Apresentação
Não vou dar início a este trabalho indicando, de antemão, a sua
proposição de maneira conclusiva.
Quero, antes, reportar-me às causas da escolha do tema. Foram várias,
mas, em primeiro lugar, estão algumas questões que ao longo dos meus
anos como psicóloga têm sido recorrentes à minha preocupação.
Estas questões poderiam ser assim formuladas.
De que modo a cegueira afeta a personalidade do sujeito? Como uma
criança cega estabelece suas relações objetais? Como se estrutura o seu
ego? Como são as imagens mentais dos cegos? O cego sonha? Como fazer
psicodiagnóstico de pessoas cegas? Estas e muitas outras questões têm
sido levantadas por psicólogos e outros profissionais, ao se depararem
com um sujeito portador de deficiência visual. E elas têm sido, sem
dúvida, os pilares de meu desenvolvimento profissional.
Durante minha formação, ainda como estudante, fui convidada por um
professor para estagiar em uma instituição para cegos. Ao primeiro
contato com o trabalho, senti-me totalmente perdida: pouco sabia sobre
psicologia, e nada sabia sobre cegos. Grande foi a minha surpresa ao
constatar que o intuito da instituição era organizar um setor de
psicologia, e a minha contratação atendia a este propósito. Desde então,
o aprofundamento de meus conhecimentos psicológicos se entrelaçou com o
conhecimento e a compreensão dos sujeitos deficientes visuais.
Considero, portanto, que tal compreensão sempre se constituiu para mim
como o esqueleto de meu desenvolvimento profissional e o aprofundamento
de meus conhecimentos em psicologia.
Ao longo do meu trajeto, minhas concepções a respeito dos sujeitos
deficientes visuais sofreram mudanças, na busca de respostas para as
questões que desde o início me preocuparam: de que forma sujeitos com
uma limitação tão séria, ausência ou limitação da percepção visual,
conseguem alcançar altos níveis de desenvolvimento pessoal? Como esta
ausência ou limitação interfere na organização de sua personalidade?
Existem características comuns a este grupo de sujeitos? Relembrando
minha atitude ante os sujeitos deficientes visuais, vislumbro diferenças
claras que apontam para as mudanças surgidas em cada uma das fases, as
quais me conduziram às preocupações atuais e a uma tentativa de
respondê-las por meio de caminhos diversos.
Identifico o primeiro momento da minha busca como o de uma preocupação
centrada em apontar as semelhanças entre os sujeitos deficientes visuais
e os ”normais”. Meus estudos tinham por intuito verificar, e provar, que
os deficientes visuais eram em tudo semelhantes aos videntes, e que
apenas não enxergavam. Esta era a filosofia subjacente àquele momento. A
literatura especializada a que tínhamos acesso mostrava uma preocupação
em indicar as semelhanças com os não cegos. Muitos especialistas se
preocupavam com a criação ou adaptação de recursos instrumentais, fosse
para minimizar a ausência ou a limitação da percepção visual, fosse para
possibilitar a sua utilização pelos cegos.
Por outro lado, até a década de 60, poucas instituições havia, no
brasil, para o atendimento de pessoas portadoras de deficiência
(mazzotta, 1989), e essas eram, na maioria das vezes, instituições
surgidas do esforço pessoal de sujeitos portadores de deficiência, ou de
seus pais. O objetivo dessas instituições era a organização de serviços
educacionais ou de reabilitação, mas uma de suas preocupações básicas
era a luta contra os estigmas e preconceitos.
O segundo momento, eu o identifico como aquele em que, no decorrer do
trabalho direto com crianças, jovens e adultos deficientes visuais,
comecei a verificar que o impacto da deficiência trazia conseqüências
diretas e indiretas sobre o sujeito, nas variadas situações da vida.
Propus-me à compreensão e ao estudo das diferentes funções que o ser
humano desenvolve no desenrolar das suas ações. Foi a ocasião em que me
dediquei ao estudo do desenvolvimento das funções perceptivas, motoras e
cognitivas, assim como ao estudo do desenvolvimento emocional e do
impacto da deficiência sobre elas.
Nessa época, deixei a instituição para cegos e comecei a trabalhar no
serviço de Educação Especial da Secretaria da Educação do Estado de São
Paulo, como supervisora da equipe técnica de estudos psicológicos. Nossa
clientela abrangia crianças e jovens portadores de deficiência mental,
auditiva, física, além daqueles com problemas visuais.
iniciei, também, o atendimento clínico em consultório, por sentir
necessidade de contato direto com clientes.
O psicodiagnóstico passou então a ser minha preocupação primordial.
Acreditava que a análise das funções perceptivas, motoras, cognitivas e
de linguagem, inter-relacionadas às condições afetivoemocionais,
possibilitaria a apreensão dos fatores perturbadores e das angústias
básicas do sujeito.
O diagnóstico diferencial de crianças com distúrbios de aprendizagem é
uma tarefa profissionalmente enriquecedora. Sem dúvida, discriminar se
determinada função está prejudicada pelas condições físicas e/ou mentais
do sujeito, ou se este prejuízo se instalou secundariamente a uma
relação conflituosa entre o sujeito do diagnóstico e seus familiares,
professores ou vizinhos, exige um aprofundamento nos conhecimentos das
funções psicológicas e também o cultivo da ”atenção flutuante” (Freud,
1914) e dos processos mentais tão bem descritos por Trinca (1983) em seu
texto sobre o pensamento clínico em diagnóstico da personalidade.
Assim, aprofundei meus conhecimentos sobre as funções perceptivas,
motoras e cognitivas dos sujeitos deficientes visuais, e procurei
relacioná-las às condições afetivo-emocionais. A experiência da prática
psicoterápica, com sujeitos cegos ou não, ajudou-me a ampliar minha
compreensão sobre a personalidade dos sujeitos portadores de deficiência
visual.
No limite desta fase coloco minha dissertação de mestrado: ”O
psicodiagnóstico do cego congênito: aspectos cognitivos” (1986).
Considero-a no limiar dos meus conhecimentos posteriores porque, ao
aprofundar-me no estudo dos aspectos cognitivos do cego, verifiquei a
enorme variedade de conclusões discrepantes a respeito do seu
desenvolvimento (capítulo 1.3). Além disso, pude observar que, com
freqüência, os estudos e as pesquisas sobre o desenvolvimento das
crianças cegas estavam propostos a partir de uma comparação com o
desenvolvimento das videntes. Na mesma direção, as propostas de ensino
para seu desenvolvimento, aprendizagem e reabilitação tinham por
objetivo instrumentalizá-las para que se tornassem, o mais possível,
semelhantes às que enxergam, às ”normais”.
Esse trabalho levou-me à compreensão de que a reorganização perceptiva
exigida pela limitação ou ausência da visão (Amiralian, 1985) fazia com
que o processo de desenvolvimento cognitivo do deficiente visual se
constituísse por outros caminhos, e de que a comparação dos sujeitos
cegos com os videntes era no mínimo inadequada. Por outro lado, a
preocupação em torná-los o mais possível semelhantes aos videntes
indubitavelmente os qualificava para todo o sempre como pessoas
deficientes em relação aos videntes.
Isso me levou a construir o que chamo de terceiro momento na minha
concepção sobre sujeitos deficientes visuais, em que as mesmas questões
iniciais são propostas, mas com profundas diferenças: como é o processo
de constituição de sujeitos cuja apreensão e relação com o mundo se dá
por outros sentidos, na ausência ou limitação da percepção visual? as
características comuns a esse grupo se devem à condição orgânica de
limitação visual ou ao significado social da cegueira? Esta nova
formulação mostra as mudanças ocorridas na construção do meu
conhecimento e na minha concepção de sujeito psicológico, cego ou não. E
assinala a importância da compreensão do sujeito por meio de sua
expressão, na busca de apreendê-lo, tanto quanto possível, com uma
atitude isenta de qualquer idéia anteriormente concebida.
Essas questões guiaram e organizaram a realização deste trabalho.
Para compreender o que significa ser cego, considerei que nada seria
melhor do que um resgate do significado da cegueira. Um exame sobre as
concepções populares e literárias do lugar determinado para as pessoas
cegas poderá nos esclarecer sobre os mitos e simbolismo da cegueira.
Poderia também nos ajudar a perceber o quanto as instituições,
organizadas para ajudá-los, assim como nós, profissionais que nos
preparamos para servi-los, e também os próprios sujeitos cegos, estamos
inconscientemente mergulhados em conceitos estruturados a partir da
simbologia da visão e sua antítese, a não-visão, e nos conscientizar
sobre o quanto isso determina nossas atitudes para com a cegueira e a
pessoa cega.
Os conceitos expostos no capítulo 1.1 serão o pano de fundo sobre o qual
se construirão os outros elementos que permitirão a compreensão do
sujeito cego.
Não podemos, todavia, ignorar os conceitos médicos e educacionais da
cegueira. O conceito médico, do lugar daquele que conhece as condições
físicas sadias do ser humano, é importante para a compreensão das causas
determinantes das perdas visuais, e das decorrências de algumas doenças,
como perdas visuais progressivas ou incidência de dor, que acompanham
certos casos: mas essa visão cartesiana do sujeito nos impede uma
compreensão holística a seu respeito. De forma semelhante, os conceitos
educacionais de cegueira, valorizando o desempenho do sujeito, o avalia
segundo padrões estabelecidos a partir de aquisições visuais. Aqui vale
ressaltar a diferenciação entre cegueira congênita e adquirida e o
significado da época de ocorrência da perda. Estas questões serão
discutidas no capítulo 1.2.
Um levantamento das diversas formas utilizadas por especialistas de
diferentes enfoques, para compreenderem as pessoas cegas (capítulo 1.3),
nos mostra que grande parte das pesquisas baseia-se em estudos
comparativos entre cegos e videntes, com o objetivo de compreendê-los a
partir do não-cego.
Embora isso possa ser considerado natural, do lugar daquele que enxerga,
ou mesmo daquele que perdeu sua visão, creio que já supõe uma condição,
na qual a isenção de idéias preestabelecidas se perde. Há estudos de
observação de crianças, sob o referencial psicanalítico, que se
constituem em rica análise do impacto da cegueira sobre o
desenvolvimento dos primeiros anos de vida. Também sob este referencial,
o relato de casos e o estudo de sonhos de Blank (1957, 58) nos remete a
uma tentativa de compreendê-los em sua totalidade. Todavia, mesmo nesses
a ausência de procedimentos que valorizassem outras expressões, além da
verbal, é notada. Por outro lado, observa-se principalmente a ausência
de um procedimento que possibilite a compreensão da dinâmica de sua
personalidade num curto espaço de tempo. Consideramos este fator de
fundamental importância, ao constatarmos a pobreza de nossas
instituições, o reduzido número de profissionais que trabalham na área e
as grandes necessidades dos sujeitos deficientes visuais. No capítulo
1.4, procuramos circunscrever o conhecimento obtido sobre o
desenvolvimento da personalidade do cego, por meio dos estudos
realizados sob diferentes enfoques, nos diferentes momentos e locais que
tivemos a oportunidade de conhecer. Estes nos possibilitaram o presente
estudo, que se dispôs a uma nova proposta, procurando compreender os
cegos também por meio de sua expressão gráfica, pela utilização do
procedimento de desenhos-estórias (Trinca, 1984). Constatamos, por meio
de estudos sobre este procedimento (discutidos no capítulo 3), sua
expressividade, versatilidade e riqueza na apreensão da personalidade.
Há diversas pesquisas com o d-e, que buscam a compreensão de diferentes
aspectos da personalidade com grupos de sujeitos de várias idades.
A possibilidade de apreensão da dinâmica da personalidade por meio de
expressões gráficas e verbais, irmanadas em unidades de produção,
incentivou-me a estudar a expressão gráfica do cego como elemento de
compreensão de sua personalidade.
Poucos estudos há sobre desenhos de cegos, mas acreditamos que, se
considerarmos sua expressão gráfica como função de sua expressão motora,
ela poderá se constituir como uma possibilidade para a expressão de suas
representações mentais, além da expressão de seus conteúdos
inconscientes.
A utilização desse procedimento com cegos exigiu uma adaptação de
material que possibilitasse a eles a realização de desenhos (capítulo
3.3).
O capítulo 4 descreve o presente estudo, o que norteou a escolha dos
sujeitos, o procedimento de coleta de dados, o método de análise do
material obtido. No capítulo 5, serão expostos os resultados obtidos
pela análise individual dos casos; análise de cada uma das unidades de
produção, análise das impressões do sujeito sobre o procedimento de
desenhos-estórias, análise sobre os desenhos e uma síntese geral do
caso, procurando articular as condições físicas e funcionais da ausência
de percepção visual, àquelas ditadas pelo significado simbólico da
ausência de visão com as características individuais de cada um.
No capítulo 6, propus-me a descrever de forma integrada os fatores
apreendidos pela avaliação e análise do material obtido por meio do
procedimento de desenhos-estórias, de forma a propiciar ao leitor uma
visão geral da dinâmica da personalidade dos cegos sob o referencial
psicanalítico. Este trabalho suscitou reflexões (capítulo 7) que me
permitiram chegar a algumas conclusões ainda não alcançadas, e,
seguramente, a novas questões que contribuirão para um entendimento mais
profundo da cegueira e das pessoas cegas.
Capitulo 1
Os cegos
A compreensão dos sujeitos cegos deve se iniciar pelo entendimento de sua deficiência básica: uma limitação perceptiva.
As pessoas cegas são portadoras de uma deficiência sensorial - a ausência de visão -, que as limita em suas possibilidades de apreensão do mundo externo, interferindo em seu desenvolvimento e ajustamento às situações comuns da vida.
A característica específica da cegueira é a qualidade de apreensão do mundo externo.
As pessoas cegas precisam utilizar-se de meios não usuais para estabelecerem relações com o mundo dos objetos, pessoas e coisas que as cercam: esta condição imposta pela ausência da visão se traduz em um peculiar processo perceptivo, que se reflete na estruturação cognitiva e na organização e constituição do sujeito psicológico.
Por outro lado, considerando o papel preponderante da visão nas relações com o meio, na maioria das vezes descritas, estudadas e exploradas por meio de percepções, imagens e representações visuais, somos levados a conceder à visão um valor primordial e, consciente e inconscientemente, dar à sua ausência conotações que algumas vezes ultrapassam sua real significação.
A perda da visão pode ser estudada de diferentes ângulos: pelas condições anatômicas, fisiológicas e funcionais do aparelho ocular, que prejudicam ou impedem a percepção visual; pelas condições pedagógicas requeridas pelos sujeitos portadores de deficiência visual; ou pelas interações sociais sofridas e produzidas pela cegueira.
Entretanto, todas essas abordagens são apenas recortes de um conjunto maior de condições a que estão sujeitas as pessoas cegas, que pertencem a uma certa família, são de uma dada cultura, a qual, por sua vez, simboliza a cegueira de uma determinada maneira.
Acredito que uma real compreensão dos sujeitos cegos só poderá ser atingida pela apreensão de todos estes fatores estruturantes de sua personalidade.
Uma análise das diferentes concepções sobre cegueira será meu ponto de partida para o entendimento das repercussões desta deficiência sobre a personalidade.
Começarei meu estudo pela análise de como ela é vista e sentida por aqueles que enxergam.
1.1. Concepções populares e literárias sobre a cegueira
Quando falamos ou pensamos em pessoas cegas imediatamente nos vem à mente a imagem de uma pessoa sofrida, que vive nas ”trevas” e em eterna ”escuridão”.
Isto porque, para nós, cegueira se identifica com fechar os olhos, acabarem-se as luzes, e com as inúmeras dificuldades físicas, motoras, cognitivas e emocionais dessas situações, além da imagem social de cegueira que adquirimos informalmente durante toda a nossa vida.
A situação de ficarmos momentaneamente privados de visão é sem dúvida traumática e perturbadora.
Se, em qualquer situação, vendarmos nossos olhos, nos sentiremos perdidos, incapazes de qualquer ação, sem pontos de referência externa, nas ”trevas”, e na ”escuridão total, tanto no sentido físico como no sentido psicológico do termo.
E acreditamos ser este o estado constante dos sujeitos cegos.
Quem não evoca com facilidade a imagem mental do mendigo com uma bengala branca, pedindo uma esmolinha para o pobre cego?
Ou do cego vendedor de vassouras? Quem já não ouviu a estória daquele cego que é capaz de conhecer dinheiro pelo tato, ou discriminar cores?
Muitas e muitas estórias recheiam nossa memória com conceitos, noções e imagens mentais de cegueira, que, na maioria das vezes, refletem muito mais conceitos metafóricos e simbólicos de cegueira do que uma real experiência com pessoas cegas.
As concepções populares sobre cegueira freqüentemente se colocam em pólos contraditórios.
De um lado, os cegos são concebidos e descritos, nas estórias cotidianas, como pobres, indefesos, inúteis e desajustados.
Muitas vezes, são tolos e dignos de piedade: assim, os casos de cegos vendedores de bilhete, ou cegos cancioneiros do nordeste, que cantam suas mazelas em troca de moedas para a sua subsistência.
Por outro lado, há também a visão do cego possuidor de
insights e poderes sobrenaturais.
Existe a idéia comum do sexto sentido dos cegos. Os cegos misteriosos, possuidores de dons que os tornam capazes de um conhecimento que ultrapassa o tempo e o espaço, e que está além das aparências.
Há também a consideração dos cegos como seres extrema e pateticamente bons, moralmente superiores aos videntes, por estarem isentos da superficialidade do mundo visual; ou então, ao contrário, como sujeitos protótipos da maldade e imoralidade.
O ciclo de conferências organizado pela
Funarte sobre O Olhar (novaes, a., 1988) nos mostra o lugar ocupado por este sentido nas diversas áreas do conhecimento humano.
A filosofia, a literatura, a arte, a psicologia, a arquitetura, a ciência política e outras muito tiveram o que refletir, analisar e falar sobre o olhar.
O ver parece ocupar, cada vez mais, um lugar de destaque em nossa vida. Os educadores consideram que 80% de nossa informação é recebida pela visão: a televisão, os outdoors, a vitrine, substituem o rádio e a propaganda sonora.
Vivemos hoje mergulhados em um mundo de cores e sombras.
E os sujeitos cegos, como ficam neste mundo predominantemente visual?
Uma análise do uso das palavras diretamente ligadas ou derivadas da condição de ver e olhar e seus antônimos pode nos oferecer um rico material que nos possibilita observar as relações lógicas e metafóricas sobre o olhar, e inferir a noção de sua ausência.
1.1.1. O ver e a sua ausência por meio da linguagem
A identificação de ver com conhecer é antiga.
Desde a antigüidade, a cultura grega identificava pela linguagem o ver e o pensar.
Eidos, forma ou figura é afim à idéia. Sócrates, em Fédon, descreve a cegueira como a perda do olho da mente.
De modo semelhante, em nossa linguagem cotidiana, observa-se a utilização das palavras visão e olhar, ou o uso de seus sinônimos e derivados, com esse significado, nas mais diversas situações.
Quando desejamos assegurar que algo é efetivamente verdadeiro, dizemos ser ”evidente” e sem ”sombra” de dúvidas, reafirmando a certeza de que o conhecimento verdadeiro equivale à visão perfeita.
Falamos em ”visões do mundo” quando nos referimos às diferenças culturais, de ”pontos de vista” e enfoque, ao nos referirmos a uma estrutura conceitual de referência, ou em ”revisão” quando queremos nos referir a mudanças ou correções de idéias.
Assim, em nossa mente, identificamos o não-ver com a incompreensão, incompetência, ou incapacidade de compreender e conhecer com perspicácia e profundidade as verdades do mundo.
Talvez esta seja uma explicação para as dúvidas a respeito do desenvolvimento intelectual dos cegos e para a grande quantidade de estudos e pesquisas sobre suas funções cognitivas.
Todavia, a importância da visão não é relacionada apenas ao pensar e ao conhecer: concedemos ao olhar o poder de transmitir energia de diferentes qualidades, de ser capaz de induzir o bem ou o mal; falamos da ”frieza do olhar” que nos paralisa e do ”olhar quente” que nos seduz..., por exemplo.
Outras vezes, o olho é visto como o órgão por excelência de controle, cuidado e guarda.
Expressões como ”estar de olho”, ”ficar de olho” são comumente usadas para falar não só de uma cuidadosa atenção, mas também como marca de vigilância e autoproteção.
Será por isso que os cegos são considerados indefesos? Por outro lado, o olhar é também muitas vezes considerado perigoso.
O ”mau olhado” que seca as plantas e depaupera as crianças pela inveja. O ”olhar poderoso”, capaz de despir, devorar e matar.
O ”olhar concupiscente e sedutor” que nos torna impotentes e vulneráveis ante a sua expressão.
Não podemos nos esquecer da força do olhar na expressão do desejo sexual e de sua importância na relação afetiva; o ”olhar amoroso”, o ”olhar ardente”, o ”amor à primeira vista”, a ”paquera”, o ”amor cego”.
Será esta a razão por que os cegos são considerados algumas vezes como assexuados e em outras ocasiões como poderosos amantes? É também o olhar considerado a via por excelência para a compreensão e expressão dos desejos mais profundos do ser humano, sendo possível por seu intermédio conhecer os desejos e as características das pessoas.
O povo diz do ”olho gordo”, quando quer se referir à ganância de alguém, de ”olho comprido”, quando percebe seu desejo voraz, de ”olho de peixe morto”, para se referir às pessoas passivas e apáticas, de ”olho de águia”, quando quer chamar a atenção sobre a perspicácia de outrem. É também o olhar que desperta nossos desejos e emoções, ”o que os olhos não vêem, o coração não sente”.
O cego, por não possibilitar tais apreensões, é tido como misterioso, indecifrável ou pobre de emoções e desejos.
A visão como uma extensão do tato, transformando a proximidade em distância, proporciona um espaço facilitador para as representações mentais, que pode nos remeter à idéia de maior racionalização.
Sua ausência, por outro lado, nos fala de um incremento ao contato primitivo, inocente, e talvez, por essa razão, de um maior contato com as forças instintivas e com o inconsciente.
1.1.2. O cego na literatura
A literatura, clássica ou popular, as canções, o cinema e o teatro veiculam essas mesmas noções sobre cegueira, talvez porque a visão e a sua ausência sejam uma rica mina para a metáfora.
Uma análise dos personagens cegos da literatura nos mostra que as características fictícias usadas para descrever os cegos são tão contraditórias quanto as concepções populares, e semelhantes a estas.
Encontramos na literatura descrições de cegos ora como diabolicamente maus, ora como sublimemente bons; a cegueira algumas vezes representa uma punição divina, outras vezes é compensada por uma dádiva do céu.
Mas sejam bons sejam maus, inferiores ou superiores, são sempre seres especiais tanto para os escritores, como para o povo em geral.
Desde a antigüidade, nos mitos, na Bíblia, na Grécia clássica, a cegueira serviu como metáfora para a expressão dos mais diversos sentimentos.
O rei Édipo furou seus olhos quando descobriu que tinha matado o pai e casado com a mãe.
Sófocles descreve a cegueira como uma condição pior que a morte, uma autopunição para o pecado do incesto.
Por outro lado, quando a vista de Tirésias, outro personagem mítico grego, é destruída pelos deuses, ele é recompensado com o dom da profecia e presenteado com um bastão mágico que o guia.
O mito de Édipo foi usado por
Freud como metáfora para a descrição do desenvolvimento psicossexual, a cegueira significando castração.
Embora a castração no nível do simbólico seja vista como uma condição necessária a um desenvolvimento sadio, em nossa mente a concretude da cegueira parece ligar-se a uma castração real e significar uma punição merecida para um pecado capital, embora inconsciente.
Também na literatura de ficção, o caráter do cego representa uma metáfora tanto para o patético como para o horror, ou ambos.
Shakespeare descreve o conde de Gloucester, cego como punição por adultério, como totalmente dependente, facilmente enganável, deprimido e miserável.
Victor Hugo, em o Homem que ri, refere-se à garota cega Déa como capaz de êxtase e profunda harmonia com
Deus, como se estas qualidades fossem peculiares à cegueira.
Para alguns escritores, a cegueira representa um prejuízo total; para outros, pureza e liberdade de contaminação do mundo visual; pode ainda simbolizar forças da escuridão e morte.
Débora Kent, escritora americana, faz um interessante estudo (1989) sobre os personagens cegos da literatura clássica, da literatura romântica do século 19 e das novelas americanas do século 20.
Sua análise dos personagens cegos nos mostra as mudanças ocorridas na concepção da cegueira através dos tempos, e também aqueles conceitos que, embora sofrendo modificações, apontam para um núcleo comum, como se representassem idéias que fazem parte do ”inconsciente coletivo” do dizer de jung.
Segundo
Débora Kent, nos textos clássicos, a cegueira é freqüentemente descrita como punição por pecado principalmente de ordem sexual, e é comparável à morte, como no caso do
Conde Gloucester de shakespeare, que repete os conceitos dos escritos da antigüidade e dos mitos gregos em que a cegueira é quase sempre uma conseqüência dos atos proibidos pelos deuses.
Na literatura do século 19, observam-se, pela descrição dos personagens cegos, diferenças na percepção social da cegueira.
Se de um lado eles são apresentados ao leitor como pessoas que têm uma vida relativamente normal, são também exemplos do que pode ser conseguido pela fé e perseverança, como a personagem
Elizabeth Maclure, no romance Old Mortality, que é descrita por Walter Scott como uma mulher cega de meia-idade, que dirige com sucesso uma casa de pensão ajudada apenas por sua filha de 12 anos.
Nessa época, começam também a aparecer os primeiros modelos que exemplificam o caráter mau dos cegos.
Este conceito de cegueira é aprofundado no início do século 20 e persiste até a década de 60.
Por exemplo, o pirata
Pew na Ilha do Tesouro, de Robert Lewis Stevenson, o vilão Stagg de Charles
Dickens e o malévolo capitão Wolf Larsen de o Lobo do Mar, de Jack London.
O trabalho de
Kent está centrado na análise de vários romances americanos da década de 60, nos quais aparecem personagens cegos.
O tema central dessas estórias são as relações do cego com a sociedade. As tramas principais nas quais eles se vêem envolvidos são: as rejeições à cegueira, a luta por independência, e o auto-reconhecimento.
A sexualidade é um aspecto freqüentemente enfocado: algumas vezes, os cegos são descritos como poderosos amantes e, em outras, são rejeitados por seus parceiros devido à cegueira.
O denominador comum que predomina nesses romances é uma descrença da sociedade com relação aos cegos, e a solução freqüente é uma miraculosa recuperação da visão.
Kent conclui (1989) que os escritores, embora sejam pessoas criativas, capazes de insights e de grande poder de observação, aderem a essas crenças comuns sobre os cegos, em parte por terem uma visão do inundo da posição vantajosa dos ”normais”, mas, principalmente, porque a cegueira fascina, talvez devido a um temor primordial ao escuro e à convicção de que eles vivem em um mundo de sombras.
Seja qual for a razão, é um fato notável que os escritores prefiram retratar a cegueira mais do qualquer outra deficiência, embora as pessoas cegas se constituam como uma pequena minoria entre os outros quadros de prejuízos físicos a que estão sujeitos os seres humanos.
Em síntese, pode-se dizer que, na maioria das vezes, os personagens cegos na literatura, no cinema ou no teatro são vistos como pertencentes a uma classe específica por causa de sua cegueira.
Tem-se freqüentemente esquecido que eles têm muito mais em comum com outras pessoas de idade, sexo e condição social semelhantes do que com outros cegos de condições diversas.
1.2. Concepções médicas e educacionais sobre a cegueira
Enquanto os conceitos populares e literários de cegueira se preocupam com as conseqüências desta condição sobre a personalidade das pessoas e apontam a ausência de visão como causa de determinadas características psicológicas, os especialistas em educação de cegos e os oftalmologistas procuram se prender a uma explicação científica na verificação das causas e conseqüências da perda da percepção visual.
Uma questão que primordialmente preocupa os especialistas é o quanto uma pessoa pode ou não ver.
E a primeira afirmação com que nos deparamos em relação a esse problema nos mostra quanto as concepções populares e literárias da cegueira estão desvinculadas de uma verificação científica.
Do ponto de vista médico e educacional, cego não é aquele que nada enxerga, vive nas trevas e na escuridão total, pois é muito rara a ausência total da percepção visual.
A grande maioria daqueles a quem denominamos cegos freqüentemente distingue o claro do escuro, percebe vultos e conta dedos a uma determinada distância.
Por outro lado, se pensarmos que trevas e escuridão são dados perceptuais que têm no outro pólo a claridade e a brancura, um sujeito que nunca enxergou não poderá jamais ver nem a escuridão nem a claridade, sendo, portanto, esses conceitos muito mais metafóricos do que dados da realidade.
O conceito médico de cegueira é, assim, a medida da capacidade visual das pessoas portadoras de deficiências no órgão da visão.
A medida utilizada para a determinação da cegueira é a acuidade visual, definida por
Rocha Ribeiro-Gonçalves (1987) ”como o grau de aptidão do olho para discriminar os detalhes espaciais” (p. 31), capacidade essa atribuída aos cones foveais, responsáveis pela acuidade visual central, que compreende a visão de forma e a visão de cores.
O diagnóstico de cegueira é, desta forma, fundamentalmente médico, e centra-se na capacidade visual apresentada pelo sujeito após a oferta de todos os tratamentos medicamentosos e cirúrgicos necessários, e das correções ópticas possíveis.
Do ponto de vista médico e educacional, os cegos constituem um grupo dentro de um conjunto maior de indivíduos possuidores de problemas no órgão da visão, que são denominados deficientes visuais.
Dentre estes há também aqueles que, embora apresentem limitação da percepção visual, a utilizam para muitos afazeres, e são classificados como sujeitos com visão residual.
Um conceito aceito há muito tempo (Lowenfeld, 1950), e aprovado pela OMS em 1972, diz que cegos são aqueles que apresentam acuidade visual de
O a 20/200 (enxergam a 20 pés de distância aquilo que o sujeito de visão normal enxerga a 200 pés), no melhor olho, após correção máxima, ou que tenham um ângulo visual restrito a 20° de amplitude.
A restrição do campo visual, a chamada visão de túnel, também é considerada cegueira, independentemente da acuidade visual possuída pelo sujeito, porque qualquer visão nesta amplitude impede a apreensão do ambiente como um todo, uma das características fundamentais da percepção visual.
São considerados indivíduos com visão residual aqueles que apresentam acuidade visual de 20/200 pés a 20/70 pés no melhor olho, após correção máxima.
Por meio deste discurso médico que, como diz
Clavreul (1983), procura excluir toda subjetividade, seja ”da parte que o enuncia como daquela que o escuta” (p. 211), a cegueira passa a ser vista apenas como uma falha orgânica; mas, por outro lado, percebe-se o cego como um ser humano excluído da comunidade dos homens sadios, com quem o diálogo torna-se difícil ou mesmo impossível, se pensarmos na colocação de
Clavreul de que o médico ”se dirige não ao doente, mas ao homem normal que ele era, e que deve voltar a ser” (p. 74).
A cegueira, ao se constituir como uma condição irreversível, confere ao sujeito um lugar para todo o sempre à margem dos homens sadios.
Todavia, foi observado que sujeitos cegos, com idêntica acuidade visual, possuíam eficiência visual diversa, ou seja, sujeitos com a mesma medida oftalmológica de visão apresentavam diferenças na utilização do resíduo visual.
Essa constatação tornou necessária uma concepção educacional de cegueira, que se caracterizou, prioritariamente, pela ênfase na eficiência visual e não na acuidade.
Até a década de 70, a classificação dos sujeitos como cegos, e sua indicação para o ensino pelo método braille, se baseava no diagnóstico oftalmológico.
Entretanto, a constatação de que muitas crianças ”cegas” liam o braille com os olhos levou os especialistas a uma reformulação do conceito, que passou a centrar-se na maneira pela qual o sujeito apreende o mundo externo.
Assim, passaram a ser considerados cegos aqueles para quem o tato, o olfato e a cinestesia são os sentidos primordiais na apreensão do mundo externo.
E sujeitos com visão residual, aqueles que, embora prejudicados na visão, a utilizam satisfatoriamente em seu processo de aprendizagem.
Observa-se aqui uma mudança: antes, o braille era indicado aos sujeitos diagnosticados
Clinicamente como cegos; agora, são considerados cegos aqueles que necessitam do método braille para a aprendizagem da leitura e escrita.
Pode-se considerar neste movimento uma leve tendência à mudança na percepção dos sujeitos cegos.
Até esse momento, eram cegos aqueles que os médicos, detentores do conhecimento sobre a saúde e a doença, assim o considerassem.
Depois, passaram a ser denominadas cegas aquelas pessoas que, pelo seu próprio
comportamento visual, indicavam a ausência de uma percepção eficaz.
Como para os educadores a preocupação com a cegueira centra-se nas condições necessárias e apropriadas ao desenvolvimento e à aprendizagem satisfatórios, um outro fator, desconsiderado pelas concepções populares, literárias e médicas, mostra-se de grande importância: a época da incidência da cegueira.
Sem dúvida, o sujeito que nasce cego, que estabelece as suas relações objetais, estrutura o seu ego e organiza toda a sua estrutura cognitiva a partir da audição, do tato, da cinestesia, do olfato e da gustação, difere daquele que perde a visão após seu desenvolvimento já ter ocorrido.
Do ponto de vista educacional há, portanto, necessidade da consideração de dois grupos distintos: os cegos congênitos e os possuidores de cegueira adquirida.
Todavia, saber qual o momento de ocorrência da cegueira que propõe distintas condições de desenvolvimento e aprendizagem, a ponto de constituir uma diferenciação de grupos, é um outro problema.
Se de um lado é muito claro que a cegueira adquirida na idade adulta propicia condições diferentes daquela adquirida ao nascer, é muito nebuloso e extremamente difícil estabelecer-se a diferença entre uma cegueira congênita, uma adquirida aos 11 meses, e outra aos 6 anos de idade.
O aspecto mais importante desta diferenciação diz respeito ao recurso da visualização, utilizado na educação e reabilitação dos sujeitos com cegueira adquirida, em contrapartida ao processo de reorganização perceptiva exigida desde o nascimento para aqueles com cegueira congênita (Amiralian, 1985).
Estudos indicam (apud
Lowenfeld, 1950) que o sujeito que perde sua visão antes dos 5 anos não retém qualquer imagem visual, enquanto aqueles que a perdem posteriormente podem reter uma estrutura de referência visual útil, que os torna capazes de visualização.
Swallow (1976) e Hall (1981), reportando-se às propostas de Piaget e inhelder de imagens estáticas, cinéticas e transformacionais e a ocorrência destas últimas apenas 33 após o período das operações concretas, concordam com esse ponto de vista.
Para esses autores, a criança até os 6 anos de idade, na fase préoperacional, forma imagens estáticas, insuficientes para representar ou antecipar processos desconhecidos, diferentemente daquela que já possui uma estrutura cognitiva do período operacional quando a perda ocorre.
Assim, a cegueira adquirida antes do período operacional impede a utilização de uma possível memória visual.
Em função destes estudos, estabeleceu-se a idade de 5 anos como parâmetro para se considerar a cegueira congênita ou adquirida, para fins educacionais.
Pode-se observar, desde a conceituação de cegueira, uma preocupação dos educadores com o estabelecimento de parâmetros entre os cegos e aqueles que podem ver.
Embora os dados acima referidos devam ser levados em conta ao se refletir sobre o desenvolvimento e a aprendizagem cognitiva dos cegos, não podemos nos esquecer da influência da visão no desenvolvimento das relações afetivas.
Cremos que a criança que nasce cega difere daquela que perde sua visão aos 4, ou mesmo aos 2 anos de idade, pois, mesmo que estas não possam utilizar-se da memória visual, todas as suas relações objetais ocorrem por meio da visão, e principalmente o vínculo mãe-bebê se dá em outras bases (Amiralian e
Becker, 1991).
1.3. Formas de compreensão do sujeito cego
A questão da influência da cegueira sobre o desenvolvimento da personalidade dos sujeitos cegos tem recebido através dos anos bastante atenção e cuidadosas considerações.
Especialistas dos mais variados enfoques teóricos têm procurado compreender como os sujeitos cegos são capazes de apreender o mundo, mover-se em um espaço, ou relacionar-se física e/ou socialmente na ausência da percepção visual.
Não é objetivo deste trabalho uma pesquisa exaustiva sobre os estudos realizados para a compreensão da influência da cegueira no desenvolvimento da personalidade, mas sim delinear uma estrutura de referência que demonstre a maneira pela qual tive acesso à ”psicologia da cegueira”, no dizer de
Lowenfeld (1981).
Embora a preocupação com a cegueira seja antiga, pesquisas sistemáticas sobre os efeitos psicológicos da cegueira são comparativamente recentes.
Trabalhos clássicos como o cego na escola e na sociedade, de Thomas D. Cutsforth (1951), e toda a obra de
Berthold
Lowenfeld que tem sido publicada desde 1941 baseiam-se largamente nas próprias experiências dos autores.
Thomas Cutsforth, ph.d em psicologia, foi consultor em várias escolas para cegos, sendo ele mesmo cego.
Berthold Lowenfeld, ph.d em psicologia, foi superintendente da escola da Califórnia para cegos em
Berkeley e considerado por muitos o mais produtivo, conhecedor, atento e criativo escritor na área da educação dos deficientes visuais.
Uma questão que parece ter sido prioritária, ocupando a atenção de muitos estudiosos, foi a compreensão dos efeitos da cegueira sobre o desenvolvimento cognitivo.
A formação de conceitos, a capacidade classificatória, o raciocínio, a representação mental, e outras funções cognitivas, constituíam-se como fatores críticos para a educação da criança cega, exigindo estudos e pesquisas que se desenvolveram sob o referencial
Piagetiano.
Estas questões levavam também à preocupação com a avaliação diagnostica dos sujeitos cegos, que, acrescida do momento histórico da psicologia voltada para a psicometria, criou um outro campo de estudos: adaptação e organização de testes para cegos.
Outra linha de pesquisa em que são encontrados ricos trabalhos que se referem fundamentalmente aos efeitos da cegueira sobre o desenvolvimento emocional é a psicanálise, embora, como afirme
Blank (1957), sua literatura traga raras contribuições sobre os problemas psíquicos dos cegos, a despeito das inúmeras referências ao simbolismo do olho: escopofilia, exibicionismo, distúrbio visual histérico, o Édipo e sua cegueira...
Ante estas constatações, serão considerados os estudos que buscam uma compreensão sobre os sujeitos cegos sob três enfoques: pesquisas sobre instrumentos, métodos e processos de avaliação dos sujeitos cegos; pesquisas no referencial
Piagetiano sobre o desenvolvimento cognitivo; e estudos psicanalíticos sobre a influência da cegueira no desenvolvimento emocional.
1.3.1. Pesquisas sobre procedimentos de diagnóstico
A questão do psicodiagnóstico de pessoas cegas apresenta problemas de vários níveis, que se estendem do instrumental a ser utilizado até a análise do peso da cegueira no conjunto dos dados obtidos.
Como se pode considerar que o atendimento às pessoas portadoras de deficiência está intrinsecamente relacionado ao aparecimento e desenvolvimento do processo psicodiagnóstico (Amiralian, 1990), não é de estranhar que estudos para a adaptação de testes para cegos sejam quase tão antigos quanto os estudos do próprio
Binet.
A análise destes estudos mostra que a maioria dos testes de inteligência utilizados para a avaliação dos sujeitos cegos são adaptações de testes comumente utilizados com a população em geral.
Aqueles que não são adaptações diretas baseiam-se na estrutura e fundamentação lógica usadas na construção dos testes para videntes.
Dentre as adaptações, temos o estudo de
Hayes (1950) sobre as pesquisas realizadas para a adaptação do Binet-Simon para cegos, que se refere ao trabalho de
Irwin e Goddard de 1914, os trabalhos de Haines de 1916 e 1919, e os trabalhos do próprio
Hayes de 1921, 1930; e, finalmente, o de 1942, que ficou conhecido como
Interin Hayes-Binet Inteligence Test for the Blind (IHB).
Além destes, são encontrados estudos para a adaptação dos cubos de Kohs. Há uma de
Wattron de 1956 e outra de Ohwaki de 1958, conhecida como Ohwaki-Kohs Intelligence
Scale for the Blind, que tem sido usada no Brasil.
A idéia básica desta adaptação consiste em transformar as cores dos cubos em superfícies táteis que possam ser simples e claramente discriminadas pelos cegos, assim como as cores vermelha, branca, azul e amarela o são pelos videntes.
A validade deste instrumento foi estabelecida por meio de correlação com o rendimento escolar.
Há ainda aqueles que procuraram organizar instrumentos para uso específico com sujeitos cegos.
Williams (1956) organizou o ”Teste de Williams para crianças com deficiência visual”, composto de itens selecionados de materiais já padronizados sobre grande número de crianças videntes, e
Newland desenvolveu o Blind Learning Aptitude Test - BLAT, publicado em 1969, o único planejado especificamente para uso com crianças deficientes visuais.
Este teste consiste em uma série de padrões em relevo de complexidade variável, devendo o sujeito descobrir as relações ou encontrar a parte que falta de um padrão identificado por meio da exploração tátil-cinestésica.
As escalas verbais do
Wechsler, que fazem parte do WISC e do WAIS, mereceram muitas pesquisas tendo em vista sua ampla aceitação para aplicação em sujeitos cegos, com pouca ou nenhuma modificação.
Alguns destes estudos tinham por objetivo verificar a fidedignidade e/ou validade do
Wisc-v para crianças cegas, como o de
Claassem (1954), e o de Hopkins e Macquire (1960).
Outros visaram a uma comparação do desempenho das crianças cegas e videntes: Gilbert e
Rubin (1965), Tilman (1967a, 1967b), Tilman e Osborne (1969), Smits e Mommers (1976).
E outros ainda pretenderam uma correlação entre os resultados obtidos por crianças deficientes visuais, no
Wisc-v e em outros instrumentos de medida, como o trabalho de
Gutterman, Ward e Genshaft (1985).
Como se nota, havia entre os pesquisadores uma preocupação em analisar as possibilidades dos deficientes visuais de apresentarem desempenho equivalente aos dos sujeitos não cegos, acreditando que diferenças perceptivas não implicassem alterações qualitativas do processo cognitivo.
Nesta concepção, instrumentos de aplicação verbal deveriam ter a mesma validade para sujeitos cegos e videntes.
O único teste organizado especificamente para cegos - o
BLAT -, de Newland, baseia-se numa estrutura e fundamentação lógica semelhante à do teste de
Raven.
Para o autor, a transformação do estímulo visual em tátil não significa mudanças fundamentais, pelo que desconsidera as especificidades do processo cognitivo quando este se forma unicamente a partir de estímulos auditivos e táteis-cinestésicos.
Para a avaliação dos aspectos afetivo-emocionais, a utilização de escalas, testes de complementação de sentenças e outros desta natureza são predominantes.
School (1976) refere-se a vários estudos com conhecidos inventários de personalidade como o
MMPI, o Bernreuter, o questionário de Stein, o teste de complementação de sentenças de
Sachs e o Madeleine Thomas e Rey aplicados aos cegos.
A única modificação proposta é na forma de aplicação, que deve ser feita lendo-se para eles as questões a serem respondidas oralmente, ou por meio de um modelo transcrito para o braille.
Merecem destaque dois instrumentos de avaliação da personalidade, que tive a oportunidade de conhecer e utilizar em meu trabalho em uma instituição para cegos.
Eles diferem das formas anteriormente citadas para a avaliação afetivo-emocional por usarem estímulos menos estruturados.
Os testes são: o
Auditory Apperception test (AAT) e o Twitchell-Allen three dimensional test.
O
AAT é um teste projetivo auditivo. Consta de uma série de 10 conjuntos de situações sonoras gravadas em discos, que são apresentados ao sujeito.
Depois de ouvir cada conjunto, ele constrói uma estória incorporando os sons que ouviu; conta o que acontece, o que lhe lembram os sons, como termina etc.
Os sons incluem: diálogos, uma buzina de nevoeiro, ventos, explosões, uma máquina de escrever e um choque de trens. É sugerida uma avaliação pelos mesmos princípios do
TAT.
O Twitchell-Allen é um teste projetivo tátilcinestésico, composto de 28 peças de plástico de forma ambígua.
Pedem-se ao sujeito associações de suas percepções a esses objetos: a seguir, ele deve organizar as peças como quiser e contar uma estória.
Segundo o autor, a primeira parte deve ser avaliada pelos mesmos princípios do
Rorschach, e a segunda como o TAT.
Além desses, há também o PMK para cegos, uma adaptação feita como tese de doutorado, apresentada à
Faculdade de Psicologia da Universidade católica de São Paulo, por Efraim
Rojas Bocalandro.
A adaptação consiste em peças de alumínio que servem como modelo para os cegos para o traçado das linhas, feitas pelo vidente com um anteparo, como aprendizagem do que devem realizar sem o controle da visão.
Estes suportes são retirados após os traçados iniciais, e o teste aplicado é analisado posteriormente da maneira usual.
Para o diagnóstico dos aspectos afetivoemocionais, vê-se a predominância da utilização de instrumentos de complementação verbal, caracterizando-se uma crença de que este procedimento é suficiente para a compreensão da dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos.
Por outro lado, nenhum questionamento é feito sobre o significado e a compreensão das palavras usadas pelos cegos, tema amplamente estudado e discutido por vários autores (Anderson, 1981,
Hall, 1981, Burlimgham, 1963-1965, Fraiberg, 1977).
O teste de apercepção auditiva e o tridimensional de Twitchellallen parecem ser os que oferecem maiores possibilidades para a expressão dos conflitos inconscientes, permitindo-nos a apreensão das angústias nodais dos sujeitos e oferecendo-nos oportunidade para a compreensão da dinâmica de sua personalidade.
Todavia, pelo que constatei, estes testes não têm sido mais utilizados, não sei se pela complexidade da aplicação e avaliação ou pela ausência de pesquisas com esses instrumentos.
Em meus contatos com as instituições de atendimento às pessoas cegas, pude notar que atualmente a avaliação afetivoemocional tem sido realizada por meio da aplicação do
PMK para cegos e de testes de complementação de sentenças.
1.3.2. Pesquisas no referencial Piagetiano
O interesse renovado pelo processo do desenvolvimento cognitivo, surgido a partir dos trabalhos de
Piaget, incentivou muitos estudiosos a pesquisas com crianças cegas sob este referencial teórico.
Embora
Piaget e seus colaboradores não tivessem realizado estudos com cegos, segundo
Gottesman (1975), ele disse em uma conferência na Universidade de Colúmbia: bebês cegos têm uma grande desvantagem por não poderem fazer a mesma coordenação no espaço que as crianças normais são capazes durante os dois primeiros anos de vida; assim, o desenvolvimento da inteligência sensório-motora e a coordenação das ações neste nível são seriamente impedidos na criança cega.
Por esta razão, achamos que há um grande atraso em seu desenvolvimento no nível do pensamento representacional, e a linguagem não é suficiente para compensar a deficiência na coordenação das ações.
O atraso é, naturalmente, posteriormente compensado, mas ele é significante e muito mais considerável do que o atraso no desenvolvimento da lógica nas crianças surdas e mudas. (p. 94)
Esta afirmação de Piaget parece indicar que a análise do desenvolvimento cognitivo dos cegos a partir deste construto teórico leva-nos à constatação de um atraso, que embora possa ser compensado, não o é suficientemente.
Todavia, não podemos nos esquecer de que a teoria Piagetiana, elaborada a partir da observação de crianças normais, possuidoras de visão, constatou a importância desta na construção das estruturas cognitivas.
Neste referencial, as sensações e a motricidade são os processos básicos do desenvolvimento cognitivo.
A ausência visual impondo, além da limitação perceptiva, restrições motoras, surge indubitavelmente como uma catastrófica limitação, sendo compreensíveis os questionamentos, as dúvidas, as dificuldades e os desencontros entre os estudiosos deste referencial teórico sobre a construção das estruturas cognitivas na ausência da visão.
Estudos, trabalhos e pesquisas neste enfoque procuraram esclarecer questões fundamentais: como a criança cega apreende o mundo, como constrói a realidade, como adquire o conceito de objeto, causalidade, espaço e tempo.
Os estudos de
Gottesman, Stage development of blind children: a Piagetian view(l976), o de
Svalovf, Piaget’s theory and the visually handicapped learner(1976), o de
Anderson e Olson, Word meaning among congenitally blind children (l981) e o de
Hall, Mental images and cognitive development of the congenitally blind (1981) nos oferecem ricas informações sobre este assunto.
Estes autores analisaram vários estudos anteriores realizados sob este enfoque, chamando a atenção para as controvérsias em seus resultados.
A síntese destes trabalhos nos mostra a compreensão a que chegaram estes estudiosos sobre o desenvolvimento cognitivo, na ausência da percepção visual.
A análise destas pesquisas revela alguns problemas universalmente apontados pelos pesquisadores: dificuldades na localização e reduzido número de sujeitos dentro dos critérios estabelecidos para a seleção, crianças com cegueira congênita, ausência de outros comprometimentos físicos, psicológicos ou mentais, e não inseridas em programas de escolas residenciais.
A opção por não incluir crianças atendidas em programa de ensino segregado teve por base resultados que apontaram diferenças significativas entre as crianças de escolas residenciais e aquelas que permaneciam em seus lares; segundo
Gottesman (1976), estas apresentavam rendimento superior.
O reduzido número de sujeitos disponíveis para a pesquisa é compreensível por ser a cegueira uma das deficiências de menor incidência entre os diferentes grupos de deficiência; o fato de se exigir que os sujeitos não estivessem em escolas residenciais reduz mais ainda o número de sujeitos e dificulta o acesso a eles - problema este referido por pesquisadores de várias linhas teóricas, e também sentido na realização deste trabalho.
Foi também assinalada com freqüência a dificuldade surgida pela diferença de resíduo visual entre os cegos.
Como vimos, entre os sujeitos considerados cegos, são poucos aqueles que não apresentam nenhuma visão, possuindo a maioria resíduos visuais que se escalonam desde uma ausência quase total a uma visão que permite contar dedos a determinada distância e distinguir formas.
Esta condição, considerada problemática por pesquisadores Piagetianos, foi resolvida pela colocação de venda nas crianças que possuíam alguma acuidade visual, numa tentativa de controle da condição perceptiva.
Solução que, a meu ver, ao introduzir modificações fundamentais na condição dos sujeitos, mais confunde do que clarifica a compreensão de suas reais possibilidades.
Nas pesquisas Piagetianas, o procedimento mais comum foi a constituição de grupos experimentais e de controle: grupos de cegos congênitos, videntes e videntes vendados, pareados quanto a idade, sexo, condições socioeconômicas e familiares.
Os resultados do desempenho dos três grupos foram comparados e analisados.
As pesquisas tiveram por objetivo analisar o desenvolvimento das crianças congenitamente cegas quanto ao desempenho em tarefas de conservação, classificação, formação e desenvolvimento de imagens mentais, e conceituação de objetos.
Enquanto alguns destes estudos encontraram resultados que apontam para um atraso dos cegos nestas atividades, outros divergiram quanto a esta conclusão.
Entre os estudos que analisaram o desempenho em tarefas de conservação, há trabalhos que apontam para um atraso da criança cega em relação à vidente.
A este respeito, há o de Canning (1957, apud Gottesman , 1976), que, estudando a conservação de quantidade global de água num recipiente, descobriu que as crianças cegas a adquiriam mais tarde; o de
Miller (1969, apud
Gottesman , 1976, e Swalow, 1976), que, estudando a conservação de peso e volume em 26 crianças deficientes visuais de 7-10 anos (17 cegas e 9 com visão residual, vendadas para controle da diferença de visão), concluiu que a interação visual com o meio ambiente é um fator de suma importância para a conservação, sendo típico um atraso de vários anos; o de
Hatwell (1966, apud
Gottesman , 1976, Swalow, 1976, Hall, 1981), que, estudando a conservação de massa e habilidades classificatórias, observou a diferença de dois ou três anos entre os grupos, computada pelo autor à privação sensorial.
Tobin (1972, apud Gottesman , 1976) também encontrou resultados semelhantes ao investigar a conservação de substâncias em 189 crianças cegas e de visão parcial.
Mas concluiu que... ”enquanto o melhor deles realiza no mesmo nível dos seus colegas videntes, a idade média em que a conservação é atingida é mais prolongada para os visualmente deficientes” (p. 96).
Cromer (1973, apud
Gottesman 1976, Swalow 1976), por outro lado, afirma não ter encontrado diferenças entre grupos de cegos, videntes e videntes vendados na idade em que atingiram a conservação.
O autor salienta que, embora houvesse diferença significante no número de respostas nas diferentes idades para diferentes tipos de conservação, não encontrou diferenças significantes no número de respostas aos diferentes tipos de conservação (massa, peso e volume).
Gottesman (1976), em seu estudo, descobriu que as crianças congenitamente cegas apresentavam diferenças significantes no desempenho de tarefas de conservação de massa e peso nas idades de 4 a 7 anos, mas não apresentavam diferenças significantes para as idades de 8 a 11 anos; e, em tarefas de conservação de volume, não encontrou diferenças significantes para qualquer idade.
O autor explica o desempenho mais baixo das crianças cegas até 6/7 anos em tarefas de conservação de massa e peso por estas exigirem mais confiança nas habilidades sensoriais para discriminações sofisticadas do que nas idades mais avançadas, que requerem mais confiança nos processos integrativos do funcionamento cognitivo.
Mais informações são transmitidas pela visão do que pelo tato nos estágios iniciais de desenvolvimento; assim, o desempenho das crianças cegas é pior do que o das videntes até essa idade.
O autor conclui que existe o mesmo padrão de desenvolvimento para as crianças cegas e videntes, embora o ritmo possa ser mais lento para aquelas que não enxergam.
Outros autores se preocuparam com o desenvolvimento de conceitos:
Swallow e Poulson (1973, apud
Gottesman , 1976 e Anderson, 1981), em um estudo sobre o desenvolvimento do conceito de espaço, avaliaram o desempenho de 10 crianças com limitação visual em tarefas espaciais euclidianas e de projeção topológica, e encontraram dificuldades semelhantes às que ocorrem nos estágios de desenvolvimento concreto.
Preocupada com este problema, Swallow , em artigo de 1976, volta a se ocupar do problema de aquisição do conceito de espaço.
Discute a formação simbólica ante o papel unificador da visão, analisando vários aspectos da formação do símbolo; a imitação postergada, o jogo simbólico e o conhecimento de perspectiva, situações em que o cego se mostra deficitário.
A autora conclui que isto revela dificuldades na construção de conceitos espaciais, decorrentes de uma pobreza de representação mental na ausência de imagens visuais.
Simpkins e
Stephens (1973) propuseram-se a um estudo mais geral; em uma bateria de provas de conservação, classificação lógica, memória, imagens mentais e operações formais, avaliaram 75 crianças cegas congênitas pareadas a 75 crianças videntes, em tarefas
Piagetianas concretas e formais.
Concluíram, pelo resultado das avaliações de raciocínio Piagetiano, que as crianças cegas mostravam, de um modo geral, atraso de 4 a 8 anos em desenvolvimento cognitivo.
Esses mesmos autores, no estudo ”o raciocínio, o julgamento moral e a conduta moral dos cegos” (1974, apud
Swalow, 1976, Hall, 1981, Anderson 1981), falam que as diferenças entre pessoas cegas e videntes, em termos de medida de julgamento moral e conduta, são relativamente insignificantes em comparação com as deficiências no raciocínio lógico.
Concluem que a classificação e a inclusão em classes são tarefas particularmente difíceis para as criança cegas, e que, embora ocorra progresso no raciocínio concreto em várias instâncias, o pensamento lógico, que envolve a orientação espacial e imagens mentais, apresenta inabilidade contínua.
Higgins (1973, apud
Gottesman , 1976, Swalow, 1976, e Hall, 1981) nos fala de descobertas divergentes das anteriores.
Usando um grupo selecionado de crianças cegas para investigar o desenvolvimento da classificação, por meio da bateria modificada de
Kofsky, concluiu que o cego não revela defasagem de desenvolvimento que possa ser relacionada a atraso na formação das estruturas cognitivas.
Para o autor, a cegueira congênita em si não é suficiente para produzir atraso na formação das estruturas intelectuais subjacentes à classificação.
Higgins acredita que as deficiências em tarefas de classificação sejam em sua origem mais figurativas e simbólicas do que operacionais.
Outros autores se dedicaram ao estudo da formação e desenvolvimento das imagens mentais.
Foster (1977, apud
Hall, 1981) estudou o desenvolvimento de imagens mentais em crianças com cegueira congênita e adquirida de 6 a 11 anos de idade, e descobriu que as imagens formadas por estas crianças eram primariamente reprodutivas, isto é, permaneciam estáticas e eram incapazes de representar ou antecipar processos desconhecidos.
Encontram-se também pesquisas neste referencial sobre o significado da palavra.
Hans (1976, apud Hall, 1981) estudou a formação de imagens táteis de um conjunto de palavras específicas, para grupos de cegos congênitos, adventícios e sujeitos de visão normal.
Observou uma baixa correlação entre os grupos e sugeriu que estes três tipos de sujeitos percebem as palavras diferentemente.
O significado das palavras entre as crianças com cegueira congênita foi também estudado por
Anderson e Olson (1981), que afirmaram que os resultados de sua pesquisa sugerem que a linguagem das crianças cegas, em vez de apenas refletir o conhecimento dos que enxergam, como afirmado por
Santim e Simmons (1977), representa uma conceituação mental dos objetos, desenvolvida por meio de experiências com seus mecanismos sensoriais intactos.
Segundo estes autores, os conceitos adquiridos por esses meios não diferem significativamente dos conceitos das crianças que enxergam.
Uma análise dos resultados destas pesquisas nos mostra que - embora a maioria dos estudos indique que a função cognitiva das crianças com problemas visuais desenvolve-se mais lentamente, podendo levar a alguma quebra no desenvolvimento entre o aspecto operacional e o simbólico do seu pensamento - as controvérsias nos resultados dos diferentes pesquisadores levantam dúvidas quanto a essa afirmativa.
Por outro lado, as pesquisas dentro do referencial Piagetiano, que trabalham dentro de um construto teórico, e investigam apenas o pensamento lógico, por meio de procedimentos que procuram comparar aquisições cognitivas de cegos e videntes vendados, como se o processo de ambos fosse idêntico, embora nos tragam ricas contribuições pelas análises efetuadas, não nos parecem suficientes para a compreensão dos sujeitos cegos.
1.3.3. Estudos psicanalíticos
Lowenfeld (1981) e Blank (1957) afirmam que estudos psicanalíticos a respeito dos problemas psíquicos dos cegos são escassos.
Isto parece ser verdade no que diz respeito a problemas da cegueira na vida adulta e na adolescência, mas não se aplica ao campo de estudos do desenvolvimento dos primeiros anos de vida, sobre o qual existem vários e ricos trabalhos.
Um dos primeiros relatos psicanalíticos sobre crianças cegas é o de
Burlingham (1941, que ao descrever o caso de duas crianças cegas afirma que a falta de visão perturba e diminui uma das mais importantes funções do olho: o teste da realidade.
Dois grupos de psicanalistas que realizaram ricas observações e trabalhos teóricos sobre o desenvolvimento precoce da criança cega devem ser destacados: o grupo da
Unidade Educacional da Clínica de Terapia Infantil de Hampstead de Londres, da qual
Anna
Freud era diretora e onde Dorothy Burlingham dirigia as pesquisas sobre cegos, e o grupo de
Selma Fraiberg e colaboradores da universidade de Michigan, Ann Arbor.
Os estudos feitos pelo grupo da
Hampstead Child Therapy Clinic sobre os efeitos da cegueira no desenvolvimento da criança basearam-se em materiais de três origens: notas de observações de bebês na enfermaria da referida clínica, trabalhos com as mães destas crianças, e material analítico de casos.
As crianças observadas variavam quanto à idade de
0 a 11 anos. O grupo era composto de psicólogos, médicos e educadores com formação psicanalítica, e dirigido por
Dorothy Burlingham.
Em seu artigo ”Some notes on the development of the blind” (1961),
Burlingham faz observações sobre o desenvolvimento dessas crianças e afirma: retardo e restrição de realização muscular são comuns às crianças cegas...
E embora os bebês cegos não sejam intencionalmente restringidos se comportam como as crianças videntes restringidas em sua movimentação. (p. 123)
Segundo a autora, a cegueira é responsável por esta condição, por impedir que as crianças cegas sejam estimuladas para a procura de objetos, além de não serem incentivadas a repetir suas ações pela aprovação materna.
Refere-se a uma grande dificuldade na relação das mães com seus bebês cegos, e à ausência nelas das recompensas e prazeres presentes nas relações das mães com seus bebês normais.
Burlingham aponta a restrição da mobilidade como uma das principais razões para a maior dependência da criança cega.
O estágio de dependência da mãe é maior e mais prolongado, e esta condição é favorecida pelas atitudes maternas.
Assinala que as crianças cegas mostram menos expressões agressivas e mais medo da agressão externa, e sentem necessidade de controlar sua agressão por maior dependência dos videntes.
Segundo
Burlingham, as crianças revelam desejo de independência concomitante a uma grande necessidade de ajuda, o que as leva a um comportamento passivo e sem reação à maneira como são tratadas, embora esta lhes desagrade.
Fala também de uma falsa verbalização que ocorre com freqüência entre as crianças cegas, e descreve a sua fala como menos conectada com experiências sensoriais.
Levanta a questão de que isto afeta a formação do superego e produz ”certas características de ego tais como superficialidade, hipocrisia, exagerada submissão, freqüentemente relacionadas à cegueira” (p.
137).
Em 1965, Burlingham discute ”Some problems of ego development in blind children”.
Ela chama a atenção para a imobilidade da criança cega sob condições de segurança, comparada com a atividade e movimentação espontânea das crianças videntes.
Segundo ela, esta imobilidade é uma deslocação da imobilidade motora para outras funções do ego.
Reafirma que a verbalização é um problema para os cegos: "há, assim, comparativamente, um vazio na mente daqueles que constroem suas imagens do mundo sem as impressões visuais e parece que este vazio é ocupado em parte pela atenção da criança às sensações vindas de seu próprio corpo". (pp. 203-204)
Observa também que essas crianças possuem excelente memória, o que resulta num aumento do vocabulário, mas com palavras essencialmente sem significado.
Esta condição causa frustrações à criança, por provocar dificuldades na comunicação com pessoas significativas para ela.
A autora dá alguns exemplos da fala observada na Hampstead Nursery School e a classifica como: palavras adquiridas normalmente, baseadas na experiência sensorial; verbalização por associação; uso de palavras do mundo visual; associação por memória de palavras desconhecidas; confusão entre palavra e coisa; e papaguear indigesto.
Anne-Marie
Sandler, do grupo da Hampstead Clinic, em 1963, escreveu ”Aspects of passivity and ego development in the blind infant”, em que afirma que o desenvolvimento das crianças cegas e videntes segue cursos paralelos por cerca de 12 a 16 semanas após o nascimento, mas na transição da primeira fase oral, essencialmente passiva, para a segunda fase, essencialmente ativa, o desenvolvimento do ego da criança cega segue um caminho que resulta em passividade autocentrada e ausência de luta para alcançar estágios mais avançados.
Sandler afirma que a presente hipótese é de que deformações do ego são resultantes da própria cegueira, relacionadas a um curso de desenvolvimento que basicamente não pode ser revertido pelo ambiente, embora algumas vezes possa ser modificado por uma maternagem adequada, (p. 346)
Sandler explica a sua hipótese com a observação teórica de que na primeira fase a boca é o mais importante órgão de exploração, tanto para os cegos quanto para os videntes; mas, na segunda fase, a mão assume este papel e a visão torna-se fundamental na direção da função exploratória das mãos.
Normalmente isto leva a uma diferenciação entre o próprio corpo da criança e o mundo externo.
Neste processo, a criança cega fica impedida ou retardada, porque, embora a visão possa ser substituída pela audição, esta não fornece a continuidade sensorial dada pelo sentido visual.
A criança cega, ficando por muito mais tempo privada das satisfações dos estímulos externos, volta-se para um comportamento repetitivo de auto-estimulação.
Sandler assinala que se podem observar, no fim do primeiro ano, diferenças substanciais nos bebês cegos: acredita que uma excelente maternidade pode levar a uma regressão desta tendência autocentrada, mas afirma: ”É inevitável que produza um profundo efeito sobre os estágios posteriores do desenvolvimento..” (p- 356).
Em seu texto ”Vulnerable periods in the early development of the blind children” (1970),
Doris Wills considera que o impacto da cegueira sobre o desenvolvimento da criança é provavelmente mais sério nos estágios primitivos de sua vida, quando ela tem que estabelecer a catexia dos seus objetos e organizar suas experiências.
Ela descreve três períodos particularmente vulneráveis para as crianças cegas:
• um longo período até que a criança cega busque e localize brinquedos por meio de pistas sonoras (considera este um sinal visível de que a criança tomou consciência de que objetos têm substancialidade, e de que apresenta mudança de interesses, de seu próprio corpo e de objetos próximos, para o mundo ao seu redor);
• uma segunda fase, que é o prolongado período em que o bebê cego permanece fortemente ligado à família e à rotina.
Mesmo quando a maternidade é ótima, isto conduz a uma tendência de retorno ao funcionamento anterior e a uma persistente aderência a este, favorecendo distúrbios nas relações com os pais;
• uma terceira fase, quando a criança está adquirindo a representação e constância dos objetos.
Esta fase pode levar a alguma fusão e conluio entre sentimentos agressivos e libidinais em sua expressão para com o objeto.
Em outras palavras, este é o período em que os impulsos agressivos da criança cega em relação aos objetos estão sendo decididos.
O trabalho de
Nagera e Colonna, ”Aspects of the contribution of sight to ego and drive development” (1965), baseou-se na observação de 6 crianças cegas da unidade para cegos, e teve por objetivo uma tentativa de organizar e descrever, por meio de um perfil, conhecimentos aprendidos durante períodos de observação, tratamento analítico e perfis diagnósticos desse grupo de crianças.
Este trabalho era parte do The Profíle Research Group, uma unidade do projeto Assessment of
Pathology in Childhood desenvolvida na
Hampstead Clinic.
Neste estudo os autores afirmam que tiveram a oportunidade de observar duas possibilidades diferentes de desenvolvimento entre as crianças que nascem cegas.
Em um pequeno número de casos, a despeito da cegueira, o desenvolvimento se processava de forma semelhante ao das crianças que enxergam.
Seus processos de ego, seus impulsos de desenvolvimento, suas relações objetais, não mostravam diferenças em relação aos das crianças videntes da mesma idade.
Entretanto, em outras crianças, o processo de desenvolvimento era atípico, apresentava atraso em diferentes níveis e em diferentes áreas, dando, nos casos extremos, a impressão de marcante retardo mental.
Para os autores, estes dois tipos são os extremos de um contínuo que apresenta todas as espécies de combinação possíveis.
Nagera e
Colonna fazem, entretanto, um interessante comentário: os consistentes e sistemáticos estudos sobre a personalidade de numerosas crianças cegas, por meio de aplicação de perfis de desenvolvimento, forçam-nos a concluir que há uma injustificável presteza ao interpretar suas peculiaridades de comportamento, fantasias, sintomas etc., sob as mesmas luzes e mesmas bases das crianças videntes normais ou neuróticas.
Assim, procedemos em nossas avaliações como se as crianças cegas fossem crianças comuns, apenas sem visão. (p. 275)
Outro grupo de psicanalistas que desenvolveram substanciais trabalhos sobre o desenvolvimento de crianças cegas era coordenado por
Selma Fraiberg.
Ela iniciou seus estudos, junto com o dr. David Freeman, quando consultores da Family service of
New Orleans, em 1961.
Nesta ocasião, esta instituição foi solicitada a prover orientação a 27 crianças cegas entre 3 e 14 anos.
Destas 27 crianças, segundo a autora, 7 apresentavam um quadro clínico muito semelhante ao autismo nas crianças videntes.
As outras 20, com graus variados de competência e imperfeições no funcionamento do ego, constituíam a média do funcionamento ”normal” para as crianças cegas.
A cegueira destas crianças era congênita, grande parte causada pela fibroplasia retrolental (hoje retinopatia da prematuridade).
Havia também um outro grupo de 17 crianças que ficaram cegas após o nascimento, no 1° ou 2° ano de vida; nestas, os distúrbios de desenvolvimento e comportamento eram menos aparentes.
Destes estudos, Fraiberg e Freeman relatam os casos de duas crianças cegas, uma delas com sérias perturbações de desenvolvimento e outra com algum atraso, considerada pelos autores como relativamente normal.
Em 1963,
Fraiberg se transfere para a Universidade de Michigan e organiza um projeto denominado
Estudo de Ann Arbor, financiado pelo National of Health and Development (NICHD), composto por uma equipe de pesquisadores, psicólogos, médicos, assistentes sociais e educadores, de orientação psicanalítica.
Esta equipe mantinha contato e discussão de casos com outras equipes de estudos do desenvolvimento da criança, também sob os auspícios do
NICHD.
Fraiberg refere-se à oportunidade que tiveram de apresentar os filmes de suas observações a
Piaget em 1967, e de ter R.
Sptiz como consultor do programa de pesquisa.
O objetivo do estudo era examinar os efeitos da cegueira no desenvolvimento do ego de crianças cegas desde o nascimento.
O critério para a seleção das crianças exigia que os bebês tivessem os outros sistemas intactos e fossem admitidos no programa tão cedo quanto possível, no 1° ano de vida.
Exames médicos eram regulares e freqüentes e tinham por objetivo informar qualquer mudança na condição da criança que pudesse afetar sua inclusão na amostra.
O método da pesquisa consistia na observação dos bebês e de suas mães em variadas situações de interação e em situações de brincadeira das crianças.
As sessões eram algumas vezes livres, outras planejadas. Observadores anotavam as sessões, que também eram gravadas.
A análise do material era feita pelo grupo de pesquisadores sob a coordenação de
Fraiberg.
Algumas questões orientaram a organização deste projeto:
• de que modo a cegueira congênita afeta o diálogo na relação mãe-bebê e qual o desenvolvimento seqüencial das relações humanas?
• como a cegueira afeta o curso do comportamento adaptativo da mão, conduzindo à coordenação ouvido-mão, à busca intencional e à primazia da mão como órgão perceptivo?
• como a cegueira afeta o desenrolar seqüencial e as aquisições locomotoras no período sensório-motor?
• de que modo a cegueira afeta a aquisição da linguagem?
• como a criança cega adquire o sentido do eu e do mundo objetal, como constrói a permanência dos objetos em termos
Piagetianos?
Em 1977, Fraiberg, em seu livro "Insights from the Blind.
Comparatives studies of blind and sighted Infants", tenta reunir as descobertas do grupo a respeito dos bebês cegos.
Lowenfeld (1981) faz o seguinte comentário sobre o texto: ”A tentativa aparece como planejada e aspectos da pesquisa não são convincentes, por não terem sido estruturados em avanços, mas impostos retrospectivamente” (p. 95).
Pode-se acrescentar que o título é infeliz por nos conduzir à crença de que a compreensão dos cegos é atingida por uma simples comparação entre os comportamentos das pessoas cegas e videntes.
Além destes estudos, os textos de
Robert Blank, ”Psychoanalysis and Blindness” (1957) e ”Dreams of the Blind” (1958), são valiosas colaborações para a compreensão dos cegos por meio do referencial psicanalítico.
Em ”Psychoanalysis and
Blindness”, o autor aponta alguns fatores de interesse psicanalítico subjacentes aos distúrbios de personalidade dos deficientes visuais: o significado inconsciente de olho como órgão sexual, incluindo a equação olho, boca e genital; o significado inconsciente de olho como órgão hostil e destrutivo; o significado inconsciente de cegueira como castração, como punição por pecados.
Em trabalho posterior (1971), citado por Lowenfeld (1981), acrescenta dois fatores: a associação inconsciente de olho e visão com onipotência, e o envolvimento inconsciente do olho em conflitos sobre inveja, cobiça, exibicionismo e escopofilia.
Estes fatores apontados por Blank se assemelham às concepções populares e literárias de cegueira, mostrando a reciprocidade da influência do significado da cegueira sobre as pessoas cegas e sobre a população em geral.
Blank afirma que a sociedade é muito ambivalente para com os cegos, e as atitudes dos videntes para com eles são contraditórias e paradoxais.
Atitudes de super-proteção, com tácita ou explícita expectativa de que o cego seja um recipiente de caridade, coexistem com uma crença crédula em seus poderes especiais, principalmente pela suposta capacidade de um acelerado desenvolvimento e do funcionamento superior de seus outros sentidos.
Para
Blank, estas atitudes são universais pela importância da visão no desenvolvimento psicossexual e do ego, e pela existência, praticamente em todos nós, de conflitos não resolvidos de escopofilia e exibicionismo, sendo por isso a cegueira uma poderosa instigadora de transferência e contratransferência.
O autor apresenta o estudo de quatro casos - de duas crianças com cegueira congênita, de uma mulher de 35 anos com cegueira adquirida há 5 anos, e de uma garota de 12 anos com cegueira progressiva - e salienta que a época de incidência da deficiência é um fator preponderante da influência da cegueira sobre a personalidade.
Nos casos de cegueira congênita,
Blank enfatiza que os distúrbios de personalidade dessas crianças têm origem em causas que não a cegueira em si, mas, particularmente, nas distorcidas interações com os pais e na já citada ambivalência para com os cegos.
Descreve dois casos com desenvolvimentos bem diversos como demonstração.
Blank considera a cegueira adquirida, inevitavelmente traumática, pela ruptura nos padrões já estabelecidos de comunicação, mobilidade, trabalho, recreação, e sentimentos acerca de si próprio.
Estabelece diferenças para os casos de cegueira súbita e progressiva.
Considera que a reação de uma personalidade sadia ante uma cegueira súbita pode ser dividida em dois estágios: o choque imediato e a recuperação subseqüente, a qual denomina estágio definitivo.
O choque consiste em despersonalização seguida de depressão. A fase de despersonalização dura de 2 a 7 dias.
O paciente fica imóvel, com expressão facial vazia, há uma hipoestesia generalizada, mutismo ou fala entrecortada, lenta e abafada.
Superficialmente, esta condição pode lembrar a catatonia. A despersonalização parece ser uma defesa emergente contra a ameaça de dissolução do ego, pela irrupção de afetos opressivamente dolorosos. ”Os afetos são afastados para emergir passo a passo quando podem ser manipulados por um ego em pedaços” (p. 11).
A emergência dos afetos aparece na depressão. Pode ser uma depressão reativa aguda ou uma depressão agitada, é uma fase de pesar pela perda dos olhos.
Blank afirma ser esta uma fase muito importante, e aqueles a quem não se permite completar o trabalho de lamentação podem apresentar posteriormente sérios problemas emocionais.
O conceito de renascimento como pessoa cega é essencial para uma recuperação bem-sucedida - esta inclui uma redefinição do ego e a formação de uma nova autoimagem.
A capacidade de recuperação da fase de choque dependerá do grau de maturidade e força do ego à época do acidente ou doença causadora da cegueira.
Nos casos de cegueira adquirida na infância é fundamental a fase psicossexual de desenvolvimento em que esta ocorre, além da qualidade do relacionamento entre os pais e a criança antes da ocorrência da cegueira.
Nos casos de cegueira progressiva, a fase de despersonalização não ocorre e a fase de depressão pode ter sua severidade reduzida pelo fato de a fase de lamentação ocorrer antes do advento da cegueira.
Salienta a importância nesta fase de acompanhamento psicanalítico que ofereça sustentação para a fase de lamentação.
No texto ”Dreams of the blind”,
Blank refere-se ao trabalho de McCartney, ele mesmo cego há 17 meses, "A comparative study of dreams of the blind and of the sighted
With special reference to
Freud’s theory", uma tese de mestrado em arte, apresentada ao departamento de
Filosofia da Universidade de Indiana em 1913, não publicada.
Nesse trabalho, são analisadas centenas de sonhos, inclusive do próprio autor, que confirmam a teoria
Freudiana de sonhos.
McCartney afirma (apud Blank , 1958): sonhos de vôos e quedas têm um significado sexual, embora eles possam ter se iniciado por um estímulo somático; pesadelo é de origem sexual; e o cego difere pouco do vidente quanto a sonhos de morte, e...
Tais sonhos freqüentemente representam realização de desejos.
Segundo
Blank, os cegos congênitos, e os que ficaram cegos antes dos 5 anos de idade, não têm sonhos visuais, sendo as imagens auditivas preponderantes em seus sonhos.
Já aqueles que ficam cegos depois dos 7 anos têm sonhos que são povoados de imagens visuais.
Para ele, não há diferenças essenciais entre os sonhos dos cegos e videntes, e a análise de sonhos dos cegos serve como comprovação da teoria psicanalítica dos sonhos.
Descreve como típicos dos cegos os sonhos ”de fora”, determinados primariamente por problemas da realidade.
São freqüentemente diálogos significativos de resíduos diários, relacionados à cegueira mais do que expressões de conflitos profundamente reprimidos.
A análise das pesquisas no referencial psicanalítico levante a concluir que, embora os especialistas também tomem por base o sujeito ”normal”, comparando a criança vidente e a cega para a análise dos efeitos da cegueira sobre o desenvolvimento, os resultados da análise nos falam de modificações no processo de desenvolvimento do ego causadas pela ausência de visão: isto, quero crer, contribui para uma nova percepção da influência da cegueira na constituição da personalidade e para maior compreensão das perturbações a que estão sujeitos os indivíduos impedidos de percepção visual no decorrer de seu desenvolvimento.
1.4. O desenvolvimento da personalidade do cego
Como se pode observar pelos estudos realizados, é inconsistente falarmos em desenvolvimento da personalidade dos cegos, tanto por causa das diferentes e mesmo controversas conclusões a que chegaram os especialistas da área, quanto pela inexistência de um grupo único de sujeitos que possa ser classificado por esta condição.
Entre os vários autores que estudaram o cego, podemos ver aqueles que consideram que este não tem mais problemas psicológicos do que os videntes (Schnittjer e
Hirshoren, 1981).
Outros que se concentram nas vicissitudes do desenvolvimento precoce, seus períodos sensoriais, o papel organizador da visão e as perigosas possibilidades de atraso e perturbações permanentes de desenvolvimento na ausência de uma intervenção precoce (Burlingham, 1965,
Fraiberg, 1977 e Sandler, 1965).
Outros ainda que afirmam seu atraso na organização das estruturas cognitivas; permanência e conservação de objetos, classificação e formação das imagens mentais, aquisição e significado das palavras (Gottesman, 1976,
Miller, 1969 e Simpkins e Stephens, 1973-1974).
Mas há também os que, embora reconhecendo diferenças no desenvolvimento precoce e dificuldades na aquisição de conceitos e organização das estruturas cognitivas, enfatizam a possibilidade de retomada para um comportamento adaptativo (Lowenfeld, 1950-1973,
Swalow, 1976,
Hall, 1981 e Warren, 1984).
E há também aqueles para quem as pessoas cegas são feitas, não nascidas, no sentido de que são socializadas pelo ”sistema da cegueira”, ou seja, os grupos sociais: família, escola, igreja, grupos de trabalho e mesmo as instituições que existem para servi-los, lhes impõem padrões e papéis sociais que resultam em características identificáveis à cegueira (Cutsforth, 1951,
Scott, 1969).
Por outro lado, há a impossibilidade de considerarmos a condição de cegueira como fator constituinte de um único grupo.
Há entre os cegos diferenças quanto à quantidade de visão residual, época de incidência da perda e aquisição súbita ou progressiva da deficiência, fatores de grande peso nos efeitos que a cegueira produz no desenvolvimento dos sujeitos.
Outro aspecto notado é que, enquanto alguns pesquisadores centram suas questões na análise das dificuldades decorrentes da ausência ou limitação da percepção visual, outros consideram as condições sociais como causa das maiores dificuldades enfrentadas pelos cegos.
Embora se possa considerar que esses dois aspectos sejam inseparáveis, os estudos realizados parecem mostrar que quanto mais cedo ocorre a cegueira maior será sua influência sobre o desenvolvimento da personalidade e maior o peso concedido à ausência da visão, enquanto que, nas cegueiras adquiridas posteriormente, os efeitos sociais e as condições do sujeito anteriores ao evento frustrador tornam-se preponderantes.
Todavia, algumas áreas e funções são apontadas, em vários trabalhos de diferentes enfoques, como particularmente afetadas pela cegueira.
Essas servirão de referência para uma organização dos dados de maneira a permitir uma apreensão orgânica dos efeitos da cegueira no desenvolvimento e formação da personalidade.
Na descrição que se segue, os sujeitos cegos serão considerados em dois grupos: os de cegueira congênita (de nascimento ou adquirida no primeiro ano de vida) e os de cegueira adquirida posteriormente.
1.4.1 A cegueira congênita e o desenvolvimento dos primeiros anos de vida
É facilmente compreensível que a simples existência de uma criança deficiente invariavelmente altere o equilíbrio familiar, e muitos estudos se preocuparam em mostrar o impacto do diagnóstico da cegueira sobre os pais.
Alguns o apontam como responsável por evidentes transtornos familiares, desde a separação dos pais até severas psicopatologias de seus membros (Cutsforth, 1961).
Observação freqüente é a de uma discrepância entre a reação da família e as limitações reais que a deficiência causa.
Lairy e Covello (1975) consideram, por isso, que se devem levar em conta dois pontos nas atitudes dos pais: o valor simbólico que a deficiência tem para eles e o papel dos elementos patológicos na estrutura dos pais, anteriores ao nascimento da criança cega.
Um diagnóstico de cegueira é provavelmente um dos maiores choques que os pais podem suportar, e
Sonksen, (1983, apud Freeman ei alii, 1989) entende que há uma qualidade específica no choque a este diagnóstico em comparação com as outras condições crônicas, explicado pela simbologia da cegueira, campo fértil para produção de fantasias e, no dizer de
Blank (1957), para transferências e contratransferências.
Algumas reações familiares são consistentemente apontadas pelos autores: depressão dos pais (especialmente da mãe), narcisismo ferido e sentimentos de culpa e ansiedade, que vão progressivamente evoluindo para atitudes compensatórias de rejeição, superproteção ou aceitação: mas, de acordo com os estudos psicanalíticos, mesmo supondo uma relação ideal mãe-filho, as primeiras etapas do desenvolvimento da criança cega seguem um caminho diverso do das crianças com visão, havendo fases vulneráveis em seu processo de formação de ego que podem ser distorcidas pelo seu déficit sensorial.
O desenvolvimento das relações objetais
Os estudos mais importantes sobre o desenvolvimento dos primeiros anos de vida derivam da psicanálise, e estes autores (Burlingham, 1961,
Wills, 1970, Sandler, 1963, Omwake e Solnit, 1964, Fraiberg e Freedman, 1964,
Fraiberg, 1977, Warren, 1984) salientam as dificuldades dos primeiros contatos da mãe com seu bebê cego, em contraste com o orgulho e o prazer das mães de bebês normais.
Estas mães freqüentemente descrevem seus sentimentos de injustiça, orgulho ferido, culpa e depressão, que as fazem se afastar emocionalmente do filho e algumas vezes, inconsciente ou racionalmente, desejarem sua morte.
E o bebê, num dos períodos mais vulneráveis de seu desenvolvimento, naturalmente reage a este afastamento com passividade.
Esta fase, apontada por Wills (1970) como período crítico no desenvolvimento da criança cega, é estudada por numerosos psicanalistas e considerada por alguns como irreversível (Sandler, 1963) e por outros como de possível compensação por uma maternagem especial (Omwake e
Solnit, 1961, Wills, 1970, Warren, 1984).
Sandler (1965) considera que esta deformação específica do ego decorre de um desenvolvimento divergente que começa por volta dos quatro meses; até esta idade, os bebês cegos e videntes são comparáveis em seu estado narcísico primário, autocentrado e indiferenciado, quando não estabelecem diferenças entre o eu e o nÃo eu, e apenas experimentam prazer quando suas necessidades são satisfeitas e desprazer quando não.
Com a maturação biológica, sensações de prazer e desprazer começam a relacionar-se a excitações do mundo externo e as representações primitivas do objeto parcial começam a ser organizadas e investidas pulsionalmente.
A criança torna-se menos passiva e experimenta aumento de frustração que constitui uma ameaça a seu estado narcísico onipotente original.
A frustração age como um incentivo para o desenvolvimento do ego e, como diz
Freud (1914): ”o desenvolvimento do ego consiste em uma saída do narcisismo primário para uma vigorosa 60 tentativa para reconquistar este estado”.
Neste ponto, a criança cega entra em uma fase crítica de seu desenvolvimento. Ao nascer, a boca é o órgão dominante de procura e busca, e no início da segunda fase as mãos e os olhos tornam-se preponderantes.
A criança começa mais e mais a usar suas mãos, e a visão torna-se complementar neste movimento para o mundo externo.
Como a mão, a visão fica a serviço da boca na busca e pesquisa do mundo externo.
Progressivamente, ambas tornam-se independentes da boca e passam a ter função sobre os dois atributos da energia oral: libido e agressão.
Exploração e domínio do mundo externo progressivamente vão-se modificando e se tornando um prazer em si mesmos, independentes da sucção e da mordida.
O centro de interesse da criança é então parcialmente removido de seu próprio corpo para uma estimulação social direta.
Como dizem
Fraiberg e Fredman (1964), a falha na aquisição da autonomia da mão e uma percepção centrada na boca são uma das características principais das crianças cegas com sérias perturbações de desenvolvimento.
Embora grande parte das crianças cegas conserve a boca como um órgão importante de discriminações perceptivas por toda a vida, o uso de uma zona altamente carregada de força pulsional para a percepção traz implicações para a formação do ego.
Um objeto para ser desejável precisa satisfazer necessidades ou estar associado à estimulação oral; permanecendo a boca como órgão primário de percepção, restringe experiências com objetos e põe obstáculos ao desenvolvimento que conduz à descoberta da natureza desses objetos.
Numerosos fatores relacionados à falta de visão podem explicar o atraso da criança cega nesta fase.
Nesta idade, a atividade fundamental da criança é a exploração visual, seus olhos voltam-se freqüente e livremente, fixando-se sobre um objeto ou outro.
A criança que antes agarrava os objetos com suas mãos agora cata-os com os olhos.
Isto é negado à criança cega, que perde a continuidade com o meio ambiente.
Além disso, ela é privada do contínuo feedback visual de sua mãe, uma resposta que premia e reforça seus esforços.
A dificuldade em dominar o ambiente externo leva o bebê cego a concentrar-se sobre suas próprias experiências corporais, e a experienciar uma constante auto-sedução.
Por outro lado, este bebê recebe menor quantidade e variedade de estímulos do mundo externo. É freqüentemente dito e reforçado que a criança cega necessita de um conjunto extra de estímulos para compensar sua falta de visão, mas geralmente neste momento ela recebe menos, tanto pelas reações da mãe como por sua própria deficiência, geradoras de dificuldades em suas interações.
Embora a mãe possa ter respostas positivas aos progressos do filho, ela muitas vezes tem dificuldades em se comunicar com sucesso com ele.
O bebê não poderá ver a expressão facial de sua mãe, seu sorriso, seu olhar encorajador e de prazerosa expectativa; esta falta de resposta afetará a atividade e o prazer do bebê cego em seu movimento em direção ao ambiente externo.
O desenvolvimento da mobilidade
Atraso e restrição na mobilidade são apontados por muitos como freqüentes entre as crianças cegas, sendo mesmo considerado que a aquisição da marcha é mais tardia em todos (Norris et al., apud
Fraiberg, 1969).
Lowenfeld (1981) considera a restrição na mobilidade uma conseqüência inerente à ausência de estímulo visual.
Outros observadores atribuem este atraso à falta de oportunidades fornecidas pelo ambiente, sendo bem conhecida a ansiedade das mães que muitas vezes impedem seu desenvolvimento, não lhes permitindo uma movimentação livre.
Não podemos nos esquecer, entretanto, que a busca de objetos é condição fundamental para que a criança comece a engatinhar, o que não ocorre na ausência dos estímulos externos proporcionados pela visão.
Quando a prontidão para engatinhar é atingida, a criança já desenvolveu a busca de objetos no espaço, e a atração de um objeto estimula a seqüência de movimentos.
A cegueira, todavia cria um trágico dilema: o conceito de objetos no espaço só pode ser conseguido por meio da movimentação, e esta é motivada pela busca de objetos.
Fraiberg e Freedman (1964) afirmam que a dificuldade no desenvolvimento da locomoção induzida pela cegueira interfere na descoberta do mundo pela criança cega.
A criança cega depende intensamente da locomoção para fazer distinções cruciais entre o selfe o mundo externo e construir o mundo objetal, mas, por outro lado, a ausência de visão impede o estabelecimento da mobilidade.
Para a criança cega, movimentar-se é essencial para o estabelecimento das primeiras ligações com o mundo externo.
Ela tem pouco conhecimento da estrutura do espaço ao seu redor antes que possa mover-se para descobri-lo. É necessário um aumento de movimentação para a aquisição de informações, mas, ao mesmo tempo, há a ausência da motivação que normalmente é proporcionada pela visão.
Para um bebê cego, há pouco incentivo para explorar um mundo desconhecido e incompreensível, mas muitas razões para temer as conseqüências desta exploração.
Neste momento, as condições ambientais são fundamentais: a criança cega precisa ser incentivada a descobrir soluções adaptativas complexas, porque falhas neste período crítico podem levar à interrupção do desenvolvimento descrita por
Fraiberg (1971), levando ao quadro de graves perturbações encontrado entre os cegos.
Por outro lado, devemos nos lembrar, como diz
Burlingham (1965), que o controle da movimentação é uma forma essencial de autoproteção adotada pelos cegos, podendo se notar a determinação com que algumas destas crianças desde cedo fecham este caminho, que normalmente serve para descargas de energia corporal.
A conseqüência desta auto-restrição na atividade motora pode ser responsável por depressões, tédio e falta de espontaneidade, observada com freqüência entre os cegos, ou então, as energias que se expressam em atividades construtivas, ficando reprimidas, encontram sua expressão nos movimentos rítmicos e repetitivos realizados pelos cegos.
O desenvolvimento da linguagem oral
Podemos dizer que a linguagem é a função humana primordial e condição fundamentalmente propiciadora do desenvolvimento.
Pela linguagem verbalizamos nossa percepção do mundo externo, o que contribui para o conhecimento deste e para a obtenção de objetos para a satisfação dos desejos e necessidades.
Verbalizamos nossos sentimentos - o que conduz a um aumento da função controladora do ego sobre os afetos e impulsos - e verbalizamos nossos pensamentos - aumentando a possibilidade de distinção entre desejos e fantasias de um lado e a realidade do outro.
Para os cegos, a linguagem e a fala, além de servirem para estas mesmas funções, são usadas também para outros fins.
A falta de visão estimula a criança cega a usar as palavras como substitutas de coisas que não vê.
Ela descobre usos para a fala em diferentes atividades: para se orientar, para catalogar características que diferenciam as pessoas, para descobrir alguma marca pela qual um objeto possa ser reconhecido...
Por outro lado, a falta de visão torna muitas palavras sem significado ou lhes dá um significado diverso.
Burlingham (1965) refere-se a alguns conceitos das crianças cegas que parecem totalmente incompreensíveis, a outros em que há compreensão parcial, e a palavras que são usadas meramente por imitação.
Isto porque raramente as crianças cegas constroem sua linguagem com base apenas em suas percepções.
Santin e Simmons (1977) chamam a atenção para as dificuldades da criança cega no estágio inicial de elaboração da fala.
Se de um lado a criança cega é totalmente dependente do vidente como transmissor do simbolismo para a utilização de sua linguagem, por outro, ela está divorciada das concepções de mundo deste mediador.
Se considerarmos a linguagem como uma tradução de experiências de modelos de mundo, devemos considerar o mundo da criança cega.
Enquanto o cego experiência o mundo pelo tato, audição, cinestesia, olfato e gosto, o mundo lhe é explicado pela linguagem daqueles que pouco se utilizam deste conjunto de experiências sensoriais.
Este problema central de incompatibilidade entre percepções do mundo por cegos e videntes força a criança cega a um contínuo processo de solução de problemas.
A dificuldade das crianças cegas em adquirirem o significado das palavras explicaria a ecolalia, a perseveração e o verbalismo freqüentemente descritos entre os cegos.
Todavia, deve-se tomar cuidado ao interpretar como verbalismo algumas expressões verbais dos cegos; estes podem estar apenas refletindo conceitos elaborados por meio de processos que seguem outros caminhos, como lembram
Anderson (1981) e Hall (1981).
O desenvolvimento de conceitos,
A formação de conceitos a partir das experiências táteis-cinestésicas e auditivas, e a ausência da visão - meio por excelência para a organização e integração das informações sensoriais -, são um outro problema para a criança cega.
Fraiberg (1977) descobriu que a aquisição do conceito de objeto é retardada na criança cega e está relacionada à aquisição da coordenação ouvido-mão, porque o som em si não confere substancialidade aos objetos.
Assim, além do problema específico da criança cega em estabelecer relações pré-objetais e objetais, seus problemas de adaptação nos primeiros anos de vida são infinitamente mais complexos devido às dificuldades na utilização de experiências táteis-cinestésicas e auditivas na construção do conceito de objetos.
Para Santin e Simmons (1977), a ausência de estimulação para dirigir a atenção das crianças para os objetos do ambiente, mais a impossibilidade de usar a visão como meio de organização e integração das informações sensoriais, conduz a uma formação de conceito de objeto diferente daquela das crianças que enxergam, e, embora as crianças cegas atribuam a esses objetos as mesmas palavras usadas pelos videntes, estas palavras possuem significados diferentes, peculiares ou pessoais.
Embora diferentes estudos tenham chegado a conclusões diversas, ou mesmo contraditórias, a formação de conceitos e todas as funções cognitivas decorrentes parece se constituir como um sério problema para os sujeitos cegos congênitos.
E mesmo não se tendo chegado a conclusões absolutas sobre a efetiva influência da cegueira sobre o desenvolvimento cognitivo, alguns pontos parecem consensuais.
A criança cega apresenta desenvolvimento mais lento se comparada à criança vidente.
Este tempo maior exigido para o desenvolvimento do cego parece estar relacionado a sua maior dificuldade na apreensão do mundo externo na ausência da visão - sentido primordial para a integração das informações, e possuidor de qualidade específica para apreensão imediata de diferentes aspectos do ambiente, forma, tamanho, espaço, posição relativa e cor.
O difícil percurso a ser realizado pelas crianças cegas de nascença pode ser uma explicação para o grande número de crianças que apresentam o quadro clínico de não diferenciação, semelhante ao das crianças autistas, com interrupção do desenvolvimento a níveis precoces, descrito pelos psicanalistas como de alta freqüência entre as crianças cegas desde o nascimento.
A maternagem especial, colocada por alguns autores como uma condição essencial para que a criança possa trilhar com sucesso esse perigoso caminho, supõe uma especial sensibilidade da mãe para encontrar meios para estabelecer, por meio da manipulação e da fala, um contato satisfatório para ambas.
Além disso, Willis (1965) considera que a mãe precisa também proporcionar uma espécie de ego auxiliar para a criança, não no sentido de uma suplementação de controle, mas no sentido de lhe oferecer experiências significativas do mundo.
As mães das crianças videntes fazem isso automaticamente, a partir de suas próprias experiências, mas as mães videntes de crianças cegas precisam aprender como fazê-lo com seus próprios filhos.
Precisam descobrir formas para ajudá-los a organizar e explorar seu mundo, e precisam incentiválos a participar da rotina da vida familiar, revertendo sua tendência à auto-sedução.
O interesse pelo mundo externo é uma condição fundamental para o desenvolvimento da criança.
Supondo que a criança tenha sido ajudada a superar esta barreira e esteja dirigindo-se pulsionalmente para o mundo externo, ela precisará também da ajuda da mãe para sintetizar estas experiências.
Inundada por estímulos sonoros e táteis-cinestésicos, sem a ajuda da visão, a criança terá dificuldades em dirigir sua atenção de modo a apreender os atributos essenciais e organizar suas experiências em conceitos prontamente identificáveis.
Embora generalizações a partir da observação de algumas crianças sejam discutíveis, esse quadro de referência ajuda-nos a compreender as dificuldades de algumas crianças com cegueira congênita em encontrar o caminho para um desenvolvimento plenamente satisfatório.
Sabemos que entre os sujeitos cegos de nascimento podem ser encontrados aqueles que se desenvolvem tão bem, que são capazes de cursar uma universidade e atingir altos níveis de desenvolvimento pessoal, e aqueles cujas dificuldades de desenvolvimento se escalonam em vários níveis, desde interrupções em estágios primitivos até pequenos atrasos em áreas específicas.
Isto nos explica as grandes controvérsias encontradas em pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo realizadas sobre o referencial
Piagetiano.
E porque, como diz Tobin (1972), alguns atingem um nível de realização comparável ao das melhores crianças videntes, enquanto outros encontram-se muito abaixo da média por elas alcançada.
Acreditamos que a cegueira congênita impõe à criança formas tão complexas de adaptação e que seus primeiros anos de vida as expõem constantemente a um tão longo e traiçoeiro caminho, que muitas têm dificuldades em vencê-lo, o que só será conseguido graças a condições muito especiais da criança e de seus pais.
As qualidades descritas por Winnicott como necessárias às mães suficientemente boas parecem ser aqui imprescindíveis: a capacidade de servir como ego auxiliar no momento certo e a empatia de permitir à criança sua expansão e criação pessoal, quando necessário.
Esta não é uma tarefa fácil para os pais que já estão lidando com suas dificuldades pessoais diante de uma intensa frustração, além da angústia de se identificar com um bebê cego e portanto desconhecido.
Por esta razão, parece ser de suma importância o acompanhamento e a orientação dos pais e seus bebês desde os primeiros dias de vida de uma criança cega.
1.4.2. A aquisição da cegueira
A caracterização dos efeitos produzidos na personalidade pela aquisição da cegueira apresenta tantas variáveis que torna difícil pensarmos em um grupo de pessoas com cegueira adquirida.
A perda da visão pode ocorrer por diversas condições, várias formas, e em diferentes idades.
Há casos em que a cegueira é causada por doenças que atingem especificamente o aparelho ocular, como o glaucoma, a catarata e as distrofias periféricas e centrais, e aqueles em que esta condição é associada a outros problemas orgânicos, como a diabetes, ou síndromes neurológicas que afetam o nervo óptico.
Nestes casos, geralmente a cegueira é progressiva, com tempo variável na instalação da perda total da visão.
Há também os casos de cegueira adquirida súbita e traumaticamente por acidentes, que podem ocorrer com crianças, adolescentes ou adultos.
Assim, podemos considerar que os efeitos da cegueira adquirida sobre a personalidade estão em função de três fatores: a fase de desenvolvimento em que se encontra o sujeito, a forma de instalação da cegueira (súbita ou progressiva), e as condições pessoais e familiares do sujeito antes da ocorrência do problema.
A época de incidência da cegueira
Como já discutido anteriormente, embora os educadores considerem cegueira congênita aquelas adquiridas até os 5 anos de idade, os estudos psicanalistas mostram diferenças no desenvolvimento da personalidade das crianças quando a cegueira 68 ocorre nos primeiros anos de vida.
E como diz Blank (1957), é muito importante considerar-se a fase do desenvolvimento psicossexual da criança na época da instalação da cegueira e a reação dos pais ao evento traumático.
Podemos considerar que o advento da cegueira posterior à fase de desenvolvimento constitucional do sujeito, ou seja, da solução do complexo edipiano, produz efeitos muito menos traumáticos do que quando esta ocorre anteriormente.
Naqueles casos, as características de personalidade apresentada pelas crianças cegas parecem estar muito mais relacionadas às reações dos pais ante a cegueira do que à condição orgânica em si.
Os pais que adotam uma atitude de superproteção para com seus filhos fazendo tudo por eles, inclusive aquelas atividades que eles poderiam facilmente realizar, além de estarem impedindo importantes experiências favorecedoras de seu desenvolvimento, estão também transmitindo-lhes um conceito de incapacidade e insuficiência de difícil superação.
Estas crianças tendem a desenvolver excessiva dependência por toda a sua vida e, segund
Lambert, R.
e West, M.
(1980), uma atitude passiva e hostil. Já os pais que têm dificuldades em aceitar as limitações impostas pela deficiência colocam uma excessiva pressão sobre a criança para que ela se desenvolva e funcione ”normalmente”.
Esta condição, além da alta carga ansiógena que produz, pode levar a criança a atitudes de extrema agressividade, tentativa de manipulação de seus pares (Lambert,
R. e West, M., 1980), e extrema dependência ao objeto externo, numa tentativa de satisfação do desejo dos pais.
Estas crianças podem desenvolver um ”falso self”, no dizer de Winnicott, não conseguindo atingir um desenvolvimento pleno e satisfatório.
Devemos considerar também os casos de cegueira ocorrida na adolescência, época por excelência de luta pela independência, definição de papéis sociais e escolha do objeto afetivo fora do lar.
A reorganização da auto-imagem, a redefinição de ideal de ego, a reorganização perceptiva, enfim, o ”renascimento” como pessoa cega deve-se constituir numa difícil tarefa para um jovem nesse momento.
Nestes casos, cremos que a organização da personalidade e a força de ego existentes antes deste evento altamente frustrador são essenciais para um desenvolvimento satisfatório da personalidade.
As pessoas que são acometidas de cegueira na vida adulta deparam-se com outros problemas: realização profissional, subsistência econômica e manutenção do papel social e familiar desempenhado antes da cegueira.
Estas condições também estão estritamente relacionadas com as condições pessoais do sujeito, com as reações familiares, e com o conceito de cegueira anteriormente possuído.
A cegueira súbita ou progressiva
A cegueira adquirida subitamente por algum acidente apresenta inicialmente uma intensa reação ao choque sofrido, e só posteriormente uma lamentação pelas perdas e privações que sobrevêm a este.
As reações ao choque descritas por Blank como despersonalização, e por Vash (1988) como uma experiência de encontro muito próximo com a morte, exigem uma retirada momentânea da carga afetiva e um posterior tempo de luto e lamentação para a pessoa digerir suas perdas.
Só depois ela poderá enfrentar o longo caminho de ”renascimento” como pessoa cega.
Cholden (1958) e Blank (1957) afirmam que a tragédia da cegueira adquirida se aprofunda e prolonga quando se encoraja o paciente a fugir da aceitação da realidade que pesa sobre ele.
Sem dúvida, a perda da visão é um morrer, é o fim de uma certa maneira de viver, é o término de métodos adquiridos de realizações, é a perda de relações humanas estabelecidas, e de uma auto-imagem como pessoa vidente.
Para
Shontz (apud Cook, 1981), tipos específicos de incapacidade não estão associados a características específicas de personalidade, embora a incapacidade física afete o comportamento do indivíduo, causando um profundo impacto ao seu ajustamento.
Na cegueira progressiva, a ausência do choque e a possibilidade 70 de convivência com a idéia de que pode vir a tornarse cego pode, por um lado, ajudar aqueles que são capazes de enfrentar a adversidade, facilitando-lhes o acesso a informações e apoio antes do advento da cegueira; mas, por outro lado, pode criar um estado de contínua ansiedade pela ameaça de um perigo iminente.
Em resumo, podemos reafirmar que as características de personalidade dos sujeitos com cegueira adquirida estão muito mais relacionadas às condições pessoais anteriores à perda da visão e à simbologia da cegueira possuída por ele e seus familiares do que à condição específica de ausência de percepção visual.
Podemos, neste momento, relembrar a afirmação de Scott (1969) de que o cego é feito, não nascido.
1.4.3. Problemas comumente apontados entre os cegos
Embora tenha sido afirmado por vários estudiosos que não há características de personalidade específicas que possam ser relacionadas com a cegueira, notadamente com a adquirida, alguns tipos de comportamento têm sido referidos como mais freqüentes entre os cegos.
A maior freqüência entre os cegos congênitos, de comportamentos semelhantes aos encontrados nas crianças com autismo infantil, é salientada pelos psicanalistas, e foi intensamente estudada por
Fraiberg e Freedman (1964) e Fraiberg (1977).
Estas crianças são descritas como apresentando comportamento estereotipado de movimento de mãos, balanço ou rotação corporal, mutismo ou fala ecolálica.
Mostram ausência de reações afetivas, não respondendo às mães ou a qualquer outro ser humano, e revelam uma interrupção precoce do desenvolvimento.
Os autores consideram que este caminho de desenvolvimento é grandemente influenciado pela ausência da percepção visual no início da vida, além das dificuldades oriundas da relação mãe-bebê.
Comportamentos estereotipados ou maneirismos, freqüentes entre as crianças cegas, são denominados ”ceguismos”, embora não sejam específicos delas.
São movimentos rítmicos do corpo, hábito de apertar os olhos ou de bater com as mãos na cabeça.
Freeman ef alii (1989) afirmam que estes comportamentos ocorrem quando a criança está excitada, isolada ou entediada.
Para Burlingham (1961) e Sandler (1963), estes movimentos servem como substitutos de uma atividade muscular normal e como descarga do impulso agressivo.
Por outro lado, podem também ser considerados como manifestações auto-eróticas.
Nagera e
Collona (1965) explicam esse comportamento como a contrapartida de uma fuga de contato e um maior investimento afetivo nas sensações corporais e nos estímulos internos.
O maior problema causado pelos maneirismos, todavia, parece ser o impacto social negativo que eles causam, prejudicando as relações sociais e a aceitação da criança cega.
A dependência/independência é outro problema referido consistentemente em relação aos cegos.
A maior dependência do mundo externo é vista por uma constante necessidade de reafirmação e da dificuldade do cego em manter sua auto-estima quando não sente resposta afirmativa do ambiente.
Nagera e Collona (1965) afirmam que as crianças mostram extrema ansiedade quando não há alguém à mão para protegê-las.
Elas sentem perigos ao seu redor e incapacidade de cuidar de si mesmas na ausência de alguém que as proteja.
Esta condição favorece um freqüente conflito entre os cegos, um desejo de independência e de auto-afirmação e a sempre presente necessidade real de um contínuo suporte e proteção do ambiente externo.
O resultado de tais conflitos quase sempre se mostra por extrema passividade e prontidão para cumprir as demandas do objeto externo, por medo da perda do amor e do aniquilamento.
Outras vezes, o desejo de independência leva-os a não pedir ajuda, mas, como a tentativa de fazer sozinho demanda um tempo muito maior de realização, eles têm que se haver com a impaciência e irritação dos videntes.
Os cegos parecem estar sempre em confronto corn estes problemas, e viver um contínuo teste de seu próprio poder de realização e aceitação.
A agressividade também é apontada como uma área em que os cegos mostram dificuldades. É descrita com freqüência uma tendência a inibir qualquer forma de expressão agressiva, principalmente para com aqueles de quem dependem.
Isto parece ser devido, em parte, ao medo da perda do favor e amor do objeto afetivo, mas também devido à projeção agressiva transformada em medo de aniquilamento pela sua grande dependência do objeto por questões de segurança, como dizem
Nagera e Collona (1965).
A repressão agressiva pode também ocorrer pela dificuldade em verificar seus efeitos, que em sua fantasia aparecem como catastróficos.
Por outro lado, os cegos mostram muito medo de ser atacados, por não poderem controlar visualmente as expressões de raiva nos outros, e por faltar-lhes liberdade de movimentação que lhes possibilite correr ou adotar alguma outra ação evasiva.
Outro problema apontado é a vida de fantasia, existindo diferenças entre os sujeitos com cegueira congênita e com cegueira adquirida.
Entre as crianças que nascem cegas, parece haver uma certa confusão entre a realidade e o faz-de-conta, o que provoca uma ruptura em suas próprias fantasias e preocupações inesperadas em áreas familiares.
Wills (1965) explica esta dificuldade pela restrição causada pela ausência da visão no conhecimento do mundo externo, que leva a uma menor discriminação entre o real e o imaginário.
Contudo, a vida de fantasia da criança cega mostra-se algumas vezes extremamente limitada em comparação com a riqueza de imaginação e produção de fantasia das crianças videntes.
A produção de fantasia é um conhecido sintonia neurótico, que geralmente representa a fuga de uma realidade dolorosa que interfere com os processos de gratificação.
Todavia, a criança cega, a despeito de sua realidade grandemente desprazerosa, no dizer de
Nagera e Collona (1965) não pode se permitir o afastamento da realidade externa.
Somente uma vigilância constante de seu sistema perceptivo poderá lhe proporcionar a fuga do desprazer.
Desta forma, muito de sua atividade mental consistirá em vencer, por meio da repetição e da imaginação, as muitas situações dolorosas que elas experimentam.
Já as pessoas com cegueira adquirida, principalmente a partir da adolescência e na vida adulta, segundo
Cutsforth (1968), apresentam intensa vida de fantasia, tanto para a satisfação das pulsões agressivas, inibidas na vida diária pela necessidade do estabelecimento de relações sociais satisfatórias, como para a satisfação de desejos não obtidos do mundo externo.
Entretanto, embora muitos estudos e pesquisas tenham sido realizados com o intuito de verificar a influência da cegueira sobre o desenvolvimento, a aprendizagem, e o ajustamento das pessoas, algumas questões permanecem sem solução.
A compreensão dos cegos a partir de parâmetros estabelecidos pelos estudos com sujeitos visualmente normais não deixa de lado aspectos fundamentais da personalidade dos cegos?
A condição de pessoa cega não impõe situações específicas, a despeito da época de incidência da perda visual, originadas dos conceitos simbólicos e metafóricos de cegueira?
Os procedimentos de diagnóstico utilizados até o momento são suficientes para a apreensão da dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos?
Estas questões serviram de base e orientação para a realização deste trabalho.
Capitulo 2
Proposta de trabalho
Diferentes autores seguiram caminhos dos mais diversos na busca da compreensão dos sujeitos cegos, procurando, além do objetivo específico de compreendê-los, analisar a influência da ausência da visão no processo do desenvolvimento humano.
Observa-se, entretanto, pelos exames dos estudos realizados com esse grupo de sujeitos, maior preocupação com a influência da cegueira sobre o desenvolvimento cognitivo.
Há predominância de pesquisas sobre procedimentos e instrumentos de avaliação intelectual e sobre o desenvolvimento das funções cognitivas realizadas por teóricos
Piagetianos.
Esta parece ser uma preocupação universal, creio que tanto pela dificuldade real que a ausência de visão traz para a formação e aquisição de conceitos, como pela identidade simbólica entre ver e conhecer.
Todavia, as relações simbólicas do ver com os afetos e as emoções, amplamente salientadas pela psicanálise e exploradas nas concepções populares e literárias de cegueira, não têm merecido a mesma atenção.
A quantidade de estudos na área do desenvolvimento cognitivo, em comparação com o reduzido numero de pesquisadores que se propuseram a estudar os aspectos afetivo-emocionais dos sujeitos cegos, nos leva a crer na existência de lacunas neste campo.
Um estudo que procure entendê-los a partir da dinâmica de sua personalidade, analisando globalmente seu funcionamento mental, buscando a compreensão do valor da cegueira nas angústias nucleares do sujeito, nas escolhas individuais de objeto afetivo, na definição de mecanismos de defesa, ou de caminhos para a elaboração egóica, poderá trazer elementos contribuidores, não só para a compreensão das pessoas cegas, como também sobre o impacto na personalidade, de uma perda ou ausência significativas.
Contudo, os estudos anteriores, preocupando-se com a comparação entre cegos e videntes, nos oferecem resultados que mostram atraso ou não na aquisição de determinadas funções, possibilidades ou não de as pessoas cegas realizarem determinadas tarefas, mas pouco explicam sobre os caminhos necessários para a aquisição destas funções, ou de que mecanismos os cegos se utilizam para a consecução de certos objetivos.
Meu trabalho propõe uma ruptura com esse sistema, um estudo sobre os cegos sem nenhuma comparação com os videntes, buscando compreendê-los a partir exclusivamente da análise de suas produções.
Embora muitos autores tenham apontado para a fragilidade, ou mesmo inadequação, das conclusões obtidas por comparações entre cegos e videntes (Nagera e
Colonna, 1965, Santim e Simmons, 1977,
Anderson, 1981 e Hall, 1981), o único estudo de meu conhecimento em que esta preocupação foi considerada na obtenção e análise dos dados da pesquisa foi o de
Masini (1990).
Considero esta uma questão fundamental: ao estudarmos ou diagnosticarmos as pessoas cegas, freqüentemente nos esquecemos de que a sua condição básica, a ausência da percepção visual, implica uma completa reorganização perceptiva (Amiralian, 1985) e, conseqüentemente, um processo perceptivo e cognitivo qualitativamente diferente do dos videntes.
De modo semelhante, acreditamos que esta condição, influenciando seus valores, crenças, formas de estabelecer relações objetais, conduzirá a uma diferente maneira de ser e a uma peculiar forma de investimento pulsional.
Entretanto, em vez de procurarmos compreender a organização de seu mundo interno ocorrida sob esta condição específica, impomos aos cegos nossos padrões visuais e os julgamos por eles.
Outro ponto que deve ser destacado é a preponderância de instrumentos verbais, tipo complementação de sentenças, para a apreensão da dinâmica de sua personalidade.
Embora estes instrumentos possam servir de elementos valiosos num conjunto maior de dados para uma avaliação compreensiva do cliente, não podemos nos esquecer, como diz
Hammer (1969), que a comunicação verbal é intensamente moldada e influenciada pela cultura, por sermos continuamente incentivados a organizar racional e logicamente nossas comunicações orais, sendo importante a análise de outras formas de expressão para uma compreensão holística e profunda do sujeito.
Além do mais, a crença de que a visão possa ser imediatamente substituída pela audição conduz à suposição de que a expressão verbal seja o caminho natural do cego e de que sua linguagem não seja influenciada pela perda visual.
Embora muitos estudiosos tenham apontado dificuldades na área - Santim e Simmons (1977),
Anderson (1981), Burlingham (1965) -, este fato tem sido desconsiderado nos procedimentos de psicodiagnósticos e mesmo educacionais.
Este trabalho se propõe como uma tentativa de ”vê-los” a partir de suas próprias representações, despidos o quanto possível de nossos padrões visuais, e de compreender a dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos a partir de suas expressões gráficas e verbais, sob o referencial psicanalítico.
A importância do desenho como elemento propiciador da expressão de fantasias inconscientes tem sido amplamente salientada na literatura.
A expressão gráfica tem sido por muitos considerada como uma linguagem mais ingênua e espontânea, e no dizer de
Hammer (1969) o traçado da figura dá acesso a extratos básicos que constituem expressões menos controladas da personalidade do sujeito (p. 7) e temos observado que as pessoas tendem a expressar em seus desenhos, às vezes de forma bastante inconsciente (e às vezes, involuntariamente), uma visão de si mesmas tal como são, ou tal como gostariam de ser.
Os desenhos representam uma forma de linguagem simbólica que mobiliza níveis relativamente primitivos da personalidade (p. 26).
O contato com o procedimento de desenhos-estórias
(d-e), introduzido por Trinca (1972), levou-me à análise deste procedimento para a consecução dos objetivos a que me havia proposto.
A idéia de sua utilização surgiu de uma experiência com o d-e no psicodiagnóstico de uma criança cega, conduzindo-me a um estudo mais aprofundado deste procedimento.
Verifiquei que as proposições que fundamentam o d-e se ajustavam intrinsecamente aos meus propósitos.
Segundo Trinca (1987):
• quando colocado em situações ambíguas, o indivíduo, em suas respostas, tende a expressar seus conflitos e disposições internas;
• a condição de associação livre tende a conduzir a atenção do sujeito para áreas nas quais é emocionalmente mais sensível;
• há o surgimento espontâneo de núcleos emocionais significativos do sujeito em provas projetivas, principalmente quando estas propõem pouca direção e estruturação;
• há uma tendência do sujeito a comunicar, no primeiro contato, seus principais conflitos;
• a comunicação indireta e inconsciente, por meio de desenhos e fantasias aperceptivas, tem-se mostrado como um método mais eficaz para crianças e adolescentes do que uma comunicação verbal direta.
Diante disto, optei pela utilização desse procedimento como o instrumento que me proporcionaria os meios necessários para a consecução da tarefa a que me propus.
Ao mesmo tempo, ser-me-ia possível avaliar a eficácia deste procedimento na compreensão dos sujeitos cegos.
A escassez de instrumentos para a avaliação da dinâmica da personalidade dos cegos leva-me a crer na necessidade de estudos que possam contribuir para o enriquecimento do psicodiagnóstico para esse grupo de pessoas.
Minha escolha foi reforçada pelas considerações feitas por Trinca (1987) quanto à propriedade da aplicação do d-e a populações com escassos recursos financeiros, pelo baixo custo do material necessário e economia no tempo de aplicação.
Como sabemos, as instituições que atendem às pessoas portadoras de deficiências na maioria das vezes lutam com permanente falta de recursos financeiros; além disso, em nosso meio é preponderante a população de baixa renda entre pessoas portadoras de deficiência visual.
Sintetizando, este trabalho se propõe a:
• compreender a dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos a partir de suas expressões gráficas e verbais, sob o referencial fenomenológico e psicanalítico;
• avaliar a significância de estudar o mundo interno dos sujeitos cegos por um processo que difere dos anteriores pela ausência de comparação com o desempenho dos videntes;
• verificar a eficácia do procedimento de desenhos-estórias na compreensão globalizada dos sujeitos cegos.
Capitulo 3
O procedimento de desenhos-estórias com cegos
A utilização do procedimento de desenhos-estórias com sujeitos cegos se propõe como uma proposta inovadora em vários sentidos.
Este procedimento, caracterizando-se por unificar processos expressivos motores com apercepções temáticas (Trinca, 1987), nos permitirá a apreensão da dinâmica de sua personalidade de forma globalizada, evitando o risco já apontado de privilegiar sua verbalização, em detrimento de outras expressões.
Por outro lado, é uma tentativa de romper com idéias profundamente arraigadas de que é realmente a verbalização o canal por excelência de expressão para os sujeitos não-videntes. Esta crença pode-nos levar a impedi-los de experimentar formas variadas de expressão, além de cerceá-los no desenvolvimento de outras habilidades.
Todavia, a utilização de desenhos para a apreensão do mundo interno dos cegos é um caminho ainda inexplorado.
Freqüentemente são levantadas questões sobre a utilização do desenho com os cegos.
Muitos o consideram uma aprendizagem imposta pelos videntes, a partir de seus padrões visuais.
Sem dúvida, na medida em que solicitamos aos cegos a identificação ou reprodução de desenhos feitos dentro de padrões visuais, estamos exigindo deles a conformação a processos visuais, e desrespeitando sua diferença básica.
Mas, se considerarmos sua expressão gráfica como função de sua expressão motora, ela poderá se constituir como uma possibilidade para a expressão de suas imagens mentais e de seus conteúdos inconscientes, objetivo precípuo deste estudo.
Abelle (cit. Trinca, 1987) afirma que: o gesto gráfico pode ser definido como elemento básico de comunicação, um símbolo capaz de expressar com poucos traços uma situação interior, que nem a linguagem (oral) nem os outros meios de comunicação permitem exteriorizar de modo tão espontâneo e vital (p. 27).
Acreditamos que para os cegos isto também se constitua como uma verdade.
Diversos estudos foram realizados com o d-e, mostrando a sua eficácia na investigação clínica da personalidade e a sua flexibilidade, que possibilitou transformações dentro deste mesmo procedimento.
Consideramos que as modificações necessárias para sua aplicação em sujeitos impedidos de percepção visual não prejudicaria a riqueza desse procedimento na apreensão dos aspectos fundamentais do funcionamento mental, e poderia nos oferecer uma visão sintética e dinâmica de sua personalidade.
Um estudo sobre esse procedimento, sua origem e desenvolvimento nos pareceu de suma importância para melhor compreensão dos recursos oferecidos por seu instrumental.
3.1. Histórico e desenvolvimento do d-e
O procedimento de desenhos-estórias foi proposto em 1972 em tese de doutorado ao
ipusp, por Walter
Trinca, como meio auxiliar para a ampliação da investigação da personalidade. Em 1976, foi sistematizado pelo autor e publicado sob o título:
"Investigação clínica da personalidade - o desenho livre como estímulo da apercepção temática", interlivros,
B.H., e reeditado com o mesmo nome pela EPU, São Paulo, em 1987.
A característica fundamental desse procedimento é a utilização combinada de processos amplamente utilizados e divulgados em psico-diagnósticos da personalidade:
- desenhos livres,
- verbalizações temáticas e
- associações dirigidas.
Segundo o autor, esse procedimento está situado dentro da metodologia do diagnóstico psicológico, como intermediário entre as entrevistas não-estruturadas e os instrumentos projetivos gráficos e temáticos; não é um teste psicológico na acepção do termo, ”mas um procedimento resultante de pesquisa e de uso clínico” (Trinca, 1987, p.
Xix).
Na combinação do desenho livre com apercepções temáticas, a expressão gráfica se propõe como um estímulo ao relato das estórias, e as associações derivadas do inquérito servem para enriquecer e esclarecer as projeções do sujeito.
A união destes elementos, até então utilizados isoladamente ou relacionados a outros estímulos, mostrou-se profícua e valiosa na investigação clínica da personalidade.
O procedimento de desenhos-estórias é um instrumento precioso para os psicólogos que se propõem a fazer psicodiagnóstico compreensivo.
O material necessário para a aplicação e a sua administração são simples: folhas brancas de papel sulfite tamanho ofício sem pauta, lápis preto n° 2, e caixa de lápis de cor de 12 unidades.
A aplicação é individual, em local apropriado. A consigna proposta pelo autor é a seguinte: inicialmente pede-se ao sujeito um desenho livre, dizendo-lhe: ”você tem essa folha em branco e pode fazer o
desenho que quiser”.
Terminado o desenho, pede-se uma estória: ”você, agora, olhando o desenho, pode inventar uma estória, dizendo o que acontece”.
Posteriormente, passa-se ao
inquérito, quando o examinador pede esclarecimentos sobre qualquer ponto que lhe pareça obscuro na estória ou no desenho.
O ”inquérito” serve também como estímulo para novas associações sobre o material produzido.
Para finalizar, solicita-se ao sujeito um título para a estória.
Esta constitui a primeira unidade de produção que, segundo Trinca (1987), transmite mensagens indivisíveis que devem ser avaliadas como um todo.
As comunicações expressas graficamente servem para esclarecer ou complementar as expressões verbais e vice-versa.
O procedimento completo é composto de cinco unidades de produção, que podem ser produzidas no máximo em duas sessões.
A sistematização do procedimento de desenhos-estórias ampliou sua utilização a vários setores.
Trinca (1987) observou que o d-e tem sido extensamente utilizado na investigação clínica da personalidade, é empregado em consultórios, em clínicas psicológicas universitárias e em instituições de atendimento à população carente.
Acreditamos que sua expansão se deu tanto pela eficácia na apreensão dos conflitos nodais inconscientes, como pela facilidade de aplicação e economia no tempo da compreensão psicodinâmica da personalidade total do cliente.
A divulgação desta abordagem diagnostica em cursos de graduação em psicologia e de pósgraduação em psicologia clínica possibilitou novas perspectivas de investigação na área, e as várias pesquisas realizadas com o d-e seguiram diferentes vertentes. O procedimento foi originalmente proposto para aplicação em crianças e adolescentes de 5 a 15 anos, com queixa explícita de problemas de personalidade. Estudos posteriores ampliaram sua aplicabilidade a outros grupos e desenvolveram formas diferentes de aplicação dentro do mesmo procedimento.
Entre os vários estudos realizados, há aqueles que procuraram ampliar a faixa etária para a qual foram originalmente propostos; os que se propuseram a investigar a validade e normalização do procedimento; aqueles nos quais o procedimento é utilizado para detecção de fatores psicodinâmicos específicos de determinados grupos de sujeitos; e aqueles que propõem a utilização do d-e com temas.
Nestes trabalhos, observa-se a utilização ora do método quantitativo estatístico, ora do método clínico qualitativo.
Encontram-se pesquisas em que o procedimento é utilizado junto com outros procedimentos de investigação da personalidade, e outras em que é o único.
Os vários estudos realizados com o d-e nos mostra sua flexibilidade, diversidade, riqueza na apreensão dos conteúdos inconscientes, e possibilidades de modificações dentro dos seus princípios fundantes.
Estas qualidades nos animaram a analisar sua aplicabilidade aos sujeitos cegos.
As questões fundamentais que se propuseram foram: seria o desenho uma forma autêntica de expressão para os cegos? que adaptações seriam necessárias no material para que os cegos pudessem fazer desenhos? a solução destas questões foi a rota seguinte de nosso trabalho.
3.2. O desenho e a cegueira
Embora a realização de desenhos por cegos suscite inúmeras questões e curiosidade universal - semelhante à de suas produções oníricas - estudos e pesquisas na área são muito escassos.
Muitos consideram o desenho para os cegos uma realização originada de uma aprendizagem imposta pelos videntes a partir de padrões visuais, sendo, portanto, uma produção falsa de uma aprendizagem sem significado.
Cremos que esta crítica ao desenho dos cegos é uma colocação de discordância a uma antiga prática educacional, originada do momento em que a preocupação fundamental dos especialistas era a busca das semelhanças entre cegos e videntes.
A pressuposição de que os cegos fossem em tudo iguais aos videntes, excetuando-se a ausência da visão, levava-os a uma simples transposição do material pedagógico para formas táteis.
Nesta prática corrente, e ainda vigente pelas descobertas do estudo realizado por
Masini (1990), a transcrição de livros e cartilhas para cegos inclui a cópia em relevo dos desenhos neles contidos.
Dentro desta prática pedagógica, os desenhos (de animais, casas, ou qualquer outro objeto) deveriam servir aos sujeitos cegos como elementos para conhecimento ou reconhecimento dos objetos, ajudando-os na representação mental e conceituação do mundo externo.
Pareciam acreditar que a percepção tátil-cinestésica de uma figura bidimensional, representativa de uma percepção visual, pudesse ser traduzida pela criança cega para um conceito tridimensional do objeto em si.
Além da extrema dificuldade contida na possibilidade de realização dessa tarefa, estudos e pesquisas na área, já discutidos em capítulo anterior, mostraram que o processo de desenvolvimento das estruturas cognitivas das crianças cegas desde o nascimento segue um caminho de desenvolvimento diverso do das videntes, sendo suas representações mentais construídas a partir de um sistema perceptivo que se diferencia pela sua organização, não sendo, portanto, válido, do ponto de vista da aprendizagem, o conceito de uma simples transposição sensorial. Neste aspecto, o desenho para os cegos é indubitavelmente uma experiência sem sentido.
Por outro lado, embora o desenho pareça ser uma representação gráfica de impressões visuais pela sua íntima relação com a percepção óptica, ele está relacionado a experiências subjetivas do eu, e, como uma atividade criativa, é um ato mental do indivíduo.
Mesmo neste sentido, ele é freqüentemente negado aos sujeitos cegos. Reilly (1990) compara a ausência de exposição dos cegos ao desenho com a descoberta de
Cervellini (1985, apud idem), que, estudando a reação à música em crianças deficientes auditivas, constatou que, tanto os profissionais que trabalham com estas crianças, como seus familiares, não as expunham à música, por não ouvirem.
A autora se refere a uma instituição para cegos na qual as crianças tinham aulas de música, mas não de artes, por não enxergarem.
Embora estudos sobre desenhos por cegos sejam escassos, a preocupação com a questão é antiga.
Victor Lowenfeld (1939), ao estudar a natureza da atividade criativa por meio de desenhos e expressões plásticas de sujeitos cegos e com baixa visão, refere-se a estudos de psicólogos alemães do início do século, que utilizaram desenhos de cegos para analisar o desenvolvimento da criatividade, de conceitos de forma e espaço e de representações mentais.
Lowenfeld, V., preocupado em determinar a importância da percepção visual na criatividade, se propõe a analisar, por meio do desenho dos cegos, a natureza da capacidade criativa.
Segundo o autor: a relação da arte da criança com a dos povos primitivos, a relação destas com o modo de expressão usado pelos sujeitos com baixa visão e cegos, o modo comum de representação do espaço em trabalhos primitivos e arcaicos de arte, a presença da mesma forma simbólica e de significados de expressão no caso de representações emocionalmente expressivas, tudo mostra claramente que nestas formas de atividade criativa as experiências do sentido visual tinham abandonado sua primazia (p. 9).
O autor parte da consideração da existência de dois tipos artísticos que se diferenciam pelo produto final de suas realizações e por suas atitudes para com as próprias experiências: o tipo visual e o tipo haptic.
Os tipos visuais são dominados pela ”percepção visual”, aqueles em que a visão domina a organização perceptiva, e as impressões dos outros sentidos são subordinadas a ela; e o tipo haptic, dominado pela ”percepção haptic”, descrita como: ”a síntese da percepção tátil da realidade externa com as experiências subjetivas, que parecem estar estreitamente ligadas às experiências do self” (p. 82).
Considera que estes tipos artísticos se desenvolvem independentemente da condição fisiológica da visão.
O autor afirma que embora sejamos tentados a crer que a capacidade para ver seja o único pré-requisito para a representação plana e espacial dos objetos por meio do desenho, isto não é uma verdade.
A ausência de visão é limitante apenas pela total impossibilidade de encontrar os caminhos sobre o papel.
Para ele, há duas condições essenciais para desenhar: a capacidade para se orientar no plano do desenho, e o desenvolvimento da capacidade criativa, relacionada com a capacidade para projetar algo de si.
Considerando o desenho como uma forma de expressão, analisa os trabalhos de 15 crianças cegas e com baixa visão (definidas como aquelas que possuem alguma percepção visual, restrição do campo de visão e impossibilidade de percepção tridimensional dos objetos, denominadas atualmente pelas concepções médicas e educacionais como cegas), comparando-os com os desenhos de crianças visualmente normais.
O autor afirma que este estudo trouxe importantes contribuições para a compreensão da arte da criança e da influência do sentido visual sobre o desenho.
Descreve algumas destas crianças como tipos visuais, aquelas que imediatamente aplicam seu resíduo visual a qualquer coisa que lhes chame a atenção; enquanto outras, mesmo possuindo maior acuidade visual, aproximam-se das coisas pelo tato, só usando a visão quando compelidas a isto.
As produções artísticas destes dois tipos também se diferenciavam: a do tipo visual tinha origem no ambiente e seus conceitos se desenvolviam para um todo perceptual organizado pela fusão de experiências visuais parciais.
A do tipo haptic, por outro lado, estava mais relacionada com as suas próprias sensações corporais e com o espaço tátil ao seu redor.
Lowenfeld considera que o tipo haptic expressa mais facilmente os sentimentos profundos, sendo o desenvolvimento desta percepção favorecedor da expressão criativa. ”Por meio de seus desenhos o tipo visual deseja trazer o mundo de fora para junto de si, enquanto o tipo haptic está principalmente preocupado em projetar seu próprio inundo na pintura”. (p. 89)
Outro pesquisador que utilizou desenhos em seu estudo de cegos foi Millar (1975), que, partindo de uma analogia entre a expressão gráfica e a linguagem, procurou investigar a importância da visão na realização de desenhos.
A autora parte da hipótese de que o conhecimento de regras convencionais de tradução simbólica é, no mínimo, tão importante quanto a percepção visual para o desenho.
Analisa o desenho da figura humana de crianças cegas, videntes e videntes vendadas, e conclui que, embora a experiência visual prévia seja uma condição facilitadora, não é necessária para a realização de desenhos da figura humana.
Descobertas de Lowenfeld e
Millar nos pareceram significativas para a comprovação da possibilidade da utilização do d-e na apreensão da dinâmica da personalidade dos cegos.
Lowenfeld, comparando desenhos e modelagens de cegos e sujeitos com baixa visão, afirma que:
• os cegos conseguem transmitir a impressão de unidade em seus desenhos por meio de uma síntese construtiva de impressões parciais;
• a concepção do trabalho como um todo está presente a priorí somente quando é dominada por uma determinação subjetiva da experiência;
• quando experiências autoplásticas tornam-se a base do trabalho criativo, o tamanho e as proporções relativas dos objetos são determinados pelo julgamento de valor e pela significação emocional para o artista;
• o tipo haptic não integra símbolos de formas e expressões da maneira que um sujeito com visão normal poderia chamar de ”naturalística”;
• o tipo visual é capaz de desenvolver-se a ponto de representar luz e forma de maneira correspondente à visão normal; isto é, artistas cegos, tipo visual executam composições ”naturalísticas”;
• pessoas cegas e de baixa visão do tipo haptic traduzem ritmos de movimento e som para formas rítmicas.
Em outras palavras, em suas composições, espaço e tempo são fundidos dentro de uma mesma unidade;
• o procedimento dos cegos e o dos sujeitos com baixa visão é muito semelhante, e em ambos os casos o tipo criativo fundamental encontrou formas de expressão que são adequadas ao seu tipo.
Millar afirma que embora uma experiência visual prévia seja facilitadora, não é uma condição necessária para que uma criança desenhe a figura humana.
3.3. O instrumental para a realização de desenhos por cegos
A realização desta proposta exigiu a adaptação do material para desenho, a fim de que fosse possível aos sujeitos cegos acompanharem sua expressão gráfica. Tornou-se necessário um estudo exploratório que nos permitisse verificar a aplicabilidade deste procedimento àqueles que não enxergam, com material específico.
Embora o d-e se constitua de desenhos livres, e, portanto a expressão gráfica solicitada aos sujeitos não pressuponha qualquer parâmetro, seria fundamental que, ao desenhar, o sujeito cego pudesse acompanhar a realização de sua tarefa e, além disso, ao concluí-la, avaliasse e constatasse se expressou graficamente aquilo que se propôs fazer. Este é um fato comumente observado nas pessoas que desenham, e consideramos fundamental propiciar esta condição às pessoas cegas.
Nossa tarefa inicial foi pesquisar formas utilizadas na educação de deficientes visuais para a compreensão e a realização de desenhos; estes são freqüentemente utilizados no estudo da geometria, na compreensão de mapas e localizações geográficas, e no aprendizado da assinatura.
Para tal, entramos em contato com professoras especializadas no ensino de deficientes visuais, para que nos informassem sobre instrumentos utilizados para a comunicação escrita dos cegos e contassem suas experiências no ensino da comunicação gráfica.
Foi-nos indicado, inicialmente, um instrumento chamado desenhador. Um aparelho que produz pontos em relevo.
Fizemos com este aparelho uma tentativa de aplicação do d-e em uma criança cega.
Notamos grande interesse na realização da tarefa, embora a expressão gráfica fosse de difícil realização.
A própria criança, durante a aplicação, verbalizou: ”vamos, desenhador, desenha”.
Entretanto, observamos que o desenho, embora pobre, não figurativo e rejeitado pelo sujeito como produção gráfica, serviu como elemento de suporte para estórias ricas na expressão de angústias básicas e conflitos nucleares de sua personalidade.
Isto nos reafirmou a crença neste procedimento, embora não tivéssemos ainda encontrado um instrumental adequado que permitisse aos cegos a realização de desenhos livres.
Continuando nossa investigação com as professoras especializadas, encontramos uma que utilizava pranchas revestidas de camurça ou tela como recurso para o ensino da geometria, gráficos, colunas estatísticas, estudos de mapas, acidentes e localizações geográficas e outros conceitos que exigem a percepção de formas bidimensionais.
Montamos duas pranchetas, uma com camurça e outra com tela. A prancheta coberta com tecido de camurça deve ser usada como suporte de folhas aluminizadas, de flexibilidade e resistência apropriadas à realização de desenhos em baixorelevo, com canetas sem pontas.
A prancheta revestida com tela deve ser utilizada como suporte de papel sulfite.
Os desenhos podem ser feitos com lápis comuns, número dois, e a produção gráfica aparece em alto relevo.
Com material pronto para uso, solicitamos ajuda a uma instituição para a reabilitação de deficientes visuais para que nos indicasse sujeitos dispostos a colaborar na experiência. Foram encaminhados dois funcionários da entidade, um do sexo feminino, 47 anos, com
cegueira congênita, e outro do sexo masculino, 33 anos, com cegueira adquirida aos 17 anos.
Os dois sujeitos foram submetidos ao procedimento de desenhos-estórias, na forma indicada pelo autor (Trinca, 1987), com modificações introduzidas apenas no material para a realização do desenho. Os dois sujeitos se utilizaram igualmente dos materiais adaptados para a produção gráfica.
O sujeito
A fez os três primeiros desenhos da série na folha aluminizada, sobre a prancha revestida de tecido de camurça, com caneta sem ponta; e os desenhos subseqüentes, na folha de papel sulfite, com lápis número dois, sobre a prancha com tela.
O sujeito
B utilizou os materiais na seqüência inversa; iniciou o procedimento na prancha com tela e depois utilizou-se da prancha com camurça.
Procuramos inverter a seqüência na utilização das duas formas de adaptação, para evitarmos uma possível interferência do contato inicial com material desconhecido.
Os dois sujeitos estavam informados de que iriam desenhar sobre dois materiais diferentes. Nas duas aplicações, os desenhos serviram de elemento eliciador para uma estória.
Não foi notada nenhuma diferença significante na realização dos desenhos. Os dois tipos de material serviram para a expressão gráfica de representações mentais figurativas e não foram observadas mudanças expressivas na qualidade do desenho dos dois sujeitos.
Pelo contrário, ambos mantiveram o mesmo padrão de representações gráficas sobre as duas pranchas.
Por outro lado, também nestas aplicações, constatamos que as unidades de produção, o desenho, a estória, o inquérito e o título, se constituíram como valiosos elementos para a apreensão de fantasias inconscientes e conflitos nucleares dos sujeitos.
Após o término da aplicação do d-e, solicitamos aos sujeitos que escolhessem um dos dois tipos de instrumental que tinham utilizado para fazer o desenho, e dessem uma razão para essa escolha.
O sujeito
A apontou a folha aluminizada, mas não soube explicar o porquê; diante da nossa insistência, disse: ”acho que é porque é mais fácil, mais agradável”(sic).
O sujeito
B informou ”ser melhor e mais fácil” desenhar sobre o papel sulfite.
Ambos acharam simples e interessante a realização da tarefa.
Não tendo havido por parte dos sujeitos uma preferência explícita por nenhum dos conjuntos para a realização do desenho, e não tendo a nossa observação detectado nenhuma qualidade expressiva em nenhuma delas, em detrimento da outra, optamos pela prancha revestida com tela.
Nossa escolha deu-se por dois motivos: em primeiro lugar, porque o desenho sobre papel sulfite permite o uso de lápis de cores, e achamos válido dar ao sujeito cego que desejasse a oportunidade de escolha de cores; a outra razão que nos motivou esta escolha foi a possibilidade de reprodução do material por xerox.
Além disso, consideramos que, no momento da análise do material, ao nos depararmos com desenhos sobre papel sulfite, semelhantes a qualquer outro d-e, os possíveis significados simbólicos inconscientes de cegueira se diluem para nós, enquanto que um desenho sobre folha aluminizada, em baixo relevo, por si só salienta a diferença e nos recorda a cegueira.
Assim sendo, o instrumental para desenho empregado por nós nesta pesquisa consta de: uma prancheta de madeira, recoberta com tela plástica a ela colada, que serve de base para a fixação de uma folha de papel sulfite, lápis preto n°2 e uma caixa de lápis de cor.
Capitulo 4
Metodologia da pesquisa
4.1.
Os sujeitos da pesquisa
Considerando o objeto do trabalho, a compreensão do cego por meio da apreensão de suas fantasias inconscientes, angústias nodais, mecanismos de defesa, enfim, da dinâmica de sua personalidade, foram estabelecidos alguns critérios para a escolha dos sujeitos da pesquisa:
a) os sujeitos deveriam ser possuidores de cegueira congênita ou adquirida há mais de 2 anos.
Como descrito anteriormente, a classificação do sujeito como cego ou possuidor de visão subnormal sofreu variações no tempo e é dependente da formação do profissional que o atende.
Todavia, como a minha preocupação centrava-se principalmente na maneira como o sujeito percebe sua cegueira, independentemente da real possibilidade de percepção do mundo externo pela visão, optei por um critério funcional para a classificação dos sujeitos cegos.
Ou seja, consideraria como cegos aqueles que, no processo educacional ou de reabilitação, necessitassem do braille para a aprendizagem e utilização da leitura e escrita, e fossem assim classificados pelos profissionais da área.
A consideração da cegueira como congênita ou adquirida foi outro fator complicador na delimitação dos critérios para a escolha dos sujeitos.
Especialistas na área educacional classificam como congênita a perda ocorrida antes dos 5 anos, considerando que até esta idade a criança não é capaz de reter imagens visuais úteis (Lowenfeld, 1950).
Estudos
Piagetianos afirmam que a criança com estrutura cognitiva pré-operacional só é capaz de formar imagens concretas e estáticas, sendo incapaz de representar ou antecipar processos desconhecidos antes da fase operacional (Hall, 1981).
Estudos psicanalíticos mostram que a possibilidade de um bebê enxergar ou não interferirá em suas relações objetais, e, conseqüentemente, em toda a sua estruturação egóica.
Ante este referencial, uma perda visual ocorrida aos 3 ou mesmo aos 2 anos de idade, independentemente da memória visual que o sujeito possa vir a ter, propõe uma condição específica para a constituição do sujeito.
Diante disto, optei por uma escolha de sujeitos portadores de cegueira congênita ou adquirida, não dando a esta condição valoração específica.
A época de incidência da cegueira seria um dado fornecido pelo sujeito e concebido como um conceito pessoal de sua condição física, embora para a avaliação dos resultados fossem consideradas as teorizações dos especialistas
Piagetianos e dos psicanalistas.
b) os sujeitos não deveriam ter outros distúrbios físicos ou mentais associados à cegueira.
Como minha preocupação era a compreensão dos efeitos que a cegueira acarreta na dinâmica da personalidade dos sujeitos, outras variáveis interferentes poderiam confundir situações causadas pela cegueira com outras de significado diverso.
Em vista disto, não foram aceitos sujeitos com diagnóstico de problemas psíquicos tais como psicoses, neuroses graves ou deficiência mental.
Pela mesma razão, também foram excluídas pessoas que apresentassem outros problemas físicos associados à cegueira. É do conhecimento geral que algumas doenças podem trazer como seqüela outros déficits além da cegueira: a diabetes e a toxoplasmose, por exemplo, podem causar tanto danos visuais como neurológicos, que refletirão sobre a personalidade de modo diferente de uma perda visual por glaucoma, que não produz outros comprometimentos.
C) os sujeitos deveriam estar em uma situação de vida, o tanto quanto possível, semelhante à de pessoas comuns.
Uma dificuldade que este critério me trouxe foi a localização dos sujeitos para pesquisa.
Instituições segregadas, como escolas especiais, ou instituições mantenedoras de cegos foram prontamente descartadas.
Estas instituições, ao afastar os sujeitos do convívio cotidiano familiar e de pessoas com visão normal, impõem aos cegos uma situação peculiar, que se poderia confundir com o efeito acarretado especificamente pela cegueira.
A situação de aprendizagem formal em escola comum e de reabilitação profissional em instituição especializada pareceu-me a mais adequada para o encontro com sujeitos que pretendia avaliar.
A colocação do filho cego em uma sala de recursos de escola estadual reflete uma escolha dos pais de permanecerem com eles, oferecendo os recursos necessários ao seu alcance, para que se desenvolvam da maneira mais semelhante possível à de seus irmãos não cegos.
De forma semelhante, a procura de um centro de reabilitação profissional parece refletir um desejo de desenvolvimento e de participação em situações comuns da vida.
Algumas dificuldades para a localização dos sujeitos estenderam o tempo gasto para a coleta dos dados.
As primeiras aplicações foram realizadas em 25/04/89 e as últimas em 17/04/90.
A idade, o sexo, a escolaridade e o nível socioeconômico dos sujeitos apresentados pela instituição especializada em reabilitação profissional e pela professora da sala de recursos variaram segundo a distribuição apresentada nos quadros abaixo:
Quadro n°1: Idade
Idade
|
n.°
|
10-14
|
5
|
15-18
|
4
|
19-22
|
6
|
23-25
|
3
|
A escolha dos sujeitos em processo de educação formal e de reabilitação profissional determinou a faixa etária.
Além dos critérios acima descritos, foi solicitada à instituição de reabilitação a indicação de sujeitos jovens, de modo a limitar a amplitude da faixa etária do grupo estudado.
Quadro n°2: Sexo
Sexo
|
n.°
|
masculino
|
7
|
feminino
|
11
|
Quadro n°3: Escolaridade
Escolaridade
|
n.°
|
sem
escolaridade
|
4
|
1.º grau
completo
|
2
|
1.ª
série
|
1
|
2.ª
série
|
1
|
4.ª
série
|
3
|
5.ª série
|
1
|
6.ª
série
|
2
|
8.ª
série
|
2
|
2.º grau
completo
|
1
|
2.ª
série
|
1
|
Foi notável a constatação de que, embora os sujeitos da amostra tivessem mais de 10 anos de idade, 8 deles tinham escolaridade abaixo da 4ª série do 1° grau, e 4 não tinham recebido qualquer educação formal até o momento.
Além disso, embora a maioria dos sujeitos tivesse mais de 15 anos, apenas um tinha 2° grau completo e outro cursava a 2ª série do 2° grau.
Este fato permite várias suposições:
Será a educação especializada ao ensino dos cegos tão precária e insuficiente em nosso meio, que a maioria deles não recebe o atendimento necessário?
Será a informação aos pais das crianças cegas tão inconsistente e inadequada que eles não sabem da existência de recursos para a educação de seus filhos cegos? ou
Será que os cegos realmente apresentam atrasos e dificuldades insuperáveis de desenvolvimento e aprendizagem, sendo este quadro característico da situação de cegueira?
Estas suposições não poderão ser verificadas pelo presente estudo, visto que minha amostra não é representativa para um estudo quantitativo da condição social de cegueira: todavia, acredito sejam de tal importância que devem ser apontadas para futuros trabalhos.
Para a avaliação do nível socioeconômico de nossa população, usei o esquema proposto por
Guidi e Duarte (1969), que definem cinco camadas hierárquicas em função do nível ocupacional dos pais:
nível 1 - ocupações não qualificadas, que exigem mínima instrução formal e pouca experiência profissional prévia.
Exemplo: faxineira, pedreiro, zelador;
nível 2 - ocupações com alguma qualificação, mínima instrução formal e treino profissional específico. Exemplo: motorista, vendedor, pequeno comerciante;
nível 3 - ocupações de nível médio, que exigem 1° grau completo, e formação profissional.
Exemplo: contador, bancário, escriturário, projetista;
nível 4 - ocupações superiores, que exigem instrução de 3° grau e formação especializada.
Exemplo: cargos técnicocientífícos, de chefia, de gerência, e profissões liberais;
nível 5 - profissões de alta renda econômicofinanceira.
Quadro n° 4: Nível Socioeconómico
nível
socioeconómico
|
n.°
|
nível 1
|
8
|
nível 2
|
6
|
nível 3
|
1
|
nível 4
|
2
|
nível 5
|
1
|
A grande preponderância de sujeitos do nível socioeconômico inferior e médio inferior parece indicar que cegueira em nosso meio é em grande parte problema de saúde pública, como dizem
Rocha e Ribeiro (1987), que afirmam:
• 60% das cegueiras são evitáveis;
• 40% das cegueiras têm conotação genética;
• 25% das cegueiras têm causa infecciosa;
• 20% das cegueiras já instaladas são recuperáveis (p. 65)
Os sujeitos da pesquisa apresentam também características diferenciais quanto à condição de cegueira - congênita ou adquirida -, causas da cegueira e atendimento educacional ou de reabilitação.
A causa e a condição da cegueira foram obtidas por informações fornecidas pelo próprio sujeito.
Quadro n° 5:
Condição de cegueira
Condição de cegueira
|
n.°
|
cegueira congênita
|
10
|
cegueira adquirida
|
8
|
Entre os 13 sujeitos que informaram ter cegueira congênita, 4 disseram não possuir qualquer percepção visual, 4 disseram possuir acuidade visual para claro/escuro e sombras, e dois deles, embora
se tenham nomeado como possuidores de cegueira congênita, disseram que sua perda visual foi causada por doença reconhecidamente progressiva.
O caso 2 informa que teve catarata, sofreu várias cirurgias e agora tem glaucoma; e o caso 9 fala de glaucoma.
Rocha e Ribeiro (1987) afirmam: cabe aqui uma advertência das mais sérias: a confusão entre glaucoma e catarata.
Ao constatar uma catarata, contentamo-nos em lhe atribuir a baixa visual de que se queixa o paciente, contemporizando a intervenção cirúrgica, até que julguemos o cristalino ”maduro” para a sua remoção. É o procedimento correto, desde que não nos esqueçamos de pesquisar um possível ”glaucoma primário de ângulo aberto” mascarado pela catarata (p. 113) e, nestes casos (glaucoma primário de ângulo aberto, ou glaucoma congênito), as coisas já se passam menos bruscas, e por isso mais traiçoeiras...
Por meses e anos a fio, o obstáculo se desenvolve, lenta, vagarosa, mas inelutavelmente. (p. 111)
Podemos concluir que, nestes casos, a informação de cegueira congênita parece estar refletindo mais um conceito pessoal do sujeito sobre sua condição visual, do que uma real ausência de visão desde o nascimento, e também constatando uma cegueira que poderia ser evitada no dizer de
Rocha e Ribeiro.
Estes casos, em função de sua condição clínica oftalmológica, seriam classificados como de cegueira progressiva por especialistas da área educacional.
Dos sujeitos que se classificaram como possuidores de cegueira adquirida, dois localizam sua perda aos 4 anos, um aos 5 anos, um aos 12 anos, um aos 13, e outro aos 17 anos.
Dos outros dois, um informa ter ficado cego com 1 ano e 8 meses e outro aos 4 anos, embora a assistente social da instituição informe que, pelo que fala a mãe do sujeito, a perda ocorreu quando ele tinha 1 ano e 6 meses.
A perda visual nesta idade é, para a maioria dos especialistas, considerada congênita.
As causas nomeadas de cegueira foram: três sujeitos com retinopatia da prematuridade (fibroplasia retrolental), três com glaucoma congênito, dois com catarata congênita, dois por causas acidentais, um por retinite aguda, um por rubéola e um por sarampo.
Os cinco restantes não souberam precisar a causa de sua cegueira. Todavia, Alberto, o caso 4, informa ter tido um irmão cego, fazendo supor um caso genético familiar.
Quanto ao tipo de atendimento, 7 sujeitos são de escola pública, em processo educacional, e 11 de instituição especializada, em processo de reabilitação.
4.2. Procedimento de coleta de dados
Tendo em mente os critérios estabelecidos para a seleção dos sujeitos, descritos no item anterior, entrei em contato com uma instituição especializada em reabilitação de cegos e com professores especializados no ensino de deficientes visuais, regentes de salas de recursos das escolas estaduais.
À instituição especializada coloquei a realização da pesquisa e solicitei sujeitos que se dispusessem a realizar a tarefa.
Estes deveriam ser jovens, com cegueira congênita ou adquirida e sem outros problemas associados.
Fui informada de que o número de sujeitos que obedeciam aos critérios estabelecidos era reduzido.
Naquele momento, havia em processo de reabilitação pessoas mais velhas ou com visão residual suficiente para serem classificadas na categoria de sujeitos com visão subnormal.
Mesmo assim, dispuseram-se a colaborar e fui informada de que, à entrada de qualquer outro cliente que se enquadrasse nos critérios estabelecidos, eu seria comunicada.
Para começar a aplicação do d-e, solicitei à direção da instituição uma sala que oferecesse condições de privacidade, e que, ao contatar os sujeitos, lhes informassem tratar-se de uma pesquisa com o objetivo de verificar a eficiência de um novo procedimento para o conhecimento das pessoas cegas, sendo, portanto, livres as suas participações.
Para a obtenção de sujeitos em fase de escolaridade, contatei algumas professoras especializadas.
Umas informaram ter apenas um aluno cego dentro dos critérios estabelecidos, outras disseram ter dificuldades para conseguir da direção permissão para a realização da pesquisa na escola.
Uma das professoras que contatei se dispôs a me ajudar, insistindo com a direção para que autorizasse a pesquisa, e responsabilizando-se pessoalmente por nossas atividades.
Mesmo nesta escola, tive algumas dificuldades: havia dias em que não havia sala privativa disponível, dias de comemoração, quando o barulho impossibilitava uma entrevista, além de problemas comuns, como a falta da criança no dia marcado para a aplicação, por razões várias.
À professora a consigna foi semelhante àquela dada à instituição especializada, apenas salientando que as crianças deveriam estar em um nível de desenvolvimento equivalente à fase de escolaridade formal.
A aplicação do d-e realizou-se no próprio local de atividade do sujeito. Apenas o caso 16, uma aluna que já havia saído da escola em questão, foi contatada por nós, por indicação da professora, e se dispôs a ir ao
ipusp para as entrevistas.
A aplicação de todos os casos foi individual e realizada pelo próprio pesquisador.
O conjunto do material coletado em cada um dos casos constou de: informações relativas à aplicação, informações ao examinando, informações sobre o examinando e informações do examinando sobre o procedimento.
Nas informações relativas à aplicação, interessavam-me a ata da realização e o número de sessões utilizadas.
Todos os sujeitos se submeteram a duas sessões; o intervalo entre elas variou de 2 a 7 dias, com exceção do caso 12, que teve um intervalo de 20 dias devido a doença (crise de asma) do sujeito.
No contato inicial, reiterava ao sujeito o objetivo do estudo, reafirmando sua liberdade de submeter-se ou não ao d-e; acrescentava a informação de que gostaria de conhecê-lo melhor.
Para tal, iria fazer-lhe algumas perguntas esperando que ele me contasse coisas de sua vida que julgasse de importância.
Seguia-se uma entrevista semi-dirigida para a obtenção de dados sobre o sujeito e sua família, sobre sua acuidade visual, causa de sua cegueira, e época em que esta tinha ocorrido.
Aproveitava ainda para pesquisar sobre possíveis problemas físicos e/ ou mentais.
Após a entrevista, descrevia o procedimento, dizendo: ”Você tem à sua frente um papel em branco, preso a uma prancheta revestida de tela - isto permite que o traçado feito sobre ela saia em relevo.
Há também vários lápis, um preto e 12 de cores. Veja como é o material”. A seguir, o sujeito era colocado em contato com o instrumental adaptado, para que o manipulasse e o experimentasse de acordo com seu desejo.
Depois disto, era dito: ”você agora pode fazer o desenho que quiser”.
Enquanto desenhavam, todas as suas verbalizações eram anotadas. Terminado o desenho, dizia: ”agora, com o desenho à sua frente, você pode inventar uma estória, dizendo tudo o que acontece”.
Tive o cuidado de anotar as falas e o comportamento do sujeito durante a realização do desenho, referente ou não à atividade que realizava.
Depois da verbalização, passava ao inquérito e pedia um título para a estória.
A maioria dos sujeitos fez as cinco unidades de produção. O caso 5 fez quatro unidades do d-e, e não quis realizar a última: o caso 17 fez quatro unidades de produção por falta de tempo para a realização da última tarefa.
Segundo o autor, o d-e deve ser realizado no máximo em duas sessões de 60 minutos.
Embora alguns tivessem se referido a certo constrangimento para desenhar, e muitos terem afirmado não saber fazê-lo, realizaram a tarefa espontaneamente, até o final.
Após terminarem esta tarefa, para finalizar, solicitava ao examinando que desse sua apreciação sobre fazer desenhos e contar estórias.
Esta apreciação final foi incluída porque, além de minha preocupação fundamental de dar a fala aos cegos, as dúvidas quanto à possibilidade e significação de desenhos por sujeitos sem visão levaram-me a buscar sua opinião a respeito.
Com a introdução desta questão, tentei transferir para eles reflexões sobre as possibilidades, dificuldades, vantagens e desvantagens da utilização do procedimento de desenhos-estórias para cegos, numa tentativa de evitar colocações subjetivas que viessem a inviabilizar a análise dos dados ou computar a eles um valor inexistente.
4.3. Procedimento de avaliação e análise dos casos
Os 18 protocolos do d-e foram avaliados pelo pesquisador pelo método de inspeção livre, tendo por base o referencial psicanalítico.
Para a avaliação, foram considerados os materiais obtidos de cada sujeito, o procedimento de desenhos-estórias, a entrevista com cada um dos participantes e as informações fornecidas pelo professor especializado ou profissionais da instituição para reabilitação.
A avaliação do d-e constou, além da interpretação de cada unidade de produção e da síntese geral dos dados, da análise de suas impressões sobre o procedimento de desenhos-estórias e da análise dos desenhos.
A apreciação em separado dos desenhos derivou de minha preocupação em verificar se as expressões gráficas eram realmente um caminho ravorecedor do contato do sujeito com seu mundo interno, ou um entrave a mais em sua vida.
As avaliações do d-e foram submetidas à supervisão de dois psicanalistas de reconhecida experiência clínica e conhecimento do procedimento de desenhos-estórias.
Estes psicanalistas nunca tinham tido experiência anterior com sujeitos cegos.
Desta forma, suas apreciações sobre a influência da cegueira na dinâmica da personalidade dos sujeitos da pesquisa se constituíram de uma análise, tanto quanto possível, isenta de conceitos anteriormente adquiridos.
À avaliação dos casos seguiu-se uma análise dos aspectos significativos apresentados em cada um dos sujeitos da pesquisa.
Estes dados foram posteriormente organizados num todo, de modo a clarificar os efeitos produzidos pela cegueira na dinâmica da personalidade, e indicar situações peculiares experienciadas pelos sujeitos cegos.
A análise dos dados teve por base o referencial psicanalítico e o método fenomenológico na apreciação dos resultados.
Capitulo 5
Apresentação, avaliação e análise dos casos
Apresentaremos, a seguir, cada um dos casos estudados. Nesta apresentação, faremos inicialmente a descrição clínica dos sujeitos obtida pela análise da entrevista semidirigida realizada antes da aplicação do d-e, e integrada às observações do examinador e às informações dadas pelos profissionais das instituições a que pertenciam os sujeitos, julgadas pertinentes.
Após a descrição clínica, exporemos o procedimento de desenhos-estórias: os materiais do d-e (desenhos, verbalizações e associações paralelas), a interpretação de cada uma das unidades de produção, as impressões do examinando sobre o procedimento e sua análise, a análise dos desenhos e uma síntese geral do caso.
O questionamento sobre a factibilidade da realização de desenhos por cegos levou-me à apresentação exaustiva do procedimento de desenhos-estórias de todos os sujeitos da pesquisa.
Acreditava, assim, dar ao leitor a oportunidade de verificar a riqueza e diversidade da expressão gráfica dos sujeitos deficientes visuais, as quais, unificadas às verbalizações, ofereceram rico material clínico.
Sendo também minha intenção verificar a aplicabilidade do d-e aos cegos, a exposição de todo o material facilita o entendimento desse instrumental na apreensão dos conteúdos inconscientes que tornam possível a compreensão dos pontos nodais, conflitos, sentimentos, mecanismos, enfim, da dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos.
Além disso, a utilização da metodologia clínica no referencial psicanalítico e a especificidade do grupo estudado me reafirmaram a importância de oferecer todos estes dados, podendo-se observar que cada um dos sujeitos da pesquisa oferece valiosas informações que, de um modo ou outro, muito contribuíram para o esclarecimento e a compreensão dos efeitos da perda visual na constituição e organização da personalidade.
Os casos serão expostos obedecendo à ordem de aplicação, numerados de 1 a 18, não se computando a esta ordenação qualquer outra característica como: idade, sexo, condição de cegueira ou problemática específica.
Quando da interpretação, avaliação e análise dos casos, observei que o caso 18 deveria ser excluído em função dos critérios para a seleção dos sujeitos.
O sujeito 18 contou na entrevista ter estado internado em uma instituição para cegos por 10 anos, e a avaliação do d-e mostrou a importância desse fato na dinâmica de sua personalidade.
Este caso será aqui apresentado por mostrar a eficácia do d-e na discriminação de problemas específicos, contribuindo não só para apreensão de conflitos nodais, como também por favorecer a descrição da dinâmica da personalidade.
Os nomes e alguns dados que poderiam conduzir à identificação dos sujeitos foram alterados, com o objetivo de preservar a privacidade daqueles que se dispuseram a colaborar com este estudo.
Caso 1
Antônio é um jovem de 20 anos, solteiro, branco, natural de São Paulo; cursa a 4° série do 1° grau.
Sua mãe é professora primária e o padrasto, mecânico. O pai faleceu em 1969, por parada cardíaca.
Tem dois irmãos mais velhos e dois menores do segundo casamento da mãe.
Descreve seu problema visual como ”enfraquecimento do nervo óptico, fraqueza da retina, atrofia da córnea” (sic).
Informa que o problema foi detectado quando ele tinha 4 anos, e que hoje tem visão central e nistagmo.
Informações do profissional que o atende localizaram a sua perda com a idade de 1 ano e 6 meses por tumor de hipófise, segundo sua mãe.
Está terminando o processo de reabilitação e tentando colocação profissional em vendas.
Refere-se à reabilitação e à possibilidade de andar sozinho como uma condição que lhe abriu a oportunidade para viver, e diz: ”agora estou no mundo, que antes sabia que existia, mas não conhecia” (sic).
Diz ter facilidade para aprender, embora não tenha estudado antes, e insinua de forma sutil um descaso familiar.
Na entrevista, relata de forma natural suas dificuldades e inclusive sua cegueira é mencionada com naturalidade.
Fala de uma relação familiar satisfatória, mas deixa transparecer que nela ocupa o lugar do cego, onde a cegueira é pareada a uma situação infantilizadora e um entrave à saída do meio familiar.
A cegueira é vista também como um obstáculo ao desenvolvimento e crescimento intelectual, a ponto de ter sido subestimada a importância de sua formação acadêmica.
Parece se conformar com este papel, mas seu discurso evidencia certo desconforto emocional ao se nomear em 3ª pessoa no relato de suas atividades.
Diz ”aí o
Antônio ficou como babá”, ao contar que ficava tomando conta dos irmãos menores.
Antônio mostrou prazer e disposição na realização do d-e, ficou curioso e interessado no material para desenhos, querendo logo experimentá-lo; durante todo o processo mostrou-se colaborador.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 1.1 (diz nunca ter feito um desenho. Acompanha com o dedo e procura explorar o que faz.)
Verbalização: - um homem, um cão e um gato.
Se arrumar mais personagens... Um homem que tinha um cachorro e um gato. Ele criava o cachorro e o gato na mesma casa e os três se alimentavam do mesmo alimento.
A mesma comida do homem era do cão e do gato. Passeavam juntos, brincavam juntos. Não havia vontade de destruição em parte alguma. À noite, o homem e o cão dormiam e o gato saía para passear.
O homem dizia: ”cuidado, gato, com esses passeios noturnos”. Sem maldade e sem vontade de destruição, viviam os três na sua casinha.
Título: a vida. - muito feliz esta estória, o homem devia aprender a viver assim, sem destruir.
Isso vai para algum trabalho? posso colocar uma coisa aqui embaixo? estou aprendendo os números e quero ver como ficam.
Inquérito: - como os três viviam juntos? - o homem cuidava dos animais. - o gato saía à noite? - o gato ia namorar, ele é muito namorador.
Quem mora em prédio é que vê os gatos explícitos na frente do prédio. Antes eu morava em casa e nem sabia, só ouvia o barulho no telhado.
Agora as pessoas jogam água para espantar os gatos. Eu nunca tinha visto um gato...
Interpretação: notam-se a marca da diferença e o desejo de convivência com esta de maneira agradável. Parece ser capaz de aceitar suas dificuldades e limitações, e de poder repará-las.
Entretanto, parece ter alguma dificuldade na relação com o objeto total, precisando cindir, colocar para fora a maldade e a sexualidade, a qual se expressa infantilmente.
Há uma interessante conotação de sexualidade e visão, com negação e desconhecimento daquela na ausência da visão.
Antônio parece estar substituindo sua dificuldade de relação profunda com seres humanos por uma ligação prazerosa com animais.
Figura 1.2
Verbalização: - ficou mais alto (referindo-se à diferença no traçado do tronco da árvore), mas tudo bem, depois a gente cria alguma coisa com essa diferença.
Hoje estou bonzinho. Uma árvore grande com um pássaro grande na copa, uma árvore pequena também com um pássaro pequeno na copa, e um homem que ama o verde está indo alimentar os pássaros com um saquinho em sua mão e um baldinho na outra.
Título: em luta pela ecologia
Inquérito: - por que o homem vai alimentar os pássaros? - porque eles não têm o que comer, porque o homem destruiu as árvores frutíferas e o próprio animal.
Tem só dois pássaros aqui, deveria ter muito mais. Por que o homem destruiu? - o homem faz isso por dinheiro, ele precisa sobreviver e o verde não dá dinheiro; só a construção, a indústria.
A área verde não vale nada. - este homem não destrói? - este é um homem que tem consciência, o que ele pode colaborar é pouco, mas ele faz o que pode.
Tenho um tio que gosta de jogar milho para os pombos da praça Paissandu; ele se sente bem com isso.
Um homem lutando pela ecologia, ele pede a todos que façam o mesmo. Quem sabe o amanhã será melhor.
Interpretação: Identificação com os pássaros, falando da grande dependência a um objeto que é ao mesmo tempo destruidor e provedor.
Conflito entre crescer e permanecer pequeno, frágil e imaturo (a árvore grande com o pássaro grande...) na identificação com o homem, conflito entre impulsos de amor e ódio.
A sobrevivência exige a destruição, mas procura fazer algo - aqui parece conseguir uma integração satisfatória.
A vida e a morte estão juntas. Revela boa organização egóica.
Figura 1.3
Verbalização: - vamos ver o que vou criar hoje. Tentei trazer uma idéia, mas depois vi que não está correta.
É um carro parado para um cego passar. Mas a bengala não ficou na posição correta, parece mais que ela está querendo bater no carro.
A bengala dele é torta e não ficou na posição de travessia. Esta estória acontece sempre na rua: o carro pára e a pessoa pede para alguém atravessar, ou ele pára e desce, deixando o carro ligado para atravessar o cego.
Eu não sabia que isto acontecia. No outro dia, o ônibus até amassou o carro da moça, ela abandonou o carro no leito carroçável para me ajudar a atravessar.
Esse não tem muita estória.
Título: a solidariedade humana.
Inquérito: - você disse que não sabia que isso acontecia? - não é que eu não achasse que o carro não ia parar, é que eu não tinha conhecimento de que isso acontecia.
Eu não convivia com deficientes. - por que eles param para atravessar o deficiente? - porque sabem que, sozinho, o deficiente não pode atravessar e com um minuto ele está facilitando a vida de alguém.
Outro dia me disseram: já pensou se eu vou embora e fico pensando em você aí na esquina precisando de alguém para atravessar? - a bengala não está certa? - É, na posição que ela ficou.
Porque devia ter feito ela em pé, e fiz ela torta.
Interpretação: propõe uma situação típica de cego. Demonstra odiar depender de uma figura que o protege, mas não pode expressar seu ódio.
A expressão gráfica da bengala revela claramente um ato falho. Odeia e inveja um bem que os outros têm e ele não.
Mostra dúvidas quanto a uma relação desinteressada e propõe a culpa como um fator da solidariedade humana.
Expressa de maneira muito interessante a diferença entre uma informação dada e o conhecimento adquirido pela experiência.
Figura 1.4
Verbalização: - me perdi. Tentei desenhar uma firma. Aqui uma porta, uma janela, uma janela mais baixa, aqui uma máquina e um homem trabalhando.
Só que não consegui trazer o pé dele até aqui. Aqui, um deficiente visual, que procurava serviço, achou numa empresa, onde ele mesmo pudesse ganhar seu sustento.
Ele trabalhava operando uma máquina. Isso era tudo o que ele queria para viver bem.
Ele conseguiu operar a máquina bem, sem dificuldades e se dá muito bem no emprego.
Título: lutando pela sobrevivência
Inquérito: - como ele achou o emprego? - uma pessoa que trabalhava nesse lugar avisou que havia vaga. - teve dificuldades? - não, não teve dificuldades; ele foi apresentado pela pessoa, então não teve dificuldades.
- era tudo o que ele queria? - era uma das principais coisas. - como assim? - ele queria casar-se.
Agora ele já tinha como manter uma família. Aqui é a bengala? (esclarecimento sobre o desenho) - É a bengala, bem próxima, sim, bem próxima dele, se ocorrer algum problema e ele precisar sair, precisa de bengala...
Um incêndio, mesmo para não ficar na dependência de quem enxerga.
Interpretação: propõe o ideal, a independência, ser auto-suficiente. Há um movimento de crescimento, mas há uma condição de insuficiência que não consegue superar.
Há um sentimento de objeto ausente que o impede de atingir a suficiência. Nesta cena, descreve em minúcias as possibilidades de entrada e saída (a porta e as janelas se salientam em seu desenho), revelando flexibilidade, comunicabilidade, mas, ao mesmo tempo, o deixar uma oportunidade para se retirar a estágios anteriores de desenvolvimento.
Nota-se força de ego no direcionamento de sua vida.
Figura 1.5
Verbalização: - aqui uma gangorra com duas crianças, aqui uma gaiola com uma criança já no alto e aqui um escorregador com uma criança querendo subir. - e aqui? - a base da gangorra (o triângulo inferior).
Vou criar outro desenho, uma mãe bem brava chamando eles para ir embora. A mãe está chamando as crianças para irem embora.
Tentei fazer uma saia e uma trancinha. As crianças estão brincando no parquinho e a mãe está chamando para ir tomar lanche.
Mas ninguém se importa com a mãe, a brincadeira está boa. O menino que está no escorregador tem receio; ele não sobe no escorregador, mas não vai embora.
A mãe fica com dó e diz: ”só mais um pouco”. Mas ela pensa: ”mais um pouco, mais um pouco”, e fica um dia inteiro. É melhor assim, brincando, do que doente.
Título: infância
Inquérito: - É uma mãe bem brava? - porque ela está chamando e ninguém dá bola. - ela é sempre brava? não, só agora, porque se fosse muito brava, eles não vinham ao parque.
Pode ver, ninguém olhou para trás, estão todos olhando para o brinquedo. - esse menino não sobe? - ele não sobe porque está com medo da mãe, mas não voltou.
Ele está prestando atenção, se os outros forem, ele também vai. Ele é o Mário, vão com os três. - o que faz a mãe? - não faz nada, fica só olhando. É novinha ainda, está usando rabinho. É uma mãe bem democrática.
Interpretação: o divertimento, a descontração, o jogo são expressos de forma infantilizada, e sempre vigiados por alguém.
A sexualidade é expressa simbolicamente pelo movimento em várias situações: a gangorra, o escorregador, o trepa-trepa.
Ele não desiste, mas tem medo de realizar, daí a escolha por permanecer na infância.
O trepa-trepa é nomeado como gaiola: uma relação a aprisionamento? ele como prisioneiro da infância? pode ser preferível ficar na infância a sofrer os perigos que o crescimento traz.
Há um contraponto entre o 4° e o 5° d-e, em que se notam duas posições antagônicas: crescer ou permanecer na infância.
Este parece ser seu conflito central. Doença parece ter para Antônio uma forte conotação, como se a vida se iniciasse sobre este estigma.
Informações do examinando sobre o d-e: - o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? - achei muito bom, nunca tive que desenhar.
Na mente eu criei, mas acho que não consegui. Mas achei muito bom tentar, pôr para fora o que está na nossa mente. Não achei difícil desenhar. É só começar. Até estou pensando em fazer uma prancheta igual a essa para mim.
Análise das informações sobre o d-e: captou com clareza a que o procedimento se propõe.
Refere-se à sua imagem mental e à dificuldade em expressá-la fielmente. Revela aqui também sua força para o crescimento, não teme errar e tenta.
Reafirma a diferença que estabelece entre o conhecimento que lhe é dado e o conhecimento experimentado.
Análise dos desenhos: os desenhos revelam uma crescente estruturação, iniciam-se com figuras soltas, nas quais também as partes estão soltas; uma expressão gráfica organizada apenas pela verbalização.
Progressivamente, as figuras vão-se tornando mais organizadas, até atingirem a representação gráfica de cena composta.
É notável o aparecimento de ato falho pela expressão gráfica no 3° desenho. Seus desenhos revelam movimento, mostrando a sua flexibilidade e indicando um bom nível intelectual.
Síntese do caso: É um jovem que revela boa organização egóica, apesar de uma expressão afetiva imatura e regredida.
Possui força egóica e bons dispositivos reacionais na luta contra a adversidade, aceitando realisticamente suas dificuldades e limitações.
Revela flexibilidade e comunicabilidade. Seu conflito nuclear parece ser a incapacidade de se definir por crescer ou permanecer pequeno, buscar a independência ou acomodar-se à dependência.
Este conflito parece intimamente relacionado com a sua cegueira, sentida como uma falta, um objeto ausente que o impede de atingir a suficiência. É dependente deste objeto externo visto ambivalentemente como provedor e destruidor.
Odeia depender deste objeto, mas não pode expressar seu ódio, levando-o a uma certa dificuldade na relação com o objeto total e a uma tendência à cisão, colocando fora toda maldade.
Esta dificuldade o leva à regressão, permitindo-se expressar sentimentos de prazer e descontração só de uma maneira infantil.
Parece acreditar que a satisfação pulsional e da sexualidade só fossem possíveis na infância.
Faz uma interessante relação entre sexualidade e visão, supondo que a ausência de visão impede a percepção do desejo sexual.
Caso 2.
Joana é uma jovem de 24 anos, solteira, branca, natural de Mococa, interior de
SP.
Está fazendo reabilitação e cursando a 6ª série do 1° grau. Seu pai é vigilante e sua mãe não trabalha fora.
Descreve seu problema oftalmológico como ”um tipo de catarata; passei por algumas cirurgias para verificar a possibilidade de recuperar a visão.
Não foi possível.
Agora tenho glaucoma” (sic). Diz perceber claridade, e considera sua cegueira congênita.
Mora em São Miguel há três anos, com uma irmã casada. Veio para São Paulo para estudar, e nesse tempo foi alfabetizada e preparada para a prova de escolaridade. É a nona filha de uma família de dez irmãos.
Joana conta que em sua cidade não fazia nada, ajudava no serviço da casa e saía com os irmãos.
Na entrevista, fala descontraidamente, mas como se estivesse fazendo um relato a respeito de um outro, com muita neutralidade.
Parece se colocar fora da situação, destaca-se da cena e fica como observadora neutra.
Parece transmitir uma situação de que vida é o que acontece com os outros, não com ela.
Mostrou-se disponível para a realização do d-e, mas dava a impressão de que o estava realizando por simples colaboração.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 2.1
(vira a prancheta, diz não ter nenhuma criatividade para desenhar.
Acompanha os traços com o dedo. Vira a folha para ”ver” atrás.)
Verbalização: - ah! ficou tão feio! tentei fazer um pinheiro.
Não diria que é uma estória. Eu gosto da época de Natal. Armar uma árvore. Eu adoro.
Acho que estou com espírito Natalino hoje, por isso desenhei um pinheiro.
Título: o pinheiro
Inquérito: - você gosta do Natal? - para mim, o Natal significa paz, estar de bem com as pessoas.
Hoje estou assim.
- por que você está assim hoje? - não há razão, está tudo correndo bem, comigo e com as pessoas, acordei bem, dormi bem.
- do que você gosta no Natal? - gosto de tudo; gosto do clima, as pessoas se voltam mais às outras, elas se doam mais, a gente se reúne.
O Natal é para comemorarmos o nascimento de cristo e a união com as pessoas. Tudo fica mais bonito e também gostoso. Aquele clima fica nas pessoas. Também gosto dos presentes, né?
Interpretação: descreve uma situação ideal, e a descreve como se a estivesse vendo de longe, como uma situação de fora, idealizada.
Talvez tenha tendência à idealização e seja esta a sua defesa.
Figura 2.2
(desenha em silêncio)
Verbalização: - está ficando muito esquisito.
Acho que nem sei o que estou fazendo. - eu acho que sabe sim. - por quê? - porque parece que você está fazendo uma coisa que está na sua cabeça. - ah! ficou muito feio! ah! vou deixar assim. É uma pessoa que eu queria desenhar aqui. É uma pessoa que nunca vi; não conheço, nunca cruzei.
É uma pessoa que não tinha um lugar firme para pisar, de repente apareceu na minha frente e eu não posso fazer nada por ela; eu desenhei.
Pelo menos a presença dela eu notei.
Título: A desconhecida
Inquérito: - ficou feio? por quê? - a cabeça não saiu exatamente como uma cabeça; o pescoço ficou torto, assim, essas coisas. - ela não tinha lugar para pisar? - era uma pessoa que ficava flutuando, no ar, no espaço, porque talvez ela não encontrou um pedaço de chão para ela, para ela pensar, analisar o que está acontecendo com ela.
Ou ela não encontrou o que interessava a ela, nunca. - você não pode fazer nada por ela? - como vou ajudar essa pessoa que vi uma vez e desenhei? nem sei onde vou encontrá-la. - o que você poderia fazer por ela? - eu ia colocar algum lugar para ela ficar.
Mas para que fazer, se ela não tem um lugar firme para ficar!
Interpretação: Joana fala de outros aspectos seus, que não conhece.
Tem noções de que possui outras coisas dentro dela, mas sente-se sem recursos para entrar em contato com este outro lado. É uma condição que não tem forma.
Parece uma dificuldade de comunicação intrapsíquica. Considera que não há espaço para esse seu outro lado.
Quando essa outra configuração começa a surgir, ela estranha, porque é ainda assustadora e desconhecida.
Essa outra aparece por meio da expressão gráfica, mas na verbalização há ainda uma recusa a entrar em contato com seu eu profundo.
Aqui começa a colocar um pouco de afeto, mas ainda se guarda. Parece nos dizer também que não ocupa um verdadeiro lugar neste mundo.
Está flutuando, talvez em busca de identidade.
Figura 2.3
Verbalização: - o que eu queria passar, não sei se saiu. O que eu queria desenhar era uma ave.
Sabe, eu gosto, e o que eu queria mesmo era a liberdade. Elas voam para onde querem e param, e nós muitas vezes temos que anular o que queremos pelos outros; não que eles falem ”não faça isso”, mas, pelos atos e forma de agir, nos impedem de fazer o que a gente quer.
O pássaro não, pelas suas asas eles podem ir até onde querem. Quando vejo um pássaro preso, penso como ele gostaria de estar voando.
Não saiu do jeito que eu sei como é um pássaro. Se eu conseguisse desenhar o que eu quero, seria um pássaro batendo as asas para levantar vôo.
Título: a liberdade i
Inquérito: - o pássaro tem sempre liberdade? - para um pássaro, nunca acaba; desde que não seja cortada por ninguém, ele sempre vai continuar voando, até quando perder suas asas ou morrer. - nós não temos liberdade? - porque temos que anular o que queremos.
Por exemplo: se estou a fim de passear hoje num lugar diferente, a gente depende muito dos outros, até financeiramente.
Os outros ficam criticando: ”por que você não vai com a gente? aonde você gostaria de ir e não pode?”.
Por enquanto, não tem nenhum lugar que gostaria e não possa. Também não tem nenhum lugar que não posso ir... à casa de um amigo meu, que já foi meu namorado, e minha irmã fica louca da vida quando falo que vou lá.
Ela tenta me impedir de todas as formas. Acho que minha irmã é um pouco quadrada; ela tem medo que eu me encontre com ele; daí, não estou com meus pais, estou sob responsabilidade dela.
Essas coisas.
Interpretação: este desenho não saiu tão firme, revelando que está menos defendida.
Sente-se um pássaro na gaiola. Talvez a deficiência a impeça de ter a liberdade que teria como uma moça vidente.
Talvez sinta a cegueira como um impedimento para a expressão e satisfação dos impulsos sexuais.
Ela parece não discriminar o fato de existirem limitações como um dado da realidade, e considera a cegueira como um obstáculo às suas realizações.
Sente que precisa anular seus desejos para ser aceita. Mostra uma grande necessidade de tornar-se independente.
Figura 2.4
Verbalização: - bom, isto é uma escada. Era uma vez uma menina que está tentando subir alguns degraus. Não, vamos supor, como fiz agora, para chegar nesta sala, mas para atingir um objetivo.
E ela conseguiu hoje alcançar alguns objetivos.
Título: - ah! deixa eu ver... Como poderei pôr... Não pode deixar sem título? de repente, subiu alguns degraus esta menina, mas não chegou à reta final... Então... Não sei.
Inquérito: - que objetivos ela conseguiu alcançar? maior desenvolvimento nas suas atividades do dia-adia. Um contato maior com as pessoas, mais íntimo, mais natural. Deixou de ser tímida, conseguiu tirar coisas dela mesma.
Sente-se mais segura naquilo que está fazendo. - tem outros objetivos? - ih, ela tem tantos, uma infinidade.
Mais futuramente, conseguir uma profissão em que possa se desenvolver, conquistar mais amigos, e muitos, muitos outros, que, se eu for falar, vou ficar o tempo todo falando. - qual seria a reta final? - acho que para ela nunca vai ter uma reta final; ela vai estar sempre desejando algo; mesmo que consiga, ela vai estar sempre desejando; para continuar vivendo, existe uma ambição, então, não há um fim.
Ela está sempre praticando, não digo só no lado profissional, mas no de dentro.
Interpretação: nesta, o simbolismo sexual se expressa no desenho da escada. Já está podendo expressá-lo.
Talvez o próprio procedimento tenha-lhe dado a idéia de que a sua outra configuração pode ser expressa.
Está falando de sua sexualidade e de objetivos de vida sublimados. Vai-se colocando aos poucos, e se coloca toda de maneira natural.
Há bastante libido investida nestas aspirações de vida, nesses objetivos.
Figura 2.5a e Figura 2.5b
Verbalização: - mais um só, espero que minha inspiração não tenha-se esgotado.
Não gostei... Deixa ver se consigo. (faz os desenhos e diz não ter gostado. Pede outra folha.) bom.
Pronto. Isto seria um copo, mas teria água aqui. Um desses dias vi um garoto entrar num portão para tomar água numa torneira.
Aí veio a dona da casa e brigou com ele. Ele disse que só queria um copo d’água, e como não tinha tomado, pediu para a dona, mas ela não deu, e brigou com ele.
Então, ele foi embora.
Título: a sede
Inquérito: - o que você achou disto? - eu achei que o garoto não deveria ter entrado, apesar de o portão estar aberto; mas ela deveria ter dado.
Eu não estava na minha casa, senão eu teria dado. - o que são estas listras? (inquérito sobre o desenho.) - estas listras são do copo; poderia ser um copo liso, mas este tem listras. - o que você achou da dona? - achei que estava no direito dela, mas não devia falar assim com o garoto.
Mas também o portão estava aberto.
Interpretação: fala da possibilidade de satisfazer algumas necessidades essenciais.
Ela gostaria de poder ser a provedora, mas admite que não tem esses recursos, sente que a vida lhe negou, que mesmo tentando roubar, ela não consegue.
Essas são necessidades vitais, não só relacionadas à necessidade de conservação, mas também de prazer.
É como se dissesse: quero viver, não só sobreviver. Por outro lado, precisa de normas muito bemdefinidas, de limites bem-estabelecidos, talvez por temer a perda de controle sobre seus impulsos. Parece haver uma diferença entre essa unidade de produção e a primeira; lá ela dimensiona seus limites, aqui parece haver dificuldade em dimensioná-los, na relação com a cegueira.
Parece ficar difícil dimensionar as dificuldades independentemente da cegueira e parece que tudo fica por conta da deficiência.
Informações do examinando sobre o d-e:
- o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? - olha, vou ser sincera, desenho não me atrai muito; estórias vá lá; não sei expressar o que sinto por um desenho.
De desenhar não gostei muito, mas contar estórias, tudo bem. Gosto de falar. Falo às vezes mais do que a boca.
- você achou difícil fazer desenhos? - não achei difícil, posso ter tido dificuldade em pôr a forma correta, mas o que quis expressar, eu consegui.
Se não pelo desenho, falando deu para expressar. Não foi difícil.
você acha que o desenho não tem significado para o cego? não, não é isso que acho.
Acho que cada um tem um dom, seja cego ou não; eu não tenho o dom para desenhar.
Análise das impressões sobre o d-e:
expressa com clareza as diferenças individuais independentes da condição orgânica da visão.
Como Joana parece um ”tipo visual”, no dizer de Lowenfeld (1939), sendo extremamente controlada e procurando desenhar pelo que vem de fora, sente dificuldade na expressão gráfica, mais difícil de controlar do que a verbal.
Joana parece ter apreendido com clareza a proposta do d-e, se retrai, optando pela expressão verbal, mais passível de controle e, por esta razão, diz que o desenho não lhe atrai.
Análise dos desenhos: nos primeiros desenhos, nota-se uma representação figurativa de imagem visual; devemos nos recordar de que a paciente, embora se classifique como possuidora de cegueira congênita, relata uma série de cirurgias para melhorar a visão, e fala de glaucoma, que, embora congênito, inicialmente possibilita uma visão residual.
No decorrer do procedimento, os desenhos vão mais e mais expressando representações táteis cinestésicas, principalmente no 4° e 5° desenhos.
Paralelamente, observa-se que Joana vai aos poucos se colocando mais, deixando uma postura de observadora, uma posição do lado de fora, para ir progressivamente expressando seus sentimentos mais profundos.
Síntese do caso:
Joana é uma jovem que se mostra bastante defendida, reprime seus afetos e se coloca na posição de observadora neutra de situações idealizadas.
Parece haver dificuldades na comunicação intrapsíquica pela intensa repressão de seu eu profundo.
A cegueira é sentida como uma condição que a impede de expressão e satisfação de seus impulsos sexuais.
Computa a esta a existência de limitações, não sendo capaz de discriminar as dificuldades impostas pela cegueira daquelas inerentes ao ser humano.
Sente também que as pulsões agressivas se originam de suas reações à deficiência, e que precisa anular seus desejos para ser aceita.
A realização do d-e parece ter servido a Joana como uma possibilidade de entrar em contato com seu eu profundo por meio da expressão gráfica, possibilitando-lhe, nas últimas unidades de produção, falar da busca de satisfações e necessidades essenciais, e investir sua libido em aspirações de vida.
Caso 3
Luiza é uma jovem de 19 anos, branca, solteira, natural de Congonhal, MG.
Tem o 1° grau completo e está no programa de reabilitação profissional. Deseja ser telefonista ou trabalhar em câmara escura.
Seu pai é mecânico, ”faz bico” (sic), e a mãe não trabalha fora. É a segunda filha de cinco irmãos. À pergunta sobre seu problema visual, diz: ”nasci sem visão, não sei ao certo, mas dizem que minha mãe teve anemia profunda e passou para mim” (sic).
Sua visão é nula, usa prótese ocular. Informa ter estudado em sala de recursos de escola estadual por indicação do patrão de seu pai.
A família mudou-se para São Paulo quando ela tinha 3 anos, em busca de recursos médicos e trabalho.
Embora fale de sua vida escolar como satisfatória, deixa entrever certa mágoa pela dificuldade de relação com as colegas.
Parece muito crítica e hostil, refere-se a dificuldades no relacionamento familiar, principalmente em relação ao pai, que é descrito como alcoólatra e com quem briga muito.
Sua reação à cegueira é dúbia: ao mesmo tempo que coloca objetivamente sua deficiência e desenvolvimento escolar como pessoa cega em escola comum, queixa-se de não ter conhecido e não ter convivido com outras pessoas cegas.
Refere-se também com irritação aos comentários dos vizinhos sobre sua deficiência.
Na aplicação do d-e, mostrou-se crítica e reivindicativa, expressando verbalmente seu descontentamento pela realização da tarefa, mas, diante da colocação do examinador de que ela poderia parar, se assim o desejasse, continuava a fazer.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 3.1
Verbalização: - É um pouco complicado, porque nunca mexi com desenho.
Nossa, que coisa difícil! sempre achei difícil imaginar as coisas. Este desenho é a rua de minha casa.
Meu grande problema em locomoção foi desenhar o quarteirão da minha casa. Imaginei fazer só isso.
Nunca consegui perceber que minha rua era quase um triângulo. Não sei se ficou difícil por causa da tela; na prancha nunca consegui fazer, só quando fui andar e que consegui perceber.
Ainda mais que essas ruas não atravessam a minha: elas saem dela, mas não atravessam.
Eu nunca fui muito apegada a desenhos; gosto de ler e escrever. Não sei se os professores nunca incentivaram essa parte na gente, nunca fui de desenhar. É não saber o que colocar no papel.
Título: Volta ao começo. Porque quando fui desenhar, voltei ao começo da minha locomoção e desenhos também.
Interpretação: está falando que só pode entrar em contato com as relações espaciais se locomovendo sozinha.
Parece ter muita dificuldade em colocar-se, em expressar seus aspectos internos.
Ao sentir-se em uma situação difícil, refere-se a dificuldades anteriores, numa tentativa de desviar a atenção do examinador para uma outra área, eximindo-se da tarefa de se expor.
Sua defesa parece ser desviar-se para uma situação concreta em que teve dificuldades. Dificuldade em se desvendar, para não aparecer para o outro. E também, uma tentativa de dirigir e desviar a atenção do examinador.
Figura 3.2
Verbalização: - aqui, já que estávamos falando de minha rua, resolvi fazer o caminho para chegar em casa.
Aqui a entrada da rua, aqui a porta da sala; depois, seguindo à esquerda é o banheiro e indo em frente é o quarto.
Também foi difícil colocar na prancha de pinus. Não conhecia aqui em cima, mas tudo o que conheço lá embaixo, a técnica pede para colocar na prancha e eu não consigo, mas no papel é mais fácil porque dá para me orientar bem dentro.
Inquérito: - desenhou sua casa? - É, acho que sim, pelo menos por dentro. Estória não sei dizer. É uma casa normal, tem três cômodos e fora dela, nesta entrada, vai até o fundo.
Tem um quintal grande. Ela não está terminada, ainda estamos construindo. Construindo não, a gente fala, mas não faz nada. Ela não mudou muito desde que fomos para lá.
Para falar a verdade, não gosto muito dela, nem da minha rua. Agora que aprendi mobilidade, não fico muito lá, saio muito, não paro. - não gosta dela? - eu não gosto muito daquele bairro, gosto mais daqui.
Das pessoas em si não; sempre morei, gosto das pessoas. Mas não gosto de carapicuíba.
Acho que é do tipo do lugar..., do tipo de gente..., é como a gente fala: parece mais um buraco.
Não paro lá, sempre venho para cá, ou vou para o Taboão, nunca vou para Carapicuíba.
Só gosto no domingo, por causa da feira hippie. - como acaba a história? - não vai ter fim tão já.
Foi mais uma descrição.
Título: descrição. Foi uma coisa bem descrita e foi um desenho também para dizer como é.
Acho, como você pode perceber, que eu sou muito curiosa. No começo eu vinha, me faziam mil perguntas e eu respondia, até fiquei enjoada.
Agora não; também quero saber e pergunto para as pessoas, porque senão não há troca.
Interpretação: nesta, parece haver um início de relacionamento com o examinador.
Fala em fazer um caminho de volta para dentro de si, mas sente-se ameaçada. Fala de insatisfação consigo própria, se desvaloriza muito, sente dentro de si um buraco.
Há um intenso bloqueio no entrar em contato com seus sentimentos mais profundos.
Mas há um terreno que precisa ser cuidado e construído, embora ainda seja um chão árido.
Figura 3.3 (desenha em silêncio.)
Verbalização: - acho que está pronto. Não sei, não me ligo muito, não tem muita coisa para dizer, para contar, então me ligo as coisas que já fiz.
Então fiz o trajeto que faço para tomar ônibus. Esse é o trajeto que faço, não tem estória, seria mais, uma descrição.
O desenho está aqui, eu sei o que quero dizer com ele: é o caminho que faço para ir para casa.
Inquérito: - o que você quer dizer com fazer o caminho? - você me disse: ponha no papel a sua idéia.
Não que seja exatamente isso, não que não queira fazer isso. Eu não entendo bem seus objetivos. Para mim é uma coisa super difícil, muito abstrata. Não sei se é porque não estou acostumada a fazer esse tipo de coisa. Em mobilidade a gente faz isso e foi exatamente aqui a minha dificuldade em mobilidade. - o que é super dificil? - acho que tudo o que está aqui.
Desenhar, contar estórias, dar um título. Como fazer uma estória de um desenho? acho que desenho pode fazer coisas abstratas.
O desenho sai, mas, depois, o que significa aquilo? - o que significa? - para mim não seria uma estória, significa um trajeto, quase uma rotina. - não tem estória? - não, pelo que eu entendo, não.
A estória sai de um tema, quando alguém diz ”faça uma redação sobre qualquer coisa que queira”, não sai, é difícil.
Título: ela vai se chamar ”dificuldades”, porque coloquei todas as minhas dificuldades para você. - todas? - estão todas ligadas ao desenho e à estória; ao que estou fazendo aqui e agora.
Lógico que tenho outras. - quais? - não há muita ligação aqui. Por exemplo, sair sozinha no meu bairro é muito mais difícil que aqui.
Lá tem construção, tem tipos de pessoas diferentes, que olham mas não ajudam, e quando você pede, eles não ajudam. - tipos diferentes de pessoas? - acho que aqui, desses lados, os deficientes visuais gostam mais do que da periferia. Não sei se lá tem menos, aqui tem muitos, e as pessoas se acostumam. O pessoal não entende e pensa ”por que vai à padaria, se você tem uma irmã que pode fazer por você?”.
Para mim é dificuldade em termos, eu enfrento bem, mas é uma dificuldade que está no caminho de todo o mundo.
Interpretação: neste, procura retornar ao conhecido e dizer de seu grande medo de se deparar com o que há dentro dela, possivelmente porque fantasie que vai-se deparar com um ”buraco”, ”sem construção”, ”sem nada”.
Fala de sua dificuldade em aceitar sua limitação visual, e tem dúvidas sobre suas possibilidades e capacidades.
Parece sentir-se lesada por ser cega, e considera que os outros deveriam compensá-la por isso.
Gostaria de ser paparicada e de ter os benefícios secundários à cegueira, o que não está conseguindo. Tem uma atitude impositiva. Parece que sua dificuldade não é a cegueira, mas os outros não renderem homenagem a esse instrumental que ela possui.
Figura 3.4
Verbalização: - pronto. A gente estava falando de dificuldades e barreiras, então resolvi colocar no desenho.
A gente criou uma associação de deficientes, eu faço parte. Estamos batalhando contra essas barreiras. É aqui que a gente se reúne sempre e batalha contra essas barreiras.
Título: a integração. No momento em que você está batalhando aqui, é realmente isto que estamos procurando: a integração na sociedade; que eles vejam a gente como pessoa normal, entre aspas.
Inquérito: - vocês criaram uma associação? - eu e mais uma turminha; tudo começou num núcleo, não sei se é internacional -
afcd (Associação Fraternidade
Cristã e Doentes Deficientes) - e aí começou; mas nós modificamos e hoje é uma associação de deficientes físicos. - modificaram? - a minha é exatamente isso... A gente nunca tem independência total, mas a gente luta. Os deficientes físicos têm mais barreiras: ônibus, falta de acesso em alguns lugares; acho que a batalha é mais para eles mesmos.
Da gente é só mais as pessoas. - batalhando como? - a gente se reúne no segundo e quarto domingos do mês e nas quintas-feiras, na sede provisória.
Estamos batalhando pela construção de uma nova sede; já batalhamos o terreno.
Interpretação: nesta exprime que sua grande dificuldade é em termos de relacionamento, o sentirse como parte de um grupo, como pertencente.
Ela usa a cegueira como uma desculpa para sua grande dificuldade de relacionamento.
Abraçou a questão da deficiência como uma forma de se sentir valorizada. É uma moça que deseja muitas honrarias.
Não tem uma linguagem natural, não se expressa livremente, usa ”chavões” e desloca as suas dificuldades para as dificuldades dos deficientes.
Figura 3.5
Verbalização: - pronto. Tinha te falado da sede provisória. Aqui, onde a gente se reúne, a sala onde a gente guarda as coisas, pra cá é o resto da casa de menina.
A gente faz artesanato. A gente se reunindo conseguiu a creche. A gente precisa se organizar, porque a prefeitura só dá coisas para as pessoas organizadas.
Aqui, a gente guarda as coisas que serão uma promoção para sede futura. Aqui, estão os materiais que vão sair os trabalhos, através de vendas..., bingo...
Depois da sede construída, a gente vai conseguir uma microempresa. Microempresa? - de repente alguém não pode trabalhar fora, trabalha aqui.
Vai ter também uma sala de fisioterapia, para as pessoas não precisarem se locomover para tão longe.
Seria um centro de reabilitação, como aqui.
Título: o desempenho. - porque cada um vai ter que se desempenhar para fazer. Eu faço
Durepóxi, faço, não: copio, não sou criativa.
Serve também para as pessoas se sentirem úteis, fazer alguma coisa. Aqui nós temos reunião extra de diretores. - você não é criativa? - não sou muito, não.
Não sei criar muitas coisas; não sei se é falta de hábito, não sei criar as coisas. - por que você acha que não sabe criar? - não sei, todos têm facilidade para fazer coisas, eu não; tenho facilidade para outras coisas; isto não.
Gosto muito de escrever. - escrever? escrever assim uma carta, um bilhete; quando começo, vai longe, se não brecar, nem sei.
Gosto de ler também, contos, e passear. Mas de criar não; nunca fui ligada à criatividade. - o que você chama de criar? - não sei, uma coisa original, diferente, sei lá, uma coisa original que venha de você. - e o que vem original de você? - eu tento copiar.
A primeira vez que você disse: ”faça um desenho”, eu fiquei pensando: ”mas o que ela quer? como é a estória que ela quer? será que ela quer que eu realmente faça um desenho e conte uma estória? como vou contar uma estória?”.
Interpretação:
Luiza revela um nível de aspiração muito alto, pretensioso. Procura se satisfazer repetindo ou copiando as realizações de outros.
Tem muito medo de se colocar, se defende muito de colocar seus aspectos internos, de se expor, de criar. É extremamente dependente do objeto externo, procurando adivinhar o que o outro deseja, a fim de corresponder.
Paralelamente, há uma tendência impositiva de submeter o outro. Parece sentir-se muito ameaçada e deixa entrever sentimentos persecutórios, talvez por sua grande inveja.
Revela também muita rigidez, não tem qualquer flexibilidade, temendo muito situações novas.
Informações do examinando sobre o d-e:
- o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? - não sei se é o desenho, então eu até faço, o problema é o que ele significa. É criar alguma coisa.
Desenho abstrato até já fiz, mas o que a coisa vai significar para mim, aqui é que é o problema. É uma coisa que até já se tornou habitual para mim.
Pegar na caneta e começar a desenhar, mas saber o que é? isso que desenhei tá, pelo menos acho que saiu.
O movimento do meu nome é muito habitual para mim.
Análise das impressões sobre o d-e:
aqui retorna a seus conflitos básicos e reafirma sua grande dificuldade em se expor, em deixar aparecer seu íntimo, e paralelamente demonstra sua grande necessidade de se valorizar, não querendo que o outro perceba suas dificuldades e limitações.
Análise dos desenhos: seus desenhos são predominantemente a expressão gráfica do movimento.
Como Luiza é uma jovem que provavelmente nunca teve nenhuma percepção visual, diferentemente dos dois casos anteriores, que revelaram possuir alguma memória de imagem visual, nos fala que a percepção do espaço para o cego só é adquirida pela movimentação, e principalmente quando essa locomoção é autodeterminada e autoconsciente.
Por outro lado, podemos notar toda sua rigidez e autocontrole, claramente expressos graficamente.
Seu traçado é duro e predominantemente de linhas retas. Poderemos talvez classificá-la como um tipo ”visual”, no dizer de
V.
Lowenfeld (1939). Apesar da sua percepção tátilcinestésica para a apreensão dos objetos,
Luiza parece não se permitir a expressão de experiências subjetivas, ligadas às experiências do próprio self.
Síntese do caso:
Luiza revela grande dificuldade de trocas afetivas, de sentir-se pertencente, suas relações com o outro são ambíguas, ambivalentes e conflitivas.
Reage contra o outro e tenta controlá-lo, tem dificuldade em desvendar-se, em expressar seus afetos, sentimentos e desejos, por medo de que percebam seu vazio interior, mas ao mesmo tempo deseja ser valorizada e paparicada.
Há uma grande desvalorização pessoal e insatisfação consigo própria, sente-se lesada por ser deficiente e considera-se credora do mundo.
Sua dificuldade não parece ser a cegueira em si, mas o seu uso; a cegueira é vista como um dom que a torna merecedora de cuidados e atenções especiais.
Abraça a questão da deficiência como uma forma de se valorizar. É bastante pretensiosa, e como sente uma insuficiência básica, procura se valorizar copiando as produções dos outros.
Isto a impede de utilizar seus próprios recursos. Sua dinâmica parece estar centrada na inveja, o que a impede de ver suas próprias competências.
Caso 4
Alberto é um jovem de 19 anos, solteiro, pardo, natural de Diamantina,
MG.
Nunca recebeu qualquer educação formal, está sendo alfabetizado no programa de reabilitação.
O pai está aposentado por invalidez e a mãe não trabalha fora. Relata seu problema visual com as seguintes palavras: ”fiz exame e não acharam nada; quando tinha 1 ano me levaram ao hospital são geraldo e falaram que eu tinha luz muito pouca, aí fui piorando.
Aí fiz exame de vista no hospital do servidor e disseram que eu não tinha nada.
Fiz exame de cabeça e não deu nada”.
(sic). É o 6° filho de uma família de 7 irmãos vivos. A mãe teve 17 filhos, 10 faleceram.
Refere-se à cegueira de um irmão mais velho, já falecido. Vieram para São Paulo em busca de recursos, quando o paciente tinha 7 anos.
Relata conformado suas dificuldades, como se possuísse uma ”doença” sem cura e sem solução.
Descreve sua vida como pobre em experiências e em relações. Sua cegueira foi assumida pela família com resignação, mas como uma condição que impossibilita o desenvolvimento e uma vida plena.
Alberto parece sentir que vive em um lugar paralelo a uma vida de relações normais, do que se ressente.
De sua cegueira parece não ter uma concepção clara. Durante a aplicação do d-e falou repetidas vezes de sua incapacidade de realização, embora fizesse os desenhos e contasse as estórias solicitadas.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 4.1
Verbalização: - eu só faço desenho geométrico.
Vou fazer um quadrado. Estava tentando fazer uma pessoa, mas não deu certo. Não precisa ser grande, né? É grande ou pequena? - como você quiser. - para inventar estórias eu sou difícil de fazer.
Um quadrado lembra um buraco na piscina. Desse lado ia fazer uma figura de uma pessoa, mas não consegui (parece ansioso e emotivo). - você pode contar uma estória de uma pessoa ao lado de um buraco. -eu vou pensar: -estava em frente do buraco, tirando água da piscina. Daí tirei a água e a piscina era muito funda. Tinha mais ou menos dois metros, não tinha muita água.
Na hora assim, não consigo.
Título: a piscina
Inquérito: - estava tirando a água da piscina? - ah, pra trocar a água da piscina. - por quê? - porque tinha muito tempo, e era preciso trocar; não tinha encanamento.
Foi só um buraco que fiz, depois coloquei encanamento e não precisou mais trocar a água.
Interpretação: parece nos falar de uma grande carência em noções básicas. Os objetos não têm configuração precisa.
As coisas do mundo não estão bem organizadas. Faltam-lhe noções claras de espaço e definição formal das coisas. Em função disso, parece não ter estruturado uma identidade pessoal.
Fala-nos principalmente de suas tentativas para a configuração dos objetos.
Figura 4.2
Verbalização: - vou fazer um círculo, parece um vaso. Fiz esse vaso, minha cunhada pediu para dar para ela. Eu dei. Ele era mais estreito que esse. Demorava para fazer porque eu não tinha prática, as vezes desmanchava, fazia, mas consegui fazer o vaso.
Título: o vaso e o oleiro
Inquérito: - por que você fez um vaso? - É porque eu gosto de fazer desenhos redondos.
Eu fiz um vaso. Minha cunhada pediu para eu fazer um para ela. Então eu fiz e ela achou bonito. - o vaso desmanchava? - desmanchava porque saía torto.
Daí fiz com uma lata servindo de fôrma. Só assim consegui. Sem a fôrma caía o barro, soltava, aí abria demais, aí achei melhor fazer com a fôrma, com a lata. - você já tinha feito? - eu tinha feito lá onde estudei artesanato, daí ela pediu.
Lá eu fiz com fôrma também. Fiz cinzeiro, tentei fazer a figura de uma pessoa, mas não consegui fazer.
Interpretação: neste continua sua preocupação em determinar as características e configuração dos objetos.
Nos fala de seu desejo de aquisição de noções definidas, de procura de referência e apoio para uma organização objetiva do mundo.
Paralelamente, expressa verbalmente que, embora tente, não consegue configurar uma pessoa.
Figura 4.3 realização:
- vamos ver o que eu faço agora. Vou ver se consigo fazer um triângulo.
Me lembra uma harpa. Aquelas de brinquedo. Fiz errado aqui. Nem aqui consegui fazer o triângulo. - você agora quer contar uma estória? - contar estórias sobre o triângulo ou sobre isto aqui? - o que você quiser.
- não é triângulo, é losango. É uma harpa que eu tenho; eu toco também. É fácil; é de doze cordas e é de madeira.
Não é qualquer música que dá para tocar, porque não tem acidentes.
- acidentes? - outras notas, sustenidos, bemol. Essa harpa é difícil. É fácil tocar, mas não é qualquer música que dá.
Título: a harpa
Inquérito: - como seria a estória disso (mostrei o desenho à direita)? - não sei o nome dessa figura; parece quase um ovo, ou mais ou menos uma fruta. Tem a pêra que dá quase esta forma mas não chega a ser igual. Lá em casa tinha um pé de pêra; tinha muita pêra, mas depois com o sol quente...
Apanhava pêra todos os dias, aí secou, porque o sol estava quente. Precisei cortar o pé de pêra.
Título: o pé de pêra.
Interpretação: sua grande dificuldade de compreensão do mundo externo, a partir da percepção dos objetos, leva-o a um grande sentimento de impotência e incapacidade.
Fala-nos do privilégio dado à audição como um canal de comunicação com o mundo externo.
Entretanto, como a audição não propicia a precisão de formas, relações espaciais, tamanho e outras configurações objetais, seu mundo interno parece vazio, ”um buraco”, como se refere na 1ª unidade do d-e figura 4.4
Verbalização: - não pode ser repetido, né? - como você quiser. - tentei fazer aqui uma casinha, uma casa. (usa bastante o tato, na percepção de seu grafísmo) - não consegui fazer aqui a porta e a janela, mas em cima deu.
Deixa eu ver uma estória sobre a casa. Eu morei numa casa em minas, tinha sete cômodos; era grande.
Tinha uma horta grande e no fundo um tanque de peixes - me lembra um aquário; tinha umas plantas, verduras e um tanque de peixes.
- o que aconteceu? - não é o que aconteceu, eu morava lá; depois vendi a casa, é...
Vendi a casa. A casa no começo tinha dois cômodos, depois fiz mais e ficou com sete cômodos.
E também tinha verduras, um pé de amendoim. Depois vendi e vim para São Paulo. Morei lá bastante tempo: sete anos.
Título: uma casa e o aquário.
Inquérito: - por que vendeu? - porque quis vir para São Paulo. Gosto de São
Paulo.
Vendi lá e comprei aqui. - e o aquário? - ficou lá. Tinha muitos peixes, é fundo.
Não, não era muito fundo; tinha mais ou menos um metro. Eu pescava peixe e punha no aquário. Tinha muito peixe, ia produzindo. Eu gostava de peixe. - gostava? - É, pra comer.
Interpretação: neste notam-se diferenças que nos falam de progresso, tanto na expressão gráfica como na verbal.
Nas pranchas anteriores, o desenho era a expressão de uma forma geométrica, que depois
Alberto identificava com um objeto do mundo externo. Em sua verbalização, salientava a incapacidade de realização. Nesta houve o desejo expresso de fazer uma casa, e embora reafirme sua incapacidade, já pode afirmar alguma competência (não consegui fazer a porta e a janela, mas em cima deu).
Esta fala pode também nos revelar sua dificuldade de entrada e saída na relação com o mundo externo, que acarreta uma indiferenciação entre a vida de fantasia e a da realidade e a permanência no concreto.
Além disso, a pobreza de seu mundo interno, pela grande limitação de experiências, leva-o a uma necessidade de constituição do objeto e a uma aderência à concretude.
Figura 4.5
Verbalização: - fiz um desenho que lembra um carro. Um corcel. Só esse lado aqui não está muito bom. Meu pai comprou um corcel por dez mil cruzados. Depois começou a dar muito problema. Tinha que trocar câmbio, escapamento, muita coisa, só dava defeito.
Não servia para nada. Daí, passado um ano, ele vendeu o corcel porque estava dando muito problema.
O corcel era vermelho e preto. Por fim, teve prejuízo, vendeu por sete mil cruzados, porque dava muito problema.
Título: o corcel
Inquérito: - por que seu pai comprou o corcel? - comprou porque pensou que estava bom, depois quando chegou tinha esses defeitos.
— ele não servia para nada? — ele andava, ser via para andar; mas dava muito defeito; serviu, mas pouco.
Interpretação: Alberto está nos falando de seu conceito sobre si mesmo, de seu mundo interno.
De como é cheio de defeitos e imperfeições. Parece que os objetos de seu mundo interno estão despedaçados, sente que não serve para nada.
Sente que constitui um peso e um prejuízo para a família.
Informações do examinando sobre o d-e:
— o que você achou de desenhar e contar estórias? — pra desenhar eu não sei desenhar bem.
Não é que eu não goste de desenhar e contar estórias; é que eu preciso ficar pensando muito para fazer uma estória. — e você não gosta? - não, não gosto de ficar muito tempo.
Quando a professora pede, aí dá, porque não é na hora que tem que fazer. Em dois dias, uma semana, ainda dá, mas na hora não; eu fico querendo enfeitar, para ficar mais bonito, às vezes eu faço e depois acho que não está bom. - e o fato de não enxergar dificulta? - não acho que atrapalha em nada; quando não andava sozinho era ruim.
Quando queria sair e ninguém me levava, só com meu pai e minha mãe. Meus irmãos não gostavam de sair comigo. Me levar, me puxar de um lado para o outro. Só isso eu não gostava. Mas agora está tudo bem assim.
Análise das impressões sobre o d-e:
reafirma seu sentimento de incapacidade, e sua grande dificuldade de expressão, relacionados a uma intensa autodesvalorização, que relaciona não à cegueira em si, mas a sua vida de extrema pobreza de experiências e relações.
Aqui é novamente expressa sua concretude, dificultando sua compreensão.
Parece nos falar de uma diferença de tempo que pode estar relacionada à cegueira; sente que seu ritmo é diferente, sendo incapaz de se ajustar ao ritmo dos videntes, e por isso para fazer algo precisa estar só.
Análise dos desenhos: sua expressão gráfica revela a pobreza de seu mundo interno, e a dificuldade em transitar entre o mundo da realidade e o da fantasia.
Inicialmente procura desenhar formas geométricas, a expressão de algo que provavelmente lhe foi ensinado, não se permitindo a expressão de conteúdos mais profundos e próprios.
Com a proposta de uma série, a partir da 4ª experiência, se permite a expressão simbólica de conteúdos internos no desenho do carro, observando se mudanças no traçado e a revelação de um conceito de mundo interno muito defeituoso, constituído do objetos estragados e sem valor.
Síntese do caso: É um jovem que revela extrema pobreza e fragilidade, demonstra carência de noções básicas.
Seu conhecimento do mundo externo é pobre e com lacunas, que sente não poder preencher devido à cegueira.
Parece não ter noções claras de espaço e definição formal dos objetos, o que interfere na organização de uma clara identidade pessoal.
Parece ter havido por parte de sua família uma total conformação à cegueira, aceita passivamente por
Alberto como uma sina.
Refere-se à primazia dada à audição em sua relação com o mundo externo, povoado de sons, mas sem substancialidade, o que o leva a sentir seu mundo interno vazio.
Parece nos dizer que só agora está podendo buscar uma configuração dos objetos, preocupado em definir suas formas e em produzir algo.
Também para Alberto a proposta de cinco unidades de produção do d-e parece ter possibilitado o contato com o mundo interno e lhe entreaberto a visão de suas competências.
Entretanto, suas dificuldades de entrada e saída do mundo externo parecem levá-lo à indiferenciação entre a vida de fantasia e de realidade e uma conseqüente aderência ao concreto.
A expressão de seu eu profundo revela uma total desvalorização, com sentimentos de incapacidade e uma noção de mundo interno cheio de defeitos e imperfeições.
Caso 5
João é um jovem de 24 anos, solteiro, pardo, natural de Florianópolis,
SC.
Nunca recebeu qualquer educação formal, está sendo alfabetizado no processo de reabilitação.
O pai é lavrador e a mãe não trabalha fora. Sua visão é nula, ficou cego aos 5 anos, por acidente.
Brincava com sua irmã e esta enfiou uma faca em seus olhos. Quando pedimos que contasse como aconteceu, disse que se lembrava muito pouco da ocorrência.
Informa com naturalidade que em 1988 a família, ao sair de Santa Catarina, se separou.
Ele, a mãe e duas irmãs ficaram em São Paulo. O pai e outra irmã casada foram para o interior do estado para trabalhar na lavoura.
Diz terem ficado em São Paulo para que as irmãs trabalhassem e ele pudesse estudar.
Fala de seu desejo de ser independente, todavia sua atitude contradiz seu discurso, demonstrando extrema passividade e conformação.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 5.1
Verbalização: - vou ter que desenhar? eu nunca desenhei, vai ser difícil.
O que eu vou desenhar? - qualquer coisa; procure representar uma idéia que você tenha em sua cabeça. – vou desenhar uma estrela...
Nem sei como ficou, fiz uns riscos aí. Agora, com o desenho a sua frente, conte uma estória. - uma estória? fiz uma estrela porque achei que dava para eu fazer, eu fiz alguma coisa que parece uma estrela.
Estória é difícil inventar, porque não tenho nada em mente para montar uma estória.
Você pode contar qualquer coisa. - vou ver se consigo montar uma estória. Aconteceu uma coisa muito boa na minha vida, aí percebi que era uma coisa vinda de deus, da natureza.
Eu não conseguia ver, mas tinha na mente uma estrela que brilha, está sempre brilhando para mim. É só.
Título: estrela cadente.
Inquérito: - por que você fez uma estrela? - porque é coisa que brilha para todos, acho que todos nós temos uma estrela que brilha na vida. - por que estrela cadente? - porque é o nome que achei melhor. - como assim? - uma estrela grande que só aparece de madrugada, às 4:00 horas da manhã.
Como é esta estrela? - É bonita, especial. - por que estrela cadente? - porque é diferente das outras.
Interpretação: revela total dependência da figura materna, que é o centro de sua vida e quem a ilumina.
Bastante conformado com sua situação de vida, demonstrando baixo nível de aspiração, que parece refletir nível cultural baixo, ambiente carente e linear.
Parece ter pouca energia e poucos recursos reacionais. É muito dependente do que vem de fora, de onde espera incentivo para qualquer atuação.
Figura 5.2
Verbalização - não tenho para desenhar não esta dando para desenhar, (estava fazendo um desenho) - o que você desenhou? - o que eu queria desenhar é um coração.
A estória e que e difícil, não podia deixar a estória? não vou conseguir fazer uma estória. - por que você desenhou um coração? - porque achei que era fácil de desenhar. – fácil? -É só fazer as voltas certinho.
Fazer coração é quase igual uma bola, não e difícil. Montar uma estória na hora fica meio complicado.
Coração e coisa que a pessoa tem que ter para sobreviver, e também para ter mais compreensão, mais carinho com as outras pessoas, ter sentimento. - o que lembra coração? - me lembra amor.
O que é amor? - É uma coisa que a gente sente por dentro, só a gente sente. - quando a gente sente? - quando a gente gosta de alguém, se apaixona por uma pessoa.
Como assim? - porque é uma pessoa especial. - o que é especial? -minha mãe e minha namorada.
Título: amor de mãe
Interpretação: está sempre aguardando a estimulação do examinador, parece muito simples, num nível primário de desenvolvimento.
Está falando de suas necessidades básicas; parece não possuir horizontes mais amplos, sua própria natureza parece linear, não tem ambição, curiosidade ou interesse.
Figura 5.3
(desenha quieto, é pouco comunicativo.)
Verbalização: - escrevi uma espécie de árvore.
A árvore é um negócio, uma coisa, ser vivo, só que não pode falar com as pessoas.
Portanto o ser humano maltrata ela, e ela não tem nenhuma defesa. Eles cortam, derrubam.
Se as pessoas pensassem não maltratavam a árvore, que é um negócio sagrado da natureza.
Título: reserva ecológica
Inquérito: - por que o ser humano maltrata a árvore? - porque eles não pensam certo e querem ganhar dinheiro com a madeira da árvore. - pensassem como?, - se pensassem que a árvore...
O verde é um negócio que transmite mais oxigênio. Se continuar assim, daqui a algum tempo a gente vai estar sem nenhum verde para respirar melhor.
Interpretação: revela pobreza de simbolização e precária orientação espacial; seu auto-conhecimento parece falho.
Há grande dificuldade de contato, que o deixa completamente sem defesas. Parece que sua agressividade é tão tênue que não dá para transformar em energia que possibilite a defesa.
Demonstra estar se sentindo muito agredido na sua incapacidade de contatar com as pessoas para expressar seus desejos.
Figura 5.4 Verbalização: - outro desenho? o que, por exemplo? (faz um desenho e o abandona.) vou fazer outro.
(começa a fazer e traça sobre o desenho anterior.) - eu quis desenhar um pássaro, mas me perco muito nas linhas.
A águia é um pássaro em extinção, por conta dos caçadores que não deixam ela em paz. Portanto é difícil encontrá-la.
Título: a águia desaparecida.
Inquérito: - por que águia? - como um gavião, um pássaro grande que tem unhas grandes.
Um pássaro que só come carne. A águia é quase igual, é diferente nas garras. A águia tem garras piores do que as do gavião. É um pássaro que só vive nas montanhas. - por que os caçadores não deixam ela em paz? - porque querem mudar elas, trazer para o zoológico, em vez de deixar ela solta na montanha.
Interpretação: seu discurso revela sentimento de ter sido arrancado de seu ”hábitat”, que era natural e sagrado para ele, para ser trazido para esse lugar onde não consegue estabelecer relações.
A angústia é não ser respeitado, mas não usa seu potencial para se defender ou revidar o que sente como ataque, e sente-se em extinção.
A agressão é projetada na águia, no gavião e nos caçadores, e desta forma se esvazia de qualquer energia.
(não quis fazer o 5° desenho.)
Informações do examinando sobre o d-e:
- o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? - achei interessante.
Eu senti que é bom, sei lá, a gente cria alguma coisa, tira alguma coisa da cabeça.
Apesar de desenhar alguma coisa que a gente não teve a oportunidade de ver, achei bom. - É difícil desenhar? - não fica se a gente conhecer, ter uma meta.
- como assim? - no desenho, no que for fazer.
Analise das impressões sobre o d-e:
apesar da pobreza de sua vida interna João intui e coloca com propriedade, a proposta do d-e, percebe com clareza que este procedimento favorece a expressão de sentimentos profundos.
Análise dos desenhos: seus desenhos são muito pobres, revelando a pobreza de seu mundo interno e de suas representações mentais.
Os dois primeiros desenhos dão a impressão de que realiza a tarefa em obediência a uma solicitação, sem revelar qualquer envolvimento com ela; todavia, nos desenhos seguintes, realizados em outro dia, já aparece um pouco mais de interesse e cuidado na expressão gráfica.
João, ao expressar graficamente a projeção agressiva e sentimentos depressivos, indica a importância do desenho como um caminho para o contato dos sujeitos cegos com seu mundo interno.
Síntese do caso: João é um jovem proveniente de ambiente pobre e muito carente, ao qual se conformou, revelando não possuir dispositivos reacionais suficientes para enfrentar a adversidade.
Valoriza o natural e a simplicidade, e sente-se angustiado ao ser transferido deste para outro ambiente no qual não se encontra, e onde não consegue se comunicar efetivamente.
Parece que a forma que encontrou para lidar com o impulso agressivo foi a projeção.
Este é sempre projetado nos objetos externos, ficando assim esvaziado de qualquer energia, sem forças para uma atuação funcional, ou possibilidade de revide.
Caso 6
Elza é uma jovem de 20 anos, solteira, branca, natural de São Bernardo,
SP, que cursa a 6ª série do 1° grau, e está em processo de reabilitação.
Seu pai é metalúrgico e sua mãe dona de casa. Sua visão é nula, tem os olhos enucleados por glaucoma congênito, afirma que até os 9 anos via vultos e cores. É a filha mais velha e possui dois irmãos.
Diz ter começado a estudar há três anos, porque não havia ensino especializado próximo a sua residência.
Enfatiza o fato de ter cumprido o programa de seis séries em três anos. Em pequena foi colocada em colégio interno, mas não quis ficar.
Embora diga que tem muitos amigos e sai bastante, querendo falar de uma facilidade de comunicação, parece muito contida, não querendo se expor.
Deixa transparecer uma certa oposição ao ambiente. Descreve-se como sensível e briguenta, revelando boa capacidade de introspecção e auto-percepção.
Parecia não querer realizar o d-e. Diante de nossa observação de que não era necessário, e que deveria fazê-lo apenas se o desejasse, não se definiu verbalmente e continuou a fazer desenhos.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 6.1
Verbalização: - eu não sei desenhar.
Como vou fazer? contar? não pode escrever? (faz o desenho rapidamente, vira a folha para desenhar.
Pega o lápis aleatoriamente.) É uma pessoa que está sozinha num lugar deserto, onde não tem mais ninguém, nada, apenas ela.
Foi um lugar que ela mesma escolheu; ela queria encontrar um lugar onde só existisse ela, e conseguiu.
Aí parou e ficou pensando que tinha-se realizado. Mas aí o tempo começou a passar, e ela percebeu que não era isso o que queria.
Era muito chato ficar sozinha. Aí tentou voltar para um lugar onde pudesse encontrar outras pessoas, mas não encontrou o caminho, por mais que procurasse ela não encontrava o caminho para sair daquele lugar.
Foi ficando cada vez mais desesperada. Ficou pensando muitas coisas, até em se suicidar, e foi ficando cada vez mais desesperada.
Daí ela acordou e viu que era um sonho e que estava em casa com a família.
Título: um sonho que pensei ser verdade
Inquérito: - ela estava procurando esse lugar? - de repente ela começou a achar que o mundo em que ela vivia era chato, as pessoas exigiam muito dela.
E queria encontrar um lugar só para ela. Um mundo só para ela, mas quando ela encontrou, percebeu que era mais fácil enfrentar as pessoas e a realidade. - ela não encontrou o caminho? - pensou tanto nisso que foi um sonho, um pesadelo, e como era pesadelo, foi difícil encontrar o caminho de volta, e talvez tenha sido melhor.
Melhor? - o desespero, porque foi melhor para ela conseguir conviver com o mundo real.
Ela viu que esse mundo que ela criou só para ela era mais angustiante. - angustiante? - não tinha nada, apenas ela. - por quê? - ela gostava de ficar sozinha.
Interpretação: É a expressão de uma experiência de realidade psíquica. Ela escolhe uma vida isolada que a satisfaz, mas a solidão a angustia.
Parece haver ambigüidade entre qual dos universos de experiência adotar. Se optar pelo universo de experiência do vidente, sente toda a sua incapacidade, ”exigem muito de mim”, mas na opção pelo mundo de experiências do cego sente-se tolhida na possibilidade de identificação, que a remete a uma grande depressão.
Sua descrição nos remete à passagem da posição esquizoparanóide para a posição depressiva, descrita por
M. Klein (1946).
Figura 6.2 (vira a folha)
Verbalização: - não me vem nada na cabeça. Eu não sei desenhar.
Não sei o que você está querendo dizer com desenhos. (pega um lápis aleatoriamente.) - eu gostaria que você colocasse no papel uma idéia sua. (desenha, com desenvoltura e rapidamente.) - aqui um muro, um lugar que tem um muro e não tem saída; dentro deste muro, deste lugar cercado, tem uma criança.
Esta criança olha para todos os lados... Ela quer sair para brincar, porque está sozinha, mas não consegue porque é tudo fechado.
Ela fica triste, por estar aí sozinha; de repente ela começa a pensar e a imaginar outras crianças.
Aí ela começa a ficar alegre, porque na imaginação dela ela pode fazer o que quiser.
Ela começa a brincar e imaginar coisas e faz um mundinho dela. E fica feliz.
Eu quis colocar isso, que a imaginação pode levar uma pessoa até onde ela quiser, pode ficar feliz ou triste.
Esta é a estória.
Título: mundo imaginário. - eu fiz uma poesia com esse título.
Inquérito: - por que a criança está cercada, sem saída? - não sei, talvez alguém tenha deixado ela, sabe, como uma mãe que quer proteger um filho e tranca.
Então ele tem que viver dentro deste mundo fechado. E quando a realidade torna-se muito dura, ele tem que criar o mundo dele. - ela não consegue sair? - ela criou este mundo porque ela não está encontrando saída, não está tendo jeito de sair. - ela fica alegre com a imaginação? - porque na imaginação ela pode viver, pode ter tudo o que quer.
Interpretação: repete o tema anterior, mas o desenvolve de forma diferente. Repete o isolamento, mas de uma posição mais esquizoparanóide, na qual encontra satisfações no mundo da fantasia.
Expressa sua onipotência pela criação de um mundo próprio.
Figura 6.3
Verbalização: - eu desenhei uma menina, uma moça; ela era muito bonita, linda, todos olhavam para ela e ficavam encantados com a beleza, dela, mas não era feliz.
Porque ela tinha muitas coisas boas para oferecer às pessoas, mas estas só olhavam o exterior.
Ela preferia muito mais ser feia, para os outros se aproximarem dela e conhecer por dentro.
O tempo foi passando, os cabelos embranquecendo, a pele enrugando, aí as pessoas começaram a se aproximar mais dela e ela pôde mostrar o que tinha dentro, a sua beleza eterna.
Aí ela começou a ser feliz, porque pôde mostrar o que tinha por dentro e não só o que tinha fora.
Título: - não sei, não pode deixar? - você pode fazer como quiser. (título dado após o inquérito: o tempo tirou a máscara.)
Inquérito: - o que é isto? (traços próximos à cabeça colocados depois de terminada a figura.) - aqui, os cabelos, compridos, lisos e loiros. - por que ela não pode mostrar as coisas dentro dela? - por que as pessoas não davam tempo, ficavam encantadas com a beleza e ela não conseguia se mostrar para as pessoas. - foi ficando feia? - porque não era feliz e também o passar do tempo... - com o passar do tempo, as pessoas vão ficando feias? - não é que vão ficando feias, mas vão mudando.
- como é não ser feliz? uma pessoa nunca estar bem com ela mesmo, não encontrar alguma coisa, está sempre angustiada, em conflito com as pessoas. - em conflito? - não consegue ser simpática: ela discute muito com as pessoas.
Interpretação: esta unidade de produção expressa uma identificação direta e parece indicar uma defesa maníaca.
Descreve-se como possuidora de qualidades que a destacam, mas das quais precisa se desfazer para poder interagir com o outro.
Mantém a separação entre o mundo interno e o mundo externo, como se houvesse incompatibilidade de relação intrapsíquica saudável entre os dois mundos.
Parece dizer que o preço para viver uma vida de relação gratificante é a perda de um atributo muito valoroso.
À integração destes dois mundos Elza opõe a destruição. Aqui também a questão do tempo.
Figura 6.4
Verbalização: - tem uma pessoa olhando uma flor. Aí ela começa a contemplar a flor e começa a pensar.
Se a flor pensasse, o que ela pensaria? ela começou a pensar como se fosse a flor; começou a pensar que a vida de uma flor era muito solitária.
Começou a sentir assim, sozinha, como alguma coisa que as pessoas passam, olham, acham bonito, mas não dão nenhum carinho.
Começou a pensar ”eu gostaria de receber carinho”. A flor pode até ser sinônimo de carinho para outros, mas para ela nada.
Então é assim, ela vai para um jarro, as pétalas caem, ela murcha e morre. Então ela é triste por isso.
Título: o que pensaria uma flor
Inquérito: - ela gostaria de ser uma flor? - não, porque na opinião dela, se colocando no lugar da flor, se sente muito só. - ela se sente só? - só no momento que ela se colocou no lugar da flor. - como seria receber carinho? - um beijo, um gesto e até uma palavra dirigida a ela. - como ela tratava as flores? - ela gostava muito, tanto que estava parada contemplando. - como é o desenho? - eu imaginei ela sentada e olhando a flor em frente.
Interpretação: o sentimento de solidão é tão intenso que parece até haver uma perda de identidade.
Sentese como não pertencente ao mundo. Elza expressa um intenso desejo, que parece não ter experienciado, de verdadeiras trocas afetivas profundas.
Figura 6.5
Verbalização: - são duas pessoas, um filho e uma mãe. Aí chegou o dia das mães, só que eles eram muito pobres.
O filho ficou pensando: ”que presente vou dar para minha mãe?”. Só que ele não podia, não tinha dinheiro para comprar nada.
Aí ele chegou perto dela e se afastou, não falou nada. Aí ele se aproximou de novo e deu um abraço e falou que a amava; aí ela falou que esse foi o maior presente que ela poderia receber.
Título: um presente que não se pode comprar
Inquérito: - ele se afastou? - ele não teve coragem, pelo fato de não poder comprar presente, ele se reprimiu, se afastou, pensou e resolveu dar o único presente que ele poderia dar a ela, que era o amor dele, um abraço. - ele achava que a mãe dele não ia gostar? - ele achava que um abraço não conseguiria manifestar o amor dele.
Que só conseguiria através de uma coisa material. - a mãe dele gostou? - adorou; foi para uma mãe o maior presente, um gesto de carinho; ela não estava interessada em coisas materiais.
Interpretação: no plano mais profundo, o que se coloca para Elza é a possibilidade de dar e receber, de experienciar uma troca gratificante.
Na sua projeção, se vê incapacitada, desqualificada para dar, devido à sua pobreza.
Parece ter desenvolvido um padrão de funcionamento egóico no qual o rompimento de defesas maníacas, onipotentes, mostra-se muito difícil.
Embora almeje intensamente uma verdadeira troca afetiva, parece estar procurando uma maneira de consegui-las, sem abrir mão de sua defesa maníaca.
Informações do examinando sobre o d-e:
- o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? - eu estava pensando nisso agora e achei bom.
De repente inventei estas estórias que não pensava que ia conseguir. Quando a senhora colocou a prancheta na minha frente, eu não sabia o que fazer. Pensei que não fosse conseguir criar estas estórias e fiquei surpresa, porque de repente criei uma coisa que achava que não ia conseguir. - e de desenhar? - de desenhar não gostei muito, porque sei, eu gostaria de fazer uma coisa melhor, não fiz o que eu queria.
Porque queria ter desenhado tudo o que falei. Quem olhar o desenho não vai entender.
Análise das impressões sobre o d-e:
Elza revela ter-se sentido bem ao realizar o procedimento de desenhosestórias, percebe-o como desencadeante de emoções desconhecidas à consciência e propiciador de condições que a ajudaram a perceber melhor suas qualidades e limitações, embora ainda não consiga aceitar com naturalidade sua incapacidade.
Fala também da dificuldade de trocas e de compreensão entre cegos e videntes.
Análise dos desenhos: seus desenhos parecem refletir sua ambigüidade na escolha de um dos mundos de experiência, dos cegos ou dos videntes.
Há representações gráficas que refletem apreensão cínestésica do mundo externo: no d-1, a figura humana tem três apoios, sugerindo a bengala; no d- 3, a posição do cabelo e no d-4, a posição da flor em relação à moça, sugerem percepções e relações espaciais construídas pelo sentido tátil-cinestésico e não visual.
A relação da moça com a flor é de proximidade e construída por planos e não por perspectiva.
Por outro lado, todas as figuras são representadas figurativamente, embora não claramente delimitadas, nos dando a impressão de vultos.
Segundo a fala de Elza , ela até os 9 anos via vultos e cores. Sua representação gráfica, além de conter elementos de sua memória visual, nos revela sua ambigüidade na escolha entre o mundo de experiências dos cegos ou dos videntes, mais do que uma possível integração.
Síntese do caso: o conflito básico de Elza parece ser a difícil escolha entre qual dos universos de experiência adotar.
O mundo dos cegos lhe significa solidão e impossibilidade de vida, o mundo dos videntes lhe mostra sua incapacidade.
Utiliza-se de mecanismos primitivos, procurando solucionar este conflito por meio da fantasia em um mundo imaginário.
Adota a defesa maníaca para se proteger de sua grande angústia pela intensa autodesvalorização que sente por ser cega.
Em plano mais profundo, revela grande dificuldade de interações afetivas gratificantes.
Em sua projeção, se vê incapacitada para dar, por grande carência pessoal; sente-se pobre e sem valor.
A defesa maníaca, alimentando sua onipotência, aparece como um padrão de funcionamento egóico que dificulta interações e trocas afetivas.
Caso 7
Maria é uma garota de 13 anos, parda, natural de
São Paulo, SP, em classe de alfabetização de escola estadual.
Seu pai é porteiro de uma escola e sua mãe não trabalha fora. Sua visão é nula de nascença.
Complementa a informação dizendo-se gêmea, e que sua irmã só enxerga de um olho. É pequena para a idade, dando a impressão, tanto pela aparência física como pela postura e atitudes, de ser mais nova.
Tem dois irmãos mais velhos além da irmã gêmea. Na entrevista, procura relatar suas competências, mas sempre se reporta aos irmãos descrevendo brigas por pegarem suas coisas.
Enfatiza as dificuldades e perigos que corre por não enxergar. Há um tom queixoso em relação à mãe, que é descrita como sem tempo para atender às suas necessidades.
No contato com o examinador, diz querer muito fazer desenhos e contar estórias, mas sua fala revela mais um desejo de agradar para ter de volta nossa boa vontade.
Não demonstra real interesse pela tarefa.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 7.1 (coloca a prancha na vertical, acompanha o lápis com o dedo, mas não como se quisesse perceber o que está fazendo.
Dá a impressão de traçar riscos sem objetivo definido. Os lápis são pegos aleatoriamente.)
Verbalização: - meu tio casou dia 16, com mulher grávida; ela já morava com ele.
Acabei aqui; agora aqui no meio (procura lugares onde percebe não ter traços de lápis e risca).
Consigo escrever o m do meu nome. É assim: três perninhas. Pronto.
- agora diante deste desenho conte uma estória. - agora eu preciso pensar. Não sei o que fiz, não dá nem pra saber. (passe a mão sobre a folha e tela, bate com o lápis no papel e faz mais alguns riscos.) - ah, eu tentei fazer uma bola e não consegui.
Bola acho que é assim. Não sei como explicar esse desenho. – não precisa explicar o desenho; conte uma estória. (fica um tempo parada sem fazer nada.) - me lembra um bonequinho fiz na casa de minha tia, deixei secar, depois levei para casa; meus três primos foram junto; ficaram três dias lá.
Quando foram embora, antes pediram para brincar com os bonecos. Eu deixei. Depois de dois dias, fui procurar e não achei, telefonei para minha prima e ela falou ”deixei aí”; eu falei: ”tudo bem”.
Aí voltei, procurei e depois de dois dias, achei no tanque de areia todo estragado.
Telefonei de novo e aí ela disse: ”não fui eu, foi a Adriana”. Eu falei ”tudo bem, mas da próxima vez não faz mais isto não”.
Ela disse ”está bem, da próxima vez não vou fazer; nós enterramos para você não ficar brava”.
Título: o boneco de massa
Inquérito: - por que lembrou dessa estória? - quando eu fiz aqui, achava que o desenho parecia com o boneco, mas não acho não. - você não ficou brava? - não fiquei brava porque se eles enterraram era para eu não saber.
E se eles fizeram isto para eu não saber, podia ser mais grave, então não fiquei brava.
Interpretação: demonstra uma precária habilidade para desenhar, que é percebida, parece não tentar uma representação gráfica.
Os riscos sobre o papel parecem mais uma simples realização motora, sem objetivo definido de qualquer representação.
O tema é centrado na inveja e destruição, que parece ser o ponto central ao redor do qual gira toda a sua vida, impedindo-a de outros interesses.
Muito infantilizada para a idade.
Figura 7.2 (coloca a prancha na vertical.)
Verbalização: - estou fazendo uma bola bem grande.
(dá impressão de estar na fase da garatuja.) - pronto.
- me lembra uma vez que na rua de minha casa tem dois colegas, Ricardinho e Horácio.
Eles estavam jogando bola na rua. Aí o Horácio estourou a bola do irmão. Quando o ri acordou, falou: ”vou jogar bola”, e não achou; aí perguntou ”cadê minha bola?”.
Horácio falou: ”não sei”. Aí ele foi procurar e achou na horta, no meio das plantas, toda furada com fogo.
Ele falou: ”foi você que furou, porque aqui não tinha mais ninguém para furar: os vizinhos moram muito longe e não vêm aqui só para furar a bola”.
Aí ele falou: ”tá bom, fui eu, então vou furar a minha bola também”. E passaram o dia furando a bola do
Horácio. Aí eles foram no trabalho do pai e pediram dinheiro para comprar quatro bolas, duas para cada um.
Como o dinheiro deu, eles compraram três para cada um. E o Ricardinho perdoou o
Horácio e foram brincar; cada um ficou com três bolas.
Título: os meninos e as seis bolas.
Inquérito: - por que o
Horácio furou a bola do Ricardinho? - porque o Ri fez uma brincadeira; falou: ”quando você for dormir vou furar sua bola”.
Aí ele falou: ”não vai não.” aí ele ficou com raiva e furou a bola do Ri.
Interpretação: a representação gráfica é muito pobre e revela uma dissociação entre a expressão gráfica e a verbal.
Revela extrema incapacidade de desenhar, embora a verbalização tenha certa coerência e seja compreensível.
Emocionalmente parece eclipsada pela inveja. Ela quer o que o outro tem. Tem tanto ódio que não consegue sair deste conflito.
Ataca violentamente o olho, ao mesmo tempo que o deseja com intensidade (foram comprar 6 bolas).
Figura 7.3 (vira novamente a prancha, colocando-a na vertical. Faz o desenho da esquerda para a direita e de cima para baixo).
Verbalização: você tem muitos irmãos? - você quer saber se tenho irmãos? - É, eu quero saber. - vou fazer dois riscos, um e dois riscos.
Estou tentando fazer o formato de uma boneca. Pronto. Essa estória é sobre um boneco.
Tenho uma prima, Eliana; quando tenho um brinquedo e mostro para ela, ela corre e mostra para a mãe, que compra igual para ela.
Eu tenho uma boneca que nem tem nome, ela tem uma Barbie. Um dia estavam brincando, ela pôs o cabelo da boneca na areia, eu não falei nada.
Um dia foi com o triciclo do meu irmão. Aí ele chegou e não achou o triciclo. Ele brigou comigo.
Aí outro dia ele foi pôr comida para o cachorro e achou o triciclo todo quebrado.
Aí outro dia estava brincando com a boneca da minha prima e quebrei a perna, a mãe dela veio tirar satisfação com a minha mãe e elas brigaram.
Aí eu consertei a boneca e ela o triciclo. Aí fizemos as pazes e as mães também.
Aí elas foram ao Jumbo e compraram outra boneca Barbie para a minha prima e para mim; e ficou tudo bem.
Título: a boneca e o triciclo.
Inquérito: - por que ela quebrou o triciclo? - porque ela invejava tudo o que eu tinha: quando minha mãe comprava alguma coisa para mim - podia ser até uma bala - ela queria também. - mas por que o triciclo? - ela invejava também as coisas do meu irmão; ela queria que o irmão tivesse tudo também.
- por que seu irmão pensou que fosse você? - porque já tinha escondido antes coisas dele, que nem o revólver.
Você não acha que não deveria brincar com o revólver? aí eu escondi.
Interpretação: há a repetição do tema anterior e. A expressão gráfica nos parece garatujas.
Maria parece querer se informar se o examinador já teve experiências e conflitos semelhantes aos seus.
Maria tem tanto medo de seus impulsos agressivos, que procura sempre justificar sua destruição buscando a concordância do examinador.
Figura 7.4 (faz os riscos deitada no braço. Parece não estar ligada ao que está fazendo.)
Verbalização: - acabei.
Esta mesma prima minha estava brincando comigo de bambolê. Aí, à noite, fui dormir, ela mora perto.
Esqueci o bambolê na parte de fora. Ela quebrou. ”Marta, minha irmã, foi você que quebrou?”.
Ela falou: ”não”. ”tá bem”, falei, ”já sei onde vou procurar”; por uma coincidência fui no quintal dela.
Aí ela pensou: ”ele não cabe no latão de lixo e Maria não entra aqui mesmo, vou deixar atrás do lixo”.
Ela tem uma bola que fura. Aí não deixei mais nada para fora, ela não pode pegar mais nada meu.
Mas eu posso. Fui no quintal e achei a bola e estava de saltinho, e pulei em cima até furar, mas não deixei fácil e joguei no mato.
Aí fui falar com minha tia. Ela foi tomar satisfação com minha mãe. Ela me deu uma surra e eu falei: ”mas como pode ser? ela estoura minha bola e quebra a minha boneca e eu não posso fazer nada?”.
Aí fui brincar com outra prima e ela estava jogando coisas. Fui falar para minha mãe e elas brigaram.
Ela foi embora. Não mora mais lá. Eu comprei outro bambolê para mim mas ela ficou sem, não teve condições de comprar outro.
Título: o bambolê e a bola.
Inquérito: - o que é esse desenho? (canto superior esquerdo.) - uma bola (direito), um bambolê (embaixo à esquerda) e outra bola. - oh, a minha bola, o meu bambolê e a bola dela. - por que não ia no quintal? - porque eu nunca fui no quintal dela para pegar as coisas dela: ela que ia no meu quintal, então aí eu fui. - por que foram embora? - porque a mãe dela brigou com a minha mãe.
A casa era de minha mãe e ela não quis mais ela lá. - por que brigaram? - porque discutiram sobre mim e a minha prima.
Figura 7.5
Verbalização: - agora tenho que pensar o que vou fazer. Ah! não sei o que vou fazer. (passa muito tempo deitada no braço, sem fazer nada; faz riscos e observa como ficam.
Faz riscos no centro da folha.) pronto. É sobre a carreta do meu irmão. Meu irmão tinha uma carreta e o irmão dela também.
Meu irmão estava brincando sozinho, chupando pirulito. Eles dois foram jogar terra na carreta e no pirulito.
Meu irmão não falou nada. Falei: ”já sei, vou pedir dinheiro para minha mãe e comprar outra carreta e outro pirulito”.
Ficaram lá eles em frente olhando. No outro dia, eram eles que estavam sentados na porta com sorvete.
Aí jogamos terra no sorvete deles. Começou a briga da minha mãe com a mãe deles.
Aí o filho dela quebrou a carreta do meu irmão. Minha prima era muito invejosa e meu primo também.
Título: a carreta e o pirulito.
Inquérito: - por que brigaram? - porque eles queriam tudo o que nós tínhamos. Quando era pirulito, doce, eles não queriam, queriam os brinquedos. - por que sua mãe e sua tia brigaram? - porque tinham inveja. Minha tia não combinava com minha mãe. Elas não gostavam que mexessem na casa delas, mas elas mexiam em tudo lá em casa.
Interpretação 4ª e 5ª figuras: repetição do tema anterior. A expressão gráfica continua como rabiscos, sem objetivo de representação.
Sua inveja é tão intensa que seu mundo interno parece desprovido de objetos interessantes; está sempre comparando com os objetos do outro, do vidente, que julga melhor.
A cegueira é vista como totalmente incapacitante, e há uma eterna comparação com o vidente que tem aquilo que ela quer, o olho.
Na fantasia parece ter renunciado a evoluir. Ela teme a inveja alheia, teme progredir e ser atacada.
Está atacando e destruindo, e teme a represália. Ela quer despojar o outro das qualidades que possui em vez de acreditar em suas próprias qualidades e crescer com elas, permanece num comportamento estereotipado e viscoso do qual parece não encontrar saída.
Parece possuir uma relação muito difícil com aqueles que vêem.
Informações do examinando sobre o d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei legal.
Falei que queria fazer mais, mas a tia célia falou que acabou. Contei para a minha mãe, ela disse: ”legal”.
Gostei de contar estórias de minha irmã. - e de desenhar, o que achou? - legal. - achou difícil? - não, eu nunca tinha pegado em um lápis.
Análise das impressões sobre o d-e:
diz ter gostado e que queria continuar. Parece que Maria sentiu que o procedimento, ao lhe possibilitar a expressão de conflitos nucleares, a fizesse percebê-los com mais dureza, por isso o desejo de continuar.
Análise dos desenhos: seus desenhos são muito pobres, não figurativos, parecendo o traçado do movimento e descarga motora.
Isso nos fala da grande diferença entre as representações gráficas encontradas nos sujeitos cegos.
Embora isto fuja aos objetivos deste trabalho, podemos nos perguntar: será possível estabelecer um esquema de desenvolvimento da expressão gráfica para sujeitos cegos? quais as razões determinantes dessas fases do desenvolvimento? como a vida emocional interfere nesta evolução? síntese do caso:
Maria é uma garota que revela grande atraso de desenvolvimento, seu grafismo é rudimentar, semelhante a garatujas.
Há uma grande dissociação entre a sua expressão gráfica e a verbal.
Enquanto sua verbalização mostra seqüência lógica, descrição e compreensão de situações complexas, os desenhos revelam extrema pobreza de representações mentais, como se seu mundo fosse povoado apenas por vozes sem configuração formal dos objetos.
Sua expressão gráfica parece servir apenas para descarga motora e revelar que
Maria tem um conhecimento parcial e fragmentado dos objetos.
Toda a sua vida parece estar ancorada na inveja, deseja intensamente o que o outro tem; não conseguindo o que deseja, procura destruir.
Esta inveja, que em sua fantasia está aderida à cegueira, a impede de integração egóica e ao uso de suas pulsões para o desenvolvimento de funções cognitivas.
Maria demonstra sérios problemas de personalidade, como se seu desenvolvimento tivesse sido bloqueado pela cegueira.
Seria portanto um caso a ser excluído pelos critérios estabelecidos, todavia, como esta problemática foi desvendada pelo d-e achamos válido incluí-lo.
Caso 8
Lurdes é uma garota de 13 anos, branca, natural de São Paulo, cursando a 4ª série do 1° grau.
Seu pai é encarregado da carpintaria de uma firma e sua mãe não trabalha fora. Sua acuidade visual é nula desde o nascimento, em conseqüência de rubéola adquirida pela mãe durante a gestação.
Usa prótese. É a filha mais velha, tem uma irmã de 9 anos e um irmão de 45 dias.
Lurdes aparenta menos idade do que tem, é muito infantilizada, não parecendo uma adolescente.
Mostra-se muito queixosa, sente muita exigência para consigo e sugere ter, constantemente, que desenvolver grande esforço para atingir um objetivo, que, projetado na mãe, não sente como seu.
Justifica sua agressividade porque sente que o mundo, injustamente, exige muito dela.
Parece perceber o mundo como um credor seu em eterno débito. Seu discurso infantilizado aponta para um exagerado ciúme da irmã.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 8.1
Verbalização: - É para furar ou riscar? - É para riscar; veja que você riscando pode perceber o que faz. - só que eu não sei desenhar muito bem (começa a traçar linhas sobre o papel).
Vou pensar mais coisas. Aqui o sol, a lua, passarinhos (há precária organização do traçado), as nuvens.
Aqui uma boneca que a menina está pegando, aqui outra boneca. A menina pegou as duas bonecas e ficou brincando, depois foi para fora com as bonecas, depois foi tomar sol; aqui perto da nuvem estava chovendo, depois ela foi para dentro e ficou brincando com as bonecas.
Aqui está jogando bola. Aí ela foi dormir e, no outro dia foi brincar de novo.
Título: a menina alegre.
Inquérito: - ela brinca sozinha? - porque é filha única.
- ela não tem com quem brincar? - ela não gosta de brincar com outras crianças. - por quê? - não sei, acho que é por causa das brigas. - por que brigam? - porque as meninas ficam tomando as coisas dela e não querem mais devolver. - ela é alegre? - porque ela acorda de manhã e fica sempre cantando, ela vai estudar de tarde.
Interpretação: está expressando muito ciúme da irmã que veio depois, que sente ter-lhe roubado o afeto dos pais.
Há uma tentativa de identificação com a figura materna, que cuida do bebê. Parece não ver vantagens no crescimento, insiste em ficar pequena.
Esta angústia é associada a uma fantasia de perda; se cresce, perde as vantagens de ser pequena, quando todos cuidam dela, todas as atenções estão voltadas para ela.
Parece sentir esta situação como confortável, havendo uma compulsão à repetição.
Há bastante isolamento com fuga de contato e afastamento do mundo externo. Parece sentir-se incapaz de enfrentar situações novas.
O isolamento parece ser uma tentativa de solução para o conflito não resolvido com a pulsão de raiva e poder.
Figura 8.2
Verbalização: - vou fazer uma casa. Como faz uma casa? eu não sei fazer uma casa.
Vou fazer um desenho. Aqui é meu quarto (retângulo superior), depois vai é o quarto da minha mãe (embaixo).
O guarda-roupa e a cama de minha mãe, o berço do nenezinho. Aqui ele está tomando banho (canto superior esquerdo), a cabeça do nenê, eu já ia fazer grandona.
Me ensina a fazer uma banheira? aqui o luciano tomando banho. Aqui o corredor, a porta da minha casa, sai da porta tem uma cachorra na casinha dela.
Depois no meu quarto tem três camas, na cama de cima tem bonecas, aqui tá eu levantando para ir para escola.
Ah! esqueci de uma coisa: o banheiro da minha casa. O banheiro era para fazer no corredor e eu fiz aqui.
Aqui eu indo para a escola. Só que a mamãe está me ajudando, senão eu demoro.
Aqui estou saindo com a minha mala e meu pai. Aqui minha mãe está dando mamadeira para o nenê.
A minha irmã trocando para ir para escola. Aqui estou almoçando, eu e minha mãe, minha irmã não come, só doce.
O luciano vai puxar eu, vai comer doce e também comida. Deixa eu pensar mais coisa que tem na minha casa: armário, copo.
Aqui eu brincando com o nenê no berço, depois estou pegando o luciano no colo. Aqui não vai dar para desenhar a
TV, porque não cabe mais.
Aqui estou assistindo. Pronto, terminei. Eu peguei o Luciano no colo antes da minha mãe dar banho.
Já estava na hora de dormir. Aí deitei e minha irmã também; aí levantei, fui se lavar estou indo para a escola com meu pai.
Ele está levando a minha mala.
Título: - Lurdes indo para a escola.
Inquérito: - só você vai para a escola? - minha irmã também vai, só que é outra escola.
A minha irmã não come, só banana, maçã, minha mãe faz ela jantar. - você pegou o
Luciano no colo? - pego ele sentada, porque de pé dá tontura, parece que vou cair.
Para tomar banho ele chora, minha mãe fala: ”não vai cair não!”. - ele chora muito? - não, ele não dá nenhum trabalho, só para tomar banho.
Interpretação: expressão de uma situação confusa e caótica; sua percepção do mundo parece não estar organizada, seja do ponto de vista espacial seja de ações.
Não há lógica nem seqüência em suas expressões gráficas ou verbais. Aparece ciúme violento da irmã a quem inveja.
A figura materna parece ser protegida de toda agressão por ser de quem depende e com quem estabelece alguma identificação.
Sua questão básica é: como se faz uma casa, ou seja, como adquirir uma identidade.
Abandona os objetos da casa que não se distinguem dos objetos exteriores a ela.
A identidade fica misturada. Tem que permanecer regredida e misturada aos demais, por não acreditar que com seus próprios recursos possa cuidar de sua vida e progredir.
Desvaloriza suas capacidades, e a cegueira parece servir a esse propósito básico de não querer se desenvolver.
Figura 8.3
Verbalização: - deixa eu pensar, pode fazer a casa das minhas primas? - o que você quiser. - aqui é a casa da minha prima, aqui o quarto da minha tia, dentro tem outro quarto, que é das meninas.
No quarto da minha tia tem um berço também, onde a minha priminha está dormindo.
Aqui a andreia, aqui a Adriana, depois o Anderson - só a andreza está dormindo -, os outros todos estão brincando.
Aqui minha tia vestindo o sapato. Aqui estou eu, a Lucileide, estamos todos na casa da minha tia.
Aqui todo o mundo: estamos dançando a música da Xuxa. Aqui a Andreia está dando banho na gente.
Aqui estamos indo para a minha casa. Aqui a perua do meu tio.
Acabei. Eu e a
Lucileide fomos passar as férias na casa da minha tia. Aí eu, a Lucileide e todo o mundo estávamos brincando.
Aí a Andreia estava dando banho na gente, depois fomos para casa.
Título: as férias na casa da tia
Marly.
Inquérito: - tia Marly também tem nenê? - ela tem, só que não parece mais. Ele dorme no berço e meu primo
Anderson dorme na cama com minha tia e meu tio. - por quê? - porque minha tia acostumou ele a dormir na cama.
Minha prima tem 17 anos, a
Andreia e a Adriana têm 15. Os dois tomam mamadeira.
Minha tia vai comprar uma casa de três quartos. - e você, onde dorme? - eu não lembro se dormi muito tempo com a minha mãe.
Só que eu não dormia de noite, era ruim, só dormia de dia. Meu pai e minha mãe tinham que dormir no chão, porque por qualquer barulhinho eu chorava - e agora? - agora eu durmo bem, só foi até três meses.
Interpretação: estória semelhante, em que coloca os outros dentro dela como parte sua, cuja função seria realizar por ela o que deveria fazer mas não faz, por se colocar em posição infantilizada. É notável que em situações nas quais os pais não aparecem há um bom relacionamento com a irmã, revelando extrema dependência familiar.
Revela viscosidade de pensamento e pouca flexibilidade; seu pensamento é concreto, há pouca vida de fantasia.
Parece extremamente ligada e dependente do mundo externo, como se tivesse muito medo de se deparar com seu mundo interno, sua grande voracidade, inveja e destrutividade.
Figura 8.4
Verbalização: - ia trazer minha régua geométrica e meus lápis de cor.
Agora preciso pensar. Estava fazendo lição na classe. Vou fazer a casa da minha tia.
É uma casona, bem grandona, vou precisar da folha inteira para fazer a casa. Aqui é o quarto do
Eric, da minha tia, não, do Eric - quarta-feira não fui para a escola por causa da chuva -, aqui o berço do
Eric, aqui o guarda-roupa da minha tia.
Só que esta estória não tem o que contar, só desenhar. A célia (professora especializada) foi me buscar na classe.
Deixa ver se saiu do outro lado. O guarda-roupa tem que ser mais grande, não pode ser pequeno.
Sai do quarto vai para a sala, depois sai da sala, aqui vai para a cozinha (desenha de cima para baixo e da esquerda para a direita) quando estava no pré estudava nesta sala - depois sai, vai para o banheiro, depois é o corredor, depois tem...
Aí vem a área que tem a máquina de lavar, o murinho. Aqui o Eric está brincando com o
Eudes, não com o Emerson - o Eudes é o filho do tio Lício e a Lucinha, mas o
Emerson não a chama de tia, nem o Eudes, porque ela não é mãe deles.
Depois o Eudes chegou, depois ele está empurrando o Eric no carrinho. A pia aqui, o
Eric subindo no tanque. Terminei.
Título: a casa do tio Lício em Jandira.
Inquérito: - É bem grande? - É, ocupa toda a folha.
Quando eu estava lá eu peguei ele, e quando ele ia engatinhar chamava tia
Lucinha: - olha o Eric.
Gosto de criança pequena. Adoro, tem um em casa. Quando ele chora, minha mãe fala: ”Lucileide, vai pôr a chupeta.” aí eu falo: ”mãe, posso brincar com ele?”.
Ela fala: ”pode”. - sua mãe não manda você pôr a chupeta? - não, porque eu não sei. - não sabe? - só sei na boneca, porque ele é muito pequenininho e eu tenho medo de machucar. - não era o
Eudes? - porque ele está na escola.
Interpretação: prevalece a mistura com os outros, na esperança de que satisfaçam seus desejos.
A relação com o mundo externo é montada sobre essas bases.
Demonstra
pouco interesse em realizar a atividade solicitada; todo o seu interesse
é auto-centrado, e sua preocupação básica, busca de identidade e medo de se separar dos objetos externos.
Repete situações anteriores e as intercala com expressões verbais relacionadas a sua vida atual, demonstrando dificuldade em separar o que é seu do que é do outro.
Há a expressão de intensa voracidade e contenção do impulso agressivo contra o irmãozinho, com quem se identifica.
Aqui novamente a cegueira é expressa como uma condição incapacitante, justificando uma impossibilidade de crescimento.
Figura 8.5
Verbalização: - É o último! ah! graças a deus. Você não gostou de fazer? - É que estou cansada de fazer desenho.
Tia, como faz um ônibus? - como você quiser. - queria que você fizesse para mim. - mas este é o seu desenho de ônibus. - só que meu ônibus é feio, não tem roleta.
Aqui as crianças sentadas no banco, aqui o carro, a roda, aqui outro carro, quer ultrapassar mas não pode, senão bate.
Eu já vi carro batido na padaria. Só que acabou com a frente. Depois aqui tem uma linha de trem, mas nem sei como fazer. Estou fazendo, aqui é o trem, aqui o carro que bateu. Já terminei (começa pelo meio e risca sem direção).
Título: o nome é: o ônibus escolar. Ele está passando, daí um carro veio, bateu no outro carro, daí o ônibus foi para a escola levar as crianças, daí acabou.
Inquérito: - o que é isto? (inquérito sobre o desenho) - É o trem, ele estava passando na linha, as pessoas viram o carro batido e o ônibus indo para a escola. - como os carros bateram? - porque um foi ultrapassar o outro. - o que aconteceu depois? - daí a polícia veio, a ambulância tirou os cacos de vidro e levou o carro para o conserto. - e a ambulância? - veio pegar as pessoas que ficaram feridas na batida do carro (expressa ansiedade), daí ela foi para o hospital. - e as crianças do ônibus? - faziam bagunça, cantavam. - elas viram as pessoas feridas? - não, porque o ônibus passou muito rápido.
Interpretação: nesta, por ser a última, faz uma tentativa de sair do ambiente familiar e da descrição, se permitindo o encontro com seu mundo interno e suas fantasias.
Todavia, esse movimento é logo tolhido pelo encontro com a pulsão de morte, extremamente destrutiva, que lhe causa medo.
Defende-se não se envolvendo e continua cantando no ônibus escolar que passa depressa.
Assim, a angústia do crescimento, do progresso, permanece ligada à idéia de um grande perigo, um desastre.
Informações do examinando sobre o procedimento:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei ótimo, legal; quando você quiser, pode me chamar, porque assim fico aprendendo.
Quando crescer quero ser professora.
- e de desenhar? - de fazer desenho já falei, já tinha pintado, e de desenhar achei legal, quando brinco de escolinha só rabisco.
Contar estórias também é legal, eu não conto estórias, minha mãe não pergunta nada.
Análise das impressões sobre o d-e: podemos dizer que também aqui
Lurdes coloca sua extrema dependência 180 do mundo externo, procura agradar ao examinador para usufruir de sua proteção, e volta à posição queixosa ditada pelo seu egocentrismo.
Análise dos desenhos: seus desenhos são desorganizados, não revelando qualquer estruturação. Nas primeiras unidades de produção, nota-se uma tentativa de organização, que vai progressivamente sendo perdida.
A partir da 3ª unidade de produção, seus desenhos parecem mais um traçado de seus movimentos.
Fica no movimento e na descarga motora, como se lhe fosse impossível uma representação mental, o caminho para a simbolização. Parece que
Lurdes é tão dependente do mundo externo, que a representação mental, um distanciamento deste, torna-se um perigo.
Síntese do caso: Lurdes revela personalidade pobremente organizada, confusa e caótica.
Demonstra sentimentos primitivos de inveja e agressão. Na 3ª unidade de produção, há uma interessante referência aos 3 meses de idade, quando diz que chorava muito e era ruim, época descrita por
Melanie Klein (1982) como característica da posição esquizoparanóide.
Sente-se roubada e esvaziada no contato com o outro, sendo sua relação com o mundo externo agressiva e destrutiva.
Há isolamento e fuga de contato afetivo, com pobre vida de fantasia. Seu interesse é autocentrado, revelando conflito básico ligado ao medo de crescer e desejo de permanecer pequena, como proteção ante a angústia associada a uma fantasia de perda ligada ao crescimento.
Há ausência de identidade, confusão entre seus objetos internos e os objetos externos, e dificuldade em distingui-los.
Há intenso uso da identificação projetiva.
Caso 9
Carlos é um garoto de 11 anos, branco, natural de
São Paulo, cursando a 2ª série do 1° grau.
Seu pai é analista de sistemas, e sua mãe dona-de-casa. Tem percepção de luz devido a glaucoma congênito; informa que seu problema é de nascença.
Tem uma irmã menor de 7 anos. É um garoto bem desenvolvido para a idade, demonstra timidez e precaução nas interações sociais.
Na entrevista, enfatiza a necessidade de estudar, embora fale da importância de brincar e ter amigos.
A professora especializada informou que ao assumir a classe, no ano anterior, verificou que
Carlos estava muito mal-alfabetizado no braille, não estando preparado para a 3ª série.
Por sua orientação, a criança voltou para a 2ª série. Diz que agora está melhor nos estudos, embora seja preguiçoso.
Durante a aplicação do d-e mostrou-se muito interessado em desenhar, revelando prazer nesta atividade.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 9.1
Verbalização: - um desenho, deixa eu ver.
(acompanha com facilidade as linhas que risca, dando a impressão de que procura expressar graficamente uma imagem mental definida.)
Tinha um menino que morava nesta casa.
Um dia, a mãe falou que ele não podia sair; aí ele falou: ”por quê?”. A mãe disse: ”aí tem muito ladrão que pega crianças”.
A mãe tinha saído para fazer compra e deixou a chave com ele. Aí ele saiu escondido.
Um homem pegou ele. Aí a mãe chegou e ficou procurando o dia inteiro. Aí ela viu um menino chorando numa casa e viu que era o filho dela.
Aí falou para ele nunca mais fazer aquilo. Aí acabou.
Título: o menino desobediente.
Inquérito: - por que saiu escondido? - porque ele queria sair com os amigos dele.
Lá tinha muito ladrão e a mãe falou para ele não sair. E ele saiu. - estava numa outra casa? a mãe falou para ele não sair e ele nunca mais fez isso e a mãe perdoou ele.
Interpretação: A angústia é libertar-se da dependência materna: se ele se liberta, está sujeito a perigos e ameaças, de modo que imagina ter que ficar a vida toda sob a custódia da mãe.
O que é externo à relação mãe-fílho é considerado perigoso. Vemos aí conflito que pode estar ligado à condição de cegueira, à dependência do cego.
Por outro lado, é uma criança com forte impulso agressivo construtivo; ele pega a chave e sai para enfrentar o perigo, de modo que não sabemos qual o desfecho do conflito, se ele vai se tornar independente ou ficar restrito.
Figura 9.2
Verbalização: - era uma vez um menino que sempre queria dirigir o carro do pai.
Um dia, o pai deu a chave do carro para ele. Ele saiu todo feliz; quando foi parar num farol, veio o guarda e falou que ele estava em lugar errado; ele voltou, aí ele saiu correndo, viu um poste e viu que não podia parar; aí ele deixou o carro indo.
Aí ele voltou e falou para o pai, e ele contou. Aí o pai falou: ”não aconteceu nada com o carro?” ”não.” ”mesmo que tivesse acontecido, o importante é não ter acontecido nada com você”.
Título: o carro maluco.
Inquérito: - por que parou errado no farol? - porque não tinha visto. Porque não podia parar, porque senão o carro ia ”encapotar”. - como assim? - porque o carro ficou rodando. - e depois? - o carro parou sozinho. - como aconteceu? - porque foi desviar do poste e ele estava correndo muito. - por quê? - porque o farol abriu e ele saiu com tudo; aí viu um poste e foi desviar.
Interpretação: desejo de expressão e de maior relação com o mundo externo. Boa relação com a figura paterna, que é permissiva e lhe dá condições para crescer o suficiente para usar este impulso, mas sente que não consegue controlar seus impulsos; alguma coisa dentro dele o faz acreditar que não tem domínio dos impulsos.
O problema parece centrar-se no ego, medo de usar suas energias e ”dar com a cara no poste”.
Repressão do crescimento, que é o uso desta energia, pelo medo de não poder controlá-la.
Figura 9.3
Verbalização: - vou fazer aqui. Bem, ficou feio este desenho. Pronto, desenhei.
Este moleque sempre queria ganhar um skate, o pai dele era muito pobre e a mãe também.
Ele não trabalhava. Um dia, o tio rico nunca tinha dado presente para ele. Aí o tio falou: ”o que você quer ganhar?” o robertinho disse: ”um skate”.
Ele viu que podia comprar e comprou, no dia do aniversário ele ganhou e o menino ficou todo feliz.
Título: o menino agradecido.
Inquérito: - o tio nunca tinha dado presente para ele? - não sei por que, agora deu vontade. - o menino queria um skate? - queria muito, porque todos os amigos tinham, menos ele.
Interpretação: a fantasia de que alguém possa fazer por ele melhor do que ele próprio.
Ele não precisa se esforçar para conseguir. Ele se estriba na deficiência e espera que as coisas venham facilmente, e que seus desejos sejam magicamente satisfeitos.
Figura 9.4
Verbalização: - eu fiz uma casa, um carro, um skate, ih, me perdi, está muito fraco. (ofereço outro lápis.) - É melhor.
Pronto. Está difícil. Aqui um menino que gostava sempre de ir para a escola. Sempre que ele ia, os moleques ficavam brigando com ele.
Um dia, ele foi e os moleques ficaram brigando com ele, bateram nele, machucaram ele.
Ele ficou triste. Aí, ele voltou todo machucado. A mãe falou: ”Joãozinho por que você está todo machucado?”. - a mãe o levou ao médico.
O médico enfaixou o braço que tinha quebrado. Chegando em casa, a mãe tirou o gesso e viu que tinha melhorado.
Título: o menino Joãozinho.
Inquérito: - por que ficaram brigando? - porque não gostavam do
Joãozinho. - por quê? - porque ele era muito chato. - como assim? - o
Joãozinho não gostava de brincar com eles porque eles gostavam de brincar de luta e o
Joãozinho não gostava. - por que brigaram? - porque tinham chamado o
Joãozinho para brincar e ele não quis. - como acabou a estória? - ele voltou para a escola e os moleques nunca mais bateram nele. - por quê? - porque ficaram com medo de machucarem ele de novo.
Interpretação: auto-imagem frágil, de pessoa incapaz de se defender, tida pelos colegas como maricás, e que depende da mãe, o que afeta o relacionamento com os demais.
Tende a se retrair diante dos outros no seu sentimento de inferioridade. A expressão verbal contrasta com o traçado gráfico que expressa o ego ideal: uma figura forte, masculinizada, portadora de pênis.
Figura 9.5
Verbalização: - ih, não vai aparecer o que estou pensando. Vou desenhar de um jeito, tá? pronto.
Tinha um cachorrinho que chamava Murphy. O dono era um menino que gostava muito do
Murphy.
Sempre brincava com ele antes de ir para a escola. Um dia, o Murphy mordeu ele.
O menino começou a chorar, a mãe foi ver e viu que tinha mordido só um pouquinho; pôs remédio e cicatrizou.
O menino não ligou mais para ele. O Murphy chorava e ele não queria mais o
Murphy.
Aí o menino deu o Murphy para outro menino. E ficaram muito felizes.
Título: o cachorro.
Inquérito: - o menino não ligou mais para ele? - o menino não ligou porque ficou bravo. - por que o
Murphy mordeu o menino? - não sei...
O menininho queria machucar ele. O menino pensou que o Murphy fosse morder ele e deu um chute, aí o
Murphy mordeu.
Interpretação: o ponto é a relação objetal e sua ligação com o objeto de afeto.
Primeiro fica em guarda em relação ao objeto de afeto, a relação fica difícil; ele procura se defender de uma projeção hostil ao objeto de afeto.
Depois vêm o luto e a raiva pela frustração causada pelo objeto de afeto; ele deseja uma ligação afetiva isenta de frustrações.
Num terceiro momento, vem a negação à relação afetiva: uma vez que não pode aceitar a frustração, e ela acontece,
Carlos tenta se evadir do contato afetivo, negando a relação afetiva.
Informações do examinando sobre o d-e: - o que achou de fazer desenhos e contar estórias? - bom, gostoso.
Achei legal fazer desenhos. Eu gosto de desenhar. - você sempre desenha? - desenho na minha casa, quando dá.
Análise das impressões sobre o d-e:
Carlos refere-se ao prazer de desenhar, e nos diz ser esta uma forma privilegiada de expressão para ele, contrariando a idéia de senso comum de que o desenho seja uma tarefa impossível para os cegos.
Sua cegueira progressiva, sua percepção de vultos e sua força egóica possibilitaram a
Carlos a experimentação de uma atividade negada aos cegos.
Análise dos desenhos: seus desenhos são muito bem estruturados e organizados. Parecem refletir a imagem mental de características visuais junto a algumas características que parecem ser mais próprias às percepções táteis (a casa é desenhada mostrando a parte da frente e as laterais lado a lado, revelando desconhecimento de perspectiva, um dado visual, mas com formato geral de casa vista).
Por outro lado, a expressão gráfica parece servir a Carlos como um meio eficiente de expressão de seu mundo interno, o que é confirmado pelo sujeito ao se referir ao seu prazer em desenhar.
Síntese do caso: notam-se conflitos ligados à relação afetiva. Há fuga desta pela sua dificuldade em aceitar frustrações causadas pelo objeto de afeto. É uma criança que possui muita energia para a expansão e crescimento, e forte impulso agressivo, que sente não poder controlar; isto o leva à repressão de seus impulsos e do próprio crescimento.
Observa-se uma ambivalência entre o desejo de libertar-se da dependência materna e o medo de perder sua proteção.
De forma semelhante, o conflito entre a auto-imagem frágil e dependente e o ego ideal forte e masculinizado parece refletir conflitos advindos de sua condição de cego, que o enfraquece e o faz temer o mundo externo e seus próprios impulsos.
Por outro lado, a condição deficiente o leva a crer que não necessita de esforço pessoal para a consecução de seus desejos, que são facilmente satisfeitos pelos outros.
Caso 10
Carla é uma adolescente de 15 anos, branca, natural de
São Paulo, cursando a 8ª série do 1° grau. Seu pai e sua mãe são economistas. Tem percepção de sombra e luz devido a retinopatia da prematuridade, sendo sua deficiência de nascença.
E a caçula de três irmãs. É uma jovem comunicativa, que demonstra facilidade para estabelecer relações.
Fala de sua história de maneira natural. Conta que sua mãe trabalha menos que o pai para ficar com as filhas, e relata um bom relacionamento familiar com trocas e discussões fraternas.
Tem facilidade para expressar estados afetivos e desejos. Revela familiaridade com temas culturais e sociais.
Carla mostrou-se interessada e curiosa na realização do d-e, mostrando satisfação e cooperação.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 10.1
Verbalização: - legal, interessante, olha que barato.
(faz com atenção, procura perceber tatilmente o que está fazendo.) - tem que fazer no papel inteiro? - como você quiser.
Deixa ver se vou fazer mais alguma coisa. (faz a base e riscos sobre ela, começa da esquerda para a direita.) - isto representa várias coisas misturadas; quando era pequena queria fazer astronomia, então adorava coisas malucas, ficava misturando perfume com não sei o quê, para ver o que dava.
Até hoje tenho curiosidade sobre sol, lua, estrela. Gosto de fazer amizades - estes riscos representam isso -, faço encontro de jovens.
Inquérito: - isto o que representa? (o desenho.) não sei, fui ao play-center; pode representar isso também; uma parte, este monte de riscos é o que acontece comigo.
Tudo tem ligação, uma coisa e outra. Este monte representa o pessoal da escola, a formatura, todo o mundo unido, para fazer legal a formatura.
Acho que só isso. Essa cruz acho que seria deus; vou ao encontro e procuro melhorar a vida, ajudar as pessoas; acho que é o que deus representa.
Título: representação gráfica de fatos importantes.
Inquérito: - coisas malucas? - sim, até hoje gosto, mas não vou fazer astronomia. - por que malucas? - são malucas porque estranhas na vida da gente, são coisas diferentes.
Diferentes como? - são coisas..., porque ninguém te falou que você tem que fazer isso.
- tem muitos amigos? - tenho, mas agora estou sentindo falta de amigos cegos. Conheço pessoas mais velhas, não da minha idade.
Toda a vida só conheci pessoas videntes; do mesmo modo se tivesse estudado no padre chico, ia sentir falta de videntes. - por quê? - porque com pessoas cegas você tem problemas comuns.
Na danceteria, por exemplo, você não pode saber se uma pessoa é bonita ou não.
Também tenho dificuldade de entender se o sujeito é bonito ou feio. - e você não gosta? - não sei, me sinto deslocada porque fico parada.
Mas ao mesmo tempo, com as pessoas videntes você tem outras experiências. Elas também têm problemas.
E tem pessoas videntes que são muito legais. Acho importante também porque as pessoas videntes aprendem com os cegos coisas novas.
Interpretação: parece a descrição de um momento pessoal, em que revela confusão de sentimentos, mistura o que foi experienciado e o que está na fantasia.
Demonstra o desejo de pôr eixos, de juntar coisas incompatíveis. Estes sentimentos são fundamentalmente permeados pela diferença entre pessoas cegas e não cegas.
Mas parecem também expressar característica própria da adolescência, quando se necessita pôr ordem, catalogar o mundo de experiências em que se vive.
Seus pensamentos, a respeito da experiência de mundo dos cegos e videntes, revelam percepção acurada das vantagens e desvantagens relacionadas a cada uma delas.
Parecenos que para essa jovem a cegueira, embora desde o nascimento, não é sentida como uma condição incapacitante.
Figura 10.2
Verbalização: - fui na Europa nestas férias, fui para
Londres; lá não é igual ao Brasil, lá as pessoas são muito dedicadas, mas não sei explicar, são diferentes, não é que não são sinceras, sei lá, formam panela como aqui.
Tem pessoas que se deram bem comigo, mas só uma ou duas. Inglês também é de lua: tem dia que estão seu amigo, tem dia que se distancia.
Acho que é do calor humano, as pessoas pensam muito em dinheiro. A amizade não é muito importante.
Título: vou pensar um nome bem legal: o valor das amizades.
Inquérito: (pedi explicações sobre o desenho.) - aqui seriam as pessoas que conheci.
Aqui são outras pessoas que às vezes estão perto, às vezes distantes. Aqui o pessoal que forma panela. Aqui algumas pessoas que se dão com você. Aqui vou ver o que seria.
As pessoas com quem vou me corresponder. As pessoas que são frias. - por que uma linha assim? - não sei, acho que é porque conheci quase todos na instituição; acho que é porque convivi com todos de uma vez.
Essa curva é de pessoas que conheci fora da escola.
Interpretação:
Carla parece se perder numa grande quantidade de trocas afetivas.
Parece não ter problemas de relacionamento, mostra riqueza de experiências e trocas, mas estas são pouco gratificantes.
Ela está se reportando a dois mundos, dois universos de experiência, mundo dos cegos e dos videntes,
Brasil e Inglaterra.
Ela se refere constantemente a uma multiplicidade de experiências difíceis de serem organizadas, mesmo com todas as estruturas de organização disponíveis.
A pobreza de sua expressão gráfica sugere que Carla ainda não possui todas essas estruturas disponíveis.
Será que ela está realmente falando de uma tentativa de organização, ou de fato está desejando uma grande mistura, como se fosse possível conciliar a experiência dos cegos e dos videntes, sem nenhuma definição por nenhum dos mundos?
Figura 10.3 (pesquisa os traços, risca com o lápis bem junto ao dedo, uso de pulsão para o braille? procura perceber distâncias e localizações.)
Verbalização: - acho que isso seria a cauda e aqui os bancos, porque adoro tirar músicas de ouvido.
Porque fiz 1 ano de piano e fiquei 4 parada, agora pretendo continuar.
Título: - o nome será: a arte da música.
Inquérito: - ficou parada? - porque não tive horário que desse certo com a professora, e pra mim também não dava.
Eu comecei na 6ª série e era muito puxado, fiquei sem tempo. Gosto muito de piano, quando tem orquestra sinfônica eu também gosto. - você vai? - Às vezes; também não tenho tempo.
Ficou 4 anos? - fiquei uns tempos sem pensar em piano, pensava em datilografia, como bater mais rápido, na professora que ia ensinar desenho.
Ela começou a me orientar no uso da caneta, agora estou fazendo mais desenhos, me ensinou a usar o transferidor.
Porque tem coisas que por mais que a professora tente, a comum, ela não consegue explicar.
Vamos ver o que mais eu fazia: fisioterapia para a postura.
Interpretação: descreve novamente suas experiências, mas aqui introduz um veículo para a produção.
Nesta, valoriza a experiência do mundo dos cegos e faz uma integração por meio de experiências compartilhadas.
Foi capaz de fazer uma discriminação entre a vida dos cegos e não cegos, mas isto é muito custoso, inclusive afetivamente, porque os momentos de prazer e descontração ficam muito restritos para os cegos, devido às obrigações e exigências que se impõem a fim de conseguir partilhar do mundo de experiências dos videntes.
Talvez este seja o conflito básico de Carla: a opção pelo mundo de experiência dos videntes exige muito esforço e restrição de prazeres; em contrapartida, a opção pelo mundo de experiências dos cegos é limitante.
Figura 10.4
Verbalização: - deixa eu pensar agora que desenho eu faço. (trabalha em silêncio, dando a impressão de muito ”certinha”, tensionada.
Começa desenhando na parte de baixo da folha. Está fazendo uma cena composta.) - ah! está horrível! aqui é outra coisa que tenho curiosidade de conhecer: seria o mar, montes de ondas, ficar mergulhando.
Fiz um peixe que não ficou parecido, aqui um barco a vela. Aqui uma coisa que não sei fazer, saiu errada.
O sol, deixa eu ver o que mais. Ah, já sei, outra coisa, já arranjei outro negócio para fazer.
Aqui, a chuva, estes pontinhos. Pronto, deixa eu pensar um nome para esse negócio.
Título: natureza. Uma arte que o homem não criou.
Inquérito: - tem curiosidade de conhecer? - não é bem conhecer, é saber como o mar tem as ondas, como o mar não se esparrama.
O peixe, a vida deles e também o sol. - o peixe não ficou parecido? - ficou meio deformado.
Aqui também não ficou parecido. Ficou muito pequeno.
Interpretação: nesta há uma descrição por meio do mundo de experiências do cego.
Há a expressão gráfica de uma cena figurativa, com uma tentativa de integração de dois mundos, expressa tanto pela verbalização quanto pelo desenho; há representações visuais (o barco, o sol) e também cinestésicas (os pontinhos da chuva.
Todavia, Carla relata do lugar do cego. Fala da dificuldade do conhecimento e de realizações na ausência da visão.
Das dificuldades em apreender o mundo externo, e principalmente de sua dúvida quanto às possibilidades de seus canais perceptivos.
Essas dúvidas a remetem a uma desqualificação de seu mundo interno. Identificandose com o peixe, fala de uma desvalorização pessoal, inclusive estética (”está horrível”).
A escolha deste lugar parece deixar Carla triste e deprimida. Todavia, ela investe no mundo interno, na ambivalência entre a desqualificação e a hipervalorização.
Figura 10.5
Verbalização: - deixa eu ver o que vou fazer. (faz o desenho quieta, sem falar nada sobre o que está fazendo, bastante concentrada.) - deixa eu ver mais.
(quando termina um 196 desenho, procura espaço para realizar outro.) - deixa eu ver se tem mais alguma coisa que eu queira fazer.
(desenha da esquerda para a direita, de cima para baixo.) - pronto. Deixa eu ver o que saiu.
Aqui o sol de novo, de rachar, sol de verão, aqui a vitrola, aqui uma cadeira preguiçosa que a gente senta bem à vontade, aqui uma árvore bem grande que faz sombra.
E aqui um sorvete bem grande. Se eu fizer tudo isto, estou feliz. Se estou tomando sol, ouvindo música, ou lendo um livro e tomando sorvete, eu adoro.
Esse desenho representa isto.
Título: - o nome para esse negócio? (dá a impressão de se separar muito das coisas.) divertimento. Distração.
Inquérito: - você disse, se fizer tudo isto? - por exemplo, se estou de férias na praia, tem uma árvore na nossa casa de praia.
Eu adoro, é uma das coisas que mais gosto de fazer. - você não faz? - não, porque a gente vai à praia e depois quando volta, almoça e tem que arrumar as coisas e então não dá tempo pra nada.
Aqui nem penso nisso, não tenho tempo. - mas você tem que ir à praia? - ah! não, ficar lá em casa sozinha não, gosto de gente, de conversar, não gosto de ficar sozinha.
Quero ir onde vai todo mundo. - se todo mundo fosse fazer o que você quisesse, o que você faria? - ah! tá difícil.
Se tivesse sol, ia na praia, depois quando estivesse cansada voltaria e ficaria aí.
Às vezes eu penso que gostaria de ser psicóloga, mas não é comigo. - por quê? - sei lá, não tenho paciência de ficar pensando muito, sentada, parada.
Tem uma hora que não agüento mais; todo dia sentada na cadeira conversando, escrevendo...
Interpretação: nesta, observa-se claramente seu caminho, de uma expressão gráfica abstrata para uma expressão figurativa. É uma cena de realização de desejos.
Coloca suas experiências de adolescente, fala de seus sentimentos. Diz não gostar da solidão, é uma jovem muito voltada para os fatos da comunicação.
Notam-se aqui novamente questões referentes ao tempo: ”nunca dá tempo pra nada”.
Este é um dado que tem aparecido com freqüência, nos sujeitos analisados, que sugere por parte das pessoas cegas uma relação peculiar com o tempo.
Informações do examinando sobre o d-e: - agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - acho legal expressar sentimentos pelo desenho: acho que expresso super bem, coisas que a gente não consegue expressar por palavras dá para expressar super bem pelo desenho, e a pessoa percebe o que a gente sente.
Percebi que pensando a gente sempre acha o que desenhar. Neste último, pensei que não tinha mais idéias, mas pensei mais um pouco e tive. É legal desenho livre, que tira criatividade da pessoa.
Análise das impressões sobre o d-e: captou com rara capacidade a proposta do procedimento de desenhosestórias, e descreve com riqueza as possibilidades que a expressão gráfica oferece para a expressão de sentimentos profundos e inconscientes do mundo interno, facilitando a verbalização e contribuindo para uma tentativa de integração.
Análise dos desenhos: seus desenhos mostram claramente um caminho. Do abstrato para o figurativo. Do confuso e misturado para a organização. Da tentativa de integração de representações de caráter ”visual”, conhecimento adquirido com muito esforço por meio da aprendizagem formal, com representações de caráter exclusivamente tátilcinestésico apreendidas por meio de suas próprias experiências.
Síntese do caso: Carla nos mostra com riqueza as dificuldades a que estão expostos os cegos para encontrar um caminho satisfatório. É uma adolescente que demonstra bom desenvolvimento afetivoemocional e cognitivo, é bastante comunicativa, nos fala de preciosas trocas afetivas familiares e sociais e nos revela de maneira preciosa um problema central das pessoas cegas num mundo de videntes.
Fala de uma complexa e difícil integração de dois mundos de experiência, já apontado por outros sujeitos.
Todavia, a descrição de Carla das vantagens e desvantagens da opção por um dos mundos, suas reflexões sobre as perdas decorrentes de uma escolha clarificam a grande dificuldade existente.
Ela caminha para a integração nos mostrando, aqui também, as perdas que esta implica e a inevitável tristeza que a acompanha.
Caso 11
Mariana é uma garota de 11 anos, branca, natural de
São Paulo, cursando a 5ª série do 1° grau.
Seu pai é diretor de uma empresa e sua mãe assistente social.
Tem percepção visual de claridade e vultos desde o nascimento, por retinopatia da prematuridade. É a filha caçula de três irmãos. É uma garota bastante desenvolvida, que aparenta mais idade, tanto pela postura física como pelas atitudes e comportamento amadurecido.
Parece preocupada em não perder tempo com vistas ao sucesso. Para isso, há uma facilitação familiar.
Todo o seu tempo é programado para aquisições intelectuais. Toda a família está sobrecarregada de compromissos, correndo em busca de alguma vitória.
Mariana traz com rara felicidade a dificuldade de trocas afetivas do meio familiar.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 11.1
Verbalização: - o desenho que eu quiser? deixa eu pensar.
Ih, tá difícil, mas o que eu vou fazer? - qualquer coisa que lhe venha à cabeça. - uma idéia qualquer que me venha à cabeça? deixa eu ver o que sai. (pega um lápis aleatoriamente com as duas mãos, começa a riscar com a esquerda, depois passa o lápis para a mão direita; volta à esquerda.) - vou dar uma apagadinha (tenta apagar apertando a unha sobre o traçado, como se fossem pontos de braille). - estava fazendo uma figura e me esqueci (durante todo o tempo, diz que está feio, e que não vai sair.
Pergunta se pode fazer em outro lugar. Ofereço outra folha, não aceita. Faz outro desenho no canto da folha, vira para perceber). - É! mais ou menos (continua a desenhar em silêncio por um longo tempo). - tentei fazer mais ou menos o rosto de uma pessoa, um queixo, queixuda, a boca meio aberta, um olho com a sobrancelha, o cabelo e a cabeça.
A orelha não dá porque está toda coberta pelo cabelo. Deixa eu terminar com o pescoço, saiu grosso e pequeno ...
Deixa eu fazer um chãozinho, ah! não dá. Ah, deixa eu ver, vai ser uma menina. Ah, já sei...
Uma menina que foi ver um lago, que tinha água bem limpa e ela viu a imagem dela.
Aí fez uma cara assustada e a imagem ficou assustada também. Oh, só isso, mas vou desenhar uma graminha perto do lago, como se fosse uma mata.
Aí a menina levantou, foi para casa, sei lá... Não tem mais como inventar uma estória.
Título: o susto da menina.
Inquérito: - por que ficou assustada? - acho que foi porque se viu na água, nunca tinha se visto no espelho e pensou: ”outra menina igual a mim?” - depois não ficou mais assustada? - ela começou a fazer um monte de caretas e viu que era ela mesma. - o que ela fez quando ficou assustada? - deu um grito. Está com o queixo meio aberto. Não um grito muito forte, um gritinho.
Interpretação: o mito de Narciso, mas com conotações diversas. Fala de um processo de autoconhecimento, de identidade por meio da imagem, que nos lembra a fase do espelho descrita por
Lacan (1977).
Esse autoconhecimento para Mariana passa pela exploração do movimento (se reconhece quando faz caretas), mas também pelo grotesco e pela feiúra.
Desta maneira, aquilo que inicialmente a repugna se transforma em veículo de auto-conhecimento e aceitação.
Figura 11.2
Verbalização: - deixa eu ver que desenho fazer agora.
Estou pensando em fazer um desenho de uma praia. A areia... Deixe ver como vou fazer, vou fazer um monte de pontinhos e de risquinhos.
Agora vou começar o mar, cheio de onda e água por cima. Aqui (areia) vou desenhar uma ondinha - saiu uma ondona -, mais ondas.
Aqui em cima, céu, vou desenhar um passarinho da minha cabeça, né?, o pezinho, o corpinho, uma asinha, outra, o biquinho.
O passarinho está meio no chão, é como se ele fosse pousar. Vou desenhar outra coisa aqui.
Aqui na areia umas pedras, umas pontas. Aqui em cima um tipo de uma estrela, não é bem uma estrela, um tipo, cheio de pontas, agora uma estrela de 5 pontas, não 6.
Aqui uma luinha, outra estrelinha. Olha não vai ter muita estória para contar.
Aqui o sol, bem no canto, está se pondo e soltando um monte de raio, já está escurecendo. Deixa ver se vou desenhar mais alguma coisinha.
Outro passarinho, que nem aquele, ele está quase no sol, mas como o sol está quase apagando não acontece nada com ele.
Aqui vou desenhar um peixinho, só que desenhei de rabo para baixo. A estória é uma praia meio deserta, com passarinho voando, céu bonito, estrelado, o sol indo embora, com passarinho.
Título: as maravilhas da natureza.
Inquérito: - É uma praia deserta? - porque não aparece ninguém, é que é quase noite. É o pôr-do-sol. O mar também é muito forte, só um peixinho mergulhando. Acho que é isso. É deserto, mas com bicho.
Acho que gaivotas, pode ser urubu, ai não, urubu é sujo.
Interpretação: sua produção revela uma aproximação tátil-cinestésica dos elementos água, terra, ar e fogo e revela também uma síntese de busca explicativa.
Revela disposição de entrar em contato com os objetos internos, que sente como bons e adequados, revelando uma estrutura egóica forte.
Todavia, o relacionamento com trocas afetivas parece ser uma área de conflito, da qual se defende racionalmente. Parece depressiva e solitária, o peixe mergulhando, o entardecer.
Figura 11.3
Verbalização: - vou pensar. (fica um certo tempo batendo o lápis...) - vou fazer o quê...
Ih, está difícil. Deixa eu ver. (segura o lápis com as duas mãos e continua pensativa.) ih, ... Deixa eu pensar...
(permanece mais um longo tempo pensativa). Ih... Estou pensando, mas não vem na cabeça o que desenhar. O que eu faço? - o que você faz? - quantos desenhos faltam? por quê? você não quer mais fazer?... - não, é porque assim penso tudo.
Ah, já sei. Me veio na cabeça agora. Vou fazer um tipo de quitandinha assim... Sei lá. Desenhei a base que segura as prateleiras aqui.
Tá meio torta. Bem alta, né?... (começa de baixo para cima). Vou medir mais ou menos a altura.
Agora as prateleiras (mede com os dedos a distância da altura do traço em relação ao papel).
Vai quase até o teto. Deixe ver, acho que 3 dedos está bom... (mede com o dedo e traça as prateleiras) passou...
Dá para apagar? não? eu me distraí. Aqui desenho o quê? fruta, né? uva... Não vou fazer a prateleira lotada porque dá muito trabalho.
Um uvão... Vou fazer cabinho, não, vou fazer maçãs. Sei lá, depois eu vejo. Vou passar outro traço aqui. É melhor passar logo os traços todos.
O segundo vou dividir no meio. Aqui vai ser as pequenininhas. Deixa eu ver. Aqui mamão, não.
Essa maçã está meio oval. Aqui vou colocar cerejas. Aqui que está a prateleira livre, vou deixar, aqui vou colocar uma fruta maior... Sei lá, alguma fruta grande aqui. Uma melancia, coisa assim. Isso, só duas. - estória! então vou completar...
O desenho é uma quitanda com um balcão, vou desenhar mais uma coisinha aqui... Uma melancia em cima do balcão, que horror..., é mais ou menos, não está bem uma melancia, é mais uma meia melancia. Uma quitanda com a prateleira cheia de frutas e uma pessoa foi lá e comprou meia melancia.
O moço do balcão estava pesando a melancia para ver quantos quilos dava. Depois ela voltou para casa. (demora.) - e o que acontece..? - isto é o que estou querendo inventar, um fim para ela.
Ela voltou e comeu a melancia inteira num dia só, isto é, a meia. Depois no outro dia voltou para agradecer ao moço.
Título: o guloso.
Inquérito: - ela voltou para agradecer? - porque estava uma delícia, voltou e comprou mais uma metade.
Interpretação: pode-se observar que num plano mais profundo começam a se estruturar defesas obsessivas e desejo de controle.
A expressão gráfica revela uma tentativa de controlar o espaço, e a tentativa de controlar tudo, com um superego rígido e exigente. Ela se vê também como uma quitanda repleta de bons conteúdos, sendo capaz de ser grata e valorizar o que recebe, embora permaneça solitária.
Revela dificuldade nas relações afetivas, e certa voracidade, que também procura controlar.
Figura 11.4
Verbalização: - vou desenhar agora... Ah, já sei.
(levou menos tempo para iniciar o desenho.) - vou desenhar... Deixa eu ver... (começa a traçar as linhas de baixo para cima.) É uma casinha, mas tipo casinha de cachorro; dentro vou desenhar montes de coisas como se fosse palha para ele deitar.
Tem que riscar forte. Em cima da cama, depois para ele comer, um pratinho... Simples, com carne e outro pratinho com água.
Como se ele fosse passear e tivesse deixado a comida em cima da cama para comer quando fosse dormir.
O cachorrinho, como se estivesse indo entrar na casinha. Uma patinha e outra. Pronto.
Só... A estória é assim. Um cachorrinho morava numa casinha sozinho, toda arrumadinha, para quando voltasse para casa ir dormir.
Ele trabalhava como cozinheiro no restaurante de um cachorro doido, então o salário dele era levar todos os.
Ossos, assim de frango para casa, e se quisesse, levar carne também. Nas folgas, no final de semana, para ajudar os amigos, ajudava a construir casinhas.
No fim, quando chegou seu aniversário, todos os amigos fizeram uma festa surpresa para ele e quando ele chegou estava aquela festa.
Título: o cachorrinho bondoso
Inquérito: - morava sozinho? - ah, não, com o pai e com a mãe, era filho único. - ele cozinhava? - e ganhava o que queria, era um bom salário.
Interpretação: neste, Mariana revela novamente solidão e reparação. Percebe-se como alguém de valor, capaz de cumprir com as transformações necessárias (”era um bom cozinheiro”).
Enfim, ela se vê hábil e competente em adquirir os benefícios do convívio social.
Mariana sente que só conseguirá o afeto que a tire da solidão ao se mostrar capaz e produzir adequadamente.
Ela só depende de dimensionar seu valor pessoal. Parece ser uma menina muito amadurecida para a idade e talvez por isso sinta uma grande nostalgia da imaturidade e da instintividade.
Suas pulsões são bastante sublimadas, embora revele carências orais básicas.
Figura 11.5
Verbalização: - vou desenhar mais ou menos o que está na minha cabeça.
Vou desenhar uma árvore de Natal. Vou desenhar bem no meio para dar espaço.
vou começar de baixo; galho, bolinha, estrelinha, um presentinho pendurado. A bola vou fazer assim.
Um Natal feliz. É a estória de uma menininha que escreveu para o papai Noel, para lhe dar uma bicicleta, só que ela estava sem esperanças.
Pensou. O papai Noel não vai dar, tem muita criança para ele dar presente. Chegou o
Natal, todo o mundo abrindo presentes e ela nada.
Daí chegou o presente dela e era uma bicicleta. No dia seguinte, abriu a bicicleta e viu que voava.
Aí foi até o céu e prometeu que no próximo Natal ia ajudar o papai Noel a distribuir presentes.
No próximo Natal ela foi, e ficou mais feliz ainda. Só.
Inquérito: - ela nada...? - tinha um cartão pequenino e o pai queria fazer surpresa e deixou para dar no fim. O pai viu o nome dela no bilhete e deixou ela ser a última. - a bicicleta voava? - sim. - como? - era mágica. - foi até o céu? - para agradecer, porque ela estava sem esperanças e ganhou até uma mágica. - ficou mais feliz? - ficou mais feliz por estar ajudando o papai
Noel.
Interpretação: vive intensamente o conflito entre ser a última, e, portanto medíocre, numa família competente, ou expressar a genialidade, ser aceita, e arcar com a culpa de ser a melhor, e, portanto a escolhida por um pai generoso, que lhe dá mais do que precisa, inclusive a possibilidade de participar de sua vida.
Parece sentir que a vida lhe propicia um adiamento da satisfação e, além disso, uma diferença que pode vir a ser tomada como um veículo de desespero, salientando aqui seu lado depressivo, mas que pode também ser tomado como um veículo de satisfação.
Revela uma grande necessidade de reparação, talvez ligada ao sentimento de que tem tudo, mas ainda deseja intensamente algo.
Talvez deseje a única coisa que não tem: afeto. Mariana desenvolve uma grande capacidade de renúncia defensiva, obsessiva e disfuncional, para não sofrer frustrações.
Em Mariana se confundem as limitações impostas pela deficiência e possíveis limitações na área da personalidade.
Informações do examinando sobre o d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei legal, nunca tenho tempo de fazer desenhos, eu fiz, lembrei do passado quando era menininha e gostava de fazer desenho. - e agora? - sei lá, agora não gosto, gosto mais de estudar, agora já passou.
Acho uma delícia desenhar, relaxar, lembrar quando era menina. - por quê? antes não sabia da violência dos dias de hoje, antes tinha tempo, agora quando desenho é para sair da violência dos dias de hoje, das coisas desagradáveis.
Análise das impressões sobre o d-e:
expressa com clareza que este procedimento é um facilitador do contato com o mundo interior, que é um meio para a expressão de sentimentos profundos.
Parece ter tido o insight de que ao desenhar e contar estórias está se expondo.
Esta situação percebida por muitos examinandos sugere que para as pessoas cegas o d-e é sentido como a oferta de uma possibilidade de refletir sobre suas experiências pessoais.
Análise dos desenhos: seus desenhos demonstram intensa vivência tátil-cinestésica e se caracterizam em alguns momentos por rica expressão gráfica de representações mentais táteis-cinestésicas.
O desenho mostra com clareza a percepção de um rosto não visual no qual é salientado partes tatilmente significativas e não o contorno, um dado visual.
O desenho parece ter sido planificado para uma expressão bidimensional de percepções táteiscinestésicas.
De forma semelhante, no desenho 2, a expressão gráfica de ondas e água como dois momentos distintos expressam mais uma sensação tátil-cinestésica do que visual.
Observam-se que, segundo as próprias palavras de Mariana, as relações de tamanho tornam-se mais difíceis de serem alcançadas pela percepção e para a expressão tátil, assim como as relações espaciais (”o passarinho ficou muito perto do sol”).
Mariana parece possuir muito bom nível intelectual, demonstrado tanto pela organização do desenho como pelas suas verbalizações.
Síntese do caso:
Mariana é uma garota que demonstra desenvolvimento acima da média, tanto física como psiquicamente.
Revela excelente nível intelectual e uma incomum maturidade afetivoemocional.
Há uma rica expressão simbólica, gráfica e verbal, se diferenciando das outras crianças estudadas.
Mostra-se introspectiva, com facilidade para entrar em contato com seus objetos internos, sentidos como bons e valiosos.
Revela ego forte, utilizando-se de mecanismos de defesa bem elaborados, racionalização e sublimação.
Demonstra todavia dificuldade de trocas afetivas, profunda carência acompanhada de voracidade, que procura controlar e lhe causa culpa.
Há certa obsessividade no controle compulsivo tanto de impulsos internos como de situações externas.
Há grande exigência consigo própria e muita sublimação com investimento pulsional para altas realizações, sentindo ser esta sua única possibilidade de ser aceita.
Caso 12
Márcia é uma garota de 10 anos, branca, natural de São Paulo, cursando a 4ª série do 1° grau.
Seu pai é advogado e sua mãe o ajuda na parte administrativa. Sua visão é nula desde o nascimento por retinopatia da prematuridade. É a mais velha de três irmãs.
Na entrevista, fala bastante e procura dar muitas informações, se valorizando e depreciando suas irmãs.
Identifica-se com a mãe pela doença e fragilidade. Sente a mãe sensível, mas instável, enquanto o pai é descrito como figura protetora e real continente.
A relação com a figura materna parece apontar para uma quebra de hierarquia e em alguns momentos faz supor uma relação simbiótica ou ausência de solução para o complexo edipiano.
Márcia parece repetir frases feitas, revelando uma hiperadequação aos objetos externos com despojamento dos objetos internos.
Relata que tem bronquite.
Procedimento de desenhos-estórias:
Figura 12.1
(começa pelo centro do papel, risca bem leve, peço para riscar mais forte, faz vários círculos concêntricos, vai acompanhando a ponta do lápis com o dedo.
Levanta a folha, passa a mão na tela e nas costas do papel. Não tem seqüência definida para fazer os riscos).
Verbalização: - não vai dar para entender nada, viu, porque é só rabisco. Um planeta esquisito que tinha um filho esquisito um dia falou para a mulher que o planeta ia voltar ao normal, então ele pegou o filho dele e mandou para outro planeta e o foguete caiu no meio do deserto e lá só tinha galinha e aí o casal de galinhas viu o menino e criou ele e ele resolveu retribuir aquilo com dinheiro.
Título: planeta esquisito
Inquérito: - por que esquisito? - por que tinha um monte de coisa que não parecia com um planeta normal. - o quê? - a palma da mão podia ler, o automóvel falava... - por que mandou o filho para outro planeta? - para não perder a esquisitice, ainda mais que o filho era narigudo e azul. - ele não queria que o filho perdesse a esquisitice? - porque gostava muito do filho. - como assim? - para não perder o controle.
Quem retribuiu? - o filho. - e os pais? - voltaram ao normal, só o filho é que não.
Interpretação: há dificuldade de comunicação e Márcia parece sentir-se como esquisita, estranha e incompreensível; esta parece ser a marca de sua identidade.
Esta esquisitice tem clara relação com a cegueira. O menino era esquisito porque lia com a palma da mão.
Todavia esta diferença parece lhe trazer satisfações, por ser uma condição que lhe possibilita o controle sobre os outros.
Figura 12.2
(começa em cima, no canto esquerdo e desce, faz dois desenhos distintos e depois une).
Verbalização: - era só o que faltava. - o quê? - a voz desse cara (passa um caminhão vendendo frutas.
Fica muito tempo, mais ou menos quinze minutos, fazendo rabiscos sobre o papel...) - tinha um cachorro que resolveu compor música. (como ficou assim o papel?) assim o cachorro gostou da idéia e foi conversar com outros cachorros do bairro e eles também gostaram da idéia.
Aí ele montou um grupo e o grupo dele começou a compor bastante música, aí o cachorro ficou famoso e começou a fazer muito sucesso.
Título: cachorro que não servia para nada
Inquérito: - o que é este desenho? - isto é o cachorro e isto é o filhote. - por que compor música? - porque ele pensou que não servia para nada, então começou a compor música. - ele não servia para nada? - não. - como assim? - porque ele queria tentar ajudar e não conseguia. - ele não conseguia ajudar? - não. - como? - quando ele ajudava os cachorros da rua ninguém queria. - como fez sucesso? - viajando pelo mundo todo.
Interpretação: nesta estória repete-se o tema da diferença, mas desta vez ligado a uma intensa autodesvalorização. Evidencia maciçamente defesas maníacas, aparece uma necessidade quase vital de ser líder.
Busca mecanismos de adaptação em comportamentos estereotipadamente ligados à cegueira.
Pode-se supor nestes mecanismos certa capacidade de adaptação.
Figura 12.3
(começa a riscar no centro da folha da direita para a esquerda, da esquerda para baixo e de baixo para a direita.
Não acompanha com o dedo o traçado que faz. Faz o trabalho sem falar nada... Pára e não diz nada).
Verbalização: - você está desenhando? (sorri, volta a riscar o papel, larga o lápis.) era uma vez um zoológico, neste tinha uma jaula com oito animais: um cachorro, um porquinho, um tamanduá, um urso, dois passarinhos, um sapo e um gatinho.
Eles estavam apostando corrida em uma piscina, de barco, quem chegasse primeiro seria o vencedor.
A porquinha gostava do sapo e como o tamanduá ganhou ela falou que precisava dar uma volta a mais.
Aí todo o mundo começou a chamar ela de trapaceira. Era como se fosse um berçário.
Aí chegou o técnico e eles contaram, aí eles pegaram um livro e ficaram olhando.
O sapo que tinha sido eleito presidente chegou a uma conclusão: de que todas as regras eles iam votar.
Inquérito: - eles deram outra volta? - aí só ele deu a volta e falou que ganhou. - era como se fosse um berçário? não, na verdade não era um berçário. - o que é um berçário? onde ficam os nenês, era tudo filhote que ficava lá. - o sapo tinha sido eleito? - para poder concordar com as regras, eles votaram e o sapo foi eleito. - qualquer coisa iam falar com ele? qualquer conclusão que não gostassem, iam.
Título: Caco para presidente. Sabe que ontem o
afif fez o programa do governo dele em braille?
Interpretação: o problema da cegueira parece ser o núcleo sobre o qual gira a vida de
Márcia; inclusive a alusão a berçário identificado com jaula ou prisão parece se reportar à origem de seu problema visual (berço isolete, causador da retinopatia da prematuridade).
Há também o problema de competição e liderança relacionado ao afeto. É tão fundamental ser líder que se permite qualquer meio para atingi-lo, inclusive a trapaça.
Ela pede a lei e as regras, mas para os outros; está tão subordinada ao padrão da diferença e esquisitice que o que vale para os outros não vale para ela.
Figura 12.4
(faz vários riscos, acompanha com o dedo, depois muda o lápis de mão, continua riscando, só passa o dedo no lugar onde pára o desenho).
Verbalização: - eram duas meninas e cinco meninos; estavam andando de patins, daí, depois guardaram os patins, não sei o que tinha acontecido.
Um, que era pequenininho, tinha uns dois anos, não sei o que aconteceu, ele molhou todo o mundo.
A menina que foi chamar a mãe (tinha um patim no caminho), ela torceu o pé. A mãe queria levar ela no museu de arte e não puderam para não deixar a menina sozinha.
Aí fizeram um museu no quarto, aí fizeram bastante pintura e foram chamar a mãe, aí ela falou: ”não querem ir no museu de arte?”.
Era do outro lado da cidade; aí pegaram a menina e ajudaram, aí foram no berçário.
Aí elas foram e contaram a verdade: a menina é que tinha colocado o pé de patins e a outra tropeçou.
Aí se desculparam e foram fazer uma salada.
Título: o museu de arte
Inquérito: - fizeram um museu no quarto? - pegaram lápis de cor e copiaram de um livro.
Aí eles contaram a verdade para a mãe, o menino que depois ficou sabendo, a menina deixou jogado e falou que trocou o pé de patim.
Interpretação: sente sua vida uma salada; há muita confusão, da qual ela faz parte e alimenta.
O trapacear e o enganar aparecem novamente. Márcia parece mostrar também um caráter camaleônico.
A inveja aparece ligada a uma destrutividade que aparece traiçoeiramente, de modo a não se caracterizar como agressão.
Figura 12.5
(desenha mais rápido, não dá a impressão de estar atenta à representação de uma imagem.
Depois de muito tempo riscando e fazendo principalmente círculos, larga o lápis).
Verbalização: - tem duas moças que trabalhavam na doceria, eram cozinheiras, fizeram um creme de abacaxi e trancaram a receita num cofre.
Uma delas namorava um bandido, que queria levar ela no cinema só para pegar o creme, e disse para ela levar o creme, aí ele pegou e comeu, só que a outra namorava um policial, que salvou a outra.
Depois um comeu o creme de chocolate e dormiu, aí ela falou: quando a gente faz um creme, na hora é bom, mas depois dá dor de barriga.
Aí o namorado estava dormindo, e ela pôs ele na cadeia. Quando o namorado acordou, encontraram o dono da doceria, que falou: ”este creme é bom só no primeiro dia, mas depois dá uma tremenda dor de barriga.
Vocês comeram?” ”comemos”; e foram procurar o banheiro.
Título: os cremes não compensam.
Inquérito: - o policial comeu o creme? - comeu e caiu: era uma armadilha. - os bandidos roubaram a receita do cofre? - não, eles não conseguiram porque o cofre estava trancado. - o creme só é bom no primeiro dia? - não, acho que ele estava azedo. - quem comeu? - todos comeram.
Interpretação: nesta, novamente, Márcia expressa sentimentos conflitivos entre o bem e o mal, o certo e o errado, que é também resolvido por meio de uma situação de extrema farsa, namora o bandido e a polícia, um superego rígido e tendências psicopatas. Parece sugerir que a possibilidade de afeto passa pela possibilidade de traição e que os objetos detêm algo de maligno, contaminados por sua inveja.
Parece haver em Márcia um descompromisso com a produção, parece estar muito ligada ao objeto externo do qual usufrui e de que retira todas as formas de vida.
Diferentemente de Mariana, que procura recursos internos e tenta elaborá-los,
Márcia parece querer apossar-se dos recursos dos outros e viver deles.
Informações do examinando sobre o d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei legal.
Tenho um caderno em casa e fico sempre fazendo desenho, mas lá não dá para você ver o que desenha.
De contar estórias não gosto, quem gosta é minha irmã.
Análise das impressões sobre o d-e:
sua apreciação crítica traduz um grande desacordo com a realidade: diz gostar de desenhar enquanto demonstra total desinteresse pela tarefa; por outro lado, afirma não gostar de contar estórias, e estas são extensas, revestidas de muitos detalhes, revelando aqui também sua característica camaleônica e enganadora.
Análise dos desenhos: seu grafismo é muito pobre, não parecendo em nenhum momento uma representação de imagem mental.
Não parece haver conexão entre a expressão gráfica e a verbal, sugerindo mesmo uma grande discrepância de desenvolvimento.
Enquanto seu grafismo é bastante primário, sua expressão verbal é rica, havendo inclusive uso de jogo de linguagem e chistes.
Isto parece, mais uma vez, expressar a desorganização, o conflito e mesmo o mecanismo de farsa que caracteriza
Márcia.
Síntese do caso: Márcia revela uma personalidade cuja marca é a ambigüidade, sente-se diferente e esquisita, mas isto lhe traz satisfação pelo controle que exerce.
Exige leis e regras bem-definidas para os outros, mas não para ela. Seu problema nodal parece intimamente ligado à cegueira, sentida como desvalorizadora, e ao mesmo tempo lhe trazendo vantagens e controle sobre os outros.
Toda a sua vida parece estar subordinada ao padrão da diferença, o que vale para os outros não vale para ela.
Desta mesma maneira, procura integrar os impulsos afetivos e agressivos, o bem e o mal, o certo e o errado. Constrói sua vida sobre uma farsa, demonstrando superego rígido e punitivo, convivendo com tendências psicopatas.
Márcia revela total dependência do objeto externo do qual retira sua forma de vida.
Seu mecanismo faz supor uma intensa inveja devido à cegueira, que a torna credora de todos, que devem submeter-se ao seu controle.
Caso 13
Gabriel é um jovem de 19 anos, solteiro, pardo, natural de
São Paulo. Tem o 1° grau completo e está em processo de reabilitação.
Seu pai é taxista e sua mãe comerciante. Sua visão é nula, causada por acidente assim relatado: ”a hélice do carro voou e cortou o nervo óptico, faz 2 anos e 5 meses, tinha 17 anos” (sic). É o filho caçula, o irmão mais velho suicidou-se, a irmã é casada, e tem um irmão com quem convive mais estreitamente.
Gabriel fala de sua vida e do acidente em que perdeu a visão, procurando dar a impressão de que está tudo bem.
Todavia, faz uma nítida separação entre o passado, quando ”viveu”, e a situação atual.
Usa extensamente a negação ao falar sobre sua perda visual, dando-nos a impressão de que está representando, ou mesmo querendo se convencer das ”lições aprendidas” sobre o não se abater com a perda sofrida.
Parece projetar, pela negativa, a culpa no pai, para não se culpar pelo acidente sofrido.
A situação familiar é também descrita como boa; fala de relações satisfatórias, em contraposição ao fato do suicídio do irmão e dos ”desmaios” da mãe.
O acidente que provocou a cegueira está ainda muito presente em sua vida, não tendo ainda elaborado a perda da visão.
Faz uma interessante, embora nebulosa, relação entre morte-gravidez-perda visual.
Relaciona cegueira com total incapacidade de conhecimento, indicando o sentimento de que sua vida futura será apenas de memórias.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 13.1
Verbalização: - ih! fazer desenho? que devo fazer? que desenho, hem? - o que você quiser. - que cor é esta? quero o marrom e o azul-claro.
Saiu uma montanha? dá o lápis amarelo, vou fazer um sol aqui, preto, né? quebrou a ponta.
Aqui acabou, quero o azul (passa o lápis deitado). Ficou o mar, o sol e as gaivotas? geralmente o mar nas montanhas tem nuvem.
Nuvem não dá para fazer, ou dá. Deixa eu ver (pergunta insistentemente ao examinador se seus desenhos representam o que deseja, pede constante confirmação da visão do examinador).
Fiz as nuvens, chega de nuvens senão vai chover, me empresta o amarelo de novo? aqui é o sol, certo?
Vou fazer reflexo.
Eu fui numa praia tipo essa. O sol estava forte. Faz 3 anos, mais ou menos 3 anos e meio.
Brinquei bastante, de manhã ao pôr-do-sol; as ondas do mar eram bem fracas, tinha montanhas, gaivotas.
Brinquei bastante, fiquei lá o dia inteiro.
Inquérito: - o que aconteceu? - brinquei bastante, de bola, de correr na praia, fui à lanchonete, saímos às 4 horas da tarde.
Fomos para lá à meia-noite e chegamos as 4 horas, deu para ver o pôr-do-sol. Tirei fotos do pessoal; não levo farinha em excursão, não sou farofeiro.
Brincamos no ônibus.
Título: uma viagem para Caraguatatuba; não: uma emocionante viagem para
Caraguatatuba.
- Foi emocionante? - eu nunca tive, é emoção ir para um lugar que nunca fui. O cérebro vai para outros lugares, sai de
São Paulo, cheia de violência, só se ouve falar de assalto, polícia matando ladrão.
Sair de São Paulo... A gente nota diferença até no rosto das pessoas, têm rosto tranqüilo.
Aqui você esbarra com alguém, a pessoa te xinga; pisa no pé sem querer, ele briga.
Interpretação: parece estar no passado, revelando o desejo de se afastar de situações que possuem alta carga emocional.
Há o desejo de sair da situação atual para uma anterior, como se toda a sua vida tivesse ficado no passado e agora lhe restasse apenas esperar a morte.
O sair de um lugar para outro sugere uma transformação de espaço em tempo, o sair do agora para o antes.
Fala também da grande energia gasta para conter a tormenta (chega de nuvens, senão vai chover).
Seus recursos defensivos parecem estar todos voltados para a contenção das emoções.
Figura 13.2 (não acompanha com o tato os traços que faz; só usa a percepção tátil para confirmação do traçado realizado).
Verbalização: - esta árvore não ficou certa. Dá para enganar, né? está saindo? (começa a cantar.) hoje tive um sonho, foi o mais bonito...
Como é uma flor murcha?... Já sei... Agora para achar os bicos é que vai ser fogo...
A rosa é vermelha... Aqui tem lápis vermelho?... Deixa verde mesmo. Aqui está cheio de galhos.
Sabe o que é isto? a natureza está se acabando. Você não vê mais uma árvore cheia de flor, ninguém cuida das flores.
O pessoal está acabando com as plantas e com o nosso ar... Senão é a poluição. Alguém agüentará esta poluição? você vai para o
Jaraguá, o cheiro é bom. Você vai para o centro, é poluído.
O pessoal deve ter mais amor à natureza. Fiz um sol forte e a árvore seca, sem água.
Se a senhora ficar sem comer, vai morrer. Assim também a natureza. Hoje em dia o pessoal usa muita química nos alimentos - tipo café: nós não tomamos puro, deve ter mistura, o bom vai para o exterior.
O brasileiro tem mania de quando vê um estrangeiro dizer que é bom, já o baiano é burro. Também, se o
Sílvio Santos vai num lugar não fica em fila, e o pobre tem que ficar.
Nós só valorizamos o dinheiro.
Título: a natureza está se acabando.
Inquérito: - por quê? - porque não tem mais tempo.
- como assim? - todo o mundo trabalha, não tem mais aquele ânimo. Você não vê mais passarinho cantar. Hoje o pessoal não tem ânimo nem para dar bom-dia. Hoje o pessoal pensa no dinheiro, carro, roupa de marca. Hoje o brasileiro enfrenta uma crise de materialismo.
Se você anda de ônibus é baiano, se anda de carro é rico. Acho que a riqueza deve vir de dentro.
Tipo assim agora o povo não leva a sério. - por que as pessoas estão sem ânimo? - porque têm que trabalhar; hoje você paga pra tudo, o pão que come, a água que bebe, então tem que trabalhar.
Faculdade também você não consegue fazer. O pessoal mudou. - mudou como? - eram melhores, agora são piores. Antes você entrava num lugar todos estavam sorrindo; hoje todos estão reclamando falta de dinheiro.
Interpretação: parece estar mascarando a dor e a raiva e utiliza-se de um movimento atual (ecologia) para expressar seu mundo interno.
Está falando de sua vida mental que está se acabando. Parece não poder discriminar o bom do ruim mascarado, e não poder expelir o mal e ficar com o bom.
O bom está sendo exportado e ele fica esvaziado como a árvore seca. Há muita cisão entre o bom e o ruim, o antes e o agora, o trabalho e o lazer, que parece ter sido provocada pelo acidente, como se tivesse morrido (”fiquei 3 meses em coma”) e renascido.
Todavia, não está conseguindo integrar sua vida passada com a atual. Projeta seu amargor nas condições sociais discrepantes, assunto bastante discutido nos dias atuais.
Figuras 13.3a e 13.3b
Verbalização: - deixa ver o que vou fazer. Tem tanta coisa.
Deixa ver o que faço. O que a senhora está fazendo? estou anotando o que você fala. - puxa vida, uma hora dá um branco.
Já sei. Qualquer coisa? (pergunta as cores dos lápis e pede o cinza). A ponta não está boa, vou querer o preto. (fica um certo tempo em atitude pensativa). - como se faz uma ponte? um viaduto? - você pode fazer como você quiser. - está ficando cheio de pinguinho o céu, não está? como se fosse chuva.
Rasgou o papel por acaso? não vou fazer até o chão. (batem na porta). Quando batem na minha porta tenho até medo, pode ser dívida.
Agora vou fazer a ponte. Como ela é? depois dou explicações porque o papel é pequeno.
Esta ponte está ruim, não está muito inclinada? - você acha? - acho que vou fazer outra. (ofereço outro papel, desenha em silêncio.) está certa? esta ponte precisa de alicerce, senão o carro cai.
Ponte sem alicerce não dá. Acaba aqui, não é? ficou certo tipo de casa? ficou certo o hominho aqui? a senhora está escrevendo muito.
O que eles desenharam? - você quer saber o que os outros desenharam? - só para ver a imaginação deles (pede lápis amarelo e marrom).
Não fiz a fogueira em cima do caminho, né? (pede lápis preto e vermelho). Aqui é a ponte (desenha um carro, pensa ter quebrado a ponta do lápis, tira do papel e diz) - perdi o pneu, ele voou, até suei para fazer este desenho.
Os mendigos embaixo da ponte, que cada dia aumentam mais. Enquanto os outros passam de carro de baixo para cima, a periferia aumenta.
Os que andam de carro desprezam os que não têm nada, e a pobreza aumentando. A prefeitura também anda de carro enquanto essa gente morre de fome.
Geralmente são as pessoas que vêm de fora. Aí vai piorando, tudo acontece, assalto, violência.
Debaixo de chuva e sol eles estão numa boa, enquanto nem pensam nos coitados que nem têm o que comer.
Quem está debaixo da ponte, para eles tanto faz, se for preso até é bom, porque vai comer.
Acho que ele precisa olhar para trás, não para a frente. Um dia ele pode cair na ponte.
Mas nosso brasil é assim: o pobre não vale nada, o rico tem tudo. Hoje em dia a lei é o dinheiro, já vem de antigamente, mas hoje está pior. E cada vez aumenta mais a periferia das cidades.
Que nem o que acontece na favela de São Paulo. É só. Se eu fosse falar ia reclamar.
Inquérito: - quem está na boa? - os ricos. Hoje em dia é assim, ninguém olha para o coração, só para o dinheiro.
Antigamente não era assim; quando eu tinha 12 anos não era assim. Na periferia não têm policiamento, as escolas...
Nos bairros ricos tem. É o mundo em que nós vivemos.
Título: mendigo também é gente. Eu acho que eles são tratados como cachorro. O que a senhora acha?
Interpretação: parece sentir-se muito perseguido; sente-se ameaçado e parece ter medo de revelar seus sentimentos profundos, talvez a raiva e o ódio que estão muito contidos.
No discurso político, parece estar colocando a cisão que há dentro de si. Cisão entre o bem e o mal, o poder e a incapacidade.
Parece sugerir que a confiança excessiva que tinha em si, sua onipotência, pode ter sido a causadora do acidente em que perdeu a visão.
Parece expressar também sentimentos de inveja que amarguram sua vida. A projeção no mundo externo da luta entre ricos e pobres que se destroem mutuamente espelha seu mundo interno, onde sente que essas forças conflitivas o estão destruindo.
Só se permite a expressão do ódio justificado contra o rico, que o faz por merecer.
Todavia, parece apontar levemente para uma tentativa de integração, ao se referir à necessidade de ”olhar para trás”, quando anteriormente queria negar a vida passada, o ”para trás” sugere tudo o que lhe aconteceu.
Entretanto, a negação maníaca ainda está bastante presente.
Figura 13.4 (desenha em silêncio.)
Verbalização: - dá para imaginar que é um ônibus? faz de conta que está cheio.
Pronto. É um assalto, aqui um ônibus e um assaltante com arma na mão, aqui a casa do rico e passando uma vida boa.
Pobre tem que trabalhar e ainda é assaltado. Falta policiamento. Não trabalhar por trabalhar, só por dinheiro.
Se um rico diz: ”prende esse que eu pago”. Eles prendem. Se morre um pobre por assalto, a polícia nem dá o atendimento que precisa.
Se é um rico, aparece na TV. Se esse rico da minha estória fosse assaltado e morresse o cão, saía na
TV.
Se vão em bairro de pobre, é para esculachar ele. Se vão em bairro de rico, é para amar eles.
Ele assaltou o ônibus enquanto a polícia está no bar tomando café. Meu irmão é da polícia, mas falo isso para ele também.
Ou então, estão por aí correndo atrás dos meninos. Não andam atrás de bandido: se é pé-de-chinelo, eles matam, se é rico, eles aproveitam. Se estuprarem minha filha, não tão nem aí; se estuprarem a filha do sílvio santos, vão atrás até matar.
Eu não sinto segurança na polícia. Aqui nestas escolas sempre tem guardas nas 225 esquinas, para proteger as crianças; na periferia só tem bandido.
Tem policiais na rua das pessoas ricas, enquanto na periferia o bandido entra, rouba, te mata.
Acho que a polícia devia ser uma defesa para o povo.
Título: está faltando policiamento para a classe pobre, não nas ruas de
São Paulo.
Interpretação: nesta mantém-se a cisão, mas parece fazer um deslocamento invejoso para com o rico. Inveja aqueles que têm mais do que ele, inclusive a visão. Parece não ter ainda elaborado sua perda. Identifica-se com os mais miseráveis, com aqueles que têm menos recursos. Sua percepção visual é nula, talvez por isso se identifique com os miseráveis. Expressa confusão verbal entre amor e adulação, ato falho que parece refletir seu sentimento de que a cegueira signifique também a impossibilidade de ser amado.
Informações do examinando sobre o procedimento de d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei interessante; acho que as estórias estão boas.
Não tá não? desenhar não achei difícil, porque você imagina como é o desenho. Assim o sol é amarelo, a gaivota é preta...
Análise das impressões sobre o d-e:
também aqui
Gabriel volta a reafirmar sua postura, viver de memórias, único caminho que antevê como possibilidade de vida.
Análise dos desenhos: seus desenhos expressam claramente imagem mental visual, reforçando a expressão verbal de que agora só lhe resta a possibilidade de viver de memórias.
Considerando que Gabriel perdeu a visão há apenas 2 anos, é compreensível que suas imagens mentais ainda apresentem um colorido fundamentalmente visual. Todavia, sua constante solicitação da visão do examinador para a confirmação de seus desenhos revela desqualificação de suas percepções na ausência da visão e falta de clareza sobre suas possibilidades e capacidades na nova situação de vida.
Síntese do caso:
Gabriel parece estar ainda sob o impacto do acidente que lhe causou a cegueira, não tendo ainda elaborado sua perda.
Sua fala denota uma negação maníaca, que parece refletir um discurso aprendido.
Parece sentir a cegueira como morte e total incapacidade, como se tivesse vivido antes, mas agora só lhe resta o recordar.
Em núcleos mais profundos, o acidente parece ter concretizado seu conflito nodal entre os instintos de vida e morte.
A atuação deste, eminentemente destrutiva, não favorece sua integração ao ego, o que possibilitaria a utilização do instinto de morte de forma construtiva (Freud, 1949, o id e o ego, 1923).
Seus recursos defensivos parecem estar muito empenhados em reprimir sua raiva, seu ódio e sua inveja.
Para alcançar esta repressão, estabelece uma dicotomia entre o bem e o mal, o antes e o agora, o rico e o pobre, o poderoso e o miserável, identificando-se com os mais fracos, e só assim se permitindo dar vazão ao seu ódio.
Demonstra ter forças de ego, mas não se sente preparado para enfrentar a perda e vivenciar esta angústia.
Seus recursos de ego parecem estar sendo utilizados para fabricar defesas, e as ajudas recebidas sugerem estar indo mais numa linha de reforçar suas defesas do que de lhe oferecer espaço para a elaboração da perda visual.
Caso 14
Dario é um jovem de 22 anos, solteiro, branco, natural de Santa
Fé do Sul, SP.
Terminou o 2° grau em 1988 e iniciou há pouco o processo de reabilitação. Seu pai é vigilante de uma firma e sua mãe não trabalha fora. Diz ter percepção de claro/escuro desde o nascimento, não informa a causa.
Estudou em sala de recursos de escola estadual, próxima a sua casa, procurou a instituição de reabilitação para aprender a locomover-se sozinho.
Quer ser empregado e pretende fazer faculdade de fisioterapia. Dario fala com naturalidade de suas dificuldades e objetivos de vida. Parece possuir uma auto-imagem realista, diz não ser calmo nem muito nervoso (”sou mais ou menos” [sic]), e conhecer seus limites.
Coloca-se no grupo dos deficientes visuais, falando por meio deles.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 14.1
Verbalização: desenho não sei fazer.
O que vou fazer? não sei. Pode ser figura geométrica? (faz várias figuras em silêncio; depois de fazer o desenho do canto inferior esquerdo, diz:) - a senhora sabe o que é isso? - sei. - o que é? - uma figura humana (sorri, demonstrando satisfação).
Era uma vez um menino que pegou uma espada e queria atravessar o sol com ela; ele tinha uma espada e uma cruz.
Queria atravessar o sol, ele foi, não sei como, atravessar o sol. Esse menino gostava muito de figura geométrica. Chegando lá, encontrou um professor, que começou a ensinar tudo para ele sobre essas figuras.
Ele ficou bastante tempo lá e aprendeu, só que aqui na terra não tinha ninguém que conseguia ensinar coisas para ele.
Aí ele voltou à terra e mostrou que tinha força de vontade para aprender essas coisas.
Inquérito: - por que a espada e a cruz? - a espada, se tivesse uma luta ele conseguia vencer; e a cruz, ele tinha muito medo de coisa ruim e achava que com a cruz podia se ver livre disso. - ele gostava de figuras geométricas? - ele queria aprender e não conseguia aqui, ninguém podia ensinar.
O sol era como uma figura geométrica, então ele achava que quem vive além do sol sabia sobre figuras geométricas e tinha capacidade para ensinar a ele. - quanto tempo ficou? - ficou bastante tempo, e depois voltou para a terra.
Título: muito além do sol.
Interpretação: muito simbólico; na fantasia pôde encontrar espaço para sua curiosidade sobre uma melhor compreensão do mundo, inclusive a respeito da sexualidade.
Coloca de forma clara a consciência de uma diferença entre o mundo dos cegos e dos videntes e a dificuldade de comunicação entre eles.
Revela força egóica com traços de onipotência e de persecutoriedade. Simbolicamente, parece estar falando da sexualidade e do conflito edipiano.
Figura 14.2 (faz os traços e acompanha com os dedos.)
Verbalização: - tinha um cachorro onde ele morava, na selva, bosque, floresta, tinha uma montanha bem alta, um pico mesmo.
Lá em cima morava um lobo. A mãe do cachorro dizia para ele não ir lá, porque o prato que o lobo mais gostava era cachorro novo.
Um dia os pais saíram para procurar alimento, e ele disse: ”estou sozinho mesmo, vou sair”.
Ele foi, e um dia quando estava lá em cima viu o lobo. Ele quis fugir, se escondeu, fugiu, mas não conseguiu.
O lobo pegou ele e prendeu. Quando os pais chegaram, os irmãos falaram que ele tinha ido à montanha.
Os pais ficaram preocupados e foram lá com os amigos dele para tentar salvar. Ele estava preso na gaiola e eles conseguiram salvar e trouxeram para casa.
Ele nunca mais quis subir na montanha para ver o que tinha lá.
Inquérito: - por que ele queria subir? - para ver o que tinha lá, ele nunca tinha ido na montanha grande. - o que ele viu lá? - o lobo, que logo prendeu ele.
Não comeu, só prendeu.
Título: a vontade do lobo.
Interpretação: curiosidade pelo desconhecido, e mesmo que este lhe seja descrito como perigoso, ele o enfrenta.
Faz uma cisão e fica muito afoito. Suas angústias são colocadas nos pais. Ele fica com a coragem e os pais com a prudência.
Sua luta pela independência é um pouco fantástica, parece não ter conseguido integrar suas forças com as exigências da realidade.
Figura 14.3
Verbalização: se eu soubesse desenhar, faria um sobre a política atual (desenha em silêncio).
O Lula e o Collor. É um debate político e um dos repórteres que estão fazendo a entrevista pergunta para o
Lula sobre o plano de governo com relação ao emprego.
Ele respondeu: ”vou tentar dar melhores salários, e toda a segurança a eles, auxílio à saúde, médico e dentista, não só para ele como também à família”.
A mesma para o Collor, que respondeu que ia dar vale-refeição de graça, transporte sem cobrar nada, tudo gratuito.
Outra pergunta sobre a saúde. Lula disse que a saúde estava muito precária e se ele fosse presidente ia construir um posto em cada bairro para atender às crianças, os adultos e as pessoas de idade. O
Collor dizia que ele também ia dar toda a atenção à saúde. Outra pergunta sobre a inflação.
Ele falou que ia tentar fazer igual a países europeus, Itália, Portugal e França.
O outro respondeu que isto é impossível porque lá é quase 0. Ele disse que ia fazer congelamento.
O Collor disse que isso era impossível, mas que ele ia tentar segurar a inflação.
Aí terminou o debate.
Inquérito: - quem falou sobre a inflação? - o
Lula.
- qual o fim da estória? - aí o lula teve tempo para falar e disse: ”espero que tenham consciência em quem votar.” - e depois? - depois o
Lula deu a opinião, e o Collor também deu, depois eles foram embora.
Título: debate político.
Interpretação: parece uma cisão em que está falando de seus conflitos e da direção da escolha entre duas posturas, ou ele enfrenta ou ele se submete, ou ele escolhe receber o peixe ou aprende a pescar.
Essas condições, todavia, parecem não estar muito claras e bem-definidas, fazendo supor mais uma busca e uma tentativa de integração, que no momento mais se assemelham a uma confusão do que a uma real integração.
Figura 14.4
Verbalização: ih! não sei mais o que eu faço (pega um lápis aleatoriamente e faz traços fortes).
Não sei o que eu faço (começa a desenhar em silêncio). Tinha um menino que gostava de jogar bola na rua, a mãe tinha medo que o carro pegasse ele.
Ele teimava e ia. Um dia, ele estava jogando bola e um carro atropelou ele. Aí o mesmo motorista pegou ele e levou no hospital, socorreu ele.
Ele não tinha nenhum documento, aí um colega contou para a mãe, ela foi procurar no pronto socorro mais perto e encontrou ele lá.
Ele estava muito mal. E precisou amputar uma perna. Ele ficou lá meses. Além de perder a perna, ficou entre a vida e a morte.
Aí ele saiu, mas a perna não teve mais jeito. Um dia ele estava na cadeira de rodas e viu os colegas jogando bola e falou para a mãe: ”se eu tivesse obedecido a senhora nada disso teria acontecido para mim”.
Inquérito: - ele não viu o carro? - não deu tempo de ver; às vezes, quando um carro pega, ele vê, mas, sei lá, não teve jeito.
Título: o triste jogo de futebol.
Interpretação: uma triste imprudência, a dificuldade de levar em conta as exigências da realidade.
Parece haver uma cisão entre o princípio do prazer e o da realidade. O princípio da realidade é colocado na mãe, não conseguindo ainda integrá-lo.
O conflito entre o crescer para a independência ou permanecer protegido pela mãe parece tão intenso, há tanto investimento da libido, que na sua fantasia a tentativa de sair é castigada e reprimida por uma força externa, a impossibilidade de locomoção.
Figura 14.5 (desenha em silêncio)
Verbalização: - tinha um casal, o homem gostava de gato e a mulher não.
Um dia ele encontrou na rua um gato e trouxe. Cuidava dele, dava comida, mas a mulher não gostava, ela odiava gato.
Um dia o homem foi trabalhar e ela falou: ”vou dar um fim nesse gato”. Aí ela matou e enterrou no quintal.
Quando o marido chegou e perguntou, ela falou que ele tinha fugido. Depois de uns dias, começaram a acontecer coisas na casa e com ela, ela começou a ter visões e ficou louca, abalada.
Aí o marido levou no psiquiatra, mas ele não conseguiu descobrir o que era. Cada dia ela ficava pior. Um dia o marido estava dormindo, ela pegou o machado e cortou a cabeça dele.
Os vizinhos foram ver e encontraram o marido morto. Chamaram a polícia e não prenderam ela porque estava louca.
Aí ela começou a piorar e internaram ela. Queria se matar, mas no hospital não deixaram.
Aí ela teve um outro sonho e aí o gato apareceu e disse que enquanto ela não se matasse ele não sossegava.
Aí ela contou tudo para a enfermeira, ela levou ela no centro espírita; lá, tiraram essa coisa dela.
Ela ficou boa e nunca mais teve nada. Só que perdeu o marido dela.
Inquérito: - estava acontecendo coisas na casa? coisas sobrenaturais, do outro mundo. - que coisas aconteciam? - tinha pesadelos, sonhos à noite, visões.
- que visões ela tinha? - do gato mesmo; ela via o gato morto perto dela, às vezes via o gato vivo. - por que cortou a cabeça do marido? deu uma coisa na cabeça dela.
Era o gato que estava fazendo isso com ela - por quê? - porque ela não gostava do gato e matou ele.
Título: gato destrói lar.
Interpretação: também aqui acontece a cisão e a confusão: a mulher fica com seus aspectos bons, mas que são também influenciados pelo mal que vem de fora, e o marido fica com os aspectos maus, mas que também podem ser bons.
Rege-se infantilmente pela lei de talião. Fala ainda de sua dificuldade em aceitar as relações afetivas, não tolera as ligações afetivas, precisa desfazê-las.
Parece estar sendo fortemente impulsionado pelo instinto de morte, o que o impede de integrar seus recursos e utilizar sua energia de forma construtiva.
Informações do paciente sobre o procedimento de desenhos-estórias:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - gostei; só não gosto do desenho, da estória eu gosto.
- por que não gosta? - acho que é costume, não é que não gosto, eu não sei. Mas achei boa a experiência.
Gosto de contar e escrever estórias.
Análise das impressões sobre o d-e:
fala de sua preferência pela expressão verbal, salientando o desconforto pelo desenho, devido à ausência de contato anterior com esta experiência, levando-o a um autoconceito de incapacidade para expressão gráfica, que é desmistificado pelos desenhos realizados.
Análise dos desenhos: seus desenhos são esquemáticos, revelando uma preocupação em se adequar ao mundo vidente, procurando uma solução intermediária entre a representação gráfica visual e tátil-cinestésica.
Sua ocupação do espaço é algumas vezes confusa, notadamente no primeiro desenho, mas em outros momentos mostra-se bem adequada.
É notável a colocação de algumas figuras de cabeça para baixo.
Síntese do caso:
Dario é um jovem que revela bons dispositivos reacionais e força egóica, mostra aceitação e compreensão realista de suas limitações, nos indica sua percepção da existência de ”dois mundos” claramente definidos, e a dificuldade de integração entre eles.
As diferenças entre o mundo dos cegos e dos videntes, já salientadas por outros sujeitos, parecem se constituir como um problema básico para os sujeitos cegos.
Por outro lado, o conflito básico de Dario parece centrar-se em sua dificuldade para integrar no ego o instinto de morte, levando-a a uma cisão de suas pulsões de amor e ódio e projeção da agressividade com conseqüentes sentimentos persecutórios.
Esses mecanismos dificultam seu desenvolvimento afetivo-emocional e tornam a luta entre dependência e independência central e sem solução.
Caso 15
Célia é uma jovem de 19 anos, branca, solteira, natural de Mira Estrela,
SP, que está sendo alfabetizada no processo de reabilitação.
Informa que de um olho nunca enxergou e que com o olho esquerdo percebe luz e claridade, tendo enxergado um pouco até os 12 anos.
Seu problema visual é catarata com degeneração da retina. Diz que seu pai é ”caminhoneiro, maquinista, lavrador” (sic), e que sua mãe não trabalha. É a segunda filha, tem uma irmã mais velha e dois irmãos mais novos.
Está em São Paulo desde Fevereiro, na casa de uma tia, para participar do processo de reabilitação, ao qual se refere com satisfação.
Diz estar gostando porque está ”descobrindo coisas que pode fazer que nem imaginava que podia”.
Na entrevista, Célia fala de si de forma espontânea, mostra-se comunicativa, descrevendo-se como pessoa ativa que gosta de companhia.
Fala de sua deficiência e das relações familiares de maneira natural, relata incompatibilidade com uma irmã identificada com o pai, o que parece refletir um possível deslocamento da situação conflitiva.
O pai em sua fala é apontado como ausente.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 15.1
Verbalização: - o que vou fazer? - o que você quiser. - não tem régua? senão vai sair toda torta.
Queria fazer uma casinha. Agora uma estória? ai, me dá uma idéia. Só sei que quando era pequena gostava muito de desenhar, vivia desenhando, sempre fazia uma casinha, colocava uma plantinha do lado, um coqueiro.
Eu sempre gostei de desenhar; quando perdi a visão não tinha como fazer. Não sei o que falar.
Eu nunca fui boa em contar estórias. - o que você desenhava quando pequena? - Árvores, plantas, casinha, ia colocando chuva, sol, tentava desenhar o rosto de alguém que eu imaginava... (desenha) - uma casinha, uma planta do lado, um sol e um coqueiro. Uma casa no sítio, no interior.
Inquérito: - como assim? - É que eu gosto muito de sítio, sempre vou lá, ou, quando ficava cansada de ficar em casa, ia para a casa de minha irmã. É onde me sinto bem; acho que o verde e as plantas é o que eu gosto. - gosta de plantas? - gosto de plantas, sol, chuva, rio, acho que é a natureza que me encanta.
Título: pode ser ”pedaço da minha vida”, porque gosto de tudo isso, e de tudo o que aconteceu ficam saudades.
Interpretação: muita exigência para consigo própria, talvez muito medo dos próprios impulsos, que parecem escapar de seu controle.
A perda visual é sentida como um impedimento para a realização de atividades prazerosas.
Refere-se ao antes e ao depois, a um pedaço da vida que deixou saudades. O movimento de crescer parece estar exigindo muito dela.
Fala que as coisas de que gosta estão à distância, como se o apego afetivo e o investimento da libido também tenham ficado no passado.
Figura 15.2 (desenha em silêncio)
Verbalização: - tá bom? você é quem sabe. - um pássaro, uma árvore, sol e uma serra. - agora com o desenho à sua frente conte uma estória. - aí que é o problema.
Tá difícil. Só consigo me lembrar de quando eu ficava sentada debaixo de uma árvore, olhando os pássaros voar e a serra.
Eu acho legal o pessoal que fica escalando montanha, sempre gostei de subir em morro, serra.
E o sol faz parte de qualquer aventura fora de casa. Falei que gosto de pássaro porque ele é livre, e eu gosto de liberdade.
Acho que é só.
Inquérito: - você ficava olhando os pássaros? - ficava olhando e queria estar no lugar deles, voando.
Eu não podia andar sozinha, então ficava imaginando como seria legal voar; eu estava embaixo com tanto espaço e não tinha como andar sozinha. - sempre gostou de subir? - sempre gostei...
De subir em árvore, em muro... - por quê? - não sei, acho que gosto de altura, tenho medo, mas gosto. - tem medo? - quando enxergava um pouco, não tinha muito medo; agora tenho medo de cair, de não ver onde estou pisando e cair. - o sol faz parte de aventura fora de casa? - porque se estiver chovendo nem tem como, eu gosto de tomar sol.
Se for uma aventura num sítio, tem que ficar dentro de casa.
Título: - será que liberdade fica bom? É que estou sabendo como estou falando, mas não sei como está ficando. É como quando estou escrevendo: sei o que estou falando, mas não sei como fica no papel.
Interpretação: reminiscência saudosa do passado, época em que enxergava. Está reclamando de sua perda, como se essa lhe tivesse tolhido a liberdade e a possibilidade de controle.
Mas a liberdade parece estar também em não ficar só no presente, poder circular no passado.
Fala do que desejou, e quando fala da memória fala do desejo de que agora só houvesse coisas agradáveis, não houvesse a chuva, só o sol.
Parece não haver aceitação de seus limites, há muita autoexigência, o que a deixa amedrontada. Admira as pessoas que enfrentam as dificuldades, mas se refere a isto como uma condição inatingível.
Parece estar falando também do bloqueio de sua sexualidade, relacionado à perda da visão.
Figura 15.3
Verbalização: - acho que dá para entender... Está muito mal-desenhado.
Um parquinho infantil. Uma roda, não sei como chama. Uma roda, um monte de crianças e ela vai rodando.
Aqui a gangorra, não sei se é 3 ou 6 de cada lado. Aqui balança, saiu bem torto. É que eu passei a maior parte da minha infância nesse parquinho. É um parquinho bem simples, mas eu passava o dia todo lá.
Inquérito: - o que acontecia lá? - deixa eu ver, ai faz tanto tempo. Lá eu brigava com as amigas ou fazia amizade.
Sempre que eu tinha algum problema - brigava com a minha irmã, sei lá -, corria para lá, ficava bastante tempo, depois quando tinha esquecido o que eu não tinha gostado, voltava.
Aqui tentei fazer a balança, mas como não saiu como eu queria, eu risquei. - você passava o dia todo lá? - a maior parte do tempo, minha mãe não gostava, mas quando ela ia trabalhar, eu fugia e ia pra lá, eu ficava com minha irmã, ela ia me procurar lá. - por que sua mãe não gostava? - ela não gostava que eu ficasse muito tempo fora de casa.
Ela tinha medo - porque tinha umas meninas maiores que eu -, que me machucassem, que eu caísse.
Tinha um brinquedo que era como uma escada, a gente ia subindo e tinha um ferro no meio.
Vou tentar desenhar (faz o desenho na parte inferior da folha). A gente ia subindo, mas era perigoso, se soltasse a mão, podia quebrar o pescoço, minha mãe tinha medo; como eu gostava de altura, ficava só lá em cima. - você gostava de ficar mais lá? em casa ficavam só minha irmã e meu irmão; eu gostava de ficar onde ficava bastante gente.
Título: - acho que ”refúgio”, né?
Interpretação: neste ainda permanece no passado, o que parece estar refletindo um mecanismo de fuga, descrito por
Célia como usual desde a infância.
Parece comunicativa, gosta de interagir, mas fala como as pessoas idosas, que se prendem ao passado sem esperanças num futuro.
Ao mesmo tempo, descreve uma situação muito infantil e imatura. Revela também muitos simbolismos sexuais, expressos principalmente pelo movimento: a gangorra, a balança, o trepa-trepa com ferro no meio.
Talvez, esteja vendo a sexualidade infantil menos perigosa que a de hoje. Há uma projeção agressiva que parece ter sido favorecida pela mãe.
O perigo vem de fora, e ela fica só com o bom, o que a impede de integrar ao ego as pulsões agressivas de modo a utilizá-las de forma construtiva. Isto a faz sentir-se frágil e amedrontada.
Figura 15.4
Verbalização: - o que vou desenhar hoje? não faço a mínima idéia.
Pode ser uma igreja? (desenha em silêncio.) agora a estória? - não estou conseguindo sentir, me ajude senão eu não consigo. - você pode começar falando do desenho que está à sua frente. - a igreja, um canteiro, outro, um banco e outro canteiro.
Não sou boa desenhista não. Os clientes que estão fazendo isso estão achando difícil como eu? o que me lembra essa igreja? É uma igreja simples, de uma cidade pequena, onde no final de semana o povo se encontrava. - e depois? - ah! não estou conseguindo.
A gente ia ficando mais amigo, ia conhecendo mais pessoas. Lá não tinha outra diversão e uma era a igreja, onde acontecia casamento, as grandes festas.
Passei minha infância lá. - o que é isto? (desenho ao lado da igreja). - aqui é a torre da igreja - torre? - porque ela tem umas janelas e uns desenhos.
Quando era pequena, ficava brincando na primeira janela, ficava subindo naquela janelinha. Nessa torre tem um relógio que informa a hora a cada 15 minutos. - você não é boa desenhista? - não sei, gosto de desenhar, mas o mais difícil é colocar no papel.
Se eu vejo um desenho, eu sei copiar, mas tirar da minha cabeça é muito difícil, o mesmo que contar estórias. - É uma igreja simples? - É simples pelo que tem as outras, combina com a cidade, que é pequena e simples. - lá não tinha diversão? - só tinha salão para brincadeira dançante, tinha o estádio pequeno e tem uma pracinha agora.
As diversões eram: quermesse do colégio e da igreja. Sempre que vou lá fico lembrando das coisas que aconteceram.
Até agora.
Título: lembranças.
Interpretação: parece estar ficando amedrontada com a competição. A exigência consigo mesma é tão grande que dificulta seu desenvolvimento.
Aqui aparece de forma mais explícita sua dificuldade quando se coloca no presente.
A dificuldade é de tal monta que retorna ao passado. Lembra o mecanismo do idoso.
Há uma tentativa de falar do presente, mas neste fala de sua dificuldade em expressar seus sentimentos e impulsos mais profundos.
Talvez a dificuldade seja colocar o momento atual, de desesperança, medo, descrença na vida, e impossibilidade de enfrentar o novo e o desconhecido.
Talvez seu problema maior seja o medo de crescer e se desenvolver, ligado ao medo do impulso sexual.
Figuras 15.5a e 15.5b
Verbalização: - ai, meu deus. Agora é que não sei mesmo.
Estas estórias têm que ser alguma coisa do meu passado? porque a única coisa que me vem a cabeça é um caminhão (traçado muito leve, fala rouca, parece estar com medo).
Não estou entendendo mais nada, não é assim que eu queria (ofereço outra folha, faz outro desenho).
Esse caminhão está tão feio, saiu mais ou menos. É a estória do meu pai. Um caminhoneiro que deixou a família em casa.
Teria que ser uma máquina de esteira, mas fiz um caminhão. Ele saiu de casa, deixou minha mãe em casa com 3 ou 4 filhos pequenos.
Ele foi trabalhar com máquina de esteira e ficou fora 7 anos. Depois ele foi trabalhar como caminhoneiro e crescemos sem ele.
Ele ia visitar a família de 15 em 15 dias ou passava meses sem ir em casa. Depois ele voltou para casa; agora está tudo bem.
Esse traço é uma barraca no meio do mato e a distância é muito longe de casa, de onde ele ficava.
O traço é para separar. Ele voltou para casa depois de muito tempo que ficou longe.
Ele recomeçou a vida em casa e está tudo bem.
Inquérito: - você disse 3 ou 4 filhos? - É porque minha irmã casou neste tempo, então eu não contei ela; mas naquele tempo ela era solteira.
Agora não sei mais. - ele recomeçou? - porque quando ele estava fora é como se fosse um estranho.
A gente ficava com medo dele porque era tudo pequeno e ele parecia um parente que vinha visitar a família.
Acho que é só.
Título: - recomeço, né? interpretação: parece dizer da dificuldade na elaboração do Édipo causada pela situação familiar. Célia parece vislumbrar que sua dificuldade de desenvolvimento ocorreu porque o ápice da resolução edipiana não foi favorecido pelas circunstâncias externas.
Essa volta ao passado parece também indicar o ponto em que ficou represada a libido, e o porquê.
A imaturidade sexual parece ter-se tornado o ponto central, sua angústia nodal.
Informações do examinando sobre o d-e:
- o que você achou de fazer desenhos e contar estórias? – achei legal, mas um pouco difícil, porque eu gosto de desenhar mas não consigo criar.
Dá muito trabalho: quando vou desenhar, dá um branco na minha cabeça e não consigo criar.
Depois que fiquei cega, nunca tentei; achei a prancha legal porque dá para sentir.
Eu fazia desenho no chão, na terra.
Análise das impressões sobre o d-e:
também aqui coloca sua dificuldade em expressar seus sentimentos mais profundos e sua contenção, que percebe como uma condição bloqueadora de seu desenvolvimento e criatividade.
Novamente, a cegueira aparece como o elemento desencadeador de seu processo, mas de uma forma tão explícita que sugere ser uma defesa.
Análise dos desenhos: sua representação gráfica revela uma representação predominantemente visual, por uma visualização mantida da época em que possuía alguma visão (informa ter enxergado um pouco até os 12 anos), expressando, também graficamente, sua fixação na infância e rejeição à cegueira.
A rejeição do 1° desenho da 5ª unidade de produção parece demonstrar, também para este sujeito, um ato falho.
Rejeita o desenho que se assemelha a um tanque de guerra e foi colocado num movimento da esquerda para a direita, saindo de si para fora, o que a angustiou, revelando seu medo de expressar seus impulsos agressivos, colocados durante todo o processo de forma indireta.
Substitui este desenho por um caminhão na direção inversa, da direita para a esquerda, expressando uma volta para si.
Síntese do caso: Célia é uma jovem que demonstra estar muito contida, com medo de expressar seus sentimentos e impulsos.
Revela extrema exigência consigo própria, o que dificulta seu desenvolvimento. Parece estar muito presa ao passado, mostrando-se ansiosa e temerosa de expressar-se no presente.
Vive de lembranças prazerosas, como se fosse impossível qualquer prazer no momento atual.
Há uma grande imaturidade sexual, indicando uma ausência da resolução do conflito edipiano, que parece se constituir como a angústia nodal desta paciente.
A perda visual parece ter-se constituído como um fator complicador para a resolução deste problema, e está sendo encarada por
Célia como a condição fundamental de seus problemas.
Esta sua defesa parece ter sido reforçada pela mãe, que a protege, e tem também uma percepção de cegueira como incapacitante.
Caso 16
Carolina é uma jovem de 16 anos, branca, natural de
São Paulo, que cursa a 2ª série do 2° grau.
Seu pai é bancário e sua mãe não trabalha fora. Sua acuidade visual é nula devido à retinite aguda ocorrida após caxumba quando tinha 4 anos de idade. É a filha mais velha e tem dois irmãos menores.
Descreve-se como uma adolescente normal, com dificuldades para definir sua opção profissional.
Na entrevista, se utiliza muito da negativa, fazendo supor o uso de defesa pela negação.
Procura dar a impressão de que a cegueira não trouxe qualquer diferença à sua vida, por ser muito nova quando perdeu a visão, considerando as crianças isentas de traumatismos, como se só os adultos pudessem sentir perdas e sofrer com elas. Parece estar sempre procurando corresponder a expectativas ideais. Aparecem alguns componentes maníacos para encobrir a angústia de que tem uma inabilidade, uma deficiência.
Mostra-se bastante cooperativa para a realização do d-e, há interesse e disposição, todavia mesmo aqui demonstra uma atitude heróica, dizendo-se sempre pronta para fazer qualquer coisa que possa reverter em um bem para as pessoas cegas.
Procedimento de desenhos-estórias
Figura 16.1 (quando peço o desenho, fica um tempo pensando no que fazer.
Pede o lápis azul, faz o céu; pede o verde, e faz as plantas; pede o marrom, e faz a casa, começando pela parede, depois o telhado; aí pede novamente o azul, e faz a porta e a janela.
Desenha acompanhando com o tato os traços; dá a impressão de que está representando uma idéia definida.
Peço a estória).
Verbalização: - como assim? - como você quiser. - mas precisa ser em relação ao desenho? - como você quiser. (demora um tempo.) - ah...
E agora?... Como assim inventar uma estória? bem. Uma estória de alguém que era um ídolo, e como ídolo era ao mesmo tempo adorado e odiado.
Houve muitas tentativas de assassinato desse ídolo. Ele não vivia mais a vida dele.
Assim, simula seu assassinato e vai morar em uma ilha onde ninguém fica sabendo se ele ainda está vivo.
Inquérito: - como acaba a estória? - aí ele fica nessa ilha muitos anos e acaba...
Porque nem a própria família sabia que ele estava lá; aí ele morre lá e ninguém fica sabendo, e quando alguém vai lá e encontra ele, já estava morto há muitos anos. - ele era ao mesmo tempo adorado e odiado? - os ídolos geralmente são assim. Acho que pelo fato de serem tão adorados algumas pessoas acabam odiando. Acho que por inveja, por tanta influência que ele tem. - o que ele achava disso? - no começo ele gostava, era uma coisa super-boa, ele era cantor, compositor; no começo era super-bem gratificante, mas depois, quando começou essa outra parte que as pessoas começaram a querer prejudicar, ele não gostou.
E depois, sendo ídolo, ele tinha que pensar muito sobre o que falava e fazia, porque sendo ídolo as pessoas acabavam fazendo igual. - ele simula o assassinato? - ele provocou, um dia que estava sozinho em casa, um incêndio e colocou qualquer corpo de alguém que já estava morto, aí não dava para reconhecer. - nem a família sabia? porque acabou ficando cansado e queria abandonar tudo, ficar sozinho.
Título: o sentido da vida
Interpretação: estória muito bem-elaborada, revelando raciocínio muito lógico e bom nível intelectual.
Apresenta uma auto-imagem supervalorizada, que, todavia, não satisfaz suas necessidades e desejos.
Sente-se representando um papel, o que está matando sua própria natureza e espontaneidade.
Parece não se permitir sua própria expressão. Há também a idéia de que não existe saída para essa situação, apenas a fuga.
A família compactua com essa exigência e a fica alimentando, por isso o desejo de se afastar desta também.
Há um grande peso da responsabilidade. O incêndio poderia significar também a purificação.
A satisfação obtida com o papel de ídolo, que alimenta seu amor-próprio, não é compensadora pelo peso da responsabilidade.
O sentimento de inveja, projetado nos outros, parece relacionar-se a um profundo sentimento de inadequação ligado à cegueira.
O fato de ser cega parece obrigá-la a representar o papel de ídolo.
Figura 16.2 (pede o lápis azul, depois o rosa, depois o amarelo.)
Verbalização: - a estória de uma menina que vivia assim...
Pensava que tudo o que acontecia era em função dela, era uma estória como se ela fosse a personagem principal.
Assim por exemplo, ela convivia com muitas pessoas, mas só fisicamente, porque ela vivia sozinha, porque tudo o que acontecia ela transformava como queria e considerava essa vida como a real e a vida normal, os estudos, amigos e parentes não tinham importância, só proporcionavam o princípio desta vida dela.
As coisas que aconteciam ela não contava para os amigos, só para os animais e objetos, porque eles iam falar alguma coisa mas ela não ouvia, porque não lhe interessava a opinião de ninguém.
Aí ela viveu assim e quando começou a trabalhar ela entrou para a política, e continuava com esse mesmo pensamento, não tão radical, mas era. Ela começou a administrar e subiu e conseguiu ser prefeita de uma cidade, e aí os projetos que realizava, não fazia exatamente o que a cidade...
Como vou dizer..., ela começou a considerar que esta cidade não fazia parte do país, era isolada.
Aí ela não controlava nada, as obras fazia algumas, mas só estava como prefeita, não administrava. Deixou na anarquia; no começo houve um grande choque, mas depois cada um começou a fazer a sua parte e se tornou a cidade mais importante do mundo.
Inquérito: - ela não controlava nada? - É, ela não mandava, deixou tudo assim, ela entrou só para deixar a cidade sem administração. - como acabou a estória? - acabou o tempo dela, ela saiu e não colocaram mais administradores na cidade.
Ela começou a fazer mais relação entre essas duas vidas. Ela não considerava essa vida real porque não estava certa. Ela achava que uns mandavam nos outros e as pessoas acabavam não fazendo o que queriam, elas viviam em função da sociedade. - era a personagem principal? - ela achava que na vida todos eram personagem principal de sua vida, não como acontecia que alguns eram personagens principais para todos.
Título: vidas paralelas
Inquérito: - me explique o desenho. - eu fiz uma coisa super-indefinida, sem sentido e sem lógica, mas não é coisa ruim.
A linha amarela é a vida indefinida, mas por mais que ignorasse a vida real ela existia e dava origem a essa outra vida dela.
Interpretação: fantasias de onipotência, sente que tudo o que acontece é de sua responsabilidade, e isto pode ser tanto para o bem como para o mal.
Conflito entre a vida de fantasia e a realidade. Sente as vantagens e as desvantagens da ausência de contato e comunicação efetiva com outras pessoas; sente-se ameaçada, está muito isolada, mas sente que se der uma mínima abertura poderá ser invadida.
Mostra claramente a cisão entre a espontaneidade e a racionalização. Defesa maníaca? certo desprezo pela opinião e desejo dos outros.
Por outro lado, mostra força de realização e idéia de que há um impulso interno que a leva à realização plena, o que possibilita a integração.
Figura 16.3 (demora para iniciar o trabalho, pede lápis azul, desenha na parte inferior esquerda da folha, pede o marrom, novamente o azul...
Amarelo... Laranja).
Verbalização: - estória de... Ah, tinha uma menina que sempre queria, tinha muita amizade com um dos primos dela e conversava bastante com ele, mas quando ela gostava de alguém e pedia alguma ajuda, ele dava um jeito de não ajudar.
Ela nunca tinha reparado nisso, mas depois começou a reparar e começou a pensar que esse primo sempre procurava atrapalhar qualquer namoro dela.
Ela então pensava que era por causa de ciúmes de primo. Aí, tinha um amigo que era dos dois, e aí ele também percebeu que sempre que ela se interessava por alguém ela ia namorar, mas depois não conseguia. - como assim? - ela não queria mais.
Então, conversando com o amigo dos dois percebeu que gostava do primo, mas aí não podiam ficar juntos, porque a família não ia deixar.
O primo sabia que ela era adotada, mas ela não sabia e ele não podia contar para ela.
Aí esse amigo que era dos dois percebeu que ela estava gostando do primo e contou que ela era adotada.
Aí ela descobriu e ficaram juntos.
Título: caíram todas as barreiras
Inquérito: - não podiam ficar juntos? - a família não ia deixar, acho que por preconceito; a sociedade é que impõe esse preconceito. - qual? - de namorar parente.
- o que ela achava? - ela achava que não tinha nada a ver esse preconceito, principalmente porque estava gostando dele. - e ele? - ele estava confuso. - era adotada? - É. - o que ela achou quando soube? - não achou nada; aceitou normalmente porque a família tratava ela bem, e entendeu que não falaram para não se sentir rejeitada.
Interpretação: fantasia adolescente de um amor impossível que se resolve magicamente.
Resquício de conflito edipiano não resolvido satisfatoriamente? deslocamento tardio do Édipo para o primo? a cegueira seria responsável pelo atraso no despertar da sexualidade? sexualidade muito viva, que a está assustando.
Fantasia infantil de não pertencer a esta família, aí servindo à satisfação de um desejo, como descreve
Freud nos romances familiares (1909). Parece confusa em relação aos sentimentos do primo.
É muito esclarecida, porém fala em preconceitos e não em problemas genéticos; parece se impedir de ter conhecimento científico a respeito de casamentos consangüíneos.
Procura se defender de sentimentos de rejeição, utilizando a linguagem na forma negativa. Percebe se expondo muito no procedimento de d-e - ”caíram todas as barreiras”.
Figura 16.4 (pede lápis, começa pelo lado de cima direito da folha).
Verbalização: - a estória tinha um cara que quando pequeno durante muito tempo foi filho único, e depois de muito tempo teve um irmão.
Teve ciúmes, o que seria normal, mas esse ciúme cresceu muito. Ele cresceu, estudou, tinha várias mulheres, mas não se apegava a ninguém, só pensava em dinheiro e em subir politicamente e economicamente.
Na política, era corrupto e uma vez descobriram o que ele fez e foi processado e condenado.
A sua pena não foi tão dura quanto ele devia receber em relação ao que tinha feito.
Depois veio a saber que o juiz era um filho que ele tinha tido e não sabia. Aí ele conversa com esse filho e se arrepende, conta tudo, mas o filho já sabia. O filho o desculpa, ele vai ser preso mas se suicida porque se arrependeu muito do que tinha feito.
Título: a pena é dada pela vida.
Inquérito: - tinha muito ciúme? - ele tinha um ciúme que seria normal, mas começou a ficar grave porque ele tinha problemas psicológicos. - a pena dele não foi tão dura? - porque o filho quando ficou sabendo que era ele ficou com muita pena e embora fosse muito sério, inconscientemente não conseguiu separar as coisas.
O desenho é uma pirâmide; ele era muito importante, tinha dinheiro, e como ele agia me lembra uma pirâmide grande que apesar de parecer determinada é sustentada por praticamente nada.
Interpretação: há um sentido de oposição a si própria, talvez tenha ficado assustada em se expor tão intensamente na unidade de produção anterior. Mostra também nesta a expansão da sexualidade, a escada, o ato sexual, a excitação, todavia a sexualidade está muito misturada, é uma sexualidade imatura e voraz.
Também neste mostra a cisão entre a aparência e a realidade, entre o poder e a fragilidade. O receber significa muita fragilidade, não consegue receber, e sente sua grande necessidade de receber.
Figura 16.5 (pede lápis verde e marrom).
Verbalização: - estória de uma cidade que estava localizada numa ilha, vivia separadamente, mas era grande.
Essa ilha tinha muita floresta, mas começou a se desenvolver e se industrializar e começaram a tirar as florestas sem se preocupar.
Se desenvolveu muito e acabaram com toda a floresta. Como não tinha outra por perto que pudesse ajudar, as pessoas começaram a morrer e precisaram abandonar a ilha.
Tentaram recuperar, mas não foi possível. Com isso, o resto do mundo começou...
As pessoas da ilha se organizaram e começaram a mostrar para todos e assim o resto do mundo começou a preservar as florestas.
Título: o homem é considerado o principal da natureza, mas não é considerado desvinculado dela.
Interpretação: procura ficar no realismo. Fala da ilha devastada, que está se acabando; isto é como se sente. É o seu interior, que para florescer precisa de ajuda.
Percebe-se com problemas psicológicos, sentese muito só. Parece um pedido de ajuda.
Todavia, se volta, como na primeira prancha, para dentro do esperado, fala de coisas do momento.
Informações do examinando sobre o d-e: - agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - desenhos eu não costumo fazer, mas eu gosto.
Estória eu gosto bastante, principalmente sabendo que tem uma função. - achou complicado? - não, é fácil desenhar com este material; o difícil é achar um tema, tanto para o desenho como para a estória.
Análise das impressões sobre o d-e: expressa novamente neste momento sua necessidade de ser heroína e competente, voltando para um comportamento defendido.
Percebeu com clareza que o d-e a conduziu a um contato com seu eu profundo, sua fragilidade, seu pedido de ajuda.
Todavia ao solicitarmos sua reflexão sobre o procedimento de desenhos-estórias, retorna com presteza ao seu comportamento racionalizado.
Análise dos desenhos: seus desenhos são predominantemente visuais; o uso de cores adequadas nas figuras mostra uma preocupação em se mostrar em tudo igual aos videntes.
Parece possuir grande capacidade de visualização e se utilizar com freqüência de imagens mentais visuais. Isto demonstra que crianças que perdem a visão antes dos cinco anos são capazes de reter memórias visuais úteis, ao contrário do afirmado por muitos especialistas (Lowenfeld, 1950,
Shallow, 1976).
Por outro lado, o significado simbólico dos desenhos (Freud, 1910, el simbolismo en el sueño) é concordante com o significado das estórias relatadas.
Síntese do caso: uma jovem que revela muito bom nível intelectual, mas que se sente constantemente representando um papel.
Parece que a condição de cegueira, a qual nega qualquer significado, estrutura sua vida, obrigando-a a ser um exemplo.
O peso desta responsabilidade a impede de viver sua vida espontaneamente. Seus sentimentos de medo, amor, ciúmes, inveja, raiva, são sempre projetados e vistos como fraqueza.
Aparecem, entretanto um grande sentimento de isolamento e de fragilidade interna, e um desejo de experimentar a espontaneidade e a expressão livre de seus impulsos.
Há uma sexualidade que está se expandindo, mas é temida e imatura. Parece se perceber com problemas psicológicos e pedir ajuda. A perda da visão de forma traumática aos 4 anos de idade, provável fase de solução do complexo edipiano, e a reação dos pais ante o problema não possibilitaram à
Carolina lamentar-se por sua perda, exigindo uma precoce conformação ao papel de heroína, que amargura sua vida e a impede de um ajustamento saudável a esta situação.
Caso 17
José é um jovem de 17 anos, branco, natural de são José do Rio
Preto, SP, sem escolaridade e em processo de reabilitação.
O pai, já falecido, era pedreiro e a mãe, costureira. Diz que atualmente só vê claridade, mas que até os 13 anos ”enxergava forte”; aponta como causa a catarata congênita. É o 4° filho de uma família de 8 irmãos.
Quando José tinha 5 anos, a família retornou a Pernambuco, onde ficaram até 1987, voltando após a morte do pai.
Relata uma situação de vida pobre, carente e carregada de dificuldades e doenças.
Parece responsabilizar o pai pelas dificuldades da família e por sua deficiência visual.
Paralelamente, se descreve como uma criança cheia de vida e esperança, e agora se vê como bloqueado.
Diz ter enxergado até os 13 anos, mas suas referências ao problema visual e procura de médicos revelam contradição.
Sua atitude ante a cegueira não fica clara, mas parece senti-la corno fato determinante em sua vida.
Está iniciando um programa de reabilitação no qual coloca muita esperança, descrevendo como a coisa mais importante que aconteceu em sua vida.
Procedimento de desenhos-estórias
Figuras 17.1a e 17.1b
Verbalização: - não sei fazer desenho. (pega um lápis ao acaso.) - eu não sei fazer. - você pode fazer qualquer coisa. (faz um traço muito fraco, mostro que assim ele não conseguirá perceber o relevo.
Faz mais forte.) - ih! fiz errado... (faz outro traço.) - eu errei...
(ofereço outra folha, diz que não precisa, que pode fazer no centro; insisto, troca a folha.) - fiz errado de novo, não sei fazer desenho não. (troco novamente a folha, faz o desenho acompanhando o traçado com o dedo.) - queria fazer uma casa; errei de lugar de novo. (diz após ter terminado o desenho.
Peço a estória.) - também estória não sei contar, fiz uma casa mas não saiu boa. (faz o sol, flores, continua desenhando e parece muito interessado no que faz.) - desenhei uma casa com as plantas e o sol (pega outro lápis e volta a desenhar), a nuvem querendo chover e o sol chegando para espantar a nuvem (pega outro lápis). - ah! não sei...
A dona da casa está aqui dentro querendo pôr roupa para secar e a chuva não deixa; depois o sol chega para espantar a nuvem para poder secar a roupa...
A mulher põe a roupa para secar, seca, ela tira do varal, põe para dentro para passar a ferro pra ela vestir.
Inquérito: - ela vai vestir a roupa? - ah! ela vai sair, passear. - passear? - ela vai no mercado fazer compras. - e depois? - depois ela chega, põe a compra em casa e vai passear.
Aonde ela vai? - ela vai para o cinema, encontrar o namorado, se casa e vai ser feliz.
Título: - É difícil... É difícil achar um nome para a estória, não acho um nome certo... ”Cristina encontra o parceiro ideal”.
Interpretação: revela muita insegurança, não confia em suas produções, é muito crítico.
Há conflito entre o instinto de vida e o instinto de morte. Há a nuvem, mas o sol chegando para espantar a destruição.
O sol permite a vida. Vê a vida apenas por meio das necessidades básicas; todavia, aparecém alguma esperança e prazer.
Há uma fantasia de realização saudável.
Figuras 17.2a e 17.2b
Verbalização: - outro? eu não sei fazer direito. (pega um lápis ao acaso.) - errei... (troca a folha.) - eu não sei desenhar uma pessoa.
Aqui o carro, uma família vai passear em outra cidade, aqui o homem vai levar o carro, furam os pneus e atrasa a viagem.
Quando ele arruma os pneus, acaba a gasolina. Ele chega na casa de noite, aí leva uma bronca do patrão, explica o motivo.
Quando sai com a família, no outro dia há um acidente, todo o mundo morre. Ele escapa, aí vai para o hospital e se recupera.
A família, os parentes, culpam ele de ter matado as pessoas. Tentam pôr ele na cadeia, mas não conseguem.
Ele prova que foi outro carro que jogou ele no barranco, aí é solto.
Inquérito: - ele explica o que aconteceu? - o patrão pede desculpas. - o que ele acha do patrão dar bronca? - ele acha ruim. - acham que ele tinha culpa? - culpam ele de ter jogado o carro de propósito. - por quê? - porque ele voltou sozinho, ele tinha escapado.
- o que ele sente? - fica chateado de ter morrido todo mundo e do pessoal culpar ele.
Título: família Vieira morre por causa de um acidente.
Interpretação: forte agressividade e destrutividade. Há uma predominância de morte. Em todos os seus movimentos sente-se impedido e tolhido.
Está muito carregado de morte, parece haver muita inveja e raiva misturada com culpa.
Há todavia um pouco de esperança, se salva e consegue se defender. O carro é desenhado no sentido da direita para a esquerda, como uma volta sobre si mesmo, em que encontra a destruição.
Figura 17.3 (pega um lápis ao acaso e desenha em silêncio, utiliza o tato para a percepção dos traços que faz, quebra a ponta do lápis.)
Verbalização: - quebrei, acho que apertei muito.
(desenha dando a impressão de que procura expressar uma idéia clara, sabe o que quer fazer. Traça o retângulo, faz a porta e a janela e começa a traçar paralelas, de cima para baixo, e da esquerda para a direita, faz os outros desenhos, trabalha muito lentamente, mas parece bastante interessado, leva quarenta minutos para fazer o desenho.) - aqui é um edifício, foi comprado pelo dono desse carro, ele vai levando a família que está dentro do ônibus.
Eles vão para o apartamento. Aqui é a casa do vizinho que é invejoso. Ele queria o apartamento, o edifício, e não conseguiu, então comprou a casa para poder ficar enchendo o saco do dono do edifício.
Aqui a chuva está caindo na casa dele e no edifício não; como ele era invejoso, queria que a chuva caísse no apartamento para estragar, mas só caiu na casa dele (faz outro desenho no canto inferior direito); aqui era uma represa, ele não conseguiu estragar o apartamento, vai tentar derrubar o carro aqui dentro, não consegue derrubar o carro (faz outro desenho); aqui é um fio de alta tensão, vai tentar jogar esse fio no homem, ele não consegue, o carro passa e vem para o edifício com a família.
Ele tenta sabotar tudo, mas não consegue, nada que ele faz dá certo. Então fica louco e aí se mata com uma corda.
Inquérito: - por que ele tinha inveja? - porque o outro era mais inteligente e sabia fazer negócios, ele não: tudo o que ele fazia dava errado. - como eles se conheciam? - eram colegas de trabalho; como ele não consegue fazer negócios igual ao outro, sente inveja.
Título: Marcos Vieira não conseguiu tirar o colega do caminho, por isto morreu no suicídio por causa da loucura e da ambição.
Interpretação: realizado em outro dia, faz os desenhos com determinação, dando a impressão de que sabe claramente o que quer expressar; aparenta inclusive uma postura diferente.
Nesta unidade, aparece claramente toda a sua inveja e a destrutividade que esta acarreta.
Conhece bem a inveja, há muita destrutividade, que é buscada com determinação; todavia, a inveja se volta contra ele e o destrói.
Possui auto-imagem muito negativa e o sentimento de nunca conseguir o que deseja, mas em tudo vê-se que a inveja o paralisa.
Figura 17.4 (pega lápis ao acaso, começa a desenhar no centro da folha).
Verbalização: - são dois homens que querem derrubar as árvores para construir casa, aqui o caminhão.
O dono do caminhão não quer deixar, vai avisar a polícia que estão fazendo desmatamento, devastando a área.
A área é do governo e não pode. Ele vai chamar a polícia e os homens querem matar ele. Ele vai chamar a polícia, eles vêm e prendem eles.
Eles põem advogado para soltar os empregados que é para continuar o trabalho. Eles voltam a trabalhar de novo derrubando as árvores para construir.
Aí eles matam o caminhoneiro e se apossam do caminhão. Aí a família do caminhoneiro descobre o trabalho clandestino deles e volta a chamar a polícia.
Eles põem documento falso, enganam os policiais e constroem.
Inquérito: - e daí? - a família do caminhoneiro tenta pôr eles na cadeia, mas não consegue, são pobres. Agora o nome, né? tÍtulo: caminhoneiro morto por ter descoberto trabalho clandestino.
Interpretação: neste apresenta claramente o conflito que está vivendo: de um lado a presença da vida, as árvores e a tentativa de protegê-las; e do outro lado,a destruição e a morte.
Conflito entre Eros e Tanatos; todavia, até o momento parece que as forças desagregadoras estão vencendo.
A parte que quer preservar a vida não tem chance, é pobre e fraca, e vai por água abaixo com a obstinação da outra.
A parte invejosa não mede conseqüências e esforços, e com sua obstinação consegue vencer.
Vê-se a utilização de um tema atual para expressar um conflito interno.
Informações do examinando sobre o d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - achei bom tentar fazer o que não sabia.
Tentei e consegui. - você não sabia? - É que antes tentava fazer e não dava certo. - por quê? - não sei, acho que o material ajudou.
De contar estórias achei bom também.
Análise das impressões sobre o d-e:
percebe o d-e como facilitador de experiências que nunca se havia permitido antes, e que lhe mostra o caminho da competência.
Talvez a possibilidade de contato com seus aspectos destrutivos de forma simbólica lhe deu a dimensão de uma possibilidade de controle e uso destes impulsos construtivamente pelo ego.
Análise dos desenhos: bastante inseguro no início para desenhar, mostra com o decorrer da tarefa muito boa capacidade de realização gráfica, com a representação de cenas compostas que expressam com clareza o que deseja.
As duas tentativas iniciais do d-1, rejeitadas, podem ser consideradas como atos falhos na representação gráfica.
A 1ª unidade de produção parece se caracterizar como defesa de sentimentos negativos profundos.
Embora o desenho represente uma cena do cotidiano, o desenho aceito foi o terceiro a ser realizado.
Na 2ª unidade, quando expressa sentimentos agressivos e destrutivos, a expressão gráfica é um carro, desenho rejeitado pelo sujeito ao fazer as duas primeiras tentativas da primeira expressão gráfica.
No 2° desenho, o carro é feito no sentido da direita para a esquerda, como se estivesse voltando-o contra si e se destruindo.
Os desenhos revelam uma predominância da casa, uma auto-representação muito centrada em si mesmo. Pode-se observar, todavia, por meio da expressão gráfica, uma tentativa de integração de experiências visuais e.
Táteis-cinestésicas. A representação figurativa parece visual, mas a orientação espacial sugere experiência tátil-cinestésica, obedecendo principalmente a relações de proximidade, mais do que de perspectiva.
Devemos nos recordar que o cliente se refere a alguma visão até os 13 anos.
Síntese do caso: José é um adolescente, que revela intenso conflito entre
Eros e Tanatos, entre as pulsões de vida e morte.
No início do procedimento aparece com intensidade sua insegurança, sentimento de minus-valia e autocrítica.
Nestes momentos, aparecem com maior ênfase os impulsos de vida e esperança (o sol que chega para espantar as nuvens), mas as realizações e satisfações são pobres.
No decorrer do procedimento de desenhos-estórias vão aparecendo cada vez mais claramente sentimentos invejosos, com intensa carga agressiva, que parece o estar destruindo e impedindo suas realizações.
Em momento algum, há clara referência à cegueira; todavia, seus sentimentos de incapacidade e minusvalia, geradores da inveja, parecem originar-se de sua deficiência visual, comparada à incapacidade e incompetência.
Caso 18
Tânia é uma jovem de 18 anos, solteira, parda, natural de Saúde, Bahia.
Tem o 1° grau completo, e está iniciando o processo de reabilitação. Sua mãe é faxineira e seu pai pedreiro.
Vieram para São Paulo quando Tânia era pequena. É a filha mais velha, tem uma irmã de 7 anos, seus pais perderam dois filhos depois dela.
Sua acuidade visual é nula; perdeu a visão com 1 ano e 8 meses por sarampo. Em sua entrevista, parece nos querer mostrar um lado alegre, comunicativo e expressivo.
Utiliza-se muito da negação para afirmar que não tem problemas e que a deficiência em nada altera sua vida.
Nega a realidade e a transforma. Procura transmitir a idéia de que possui uma ótima relação com sua família, mas paralelamente diz não poder estudar porque sua mãe não tem tempo para levá-la à escola, e que ficou interna em uma instituição para cegos por 10 anos. Este fato, descoberto pela entrevista com a paciente, nos levou a desconsiderar os resultados deste sujeito quando da integração dos dados da pesquisa.
Procedimento de desenhos-estórias
Figuras 18.1a e 18.1b
Verbalização: - vai sair torto. (faz traço leve, peço para fazer mais forte.) - ah! vai ficar um triângulo, que droga...
Tá bom, chega. (faz o traçado de forma desinteressada, vira a prancha, peço uma estória.) - ah! se for referente a esse desenho não tem sentido. A única coisa que posso imaginar é forma geométrica, o resto não dá para imaginar nada. (suspira e pensa algum tempo, bate o lápis na folha, bate os dedos na mesa.) - seu nome, qual é mesmo? (digo meu nome.) - ah! vou tentar fazer um boneco; não sei desenhar nada; é incrível, quase saiu um coração, né? (procura fazer o desenho se preocupando com seu desempenho; procura ver do outro lado da folha.) - tentei fazer uma casa e um coração, não sei se saiu.
Eu imagino uma menina na porta de sua casa, esperando seu príncipe ela está com o coração banhado em lágrimas esperando o seu amor que um dia se foi. - o que ela está sentindo? - desprezo; ao mesmo tempo esperança. - por quê? - por ter sido abandonada, e esperança por saber que aquele não é o único e que algum dia pode encontrar sua outra metade. - o coração está banhado em lágrimas? - um coração deprimente que ela esconde e não quer falar para ninguém.
Coração é uma coisa diferente da própria cabeça da menina. - como vai acabar? acho que pode demorar muito tempo, mas um dia ela pode encontrar seu príncipe, que não tem cavalo branco e a leva para o altar, como em todo conto de fadas.
Título: jovem à procura de um amor.
Interpretação: vira a prancha para desenhar, expressando sentimento de oposição ao ambiente, insegurança e medo de se expor; sentimento de oposição também aparece em sua atitude, que parece dizer ao examinador que não quer realizar o procedimento, mas não o expressa livremente. Aparecem neste primeiro momento a desesperança e a esperança. Procura não demonstrar sua tristeza e depressão.
Procura expressar sentimentos contrários àqueles que experimenta. Parece temer a expressão de seus sentimentos.
Utiliza-se da racionalização para esconder seus sentimentos. (coração é coisa diferente da própria cabeça da menina.) por outro lado, parece possuir força de vida e esperança e há a procura de uma relação de vida mais saudável.
Figura 18.2
Verbalização: - ah, não sei, não sei fazer outro, e tenho compromissos...
Eu não dou para desenhos.(apresenta resistência, dizendo não saber desenhar, mas não se nega a fazer desenhos.) - saiu bonito? - o que você acha? - não, o que sei de desenho nunca é bom, a minha maneira de me produzir é outra. - como assim? - quando estou inspirada, fico sentada num canto sozinha e fico escrevendo.
Vou fazer a minha mão. (põe a mão sobre a folha e passa o lápis em volta.) - É uma mão pedindo ajuda, pedindo conforto, pedindo abrigo, não tem no que se desenvolver.
Uma mão fazendo caridade, acolhendo a criança, qualquer coisa assim.
Inquérito: - pedindo ajuda? numa hora de precisão, de uma pessoa pobre, precisão de alimentos, que não tem onde morar. - conforto? - amparo, palavra amiga, muitas vezes a gente precisa e não tem a quem recorrer. - como assim? - acho que quando a gente está sofrendo, num beco sem saída, entre a cruz e a espada, pede um conselho para não cair no mau caminho. - está sofrendo por quê? - tantos motivos, né? - beco sem saída? - você decidiu gostar de duas coisas, por exemplo, gostar de alguém que está no mau caminho.
Talvez esse meu jeito de pensar não seja exatamente para outras pessoas.
Título: - acho que é: ”a atual realidade”, não sei se é o que está acontecendo hoje em dia.
Interpretação: demonstra sentimento de grande desamparo e necessidade de ajuda.
Há o desejo de alguém que lhe dê conselhos e amizade. Parece não contar com a família, sentindo-se muito só.
Ela intuiu que está se colocando muito nesta estória, e se projeta nas duas direções; pede ajuda e faz para os outros coisas que na realidade deseja.
Coloca-se toda na estória, é uma parte sua, é a sua estória, a partir do desenho de sua mão.
Figura 18.3
Verbalização: - por que cego desenhar? acho impossível porque ele não tem uma projeção.
Que horas são agora? (tinha marcado às 10 horas e me atrasei 10 minutos para atendê-la.) - minha unha está tão grande que posso desenhar com ela mesmo.
Não tem nada a ver. Eu quis desenhar uma garrafa, isto representa o que está acontecendo agora, esses viciados em drogas.
Quis desenhar uma garrafa bem pequena, bem abaixo do nosso mundo, queria dizer não às drogas.
Inquérito: - bem abaixo? - uma coisa que a gente devia ser contra. - como assim? - porque uma pessoa viciada não fica lúcida, fica comparada a um bicho, é dessas coisas que provém a violência e é por isso que devem colocá-la bem abaixo, bem inferior a nós. - isto não tem nada a ver? - disse que não tem nada a ver porque não tem um modelo de garrafa.
Acho que a gente devia desenhar com compasso. - por quê? para ficar mais nítido, mais correto. - acha que não está correto? - não.
Não ficou bonita; nunca soube que a gente podia conhecer cego pelo desenho. Aquela que eu ia, era para contar estórias; eu nunca precisei de psicóloga, graças a deus, mas eu ia para brincar, lá na escola.
Nunca vi isso, a gente desenhava de compasso e com madeira. Eu nunca soube fazer esse desenho, a gente nunca aprendeu isso, nunca precisou, por isso é que eu não entendo muito esse seu método.
Algum cego consegue fazer alguma coisa aqui? - todos conseguem, assim como você. - engraçado, eu acho que não.
O que tem a ver isso com bengala? porque eu acho que não tem. - parece que você está brava. - não, é que eu gosto de saber o porquê das coisas.
Como termina a estória? não sei, espero que tenha um dia um final feliz e que o povo se conscientize e pare de usar as drogas, começa pelo cigarro.
Espero que se conscientize que não é pelo vício que se encontra uma saída. - como poderia encontrar uma saída? - isso não sei, acho que o meio para sair disso é sair das companhias, porque as pessoas são influenciadas, depois tem que ter vontade própria e admitir que está no erro.
Título: - acho que pode ser ”não às drogas”; um não bem grande.
Interpretação: negação da realidade que não se mantém por muito tempo, mas sem querer escolhe um caminho tortuoso para expressar seus sentimentos negativos.
Está muito ansiosa por uma ajuda, a mínima frustração assume proporções descomunais, e reage agressivamente, violência que ela procura combater.
Teme muito seus impulsos agressivos e procura combatê-los. Revela muita curiosidade em relação a drogas, e formação reativa diante desta.
A oposição ao outro aqui torna-se mais aparente e é expressa verbalmente como oposição ao examinador.
Figura 18.4
Verbalização: - ah! já não posso ir embora? - você é quem sabe. - oh! meu deus, não gosto muito dessas coisas, viu? está ficando um quadrado, nem estou percebendo, oh! não ficou.
Ah, meu deus, como é triste, não fica, não fica bonitinho, é a forma de um balão mesmo.
Ficou feio porque nunca... Fiz uma bandeira do chamado Brasil. A história do
Brasil não precisa nem contar, é um Brasil violento, cheio de políticos que só falam e não fazem nada.
Título: - minha estória vai se chamar ”a esperança de um Brasil melhor”. Só que você não respondeu à minha pergunta. - qual? - o que isso tem a ver com aprender a andar? esta é uma forma para se conhecer as pessoas. - ah!
Inquérito: - não precisa contar a estória? - não é que não precisa, todo o mundo já sabe como está representado.
Acho que precisa mudar muitas coisas.
- o quê? - a começar pelos políticos. O collor já está começando. As crianças estão abandonadas, é preciso que os pais das crianças se conscientizem mais.
Há muita criança abandonada. É preciso mudar tudo isto. É certo que há coisas boas, não há greve; falta melhorar a miséria desse país, que é muita. É um
Brasil violento em criminalidade geral contra as crianças, mulheres e chefes de família.
Violência, matança, assalto. Notícia má na TV é que não falta. Há discriminação às mulheres, dá até desânimo de ser brasileiro. - discriminação às mulheres? - isto não adianta, porque não vai mudar mesmo.
Tudo o que as mulheres fazem ninguém respeita, acha que lugar de mulher é em casa, ela não é muito respeitada como gente. - como acaba a estória? - acho que vai acabar essa estória toda quando os brasileiros tiverem mais fé, mais humildade, amizade, fraternidade, menos egoísmo.
Quando pararem de pensar em ter três mansões, dez carros e não sei o que mais, enquanto outros estão na miséria. É ter fé em deus, acho que com deus não se brinca, né? interpretação: ela se sente muito inferiorizada, sente que não recebe nada e se revolta.
Projeta sua violência no mundo externo, onde só vê a violência. No conteúdo latente parece estar presente muita raiva de ser cega. A cegueira parece estar permeando tudo, revolta-se julgando ser esta a responsável pelo abandono da família em uma instituição para cegos. Neste momento, sua revolta aparece mais claramente: ela se mostra irritada e crítica, inclusive com o examinador.
Figuras 18.5a e 18.5b
Verbalização: - este é o último? - ah, não estou com cabeça mais, já chega.
Por que será que a gente não gosta e a gente tem que fazer sempre? - você faz se quiser. (continua desenhando.) - virge, estou tentando fazer uma cabeça, não sei, quando não gosto de uma coisa, sempre sai errado. (ofereci para trocar a folha.) posso riscar quatro folhas, não vai sair nada.
Ah, que horror, nunca me pensei fazendo desenho na minha vida. Bem, tentei fazer uma menina.
Ela representa milhões de crianças abandonadas por aí, sem pai, sem mãe, sem ninguém, mas que graças às instituições vivem bem.
Título: - a minha estória vai se chamar ”o menino abandonado”. Me desculpe mas eu sou sincera, não gosto de falsidade; falo logo o que tenho que falar; sei que me prejudica, mas é meu jeito de ser, não posso mudar.
Inquérito: - por que as crianças são abandonadas? muitas vezes isso ocorre porque os casais têm filhos e deixam, jogam pelas ruas, até dentro do lixo e eles acabam em orfanatos, creches.
Muitas pessoas doam, quando têm sorte, porque do jeito que está é até difícil alguém doar. É daí que vêm os assaltos, apesar da gente ver bem vestidinhos assaltando. - nas instituições vivem bem? - não conheço nenhuma, mas creio que sim. - por que os pais abandonaram? - devido às condições, falta de dinheiro, desprezo de família. - desprezo da família? - essas moças que se perdem e depois abandonam pelo desprezo, acho que devido a tudo isso.
Estou cansada, tomar ônibus lotado é fogo.
Interpretação: nesta expressa sua história pessoal; depois de ter podido descarregar sua irritação, sente-se mais livre para se colocar.
Ela sente que foi abandonada e jogada pelos pais; isto desperta nela uma revolta muito grande.
Aqui reaparece grande curiosidade pelo lado sombrio da vida, mas do qual se defende por um discurso moralista.
Informações do examinando sobre o d-e:
- agora gostaria que você me dissesse o que achou de fazer desenhos e contar estórias. - gosto muito de contar estórias, mas fazer desenhos não é comigo. - por quê? - não sei desenhar, talvez se tivesse minha visão seria uma grande desenhista.
Agora, contar estórias é comigo mesmo.
Análise das impressões sobre o d-e:
Tânia parece ter feito uma opção pelo mundo dos cegos, e do lugar destes expressa toda a sua revolta e mágoa.
Sente-se incapaz, como se este fosse um fato inerente à condição de cegueira. Talvez,
Tânia esteja expressando um mecanismo que facilmente se desenvolve em pessoas institucionalizadas, pois, embora
Tânia agora esteja convivendo com sua família, esteve por 10 anos em uma escola especial para cegos.
Análise dos desenhos: seus desenhos são pobres, tendo durante todo o procedimento questionado a possibilidade de o cego desenhar.
Entretanto, suas representações gráficas parecem querer expressar mais uma imagem visual do que tátil-cinestésica.
Prende-se a figuras geométricas e a desenhos, talvez ”aprendidos” na escola. Nota-se, todavia, que os dois desenhos que ficaram mais claros e mais bem elaborados foram aqueles nos quais se colocou melhor.
Parece sentir que a cegueira lhe tirou a possibilidade de ser uma grande pessoa na vida.
Síntese do caso: Tânia é uma jovem que se mostra bastante defendida. Utiliza mecanismos de racionalização, formação reativa e projeção para encobrir seus sentimentos profundos de inadequação e revolta.
Procura demonstrar um lado alegre e comunicativo para encobrir seus sentimentos de impotência diante da cegueira.
Sente-se muito inferiorizada, e muito carente, sente que não recebe nada e se revolta.
Mas sua raiva e agressão são projetadas no mundo externo, onde só vê a violência. A cegueira parece estar permeando todo o seu sentimento de revolta. Por outro lado, nega importância à sua condição física e racionaliza.
Valoriza a vida na instituição para cegos e deseja retornar a ela, porque sente-se muito exigida na vida cotidiana e na relação com pessoas videntes.
Capitulo 6
integração dos dados da pesquisa
Os resultados obtidos por meio do procedimento de desenhos-estórias mostram que o grupo de cegos não se configura como possuidor de características específicas de personalidade, mas revela que a condição de cegueira conduz a problemas comuns, dimensionados e resolvidos de maneiras diferentes pelas pessoas cegas.
Neste capítulo, propusemo-nos a integrar os dados obtidos pelas análises individuais, para alcançar um entendimento global da influência que a ausência de visão pode produzir na organização da personalidade.
Pudemos detectar por estes dados configurações peculiares que nos falam da cegueira como um elemento estruturante da personalidade naqueles com ausência de visão desde os primeiros anos de vida, e condições comuns geradas pela perda da visão naqueles com cegueira adquirida.
Para esta sistematização, foram aglutinados alguns fatores que consideramos significativos na dinâmica da personalidade dos cegos.
Fatores que, interrelacionados a outros, contribuem para organizações de personalidades únicas e individuais.
6.1. A vivência da condição de cegueira congênita ou da adquirida
Um dado que nos chamou a atenção foi a constatação de que a vivência da cegueira, seja ela congênita seja adquirida, se reveste de colorido pessoal, esclarecedor das dificuldades encontradas pelos especialistas em suas tentativas de classificação.
Observa-se que entre os sujeitos que se consideram possuidores de cegueira congênita há os que, embora sendo portadores de uma causa congenitamente determinada (catarata ou glaucoma), possuíram alguma visão durante determinado período de suas vidas, que influenciou e serviu na sua apreensão do mundo externo.
O uso da visão e sua importância na constituição de seu mundo interno puderam ser constatados pelas configurações visuais que se evidenciaram em suas expressões gráficas.
Por exemplo, Joana, caso 2, em seu 1° desenho faz uma árvore de Natal, um pinheiro com características visuais;
Carlos, caso 9, desenha carro e casa com detalhes visuais; e José, caso 17, expressa pelo desenho representações figurativas visuais dentro de uma organização espacial que sugere uma aproximação tátil-cinestésica com espaço, falando-nos de uma integração de duas formas de apreensão do mundo externo.
Por outro lado, sujeitos que perderam sua visão nos primeiros anos de vida (1 ano e 6 meses e 1 ano e 8 meses) se identificaram como possuidores de cegueira adquirida.
Nos casos 1 e 18, a cegueira foi subitamente causada por uma condição adquirida sarampo e tumor da hipófise - e provavelmente assim vivenciada pelos sujeitos, embora a percepção visual pouco tenha contribuído para a organização do seu mundo interno, o que se evidencia pela pobreza de imagens visuais em suas expressões gráficas.
É interessante observar também os casos que denominaram sua perda como sendo de nascença, e não congênita.
Os casos 10, 11, e 12 sofreram perda visual por retinopatia da prematuridade. Dizer que a sua perda é de nascença revela, sem dúvida, precisão lingüística, mas creio que é também um dado fundamental à sua constituição psíquica.
Estes sujeitos parecem nos dizer que em sua origem foram sadios e perfeitos e que a sua cegueira foi um acidente; enquanto aqueles que se dizem com cegueira congênita, mesmo tendo possuído alguma visão no início da vida, parecem considerar a deficiência um dado inerente à sua constituição. Notamos naqueles que se denominaram cegos de nascimento que a cegueira não é sentida como uma incapacidade insuperável, em contraposição a um intenso sentimento de minus-valia daqueles que se dizem com cegueira congênita.
Dos casos que se classificaram como de cegueira adquirida, notamos que três deles revelaram pelo d-e características próprias da perda: caso 13, caso 15 e caso 16.
O caso 5, mesmo não revelando sentimentos de perda, revelou uma dinâmica pulsional semelhante aos anteriores.
O caso 16, embora informe que perdeu sua visão aos 4 anos de idade, mostra pela expressão gráfica uma representação mental fundamentalmente visual, revelando que mesmo em perdas precoces, antes dos 5 anos, é possível a manutenção da memória visual e a construção de imagens transformacionais.
Já o caso 15 se considera com cegueira adquirida, embora informe ter tido catarata congênita e enxergado um pouco do olho esquerdo até os 12 anos, condição que outros sujeitos vivenciaram como cegueira congênita.
Por outro lado, nenhum dos sujeitos se denominou possuidor de cegueira progressiva, embora esta classificação seja encontrada na literatura, e
Barraga (1976) descreva condições peculiares a este grupo.
Estes casos parecem nos dizer que as tentativas de classificação da cegueira pela época de incidência é ainda inconclusiva, talvez por estar a tentativa de classificação ancorada em padrões estabelecidos por aqueles que vêem, desconsiderando a maneira como a perda da visão é vivenciada e experienciada pelo sujeito.
Este parece um elemento de fundamental importância, tanto quanto a ausência de visão fisicamente determinada.
6.2. Pontos nodais da cegueira congênita e da adquirida
Tínhamos o propósito de organizar a integração dos dados considerando os dois grupos propostos na seleção dos sujeitos da pesquisa: os cegos congênitos e os com cegueira adquirida.
Constatamos, todavia, que esta classificação não refletia em sua totalidade a realidade de nossa amostra.
Dois motivos nos levaram a perceber a inexistência de grupos totalmente diferenciados, porque, embora pudéssemos notar a existência de um núcleo claramente definido para dois grupos de forma diferenciada, estes não condiziam com a classificação apontada pelos próprios sujeitos, e, a partir deste foco nodal, encontramos dificuldades, conflitos e sentimentos semelhantes nos dois grupos, que pareciam relacionar-se mais com a ausência da visão do que com a época de sua incidência.
Optamos, então, por uma descrição inicial de dois grupos: os sujeitos que revelaram uma organização de personalidade que se estruturou a partir de uma ausência da percepção visual, e aqueles que apresentaram como nuclear o problema da perda de visão.
Consideramos os primeiros como sendo de cegueira congênita e os outros de cegueira adquirida.
Discutimos, posteriormente, as dificuldades, os conflitos, os sentimentos e os mecanismos egóicos evidenciados por ambos os grupos.
Embora a eleição e discussão isolada de alguns fatores possa parecer uma dissecação anatômica, incompatível com uma visão globalizada do sujeito, ela foi necessária a fim de propiciar uma exposição didática e compreensível da influência da cegueira na estruturação e organização da personalidade.
6.2.1. Os cegos congênitos
Um problema que se evidenciou, e que parece se configurar como uma dificuldade nodal para os sujeitos com cegueira congênita - para aqueles que, embora possuindo alguma visão, apresentaram problemas visuais significativos desde o nascimento, e para aqueles que perderam sua visão nos primeiros anos de vida -, é a explicitação de dois mundos de experiência: o mundo dos cegos e o mundo dos videntes.
Isto foi expresso de diferentes maneiras por vários sujeitos da amostra.
Este duplo universo de experiências propõe aos cegos um complexo e difícil caminho para a integração.
Os cegos congênitos parecem ter que se haver com um processo de tríplice integração: seu mundo interno, o mundo externo experienciado por seu sistema perceptivo, alicerçado em percepções tátil-cinestésicas e auditivas, e o mundo externo experienciado pelos videntes, centrado na percepção visual, do qual participam por um conhecimento obtido verbalmente, mas não vivenciado.
Esta integração, ponto de partida para um saudável desenvolvimento da personalidade, é uma exigência para o caminho da convivência e o que lhes possibilita compartilhar da vida familiar, da aprendizagem em escolas comuns, do mundo do trabalho, enfim, da comunidade como um membro participante.
Esta tríplice integração, paradoxalmente, parece exigir uma definição Clara e uma escolha pelo mundo de experiências do cego, o único que lhes proporciona incorporação de objetos bons, crença e substancialidade ao seu mundo interno.
A dificuldade de integração pode algumas vezes conduzir a problemas de identificação: - quem realmente sou eu? como sou? são questões que orientam a existência de alguns sujeitos, como se a instância conhecida de sua personalidade fosse apenas uma pálida imagem de seu verdadeiro self. É o que nos diz
Joana, caso 2, quando desenha ”a desconhecida” e a descreve como ”uma pessoa que nunca vi, não conheço, nunca cruzei...
E de repente apareceu em minha frente”. Também Lurdes, o caso 8, revela que sua questão básica é como adquirir uma identidade, ao nos dizer: ”como se faz uma casa? eu não sei fazer uma casa”.
Luíza, caso 3, por sua vez, na expectativa de fortalecer sua identidade, faz o caminho para chegar em casa e diz: ”ela não está terminada, ainda estamos construindo”, e a denomina: ”Dificuldades”.
Este problema de identificação algumas vezes conduz os sujeitos cegos a uma total dependência do objeto externo, do qual usufruem e de que retiram sua forma de vida, em vez de investirem em seu mundo interno para encontrar o caminho da auto-realização.
Este processo está claramente expresso por Márcia, caso 12, Clara, caso 8, e Luíza, caso 3.
Carla, o caso 10, expressa com clareza a complexidade desta integração ao expor seu problema nuclear, refletindo com propriedade sobre as vantagens e desvantagens do compartilhamento com pessoas cegas, ou com videntes. ”estou sentindo falta de amigos cegos...
Porque com as pessoas cegas você tem problemas comuns... Mas, ao mesmo tempo, com péssoas videntes você tem outras experiências.”
A dificuldade de integração destes dois universos de experiências é intuída por
Carla, que nos fala também da dificuldade em definir claramente o problema: ”Fui à europa nestas férias, fui para
Londres; lá não é igual ao Brasil, lá as pessoas são muito dedicadas, mas não sei explicar, são diferentes”, quando nos fala de sua dificuldade em compartilhar com diferentes pessoas, e de sua tentativa de integrar e pôr eixos em uma multiplicidade de experiências.
Por outro lado, Elza , o caso 6, embora nos fale de dois mundos referindo-se a uma difícil integração do mundo externo e interno, diz da impossibilidade de participar do mundo vidente, o que a leva a um refúgio no mundo particular de sua fantasia.
Diz: ”de repente começou a achar que o mundo em que ela vivia era chato, as pessoas exigiam muito dela.
E quis encontrar um lugar só para ela”.
Elza, por não ter tido oportunidade de ricas experiências afetivas, sociais e acadêmicas como
Carla, ao sentir a difícil e complexa tarefa de integração destes dois universos de experiência, talvez tenha se refugiado em seu mundo interno, para evitar a angustiante, e para ela impossível, tarefa de integração.
Este caminho parece ter sido também o escolhido por Márcia, caso 12, que descreve com clareza a diferença entre o mundo dos cegos e videntes ao denominar uma de suas estórias de ”planeta esquisito”: ”um planeta esquisito, que tinha um filho esquisito”, cuja esquisitice consistia em ”ler com a palma das mãos”. Para
Márcia, estes dois mundos não são equivalentes, um é o modo certo de ser e o outro é ”esquisito”.
Este sentimento de inadequação aparece algumas vezes relacionado à crença numa impossibilidade de comunicação entre cegos e videntes; é o que nos fala
Antônio , caso 1, ao expressar seu desejo de uma amigável convivência com a diferença: ”um homem, um cão e um gato...
Ele criava o cachorro e o gato na mesma casa, os três se alimentavam do mesmo alimento.
A mesma comida do homem era do cão e do gato”. Dario, caso 14, por sua vez, enfatiza a dificuldade de comunicação entre cegos e videntes referindo-se a dificuldades na transmissão de conceitos e possibilidade de aprendizagem e compreensão do mundo.
Descreve o lugar além do sol para onde seu personagem foi, e diz: ”ele ficou bastante tempo lá e aprendeu, só que aqui na terra não tinha ninguém que conseguia ensinar coisas para ele”.
Este mesmo problema é apontado por Antônio , o caso 1, quando nos fala da diferença entre um conhecimento dado e um experienciado: ”eu não sabia que isso acontecia...
Não é que eu achasse que o carro não ia parar, é que eu não tinha conhecimento de que isso acontecia.
Eu não convivia no meio dos deficientes”.
Luíza, caso 3, expressa a dificuldade de integração de universos diferentes, falando de diferenças entre bairros e pessoas: ’’eu não gosto muito daquele bairro, gosto mais daqui...
Lá tem tipos diferentes de pessoas.” para Joana, caso 2, o desejo de integração é proposto de forma idealizada, ”o
Natal é para comemorarmos...
A união com as pessoas...”, ao mesmo tempo que se queixa de sua impossibilidade de ser como é: ”muitas vezes temos que anular o que queremos pelos outros”.
Este problema nuclear da integração pode algumas vezes dar origem a precoces dificuldades de identificação e integração egóica, concorrendo para graves patologias de desenvolvimento, como os casos 7 e 8, que revelam grande atraso de desenvolvimento, personalidade pobremente organizada, confusa e caótica.
Em outras ocasiões, pode causar danos variáveis na integração, levando os sujeitos cegos a freqüentes mecanismos de cisão e a diferentes níveis de desenvolvimento da personalidade.
6.2.2. A cegueira adquirida
Para os indivíduos com cegueira adquirida, um problema comum identificado por nós como nodal salientou-se nos sujeitos 5, 13, 15 e 16.
Pudemos observar que, para esses sujeitos, a perda é o ponto de partida para a organização de suas vidas, levando ao desenvolvimento de dois mecanismos de defesa: a negação e a cisão.
A perda da visão é vivenciada como uma linha demarcatória entre um antes e um depois, entre viver um presente sofrido ou rememorar uma vida passada fantasticamente colorida; entre viver de lembranças de uma existência anterior plena de vida e uma existência atual carregada de morte.
A cegueira parece se constituir como um elemento desagregador, que intensifica o conflito entre os impulsos de vida e morte, contribuindo para uma cisão entre os objetos bons e maus de seu mundo interno.
Gabriel, caso 13, expressa com clareza este sentimento: a cegueira significa morte e total incapacidade, e a cisão, a defesa por excelência ante essa intensa angústia.
Fala como se tivesse vivido antes, mas agora só lhe resta o recordar. Revela dificuldade em integrar a vida passada e a presente: fala que ”não devemos olhar para trás”, e descreve estórias de situações prazerosas acontecidas antes do acidente que tirou sua visão, em contraposição com a situação atual em que, projetivamente, descreve uma vida de miséria, sofrimento e ódio.
Também para Célia, caso 15, a perda visual é sentida como um impedimento para a realização de atividades prazerosas e liberdade de ação.
Refere-se a um antes e um depois, descrevendo situações felizes que ficaram à distância, como se o investimento libidinal fosse coisa do passado e agora só lhe reste o sofrimento.
Seu discurso se assemelha ao do idoso, que se prende ao já vivido, sem esperanças no futuro.
Em sua tentativa de falar do presente, Célia falha, receosa de colocar o momento atual, de desesperança, medo, descrença na vida e impossibilidade de enfrentar o novo e o desconhecido.
Carolina, por sua vez, segue um caminho diverso dos anteriores devido à precocidade de sua perda: não se refere à vida passada, mas revela o peso da negação da cegueira que a obriga a uma vida dupla. Fala-nos de ”vidas paralelas” ao se referir à vida de fantasia e realidade, mostrando uma
Clara cisão entre a espontaneidade e a racionalização, entre uma vida real e a representação de um papel, e se refere a mudanças radicais como uma tentativa de assumir seu eu profundo, submerso no papel heróico que representa por ser cega.
Diz: ”ele não vivia mais a vida dele. Assim, simula seu assassinato e vai morar em uma ilha onde ninguém fica sabendo se ele ainda está vivo”.
No papel de heroína, encontra a idolatria e a inveja, estabelecendo uma dissociação entre um bem absoluto e um grande mal, cuja única solução é a fuga.
João, caso 5, que descreve sua cegueira como provocada por um acidente aos 5 anos, parece ter renunciado à vida: expressa um mundo interno totalmente esvaziado e impotente, aparenta não possuir energia, fala apenas de necessidades básicas, não demonstrando ambição, curiosidade ou interesse. A única forma encontrada para lidar com o impulso agressivo foi a projeção, que o transforma num ser indefeso sob ameaça persecutória.
Diz ele em sua identificação com a árvore: ”o ser humano maltrata ela, e ela não tem nenhuma defesa.
Eles cortam, derrubam ela”. Por sua vez, a cegueira adquirida é também sentida como uma castração de difícil superação, e por isto freqüentemente negada em si ou em suas limitações.
O mecanismo de negação, utilizado para controlar suas dificuldades ante a angústia da perda, foi usado de forma recorrente pelos sujeitos de nossa amostra.
Algumas vezes, procuram negar importância ao fato, como faz Carolina ao dizer: ”a perda da visão não significou nada para mim, era muito criança”, embora toda a sua vida tenha se estruturado dentro de um plano com o objetivo de provar que a cegueira não é impedimento para o desenvolvimento de uma personalidade exemplar, favorecendo-lhe a opção por uma defesa maníaca que a impede de sentir raiva, ira e desconsolo pelo fato nefasto que ocorreu em sua vida, mas também o prazer de uma expansão pessoal.
Também
Gabriel desenvolve negação maníaca ante a dor, ao sofrimento e a depressão, e se utiliza da negativa para dizer que não sofre com a perda da visão, não se abate pelo infortúnio que o acometeu, e que não vai ficar pensando em tudo o que tinha e perdeu.
6.3. Fatores psicodinâmicos relacionados à condição de cegueira
Outros fatores psíquicos parecem relacionar-se tanto à experiência de não ver e suas conseqüências de natureza perceptivo-cognitiva, como à vivência da cegueira como condição marginalizadora pela diferença e suas fantasias.
Foram identificados alguns fatores emocionais presentes nos dois grupos, independentemente de a cegueira ser congênita ou adventícia, sugerindo a existência de conflitos e sentimentos importantes para a organização dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos.
A relação com o outro, o lugar que ocupa no mundo, a possibilidade de amar e ser amado, e fundamentalmente o desejo de ser aceito como é, parecem se constituir como origem de sentimentos, conflitos, mecanismos e formas de ser, encontrados entre os cegos.
As relações inter-pessoais parecem ser um problema central para todos, apresentando-se, no entanto, em diferentes configurações.
As relações com o outro e com o mundo, fundadas no desejo de ser aceito como é, caminho de verdadeiras trocas afetivas, se constitui como problema básico para todos aqueles que, por serem cegos, são diferentes.
Alguns conflitos, sentimentos e mecanismos mostraram-se prevalentes em suas tentativas para a solução deste problema.
Apresentaremos a seguir uma descrição dos fatores que identificamos como representativos da condição de cegueira.
Dependência/independência
Um conflito expresso por vários sujeitos da amostra nos fala de uma difícil e complexa escolha a que estão expostos os sujeitos cegos.
O conflito entre o crescer ou permanecer pequeno, entre o lançar-se para um desenvolvimento pessoal e independência ou permanecer protegido por uma dependência da figura materna.
Este conflito crucial parece se fundar na constatação de uma necessária dependência ao vidente em ações para nós corriqueiras e banais, como atravessar uma rua, escolher sua própria vestimenta, saber o número do ônibus que se aproxima, se aquele rapaz a está paquerando, reconhecer a ferocidade ou simpatia de um cão à distância...
Este conhecimento imediato e instantâneo do ambiente proporcionado pela visão é fator de suma importância, tanto para a prevenção de perigos e ameaças do mundo externo, como para apreender situações propiciadoras para o investimento pulsional.
Para
Carlos, caso 9, este conflito é prevalente, mostra o desejo de se libertar da proteção materna, mas em sua tentativa fracassa porque o mundo externo está projetivamente cheio de ameaças: ”tinha um menino que morava nesta casa.
Um dia a mãe falou que ele não podia sair... Ele saiu escondido e um homem pegou ele”.
Também Dario, caso 14, nos mostra a intensidade deste conflito ao contar a estória do garoto que, ao desobedecer sua mãe e ir jogar bola com os amigos, é atropelado e fica entre a vida e a morte, precisando amputar suas pernas.
Carla, caso 10, em sua reflexão sobre a convivência com cegos ou videntes, diz: ”na danceteria, por exemplo, você não pode saber se uma pessoa é bonita ou não”.
O conflito dependência/independência parece também dificultar o já complexo caminho para a definição das pulsões de eros e tanatos.
Observa-se entre os sujeitos de nossa amostra a contenção tanto do impulso agressivo quanto da sexualidade.
Muitos revelaram medo de expor seus sentimentos de raiva e ira, como se a expressão de hostilidade pudesse incrementar a já difícil relação entre cegos e videntes, de quem dependem para sua sobrevivência.
Antônio, caso 1, mostra claramente odiar depender de quem o protege e não poder expressar seu ódio, quando nos fala dos carros que param para o cego passar.
Diz: ”mas a bengala não ficou na posição correta, parece mais que ela quer bater no carro”.
A contenção do impulso agressivo algumas vezes os leva à cisão e à projeção deste no mundo externo, criando um círculo vicioso que aumenta as ameaças persecutórias e a defesa por dissociação e projeção agressiva.
Esse mecanismo é expresso por Dario, caso 14, que no conflito sobre a luta pela independência ou acomodação a uma situação protegida - receber o peixe ou aprender a pescar - faz uma cisão entre as pulsões de amor e ódio, projeta a agressividade e vive intensos sentimentos persecutórios, ricamente descritos na estória ”gato destrói lar”.
A sexualidade também é contida, podendo-se notar em alguns uma precária elaboração do complexo edipiano.
Outros a expõe de forma imatura por meio de simbolismos sexuais graficamente expressos em situações infantis.
Antônio, caso 1, e Célia, caso 15, falam de parques infantis com trepa-trepa, gangorra e o pau por onde se escorrega, como se o investimento pulsional só fosse possível na infância.
Em outros, vemos a expressão de um desejo a ser realizado: José, caso 17, na 1ª unidade de produção, fala da jovem que sai para encontrar o namorado, mas, na continuidade do d-e, há sempre uma predominância da morte.
Antônio, caso 1, e Joana, caso 2, falam do desenvolvimento pessoal como uma possibilidade para o encontro de um parceiro, mas de forma idealizada. Para outros, entretanto, este desejo é considerado inatingível, como para
Tânia, por exemplo, que se refere à espera do príncipe encantado. Ou ainda um sonho infantil, como para
Carolina, na descrição do amor pelo primo, resolvido pela fantasia da adoção, descrita por
Freud, nos romances familiares (1909).
Aceitação/negação da cegueira
Outro conflito básico para os sujeitos cegos é a amarga opção entre definir seu lugar no mundo assumindo a cegueira ou negá-la, tentando ser como o vidente para conseguir aceitação.
Optar pelo mundo dos cegos é aceitar ser diferente, é aceitar as dificuldades inerentes ao fato de ser cego num mundo de videntes, é aceitar as limitações implícitas à deficiência além daquelas inerentes ao ser humano, é aceitar a difícil relação com o outro que com freqüência se relacionará primeiro com a cegueira e só depois com a pessoa cega. É, principalmente, aceitar os sentimentos de tristeza e melancolia que acompanham a consciência de que ser cego é ser diferente num mundo vidente.
Este conflito é expresso e resolvido de diferentes maneiras pelos cegos de nossa amostra.
Alguns apoiam-se na diferença e tentam tirar as vantagens que esta lhe oferece.
Márcia, caso 12, organizou sua vida dentro do padrão da diferença: o que vale para os outros não vale para ela, e assim busca a liderança e o controle,.
Conta a estória dos pais que mandaram o filho para um planeta esquisito para ele não perder a esquisitice, e assim não perder o controle.
Para Elza , caso 6, o conflito se coloca nos seguintes termos: na opção pelo mundo dos videntes, sente-se incapaz: ”exigem muito de mim”; na opção pelo mundo dos cegos, sente-se tolhida na possibilidade de identificação e de verdadeiras trocas afetivas; procura, então, uma forma conciliatória e se estriba numa defesa maníaca.
Luíza, caso 3, fala de sua dificuldade em aceitar suas limitações: ”o pessoal não entende e pensa: por que vai à padaria, se tem uma irmã que pode fazer por você?”.
Sente-se lesada por ser cega e considera que os outros deveriam compensá-la por isso: ”tem tipos de pessoas que olham, mas não ajudam, e quando você pede, eles não ajudam”.
A difícil tarefa da aceitação é ricamente descrita por Mariana, caso 11, quando nos conta seu caminho para a integração e identificação por meio do movimento.
Fala da menina que se viu no lago e ficou assustada só se reconhecendo quando fez caretas - um caminho solitário e complexo para a construção da identidade e do autoconceito.
A difícil opção entre a aceitação ou negação da cegueira torna-se maior pela crença, expressa por vários sujeitos, de que o reconhecimento pelos videntes e a conquista de um lugar no mundo perpassa pela obrigação de se conformarem a papéis e padrões ditados pelo mundo dos videntes, estando impedidos de serem como são.
João, caso 5, nos fala da águia que os caçadores não deixam em paz, ”porque querem mudar elas, trazer para o
Zoológico, em vez de deixar ela solta na montanha”.
Elza, caso 6, fala que exigem muito dela, e Joana, caso 2, da necessidade de se anular para ser aceita.
Esta crença leva os cegos a uma grande valorização do natural - ”a arte que o homem não criou” -, como diz
Carla, e a recorrerem com insistência a temas em defesa da ecologia, expressando pela valorização do natural o desejo de serem aceitos como são, e a possibilidade de encontrarem seu lugar no mundo como pessoas cegas.
Sentimentos de desqualificação e insuficiência
Sentimentos de desqualificação e insuficiência, e uma descrença em suas próprias capacidades, expressos tanto por sujeitos com cegueira congênita como adquirida, parecem se constituir como a fonte de uma difícil relação com o outro.
Estes sentimentos expressados e dimensionados diferentemente para os dois grupos da amostra, talvez pela diversidade de origem, mostram-se como sentimentos quase que inerentes à cegueira.
Para os sujeitos com cegueira congênita, um grupo minoritário num mundo de videntes, os dois universos de experiência, que se diferenciam pela qualidade de apreensão do ambiente externo, parece se colocar como se um fosse o certo e o outro errado, uma a percepção eficiente e outra a ineficaz.
Esta crença tende a conduzi-los a inevitáveis sentimentos de desqualificação e insuficiência, demonstrados e dimensionados de diferentes maneiras pelos sujeitos deste estudo.
Os sujeitos com cegueira adquirida, por sua vez, parecem sentir que o aparelho perceptivo que agora possuem não é suficientemente bom e capaz de apreensão correta do ambiente externo.
A nostálgica lembrança dos recursos visuais leva-os à descrença em suas percepções e a conseqüente descrédito e desqualificação de suas próprias apreensões e produções.
A desqualificação de suas produções pode ser observada por expressões como: ”ah! ficou tão feio... Ah! vou deixar assim”, diz
Joana, caso 2; ou: ”uma melancia em cima do balcão, que horror... é mais ou menos, não está bem uma melancia”, fala
Mariana, caso 11, mesmo revelando crença em sua competência e um mundo interno pleno de bons objetos; ou como diz
José, caso 17: ”fiz uma casa, mas não saiu boa”, embora revele uma inesperada habilidade para desenhar. Outros revelam este sentimento falando de um objeto ausente, de uma condição de insuficiência que não conseguem superar, como
Antônio , caso 1, que, ao relatar a ”luta pela sobrevivência”, diz: ”aqui uma máquina e um homem trabalhando.
Só que não consegui trazer o pé dele até aqui”.
Estes sentimentos são algumas vezes acompanhados de grande impotência e incapacidade, como pode ser observado na seguinte fala de
Alberto, caso 4: ”vamos ver o que eu faço agora.
Vou ver se consigo fazer um triângulo. Fiz errado aqui, nem aqui consegui fazer o triângulo”; e de
João, caso 5: ”fiz alguma coisa que parece uma estrela.
Estória é difícil inventar, porque não tenho nada em mente para montar uma estória...”.
Já Márcia, caso 12, por um mecanismo de transformação em contrário, conta a estória de sucesso daquele cachorro que se torna famoso, mas o título é: ”o cachorro que não servia para nada”. Em outros, este sentimento aparece relacionado a uma descrença e desqualificação de suas percepções.
Carla, caso 10, uma lutadora adolescente em sua busca de integração de dois mundos de experiência, não confia em suas percepções e em seu modo de conhecer o ambiente externo.
Diz: ”aqui é outra coisa que tenho curiosidade de conhecer: seria o mar, montes de ondas, ficar mergulhando.
Fiz um peixe que não ficou parecido...”, como se a impossibilidade de apreensão visual dos objetos levasse ao desconhecimento, sentimento que a deixa triste e deprimida.
Gabriel, caso 13, durante todo o procedimento, nos mostra a descrença em sua capacidade de perceber, solicitando contínua ajuda da visão do examinador para a confirmação de seus desenhos.
Diz: ”saiu uma montanha? ficou o mar, o sol e as gaivotas?”; e José, caso 17, nos fala de uma insuficiência generalizada ao dizer: ”porque o outro era mais inteligente e sabia fazer negócios, e ele não: tudo o que ele fazia dava errado”.
Outros ainda expressam o sentimento de incapacidade, qualificando seus personagens como muito pobres. ”este moleque sempre queria ganhar um skate, mas o pai dele era muito pobre e a mãe também”, diz
Carlos, caso 9; e ”aí chegou o dia das mães, só que eles eram muito pobres”; é a fala de
Elza , caso 6, que, pela sua desqualificação, considera-se incapaz de dar coisas de valor.
José, caso 17, identificando pobreza com impotência, diz: ”a família do caminhoneiro tenta pôr eles na cadeia, mas não consegue, são pobres”.
Solidão e isolamento
Outros sentimentos que pudemos notar com freqüência entre esses sujeitos foram a solidão e o isolamento, algumas vezes relacionados a uma luta para conseguir aceitação.
Uma luta solitária que, talvez por isso, se revista de persecutoriedade.
Este sentimento parece derivar da sensação de que a relação com o outro é sempre perturbada pela constatação da diferença e a certeza de que não possuem um lugar próprio no mundo.
Seu mundo interno é freqüentemente povoado por idéias de luta para a conquista desse lugar que sentem que lhes é negado.
A cegueira, tornando-os diferentes, parece contribuir para a impossibilidade de relação efetiva e afetiva entre cegos e videntes, levando alguns deles a desistir de um compartilhamento com os videntes.
Luíza, caso 3, nos fala de sua competitiva opção pelo mundo dos cegos: ”a gente criou uma associação de deficientes... Estamos batalhando contra essas barreiras... É realmente isto que estamos procurando: a integração na sociedade, que eles vejam a gente como pessoa normal”.
Outros, nessa difícil relação com o outro, se isolam e revelam um intenso sentimento de solidão.
Elza, caso 6, não encontrando o caminho de trocas afetivas, se isola num mundo imaginário: ”uma pessoa que está sozinha num lugar deserto...
Lugar que ela mesma escolheu”, mas esse isolamento a angustia: ”ela percebeu que não era isso que queria. Era muito chato ficar sozinha”. Mas a dificuldade dessa tarefa parece crescer pela crença de que a relação com o outro a obrigue a uma anulação e perda de contato com seus objetos de amor e prazer...
”mas, sozinha, ela começa a ficar alegre, porque na imaginação pode fazer o que quiser...
Ela cria o mundo imaginário, porque não está encontrando jeito de sair”. Também
Mariana, caso 11, embora revele um ego forte, personalidade rica e criativa, e uma grande capacidade de reparação, mostra solidão e isolamento.
Todas as suas estórias falam de personagens solitários que contam apenas com suas próprias forças para dimensionarem seu valor pessoal.
Mariana parece acreditar que só conseguirá o afeto que a tire da solidão ao se mostrar hábil e competente.
A 2ª unidade de produção nos mostra a sua solidão: ”uma praia deserta, o entardecer, o peixe mergulhando”.
Tânia, caso 18: embora o fato de ter ficado em instituição para cegos inscreva outras variáveis em sua dinâmica, demonstra solidão e desamparo diante de questões íntimas difíceis de resolver, e nos desenha a sua mão: ”É uma mão pedindo ajuda, pedindo conforto, pedindo abrigo”. Também
Lurdes, caso 8, mostra isolamento, fuga de contato e afastamento do mundo externo, ao nos contar a estória da ”menina alegre”, que não gosta de brincar com outras crianças porque elas tiram suas coisas.
Para outros ainda, a difícil relação afetiva conduz a fuga e negação desta relação e à opção por um investimento pulsional no contato e identificação com animais e plantas, que aparece como um substituto para a solidão.
Antônio nos fala da feliz convivência entre o homem, o cão e o gato. Carlos, caso 9, não gosta de brincar com os colegas, e se refere à difícil relação com o objeto do afeto, pela idealização de uma relação isenta de frustrações.
Inveja
Sentimentos de inveja foram expressos com freqüência entre os sujeitos de nossa amostra. Embora, até certo ponto, seja compreensível a inveja daqueles que são sadios e perfeitos, que não passaram pelos grandes traumas, vicissitudes, perdas e sofrimento que os acometeram, e que não sofrem cotidianamente por limitações inerentes à sua condição, foram encontrados variados graus de inveja entre os sujeitos de nossa amostra.
Algumas vezes, a inveja aparece como inundando todo o seu mundo interno, impedindo a apreensão de outros sentimentos e do uso de suas possibilidades para o crescimento.
Para estes, a inveja obtura a vida mental, que se torna estática e paralisada. Estes casos parecem encontrar-se na posição esquizoparanóide descrita por melanie klein (1982), pela cisão dos objetos bons e maus com prevalência destes, projetados e persecutoriamente introjetados.
O mundo interno destes sujeitos, caótico e viscoso, é centrado na inveja. Maria, caso 7, mostra com clareza esse conflito, deseja intensamente o olho e, não o possuindo, ataca violentamente quem o possui: ”ela tem uma bola que fura...
Fui no quintal e achei a bola, e estava de saltinho, e pulei em cima até furar”.
A intensidade de sua inveja a impede de reconhecer suas capacidades e investir pulsionalmente em objetos gratificantes.
Também Lurdes, caso 8, parece não ter tido sucesso na elaboração da posição esquizoparanóide; sua grande inveja daqueles que têm o que ela ardentemente deseja a conduz à negação de seu mundo interno, aderência ao concreto e a uma grande mistura entre ela e o outro.
Para Márcia, caso 12, a inveja dos que vêem é nuclear e destrutiva, os próprios objetos parecem deter algo de maligno contaminados por sua inveja: ”o creme azedo”, ”a menina que torce o pé nos patins”.
Esses três sujeitos, que revelam precária organização egóica, personalidade confusa e indiscriminada, mostraram grande incapacidade para a representação gráfica, mais uma garatuja confusa e caótica do que uma representação de imagens, como se seu mundo interno fosse vazio e opaco.
Outros casos revelam diferentes graus de elaboração egóica, com intensidade diferenciada de inveja, cindida e projetada.
José mostra com clareza a inveja e sua destrutividade contra aquele que tem o que ele não consegue, ao contar a estória do vizinho invejoso que faz tudo para prejudicar o outro, mas acaba sendo destruído pela inveja.
Alguns sujeitos revelaram superação da posição depressiva, aceitação realista de suas dificuldades e liberdade para criação e expansão pessoal.
Como vimos, embora seja possível a identificação de alguns fatores psíquicos como prevalentes entre os cegos, encontram-se entre eles diferentes níveis de desenvolvimento da personalidade e variados graus de ajustamento pessoal, que nos falam da cegueira como uma variável dentro de um universo de condições que contribuem para a organização da personalidade dos sujeitos portadores de cegueira.
Capitulo 7
Reflexões e Conclusões
7.1 A dinâmica da personalidade dos cegos
O material obtido pela análise do d-e nos permitiu, além de descrever a singularidade fundamental de cada sujeito da amostra, entrever conflitos, mecanismos e sentimentos que puderam ser generalizados à influência da cegueira na organização da personalidade.
Embora os dados não configurem a existência de uma personalidade característica dos cegos, confirmando a descoberta de
Shontz (1971, apuc/Cook, 1981), que, após revisar 250 estudos sobre o ajustamento psicológico de pessoas portadoras de deficiência, concluiu que tipos específicos de incapacidade física não estão associados a determinadas características de personalidade, pudemos detectar que a cegueira - tanto pela condição física, ausência da percepção visual, como pelos significados conscientes e inconscientes de que ser cego é ser diferente num mundo vidente - conduz a conflitos e sentimentos comuns.
Isto ocorre mesmo quando a história particular de cada um atribui à condição de cegueira significações diversas.
Pudemos observar que, para todos, a cegueira se constitui como uma complexa condição com a qual têm que se haver cotidianamente, que se reflete em sua organização egóica, em sua forma de estabelecer relações com os objetos e nos mecanismos de defesa que elegem.
Seja a condição de cegueira sentida como uma incapacidade generalizada, seja dificultando suas relações afetivas, seja desencadeando sentimentos de inveja, ou desenvolvendo a capacidade de reparação e propiciando ricas introspecções, ela aparece sempre como elemento subjacente e central nas estórias descritas pelas pessoas cegas.
Em nossa amostra, evidenciaram-se entre os sujeitos diferentes níveis de desenvolvimento, observados tanto pela expressão gráfica - algumas vezes garatujas e outras vezes valiosas representações de manifestações inconscientes - como pelas estórias - algumas vezes concretas reproduções do cotidiano e outras vezes ricas simbolizações.
Esta diversidade nos levou a refletir que a cegueira pode ser tanto um entrave quanto uma brecha no caminho do desenvolvimento do ser humano: para uns é um impedimento para a aquisição de certas funções do pensamento, de formações simbólicas e mesmo da capacidade para o jogo simbólico: enquanto, para outros, se propõe como um elemento favorecedor do desenvolvimento, propiciando o pensamento lógico-abstrato, o raciocínio divergente, valiosas simbolizações e ricas introspecções.
Pode-se dizer que alguns momentos do desenvolvimento sofrem vicissitudes especificamente desencadeadas pela cegueira.
Pudemos observar que, nos sujeitos com cegueira congênita, a integração do ego e as suas relações com o objeto se constituem como uma dificuldade extra, comum ao grupo, confirmando as conclusões de
Burlingham (1961), Sandler (1963) e Wills (1970), psicanalistas que estudaram o desenvolvimento de bebês cegos.
Nota-se em algumas pessoas cegas de nossa amostra uma precária relação objetal e uma dinâmica centrada em primitivos mecanismos de projeção e introjeção, com predomínio de objetos internos maus.
No dizer de
Bion (apud/
Sandler, 1988), a experiência emocional de carência, que conduz à prevalência de objetos maus na mente, relaciona-se à incapacidade para tolerar frustrações, a qual depende tanto da constituição inata do bebê quanto das situações de vida deste.
Isto nos leva a refletir sobre o difícil caminho dos cegos congênitos desde os primórdios de seu desenvolvimento.
Desde os primeiros momentos, a interação mãe-bebê cego se reveste de uma específica complexidade, tanto para a mãe quanto para o bebê, que precisam encontrar forças extras para a descoberta de caminhos facilitadores desta interação.
Sem dúvida, o nascimento de um filho cego desperta na mãe intensas fantasias inconscientes, dificultando a maternagem e o desempenho ”suficientemente bom” do papel de mãe.
Para ser capaz de ”segurar”, ”manejar” e ”apresentar o mundo externo” para seu filho, de forma propiciadora a um desenvolvimento sadio, como diz
Winnicott (1975), a mãe precisa se devotar aos cuidados de seu bebê, identificar-se com ele, senti-lo como um produto seu e amá-lo.
Um bebê cego, entretanto, pode despertar angústia ante a fantasia de incapacidade para gerar um ser perfeito, e representar a concretização de um mundo interno imperfeito, sentimentos que despertam melancolia e dor, em vez de impulsos afetivos para com o filho.
Da parte do bebê, a dificuldade pode ser acrescida pela causa da cegueira, que, às vezes, exige prolongada hospitalização - como nos casos de retinopatia da prematuridade, quando o bebê cego é privado dos cuidados maternos por um período mais longo -, ou se constituir como uma condição intensamente persecutória pela dor física causada, como nos casos de glaucoma congênito.
Além disso, a ausência de visão impossibilita uma das formas mais conhecidas e analisadas de profundas trocas afetivas entre a mãe e seu filho: o olhar.
O bebê cego não pode ver nem o olhar, nem as expressões faciais indicadoras da satisfação materna, tanto quanto a mãe não pode ler em seus olhos seus desejos e o amor por ela, fontes motivadoras da interação mãe-filho.
Aqueles sujeitos cegos de nossa amostra que revelaram sucesso neste difícil caminho para a integração parecem nos dizer que tiveram mães com qualidades especiais, capazes de elaborarem suas feridas narcísicas e a depressão causada pela perda do filho perfeito, ou uma figura materna substituta que tornou possível a interação satisfatória com o ambiente, de modo a favorecer o investimento pulsional e a catexia dos objetos.
Mas eles próprios, provavelmente, devem possuir uma constituição inata especial, que possibilitou um ego forte, capaz de incluir e controlar o id, de modo a estabelecer uma saudável relação objetal.
Aqueles para quem a cegueira se constitui como uma condição insuperável, por impedir a passagem para a posição depressiva, mostram que a cisão entre os objetos bons e maus de seu mundo interno é intensa, coexistindo com imperativa tendência para a projeção do impulso agressivo.
Neles a inveja é preponderante, saturando os espaços de sua mente, tornando-os esvaziados e frágeis.
Revelam pouca capacidade para a introversão, que lhes proporcionaria recursos para elaborar a carga impulsiva, e pouca capacidade para reparar, não conseguindo amenizar o ódio pelo amor.
Para estes não há recursos para o uso pelo ego do impulso agressivo em ações construtivas ou pelo uso deste impulso como defesa diante da adversidade, como descreve
Freud em "O id e o ego" (1923).
São sujeitos que se estribam em uma maciça identificação projetiva, que, como diz
Sandler (1989), faz com que ”acabem perdendo a si mesmos de suas próprias vistas”, fazendo com que não possam ”sentir os seus sentimentos, não podem pensar pensamentos.
Os sentimentos ficam cindidos e fundem-se com estímulos do mundo exterior. O sentimento original é ”vivido” no outro, por meio da fantasia onipotente que é a identificação projetiva” (p. 61).
A dinâmica da personalidade desses sujeitos parece girar ao redor do sentimento de que para serem aceitos e amados precisam conformar-se ao objeto externo, aos padrões socialmente ditados, estabelecidos e criados por aqueles que enxergam.
Este sentimento os leva a se anularem e a se comportarem de uma forma que presumem seja a desejada pelos outros, desenvolvendo o que
Winnicott (1960) chama de um falso self, aquele que, submisso, reage às exigências do meio.
Esses sujeitos parecem estar travados em sua possibilidade de criação, porque, como diz
Segal (apud
Sandler, 1989) ”partes do ego e dos objetos internos são projetados no objeto e identificados com ele” e nestes momentos ”obscurece-se a diferenciação entre o self e o objeto.
Então, devido ao fato de que uma parte do ego fica confundida com o objeto, o símbolo que é uma criação e uma função do ego - torna-se, por sua vez, confundido com o objeto que é simbolizado” (p. 143).
Também nos sujeitos com cegueira adquirida se evidenciou o uso de mecanismos significativos da posição esquizoparanóide: cisão, projeção, negação e idealização.
Melanie Klein (1946) diz que a ansiedade tem origem no instinto de morte e medo de aniquilamento.
A perda da visão vivenciada muitas vezes como uma forma de morrer parece desencadear esta ansiedade, que se reveste de um sentimento de perseguição incompreensível, favorecendo o incremento de ansiedades persecutórias, próprias da posição esquizoparanóide.
Embora a perda da visão, fonte desta ansiedade, seja sentida como originária do mundo externo, a introjeção reforça os perseguidores internos e o medo do impulso destrutivo, conduzindo os cegos à freqüente adoção de mecanismos comuns à posição esquizoparanóide.
O mecanismo de cisão foi usado com freqüência pelos sujeitos de nossa amostra, que por meio dele expelem os objetos maus colocando-os no mundo externo.
Por outro lado, alguns são conduzidos ao círculo vicioso da projeção e introjeção de impulsos agressivos e pulsões libidinais, mecanismos que levam à grande contenção dos impulsos e conseqüente empobrecimento da personalidade, pelo que demonstram passividade, apatia, falta de expressão e de disposição para a luta.
Todavia, para alguns sujeitos cegos, esta constante e cotidiana luta entre o tentar se adequar às exigências que se impõem por imitação das figuras com quem desejam se identificar e a constatação dessa impossibilidade pela própria condição da cegueira propõem uma ruptura que abre um espaço facilitador para que intuam a anulação de seu verdadeiro self, e desejem seu resgate.
O clamor pelo natural, a procura de uma identidade e o desejo de poderem ser como são foram expressos por muitos sujeitos da nossa amostra.
Reportando-nos à percepção de Bion (apud Sandler, 1988) da necessidade que a mente tem de certo grau de dificuldade e resistência para crescer e manter-se em forma, isso possibilitaria a alguns sujeitos cegos ”a superação da posição depressiva, condição sine qua non para o contato com a vida”, no dizer de
Trinca (1991), para quem a superação da posição depressiva significa não ficar aderido à permanente oscilação entre a posição esquizoparanóide e a posição depressiva, quando, segundo suas palavras, ”há libertação delas, há momentos de trégua e paz - ainda que sejam breves - em que a roda de
Ixion é calçada” (pp. 70-1).
Acreditamos ser esta a razão por que em nossa amostra encontramos sujeitos aderidos ao concreto, com um mundo interno abarrotado pelos ”objetos-coisas” (Trinca, 1991), totalmente envolvidos com as preocupações do cotidiano e com o desejo de provar aos videntes que são iguais, ou mesmo superiores a eles: e também aqueles que, ao conseguirem superar esta dificuldade, encontram-se livres para uma rica vida interior, capazes de expansão pessoal e grande criatividade. Isto nos leva a refletir sobre o conceito de ”normalização”, entendido por muitos como a oferta de condições que tornem o indivíduo portador de deficiência o mais possível semelhante aos ”normais”.
Como se, ao conseguirmos transformar os cegos em sujeitos iguais aos videntes - exceto em sua capacidade para enxergar -, eles se tornassem mais capazes e felizes.
Este conceito parece contribuir para o desenvolvimento do falso self, dificultando ainda mais o já difícil caminho das pessoas cegas na descoberta de seu verdadeiro ser.
Vários especialistas já apontaram a diferença entre o mundo dos cegos e o dos videntes devido a processos qualitativamente diversos de interação, mas suas colocações parecem ter sido subestimadas.
Nagera e
Collona (1967) chamaram a atenção para a inadequação da avaliação do desenvolvimento das crianças cegas pelo perfil de desenvolvimento daquelas que enxergam, mas muitos pesquisadores continuaram a estudar a criança cega comparando-a às videntes.
Anderson e Olson (1981) referiram-se a experiências significativamente diferentes das crianças cegas em seu processo de aquisição de conceitos e linguagem, e
Santim e Simmons (1977), ao estudarem a aquisição da linguagem oral nos cegos, fizeram um interessante comentário sobre a diferença de mundos de experiência entre a criança cega e seu mediador e modelo na aquisição e utilização da linguagem oral.
E, mesmo assim, o psicodiagnóstico, as metodologias de ensino e os procedimentos terapêuticos com os cegos continuam a utilizar a verbalização como o meio por excelência para a interação com eles.
Estas descobertas parecem não ter tido repercussão suficiente para introduzir modificações nos procedimentos de atendimento aos cegos.
Os dados obtidos neste estudo reforçam as descobertas parcialmente apreendidas em outros trabalhos, e pela sua própria voz e expressão gráfica, os cegos nos mostram o difícil trânsito por estes dois mundos de experiências, a complexa tarefa de integração que necessitam fazer, e, principalmente, a incompreensão do outro e a anulação de seu verdadeiro eu que deles é exigida.
Estas constatações nos remetem à seguinte questão: não será necessária uma revisão das propostas de ensino, de reabilitação e de atendimento terapêutico para com os sujeitos cegos? talvez as propostas atuais estejam fundamentadas na transmissão de conceitos e valores visuais, e ao lhes imporem o mundo de experiências do vidente, desrespeitando as peculiariedades que os constituem, estão reforçando a já difícil tarefa dos sujeitos cegos de encontrarem seu lugar num mundo de videntes, além da obrigação de conviverem com a diferença em um mundo em que esta parece se constituir como a pior das ”doenças”.
A convivência diária com problemas de aceitação e adequação, a luta por um lugar no mundo e o conflito entre seus próprios sentimentos de amor e ódio conduzem os cegos a indizíveis dificuldades em seu mundo interno.
Esta problemática e indescritível situação pode de certo modo ser uma explicação para ”os sonhos de fora” apontados por
Blank (1958).
Considerando a similaridade entre a produção do d-e e os sonhos, investigada por
Migliavacca (1987), pode-se fazer um paralelo entre as colocações de
Blank (idem) sobre os sonhos dos cegos e as produções obtidas no d-e.
O autor, embora afirme que não há diferenças essenciais entre os sonhos dos cegos e os dos videntes, descreve como típicos dos cegos sonhos de conversas diárias relacionadas à cegueira, que são mais a expressão de problemas da realidade do que de conflitos profundamente reprimidos.
Em alguns dos casos estudados, pode-se notar que os desenhos e as estórias parecem realmente mais o relato de situações problemáticas vividas pelos sujeitos do que a expressão de conflitos inconscientes.
Todavia, a análise do d-e, considerado como um todo composto de cinco unidades de produção, nos mostra que esses acontecimentos externos relatados pelos sujeitos serviram como espelho para seus conflitos internos, e foram usados pelo inconsciente como uma tentativa para a explicitação de seus conflitos nodais.
Este processo fica bastante claro no caso 3, que desenha e relata suas ”dificuldades em achar o caminho” no treino de locomoção, mas que na realidade está nos falando de sua dificuldade em achar o caminho para a construção de seu verdadeiro self.
Embora este estudo tenha nos proporcionado compreensão sobre muitos aspectos da influência da cegueira no desenvolvimento da personalidade à luz do referencial psicanalítico, acreditamos na necessidade de novas investigações que tragam esclarecimentos para pontos ainda obscuros.
Por meio do material do d-e, nos foi possível compreender muitos aspectos do mundo interno dos sujeitos cegos.
Pela expressão de suas fantasias, nos foram desvendadas suas formas de relações objetais, suas ansiedades e as defesas subjacentes à estrutura de sua personalidade.
Mas o entendimento de todas as vicissitudes causadas ao seu desenvolvimento e de outras possíveis significações da cegueira deve ser mais investigado.
Acreditamos que estudos que se proponham à análise de casos razoavelmente completos possam contribuir com dados esclarecedores de outros aspectos do desenvolvimento, por meio da descrição de uma história pessoal.
Também a questão da influência da simbologia da cegueira na organização da personalidade dos sujeitos cegos parece ter permanecido ainda inconclusa; embora possamos inferir algumas descobertas, julgamos necessárias investigações que possam trazer dados mais conclusivos sobre esta questão.
Os cegos de nossa amostra espelharam muitas vezes características de personalidade semelhantes àquelas descritas na literatura, ou expressas pelas concepções populares a respeito do ver e da sua ausência.
Há aqueles que por diferentes razões mostram-se fracos e impotentes, há os que procuram se mostrar como possuidores de qualidades especiais, há os que revelam um persistente espírito lutador, mas há também aqueles que revelam uma inveja tão intensa, que por ela são capazes de tudo.
Será que isto ocorre porque sofrem influência dos estereótipos sociais, ou será que estes refletem a intuição do escritor do inconsciente dos cegos, ou mesmo do inconsciente coletivo que realmente assim vê a cegueira?
Jung (1961) nos fala do inconsciente coletivo formado por representações arquétipas, que podem ser observadas em temas que aparecem reiteradamente nos mitos e contos da literatura universal e também nas fantasias, sonhos e ilusões de cada um.
Para Jung, o inconsciente coletivo deriva de propriedades herdadas, não se constituindo de conteúdos pessoais e únicos, mas, pelo contrário, é formado por conteúdos universais que aparecem regularmente. ”os conteúdos do inconsciente coletivo constituem como que uma condição ou base da psique em si mesma, condição onipresente, imutável, idêntica a si própria em toda parte” (p. 355.
Débora Kent (1981) nos mostra que a literatura universal através dos tempos, embora tenha sofrido mudanças na concepção da cegueira, continua a manter em seu substrato significações universais.
Podemos relacionar alguns desses conceitos literários sobre cegueira, ou na proposta de
Jung (Klem), suas representações arquétipas, com os fatores apontados por
Blank (1957) como subjacentes aos distúrbios de personalidade das pessoas cegas.
Assim, o conceito de olho como órgão sexual e cegueira como castração e punição de pecados pode ser o substrato que conduz algumas pessoas cegas a dificuldades e conflitos relacionados ao impulso sexual e à imatura e contida sexualidade observada em muitos sujeitos de nosso estudo.
A associação inconsciente de olho com onipotência pode ser relacionada, antiteticamente, aos freqüentes sentimentos de incapacidade e impotência revelados por muitas pessoas deste estudo.
De forma semelhante, o envolvimento inconsciente do olho em conflitos de inveja e cobiça se refletiu na difícil definição demonstrada pelos cegos para com o destino do impulso agressivo, e pelos intensos sentimentos de inveja e voracidade observados com freqüência entre as pessoas estudadas.
Cremos que a colocação feita por
Blank (1957) é a que mais se aproxima de uma verdade.
A cegueira sem dúvida é um campo fértil para metáforas da angústia do ser humano ante a perda da onipotência. E a simbologia da cegueira representando a projeção do nosso inconsciente ante o desconhecido tanto influencia o homem cego como é por ele influenciada, um ser humano que vivência e experimenta as mesmas angústias de todos nós e traz no inconsciente o medo do aniquilamento.
Uma pesquisa que se propusesse a aprofundar este tema acreditamos que traria ricas e valiosas contribuições.
7.2 O procedimento de desenhos-estórias com cegos
A percepção de problemas nucleares nas pessoas cegas só foi possível pela nossa constante preocupação em procurar analisá-los, tanto quanto possível, isentos dos nossos preconceitos de videntes, tentando ouvi-los despidos de ”desejos e memórias” (Freud, 1912) e, principalmente, não os comparando aos que possuem visão.
O procedimento usado mostrou-se valioso instrumento para o alcance desse propósito.
A utilização do procedimento de desenhos-estórias para a apreensão da dinâmica da personalidade dos sujeitos cegos mostrou-se preciosa, tanto pela enriquecedora utilização de sua expressão gráfica, como por sua constituição em cinco unidades de produção.
O desenho para os cegos foi sem dúvida um encontro com o desconhecido. Muitos deles, ao depararem com a tarefa, mostravam-se desconfortáveis, criticavam suas produções, e consideravam-na uma atividade incompatível com a cegueira.
Todavia, nenhum se negou a fazer desenhos e, com o decorrer do procedimento, revelaram satisfação e prazer ao realizarem algo que imaginavam serem incapazes de fazer - ”nunca pensei que cego pudesse desenhar”, disse
Tânia.
Por outro lado, as rejeições a alguns desenhos, pela percepção de que suas expressões gráficas não representavam com exatidão o que tinham pretendido, nos provam que, embora possa haver inabilidade para desenhar - compreensível pela ausência de experiências anteriores -, os cegos puderam perceber que o desenho não estava representando com fidelidade aquilo a que tinham se proposto, não expressando com clareza sua imagem mental, fato também observado muitas vezes entre aqueles que enxergam.
A expressão gráfica é considerada por muitos como menos passível de controle do que a verbal.
E, como diz Hammer (1969), os psicólogos sentem ”uma especial atração pelo desenho: sabem que o traçado das figuras dão acesso a estratos básicos e que constituem expressão menos controlada da personalidade do sujeito.
Sabem que podem confiar nesta linguagem, mais ingênua e espontânea, mais complexa e difícil”.
Por esta razão, o desenho tornou-se valioso recurso para o psicodiagnóstico. No caso dos cegos, sua importância mostrou-se ainda mais preponderante, por ser uma atividade nova e inusitada, condição fértil para a criação e o encontro com o verdadeiro self.
Os desenhos de nossos sujeitos parecem ter servido como um canal por excelência para a expressão de conflitos básicos e angústias nodais. Foram observadas em algumas unidades de produção expressões gráficas com significação de atos falhos, que serviam ao desvendamento de sentimentos profundamente reprimidos.
Foram interpretados como atos falhos aqueles desenhos criticados pelo sujeito como não representativos do que queriam expressar, mas que indicavam situações claramente expressas nas unidades de produção seguintes.
Era como se esses sentimentos reprimidos e controlados não tivessem ainda formas para a verbalização, mas ao fugirem do controle consciente e surgirem nos desenhos abria-se um caminho para o contato com sentimentos profundos e a possibilidade de nomeálos.
Estas ocorrências revelaram que, para alguns sujeitos da pesquisa, o d-e, de certa forma, serviu como um processo terapêutico.
O fazer cinco unidades de produção parece ter contribuído para um encadeamento de situações que conduziam a uma progressiva organização de seus sentimentos e pensamentos, fato observado tanto pela expressão gráfica como pela verbalização.
O d-e, sendo constituído por uma série de desenhos e verbalizações, proporciona facilitação para este aprofundamento e contato gradativo com aspectos mais profundos da personalidade.
Este aspecto, já assinalado por Trinca (1987) e por outros pesquisadores (Mestrimer, 1982 e
Fernandes, 1988), mostra que as descobertas anteriores são válidas para este grupo de sujeitos, ao mesmo tempo que reafirmam os achados de outros estudos.
Os sujeitos de nossa amostra intuíram com precisão a proposta do d-e, falaram deste como um caminho facilitador para o encontro e a descoberta do mundo interno.
Creio que suas próprias falas mostrarão ao leitor com mais clareza este processo.
Disseram: ”achei muito bom, nunca tive que desenhar... Mas achei bom tentar, pôr para fora o que está em nossa mente”; ”acho legal expressar sentimentos pelo desenho...
Coisas que a gente não consegue expressar por palavras, dá para expressar super-bem pelo desenho, e a pessoa percebe o que a gente sente”; ”achei bom, de repente inventei estas estórias que pensava que não ia conseguir”; ”achei interessante. Eu senti que é bom, sei lá, a gente cria alguma coisa, tira alguma coisa da cabeça.” falas que comprovam também o valor do d-e como procedimento terapêutico.
A importância terapêutica deste procedimento parece nos indicar caminhos possíveis para o atendimento psicoterápico às pessoas cegas.
Talvez um estudo que se proponha a verificar a eficácia de um procedimento terapêutico com sujeitos privados da visão, utilizando desenhos e estórias como método facilitador da organização de seu mundo interno, seja uma das rotas abertas por este trabalho.
A utilização de desenhos por cegos, procedimento deste estudo, foi apenas um caminho aberto numa direção em que acreditamos haver inúmeras vertentes.
Julgamos este um campo inexplorado e muitas outras pesquisas são necessárias. Tais como: estudos sobre a evolução do grafismo de pessoas cegas, o desenho como expressão de aspectos da personalidade, o desenho como um recurso para a compreensão de suas representações mentais.
Em outra linha, acreditamos sejam enriquecedores os estudos sobre a utilização da expressão gráfica pelos cegos como instrumento para o desenvolvimento de conceitos, organizações espaciais, criatividade, enfim um colaborador para a organização cognitiva.
Em síntese, estudos que trouxessem maiores conhecimentos sobre o desenho de pessoas portadoras de cegueira e das possibilidades de utilização da expressão gráfica como um recurso para o favorecimento do desenvolvimento e aprendizagem destas pessoas traria rica contribuição para a expansão e melhoria de seus atendimentos, tanto na área de educação como na de reabilitação.
Para finalizar, desejo retornar ao começo para reafirmar que pude finalmente esclarecer uma questão para mim fundamental: como pessoas com uma limitação tão séria podem se desenvolver a ponto de algumas delas alcançarem níveis de desenvolvimento atingido por poucas?
Este trabalho mostrou que o penoso caminho que os sujeitos cegos são forçados a percorrer lhes oferece a oportunidade de vivenciarem a diferença entre uma perda real e uma fantasiada, e aqueles que tiverem meios que facilitem a vivência dessa experiência serão capazes de expansão e criatividade pessoal, de darem às coisas o devido valor - o que lhes possibilitará desvencilhar-se dos ”objetos coisas” (Trinca, 1991) e darem o devido e real valor aos sentimentos e intuições.
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28-Jan-09
publicado
por
MJA
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