Cabe, antes do relato da prática anunciada, tecer
algumas considerações sobre como a inclusão vem
sendo experienciada no contexto do ensino de ciências
e, para isso, partiu-se da seleção de artigos disponíveis
nas principais revistas da área de ensino de ciências que
abordam a deficiência visual.
Entre os trabalhados, todos indicam de certa forma que
há especificidades do ensino de ciências que precisam
ser consideradas quando há estudantes com deficiência
visual. As representações, modelos e abstrações, que
se acoram em elementos visuais, são estruturantes
nos conhecimentos tratados nessa disciplina escolar e
necessárias ao processo de ensino e aprendizagem. Nesse
sentido, fica evidente que o enfoque na maioria dos artigos
incide sobre a produção de metodologias adaptativas.
Entre as abordagens, encontra-se aquelas que discutem,
investigam e/ou validam a utilização de modelos táteis
para a apropriação de conhecimentos biológicos,
químicos ou físicos: no contexto de turmas regulares (VAZ
et al., 2012; GOYA et al., 2014; SILVA; LANDIM; SOUZA,
2014; SILVA; GONÇALVES; MARQUES, 2015); de turmas
que atendem exclusivamente pessoas cegas e de baixa
visão (ANDRADE et al, 2017); em espaços formativos,
promovendo propostas metodológicas inclusivas no
contexto de disciplinas de licenciaturas (GODINHO et al.,
2017). Há ainda trabalhos que discutem de forma mais
conceitual, amparados na literatura específica e/ou a
partir de análise de materiais didáticos, as contribuições
dessas tecnologias assistivas (VOOS; GONÇALVES, 2016;
VOOS; FERREIRA, 2018).
Mesmo entendendo o recorte dado pelos estudos,
algumas das pesquisas e relatos colocam em questão o
processo de inclusão. Há um foco em demasia à produção
de materiais adaptados destinados, marcadamente,
às pessoas com deficiência. O contexto e as relações
desaparecem. Sobre isso ainda cabe um apontamento,
em muitas pesquisas encontramos o professor/pesquisador
da Universidade e o professor da Educação
Especial na proposição e validação desses materiais,
mas não há referência ao professor da sala de aula. A
inclusão se efetiva com o professor na sala de aula do
ensino regular, na diversidade real de uma turma.
Um dos artigos que apresenta uma perspectiva
alinhada aos conceitos que balizam o trabalho das
presentes autoras, ainda que o foco seja a produção de
material adaptado, refere-se à pesquisa de Goya et al.
(2014). Os autores demarcam entre os princípios básicos
da elaboração de materiais: não ser exclusivo para os
estudantes com deficiência, pois deve beneficiar a todos
na aprendizagem e interação, e envolver o professor de
sala de aula do ensino regular na produção do material
e incentivar a elaboração do seu próprio material de
acordo com seu planejamento e reflexão de sua prática
docente.
Diferentemente de Goya et al. (2014), os artigos
destacados anteriormente tendem a silenciar a
participação do professor de sala de aula do ensino
regular na aplicação e proposição dos materiais e práticas
e traz à tona um indício importante: ausência de práticas
que se ancoram em redes de apoio no contexto escolar.
A educação inclusiva se estabelece na medida em que a
educação especial e o ensino regular se aproximam, ou
seja, quando o trabalho colaborativo se consolida.
Vale ressaltar que entre os artigos levantados há uma
indicação de trabalho colaborativo de Silva, Gonçalves e
Marques (2015). Eles analisam as práticas de professores
dos anos iniciais com estudantes cegos a partir de relatos
produzidos por entrevistas semiestruturadas e destacam
que existem interpretações diferentes entre os professores
sobre a prática colaborativa. No entanto, os próprios
pesquisadores não trazem discussões mais aprofundadas,
indicando concepções e referências. Isso se explica em parte
pelo foco do texto que perpassa, predominantemente,
questões de adaptações de materiais para estudantes
cegos. Nesse sentido, a dimensão de trabalho colaborativo
defendida refere-se, principalmente, às relações entre o
professor de sala e o segundo professor, indicado no texto
como professor da Educação Especial.
Apesar de algumas ressalvas sobre a atuação/limitação
do segundo professor diante de algumas colocações dos
professores entrevistados, os autores não trazem mais
detalhes sobre as possíveis implicações e atribuições
desse segundo professor. Aliado a isso, a própria dimensão
do que é trabalho colaborativo não é explorada e não é
garantida pela presença de um segundo professor em sala.
Retomando o entendimento do trabalho colaborativo, ele
se insere em um movimento mais amplo, que trata da
corresponsabilidade dos professores em várias ações na
efetivação de práticas inclusivas.
Exercício da docência inclusiva:
contribuições do DUA e do trabalho
colaborativo nas aulas de ciências
O relato a seguir tem como objetivo apresentar as
possibilidades de um exercício da docência inclusiva a
partir do “planejamento, elaboração e organização dos
recursos pedagógicos para uso em sala de aula regular
e suporte na ação docente em sistema colaborativo”
(KITTEL; SANTOS, 2018, p. 5-6) entre a professora de
Ciências e duas professoras da Educação Especial.
O diferencial do trabalho parte também do modo
como os conceitos e conteúdos da disciplina de ciências,
já consolidados no currículo escolar, foram trabalhados
e articulados em uma turma do sétimo ano, tendo como
princípio o DUA. As práticas pedagógicas desenvolvidas
a partir deste princípio consideraram também o modelo
social de deficiência, que não nega o corpo com lesão,
mas entende que a falta dos apoios adequados é que
enaltece as limitações.
Os conceitos de ciências envolviam informações
sobre a célula como unidade da vida e da diversidade;
aproximações e diferenciações dos tipos celulares
(procarionte e eucariontes); compreensão das
principais estruturas e funções; história e noções de
microscopia; conceito de ampliação.
Para a construção
do conhecimento um conjunto de estratégias foram
oferecidas e vivenciadas, com destaque para: práticas
de leitura e escrita sobre a história da microscopia;
aulas expositivas dialogadas na articulação de vídeos,
imagens e modelos táteis de células (eucariontes e
procariontes); jogo de perguntas e respostas (quiz)
enfocando a oralidade sobre os principais conceitos
de células; realização de aula prática de observação da
cortiça e de célula de cebola; construção coletiva de
uma célula eucarionte vegetal tátil e 3D com legenda
em braile e em tinta.
Especificamente, a aula de aplicação conceitual (prática
de observação), mostrou-se como espaço de maior
potencialidade inclusiva e sua efetivação perpassou a
metodologia do trabalho colaborativo.
Além dos momentos previstos de encontros coletivos de
caráter formativo e os atendimentos individualizados ao
estudante cego que ocorreram ao longo do ano de 2018, a
materialização da aula de observação de células se ancorou
tanto no conjunto de outras atividades e estratégias
indicadas no Esquema 1, que buscaram em certa medida
antecipar possíveis barreiras para aprendizagem, como
nos encontros individuais e na prática colaborativa.
Esquema 1: Exercitando o DUA sobre a temática célula
Fonte: Elaborado pelas autoras
Nos encontros individuais, realizados entre a professora
de Ciências e a professora da Educação Especial, ocorriam
os planejamentos das atividades e que garantiram que os
elementos constituintes da cegueira fossem considerados
para a eleição dos apoios necessários ao conhecimento.
Nestes encontros, foram elaborados materiais que
pudessem assegurar a diferenciação visual das células
ampliadas pelo microscópio óptico (com resolução de 40 e
100 vezes) por meio de texturas, destacando as estruturas
identificadas nas células da cebola, parede celular,
citoplasma e núcleo, e na cortiça, parede celular (Figura
1). O que possibilitou um aluno não vidente construir
o conceito de ampliação. Também houve a produção de
material em braile que sinaliza as partes e estruturas de
um microscópio.
Figura 1:
A) Estudante cego simulando a observação da célula e
cebola no microscópio;
B) Diferenciação celular das células de cebola e cortiça
através de texturas.
Fonte: Registro das autoras
Na prática colaborativa, desenvolvida com a
participação das professoras de Ciências, Educação
Especial e Laboratório de Ciências no laboratório de
ciências da escola, a turma do sétimo ano foi divida
em quatro grupos de estudantes no modelo de rodízio,
permitindo que todos fossem assessorados por uma das
professoras e passassem pelas diferentes experiências
que foram: i) observar e sentir a textura dos materiais
- a cebola, a cortiça e a folha de bananeira seca (que
se aproxima em textura à estrutura da cortiça); ii)
registros fotográficos dos materiais pelos estudantes;
iii) observação da cortiça e da célula da cebola no
microscópio e sua manipulação; iv) elaboração do
roteiro de aula prática (em tinta e em braile) e as
representações das células e estruturas observadas; v) a
manipulação do material tátil, que apresenta diferentes
texturas, auxiliando na compreensão do conceito de
ampliação; vi) a manipulação do microscópio e vivências
das etapas para construção das lâminas (Figura 1).
A motivação e envolvimento dos estudantes foram
percebidas durante todo o processo de ensino e
aprendizagem, deixando como mensagem para todos
envolvidos que no mundo da educação coisas incríveis
nunca são feitas por uma única pessoa e sim por uma
rede de apoio à docência inclusiva.
Considerações finais
É necessário um deslocamento do pensar e do aprender
encerrados em uma única metodologia. Quanto maior for a
variedade de recursos maior também são as possibilidades
de colocar os estudantes em situação de aprendizagem.
Esse exercício começou com a necessidade de adequar
conteúdo e adaptar materiais para o estudante cego,
mas tomou contornos significativos ao percebermos sua
relevância na ancoragem da aprendizagem de outros
estudantes, sem deficiência.
Ninguém pode estar a salvo do modo como a
aprendizagem desenha os contornos de tudo aquilo que
podemos ser. As experiências como aprendizes impactam
a forma como nos movemos no mundo e como damos
movimento ao pensamento. E nessa relação entre o
ensinar e o aprender há um tempo, um espaço, que
se compõe entre mediações, autonomia, limitações,
capacidades, superação, desejos, apoios.
O dever do professor passa pelo cuidado em preparar
o caminho que o estudante toma para construir o
conhecimento. Não cabe imaginar que esse percurso
possa ser feito sem orientação que considere sua
especificidade, pois a cada um cabe fazer o caminho
do aprender, mas ao professor cabe oferecer os apoios
necessários para tornar o percurso transitável. Para viver
uma escola inclusiva é necessário trilhar o caminho da
diferença e não da falta, o caminho das possibilidades e
não da incapacidade. Nesse caminho os estudantes com
deficiência também são sujeitos da aprendizagem.
Referências
-
ANDRADE et al. Conhecer para preservar: o uso de modelos táteis no
ensino de Biologia para deficientes visuais na Associação de Cegos do
Piauí. Educação Ambiental em Ação. v. 16, n. 60, p. 1-19. 2017.
-
BEYER, Hugo Otto. Inclusão e avaliação na escola de alunos com
necessidades educacionais especiais. 4. Ed. Porto Alegre: Mediação,
2013.
-
CAST. Universal Design for Learning Guidelines Version 1.0. Desenho
Universal para Aprendizagem. 2011. Disponível em: <http://www.cast.org> Acesso em: 15 junho 2017.
-
FERREIRA, Bárbara C. et al. Parceria colaborativa: descrição de uma
experiência entre o ensino regular e especial. Revista Educação
Especial. n. 29, p. 1-7, 2007. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/
educacaoespecial/article/view/4137/2454> Acesso em: 14 dez. 2018.
-
GODINHO et al. O ensino de ciências no contexto de inclusão de alunos
com deficiência visual: uma experiência de formação inicial inclusiva.
ACTA Tecnológica. v. , n. 2, p. 31-45, 2017.
-
GOYA, Pedro R. L et al. Materiais didáticos de ciências e biologia para
alunos com necessidades educacionais especiais. Revista SBEnBio. n.7, p. 6173-6184, 2014.
-
KITTEL, Rosângela; SANTOS, Ruth Mary. O trabalho colaborativo na
organização dos serviços da educação especial. In: VII Congresso de
Educação Básica, 2018, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Secretaria
de Educação do Município de Florianópolis. 2018. Disponível
em: <http://189.8.211.4/coeb2018/anais/relatoexperiencia/
trabalhocolaborativo.pdf> Acesso em: 13 dez 2018.
-
MARIN, Márcia; BRAUN, Patrícia. Ensino Colaborativo como prática
de inclusão escolar. In: GLAT, Rosana; PLETSCH, Márcia Denise
(organizadoras). Estratégias Educacionais Diferenciadas para alunos
com necessidades especiais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
-
SILVA, Marily D. da; GONÇALVES, Fábio P.; MARQUES, Carlos Alberto.
Práticas pedagógicas em Ciências da Natureza nos anos iniciais do
ensino fundamental com estudantes cegos. Revista Brasileira de
Pesquisa em Educação em Ciências, v. 15, n. 3, p. 497-518, 2015.
-
-
VAZ, José Murilo C. O material didático para ensino de biologia:
possibilidades de inclusão. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação
em Ciências. v. 12, n 3, p. 81-104. 2012.
-
VOOS, Ivani C.; GONÇALVES, Fábio P. Tecnologia assistiva e ensino de
química: reflexões sobre o processo educativo de cegos e a formação
docente. Química Nova na Escola. v. 38, n. 4, p. 297-305, 2016.
-
VOOS, Ivani C.; FERREIRA, Gabriela K. Acessibilidade para estudantes
cegos e baixa visão: análise dos objetos educacionais digitais de física.
Revista Educação Especial. v. 31, n. 60, p. 21-34, 2018.
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Ensino de Ciências e inclusão: algumas
considerações a partir da literatura
in
Desenho universal aplicado à
aprendizagem: contribuições
para o exercício
da docência inclusiva
autoras: Narjara Zimmermann
Rosângela Kittel
fonte:
Colectânea de artigos: EDUCAÇÃO ESPECIAL E/NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
ENTRE ESPECIFICIDADES E INDISSOCIABILIDADES
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