões sobre as condições de funcionamento dos
grupos de D.V. foram tomadas na supervisão, distribuindo-se a
responsabilidade de exectição dos itens que seguem entre
pesquisadora e auxiliares:
-
contacto com escolas para saber do interesse e possibilidade do
desencadeamento da pesquisa
-
tipo de local na escola, necessário para realização dos grupos de
D.Vs.
-
clientela que comporia os grupos de D.Vs.
-
contacto com professoras da sala de recursos, para levantamento
das crianças que poderiam participar do grupo.
-
comunicação aos pais das crianças D.Vs. os objetivos do Projeto, o
horário de funcionamento, solicitando o compromisso de zelarem pelo
seu cumprimento
-
envio de cartas às Diretoras das Escolas, oficializando o
desenvolvimento da Pesquisa
-
início do funcionamento dos grupos (em maio no 1°. semestre e
agosto no 2°. semestre)
-
tempo de duração (de 90 minutos por sessão semanal)
-
tipos de atividades (essencialmente vivenciais, utilizando-se material
e situações da vida cotidiana, bem como recursos que auxiliassem a
exploração sensorial e comunicacional)
a)
Objetivos da Supervisão
- descrever o vivido nos grupos de D.Vs., para debates e sugestões
- desvelar a atitude da professora e da aconselhadora junto às
crianças individualmente e ao grupo como um todo
- decifrar os sentimentos, valores, conceitos, definições da professora
e da aconselhadora, que as impedia de perceber o que se mostrava
dos participantes
- desvelar as características das crianças individualmente e das
relações nos grupos
- refletir sobre o que havia ficado obscuro das crianças, das relações,
da professora e aconselhadora, buscando caminhos para tornar claros
esses pontos.
b)
Formação das auxiliares de pesquisa
A preocupação em focalizar o D.V. em situações educacionais
tornava condição necessária a participação da professora
especializada. A preocupação em registrar a vivência do grupo e as
características dos participantes nessa relação exigia a presença de
alguém que tivesse alguma experiência em fenomenologia.
Assim a formação dos auxiliares de Pesquisa e experiência
profissional eram condições iniciais para que fossem selecionadas.
São apresentadas mais adiante referências a esses aspectos de cada
uma mais adiante dessas profissionais.
Além da formação (tanto para as Aconselhadoras como
Professoras) outro requisito exigido para ser auxiliar da Pesquisa era o
de interessar-se por este trabalho e dispor de tempo para: participar
das vivências com D.Vs. e dos grupos de supervisão e discussão com
a Pesquisadora. Além disso, as Aconselhadoras precisavam dispor de
horário para registrar por escrito o que ocorria nas vivências e as
professoras para providenciar material para as atividades junto aos
D.V..
É importante frisar que o relato das vivências é essencial para a
Pesquisa e que as Aconselhadoras tiveram no mínimo um ano de
experiência nessa forma de registro.
c)
Professoras especializadas (2 participantes da Pesquisa).
As professoras especializadas em ensino de D.V. tinham as
seguintes características. Uma delas era recém formada pela
Habilitação da FEUSP. Trabalhava com grupos de D.Vs., com artes
plásticas e tinha dois anos de experiência em sala de recursos.
Assumiu na Pesquisa 2 grupos de D.Vs., substituindo uma professora
especializada que ficou impossibilitada de participar. Como os grupos
já estavam organizados, para não atrasar o trabalho e não haver
interrupções optou-se por esta substituição.
A outra professora especializada era responsável há 7 anos pela
sala de recursos de uma das Escolas onde se realizou a Pesquisa.
Esta professora é totalmente cega. Cabe aqui assinalar que esta
professora, através de sua experiência sem a visão, contribuiu muito
para a reflexão sobre pontos obscuros e sobre os recursos para
trabalhar com o D.V..
d)
Aconselhadoras (3 participantes da Pesquisa)
As aconselhadoras tiveram um ano (no mínimo) de preparação
específica em Aconselhamento fundamentado na Daseinsanalyse [Curso de Aconselhamento Escolar desenvolvido no Instituto Sedes
Sapientiae atualmente denominado "Psicopedagogia - reflexão e
prática".],
incluindo além das discussões especificas de supervisão de estágio,
grupos onde se discutia:
- relatos de experiências significativas de Aconselhadores na sua
existência pessoal e profissional;
- situação das Escolas Públicas e do "aluno difícil";
- experiências de trabalho terapêutico embasadas na fenomenologia
- vivências - dramatizações e exercícios de percepção de situações de
estágio e do próprio grupo de supervisão.
Objetivos dessa formação:
-
aprofundar o autoconhecimento através de vivências;
-
ampliar a percepção do Outro através de exercícios de descrição e
discussão de situações vividas no Aconselhamento;
-
clarear os próprios significados na situação de atendimento ao 'aluno
difícil' na Escola Pública;
-
buscar recursos para aproximar-se e compreender o Aconselhando;
Local:
Os grupos de discussão e supervisão foram realizados no Instituto
Sedes Sapientiae.
A escolha dessa Instituição se deveu ao fato de ter sido aí que se
desenvolveu o Curso de Formação das Aconselhadoras, constituindo
esta Pesquisa uma bifurcação da Proposta de Aconselhamento
Escolar (Masini, 1984) desse Curso.
2.3 Os Grupos de D.Vs.
As crianças que participaram dos grupos de vivências foram
primeiramente indicadas pelas professoras da sala de recursos, que
forneceram dados sobre elas. Essas posteriormente foram
selecionadas pelas auxiliares e pesquisadora e apresentavam as
seguintes características:
- eram crianças cegas ou com visão subnormal;
- freqüentavam a sala de recursos;
- encontravam-se na faixa etária entre 7 e 13 anos.
Como a proposta era a de atender às crianças no seu cotidiano,
buscou-se condições de Pesquisa as mais próximas daquelas
existentes nas Escolas. Assim foram levadas para os grupos de
vivências crianças de faixa etária bem diferentes, acompanhando-se o
que sucede nas salas de recursos. As características especificas de
cada criança aparecem no Relato.
Cada grupo de vivência foi organizado para funcionar com 5
crianças a Aconselhadora e a Professora. Por diferentes razões nem
todos os grupos foram encerrados com o mesmo número de crianças.
Os grupos foram realizados nas escolas que se interessaram pela
Pesquisa, selecionadas entre as Estaduais que dispunham de sala de
recursos. Foram elas:
EEPG André OH1
EEPG Almirante Barroso
EEPG Pedro Voss
3. Etapa de Análise - 1987
Participantes: Pesquisadora e Analistas [Analistas - também formadas pelo Curso de Aconselhamento do
Instituto Sedes Sapientiae]
Matéria Prima: Relatos [Relato é o registro por escrito de tudo que foi vivido nos grupos de
D.Vs. nesse período de 1 ano letivo: de cada sessão aparece uma
descrição do vivenciado naquele dia; os Comentários da
Aconselhadora articulando o que emergiu na descrição; as
Preocupações assinalando a partir dos Comentários os pontos aos
quais se deverá estar atenta para trabalhar:, quando este emergiu no
grupo, em um outro momento.] das Aconselhadoras
Esta etapa da Pesquisa constituiu um recuo da Pesquisadora para
enfocar as vivências dos grupos de D.V. sob outro ângulo - o da
análise fenomenológica dos Relatos dessas vivências, buscando os
significados ai manifestos. A análise é feita pela Pesquisadora,
supervisionando três analistas, cada uma responsável por um Relato.
Trata-se aqui de desvelar o fenômeno - "o perceber e o relacionar-se do D.V.", e os recursos que o auxiliam nesses aspectos.
Exatamente porque o fenômeno não estava evidente de imediato nos
Relatos, fez-se necessário esta Análise. A maneira como ela é aqui
desenvolvida surgiu da busca de um caminho que estivesse de acordo
com a Pesquisa como um todo, guiando-se, pois pelo horizonte de
pensamentos que orientou a pesquisa.
A pergunta que guiou a Análise foi que deu nome à pesquisa:
Como é o perceber e relacionar-se do D.V.? Quais os recursos que
auxiliam o D.V. nesses aspectos?
Como Análise Fenomenológica, esta não se limitou a uma
Descrição passiva, mas constituiu-se simultaneamente da tarefa de
Interpretação (tarefa da Hermenêutica) que consiste em por a
descoberta os elementos menos aparentes, aqueles que o fenômeno
tem de mais fundamental.
Na Descrição, primeiro passo da Análise Fenomenológica,
levantaram-se as características que foram aparecendo ao longo dos
entendimentos em grupo. Na Interpretação, feita a partir da Descrição,
procurou-se sintetizar de forma dinâmica, o que emergiu da Descrição;
fez-se um apanhado de diferentes momentos e situações, apontando
as características das crianças, da Aconselhadora e da Professora; da
maneira de se relacionarem, bem como dos recursos utilizados que
contribuíram para o perceber e o relacionar-se do D.V.
De cada Relato foi feita uma Descrição e uma Interpretação,
buscando-se identificar: o que propiciou abertura de possibilidades a
cada aluno D.V. no seu perceber e relacionar-se; o que o limitou.
Considerando-se o Relato da Aconselhadora o seu discurso sobre
os grupos de D.V. (discurso definido como articulação daquilo que ela
compreende), o Relato pode ser visto nos significados que vão além
da fixação escrita do que sucedeu na situação específica, oferecendo:
a) de um lado o vivido, a prática de um trabalho a ser compreendido,
onde aparecem diferentes possibilidades da comunicação humana,
incluindo distorções da comunicação humana;
b) de outro lado, o registro de situações que poderão ser retomadas
para novas Interpretações.
Aquilo que constituiu o discurso analisado foram todas as
dimensões cotidianas do D.V. percebidas pela Aconselhadora na
vivência grupal.
Foi da síntese da Interpretação dos três Relatos que surgiu uma
orientação para formação da professora de D.V.
O Relato da Aconselhadora poderia estar suficientemente claro para
tornar visível a maneira de ser de cada criança, dela própria e da
professora, nessas vivências grupais, como poderia apresentar
obscuridades. Esta Análise de Relatos visa clarear significados e pôr
em evidência pontos obscuros na relação e no que aparece de cada
um.
Na Pesquisa (como em qualquer outra situação) a apropriação do
conhecimento dá-se através do Círculo Hermanêutico: compreensão-interpretação-nova compreensão. Está implícito nesta Análise
Fenomenológica o ponto de vista de que os significados assinalados
pela Analista do Relato, podem ser interpretados de outras maneiras.
A Análise de Relatos oferece a possibilidade de que outras
Interpretações sejam feitas, propiciando o diálogo sobre elas e
abertura a nova compreensão sobre o perceber e o relacionar do D.V.,
bem como sobre os recursos que o auxiliam nesses aspectos.
3.1. Descrição
Ficou estabelecido nas discussões desta equipe de Análise que a
Descrição se faria a partir do levantamento das características (das
crianças, da Aconselhadora, da Professora, da relação). As
características seriam apontadas e ilustradas pelas maneiras que
aparecessem nas situações e atividades. Na Descrição se registrariam
apanhados do que fosse aparecendo, contribuindo assim para que se
pudesse enxergar mais do que somente ao ler o Relato, contribuindo
para melhor compreensão. Por exemplo, foi ficando claro durante a
análise, que se deveria diferenciar se a criança na exploração do
objeto tinha dificuldade de perceber - (porque não explorava
espontaneamente) ou sua dificuldade era de expressar como e o que
havia percebido (porque se comunicava através de verbalismos).
O item "Preocupações" foi considerado importante para levantar as
características da Aconselhadora: expectativas, valores, modo de
trabalhar. Esse item dizia respeito a aspectos para os quais ela estava
atenta - (se emergiam das situações de grupo ou não). As
"Preocupações" dessa forma podiam reiterar características da
Aconselhadora, que apareciam quando esta descrevia o atendimento;
ou podiam não reiterar, no caso da Aconselhadora ter como
"Preocupações" aspectos de um referencial externo ao que se
passava no grupo; ou ainda porque em situações junto ao
Aconselhando ela não fazia o que se havia proposto. O mesmo foi
feito com o item "Comentários".
As discussões assinalaram que a referência à situação possibilita a
quem lê o Relato, acompanhar o que se passa no atendimento,
oferecendo dados para que assim possa acompanhar a fase posterior
à Descrição, ou seja, a Interpretação. Ficou então estabelecido que,
além das características caberia na Descrição também levantar as
lacunas do Relato, ou seja, aquilo que havia ficado ausente, ou porque
a Aconselhadora não havia relatado, ou porque não havia percebido.
Dessa maneira a Análise Fenomenológica assinalou também o que
não havia ficado claro no Relato não permitindo perceber o que havia
se passado na situação. As lacunas mostraram quer o que a
Aconselhadora não havia lidado na situação, quer a ausência de
detalhamento no Relato do que havia se passado.
Assim a Análise Fenomenológica cumpria a sua própria função: a
de trazer uma outra dimensão do material analisado. Para isso
considerou-se necessário apontar as características de cada
participante das vivências e de sua relação com os outros; os
recursos; as lacunas apresentadas; o que surgiu na evolução do
grupo; o que foi pré-determinado e aparecia independemente do que
sucedia no grupo. Isso foi desvelando a relação e as características
individuais e de grupo, pondo a descoberto o perceber e o relacionar-se do D.V. e os recursos que o auxiliam nesses aspectos.
3.2 Interpretação
O referencial para a Interpretação é a Descrição. Nesta fase
trabalhou-se com o que emergiu na Descrição em vários
atendimentos, procurando reunir as características que foram
aparecendo em diferentes momentos e situações, para encontrar seu
significado.
A Interpretação de cada Relato resultou da maneira própria da
Analista compreendê-lo. Para realizá-lo a Analista precisou ter clareza
do que estava se passando com ela própria enquanto o lia. Por
exemplo, num Relato em que a Analista teve dificuldades para
levantar as características na Descrição, foi necessário identificar o
que constituía limite para compreendê-lo. A Analista afirmou: "Eu me
confundo frente à lacunas deixadas pela Relatora. isso faz com que
minha experiência pessoal interfira para complementar o que falta, ou
levantar hipóteses sobre o que ficou implícito, mas não explicitado ".
Dessa maneira a Analista esteve atenta à sua disposição ao
compreender o que a Aconselhadora expressava sobre a vivência do
grupo de D.Vs. - atenta, pois à relação leitora-relatora. Cabia, pois na
Interpretação deixar clara a lacuna, o que não havia sido explicitado e
a sua própria disposição, como Analista, nessa situação.
Na Interpretação não se ficou presa a cada atendimento, mas
foram feitas sínteses, dando uma visão dinâmica das vivências - um
perfil de cada pessoa que delas participava e das suas relações. Por
exemplo, num dos Relatos a Aconselhadora em algumas situações
"cortou" a fala da professora, com as crianças. Foram localizados os
cortes e na Interpretação ligaram-se os cortes com outras atitudes da
professora, assinalando o que, ao dar o corte a Aconselhadora estava
tentando evitar: recursos ou atividades que prejudicavam a maneira da
criança D.V. relacionar-se. Foi evidenciada a característica da
Professora e sua relação com as crianças, bem como a maneira da
Aconselhadora lidar com a situação para que o perceber e o
relacionar-se do D.V. emergisse, bem como os recursos ao lidar com
esses aspectos. Para que ficasse clara a Interpretação, a Analista
falava dos significados e remetia à Descrição, buscando possibilitar, a
quem fosse ler a Análise Fenomenológica, acompanhar os passos que
levaram à Interpretação.
Ficou estabelecido que não seria possível fazer a Interpretação
sem referência ao que remeteu a ela - ao dar as características da
criança, um perfil de suas facilidades, dificuldades e suas
transformações, era imprescindível assinalar as situações onde essas
características se manifestaram e como se manifestaram.
3.3 Comentários sobre as Interpretações
Cada Relato tem uma característica própria. Embora houvesse a
sistemática do registro (descrever a sessão; comentar o que foi
importante, percebido pela Aconselhadora; apontar as "Preocupações"
ou seja, as características às quais a Aconselhadora estava atenta),
os Relatos divergiam porque cada um era o discurso de uma
Aconselhadora sobre seu grupo de vivência - sua maneia de
compreender e expressar-se sobre isso.
Procurou-se uma sistemática de Análise para mostrar as
passagens que levaram a uma visão do dinamismo do grupo,
focalizando as mudanças em cada participante e o que a situava ao
longo das vivências de grupo, durante esse ano. O que se buscava
eram (levantadas as características do perceber e relacionar-se do
D.V. nos três grupos) os recursos comuns que auxiliaram as crianças
D.Vs. em seu perceber e relacionar-se. A Análise evidenciou a
impossibilidade de assinalar os recursos isoladamente, pois foram
utilizados pela Aconselhadora e Professora conforme suas
características. Dessa forma, ficou claro para a equipe de Análise, que
os recursos seriam considerados junto às características de cada
participante e no contexto geral no qual tinham sido propostos.
Enfatizou-se a importância disso tudo para compreender-se
claramente o trabalho feito com as crianças. O objetivo era o de
mostrar o que se passava na situação quando, crianças que não
faziam certas coisas, passavam a fazê-las, buscando-se registrar os
recursos utilizados e que sentido eles tinham nesse contexto vivido
pelas crianças.
Da Interpretação de cada Relato fez-se um levantamento dos
Significados apontados: Características das crianças, Características e
Recursos da Aconselhadora e Professora; Características do Grupo.
Esse levantamento objetivou auxiliar a leitura dos Comentários
síntese, pondo em evidência, nos três Relatos, os Significados que
auxiliaram o D.V. no seu perceber e relacionar-se, bem como os que o
limitaram.
A Análise evidenciou que as transformações nas atitudes das
crianças emergirem nas situações em que a professora e
aconselhadora percebiam-na e a partir dai trabalhavam com ela.
Nessas situações não se considerava o recurso em si, ou o material
auto suficiente; dependiam para serem utilizados, da relação da
Aconselhadora e da Professora com o D.V.. Esse ponto destacou-se
como de suma importância na Síntese da Interpretação dos 3 Relatos.
D. SIGNIFICADOS QUE EMERGIRAM DA PESQUISA
[Observação: Os relatos dos trabalhos desenvolvidos nas Escolas
junto às crianças D. V, podem ser encontrados na Biblioteca da Fac.
Ed. da USP nos volumes II, III e IV da Tese de Livre Docência com e
mesmo título deste livro.]
Da Análise dos Relatos foram levantadas às características das
crianças, do grupo, da Aconselhadora e da Professora, bem como dos
Recursos por elas utilizados nas vivências. Constituem esses os
Significados que - para a Analista - se evidenciaram no Relato.
A reflexão sobre esses ítens apontou convergências de significados
- quanto às possibilidades e limites do perceber e relacionar-se do
D.V. e quanto aos recursos que o auxiliaram nesses aspectos - e
propiciou condições para o surgimento de uma orientação para
formação de professores de D.V.
Para facilitar a Discussão sobre os grupos de vivências, e os
recursos que auxiliam o D.V. no seu perceber e relacionar-se,
apresentamos:
D.I. Significados do Relato - agrupamento das características das
crianças, do grupo, da Aconselhadora, da Professora e os Recursos
por elas utilizados em cada um dos Relatos.
D.II. Possibilidades e limites focalizando o que (nas atitudes das
Aconselhadoras e Professoras), contribuiu para o D.V. transformar-se
no seu perceber e relacionar-se e o que não contribuiu.
1. RELATO I
1.1 Características das Crianças
A-
-
- Sair-se bem na Escola.
-
- Estar atenta a fala de E.
-
- Envolver-se com o que fazia.
-
- Isolar-se no lanche, sem perceber a vontade dos outros.
-
- Ficar tensa em atividades dirigidas (descrição de gravuras, toques
corporais para transmitir mensagens).
-
- Atenta a própria maneira de ser e a diferença de como e na escola e no
grupo de D.V.
-
- Disponibilidade para trazer vivências que favoreçam trocas de
experiências para interação grupal.
-
- Vinculada ao grupo, fazendo sacrifícios para não faltar.
-
- Alegre, espontânea.
-
- Atenta, interessada e participante do grupo.
-
- Disponibilidade para mudanças, ou ouvindo e recebendo criticas.
-
- Auxiliar a Aconselhadora e Professora, falando da maneira de E falar e
agir.
-
- Ajudar a Aconselhadora a perceber caminhos alternativos para lidar com
dificuldades emergentes.
B –
-
- Faltar muito (10 sessões).
-
- Descompromisso com o grupo (as justificativas das faltas revelam isso).
-
- Solto e descontraído no grupo.
-
- Sem iniciativa, sem opiniões (calado ou imitando a fala dos outros).
-
- Passivo, sem mostrar o que sentia e queria.
-
- Ausente do grupo nas discussões.
-
- Criativo em atividades não verbais.
-
- Construção da cidade;
-
- Atividade com massa;
-
- Atividade corporal;
-
- Facilidade para ritmo com o corpo;
-
- Movimentar-se no espaço para conduzir trenzinho;
-
- Manusear massa
-
- Jogo de bola.
-
- Atividades de pintura.
-
- Disponibilidade de tempo para brincar fora do período escolar.
C –
-
- Verbalizar pouco.
-
- Trabalhar isoladamente.
-
- Dificuldades para tomar iniciativa em atividades de modelar e construção
com sucata.
-
- Centralizado em M,pedindo referencial para fazer qualquer coisa.
-
- Fugir de situações que o exponham como, por exemplo, a de explicar sobre
as próprias falhas.
-
- Negar sentimentos.
-
- Dificuldade de ser ativo (passivo com E).
-
- Facilidade para jogar bola, jogar vareta, dançar.
-
- Interesse em jogar dominó.
D –
-
- Verbalizar.
-
- Intelectualizar.
-
- Não atento a aspectos de si próprio.
-
- Não atento aos outros.
-
- Impor-se aos outros.
-
- Sem iniciativa em atividades motoras e plásticas.
-
- Atento a postura para jogar bola (consciência espacial).
-
- Atento ao manuseio da faca.
-
- Descontraído, usando tato e orientação espacial, na caça ao tesouro.
-
- Atento a degustação, discutindo o paladar do que comia.
-
- Atento a estética do desenho utilizando tintas variadas.
-
- Descontraído para dançar.
-
- Atento ao corpo, solicitando que a Aconselhadora massageasse pontos de
tensão.
-
- Atento auditivamente, ao servir líquidos.
-
- Atento e disponível para colocar a mesa do lanche.
-
- Expressar verbalmente o que sente, em situações grupais.
-
- Falando do que sentiu sobre o colega que faltou;
-
- Falando sobre o que sentia do grupo;
-
- Falando sobre sua pressa excessiva no inicio das vivências;
-
- Falando sobre sua saúde.
1.2 Características e Recursos da Aconselhadora e da Professora
Características:
- Tensa e retraída para o que emergia no grupo, no inicio do trabalho.
- Solta-se a partir do 5? atendimento:
- Mostra os próprios sentimentos;
- Retorna os significados de cada um, buscando seus sentimentos;
- Presente, atenta a cada elemento e ao grupo como um todo, em quase todas
as sessoes:
- Disposta a organizar o grupo e conduzi-lo;
- Leva cada elemento a:
- Refletir sobre suas vivencias no grupo;
- Refletir sobre suas características individuais;
- Expressar seus sentimentos para o grupo;
- Explicar seus sentimentos e vivencias, clareando situações.
- Trabalhar junto com o grupo abrindo espaço para discussão e troca
de experiências.
- Revelar as próprias expectativas e valores quanto a atitudes ligadas
ao comer, voltando a atenção do grupo para isso, abrindo espaço
para troca de experiências.
- Voltar-se para as características de E, considerando que ele centralizava a
atenção do grupo, pela verbalização e intelectualizaçao.
- Voltar-se para A, aproveitando suas características e o que ela verbalizava
em relação ao que sentia e percebia de E.
- Preocupar-se com as faltas de C e D. Dificuldade de lidar com os
sentimentos em relação as faltas.
- Dificuldades de lidar com C e D, com a pouca verbalização de ambos, e a
limitada expressão de sentimentos.
- Atenta a professora, aproximando-se desta a partir da 4a sessão.
- Ansiosa no inicio do trabalho com a professora, por esta ser cega (a
Aconselhadora verbalizou não ter essa experiência ).
- Refletir, a partir da experiência com a professora, sobre o usar e situar-se
através do olfato/ audição/ tato/ audição, que pareciam não existir.
- Deixar claro no Relato que isso não foi verbalizado para a professora,
quanto esta a auxiliou na ampliação de sua percepção, passando a fazer
mais uso do olfato, audição e tato.
Recursos
-
- No inicio levava atividades programadas. Ficando presa a elas.
-
- No inicio tomava iniciativa pelo grupo.
-
- No inicio não sabia lidar com situações emergentes.
-
- No inicio, saia das situações de grupo.
-
- A partir da 10a sessão aproveita os momentos do lanche para troca de
experiências.
-
- Deixar o grupo a vontade para trazer vivências, trabalhando com o que
emergia.
-
- Atividades proposta para lidar com as características de E, objetivando
trabalhar o aspecto afetivo e corporal.
-
- Retomar com E significado do que ele fala, fazendo-o refletir e se soltar
para o grupo.
-
- Solicitar que A manifestasse seus sentimentos diretamente a E.
-
- Discutir as faltas com C e D, não conseguindo porem definir seu
significado.
-
- Procurar trazer a professora para situações vividas, quando ela professora
não podia participar, solicitando ao grupo que contasse a professora o que
estava fazendo.
-
- Cortar, as vezes, a fala da professora, quando esta interferia na interação do
grupo ou quando saia da proposta:
-
- Pregando valores;
-
- Verbalizando excessivamente.
P – Característica
-
- Atenta as características dos membros do grupo.
-
- Atenta ao desenvolvimento das atividades.
-
- Aberta e solta nas atividades – da sugestões.
-
- Expressa seus sentimentos, fala de suas dificuldades e limitações nas
atividades.
-
- Atenta a E, as suas características de verbalização e intelectualizaçao.
-
- Atenta as características de passividade e pouca verbalização de C e D
solicitando suas participações.
-
- Atenta a Aconselhadora buscando atuar junto com ela.
-
- Adiantar-se, algumas vezes, trazendo seus significados sem dar o lugar ao
outro.
-
- Verbalizar excessivamente em alguns momentos.
-
- Pregar valores, em alguns momentos.
Recursos
-
- Trazer as próprias vivencias e experiências, propiciando as crianças
enriquecimento para lidarem com as atividades em diferentes situações.
-
- Buscar clarear o que acontecia, ao retomar as situações e propor reflexões.
-
- Propiciar interação ao deixar-se conduzir, intervindo e exclarecendo que
não estava claro para ela (perguntando sobre localizações, distancia no
jogo de bola, etc).
-
- Chamar atenção do grupo para utilização dos sentidos em atividades da
vida diária (atenção auditiva para servir líquidos/localização dos objetos na
mesa para a alimentação).
-
- Lidar com a dificuldade de E na área corporal, permitindo-lhe soltar-se
usando todos os sentidos, sem o uso do verbal.
-
- Não conseguir lidar com características de C e D (dificuldade de
verbalizar).
-
- Relacionar-se facilmente e de maneira efetiva com A, durante todo o
atendimento.
-
- Auxiliar muito o trabalho da Aconselhadora, propiciando-lhe usar, situar-se
e refletir sobre o uso do tato, olfato, audição, gustação.
1.3 Características do Grupo
-
- Ausência de relação
-
- Cada criança trabalha individualmente.
-
- Sem iniciativa.
-
- Centrado em E.
-
- Isolamento de cada participante nas atividades estruturadas.
-
- Dinâmico quando são realizadas atividades corporais.(jogar bola, passar
mensagem); relatar a própria experiência perceptiva (na exploração de
objetos na degustação – no relato do cotidiano do grupo).
-
- Integrado após atividades descontraídas.
2. Relato II
2.1 Características das Crianças
C
-
Dificuldade de se dirigir ao outro.
-
Dificuldade de se posicionar de modo a ser entendida.
-
Agitada.
-
Grita e interrompe o que esta sendo feito.
-
Não da continuidade ao que se propõe.
-
Distancia-se do grupo quando criticada; quando ao e aceita e gritam com
ela.
-
Cala-se abruptamente quando criticada e quando não e aceita.
-
Fica cabisbaixa, quando criticada e não aceita, falando coisas diferentes do
que o grupo fala.
-
Ambigüidade: - verbalizar que queria ficar no grupo e nada fazer com alguém do grupo; - solicitar que a Aconselhadora desenhe com ela e agir de maneira a não
possibilitar isso.
G -
-
- Dificuldade de mostrar no grupo o que sentia e pensava.
-
- Dificuldade de mostrar a um colega individualmente o que sentia e
pensava.
L
-
- Sem limites (mexe na gaveta de professora).
-
- Dificuldade em realizar atividades novas.
-
- Mostra estar ligado ao grupo, expressando seu sentimento nesse sentido.
-
- Mostra estar ligado a Aconselhadora, como pessoa apta a ouvi-lo.
W
-
- Expressar-se corporalmente e verbalmente.
-
- Rígido em atividades sociais (comer fora).
-
- Impulsivo na expressão do afeto.
-
- Não considera o sentimento do outro.
-
- Manifesta corporalmente seus sentimentos (resmungando, baixando a
cabeça, etc).
-
- Disponível para algumas atividades (sucata).
-
- Não disponível para quebra-cabeça.
-
- Solto, solicitando ajuda; disponível.
-
- Aberto a critica (gradativamente mais solta).
2.2 Características e Recursos da Aconselhadora e da Professora
G – Características
-
- Falta de clareza no relato dos atendimentos, dificultando:
- perceber o grupo e seus elementos;
- a introdução das atividades;
- quem propunha as atividades;
- como as crianças se manifestavam;
- deixou lacunas que permitiam interpretações a partir de experiências do
leitor.
-
- Utilizar expressões qualitativas a partir de um referencial arbitrário ao se
referir as crianças.
-
- Dificuldades para refletir sobre seus significados.
-
- Não buscar os significados do que emergia da criança.
-
- Dificuldade para refletir e abrir-se para os significados do outro.
-
- Não perceber os sentimentos manifestos pela criança.
-
- Dificuldade em lidar com os sentimentos da criança na forma que se
manifestam.
-
- Basear-se em "causa e efeito" para trabalhar atitudes.
-
- Distanciar-se das crianças.
-
- Dificuldades de mostrar-se com seus sentimentos, duvidas e decisões.
-
- Atribuir ao grupo as dificuldades de relacionamento.
-
- Deixar-se levar impulsivamente pelo aparente da situação sem buscar o
significado daquilo que a criança manifesta.
-
- Confundir-se diante das manifestações do grupo.
-
- Mais tranqüila para trabalhar no grupo, quando estabeleceu limites e
programações previas.
-
- Não perceber seu limite para lidar com as características de dois elementos
do grupo.
-
- Irritar-se com as características de uma criança.
-
- Confusa.
Recursos
-
- Procurar controlar as manifestações do grupo, através de atividades pré- estabelecidas.
-
- Não lidar com o grupo com o que emerge nas situações.
-
- paralizar-se frente aos sentimentos expressos pela criança.
-
- Não lidar com as faltas do grupo.
-
- Não assumir posição frente a solicitação de uma criança.
-
- Buscar dados externos ao atendimento, para decidir sobre o desligamento
de um elemento do grupo.
-
- Não discutir com o grupo, a saída de um elemento.
-
- Atuar segundo suas expectativas e formas de compreender a situação.
-
- Procurar dirigir o pensamento de outro, adiantando-se e concluindo por ele.
-
- Trabalhar o emergente ao: - propor um caminho para que L refletisse como solucionar a questão do
jogo para duas pessoas; - usar dramatização para trazer L para junto do grupo.
M – Característica
-
- Não considerar a disposição das crianças para as atividades, no inicio do
trabalho.
-
- Voltar-se para as criações, vivencias e sentimentos das crianças, após a 12a
sessão.
-
- Aproximar-se das crianças através das atividades.
-
- Buscar o modo de compreender das crianças, nas atividades dadas.
-
- Sair de conflitos e tensões do grupo, propondo atividades.
Recursos
-
- Propor atividades para o grupo.
-
- Lidar com as dificuldades das crianças, falando diretamente o que percebia,
trabalhando junto com elas.
-
- Simplificar situações de escolhas, para facilitar a criança.
-
- Repetir atividades que não facilitavam o grupo, sem atentar para isso.
OBSERVAÇOES:
No Relato não fica claro em varias situações, o que e de G e o que e de M. A
seguir são citadas essas situações onde a dupla e citada.
GM Características
-
- Dificuldade para trabalhar o emergente grupal.
-
- Confusas no clima grupal.
-
- Expectativas quanto a atitude das crianças - Não buscar os significados das crianças nas atividades.
-
- Assumir o desligamento de C1 do grupo.
-
- Voltadas para W.
-
- Atitudes de desconsideração ao que Gui manifestava:
- quando Gui queixou-se de que W havia copiado seu desenho e
responderam que ele não havia copiado;
- não buscaram o significado com W, quando este insistia em sentar perto de
Gui.
GM Recursos
-
Buscar recursos externos a situação de entendimento, trazendo atividades
pré-estabelecidas.
-
Buscar recursos que favorecessem o controle do grupo.
-
Não buscar o limite dos recursos usados para a relação grupal.
-
Não se posicionar diante do grupo em suas próprias dificuldades de
trabalharem com C1.
2.3 Características do Grupo
-
A composição variou muito nas diferentes sessões, devido a faltas
alternadas dos participantes.
-
Estruturou-se após a saída de C1 e Gui não ficando isso explicito no
Relato.
-
Processo difícil e confuso.
-
Desorganização no inicio, sem auto controle, com poucas possibilidades e
espaço para discussões e reflexões.
-
Não se afinou com C1, explicitando que não a aceitavam.
-
Não se manifestou verbalmente quando informado obre a saída de C1 na 8a
sessão.
-
Dinâmica difícil na 8a sessão (quando informado sobre a saída de C1),
culminando com o abandono da sessão por G, sem condições de continuar
o trabalho.
-
Relação de G e Gui difícil, apresentando-se caótico na 10a sessão e na
ultima sessão, quando Gui esteve presente.
-
A ausência de Gui na 9a sessão e na 11a. em diante ate o penúltimo, revelou
outra configuração na sessões.
3. Relato III
3.1 Características das Crianças
A
-
- Sensível.
-
- Afetiva
-
- Usar o olfato,gustação e tato.
-
- Negar inicialmente a cegueira.
-
- Falar depois espontaneamente sobre a cegueira.
-
- Explorar minuciosamente os objetos.
-
- Orientar-se bem espacialmente.
-
- Lidar com o material sem derruba-lo.
-
- Boa organização para trabalhar.
-
- Expressar-se com criatividade em suas atividades plásticas.
-
- Não disponível para rever dificuldades de relacionamento voltando-se para
si própria, deprimindo-se, afastando-se do outro.
-
- Dificuldade de expressar sentimentos agressivos.
-
- Referir-se verbalmente a existência de sentimentos agressivos (conta que
se auto-agride) - Rígida corporalmente, tensa e nervosa na representação de sons e em
atividades de ritmo.
-
- Capaz de representar o som com o corpo.
-
- Captar e transmitir corretamente mensagens corporais.
-
- Dificuldades em dramatização
-
- Dispor-se a superar dificuldades: - propõe-se a dançar sozinha; - vivencias de situações; - expressa seus sentimentos em relação ao momento.
S
-
- Dificuldade de contactar objetos.
-
- Dificuldade de explorar objetos.
-
- Não identificar objetos pela descrição sensorial dos colegas.
-
- Dificuldades de lidar com objetos.
-
- Não se organizar para atividades gráficas.
-
- Não se organizar para atividades plásticas.
-
- Dificuldade de contar objetos.
-
- Estar atenta ao grupo ao verbalizar coisas sobre ele.
-
- Refletir sobre a situação a partir das respostas da Aconselhadora.
-
- Mudar a partir da 7a sessão.
-
- Concentrar-se nas atividades.
-
- Autonomia do pensamento.
-
- Persistência nas próprias opiniões.
-
- Criatividade na construção de estórias.
-
- Solta e descontraída em: - expressão corporal; - atividade rítmica - relação com o outro.
-
- Passar a utilizar a gustação atentamente.
-
- Passar a utilizar o tato, explorando objetos.
-
- Passar a localizar-se espacialmente, utilizando os próprios recursos para
perceber o que a cerca.
-
- Explicar ter vivido em atividades da vida diária, em casa, as características
manifestas no grupo.
-
- Lidar com tranqüilidade com as próprias dificuldades.
-
- Expor os próprios sentimentos (feliz,vibrante).
3.2 – Características e Recursos da Aconselhadora e da Professora
F – Características
- Disponível para o trabalho.
- Disponível par dar-se a conhecer;
- revelando os próprios sentimentos;
- revelando intenções de trabalho;
- revelando responsabilidade quanto ao compromisso assumido;
- revelando seu interesse pela criança.
- Voltar-se para partir da percepção da criança:
- nas atividades propostas;
- na sua maneira de lidar.
- Buscar significados das crianças na situações:
- retomando;
- reorganizando;
- fazendo perguntas sobre os sentimentos e percepções.
-
- Criar condições para as crianças trabalharem autonomamente.
-
- Perceber o contexto social e escolar das crianças.
-
- Atentar aos possíveis preconceitos que pudesse estar passando para as
crianças.
-
- Buscar clarear os próprios sentimentos, atitudes e dificuldades.
-
- Deixar claro que algumas atividades não favoreceram a compreensão do
grupo.
-
- Apontar situações que não ficaram claras.
-
- Não criar condições para o desenvolvimento de uma atividade grupal, onde
as crianças pudessem estar envolvidas num objetivo comum.
-
- Não conseguir lidar com a dinâmica e disposição grupal, prendendo-se ao
significado de cada criança.
-
- Dificuldade de lidar com sentimentos agressivos, paralisando-se nessas
situações.
Recursos
Dialogar com as crianças a partir das características que emergem:
- interesse;
- facilidades;
- dificuldades.
- Da 1.a à 7.a sessão, planejar anteriormente as atividades a partir das
características da criança.
- A partir da 9.a sessão essa atitude de abertura e consistente ate o final do
atendimento.
-
- Que atendam as características de cada um.
-
- Atividades que explorem os diferentes sentidos de cada criança.
-
- Atividades que lidem com a organização de cada criança.
-
- Atividades que lidem com a comunicação verbal e não verbal.
-
- Atividades voltadas para as características percebidas, aproveitando as
atividades propostas pelas crianças.
-
- Retomar verbal e diretamente com as criança suas dificuldades,
consultando-as sobre isso.
-
- Reformular atividades propostas quando estão alem das possibilidades da
criança.
-
- Trabalhar junto com a criança, as atividades nas quais apresenta
dificuldade.
-
- Perguntar diretamente a criança, quando não entendeu o que ela expressou
verbalmente.
-
- Criar condições para as crianças opinarem sobre as propostas e andamento
das atividades.
-
- Participar na organização dos materiais.
-
- Incentiva-las a estarem atentas a maneira própria da criança trabalhar.
-
- Incentiva-las a buscarem outras formas alem da que já dispunham para
trabalhar.
-
- Oferecer materiais variados.
-
- Aproveitar materiais e situações.
-
- Sugerir alternativas de trabalho para serem analizadas.
-
- Buscar o que as crianças compreendiam e as informações que já
dispunham em cada situação.
-
- Criar condições para que o grupo pudesse fluir sozinho,deixando fluir a
discussão entre as crianças, para que elas pudessem refletir sobre as suas
características e encontrassem seus caminhos.
-
- Estimular a troca de vivencias entre as crianças, aproveitando suas
colocações.
M Características
-
- Mostrar-se responsável ao compromisso assumido,participativa e entrosada
no grupo.
-
- Atenciosa e comunicativa.
-
- Disponibilidade para rever suas atitudes.
-
- Rever as próprias atitudes e atividades, adequando-as as possibilidades das
crianças.
-
- Organizada, criativa e aberta as características da criança, ao propor
atividades.
-
- Atentar s maneira de trabalhar sentimentos e atitudes das crianças.
-
- Atentar as dificuldades das crianças, participando da atividades e
cumprindo caminhos.
Recursos
-
- Dialogar com as crianças e expressar seus sentimentos em relação a ela.
-
- Nos primeiros atendimentos mostra-se voltada para elaboração e propostas
de atividades.
-
- Propor atividades auditivas a partir da própria experiência e organização,
dificultando a compreensão da crianças.
-
- Possibilitar a participação das crianças na escolha e andamento das
atividades.
-
- Clara nas propostas de atividades.
-
- Na exploração de objetos apresentar as crianças os objetos selecionados a
nível de dificuldade para descrição de detalhes.
-
- Propor trocas de produções, conversando com as crianças, orientando-as na
execução das tarefas.
-
- Retomar a maneira de cada criança trabalhar, fazendo perguntas que
facilitaram as crianças na exploração dos objetos.
-
- Propor trocas de produções, conversando com as crianças, orientando-as na
execução das tarefas.
-
- Retomar a maneira de cada criança trabalhar, fazendo perguntas que
facilitaram as crianças na exploração dos objetos.
-
- Respeitar o ritmo de trabalho de cada criança.
3.3 Características do Grupo
- Interesse pelo trabalho em desenvolvimento.
- Oportunidade de falar e ouvir.
- Entrosado:
- voltado uns para os outros;
- compartilhando sentimentos;
- trocando experiências;
- disponibilidade de cada um para ajudar o outro.
- Crescimento na autonomia do grupo.
-
S expressa seus sentimentos com relação a A, verbalizando que esta não
aceita suas sugestões de atividades.
-
S verbaliza sua necessidade de trabalhar em grupo.
-
Os elementos trabalham e trocam experiências, sem chegar a um objetivo
comum de cooperação.
4. COMENTÁRIOS SOBRE OS SIGNIFICADOS DOS RELATOS
A Análise dos Relatos foi desvelando "o perceber e relacionar-se
do D.V." nos seus diferentes modos de se manifestar: na sua maneira
própria de explorar o derredor e aí situar-se, quando no grupo se
criava um campo de reciprocidade para o debate sobre as
experiências perceptivas; na sua maneira pouco espontânea e
mecanizada, quando as relações se estabeleciam dirigidas por
padrões impostos. Dessa forma, buscando a totalidade do fenômeno,
foi importante assinalar o que constituiu abertura de possibilidades
(para o D.V. mostrar-se como é) bem como o que constituiu limites.
Assim os limites aqui assinalados oferecem-se como auxilio para
extrair-se o sentido do que sucede na relação educacional, que
cerceia as possibilidades do D.V..
A Análise das Características das Aconselhadoras e Professoras e
dos recursos utilizados nos grupos de vivências (com as crianças
separadamente e do grupo como um todo) permitiram agrupar itens
evidenciando: aquilo que propiciou abertura de possibilidades para as
crianças D.Vs. no seu perceber e relacionar-se; e aquilo que constituiu
limite. Estão transcritos a seguir esses itens e suas convergências
para facilitar a leitura dos Comentários Síntese.
Os itens convergentes foram redigidos, às vezes utilizando as
mesmas expressões da Análise do Relato; outras vezes, não.
Procurou-se redigir cada item de forma que expressasse aquilo que a
Analista registrou. Por exemplo, no Relato 1, o 2° item, referente à
Aconselhadora é "mostrar os próprios sentimentos". No Relato III, o
2o. item, referente à Aconselhadora é "dispo nível para dar-se a
conhecer: revelando os próprios sentimentos".
Considerou-se que o item 2 do Relato 1 e o item 2 do Relato III tem
o mesmo significado, assim ambos aparecem assinalados em "Revela
os próprios sentimentos" item 2 das Possibilidades.
No que diz respeito à Possibilidades, os Relatos I e III apresentam
convergências de significados em vários itens referentes às
Características e Recursos utilizados pela Aconselhadora e pela
Professora.
O Relato II, no que diz respeito a Possibilidades, não apresenta
convergência de significados com os Relatos I e III quanto às
Características e Recursos das Aconselhadoras e Professoras.
No que diz respeito a Limites, quase não há convergências. Os
itens convergentes não implicam discordância da lista de
Possibilidades, pois nos Relatos I e III, apontam limites da
Aconselhadora e Professora em algumas situações, ou com algumas
crianças. Os itens que não apresentam convergência, tanto referentes
à Possibilidades, como a Limites, evidenciam pontos importantes na
vivência junto às crianças D.Vs. e merecem também atenção ao
pensar-se num trabalho educacional.
Pode-se dizer que há Convergência dos três Relatos no sentido
mais central apontado pela Pesquisa: houve mudanças nas crianças
(no seu perceber e relacionar-se) quando a Aconselhadora e a
Professora trabalharam a partir das características das crianças e do
que elas percebiam (do nível de possibilidades de cada uma); não
houve mudanças nas crianças (no seu perceber e relacionar-se)
quando a criança não foi percebida pela Aconselhadora e Professora e
elas não trabalharam a partir de suas características.
4.1 - O que abriu possibilidades ao D.V. no seu Perceber e Relacionar-se
ACONSELHADORA
- Dialogar e propor atividades a partir das características das crianças
(facilidades - dificuldades - interesses)
RELATOS I III
PROFESSORA
- Atenciosa e comunicativa
REL. I III
Acon.
- Revelar os próprios sentimentos
Prof.
- Dialogar com as crianças e expressar seus sentimentos
Rel. I III
Acon.
- Revelar as intenções de trabalho
Rel. I III
Prof.
- Responsável pelo compromisso assumido
Rel. I II III
Acon.
- Consistente em trabalhar a partir das propostas das crianças
Rel. I III
Pro.
- Voltada para a elaboração e propostas de atividades nos primeiros
atendimentos
Rel. I II III
Acon.
- Voltar-se pata perceber as crianças (evidenciado pelas atividades
propostas, pela maneira de lidar com as crianças).
Prof.
- Disponibilidade para rever suas atitudes
Rel. I III
Acon
- Buscar recursos que atendessem às características das crianças
Prof.
- Desenvolver atividades perceptivas a partir da própria experiência
Rela. I II III
Acon.
- Propor atividades que explorassem os diferentes sentidos
Prof.
- Rever as atividades, adequando-as às dificuldades das crianças
Rel. I III
Acon.
- Propor atividades que lidassem com a organização de cada criança
Prof.
- Organizada, criativa, atenta às características das crianças.
Rel. I III
Acon.
- Propor atividades que lidassem com a comunicação verbal e não
verbal
Prof.
- Clara nas propostas das atividades
Rel.I III
Acon.
- Propor atividades atendendo ao nível de possibilidade de cada
criança
Prof.
- Atenta às formas de trabalhar atitudes, posturas e sentimentos das
crianças.
Relato I III
Acon.
- Buscar os significados das crianças nas situações propostas:
retomando, reorganizando, fazendo perguntas sobre os sentimentos e
percepções.
Prof.
- Propor atividades que propiciam troca de vivências
Rel. I III
Acon
- Trabalhar junto com a criança as atividades nas quais apresentava
dificuldade
Prof.
- Retomar a maneira de cada criança trabalhar, fazendo perguntas que
facilitavam a exploração dos objetos.
Rel. I III
Acon
- Retomar verbal e diretamente, com as crianças, suas dificuldades,
consultando-as sobre isso.
Prof.
- Respeito ao ritmo de cada criança
Rel. I III
Acon.
- Reformular atividades propostas, quando estavam além das
possibilidades das crianças.
Prof.
- Atenta às dificuldades das crianças, participando das atividades e
sugerindo caminhos.
Rel. I III
Acon
- Perguntar diretamente às crianças, quando não entendia o que elas
expressavam verbalmente.
- Criar condições para as crianças trabalharem autonomamente
- Criar condições para as crianças opinarem sobre as propostas e
andamento das atividades
- Participar na organização dos materiais
- Incentivar as crianças a estarem atentas à maneira própria de cada
criança trabalhar.
-Oferecer materiais variados
- Aproveitar materiais e situações.
- Sugerir alternativas de trabalho para serem analisadas
- Buscar o que as crianças compreendiam e as informações que já
dispunham em cada situação.
- Perceber o contexto social e escolar das crianças
- Estar atenta aos possíveis preconceitos que estivessem passando
para as crianças
- Buscar clarear os próprios sentimentos e atitudes e dificuldades.
- Refletir sobre as atividades (se favorecem a compreensão do grupo).
- Apontar as situações que não ficam claras.
-Criar condições para que o grupo pudesse encontrar seus caminhos.
- Estimular a troca de vivências entre as crianças aproveitando suas
colocações.
- Trabalhar junto com a professora assegurando no grupo que sua
participação não fugisse à proposta de lidar com o perceber e o
relacionar-se do D.V.
Rel. I III
4.2 O que limitou o D. V.
Acon
- No início tomar iniciativas pelo grupo
Prof.
- Não considerar a disposição das crianças para as atividades no início
do trabalho.
Rel. I II III
Acon
- No início levar coisas prontas sugerindo atividades e ficando presa a
elas
Prof.
- Propor atividades a partir da própria experiência e organização,
dificultando a compreensão das crianças.
Rel. II III
Acon.
- No início não lidar com situações emergentes Rel. I II III
Prof.
- Dificuldade para trabalhar o emergente Rel. II
Acon.
- Não definir os significados das faltas ao discuti-las com as crianças
Prof.
- Buscar recursos que favorecessem o controle do grupo
Rel. II
Acon.
- Dificuldade de lidar com os sentimentos em relação às faltas.
Prof.
- Não se posicionar diante do grupo quanto às suas dificuldades
Rel. II
Acon.
- Não se aproximar de alguma criança no Grupo
Prof.
Verbalizar excessivamente em
Alguns
Rel. I II III
Acon.
- Dificuldade de lidar com as características de algumas crianças
(características percebidas)
Prof.
- Pregar valores em alguns momentos
Rel. I II III
Acon.
- Dificuldade de lidar com algumas crianças, que apresentaram pouca
verbalização e expressão de sentimentos Rel. I
Prof.
- Não conseguir lidar com a dificuldade de verbalizar (de algumas
crianças)
Rela. I II
Acon.
- Procurar controlar as manifestações do grupo através de atividades
organizadas
Rel. II
Prof.
- Adiantar-se, algumas vezes, trazendo seus significados no lugar do
outro Rel. I II
Acon.
- Basear-se em causa e efeito para trabalhar atitudes
Prof.
- Não atentar à solicitação da criança para atividades
Rel. II
Acon.
- Não discutir com o grupo a saída de uma criança.
Prof.
- Sair de conflitos e tensões do grupo, propondo atividades Rel. II
Acon.
- Buscar dados externos ao atendimento para decidir sobre o
desligamento de um dos elementos do grupo.
Prof.
- Repetir atividades que não facilitavam o grupo, sem atentar para
isso.
Rel. II
Acon.
- Não atender a solicitação de uma criança. Rel. I II III
Prof.
- Confundir-se no clima grupal
Rel II
Acon
- Manifestar-se irritada com as características de uma criança
Prof.
- Revelar expectativas quanto às atitudes das crianças Rel II
Acon.
- Mostrar-se tranqüila para trabalhar no grupo quando estabelecem
limites e programações próprias.
Prof.
- Não buscar os significados das crianças nas atividades Rel. II
Acon.
-Não perceber seus limites para lidar com características de algumas
crianças do grupo
Prof.
- Atitude de desconsideração pelo que a criança manifestava Rel. II
Acon.
- Não apresentar clareza no Relato dificultando o levantamento de
características do grupo e das crianças.
Prof.-
- Buscar recursos externos à situação de atendimento, trazendo
atividades pré-estabelecidas.
Rel. II
-
- Não fazer descrição detalhada do grupo
-
- Não lidar diretamente com que a criança manifesta.
-
- Não expor o que sentia na relação.
-
- Não expor o que percebeu e sentiu da criança.
-
-Não expor o que percebeu criança e solicitando à outra criança que
falasse por ela.
-
- Não buscar os significados das crianças nas atividades
-
- Buscar recursos que favorecessem o controle grupal
-
- Utilizar expressões qualitativas, arbitrárias, ao se referir a criança no
relato.
-
- Relatar expectativas com relação às crianças no que diz respeito às
suas atitudes e às atividades programadas.
-
- Procurar dirigir o pensamento do outro,
adiantando-se e concluindo por ele.
-
- Dificuldade em estar atenta ao que emergia do Grupo
-
- Dificuldade para refletir e abrir-se aos significados do outro
-
- Dificuldade para refletir sobre próprios significados
-
- Distanciar-se das crianças
-
- Dificuldade de mostrar-se com seus sentimentos, duvidas e
decisões.
-
- Atribuir ao grupo suas dificuldades de relacionamento
-
- Deixar-se levar impulsivamente pelo aparente da verbalização, sem
buscar o significado daquilo que a criança manifestava.
-
- Confundir-se no clima grupal
-
- Atitude de desconsideração pelo que a criança manifestava, não
atendendo, nem mostrando tê-la ouvido.
-
- Não se posicionar diante do grupo quanto às suas dificuldades
-
- Não buscar o limite dos recursos usados para a relação grupal.
Rel. II
E. Comentários Síntese
A Análise, através da Descrição e Interpretação de cada Relato, foi
tornando claro, pouco a pouco, o que se passou em cada grupo de
vivências.
A reflexão desenvolvida no trabalho de Interpretação evidenciou o
que em certas situações contribuiu para o perceber e relacionar-se do
D.V.. A lista de itens de Possibilidades e Limites dos 3 Relatos -
assinalando Convergências de Significados - mostrou o que, de
comum, no modo da Aconselhadora e Professora, nos três grupos de
vivências, contribuiu para o perceber e relacionar-se do D.V..
A Análise buscou desvelar as vivências de modo claro e simples,
naquilo que foi surgindo num caminho contínuo de velamento e
desvelamento. No Relato III, por exemplo, A desvelava-se na sua
afetividade e sensibilidade, quando se voltava para as pessoas do
grupo, com boa disposição e iniciativa de relacionamento. A velava-se,
voltando-se para si própria, deprimindo-se e afastando-se dos outros,
quando os colegas falavam de suas dificuldades de relacionamento e
a Aconselhadora buscava clarear essas dificuldades; A desvelava-se
na dramatização, da qual participava, ao atender à solicitação e
aceitação do grupo.
O que se buscou não foi o conteúdo do que se manifestou nos
grupos de vivências, mas a maneira que a Aconselhadora e a
Professora agiram, para que cada criança:
1. se mostrasse no seu modo de estar em contacto com o objeto,
explorando-o;
2. falasse de sua experiência perceptiva.
Buscou-se a totalidade do que se passou nas vivências: as
relações, as características individuais e as transformações das
crianças nessas situações. Alcançar, porém essa totalidade é muito
difícil tanto quanto torná-las clara nesta síntese. Pensou-se que a
melhor forma para isso seria, tornar visível ao mesmo tempo as
Interpretações e Convergências (tanto das Possibilidades como dos
Limites), isso, porém não foi possível. Restou a opção de comentar
parceladamente o que foi emergindo da Análise, como se fará a
seguir.
Partindo-se da lista de Possibilidades e de Limites, os Comentários
estão voltados para aquilo que era comum nos 3 Relatos, orientados
pela problemática que fez surgir a Pesquisa: o perceber e relacionar-
se do D.V. e os recursos que o auxiliam nesses aspectos, bem como
os que o limitam.
Quanto às Professoras, aparecem de comum nos 3 Relatos Não
considerar a disposição das crianças para as atividades no início do
trabalho. Estar voltada para a elaboração e propostas de atividades
nos primeiros atendimentos". Portanto os grupos iniciais revelaram as
professoras preocupadas com atividades pré-estabelecidas, sem
estarem atentas ao que as crianças mostravam.
Outro ponto comum: "Desenvolver atividades perceptivas a partir
da própria experiência". Na Interpretação referente a cada professora
pode-se verificar que "a própria experiência", refere-se a sua
experiência como professora, a partir da qual eram selecionadas e
apresentadas as atividades perceptivas às crianças.
Apesar de ser um item assinalado nos 3 Relatos, não tinham para
as professoras, o mesmo significado. Na professora do Relato 1 sua
experiência provém de todas as situações de sua vida; na professora
do Relato II e III sua experiência refere-se ao seu aspecto profissional.
A primeira levava para o grupo sua experiência de professora de
deficientes visuais e de pessoa cega; a segunda levava sua
experiência de professora de deficientes visuais e de conhecedora do
campo musical (flauta). A primeira, para que as crianças aprendessem
a servir-se de líquido, orientava-as (através de sua experiência como
cega) a utilizar o som do líquido caindo no copo, como referência da
quantidade de líquido servido. A segunda levava (Relato III) a flauta
para que as crianças ficassem atentas aos sons advertindo-as do que
significava som agudo e som grave (a partir de sua maneira de
entender a que o som agudo e grave se assemelhava). Não contribuiu
com isso para o perceber do DV.. Nos itens referentes aos limites isso
vai aparecer: "Propor atividades a partir da própria experiência e
organização, dificultando a compreensão das crianças" (no Relato II e
III)".
Assim, a característica de levar a própria experiência em um
aspecto facilitou em um em outro limitou o perceber e relacionar-se do
D.V.. Pode-se dizer que facilitou quando a experiência perceptiva foi
levada ao grupo como ponto de discussão, abrindo espaço para que
cada participante também falasse de sua experiência (quer explorando
o objeto ou situação naquele momento, quer relatando o que já havia
feito em outros momentos).Pode-se dizer que limitou, quando a
experiência foi levada como informação normativa. Neste caso não era
considerada a exploração da criança, nem sua percepção e
organização - a informação que a professora levava permanecia
estanque, exterior à criança, pois não a considerava. Assim o D.V. não
elaborava o que a ele era dito, nada mudando na sua maneira de
perceber e relacionar-se.
Outro item assinalado nos 3 Relatos diz respeito à
responsabilidade das professoras ao compromisso assumido. Isso não
aparece nas Aconselhadoras. Talvez pelo fato dos Relatos terem sido
redigidos por elas, não houve menção à própria responsabilidade.
Aparece ainda como ponto convergente nas 3 Professoras o
"Pregar valores" (momentos que as professoras declaravam o que era
certo e o que era errado e como se deveria agir, a partir da própria
experiência, ou de princípios gerais). Pode-se dizer como no caso da
experiência perceptiva, que ao ser levado ao grupo como norma, sem
discussão a respeito, nada mudava no perceber e relacionar.se do
D.V..
Quanto as Aconselhadoras chama atenção como pontos
convergentes nos 3 Relatos o início do Atendimento. Nas primeiras
sessões vê-se que:
- tomaram iniciativas pelo grupo;
- levaram coisas prontas, sugerindo atividades e ficando presas a elas;
- não lidaram com as situações emergentes.
Esses pontos constituíram limites, isto é não contribuíram para o
perceber e relacionar-se do D.V. como é ilustrado nas situações
seguintes: E (Relato 1) mostrava-se desatento a aspectos de si próprio
e dos outros; C (Relato II) mostrava-se agitada, com dificuldade de se
dirigir ao outro e de se fazer entender; S (Relato III) revelava
dificuldade de explorar e lidar com objetos; C (Relato 1) faltava muito e
se mostrava descompromissado com o grupo.
Aparece em comum nos 3 Relatos, a dificuldade da Aconselhadora
de lidar com os sentimentos em relação às faltas (tanto das crianças
que não compareciam, como dos demais participantes do grupo).
Nas atitudes das Aconselhadoras, alguns aspectos que não dizem
respeito ao conjunto de suas atitudes apareceram em momentos
parciais. Por exemplo, está assinalado nas 3 Aconselhadoras - "Não
atender à solicitação de uma criança". Pela Interpretação referente a
cada Aconselhadora, pode-se ter mais claro o que isso significa: que,
no grupo, alguma criança não foi atendida na sua solicitação à
Aconselhadora, em algum momento desse trabalho de um ano letivo,
(uma vez pelas Aconselhadoras do Relato 1 e III e, mais
freqüentemente pela do Relato II).
Nenhuma outra característica, quer referente a atitudes, quer
referentes a recursos, é assinalada como ponto comum nas 3
Aconselhadoras ou nas 3 Professoras.
Chamam atenção na Convergência de Significados os itens em
comum, quanto a Possibilidades, dos Relatos I e III, como ilustram as
seguintes passagens: E (Relato 1) que se evidenciava pela
verbalização e intelectualização excessiva (sem iniciativa em
atividades motoras e plásticas) através das atividades para explorar
objetos (propostas pela Professora) e o diálogo sobre o que fazia
(coordenado pela Aconselhadora) revelou-se descontraído para
dançar e atento ao uso dos sentidos; S (Relato III) que revelava
dificuldade de lidar com objetos, através das atividades para explorá-los (propostas pela Professora) e o dialogar sobre o que se fazia
(coordenado pela Aconselhadora) passou a utilizar o tato, explorando
objetos e a locali zar-se espacialmente, utilizando os próprios recursos
para perceber o que a cercava; o grupo (Relato 1) mostrou-se mais
integrado, após atividades descontraídas que a Professora e
Aconselhadora trabalhavam, a partir do que emergia das situações; o
grupo (Relato III) revelou crescimento na autonomia a partir das
condições apresentadas pela Aconselhadora (que as crianças
opinassem sobre as propostas e andamento das atividades) e os
recursos da professora (que as crianças participassem na escolha e
andamento das atividades).
O Relato I não apresenta Convergência de Significados com os
Relatos I e III, a não ser no que já foi assinalado, e ao contrário desses
Relatos, mostra uma série de itens referentes a limites. Os trabalhos
desenvolvidos pela Aconselhadora e Professora, no Relato II, mais
limitaram do que abriram possibilidades às crianças.
Não se vai aqui repetir o que converge, nos Relatos I e III, porque
isso aparece na lista de Possibilidades. E, porém importante reiterar
que as características percebidas pela Aconselhadora e pela
Professora (não só da criança D.V., mas de si mesmas frente às
situações que vivenciaram) guiaram-nas para diferentes maneiras de
aproximar-se dos significados do D.V.. As características da criança,
não percebidas pela Professora ou pela Aconselhadora, num dado
momento e que foram percebidas num outro momento, revelaram,
para cada uma delas, respectivamente, suas próprias características,
possibilidades e limites. Por outro lado, evidenciaram que o grupo foi-se relacionando de forma mais dinâmica a partir das discussões sobre
a maneira que cada um percebeu objetos e situações, contando para
isso com a participação da Aconselhadora e da Professora.
Características ou situações, não percebidas permaneceram
inalteradas. O que não se manifestou, e não se falou porque ficou
obscuro para a Aconselhadora ou Professora, não contribuiu para o
perceber e relacionar-se do D.V..
Foi da reflexão sobre essas situações que constituíram
possibilidades ou limites, que começou a delinear-se uma orientação
para a educação do DV.
É importante enfatizar que acompanhando a maior espontaneidade
que a Aconselhadora e Professora foram adquirindo para trabalhar
com o grupo (desligando das atividades programadas) começaram a
surgir transformações nas crianças e também na dinâmica do grupo.
As mudanças iniciaram quando a Professora e a Aconselhadora se
voltaram para as crianças, (buscando suas facilidades, dificuldades e
interesse) propondo atividades e recursos que atendessem a essas
características. Buscaram e consideraram seus significados nessas
situações (retomando, reorganizando e fazendo perguntas);
trabalhando com elas nas atividades em que apresentavam
dificuldades; reformulando as atividades propostas quando estavam
além das possibilidades das crianças. Como ilustração pode-se citar a
Interpretação de A (Relato 1): Apercebeu características de E que a
incomodavam e falou sobre isso com a Aconselhadora e a Professora,
retraindo-se para expor diretamente a E. A Aconselhadora sugeriu a A
que levasse isso a ele. Desse modo A passou a se abrir mais falando
do que gostava e (ir) que não gostava naquilo que E fazia. Essa
atitude da Aconselhadora dc sugerir a A que falasse diretamente com
E foi um recurso para que se abrisse o diálogo no grupo e a
Aconselhadora deixasse de ser o centro de referência das crianças,
prejudicando a interação do grupo, Ao sugerir a A que falasse no
grupo, a Aconselhadora lidou com sua inibição nessa situação, e ao
mesmo tempo atendeu a preocupação da professora quanto a E
(torná-lo mais atento a si próprio e aos outros, evitando a excessiva
verbalização e intelectualização, lidando com suas dificuldades na
área corporal). No Relato III pode-se ver que essas atitudes da
Aconselhadora e Professora, de lidar com o emergente, foram
acompanhadas de mudanças nas crianças. Por exemplo, P no Relato
III revelou no início do atendimento 'falta de clareza na expressão de
suas percepções" e no final do atendimento "condições para expressar
suas percepções o que revelou uma transformação a partir dessas
atitudes e recursos apontados. Ainda no Relato III, S no início
apresentou uma série de "dificuldades ao lidar com objetos e a partir
da 7a. sessão passou a utilizar de forma descontraída, o tato, a
gustação, a orientação espacial (utilizando os próprios recursos para
perceber o que a cercava), verbalizando estar fazendo isso em suas
atividades de vida diária, em casa.
Nos Relatos I e III, em Possibilidades, é interessante chamar
atenção para alguns pontos no trabalho das Aconselhadoras e das
professoras, que apresentaram divergências. Serão feitas a seguir
referências a isso.
No Relato 1 a Aconselhadora revelou preocupação com a
expressão dos sentimentos, quer das crianças em relação às
situações, aos colegas, às atividades, quer dela própria e da
professora em relação às crianças e ao que se passava no grupo; no
Relato III a Aconselhadora revelou os próprios sentimentos, bem como
procurou clarear o que sentia e mostrou preocupação com os
sentimentos das crianças em relação às atividades que desenvolviam.
A leitura da Interpretação sobre as Aconselhadoras deixa claro que no
Relato 1 "sentimento' é um termo que se refere à disposição da
pessoa - seu estado de ânimo na situação. No Relato III "sentimento"
é um termo que surge ligado à percepção e organização de atividades
desenvolvidas pelas crianças. Este mesmo sentido aparece quando a
Aconselhadora refere-se à professora e a si própria; não buscou os
sentimentos (no sentido de disposição) mas sim de cognição. Ela
revelou preocupação com a disposição ao descrever as crianças, mas
suas atitudes, nos recursos, nas reflexões isso não apareceu. Mostrou
dificuldade de lidar com sentimentos agressivos, paralizando-se
nessas situações. Apesar dessa divergência, tanto no Relato 1 como
no Relato III as crianças apresentaram transformações no seu
perceber e relacionas-se. Isso reitera que o importante é trabalhar com
a criança, atenta ao que ela está mostrando, respeitando o que a
criança revela. Não é necessário ficar perguntando a ela como se
sente, mas estar atenta aquilo que ela mostra (ao fazer, falar,
expressar) e ter uma atitude condizente com o que foi percebido.
M no Relato 1 utilizou o lanche como um recurso para lidar com as
características das crianças D.Vs.. F no Relato III fez do lanche um
momento de descanso e nas últimas sessões aproveitou-o para
explorar o paladar. G no Relato II também fez do lanche um momento
à parte das atividades do grupo. Para o D.V. a maneira de alimentar-se é um dos aspectos dos hábitos da vida diária que ele precisa
adquirir, pois não o faz por imitação e precisa do outro para orientá-lo
nesse sentido. Isso é importante para que o D.V. possa compartilhar
das refeições como uma forma de convívio contribuindo para seu
relacionar-se. Apenas M lidou com esse aspecto. Além disso, o
paladar é tão importante para ser explorado como o olfato e a audição.
Este ponto também foi trabalhado por F no Relato III. Servir-se e servir
o outro é uma maneira de utilizar o tato e a audição, contribuindo para
o perceber e relacionar-se do D.V.. Este aspecto foi trabalhado apenas
por M no Relato 1.
Outra diferença entre os Relatos 1 e III diz respeito à comunicação
verbal e não verbal. Ficou em evidência no Relato 1 a excessiva
verbalização de E e o trabalho da Aconselhadora e da Professora com
a área corporal, para que ele entrasse mais em contacto consigo
mesmo e com os outros. No entanto as dificuldades verbais de C e D
não foram trabalhadas. Por outro lado a grande facilidade de D na
área corporal não foi aproveitada. No Relato III o grupo apresentava
menos divergências, mostrando-se mais harmonioso. A
Aconselhadora e Professora trabalharam o verbal e o não verbal,
atendendo às dificuldades das crianças do grupo de forma
homogênea. No Relato 1 as dificuldades foram parcialmente
atendidas, pois os limites de C e 1) na área verbal não foram
trabalhados. A Interpretação assinala a preocupação da
Aconselhadora e da Professora com C e D, porém evidencia que elas
não lidaram com essas dificuldades, O que sucedeu no grupo de
vivência do Relato 1 mostra de um lado uma facilidade que se tem
para trabalhar o verbal. Apesar da preocupação em trabalhar o n
verbal, o verbal ainda predominou. É interessante assinalar como as
características (das crianças, do grupo, da Aconselhadora e da
Professora) fizeram com que as situações decorrecem diferentemente
em cada grupo, frente à mesma preocupação (a de trabalhar o verbal
e o não verbal).
Uma outra diferença que convém mencionar é quanto ao trabalho
junto à professora. Houve um tempo de adaptação da Aconselhadora
do Relato 1 para trabalhar com uma pessoa cega. Por outro lado essa
experiência de que P dispunha caracterizou as atividades e a maneira
de trabalhar nas vivências. A professora M do Relato III por mais que
tivesse feito o Curso de Educação Especial e também desenvolvido
uma prática no atendimento da criança D.V., não poderia dispor da
experiência de P, professora cega.
O que ficou dito no item anterior, visto por um outro ângulo
evidenciou que: a Professora do Relato 1 trabalhou a partir de sua
vivência corno professora de D.V. e pessoa cega; a Professora do
Relato III trabalhou a partir de seu conhecimento sobre a pessoa cega
e atividades programadas para atendê-las. Isso apareceu em algumas
situações, como por exemplo, a que será exposta. M (Relato III)
quando introduziu objetos para exploração tátil, apresentou-os a partir
de uma graduação do mais fácil para o mais difícil, (tendo como
referencial os detalhes a serem percebidos). P (Relato 1) não teve
esse tipo de preocupação na exploração de objetos, em compensação
no jogo de bola falou de toda uma exploração de espaço a partir de
seu próprio referencial (dos recursos auditivos que utilizava para se
localizar). O nível de dificuldade da exploração, neste caso, foi
variando conforme ia emergindo das crianças. Isso mostra que M
partiu de uma atividade programada; P da situação emergente e da
própria experiência perceptiva, lidando com aquilo que apareceu na
atividade que a Aconselhadora ou as crianças propunham.
Ainda com relação às professoras: M propôs troca entre as
crianças de trabalhos produzidos por elas, para que entrassem em
contacto com maneiras diferentes do perceber e fazer; P lidou com
discussão sobre as experiências das crianças ao desenvolver um
trabalho cm conjunto como, por exemplo: na construção da cidade; na
brincadeira de passar mensagem.
Um último ponto que convém assinalar é referente à atitude das
Aconselhadoras na atividade grupal. No Relato 1, M revelou constante
preocupação em trabalhar o grupo como um todo, abrindo espaço
para discussões e trocas de experiências; no Relato III F não ofereceu
condições para o desenvolvimento de uma atividade grupal, na qual as
crianças estives sem envolvidas num objetivo comum; não conseguiu
lidar com a dinâmica e disposição grupal, prendendo-se ao significado
de cada criança e discussões sobre os mesmos.
O ponto central que a Análise evidenciou foi o seguinte: o trabalho
com o D.V. enfatiza a necessidade de compreendê-lo, isto é, estar
junto com ele, sem o olhar", na exploração daquilo que o rodeia.
Os dados registrados da pesquisa com videntes têm embasado o
trabalho com D.Vs. mostrado no Capítulo III. Como o D.V. percebe e
compreende tem sido avaliado por um referencial que não diz respeito
à sua maneira de entrar em contacto com as coisas que o rodeiam.
Os grupos de vivência deixaram claro que (quando a
Aconselhadora e a Professora trabalharam a partir das características
das crianças, e de suas experiências perceptivas, no seu nível de
possibilidades) as crianças realizavam e se transformavam. Frente a
essa atitude da Aconselhadora e da Professora as crianças percebiam
outros aspectos da situação e eram capazes de falar sobre isso e
ouvir s colegas. Quando as atividades eram trazidas, sem levar em
conta a experiência perceptiva e as características das crianças, elas
não eram capazes de fazer o que era proposto e permaneciam da
mesma maneira sem transformações.
Esta Pesquisa fornece, pois, dados iniciais para uma orientação
educacional cujo ponto central é a experiência perceptiva do D.V., e a
maneira de se, aproximar dele na exploração das coisas que o
rodeiam, como ele o faz. Evidentemente não se pretendeu
transformações definitivas nas crianças que participaram dos grupos,
mas sim explorar o "perceber e relacionar-se do D.V. e os recursos
que o auxiliam nesses aspectos". A avaliação não se propôs, portanto,
ir além daquilo que ocorreu nessas situações de vivências. E um
estudo exploratório do perceber e relacionar-se do D.V., para
levantamento de recursos que o auxiliam. Constituiu apenas uma
etapa de compreensão e interpretação do fenômeno o perceber e
relacionar-se do D.V. e o que o auxilia nesses aspectos.
A análise dos Relatos, sobre os grupos de vivências realizados nas
Escolas, evidenciou que os D.Vs. participavam criativamente das
atividades quando estas eram introduzidas a partir de suas
experiências; quando a Professora e a Aconselhadora ouviam o que
tinham a relatar do percebido dos objetos e situações no seu dia adia.
Nesses momentos, para comunicar-se com eles, tanto verbalmente
quanto nos contactos corporais, expressavam-se na totalidade do que
sentiam e pensavam presentes na situação, organizando-a e
compreendendo-a e posicionando-se frente a ela. As tentativas de
transmitir "representações, ou seja, imagens ou conceitos através de
definições distanciadas da experiência, revelaram limites na
comunicação; as palavras eram faladas, mas o diálogo não acontecia
e a participação nas atividades eram passivas.
Ficou evidenciado que o sentido da expressão do D.V. (do gesto ou
da palavra) era compreendido pela Professora ou Aconselhadora,
quando retomado no conjunto de sua ação (na maneira pela qual
usava seu corpo na situação e na relação que ele estabelecia com os
objetos ou pessoas). Quando compreendido ele participava
ativamente das atividades e sugeria alternativa, enriquecendo as
situações, tornando perceptíveis aspectos que haviam ficado
desapercebidos aos outros. Nem sempre, porém isso sucedeu, e
algumas vezes a maneira pela qual o D.V. usava seu corpo e se
expressava não fazia com que se comunicasse com os outros
participantes do grupo. Na análise dos relatos ficavam então
levantadas novas perguntas para investigação sobre esses pontos.
Muitas outras perguntas poderão ainda ser levantadas a partir da
leitura desta análise e dos relatos, possibilitando que outras
interpretações sejam feitas, propiciando o diálogo e ampliando a
compreensão sobre "o perceber e relacionar-se do D.V..
Da existência dos grupos de vivência emergiu o sentido que aparece
nesta Interpretação - urna etapa de compreensão do "perceber e
relacionar-se do D.V."
F. As Questões exigem repetição
Para o desvelamento de outras possibilidades que o fenômeno "o
perceber e relacionar-se do D.V." encerra é necessário trazer de volta
a interrogação sobre ele.
Esta Pesquisa foi realizada para se saber sobre o D.V. e oferecer à
professora especializada maiores possibilidades de orientar sua
educação.
A descoberta do sentido - dado pela interpretação da análise dos
Relatos implica a indicação de uma meta, de um projeto norteador da
ação do D.V..
Não se situando meramente no plano teórico, mas profundamente
engajado na existência, este Projeto - apresentado no Capítulo V - traz
de volta uma interrogação.
Projeto de Orientação Educacional do D.V.
Para Professoras Especializadas
Projeto significa antecipação de uma possibilidade da experiência
humana. Ele emerge da transcendência - do movimento de
transformação de uma situação de fato - fruto da reflexão sobre o
vivído. Assim a projeção, esta orientação à ação é um elemento
constitutivo da relação.
O Projeto aqui apresentado emergiu da reflexão sobre grupos de
D.Vs. e constitui uma orientação à ação educativa da professora
especializada; desigua o que a professora especializada tende a se
modificar, bem como a modificar no que a rodeia, na orientação do
D.V. em sua educação.
A. Expondo o Projeto
Este projeto constitui o encerramento do presente trabalho.
Emergiu da interpretação fenomenológica de uma pesquisa. Se de um
lado é a conclusão de uma etapa de compreensão de um fenômeno,
de outro ele é a abertura de novas possibilidades e interrogações que
contribuirão para maior compreensão desse fenômeno. Ao recusar-se
assim a cristalizações, esta pesquisa fenomenológica cumpre sua
verdadeira tarefa de estar no mundo interrogando-o.
Inicialmente serão retomados alguns pontos evidenciados pela
Pesquisa e que reiteram aspectos da "Fenomenologia da Percepção",
citados no Capítulo IV. Em seguida serão sintetizadas condições para
saber do D.V. e compreendê-lo. Posteriormente serão apontados
alguns itens que requerem atenção do educador.
1. Circunstâncias para delineamento
Ao mostrar, que as transformações do D.V. ocorriam em situações
educacionais onde suas experiências eram consideradas, a Pesquisa
reiterou a necessidade de: partir da "facticidade" do educando e de
reencontrar o contacto ingênuo com o mundo, que fala antes do
conhecimento, para só depois ir aos dados da ciência (representativos
e dependentes do vivido).
Nos momentos de espontaneidade, o D.V. mostrou sua maneira
própria de perceber e organizar aquilo com que lidava, sem a
utilização de gestos ou palavras provindos de informações distantes
de sua experiência. Isso enfatizou a importância de se retornar à
percepção original do D.V., esse fundo sobre o qual seus atos se
destacam.
As discussões nos grupos (sobre as experiências perceptivas e
sobre as maneiras próprias de cada um realizar atividades) mostraram
diferentes significados atribuídos às mesmas situações ou objetos.
Com isso ficou assinalado que o vivido comporta o poder de
ultrapassar-se em significações. A partir daí é válido dizer que o
estabelecimento de objetivos educacionais (definidos em termos de
comportamentos esperados, ou aquisição de representações ou
conceitos) constituem limites para se saber do D.V..
A comunicação no grupo (quer através da fala, quer através do
gesto) se fazia possível quando todos compartilhavam de um campo
de reciprocidade, onde eram respeitadas as maneiras próprias de
cada um. Isso renovou a importância de reconhecer o D.V. na sua
experiência humana e na sua fala sobre ela, estabelecendo-se o
diálogo sobre outras dimensões (ângulos percebidos, sem o olhar).
A análise fenomenológica mostrou que o importante é reconquistar
a condição de habitante do mundo, a partir da qual há situação,
compreensão, interpretação.
Só retomando a totalidade das situações vivênciadas pelo D.V.
com a professora, aconselhadora e colegas, foi possível compreender
sua maneira própria de perceber e comunicar-se. Para isso a
aconselhadora, no relato, buscou decifrar seus próprios valores,
conceitos, definições e disposições, para poder perceber o que era do
D.V.. Só 'assim nessa Interpretação (quando pode decifrar os próprios
símbolos na relação) pode compreendê-lo.
A partir da Análise dos relatos, sobre as situações vividas em três
escolas, é que se obteve compreensão do "perceber e relacionar-se
do D.V.". Esta Interpretação da Pesquisadora e auxiliares, é que
definiu as sugestões apresentadas a seguir.
2. Sintetizando condições para a educação do D.V.
1.º) Saber do D.V é voltar-se para seu mundo vivido - prévio ao
conhecimento - buscando:
- recuperar o nascimento do sentido, descrevendo com palavras do
cotidiano o que sucede com a criança nas diferentes situações, da
maneira que estas vão se apresentando.
- descrever a totalidade do que aparece em cada situação (o que ele
diz, da maneira que o faz, sua entonação de voz, seus gestos, suas
expressões, nas relações com os outros e com os objetos que o
cercam.
2.º) Compreender o D.V requer atenção a seus diferentes modos de
ser e a transformação de concepções, como as seguintes:
- a racionalidade passa a ser vista como um dos modos da criança e
que se manifesta no que ela faz, nas relações com os outros e com as
coisas a seu redor;
- a definição "homem animal racional", que reduz sua identidade a um
modo único de ser, é rejeitada;
- a relação cognoscitiva, que subentende a existência prévia de uma
consciência constituinte do objeto (fundada na concepção de um ser
que pensa e de algo que é pensado) é deixada de lado;
- o solipcismo de cunho intelectualista e a crença na construção do
objeto por parte do sujeito são substituídos pela afirmação da pré-
existência do mundo, em cada situação sobre a qual se pensa;
- a percepção, nas perspectivas da objetividade (do mundo existente
em si) e da subjetividade (do mundo existente para uma consciência)
da lugar a experiência perceptiva - contacto primeiro com o mundo,
fundo de todos os atos.
- o sujeito da percepção entendido como consciência é substituído
pelo corpo-sujeito e assim a relação sujeito-objeto que era de
conhecimento dá lugar a uma relação segundo a qual o sujeito é seu
corpo, seu mundo e sua situação.
3. Pontos que demandam atenção:
- Na comunicação, a predominância da visão sobre os outros sentidos,
bem como do verbal sobre o não verbal, faz com que os
conhecimentos (percepções e intelecções) não acessíveis ao D.V.
sejam utilizados pelo vidente ao falar com ele. Isto faz com que o D.V.
desenvolva uma linguagem e uma aprendizagem conduzida pelo
visual. Como os dados não provém de sua experiência não podem,
portanto ser organizados por ele, ficando a nível de verbalismo e
aprendizagem mecânica.
- Para que o D.V. organize o mundo ao seu redor e nele se situe
precisa dispor de condições para explorá-lo. As situações
educacionais necessitam estar organizadas de maneira que o D.V.
use o mais possível todas suas possibilidades (táteis, térmicas,
olfativas, auditivas, cinestésicas) e fale sobre essa experiência
perceptiva.
- A maneira do DV. relacionar-se com a professora é importante para
que ele utilize e amplie suas possibilidades. A atitude da professora
poderá ser de tutelar ou proteger o D.V. dando-lhe informações
diretivas sobre o que fazer, impedindo-o de explorar o ambiente para
conhecê-lo e conhecer-se; ou poderá ser aquela na qual, como
vidente, se posicione frente ao D.V., ouvindo-o (acompanhando o que
ele faz nas diferentes situações) contribuindo no que for possível para
que ele encontre seus próprios meios de agir e superar obstáculos.
Esta relação emancipatória requer por parte do educador, clareza
sobre sua própria maneira de ser frente ao D.V., refletindo sobre sua
ação educativa.
B. Seu lugar na Educação Paulistana
Não tenho aqui a pretensão de discutir a abrangência da orientação do
D.V. na cidade de São Paulo. O que me proponho tão somente é
responder a algumas possíveis perguntas sobre a viabilidade deste
projeto nas escolas públicas e particulares que educam o D.V..
A preocupação central deste trabalho é a de mostrar que nas
pesquisas e propostas educacionais não se parte da percepção
daquele que não dispõe da visão; desenvolvem-se atividades
educativas a partir do vidente. Esta Pesquisa revelou um caminho
para educar o D.V. - partir da vida dele, do que já experienciou -
utilizando para isso situações e recursos do cotidiano da criança, onde
ela fale de sua experiência perceptiva.
É, pois prioritário: mostrar a cada um que desenvolve atividades
junto ao D.V., a importância de buscar o "lugar" dele; ouvi-lo sobre sua
maneira de perceber e conhecer. E um convite para o profissional em
serviço refletir sobre sua ação: como fala; o que propõe; como sente e
pensa em cada situação junto ao D.V., para percebê-lo nesses
mesmos aspectos, sem distorcê-lo.
De diferentes formas, como já foi dito, este Projeto se propõe com
o professor, desocultar o que o impede de saber sobre o D.V. e buscar
com ele os caminhos para sua ação educativa. Constitui uma tentativa
de retornar ao simples, de ver a criança na sua própria maneira de se
mostrar, sem outros referenciais; de considerar se os programas
estabelecidos, os procedimentos hierarquizados, as explicações
científicas desviam sua atenção daquilo que a criança faz e diz ao
expressar-se, oralmente ou por gestos; e de buscar (frente ao que for
percebido das características do D.V.) recursos próprios para ampliar
seu perceber e relacionar-se com as pessoas e objetos ao seu redor.
Voltado para a professora na sua relação com o D.V. -
considerando sua experiência própria - este Projeto se oferece a cada
clientela de acordo com o que ela traz de sua prática, com suas
perguntas e propostas. Propõe desenvolver com a professora uma
reflexão sobre a específica situação educacional onde ela se encontra
- sobre seu falar, agir e fazer junto ao aprendiz - lidando com as
possibilidades e limites aí presentes para a educação significativa do
D.V.
1.
O utópico lugar do D.V. na Educação
A fenomenologia hermemêntica chama atenção à polissemia dos
sentidos. Diversos aspectos se articularam neste caminho, trazendo
diferentes sentidos, para chegar-se à compreensão sobre o D.V.,
possibilitando a organização deste Projeto.
Seguindo o pensamento de Rezende (1984), vou denominar tópico
a cada um dos diferentes aspectos que se referem a cada uma das
experiências (dos que participaram das vivências e discussões,
buscando os horizontes dos D.Vs. nesta Pesquisa). Do grego topos,
tópico diz respeito ao lugar de determinada experiência, i.e., lugar no
mundo definidor do sentido da existência. Assim esses diversos
tópicos compondo uma estrutura nessa situação educacional do D.V.,
articularam-se (transformando-se e complementando-se) até formar
uma moldura, um horizonte, sobre seu "perceber e relacionar-se" -
interpretação que deu origem a este Projeto.
Como afirma Rezende ao lado dos tópicos surge o u-tópico, o outro
que aparece e não tem ainda lugar no sistema atual. A utopia no
sentido concreto "diz respeito às pessoas, grupos e classes que por
definição não tem lugar no sistema"... "... são integrados no sistema na
forma paradoxal do deslocamento. Os deslocados são os u-tópicos do
sistema São os outros. São o outro do sistema"... "Eles são o sinal do
sentido que falta ao sistema..." (Rezende 1984- grifos meus).
Considerando a educação do Q.V. no Sistema da Educação, pode-se dizer que ela aí se integra forma de deslocamento, como mostram
os dados do Capítulo III. Ao restituir ao D.V. a sua fala, do "seu lugar"
numa situação educacional, ele pode ser visto como o outro do
sistema... uma outra fala, sinal do sentido que falta à Educação.
Este Projeto pode ser visto como uma humilde colaboração para
recobrar esse sentido.
C. Continuando um caminho...
Penetrar no mundo percebido pelo D.V. é tão difícil quanto fazê-lo
perceber o mundo, como o vidente o faz. Se a professora
especializada experienciar isso, estará já em condições de iniciar seu
trabalho - ou seja, estará possivelmente se perguntando: "O que esta
criança portadora de deficiência visual; sentada ao meu lado, percebe
e sabe desta sala onde está?" "O que ela conhece, 'sem o olhar',
poderá ser dito para mim, que conheço com 'o olhar'?" "O que eu
conheço com o 'olhar' poderá ser dito a ela?...". Colocando-se frente a
essas questões, a professora estará apta a buscar, com a criança,
recursos para que esta desenvolva suas próprias possibilidades, de
perceber e relacionar-se no seu pensar e agir.
Para saber das possibilidades e limites deste Projeto é necessário
acompanhá-lo na orientação do trabalho cotidiano da professora junto
ao aluno.
Esta busca de uma educação significativa para o D.V. definiu-se
pela busca do sentido daqueles que vivem sem a visão. Sentido que
por não se esgotar em nenhuma das situações experimentadas, exclui
a possibilidade de uma interpretação unívoca e única sobre o portador
de deficiência visual e a orientação de sua educação.
Este Projeto abre diante dos que lidam com a educação especial
um horizonte - um caminho a ser percorrido e do qual só se saberá
quando discutido a partir da reflexão dos que o percorreram e das
discussões sobre suas Interpretações, que abrirão outros horizontes
para se saber do portador de deficiência visual, de seu perceber..., de
seu relacionar-se..., de seu conhecer...
É uma nova etapa a ser pesquisada... e que terá início, para mim,
em
1990. [Observação: Esta proposta tem constituído fundamento de
projetos junto ao deficiente visual, a pais e professores, bem como
referência básica para formação de professores (no Estada de São
Paulo e outros Estados), desde 1990.]
Que da aceitação das diferenças nasça à compreensão -
Marcela Saizano Masini
Aprendizagem significativa - conhecimento adquirido a partir da
própria experiência, possibilitando ao aprendiz compreender através
cia elaboração dos fatos.
Aprendizagem mecânica - informação desarticulada da experiência do
aprendiz, que ele utiliza repetitivamente.
Atitude natural - atitude estabelecida culturalmente, sem reflexão, sem
voltar-se para a experiência própria, privilegiando assim a
"objetividade".
Campo - estrutura da rede de significados refere-se ao Sujeito em
situação.
Campo fenomenal - o vivido, constituído pelo que está próximo a partir
de um horizonte.
Compreender - encontrar acordo entre aquilo que se visa e o que é
dado, entre a intenção e efetuação pelo corpo.
Consciência - é a presença do sujeito no mundo, abertura ao outro
como a si mesma, destinada ao mundo, um mundo que ela não
abarca e nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se
dirigir.
Corpo - entendido como fonte de sentidos, sujeito da percepção na
sua estrutura de relação com as coisas ao seu redor. Rede de
significados.
Corpo próprio - expressão usada para referir-se à experiência corporal
própria de cada um.
Descrição - um caminho de aproximação do que se dá, da maneira
que se dá e tal como se dá. Refere-se ao que é percebido, do que se
mostra (ou do fenômeno). Não se limita à enumeração dos fenômenos
como o positivismo. Experiência perceptiva - o engajar-se com o corpo
próprio entre as coisas que coexistem com o sujeito, como sujeito
encarnado.
Existência - consciência enraizada na vida intencional, sua
organização típica e sua estrutura concreta na contingência das
perspectivas vividas.
Fenômeno - o que se mostra como é, ou que se mostra a si mesmo.
Fenomenologia - estudo do fenômeno.
Fenomenologia existencial - estudo do fenômeno nas contingências
das perspectivas vividas.
Fenomenologia hermenêutica - estudo do fenômeno e sua
interpretação, que consiste em por a descoberta os sentidos menos
aparentes, os que o fenômeno tem de mais fundamental.
Homem natural - que adota a atitude natural.
Horizonte - o mundo de significados do sujeito.
Imanente - que está contido em ou emerge em situação, independente
de determinantes.
Interpretação - trabalho do pensamento que consiste em decifrar o
sentido aparente, em desdobrar os sinais de significação implicados
na significação
literal.., há interpretação onde houver sentido múltiplo e é na
interpretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta.
Mundo - horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar,
antes de qualquer pensamento; campo que contém os significados
próximos e distantes.
Orientação - ação de tornar clara a origem; na orientação educacional,
diz respeito à relação educador-educando, que possibilita a este
revelar-se na sua própria maneira de ser.
Perceber - ação que se dá na experiência perceptiva.
Percepção - experiência original do corpo com o mundo ao seu redor;
ao entrar em contacto com o objeto, o indivíduo entra em contacto
consigo mesmo.
Possibilidades - diferentes maneiras de ser do indivíduo, manifestas
no seu pensar, sentir e agir.
Projeção - função pela qual o sujeito dispõe diante dele um espaço
livre onde o que não existe naturalmente passa a tomar um aspecto de
existência.
Projeto - antecipação de uma possibilidade de experiência humana,
direção traçada pela consciência, orientação para a ação, engajado na
existência e assim transformador e aberto a transformações.
Reflexão - esforço para apreender o sentido ou essência do vivido.
Repetição - retomada de um tema, com as transformações que nele,
como projeto, ocorrem.
Sentido - totalidade das relações significativas do sujeito numa
situação;
Sujeito sempre orientado no seu agir.
Significado - organização que o indivíduo faz a partir de sua maneira
própria de pensar, sentir e agir, à medida que se situa no mundo e aí
estabelece relações.
Símbolo - estrutura de significação em que um sentido direto, primário,
literal, designa por acréscimo outro indireto, secundário, figurado, que
não pode ser entendido senão através do primeiro.
Transcendência - movimento pela qual a existência retoma e
transforma uma situação de fato.
Utópico – deslocado do sistema, sinal do sentido que falta ao sistema.
Verbalismo – aplicação do sistema verbal sem dispor de significados.
-
AMIRALIAN, Mana Lúcia T. M. A reorganização perceptiva dos
deficientes visuais e sua implicação para a aprendizagem. [São
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HALL, E. A dimensão oculta. 2 ed. São Paulo: Francisco Alves, 1984.
Diálogos sobre desenhos em relevo: um elefante, um galo, um sapo,
uma faca e um queijo
São transcritas a seguir partes de algumas entrevistas sobre os
desenhos. Os diálogos apresentados são com as seguintes pessoas:
J - Cega. Funcionária da Biblioteca Braille do Centro Cultural
Vergueiro
MD - Cega. Funcionária da Biblioteca Braille do Centro Cultural
vergueiro.
P - Portadora de visão subnormal. Aluna da Habilitação de Ensino de
D.V. da USP.
ELEFANTE - "Caminho Suave" (Alfabetização pela Imagem)
J. - Acho que é um bichinho.
E. - Você consegue perceber qual?
J. - Aqui é o rabo, aqui é a cabeça (mostra partes que não
corresponde a figura).
Não, não sei o que é.
M.D. - Eu não sou boa de bicho, mas como virou para cá, aqui parece
um rabinho.
Vou chutar. E o elefante?
E. - E! Como você percebeu?
M.D. - Primeiro achei um rabinho, depois fui procurar a cabeça, não
achei. Achei outro rabo. Então é um elefante, virado para cá (aponta
a figura, mas não há correspondência entre o que diz e a
ilustração). E. - É isso que quero que você me diga se consegue
perceber.
E. - Só que aqui não é um rabo.
M.D. - Não?
E. - Não. Isto aqui é a continuação do pescoço dele. Aqui está a
orelha.
R. - Não dá para perceber.
SAPO - "Tempo de Escola"
J. - O que é isto aqui? Meu Deus! O que serão estas coisas aqui do
lado?
Não sei não.
E. - E um sapo. Você já teve algum contacto com figura de sapo?
J. - Com bichinho de feltro sim. Mas isto aqui não dá para "passar" que
é sapo.
M.D. - Nenê?
E. - Não é importante que você acerte. Eu nem acho que é fácil
perceber (esse comentário foi feito porque M.D. respondeu
rapidamente sem explorar tatilmente).
M.D. - Sabe porque eu achei? Porque aqui estão as perninhas abertas
e os bracinhos. E um bicho não é?
E. - É um bicho.
M.D. - Ah! Uma tartaruga?
E. Não.
M.D. - Sei lá que bicho é esse.
R. Difícil. Não consigo perceber o que é. Cabeça bem grande, não dá
para identificar...
QUEIJO E FACA – "Caminho suave" (Alfabetização pela imagem)
J. Isto é uma faca.
E. É.
J. O que é esse troço no meio?
E. É isso que quero que você me diga se consegue perceber.
J. Deve ser algum outro utensílio, mas este outro troço aqui no
meio...Não dá!
E. - É um queijo fresco, faltando uma fatia.
J. - Dá uma gargalhada.
E. - Vou colocar suas mãos, pois são dois desenhos que formam um
par (isso foi dito porque M.D. havia parado com a mão direita sobre
uma parte do desenho).
M.D. - Ah! Xícara e pires.
E. - Não.
M.D. - E uma faca e uma tábua de cortar carne.
E. - A faca você reconheceu.
M.D. - Ah! Este não dá para saber.
E. - Vou dizer para ver se você reconhece. É um queijo fresco,
faltando uma fatia.
M.D. - Ah! Não dá, não.
R. Não sei.
E. Se eu disser a você que é um queijo e uma faca, dá para
identificar?
R. A faca eu percebo, mas o queijo não.
E. - Não? Nem sabendo o que e a figura?
R. - Difícil perceber pelo tato o que é esta linha. Fica ligado a outro
lado. (R. tem visão subnormal, esforça-se para ver o desenho.
Não enxerga. Desenho para R a figura aumentada, com lápis bem
grosso). Ela vê a figura e diz: Isto que representa a fatia ausente, na
figura, em relevo, fica preenchida por pontinhos. Não representa o que
está faltando.
GALO - "Tempo de Escola"
J. - Meu Deus! Isto aqui parece os pés de alguma coisa, de algum ser.
Que ser é esse, isso eu não sei. Ele pode ser até bonitinho, mas para
a gente não '"assa" nada.
E. - Isso aí é um galo de perfil, todo cheio de desenhinhos. Veja se
consegue perceber. O pé você percebeu.
J. - Pé ainda dá para perceber que é pé, o resto é impossível. A
diferença entre uma cartilha e a outra é que nesta as figuras são
cheias e na outra são só contorno.
E. - O fato de ser cheia facilita ou complica?
J. - Para mim tanto faz.
M.D. - É um galo.
E. - Como você percebeu?
M.D. - Por causa do rabo e da crista.
E. - Você foi à primeira pessoa que eu encontrei capaz de perceber
essa figura.
M.D. - Eu percebi porque já vi galo. As outras não perceberam porque
não tem tato desenvolvido. Pus a mão aqui, achei a crista e depois o
rabo e aí já sabia.
R. - Difícil.
E. - Difícil? Dá para você ter alguma noção ou não?
R. - Isso aqui como pata parece muito grande. Está desproporcional.
Não sei.
E. - Vou dizer o que é e você vai tentar localiza. É um galo.
R. - Aqui seria as penas? A cauda aqui. A cabeça... não entendi. Não
dá para perceber.
E. - E uma estilização.
R. O que e isto? É olho? E muito confuso para mim. E aqui o que é?
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O PERCEBER E O RELACIONAR-SE DO DEFICIENTE VISUAL
= Orientando professores especializados =
de Elcie F.Salzano Masini
BRASÍLIA - COORDENADORIA NACIONAL PARA INTEGRAÇÃO DA PESSOA
PORTADORA DE DEFICIÊNCIA
Δ
12.Nov.09
publicado
por
MJA
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