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 Sobre a Deficiência Visual

Ensino de Ciências e Inclusão: algumas considerações a partir da literatura

Narjara Zimmermann & Rosângela Kittel

Modelo de Célula vegetal in O Ensino da Biologia na Deficiência Visual
Modelo de Célula vegetal in O Ensino da Biologia na Deficiência Visual
 

Cabe, antes do relato da prática anunciada, tecer algumas considerações sobre como a inclusão vem sendo experienciada no contexto do ensino de ciências e, para isso, partiu-se da seleção de artigos disponíveis nas principais revistas da área de ensino de ciências que abordam a deficiência visual.

Entre os trabalhados, todos indicam de certa forma que há especificidades do ensino de ciências que precisam ser consideradas quando há estudantes com deficiência visual. As representações, modelos e abstrações, que se acoram em elementos visuais, são estruturantes nos conhecimentos tratados nessa disciplina escolar e necessárias ao processo de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, fica evidente que o enfoque na maioria dos artigos incide sobre a produção de metodologias adaptativas.

Entre as abordagens, encontra-se aquelas que discutem, investigam e/ou validam a utilização de modelos táteis para a apropriação de conhecimentos biológicos, químicos ou físicos: no contexto de turmas regulares (VAZ et al., 2012; GOYA et al., 2014; SILVA; LANDIM; SOUZA, 2014; SILVA; GONÇALVES; MARQUES, 2015); de turmas que atendem exclusivamente pessoas cegas e de baixa visão (ANDRADE et al, 2017); em espaços formativos, promovendo propostas metodológicas inclusivas no contexto de disciplinas de licenciaturas (GODINHO et al., 2017). Há ainda trabalhos que discutem de forma mais conceitual, amparados na literatura específica e/ou a partir de análise de materiais didáticos, as contribuições dessas tecnologias assistivas (VOOS; GONÇALVES, 2016; VOOS; FERREIRA, 2018).

Mesmo entendendo o recorte dado pelos estudos, algumas das pesquisas e relatos colocam em questão o processo de inclusão. Há um foco em demasia à produção de materiais adaptados destinados, marcadamente, às pessoas com deficiência. O contexto e as relações desaparecem. Sobre isso ainda cabe um apontamento, em muitas pesquisas encontramos o professor/pesquisador da Universidade e o professor da Educação Especial na proposição e validação desses materiais, mas não há referência ao professor da sala de aula. A inclusão se efetiva com o professor na sala de aula do ensino regular, na diversidade real de uma turma.

Um dos artigos que apresenta uma perspectiva alinhada aos conceitos que balizam o trabalho das presentes autoras, ainda que o foco seja a produção de material adaptado, refere-se à pesquisa de Goya et al. (2014). Os autores demarcam entre os princípios básicos da elaboração de materiais: não ser exclusivo para os estudantes com deficiência, pois deve beneficiar a todos na aprendizagem e interação, e envolver o professor de sala de aula do ensino regular na produção do material e incentivar a elaboração do seu próprio material de acordo com seu planejamento e reflexão de sua prática docente.

Diferentemente de Goya et al. (2014), os artigos destacados anteriormente tendem a silenciar a participação do professor de sala de aula do ensino regular na aplicação e proposição dos materiais e práticas e traz à tona um indício importante: ausência de práticas que se ancoram em redes de apoio no contexto escolar.

A educação inclusiva se estabelece na medida em que a educação especial e o ensino regular se aproximam, ou seja, quando o trabalho colaborativo se consolida.

Vale ressaltar que entre os artigos levantados há uma indicação de trabalho colaborativo de Silva, Gonçalves e Marques (2015). Eles analisam as práticas de professores dos anos iniciais com estudantes cegos a partir de relatos produzidos por entrevistas semiestruturadas e destacam que existem interpretações diferentes entre os professores sobre a prática colaborativa. No entanto, os próprios pesquisadores não trazem discussões mais aprofundadas, indicando concepções e referências. Isso se explica em parte pelo foco do texto que perpassa, predominantemente, questões de adaptações de materiais para estudantes cegos. Nesse sentido, a dimensão de trabalho colaborativo defendida refere-se, principalmente, às relações entre o professor de sala e o segundo professor, indicado no texto como professor da Educação Especial.

Apesar de algumas ressalvas sobre a atuação/limitação do segundo professor diante de algumas colocações dos professores entrevistados, os autores não trazem mais detalhes sobre as possíveis implicações e atribuições desse segundo professor. Aliado a isso, a própria dimensão do que é trabalho colaborativo não é explorada e não é garantida pela presença de um segundo professor em sala.

Retomando o entendimento do trabalho colaborativo, ele se insere em um movimento mais amplo, que trata da corresponsabilidade dos professores em várias ações na efetivação de práticas inclusivas.

Exercício da docência inclusiva: contribuições do DUA e do trabalho colaborativo nas aulas de ciências

O relato a seguir tem como objetivo apresentar as possibilidades de um exercício da docência inclusiva a partir do “planejamento, elaboração e organização dos recursos pedagógicos para uso em sala de aula regular e suporte na ação docente em sistema colaborativo” (KITTEL; SANTOS, 2018, p. 5-6) entre a professora de Ciências e duas professoras da Educação Especial.

O diferencial do trabalho parte também do modo como os conceitos e conteúdos da disciplina de ciências, já consolidados no currículo escolar, foram trabalhados e articulados em uma turma do sétimo ano, tendo como princípio o DUA. As práticas pedagógicas desenvolvidas a partir deste princípio consideraram também o modelo social de deficiência, que não nega o corpo com lesão, mas entende que a falta dos apoios adequados é que enaltece as limitações.

Os conceitos de ciências envolviam informações sobre a célula como unidade da vida e da diversidade; aproximações e diferenciações dos tipos celulares (procarionte e eucariontes); compreensão das principais estruturas e funções; história e noções de microscopia; conceito de ampliação.

Para a construção do conhecimento um conjunto de estratégias foram oferecidas e vivenciadas, com destaque para: práticas de leitura e escrita sobre a história da microscopia; aulas expositivas dialogadas na articulação de vídeos, imagens e modelos táteis de células (eucariontes e procariontes); jogo de perguntas e respostas (quiz) enfocando a oralidade sobre os principais conceitos de células; realização de aula prática de observação da cortiça e de célula de cebola; construção coletiva de uma célula eucarionte vegetal tátil e 3D com legenda em braile e em tinta.

Especificamente, a aula de aplicação conceitual (prática de observação), mostrou-se como espaço de maior potencialidade inclusiva e sua efetivação perpassou a metodologia do trabalho colaborativo.

Além dos momentos previstos de encontros coletivos de caráter formativo e os atendimentos individualizados ao estudante cego que ocorreram ao longo do ano de 2018, a materialização da aula de observação de células se ancorou tanto no conjunto de outras atividades e estratégias indicadas no Esquema 1, que buscaram em certa medida antecipar possíveis barreiras para aprendizagem, como nos encontros individuais e na prática colaborativa.
 

Esquema 1: Exercitando o DUA sobre a temática célula


Fonte: Elaborado pelas autoras

Nos encontros individuais, realizados entre a professora de Ciências e a professora da Educação Especial, ocorriam os planejamentos das atividades e que garantiram que os elementos constituintes da cegueira fossem considerados para a eleição dos apoios necessários ao conhecimento.

Nestes encontros, foram elaborados materiais que pudessem assegurar a diferenciação visual das células ampliadas pelo microscópio óptico (com resolução de 40 e 100 vezes) por meio de texturas, destacando as estruturas identificadas nas células da cebola, parede celular, citoplasma e núcleo, e na cortiça, parede celular (Figura 1). O que possibilitou um aluno não vidente construir o conceito de ampliação. Também houve a produção de material em braile que sinaliza as partes e estruturas de um microscópio.
 

Figura 1:
A) Estudante cego simulando a observação da célula e cebola no microscópio;
B) Diferenciação celular das células de cebola e cortiça através de texturas.


Fonte: Registro das autoras

Na prática colaborativa, desenvolvida com a participação das professoras de Ciências, Educação Especial e Laboratório de Ciências no laboratório de ciências da escola, a turma do sétimo ano foi divida em quatro grupos de estudantes no modelo de rodízio, permitindo que todos fossem assessorados por uma das professoras e passassem pelas diferentes experiências que foram: i) observar e sentir a textura dos materiais - a cebola, a cortiça e a folha de bananeira seca (que se aproxima em textura à estrutura da cortiça); ii) registros fotográficos dos materiais pelos estudantes; iii) observação da cortiça e da célula da cebola no microscópio e sua manipulação; iv) elaboração do roteiro de aula prática (em tinta e em braile) e as representações das células e estruturas observadas; v) a manipulação do material tátil, que apresenta diferentes texturas, auxiliando na compreensão do conceito de ampliação; vi) a manipulação do microscópio e vivências das etapas para construção das lâminas (Figura 1).

A motivação e envolvimento dos estudantes foram percebidas durante todo o processo de ensino e aprendizagem, deixando como mensagem para todos envolvidos que no mundo da educação coisas incríveis nunca são feitas por uma única pessoa e sim por uma rede de apoio à docência inclusiva.

Considerações finais

É necessário um deslocamento do pensar e do aprender encerrados em uma única metodologia. Quanto maior for a variedade de recursos maior também são as possibilidades de colocar os estudantes em situação de aprendizagem.

Esse exercício começou com a necessidade de adequar conteúdo e adaptar materiais para o estudante cego, mas tomou contornos significativos ao percebermos sua relevância na ancoragem da aprendizagem de outros estudantes, sem deficiência.

Ninguém pode estar a salvo do modo como a aprendizagem desenha os contornos de tudo aquilo que podemos ser. As experiências como aprendizes impactam a forma como nos movemos no mundo e como damos movimento ao pensamento. E nessa relação entre o ensinar e o aprender há um tempo, um espaço, que se compõe entre mediações, autonomia, limitações, capacidades, superação, desejos, apoios.

O dever do professor passa pelo cuidado em preparar o caminho que o estudante toma para construir o conhecimento. Não cabe imaginar que esse percurso possa ser feito sem orientação que considere sua especificidade, pois a cada um cabe fazer o caminho do aprender, mas ao professor cabe oferecer os apoios necessários para tornar o percurso transitável. Para viver uma escola inclusiva é necessário trilhar o caminho da diferença e não da falta, o caminho das possibilidades e não da incapacidade. Nesse caminho os estudantes com deficiência também são sujeitos da aprendizagem.

Referências

  • ANDRADE et al. Conhecer para preservar: o uso de modelos táteis no ensino de Biologia para deficientes visuais na Associação de Cegos do Piauí. Educação Ambiental em Ação. v. 16, n. 60, p. 1-19. 2017.
  • BEYER, Hugo Otto. Inclusão e avaliação na escola de alunos com necessidades educacionais especiais. 4. Ed. Porto Alegre: Mediação, 2013.
  • CAST. Universal Design for Learning Guidelines Version 1.0. Desenho Universal para Aprendizagem. 2011. Disponível em: <http://www.cast.org> Acesso em: 15 junho 2017.
  • FERREIRA, Bárbara C. et al. Parceria colaborativa: descrição de uma experiência entre o ensino regular e especial. Revista Educação Especial. n. 29, p. 1-7, 2007. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/ educacaoespecial/article/view/4137/2454> Acesso em: 14 dez. 2018.
  • GODINHO et al. O ensino de ciências no contexto de inclusão de alunos com deficiência visual: uma experiência de formação inicial inclusiva. ACTA Tecnológica. v. , n. 2, p. 31-45, 2017.
  • GOYA, Pedro R. L et al. Materiais didáticos de ciências e biologia para alunos com necessidades educacionais especiais. Revista SBEnBio. n.7, p. 6173-6184, 2014.
  • KITTEL, Rosângela; SANTOS, Ruth Mary. O trabalho colaborativo na organização dos serviços da educação especial. In: VII Congresso de Educação Básica, 2018, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Secretaria de Educação do Município de Florianópolis. 2018. Disponível em: <http://189.8.211.4/coeb2018/anais/relatoexperiencia/ trabalhocolaborativo.pdf> Acesso em: 13 dez 2018.
  • MARIN, Márcia; BRAUN, Patrícia. Ensino Colaborativo como prática de inclusão escolar. In: GLAT, Rosana; PLETSCH, Márcia Denise (organizadoras). Estratégias Educacionais Diferenciadas para alunos com necessidades especiais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
  • SILVA, Marily D. da; GONÇALVES, Fábio P.; MARQUES, Carlos Alberto. Práticas pedagógicas em Ciências da Natureza nos anos iniciais do ensino fundamental com estudantes cegos. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 15, n. 3, p. 497-518, 2015.
  • SILVA, Tatiane S.; LANDIM, Myrna F.; SOUZA, Verônica dos Reis M. A utilização de recursos didáticos no processo de ensino e aprendizagem de ciências de alunos com deficiência visual. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. v. 13, n. 1, p. 32-47, 2014.
  • VAZ, José Murilo C. O material didático para ensino de biologia: possibilidades de inclusão. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências. v. 12, n 3, p. 81-104. 2012.
  • VOOS, Ivani C.; GONÇALVES, Fábio P. Tecnologia assistiva e ensino de química: reflexões sobre o processo educativo de cegos e a formação docente. Química Nova na Escola. v. 38, n. 4, p. 297-305, 2016.
  • VOOS, Ivani C.; FERREIRA, Gabriela K. Acessibilidade para estudantes cegos e baixa visão: análise dos objetos educacionais digitais de física. Revista Educação Especial. v. 31, n. 60, p. 21-34, 2018.
 

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Ensino de Ciências e inclusão: algumas considerações a partir da literatura
in Desenho universal aplicado à aprendizagem: contribuições para o exercício da docência inclusiva
autoras: Narjara Zimmermann Rosângela Kittel

fonte: Colectânea de artigos: EDUCAÇÃO ESPECIAL E/NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ENTRE ESPECIFICIDADES E INDISSOCIABILIDADES  
 

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20.Abr.2025
Maria José Alegre