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Uma velha mulher cega - fotografia de Kevin McNulty (Serra Leoa, Kono)
1. A Aparição do Corpo
Vergílio Ferreira, discutindo a tese de Michel Foucault acerca da recente
invenção do homem como centro de saberes, fazia notar que o homem sempre esteve lá, "apenas
não precisou de o saber". Substanciando esta ideia, o autor oferece uma analogia
sobre a qual me detenho: "como se não dá conta de um órgão antes dele nos doer... Não pensamos no
nosso corpo enquanto temos saúde. Mas a doença não o inventa..." (Ferreira, 1998: 43).
Conforme refere a alusão de Vergílio Ferreira, há eventos, como a dor, que nos alertam
para a centralidade do corpo, mas esses eventos não criam por si a centralidade do
corpo, uma vez que ele é um dado incontornável da existência; esses eventos trazem, isso sim, a
consciência do carácter incorporado da existência.
É exactamente essa a tese fundamental que Drew Leder sustenta em The Absent Body
(1990). Este autor, partindo de uma evidente orientação fenomenológica, procura
confrontar o paradoxo da ausência corpórea. Um tal paradoxo parte da ideia de que, sendo os
nossos corpos uma presença inescapável no vivido, eles tendem a preservar-se num estado
de latência ou invisibilidade na quase totalidade das nossas existências e acções
quotidianas.
Portanto, durante a maior parte do tempo, e na maioria dos sujeitos, o corpo
tende a não ser trazido à consciência, permanecendo numa espécie de presença não notada e não
tematizada. Como mostra Leder, esta ausência do corpo da consciência do sujeito
é apenas suspensa em situações muito particulares: no escrutínio dos olhares de outros,
no confronto com a própria imagem corporal, numa digestão ruidosa, na necessidade de urinar,
na fome, na doença, na dor, etc. Isto é, o corpo é feito saliente nas experiências que
tornam o corpo presente e que promovem aquilo que o autor designa por "heightened
body awareness". Nos termos em que aqui a pretendo abordar, a questão da cegueira acentua a
consciência do corpo por via daquilo que Leder designa por "dys-appearance". Um conceito
que refere uma das vias por que o corpo aparece consciência. Esta formulação é explicada do
seguinte modo:
'I have used the term "dys-appearance" to refer to the thematization of the body
which accompanies dys-function and problematic states' (Leder, 1990, p. 86).
Assim "dys-appearance", cujo sufixo dys
o autor extrai do grego para dizer "mal", nomeia o acréscimo de consciência do corpo
por via de uma irregularidade, de uma perda ou um excesso no seu funcionamento.
Embora na cegueira a presença do corpo ganhe importância acrescida por uma série de
situações, como sendo o escrutínio suscitado pelos olhares alheios ou a necessidade de modos
alternativos de realização de actividades face às formas normativas de organização social,
pretendo aqui dar ênfase à pertinência que o corpo da pessoa cega assume enquanto expressão de uma
perda e de uma privação. Isto, seja para pulsar o lugar que esta perda ocupa nas
narrativas das pessoas cegas, seja para atentar no modo como as representações dominantes
associam a cegueira à presença de um défice. Portanto, procuro pulsar o corpo na cegueira
naquilo que pode ter de dys-appearance, uma aparição do corpo por via de um "mal", vivido ou
projectado. Deste modo, curiosamente, sigo uma linha em que o défice sensorial
que a cegueira faz supor emerge para tornar excessivo o corpo; sendo que o excesso em
causa mais não é do que a assunção de uma inflacionada consciência em relação à
omnipresença de um corpo pelo qual somos no mundo.
Quando, na continuada reflexão no decorrer da trabalho etnográfico, me coloquei
perante a necessidade de considerar o lugar ocupado pelas experiências de
sofrimento, dor e privação física, assim como perante o lugar que o conhecimento ocupa nas
percepções dominantes sobre a cegueira, senti-me enviado a recolher os despojos da
enunciação de Bryan Turner quando este afirma que
acreditar que as questões da representação são as únicas legítimas ou
cientificamente interessantes é adoptar uma posição de idealismo em relação ao corpo (1992: 41,
minha tradução).
Os momentos de privação e sofrimento implicados na experiência de deixar de
poder ver afloram em muitas histórias de vida da cegueira. Como o denota, por exemplo,
a resposta que me foi dada por Francisco, quando, algum tempo após uma das "recaídas" em
que perdeu alguma visão, eu lhe perguntava como encarava a considerável
possibilidade de vir a cegar:
-
Vai ser um choque grande para mim... se assim já é! Se me fizerem uma operação é
só depois de eu cegar completamente, porque agora ainda posso manter
este bocado de visão que tenho... se mexerem na vista é pouca probabilidade de existir melhoria; ao menos manter a
pouca visão que tenho, porque se ainda posso ver o sol ainda posso diferenciar algumas
cores, ver algumas silhuetas, não é? Ainda consigo ver, se for em câmara lenta, as imagens na
televisão...
(entrevista pessoal).
Estamos, pois, em face de realidades que fogem às apreensões discursivas, e onde
o corpo vivido assoma com incontornável vigor. A esta dimensão do sofrimento
pessoal, eminentemente corporal, não totalmente apreensível na sua relação com elementos
sociais, chamo angústia da transgressão corporal (Martins, 2008). A angústia da
transgressão corporal refere-se à vulnerabilidade na existência dada por um corpo que nos falha, que
transgride as nossas referências na existência, as nossas referências no modo de ser-no-mundo.
Assim entendida, a angústia da transgressão corporal concita-nos a reconhecer
dimensões de dor, sofrimento e ansiedade existencial onde, contra sedimentada negligência, o corpo
vivido e o conhecimento incorporado e as emoções adquirem estatuto nobre nas reflexões
sócioantropológicas.
O já aludido reconhecimento do corpo como lugar fulcral de algumas das mais
centrais formas de desigualdade e de controlo social na sociedade contemporânea (Turner,
1994: 28), tem estado associado a um grande volume de trabalhos investidos em deslindar os
processos e implicações da inscrição de sentido nos corpos e nas suas diferenças. No
entanto, torna-se igualmente perceptível que as leituras discursivas de que o corpo vem sendo alvo
nas últimas décadas reproduzem, frequentemente, um silenciamento e exclusão do
corpo, na manifesta incapacidade para articularem as leituras sócio-históricas com a
dimensão incorporada de toda experiência. Conforme sintetiza Miguel Vale Almeida no seio
de numa análise retrospectiva: "privilegiou-se a inscrição, negligenciou-se a incorporação" (1996:16).
Como afirma Judith Butler:
-
Seguramente os corpos vivem e morrem, comem e dormem, sentem dor, prazer,
suportam doença e violência; e esses factos, pode-se proclamar cepticamente, não podem
ser desmobilizados como mera construção (1993: xi, minha tradução).
Ao longo do trabalho etnográfico foram-se adensando algumas questões que se iam
mostrando crescentemente pertinentes na persecução de alguns elementos
relacionados com as experiências das pessoas cegas. Foi exactamente a tentativa de dar um corpo a
essas inquietudes, e de procurar construir para elas algumas linhas explicativas, que
me colocou perante a asserção que Terence Turner sintetiza de modo sonante quando afirma que
"o corpo de Foucault não tem carne" (1994: 36).
Assim, o tradicional descaso nas ciências socais do corpo vivido, do corpo como
condição de ser no mundo, da centralidade das experiências do próprio corpo e do
conhecimento incorporado, muito deve ao facto de estas ciências se terem
desenvolvido desbravando as exterioridades das ciências naturais — que já se ocupavam do
corpo natural —ao mesmo tempo que se inspiraram nos princípios positivistas cartesianos que
viram nascer as suas precedentes. De facto, a assunção do carácter contingente do
corpo no seio dos sistemas de significado, onde é diversamente determinado, bem como a avaliação
das consequências das representações culturais hegemónicasaloja-se na "grande
divisão" entre as "duas culturas" (Snow, 1998/1959), as ciências e as humanidades e os seus objectos:
o mundo natural e a cultura humana. E se é verdade, como afirma Arriscado Nunes
(1999: 26), que no seio desta divisão as ciências sociais adquirem um estatuto incerto, a
questão é que as abordagens do corpo neste ramo do saber estiveram sempre vinculadas à oposição
entre natureza e cultura, à luz da qual o corpo foi sempre abordado de forma parcial,
negligenciando-se as dimensões que diriam respeito às ciências naturais.
O facto premente é a asserção de que as leituras do corpo, ao seguirem o trilho
da "grande divisão", tenderam sempre a deter-se nas proximidades da fronteira,
dentro do terrenos da análise cultural, tendo deixado, por isso, francamente inexploradas
dimensões do corpo que importaria trazer para os questionamentos sociais e culturais. A
questão é que a premência do corpo, dos seus usos e das suas diferenças, nos coloca perante um
híbrido que as ciências sociais se mostraram grandemente incapazes de celebrar, tendo
enveredado quase sempre pela confortável pureza de um dos lados da fronteira.
No entanto, a expiação nas ciências sociais do corpo que ficou definido como
natural parte de uma interessante ironia. Há uma ambiguidade nas ciências sociais no
modo como o modelo mecanicista, informado pelo positivismo oitocentista, foi assumido.
Identifica-se, assim, uma vertente que se estabeleceu como dominante, investida em aplicar ao
estudo da sociedade todos os mecanismos metodológicos e epistemológicos consagrados no
estudo da natureza desde o século XVI, e uma segunda abordagem, marginalizada durante
muito tempo, fundada na persuasão de que as Ciências Sociais deveriam reivindicar
para si "um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do
ser humano e da sua distinção radical em relação à natureza" (Santos, 2000: 62). Ou seja, o certo
exorcismo do corpo enquanto parte do mundo natural no âmbito das ciências sociais, terá
devido também a uma tentativa de afirmação disciplinar de um campo autónomo, ensejo
cuja expressão precursora será a invocada necessidade de explicação do social pelo
social, que Durkheim preconizou. Embora Boaventura de Sousa Santos reconheça que a
especificidade do humano, e que a radical subjectividade e intersubjectividade que funda a vida
em sociedade devem estar na base de um desejável novo paradigma científico, o autor
não deixa de sublinhar o quanto esta perspectiva se nutriu e nutre do paradigma dominante
da ciência moderna. Até porque, se nos quisermos socorrer de uma última e irónica
instância, a recusa dos condicionantes biológicas do comportamento humano é legitimada por uma
especificidade biologicamente fixada na definição da espécie, onde se sanciona a
prioridade cognitiva das ciências naturais (ibidem: 64). As dificuldades que as ciências
sociais têm tido para abraçar o corpo poderão assim ser entendidas, em larga medida, por
referência ao modo como este insiste em transgredir a fronteira entre a cultura humana e a
natureza enquanto domínios adscritos, respectivamente, às humanidades e às ciências.
Mas a génese da epistemologia moderna informa os territórios da experiência
incorporada igualmente naquilo que é uma desqualificação do corpo nos processos
cognitivos. Refiro-me à presença paradigmática de um dualismo cartesiano que
fundou uma separação entre corpo e mente, e que haveria de atravessar toda a epistemologia
ocidental moderna, seja na consagração do carácter desincorporado do conhecimento, que se
tornou fundamental como suporte da neutral objectividade e ambição universalizante do
positivismo, seja na desqualificação do lugar do corpo e dos sentidos na
apreensão da realidade. Interessa-nos em particular o trânsito entre consolidação metonímica
da mente como lugar do conhecimento e a desvalorização do corpo e dos sentidos na
apreciação das formas de produção, reprodução e partilha de significados.
Se na omissão do corpo natural as ciências sociais denotam uma demarcação dos
domínios das ciências da natureza, na recusa do carácter incorporado do
conhecimento elas são informadas pelo dualismo cartesiano e modelo positivista que se estabeleceu
exactamente nas ciências naturais para investir o cientista de um saber
transcendente.
Portanto, em determinado tipo de empresas analíticas, perseguir o corpo implica
também acompanhá-lo para além da equação estrita entre mente e conhecimento, implica
superar o
legado cartesiano ao encontro de corpos que pensam.
Mas existe ainda um outro factor que se articula com (e acrescenta) aos
elementos até aqui considerados para a longa negligência da experiência incorporada. Ele
prende-se com o facto de a crítica social das últimas décadas se ter desenvolvido mantendo
sempre a memória das formas de objectificação e essencialização dos corpos, e da naturalização da
opressão, da violência e do extermínio, ocorrida no seio de determinados regimes
sociopolíticos totalitários. Por esta razão podemos reconhecer que existe um ímpeto na teoria
social das últimas décadas para negar o lugar "excessivo" que a ênfase no corpo natural e na
afirmação do carácter intrínseco das suas diferenças ocupou na legitimação de regimes
baseados na hierarquização biológica, fossem eles racistas/eugenistas ou sexistas. Sobre
isto mesmo fala
Anne Harrington (1997: 200) quando identifica o surgimento de conceitos chave no
pósmodernismo
e no pensamento contempor}neo (como "desconstrução" e "logocentrimo") que
se investem largamente em contrapor os regimes de significado essencialistas,
num
"protesto" contra o uso que os argumentos biológicos tiveram, cimeiramente, no
nazismo.
Portanto, a somatofobia na teoria social, de que já Judith Butler (1993) nos
falava, não é
separável de um desejo de não voltar atrás em relação às construções
essencialistas que
tiveram o seu apogeu no III Reich. Esta é uma dimensão histórica que faz supor
que o
aparecimento do corpo como um importante objecto analítico nas teorias sociais
ocorreu a
par de um impulso estratégico anti-essencialista que veio corroborar em parte a
já esmiuçada
propensão das ciências sociais para a negligência de um corpo dito natural, o
corpo como
condição ontológica da existência. Exactamente nesse sentido, Frederik Jameson,
num claro
registo de contra-corrente, oferece-nos uma leitura que se dirige para o ensejo
que assiste ao
anti-essencialismo, por ele percebido como uma negação das construções fascistas
e as
formas de solidariedade por elas criadas. Partindo de François Lyotard, para
quem todos os
desejos e posições políticas são libidinalmente iguais, Jameson defende que o
antiessencialismo
corresponde a um desejo, a uma estratégia e a uma pulsão libidinal, que se
opõe a discursos fascistas, racistas e patriarcais. Assim sendo, segundo o
autor, a natureza
aparece como o grande inimigo do pensamento anti-essencialista:
-
to do away with the last remnants of nature and with the natural as such is
surely the secret
dream and longing of all contemporary or postcontemporary, postmodern thought
(Jameson,
1994: 46).
Penso as linhas para que Anne Harrington e Frederik Jameson apontam têm uma
pertinência não poderia ser negligenciada nesta análise. No entanto, creio que a
identificação
desse "desejo anti-essencialista", embora se mostre fundamental para que
possamos
historicizar as abordagens epistemológicas na teoria e na crítica social, pode
ser percebida
em função da história trágica que pairam sobre as hermenêuticas sociais fundadas
na
persecução daquilo que de natural há nos corpos. Temos pois uma história
cautelar acerca
das consequências sociais de nos dirigirmos ao corpo para aceder a elementos que
aparentemente se subtraem às elaborações sociais de sentido.
Apesar das razões para a negligência da experiência incorporada preservarem
acuidade para um olhar crítico da incompletude que tende a eivar as leituras
sociais do
corpo, é de assinalar que este vazio tem sido alvo, desde os anos 1990, de uma
renovada
atenção. Um momento importante para que a escrita em torno da experiência
incorporada se
consolidasse nos estudos sócio-antropológicos foi, sem dúvida, a publicação em
1994 de
Embodiment and Experience, obra organizada por Thomas Csordas, e que é
constituída por um
conjunto de artigos de diferentes autores, cujos textos gravitam na órbita do
tema abrangente
da incorporação e da experiência incorporada. A proposta de Thomas Csordas,
recuperando
o legado de Merleau-Ponty, revela-se deveras oportuna para um cuidado analítico
em
relação a aspectos eminentemente relacionados com a fenomenologia do corpo
vivido,
cuidado esse que as inferências e questionamentos do trabalho etnográfico em
torno da
cegueira tornaram crescentemente prementes 1.
O interesse de Thomas Csordas radica exactamente da identificação da omissão do
corpo ou, pelo menos, da sua presença depurada, no seio da análise social. Em
particular,
Thomas Csordas produz uma hermenêutica crítica que se consubstancia na ideia de
que as
abordagens do corpo nas ciências sociais vêm sendo mapeadas por aquilo que o
autor
considera ser uma aceitação tácita do legado cartesiano, à luz do qual o corpo,
separado da
mente, tem sido sistematicamente desqualificado enquanto sujeito de conhecimento
e de
cultura (cf. Csordas, 1990; Csordas, 1994a; Csordas, 1994b). Csordas define
assim como uma
das principais características do tema da incorporação o facto de ele
necessariamente
produzir a falência das dualidades entre mente e corpo, sujeito e objecto.
Assim, ao querer
estabelecer a incorporação como um novo paradigma para a Antropologia, Thomas
Csordas
pretende afirmar a necessidade de o corpo não ser apenas entendido como um
objecto em
relação à cultura, um texto em que esta se inscreve ou que por ela é
interpretado, mas,
igualmente, como sujeito de cultura. Ou seja, Csordas releva a importância de
acedermos às
implicações do corpo como a base existencial da cultura (Csordas, 1990). Na
realidade, Como
saliente Vale de Almeida (1996), no livro Embodiment and Experience a proposta
de Csordas é
mais ambiciosa, uma vez que define a necessidade de atendermos à experiência
incorporada
sustentados na ideia de que o corpo é base existencial não apenas da cultura,
mas também do
self. No entanto atenho-me à primeira formulação. Isto porque, não pretendendo
negar o
alcance das implicações da proposta de Csordas, reconheço a pertinência da
crítica que
Miguel Vale de Almeida (1996: 12) produz em relação a um eventual pendor
universalista,
pouco atento a idiossincrasias culturais, na proposta deste autor, e, portanto,
considero ser
mais adequada a formulação da incorporação como a base existencial da cultura.
Uma
perspectiva que decorre, e seguindo a crítica de Miguel Vale de Almeida, do
facto de que, ao
afirmar a incorporação como o incontornável fundamento existencial da cultura e
do self,
Thomas Csordas deprecia as evidências etnográficas em relação às distinções
entre corpo e
pessoa.
O pensamento de Csordas inspira-se fortemente na Fenomenologia da Percepção de
Maurice Merleau-Ponty (1999/1945), fundando-se em particular no postulado que
orienta
largamente o trabalho do filósofo, segundo o qual o corpo, embora constituindo
uma
realidade material culturalmente objectificada é, antes de mais, uma realidade
pré-objectiva,
que se estabelece inescapavelmente como o fundamento dos processos perceptivos
que
terminam na objectificação:
-
Embora eu veja ou toque o mundo, o meu corpo não pode no entanto ser visto ou
tocado: o que
o impede de ser alguma vez objecto, de estar alguma vez "completamente constituído", é
o
facto de ele ser aquilo por que existem objectos (Merleau-Ponty, 1999: 136)
Diz-nos, portanto, Merleau-Ponty, que o nosso corpo fenomenal, a nossa âncora
existencial, não deve nem pode ser subsumida na análise dos itinerários da sua
objectificação: "não é nunca nosso corpo objectivo que movemos, mas nosso corpo
fenomenal, e isso sem mistério" (ibidem: 153). A localização do corpo emerge
assim como
um apriorismo existencial numa relação com o mundo. No entanto, a asserção da
existência
de um corpo que "permite a existência" não poderá ser dissociada dos contextos
de
significado socialmente produzidos. É exactamente à necessidade de
contextualização e ao
perigo de a incorporação ser equacionada com perspectivas resolutamente
universalistas,
que Thomas Csordas responde (1990: 10), quando refere que, ao se afirmar o corpo
como
realidade pré-objectiva, e como irrevogável localização posicionada no acesso ao
mundo, não
se poderá entender a experiência incorporada como estando fora ou sendo anterior
à cultura.
Na sua leitura, o significado cultural deverá ser reconhecido enquanto
intrínseco à existência
incorporada, ao nível existencial de "ser-no-mundo".
Quando evoco aqui a questão da experiência incorporada não pretendo fazer apelo
a
universalismos existenciais que nos enviem para fora do âmbito de uma
contextualização
sociocultural; o mesmo seria negar o percurso a que me proponho neste texto em
torno da
cegueira. A inserção no âmbito deste trabalho desta dimensão eminentemente
fenomenológica supõe a sua relevância no que ela nos poderá informar acerca do
modo
como se produzem e reproduzem as representações culturais em torno da cegueira.
Trata-se,
pois, de produzir extensão analítica de uma contextualização sociocultural e não
a negação
desta.
A negação da exterioridade do mundo e do corpo em relação à cultura e à
subjectividade encontra-se no próprio pensamento de Merleau-Ponty. Embora o
filósofo fale
de realidades pré-objectivas, que estão "ali" antes de qualquer reflexão que se possa
fazer
delas, o seu texto expressa esse movimento de reposição das essências na
existência, a partir
do qual os objectos que estão "ali" estão sempre numa modalidade —
potencialmente —
indeterminada. Este enfoque, longe de nos subtrair das relações entre
experiência e cultura,
pretende, isso sim, acrescentar à premência analítica da nossa insofismável
existência
corpórea; a asserção que nos trouxe. Falo de uma outra âncora existencial,
aquilo a que
Marilyn Strathern chama a "intratabilidade" (intractability) das relações
sociais (1996). A
plataforma de reflexão analítica que a nossa experiência etnográfica suscitou, e
que Thomas
Csordas largamente substancia nas suas preocupações, coloca-nos, num só momento,
perante a necessidade de trazermos o corpo sob novas formas para a arena da
produção
teórica e empírica das ciências sociais, e perante o perigo de se perder
contacto com as
construções socioculturais que dão contexto. As secções que se seguem procuram
conferir
relevância ao corpo vivido nos significados que, cruzando experiências e
representações, se
entretecem em torno da cegueira.
2. A Cegueira como "Modo de ser na Vida"
Perseguindo uma das linhas pelas quais a experiência incorporada importa ser
valorizada no diálogo com a cegueira, nesta secção procuramos pulsar a
efectividade de
experiências em que a cegueira é subjectivamente vivenciada como uma privação
sensorial,
como uma limitação incapacitante, e como causa de um penoso sofrimento. No
fundo, as
experiências que metonimicamente consagram as representações dominantes da
cegueira
sob a perspectiva de uma tragédia pessoal. Certamente distantes da reinstauração
de uma
"narrativa da tragédia pessoal" (Oliver, 1990) acerca da cegueira, move-nos um duplo
desafio: a) aceder ao lugar da perda e privação sensorial que surgem nas
histórias de vida
enquanto elemento significativo das experiências pessoais; b) perceber a
diferença entre o
lugar que as experiências de perda e privação ocupam nas reflexões biográficas e
o lugar que
lhes é imputado pelas representações dominantes da cegueira.
Embora os constrangimentos implicados pela cegueira aos seus portadores estejam
profundamente intrincados nas concepções culturais dominantes e nas formas de
organização vigentes, procurarei aceder neste capítulo a narrativas e
experiências em que o
impacto pessoal da cegueira se revela também para além dessas contingências
sóciohistóricas.
No entanto, ao analisar estes elementos mais imediatamente ligados às
experiências corpóreas dos indivíduos cegos, não estou particularmente
interessado em
explorar os mundos fenomenológicos constituídos a partir da diferença sensorial.
Aliás, são
essas as questões que mais frequentemente surgem nos questionamentos que o senso
comum
dirige à cegueira: "como são os sonhos de quem nunca viu?", "como será o mundo
apenas
feito de sons, do toque, de odores e de paladares", "o que dizem as cores para
que nunca as
viu?", etc. Na realidade, o propósito central que me guia nesta etapa é menos
uma
curiosidade em torno dos mundos fenomenologicamente constituídos na ausência da
visão,
do que um interesse no modo como emergem, nas narrativas e nos relatos
autobiográficos
dos sujeitos, situações de sofrimento directamente relacionadas com a
experiência de
privação que pode estar associada à cegueira por contraponto às representações
dominantes.
O sofrimento é uma das bases incontornáveis da experiência humana (Kleinman e
Kleinman, 1997: 1), estando associado a um enorme espectro de eventos que marcam
a
existência: a dor física, a experiência da humilhação, a fome, a morte de um
ente próximo, a
solidão, a antecipação da própria morte, o fim de uma relação amorosa, etc. Nas
representações dominantes na nossa sociedade a ideia da cegueira encontra-se
firmemente
vinculada ao tema do sofrimento e da tragédia, constituindo uma projecção que
tende a
pensar as vidas das pessoas cegas imputando-lhes as noções de infortúnio,
incapacidade e
tragédia como marcas identitárias poderosamente imbricadas, estigmas que
frequentemente
conflituam com as concepções positivas e os desejos de realização de quem é
cego.
A isso mesmo foi dado ênfase quando, a partir dos usos da bengala branca,
analisámos
o lapso central nas construções do sentido da cegueira: aquele que se estabelece
entre as
leituras afirmativas e positivas da cegueira que encontrei nas narrativas e
vivências dos
sujeitos, assim como no discurso associativo; e as persuasões sedimentadas na
sociedade
mais ampla que descrevem a cegueira por apelo à "narrativa da tragédia pessoal".
No
entanto, e como então afirmámos, a assunção desta disjunção não equivale a
afirmar que o
profundo sofrimento e as ideias de tragédia não surgissem na realidade
específica que
estudei: "depois de cegar só pensava que mais valia ter morrido a ficar assim",
"ficar assim
sem ver de um momento para o outro é uma coisa terrível". Momentos e
experiências
traumáticas surgiram nas histórias de vida e em termos que vão para além da
evidência que
todas as vivências são marcadas por eventos de sofrimento. Por outro lado, há
muitas
situações em que o impacto subjectivo da cegueira não se dilui na constatação de
que as
pessoas cegas são alvo de uma poderosa depreciação e exclusão social. O
sofrimento e noção
de privação que as concepções hegemónicas sobre a cegueira exacerbam,
confluindo-o com a
experiência das pessoas cegas de ponta a ponta, merece ser percebido dentro de
uma
contextualização nas histórias de vida. Deste modo recupero o que acima chamei
de angústia
da transgressão corporal, que será problematizada a dois níveis: a angústia pela
transgressão
vivenciada no próprio corpo e, em segundo lugar, a angústia enquanto
incorporação de uma
transgressão intuída no corpo de outrem.
Dirijo-me agora para a primeira modalidade aventada, a que se refere à angústia
suscitada pelo acolhimento da cegueira no próprio corpo, e para o modo como um
tal
advento pode suscitar uma vulnerabilidade da existência trazida pela
transgressão daquelas
que eram referências corpóreas e existenciais dos sujeitos. Como atrás
mostrámos, o
ajustamento das pessoas à sua condição sensorial muito depende dos ensejos de
realização
pessoal, mais fundamentalmente ligados ao aspecto profissional; depende, por
isso, do lugar
que a cegueira possa ocupar como obstáculo a esses itinerários. Naturalmente,
esses
elementos não são dissociáveis dos aspectos socioculturais que vimos colocando
no centro da
análise. Mas, para além destas questões que se prendem com os projectos pessoais
dos
sujeitos, foi possível ler outros factores no modo como a cegueira e as
dificuldades por ela
implicada são acolhidas pelos seus portadores.
Numa primeira instância, poderia dizer que os elementos que se revelaram mais
prementes nas convivências quotidianas, nas reflexões e nas histórias de vida
foram: o facto
de a cegueira ser de nascença ou não, o tempo decorrido desde a perda da visão
(no caso de
a cegueira ser adquirida), e as circunstâncias da perda, fundamentalmente o
facto de esta se
ter dado de um modo progressivo ou súbito. Relativamente ao primeiro facto,
verifiquei algo
que também se encontra presente nas construções reflexivas de quem trabalha
profissionalmente com pessoas cegas; ou seja, o facto de as pessoas cegas de
nascença
tenderem a mostrar uma maior adaptação à sua condição, e de nelas ser menos
patente a
existência de sentimentos de inconformismo ou "revolta" pelo facto de serem cegas.
Isto
acontece porque, em grande parte dos casos, houve uma aprendizagem desde a
infância que
lhes ensinou as competências e técnicas a serem empregues por quem não vê para a
realização das mais diversas actividades. Mas também, e sobretudo, porque nesses
casos não
existe uma experiência de perda, não há um mundo empobrecido naquilo que nele se
pode
apreender, não há um constrangimento em relação aos modos de fazer, tampouco um
confronto com as coisas que se tornaram impossíveis de fazer. Não há, portanto,
a
experimentação de uma ruptura, nem a submissão a uma transformação no modus
vivendi. É
óbvio que as pessoas que já nasceram cegas têm uma noção do que as separa de
quem vê,
uma distância que é experimentada quotidianamente na comparação com os outros:
na
diferença que a visão estabelece na realização de actividades e na apreensão de
elementos do
mundo envolvente. Isto mesmo me dizia Vítor, cego de nascença, quando eu
indagava como
é que o facto de nunca ter visto se concertava nele com a noção da privação
implicada pela
cegueira:
-
[Sentes-te privado de alguma coisa por não veres?]
-
Claro que sinto, desde uma
coisa tão simples
como ir ver um filme ao cinema, olhar para uma fotografia, para uma pessoa, isso
há muito
coisa que estamos privados... Agora não significa que não se possa viver sem elas tão
bem
como se as tivéssemos.
Por outro lado, essa noção concilia-se com a inexistência de um sentimento de
perda:
-
[De que aspecto é que sentes mais falta?]
-
Não posso dizer o que sinto mais falta
porque nunca
conheci outra coisa, sempre fui cego, nunca vi... de uma certa forma
habituas-te a fazer as
coisas...
Aliás, tanto em Portugal como em Moçambique 2,
foram várias as pessoas que me
referiram que até certa altura na sua infância não tinham a noção de que eram
cegas. Assim
foi o caso de Fernanda que, até à altura de ir para a escola, tinha por hábito
brincar na rua
com as restantes crianças: "só me apercebi que era diferente quando os meus amigos
foram
para escola e eu fui para o colégio de cegos". Para quem é cego de nascença, as
diferenças
implicadas pela cegueira são, portanto, conhecidas no correlato com as
experiências de quem
vê. Algo que faz com que a efectividade de um défice sensorial apenas se
actualize nos
sujeitos perante algumas realizações que lhes estão vedadas, algo que na maioria
dos casos
favorece a que a cegueira seja acolhida sem particular dramatismo, tendendo a
verificar-se
um maior ajustamento pessoal ao encontro do reconhecimento e afirmação vivencial
das
capacidades que residem na cegueira. É óbvio que as experiências a que acedi por
via da
ACAPO não deixam de operar uma triagem das narrativas, sendo plausível supor uma
diferença entre as pessoas que entrevistei e aqueles que nunca se subtraíram a
formas de
super-protecção das suas famílias — onde presumivelmente vigoram perspectivas
mais
incapacitantes acerca da cegueira. No entanto, o que aqui se ressalta é a
inexistência de uma
experiência de perda, por um lado, e por outro o facto de a ausência de uma
perda conduzir
a uma "incorporação" mais "natural" da cegueira enquanto incontornável marca da
existência. Por esta razão, não é incomum ouvir nestas pessoas afirmações que
representam
uma desdramatização que, para quem vê ou já viu, soam a excessivas. Recordo uma,
decorrida num ambiente de lazer com duas associadas cegas congénitas: "Olha, tenho
mais
desgosto em ser gorda do que ser cega, mas é óbvio que gostava de ver, gostava
de poder ver
os meus filhos..."; "eu só queria ver para poder conduzir, porque ao fim de semana fico
para
lá sem transportes...". O corpo que é sede de uma relação com o mundo que biográfica e
fenomenologicamente desconhece a visão, é um corpo em que não está implicada a
experiência de uma transgressão, seja a transgressão de um modo de vida, seja a
transgressão de uma concepção do mundo fundada na visão, seja, ainda, a
transgressão do
próprio sentido da vida.
Deste modo, a ilação fundamental é que em muitas das narrativas pessoais da
cegueira
— as das pessoas cegas de nascença — a premência das ideias de perda, de
tragédia e de
infortúnio está ausente enquanto correlato da cegueira. Ao contrário do que as
narrativas
dominantes fazem sugerir, a cegueira não se liga necessariamente à angústia da
transgressão
corporal. Portanto, em última inst}ncia, "a narrativa da tragédia pessoal" — a plataforma
conceptual culturalmente privilegiada para a apreensão da existência das pessoas
cegas — e
aquilo que nela há de suposição de uma narrativa de trágica ruptura corporal e
existencial,
mostra ser profundamente desadequada para captar as experiências de quem nunca
viu.
Ademais, existem histórias de vida em que, mesmo havendo uma perda e uma ruptura
profunda, a cegueira surge num tal quadro que essa dissolução pode ser
relativizada. É o
caso de Carolina que, apesar de ter ficado cega abruptamente aos 14 anos,
justifica o
optimismo com que sempre encarou a sua cegueira (e que se me tornou
quotidianamente
evidente) pelas circunst}ncias em que perdeu a visão: "fui operada em último grau,
era
operada ou morria, perdi a visão, do mal o menos!". As incorporações da cegueira
estão
inevitavelmente vinculadas a idiossincrasias pessoais, mas permitem desalojar —
ou
complexificar — as perspectivas sociais que encostam as pessoas cegas à ideia de
uma perda
dilacerante.
Quando acedemos às narrativas das pessoas que perderam a visão nalgum período
das
suas vidas acedemos a matizes que oferecem novas complexidades. A efectividade
de um
evento trágico que conduz à cegueira é de novo negado, desta vez pelo modo como
muitas
formas de cegueira sobrevêm lentamente, permitindo um ajustamento gradual. Na
verdade,
há várias doenças de gradual degenerescência, muitas delas de carácter
hereditário, que
conduzem a uma lenta cegueira. Por isso, muitos dos casos de cegueira são o
resultado de
um processo lento e anunciado, que permite aos sujeitos anteciparem a
eventualidade de
uma perda que ocorre muitas vezes como um vagaroso anoitecer de muitos anos.
Jorge Luís
Borges alude em vários momentos da sua obra, directa ou indirectamente, à
cegueira que lhe
sobreveio lentamente até lhe roubar a visão aos 55 anos. Uma inevitabilidade que
soube
aceitar e que já havia visitado o seu pai e a sua avó: "Pedir que não me anoiteçam os
meus
olhos seria uma loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são
particularmente
felizes, justas ou sábias" (Borges, 1998a: 394). Numa curiosa fábula, Jorge Luís Borges evoca
o
encontro onírico de si consigo mesmo; aí se conta como no banco de um jardim
junto ao rio
tomou lugar o diálogo mágico de um Borges septuagenário com o seu jovem
predecessor.
Um encontro dos diferentes tempos de uma vida em que profecias e memórias se
cruzam, e
onde a cegueira é tranquilamente revelada pela voz do ancião:
-
Quando atingires a minha idade terás perdido quase por completo a vista. Verás a
cor amarela e
sombra e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é coisa trágica. É como
um lento
entardecer de Verão." (Borges, 1998b: 14, minha ênfase).
Apesar de Borges ter visto durante grande parte da sua vida, a possibilidade de
antecipar a cegueira constituiu um elemento importante de apaziguamento pessoal:
-
O meu caso não é especialmente dramático. É dramático o caso dos que perdem
bruscamente a
vista: trata-se de uma fulminação, de um eclipse, mas no meu esse lento
crepúsculo começou
(essa lenta perda de vista) quando comecei a ver. Prolongou-se desde 1899 sem
momentos
dramáticos, um lento crepúsculo que durou mais de meio século (Borges, 1998a:
289).
A questão que a experiência de Borges nos reporta prende-se com um factor que
tende
a mitigar em muito o dramatismo implicado pela perda de visão. Evoco a narrativa
de
Borges porque ela é congruente com as ilações que extraí, e com as histórias
pessoais a que
acedi durante o trabalho de campo. Ou seja, os casos de cegueiras anunciadas e
graduais,
embora não deixem de ser fonte de grandes angústias, ansiedades e tensões,
tendem a
favorecer uma consciencialização da necessidade de se viver com a cegueira,
conduzindo
mesmo, nalguns casos, a uma aprendizagem antecipada das competências necessárias
para
uma vida sem visão.
No entanto, as condições degenerativas da visão variam no modo da sua evolução,
como variam os casos particulares. Recordo contactar com pessoas cujos momentos
de
tristeza mais aguda resultavam da consulta médica periódica, por aí tomarem
conhecimento
do valor da diminuição da acuidade visual. Noutros casos o processo não se dá
por um
declive mas antes por pequenas quedas que são claramente percebidas pelos
sujeitos,
levando a momentos de maior angústia. Eu próprio assisti ao evoluir de algumas
situações,
como por exemplo a de Ricardo, cuja visão foi piorando de modo notório ao longo
da
formação profissional que realizava na ACAPO:
-
Há três anos conseguia ver... mais ou menos bem, agora há três anos
agravou por causa do
descolamento da retina que tenho, e tem tendência a piorar, a tendência é mesmo
cegar
completamente, agora já só vejo vultos... às vezes consigo ver a pessoa mas é muito
raro... lá há
um dia ou outro em que consiga vislumbrar mais alguma coisa, mas normalmente só
consigo
ver vultos (entrevista pessoal).
Do mesmo modo pude dar conta da progressão de Rita que pouco tempo antes da
entrevista que me deu havia tido uma perda de visão importante: "Piorei há 4/3
semanas,
passei a só a ver vultos e a ter percepção de luz". Mas, como referi, também há
outros casos
em que a cegueira chega pé ante pé, durando por vezes dezenas de anos a
consumar-se.
Alberto cegou ao longo da vida, já via mal na infância e, por via de um processo
lento e
gradual, só haveria de ficar completamente cego por volta dos 35 anos:
-
Na primária via mal, mas pensava que toda a gente era assim, só depois comecei a
ver a
facilidade com que as pessoas se deslocavam, comecei a aperceber-me que via de
um modo
diferente lá para os 10 anos. (...) à medida que a visão ia diminuindo eu ia indo
aos médicos,
passei da mota para a bicicleta, a certa altura [1982] tive que abandonar
tudo. (...) eu não sei se
senti mesmo a fundo o facto de estar a cegar, se calhar nunca recebi esse
choque, como uma
pessoa que tem um acidente...
Alberto teve que abandonar o seu trabalho na construção civil e, logo após ter
ficado
cego, foi fazer a reabilitação no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos
Anjos. Nessa
altura, o que mais lhe custou foi o facto de ter ficado incapacitado de
trabalhar nas suas
antigas funções. Como o próprio refere, nunca vivenciou propriamente um "choque" com
a
perda de visão, tal foi a suavidade do seu anoitecer. Embora não sejam elidíveis
momentos
de algum pesar, estes processos tendem a conferir aos sujeitos uma assinalável
capacidade
de ajustamento à própria cegueira. Portanto, não estando ausente o confronto com
a
vulnerabilidade do próprio corpo, e se por vezes é possível detectar um grande
inconformismo, a verdade é estamos perante processos de cegueira cuja evolução
ocorre sem
momentos críticos de ruptura existencial ou sem drásticas alterações do modus
vivendi. Assim
antecipava Lara a sua possível cegueira:
-
Observo as pessoas e vejo-as rirem-se e fazerem tudo, para mim esses modelos são
uns heróis e
penso que quando lá chegar e se cegar, quero rir-me das coisas e fazer as coisas
como eles fazem
(entrevista pessoal).
Os elementos até aqui evocados dão conta de histórias de cegueira caracterizadas
pela
ausência de eventos de perda dilacerantes e de ruptura. O encontro com a
pluralidade das
narrativas de cegueira que aqui ensaiamos acentua uma distância entre a
apreensão
biográfica da cegueira — enquanto incorporação —, e o modo como a ideia de perda
trágica
participa na vigência hegemónica de uma meta-narrativa da tragédia pessoal que é
culturalmente interposta na vida das pessoas cegas. O mesmo não implica,
contudo, a
negação de experiências de profundo sofrimento associadas à privação sensorial
ligada à
própria cegueira. Sendo constatável que a angústia da transgressão corporal está
totalmente
ausente de muitas das narrativas de cegueira, cabe reconhecer como essa angústia
pungentemente toma parte em muitas das histórias de perda de visão. Como
verificámos, o
impacto da perda de visão pode ser bastante relativizado e matizado nas muitas
situações de
cegueira gradual. No entanto, menos sujeito a processos de ajustamento "serenos"
é
certamente o sofrimento causado por situações em que a perda de visão acontece
sem aviso,
de modo abrupto. O confronto com uma reflexividade que assinala um substancial
sofrimento, mais directamente ligado a dimensões corpóreas da experiência, surge
mormente associado a experiências de profunda ruptura vivencial, em que a perda
de visão
surge de facto como cataclismo:
-
Ia de mota, estava parado, caí, desmaiei e fiquei assim com os olhos. Naquela
altura não havia
os capacetes que existem hoje, e os oculozinhos que eram os óculos tipo soldador
bateram no
chão, deslizaram, bateram aqui dentro da órbita, bateram no cristalino, o
cristalino rompeu a
retina. Se existissem os capacetes que existem hoje... (...) O Dr. Lopes de Andrade, que era
na
altura o director do Instituto Gama Pinto, disse para o meu pai: "o seu filho —
esquecendo-se
ou não se esquecendo que eu estava atrás de um biombo, disse —, o seu filho
nunca mais volta
a ver na vida." E foi aí a maior desilusão da minha vida (Vitorino, entrevista
pessoal).
É nas perdas de visão narrativas marcadas por narrativas abruptas que me
procurarei
deter. Nas histórias de cegueiras inesperadamente infligidas por um evento
súbito, somos
colocados perante acontecimentos que os sujeitos recordam como profundamente
traumáticos, rupturas que tendem a desencadear um confronto agonístico com a
possibilidade de uma vida sem visão, em que ser ou não ser, não raras vezes,
assoma como
questão:
-
Comecei por esperar boas notícias de médico para médico, e depois houve uma vez
que pensei
no suicídio. Um dia desesperado, fui atrás da Igreja da Penha de França e pensei
em atirar-me
dali abaixo. Depois alguém veio ter comigo — não sei quem, nunca mais vi a
pessoa — "você
não faça isso, você vá à vida e volte para trás" (Vitorino, entrevista pessoal).
Mas, se é verdade que as ideias de desastre e tragédia ganham, de facto,
efectividade
nessas experiências, também pude perceber como nas narrativas pessoais o
reconhecimento
do impacto de uma perda passada se articula com um distanciamento pessoal — que
também é temporal — de sujeitos que aprenderam a começar de novo. Portanto, é de
frisar
que essas experiências de perda dilacerante chegam na esmagadora maioria dos
casos por
via de narrativas pessoais onde se expressa uma capacidade de acomodação que
também
importa considerar:
-
A certa altura eu não passava de um gajo morto, então levantei-me,
estiquei-me, fui à procura...
Fui para a Fundação Raquel e Martin Sain... Profissionalmente, primeiro fui
vendedor deles. A
Fundação Sain mostrou-me o caminho a seguir, reabilitei-me. Fui vendedor da
Fundação Sain.
Depois zanguei-me com o genro do Sr. Sain, que ele não entendia nada de
comércio. Depois o
meu emprego foi numa multinacional onde eu fui sempre responsável pelo sector de
compras e
património. Comecei a trabalhar, refiz a minha vida e estou-me bem nas tintas
para isso do
"coitadinho" (Vitorino, entrevista pessoal).
Vitorino, nascido em 1934, cegou aos 29 anos e hoje, reformado, tem atrás de si
toda
uma vida de trabalho nos mais diversos sectores de actividade. Move-se com
impressionante
desenvoltura por Lisboa, exibindo com orgulho o seu conhecimento minucioso da
planta da
cidade — as ruas, as transformações ao longo dos anos, os estabelecimentos que
fizeram a
história da cidade —, dando óbvia nota do quão distante está aquele dia em que
equacionou
o suicídio atrás da igreja da Penha de França. Na narrativa de Vitorino, a
tragédia que um
dia a cegueira lhe trouxe é tão significativa como a identidade que
convincentemente refez
de molde a superar a ruptura aí implicada.
Longe de pretender reescrever por esta capacidade de distanciamento alguma forma
de idealismo que elida as implicações pessoais de uma tão significativa
transgressão das
referências corporais e sensoriais, pretendo expor como os mundos da experiência
tendem a
ser equivocamente percebidos fora das narrativas dos seus protagonistas. Neste
particular,
torna-se importante que as experiências de sofrimento possam ser integradas nos
percursos
pessoais e nas suas construções reflexivas, elaborações que nos colocam amiúde
perante
histórias de resistência: resistência contra a perda sensorial, resistência
contra as
representações que totalizam a identidade da pessoa cega através da ideia de
perda.
Concordo, portanto, com o que diz Arthur Kleinman, quando este coloca ao centro
da análise
da dor e do sofrimento a necessidade de se contemplarem as construções
elaboradas nos
mundos locais da experiência dos sujeitos:
For an ethnography of experience the challenge is to describe the processual
elaboration of the
undergoing, the enduring, the bearing of pain (or loss or other tribulation) in
the vital flow of
intersubjective engagements in a particular local world (Kleinman, 1992: 191)
Patrício estudava Português-Francês na universidade quando, aos 22 anos,
viajando
num autocarro, apanhou com uma cotovelada que levou a um descolamento da retina.
Em
consequência disso cegou do olho direito. Patrício conta que teve extrema
dificuldade em
conviver com esse momento doloroso, que também fez aumentar em muito uma certa
desmotivação que já sentia em relação ao seu curso, contribuindo para que
durante alguns
anos se alheasse: "Andei assim um bocado perdido, não me adaptei bem à situação,
faltava
às aulas, houve anos que não frequentei". Só mais tarde, com 27 anos, voltaria a recuperar
o
alento para continuar a estudar, mas no ano em que pediu o reingresso e em que
já se sentia
preparado para recomeçar começou a ter alguns problemas no olho esquerdo. Foi ao
oftalmologista e descobriu que tinha uma doença rara. Segundo me explicou,
trata-se de uma
patologia de origem genética que faz com que o corpo produza anticorpos a mais,
anticorpos
esses que vão impedir a circulação nos capilares da retina. Os problemas aí
causados
levaram a que viesse a cegar com cerca de 29 anos. Apesar de ser provável que a
condição
genética de Patrício tivesse conduzido per se à cegueira de ambos os olhos, o
percurso da sua
perda de visão acaba por ficar marcado por duas circunstâncias deveras
insólitas, a
cotovelada involuntária no autocarro e o acometimento de uma doença rara. Quando
perguntei a Patrício qual havia sido o seu momento mais difícil, respondeu:
-
Acho que foi a partir dos 27 anos, mais ou menos, eu tinha... [suspiro] havia
coisas que eu
gostava imenso de fazer, que era... gostava de desenhar, pintar... depois também
não conhecia a
ACAPO, não sabia nada de Braille! Também se calhar na altura não estava
interessado... estava
tão completamente fora de mim e se calhar não estava interessado (entrevista
pessoal).
Patrício esteve um longo período sem que conseguisse reagir à perda de visão. E
se é
verdade que então também pesava o desconhecimento acerca daquilo que as pessoas
cegas
podiam fazer e a agonística incorporação dos preconceitos detidos em relação à
cegueira, o
facto mais premente foi sem dúvida o impacto da perda de visão, decerto ampliado
pelo
gosto que tinha em relação às artes visuais 3.
Esse impacto foi dolorosamente
vivido, tendo
levado a que Patrício se fechasse ao mundo por algum tempo:
-
Ao princípio foi bastante mal... mesmo! Bastante mesmo!... (...) Costumo dizer que estive
pelo
menos 3 anos a reciclar em casa, sem fazer nada. Depois em fins de 99 é que fui
fazer
reabilitação em Lisboa na Nossa Senhora dos Anjos, reabilitação, aprender as
bases do Braille e
outras coisas. Mobilidade também! E depois acho que re..., como um professor que
lá estava
costuma dizer é preciso renascer... acho que agora me estou a dar um bocado bem,
estou mais
animado,... É isso mesmo, uma pessoa quando fica cega tem mesmo que esquecer um
bocado o
que estava para trás e abrir outras perspectivas, outras portas e também não se
sentir como
mártir, martirizada, coitadinho como se costuma dizer, acho que é preciso levar
as coisas para a
frente e saber que nós também temos capacidades (ibidem).
Os três anos que Patrício esteve em casa correspondem a um período de moratória
que
as pessoas quase sempre apõem à inesperada chegada da cegueira. Também no caso
de
Patrício se torna notório o fulcral papel que o centro de reabilitação — neste
caso o Centro de
Reabilitação Nossa Senhora do Anjos — desempenhou em tantas histórias de vida de
pessoas cegas a que acedi. No centro de reabilitação a pessoa cega, além de
conviver com
pessoas na mesma situação, adquire um sem número de competências para a sua
vida: o
Braille, a mobilidade, a higiene pessoal, a cozinha, a limpeza da casa, a
comunicação
interpessoal, etc. Igualmente fulcral é o suporte mútuo que se cria entre
pessoas, sobretudo
para aquelas que vêm de rupturas dramáticas nas suas existências após cegarem, e
que
frequentemente ali conhecem pela primeira vez outras pessoas cegas. Este clima
de partilha
entre sujeitos que realizam a reabilitação inicial — tendo ou não atravessado
por
experiências de perda similares — é também a partilha de uma situação de
marginalidade
social: em parte porque muitas pessoas cegas são relegadas para as franjas da
sociedade, mas
também porque o ingresso num tal centro de reabilitação faz supor a ausência de
um
património pessoal de competências passíveis de conferir aos sujeitos a
capacidade para uma
participação social mais activa. Por estas razões, nas muitas histórias de vida
que recolhi os
centros de reabilitação ligados à cegueira emergem como espaços onde
singularmente se
elabora a ideia da solidariedade entre pessoas que se encontram na mesma
passagem 4: em
busca de aprendizagens e de uma vivência capacitada da cegueira.
Quando falei com Patrício tinham decorrido cerca de três anos desde a altura em
que
ficou cego total. Namorava então com uma rapariga cega que conheceu na ACAPO,
mostrando todos os dias uma capacidade e vontade de superação que, como o
próprio
assume, e eu pude atestar, muito depende, no seu caso, do uso do humor para
desdramatizar
as dificuldades. Contou-me que o seu objectivo seria empregar-se como
telefonistarecepcionista
num hotel, tomando partido do francês fluente que adquiriu pelo facto de ter
estado emigrado durante a adolescência, para então poder concluir a sua
licenciatura, já
apoiado no domínio do Braille. A pessoa com quem falei era certamente alguém que
havia
passado por experiências profundamente dolorosas, mas onde era também já patente
uma
reconfiguração do "mundo da vida", substanciada na sedimentação de uma luta
por
projectos em que a cegueira era já tida como um dado. Aliás, o sucesso da sua
adaptação ao
doloroso processo por que passou fica também patente no modo serene como se
adaptou ao
uso da bengala branca e na forma como diz enfrentar as expressões de
preconceitos
quotidianamente reiteradas em relação à cegueira:
-
Sempre aquela coisa do coitadinho, do ceguinho, por pena, se calhar... A mim não
me afecta
muito, até percebo a opinião das pessoas, mas em colegas meus na ACAPO às vezes
vejo que
revoltam-se com a situação, não gostam de ser chamados assim, outros não gostam
de ser
ajudados a subir no autocarro ou a atravessar a rua... eu não tenho problema até
agradeço,
depois trocam-se opiniões, conversa-se um bocado, até é uma forma de
sensibilização...
(ibidem)
Igualmente elucidativa de uma liminaridade, de uma passagem transformadora
mediada por um período em que o indivíduo se fecha em casa é a narrativa de Rui.
Rui
cegou subitamente, em 1982, em consequência de uma explosão. Na altura Rui já
era casado
e tinha uma filha, trabalhava como fornecedor de madeira, passando o grosso da
sua
actividade a conduzir veículos pesados. Ao fortíssimo choque que constituiu a
sua cegueira,
acresceu o facto de esta ter implicado um profundo corte com aquelas que até
então eram as
suas actividades profissionais:
-
"Olhe, é muito difícil...só lhe digo isto...! Tinha uma
vida
muito activa, de um momento para o outro parei!"
Após cegar esteve dois anos em
que
praticamente não saiu de casa. Durante esse período persistiu em busca de
médicos, sempre
alimentando uma esperança que parecia não ter correlato nos diversos
diagnósticos. Chegou
a ir a uma reputada clínica oftalmológica em Barcelona e à medida que a
impossibilidade de
recuperar a visão se sedimentou, assume ter equacionado por várias vezes a
hipótese de
suicídio. Além do mais, teve ainda a dificuldade de enfrentar o seu trauma
acolhido naqueles
que o conheciam:
-
Um dia cheguei junto de um senhor de quem era fornecedor pouco depois do
acidente, não teve
coragem de encarar, fugiu a chorar para trás da pilha de madeira. Mas eu
compreendo as
pessoas que reagem como reagem em relação à pessoa cega, eu só tinha visto uma
vez na vida
uma pessoa cega e pensava como é que isto pode ser? (entrevista pessoal).
Só dois anos após o acidente que o vitimou, e muito por via do apoio e incentivo
da
família, é que Rui encontrou alento para realizar a reabilitação:
-
Só quando perdi a esperança é que fui ter com a Sain [Fundação Raquel e Martin
Sain] e foi uma
maravilha! Morri e voltei a nascer!, deixei de pensar no que não podia fazer,
para me preocupar
com o que podia fazer. Como me disse um senhor na casa do povo: "Isto a vida é assim,
agora
vais ter que te habituar a viver de outra maneira!" (entrevista pessoal)
Na altura que falei com Rui, em 2002, a sua vida estava já completamente
reconstituída. Cumprindo o desígnio do seu amigo, habituou-se a viver de outra
maneira.
Após a reabilitação empregou-se como funcionário público, exercendo as funções
de
telefonista, havia tido outra filha e era, quando falámos, um activo dirigente
regional da
ACAPO. A narrativa de Rui representa poderosamente o quanto a vivência da
cegueira pode
conduzir a uma dissolução dos termos da existência. Se aqui evoco as narrativas
em que a
cegueira foi vivenciada de um modo mais dramático, pretendo certamente anuir ao
impacto
da desestruturação relacionada com a transgressão do próprio corpo. Mas viso
também
realçar o que há de profundamente instrutivo na assunção da capacidade dos
sujeitos,
mesmo nas situações mais extremas, para reconverterem o sentido das suas vidas,
renovando expectativas, prioridades e ensejos de realização pessoal. E esta
passagem
liminar, fica mais uma vez sintetizada na ideia de um renascimento, que Rui tão
proverbialmente enunciava: "Morri e voltei a nascer!"
Foi essa mesma metáfora de resignificação existencial, que significativamente
atravessa
as narrativas em que a cegueira é signo de uma verdadeira tragédia pessoal, que
encontrei na
história de vida de José Guerra. É dessa passagem que nos fala um belo texto seu
que me foi
confiado, instrutivamente intitulado "Renascer", onde o autor relata o dia da sua chegada
ao
centro de reabilitação. Transcrevo aqui um pequeno excerto desse texto:
-
Das zonas mais recônditas e obscuras da minha alma, emergiam todos os medos,
todas as
incertezas. Como seria a vida no futuro? Oh! A condição humana! Ontem intrépido,
vigoroso,
seguro. Hoje inválido, cego, dependente. Como justificar a teimosia de ainda
estar vivo? Uma
mão amiga pousou no meu ombro, e numa voz tranquila, o psicólogo Martinho do
Rosário
(Bernardo Santareno para a Literatura Portuguesa), disse-me: vem meu amigo!
Foram estas as
primeiras palavras que ouvi do homem que, mais tarde, desceria ao fundo das
minhas
angústias e desesperos para me acompanhar no retorno à vida.
A história de vida de José Guerra dá conta de um momento simbólico para esse
renascer, que a reabilitação permitiria consubstanciar, acontecido algum tempo
após ter
cegado por via de um acidente militar ocorrido numa situação de rotina:
-
Depois de cegar não queria usar a bengala, pus a bengala de lado, e andava
sempre no hospital
[militar], não queria usar a bengala! Sentia-me incomodado! Um dia o
tenente-coronel que me
apoiou muita naquela altura perguntou: — porque é que não vais...? — Estou à
espera da
enfermeira. — Pega na bengala e vai! (entrevista pessoal).
Nesta narrativa, a afirmação do tenente-coronel — onde encontramos interessantes
ressonâncias bíblicas: "levanta-te e anda" — emerge como o momento simbólico a
partir do
qual José Guerra se iria mentalizar para a necessidade de assumir que é cego e
de superar as
dificuldades que essa nova situação acarretava. Como atrás apreciámos, é esse o
duplo texto
que é feito presente na invocação "pega na bengala e vai", em que o imperativo
da assunção
da cegueira conflui com a ideia de que a vida continua.
As narrativas que aqui apresento são representativas de uma capacidade de
superação
perante a perda que a cegueira poderá constituir. E se é verdade que me pude
confrontar
com reflexões pessoais marcadas pela frustração, elas surgem quase
invariavelmente
relacionadas com a exclusão e os estigmas sociais a que as pessoas cegas estão
sujeitas.
Portanto, o que há de dramático na própria perda de visão, além de estar
associado a um
espectro particular de histórias de vida, também nos coloca perante o
distanciamento
narrativo que muitos sujeitos conseguem criar em relação às experiências de
tragédia e
desastre inapelável. Um distanciamento que é produto de um processo de
reconstrução
pessoal em que, perante novas referências, as pessoas se capacitam para "nascer de novo".
Esta combatividade pessoal, capaz de fazer frente às experiências passadas de
"perda
de chão existencial", foi sem dúvida o elemento mais saliente das narrativas que recolhi.
Um
elemento que ficou patente não apenas pelas histórias de vida que recolhi,
conversas e
entrevistas que realizei, mas também por uma proximidade, continuada ao longo
dos anos,
com vivências diárias das pessoas cegas. No entanto, também encontrei várias
narrativas de
pessoas que ainda viviam o luto pela perda de visão e que se recusavam a aceitar
a cegueira
como fatalidade. O Gonçalo é um desses exemplos, porventura mais interessante
porque tive
a oportunidade de o entrevistar em dois momentos biográficos diferentes.
Entrevistei Gonçalo quando tinha 30 anos de idade, cerca de 3 anos depois de ter
ficado
cego de modo súbito. Gonçalo patenteava ainda o impacto do trauma que
representou o
facto de ter perdido a visão havia tão pouco tempo. Depois de cumprir o tempo
obrigatório
na tropa, Gonçalo ficou vinculado por contrato. Foi após ter contraído
sucessivas
conjuntivites que se descobriu um vírus raro que, segundo o que lhe disseram os
médicos,
poderia levar à cegueira. À medida que a cegueira piorava foi internado no
hospital militar,
onde, devido à sua dificuldade em reagir à cegueira que se insinuava, teve
também consultas
de psicologia e psiquiatria. Foi um período muito difícil, em que a cegueira foi
avançando, a
sua depressão foi-se aprofundando, e na muita medicação que tomava incluíam-se
momentos particularmente dolorosos como injecções nos olhos.
Um ano após ter sido diagnosticado o vírus, Gonçalo estava completamente cego.
Disse-me que por várias vezes pensou em suicidar-se no período subsequente.
Nesta
primeira entrevista, houve muitos aspectos a que não acedi pelo melindre perante
experiências marcadas por uma dor muito viva. Fiquei a saber que, depois da
tropa, passou
pelo Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos e que pouco tempo depois foi
encaminhado para a formação profissional na ACAPO, que então realizava em
Coimbra. Se
mais não soube nessa altura, fiquei no entanto com a certeza de que Gonçalo
estava longe de
aceitar o desastre que a cegueira para ele representou:
-
Quando saí da tropa disseram-me logo que não tinha possibilidades de voltar a
ver, mesmo
assim já corri muitos médicos e todos me dizem que não posso voltar a ver, sei
que nos E.U.
inventaram uns biónicos que permitem a visão a preto e branco e por isso a
esperança de voltar
a ver persiste. (...) Não sei se algum dia aceitarei, ver é ver... Na
ACAPO encontro os cegos
divertidos a dizer que são capazes de fazer tudo o que os outros fazem, o que eu
não concordo,
mas, de qualquer modo, comecei a ter uma ideia mais positiva acerca do que é ser
cego. (...) Eu
já vi, e para mim isso significa muito! (entrevista pessoal).
Na relação inicial que tive com as experiências da cegueira, Gonçalo constituiu
uma
expressão viva do impacto potencialmente desestruturante de uma cegueira
subitamente
infligida. Gonçalo denotava uma descrença nas possibilidades das pessoas cegas.
Ademais, a
sua reflexividade colocou-me fundamentalmente perante um sobrevivente, alguém
que tinha
recusado suicidar-se, mas que ainda não se sentia preparado para viver. Tempos
depois da
primeira entrevista, procurei saber dele junto da ACAPO; interessava-me seguir a
sua
história, voltar a falar com ele três anos depois da primeira entrevista que me
deu. Cederam-me
o telefone da Câmara em que ele trabalhava como telefonista. Liguei-lhe,
lembrava-se de
mim e de termos falado, disse-lhe que gostaria de falar com ele com alguma
demora, acedeu
simpaticamente. Combinámos um dia, fiquei de ir ter com ele à Câmara no fim do
trabalho.
Fomos no meu carro até sua casa, situada num lugarejo a cerca de 10 quilómetros
da cidade.
No caminho contou-me do muito trabalho que tinha na Câmara, só compensado pelo
modo
como se sentia acarinhado. Tinha-se casado, fazia então cerca de um ano. A sua
actual
esposa, amblíope, conheceu-a enquanto fazia a formação profissional na ACAPO.
Falou-me
da sua frustração por ficar limitado em casa ao fim-de-semana, por não haver
transporte, e
por nem ele nem a sua mulher poderem conduzir. Estas e outras incidências da sua
vida
actual me foi contanto enquanto me indicava o caminho que não via mas
adivinhava: "agora
quando vir aí à sua esquerda..." Convidou-me para sua sala, liguei o
gravador, e pedi-lhe
que me recapitulasse aquilo por que passou desde a sua cegueira até aquele dia.
Era
claramente um homem diferente que me falava, esmiuçando os pormenores do
suplício que
viveu, um espaço de enunciação que, nitidamente, só a distância temporal e
emocional
criada para com esses eventos permitia. Apesar de permanecer cego, o sofrimento
e a agonia
do período que o levou à cegueira emergiam então como evidentes asserções de que
o pior já
era passado:
-
Foi uma fase muito complicada da minha vida, sinceramente. Deus queira que eu
não passe por
mais nada assim. (...) Aquilo que eu senti é que os médicos sabiam que eu ia
cegar, mas eu não
queria ver as coisas assim e acabava por sofrer muito mais. A certa altura disse:
"estou cego,
mas não estou bem psicologicamente, tenho que fazer alguma coisa pela minha vida
ou então
suicido-me!" E pensei: "bem, suicidar-me é a pior coisa que eu posso fazer. Vou
tentar levantar
a cabeça" (entrevista pessoal).
De particular interesse se reveste o relato da sua chegada ao Centro de
Reabilitação
Nossa Senhora dos Anjos, da sua incredulidade em relação à alegria de outras
pessoas cegas,
do primeiro diálogo que estabeleceu com alguém que também não via, e a história
desse
súbito conforto de saber que não estava só no mundo:
Depois a minha mãe levou-me até à porta cá em baixo do Centro de Reabilitação.
Depois veio a
funcionária pegou em mim e levou-me pelo braço, chego lá em cima ela
diz-me assim: "agora
sentas-te aqui e começas a falar com os teus colegas!" Eu pensei: poça, para onde eu
vim!...
Calha de ter ao meu lado uma mesa e estava um cinzeiro, puxo por um cigarro e
começo a
fumar, e eu a ouvir... uns tocavam e outros dançavam e outros riam-se, no primeiro
andar, e eu
assim "então mas o que é que é isto? Então eu pensei que vinha para uma casa de
cegos e agora
estou numa casa de pessoas que vêem?", pensei eu cá para mim. E eu com o meu cigarro, deixo-me
estar, estive ali uns minutos a ouvir, entretanto chega-se lá uma pessoa e
senta-se na mesa, e
eu disse: "Olhe desculpe isto aqui é uma casa de cegos?" E ele disse: "É, é uma casa de cegos."
E
eu disse: " é que eu sou cego" e ele vira-se para mim e diz: "eu também." "Ah o senhor é cego?"
Já fiquei mais contente. [Foi a primeira pessoa cega com quem falou?] Foi... foi
sim... Eu perguntei-lhe
se só nós os dois é que éramos cegos, e ele disse-me: "aqui todos são cegos!"
Contou-me que durante os 7 meses que esteve no Centro de Reabilitação partilhou
a
sua vida com cerca de 25 outras pessoas, a maioria das quais tinha acabado de
cegar, num
contexto de solidariedade que acabou por lhe dar alguma força. Falou-me dos
tempos
difíceis que passou ainda na ACAPO: do primeiro estágio profissional que fez sem
ficar
integrado, até que veio a conseguir um estágio na Câmara Municipal perto da sua
terra de
origem. Considera que teve sorte e que conseguiu, juntamente com a sua esposa,
alcançar
uma boa vida:
Estamos a trabalhar os dois, tenho a minha casa, tenho a minha vida, tenho a
certeza que há
pessoas que vêem – era bom que não houvesse — mas que não têm a mesma qualidade
de vida
que eu (entrevista pessoal).
Apesar de ter conseguido encontrar ânimo para viver com a cegueira, confessou-me
que ainda não desistiu de ver. Inclusive, telefonou em tempos para falar com o
Dr. João Lobo
Antunes, mas soube que teria de pagar por um sistema de óculos e câmara de vídeo
ligada
ao cérebro, que lhe poderia dar uma visão bastante grosseira, cerca de 18 mil
contos.
Acredita que um dia haverá solução mas, apesar de ainda achar que é difícil uma
pessoa
conformar-se completamente a uma tal perda, afirma que se sente feliz por se
sentir uma
pessoa válida e apreciada. Apesar de a usar, Gonçalo reconhece que ainda sente
uma certa
vergonha em segurar a bengala branca. Não obstante, considera que o seu exemplo,
a sua
vida activa, tem servido para que, num meio pequeno, muitas pessoas alterem a
sua ideia da
cegueira. A sua vida é, pois, no seu entender, a prova de que cego não tem que
ser um
"ceguinho".
Perguntei-lhe depois que sentido lhe era possível fazer de tudo aquilo por que
havia
passado, a agonia da perda da visão, a desmobilização das referências num mundo
visualmente construído e, enfim, todo o sofrimento que o acompanhou ao ponto de
o colocar
perante a eminência de um suicídio:
-
Se calhar até foi um castigo de Deus... O sentido... o sentido... para mim fez sempre um
grande
sentido lutar, não me entregar e ter força interior para os momentos que tive,
enfrentá-los, ir à
luta. Quando penso no que passei e como estou sinto-me muito orgulhoso (idem).
A resposta de Gonçalo expressa a centralidade da teodiceia, conceito que Max
Weber
colocou ao centro das hermenêuticas do sofrimento. É esta necessidade de dar
resposta às
ambiguidades e paradoxos da existência, de que o sofrimento é uma expressão
forte, que
Clifford Geertz (1993) colocava ao centro do seu conceito de cultura, mormente
investido em
enfatizar como os seres humanos são primordialmente conduzidos pela necessidade
de
conferir sentido à sua vida e ao que os rodeia. Assim, no seu entender, do ponto
de vista
simbólico e religioso,
O esforço não é negar o inegável: que existem eventos inexplicados, que a vida
dói, ou que a
chuva cai sobre os justos — mas negar que haja eventos inexplicáveis, que a vida
não é
suportável, e que a justiça é uma miragem (Geertz: 1993: 108, minha tradução).
Portanto, haveria como que uma necessidade epistemológica que participaria na
criatividade cultural e religiosa como forma de responder ao imperativo
ontológico de
atribuir sentido às experiências do mundo, algo que a alusão de Gonçalo ao
castigo de Deus
claramente denota. Temos pois esse instigante olhar para as construções
culturais e religiosas
através de uma necessidade de sentido perante experiências que trazem o espectro
de uma
dissolução ontológica das culturas e dos sujeitos. É nesse sentido que,
recapitulando Max
Weber, Clifford Geertz atenta para o imperativo criativo que advém do confronto
com
experiências como a dor física, a perda pessoal, a contemplação da agonia de
outrem, em
"criações" que poderão ser lidas como emanações de sentido que permitem
que
determinados eventos sejam suportados; "sofríveis" (sufferable), portanto
(Geertz, 1993: 104).
Importante como é a leitura do sofrimento pelas epistemologias que o tornam
suportável —
ancorando-o à possibilidade dos sujeitos e grupos para lhe atribuírem um sentido
—,
estamos, no entanto, perante uma perspectiva que não deixa de ser parcial pelo
modo como
a capacidade de tornar determinados eventos sofríveis se vincula ao sentido que
deles é
possível fazer. Daí a riqueza da persuasão última da resposta de Gonçalo: "O
sentido... o
sentido... para mim fez sempre um grande sentido lutar, não me entregar e ter força
interior
para os momentos que tive
enfrentá-los, ir à luta". Esta declaração abre a porta para que as
experiências de sofrimento dos sujeitos possam também ser pensadas fora da
disposição
"intelectualista" das ciências sociais, para que, em última inst}ncia, possamos contemplar
a
capacidade dos sujeitos para resistirem a experiências e sofrimentos para os
quais muitas
vezes não encontram um sentido. Ou, como afirma, Gonçalo, eventos em que o único
sentido
que se encontra é resistir.
Ao encontro desta ideia surge a interessante proposta de Arthur Kleinman (1992).
Kleinman defende que, se por um lado as leituras biomédicas do sofrimento
fracassam em
aceder às questões teleológicas e existenciais que este coloca, as
interpretações culturalistas
também tendem a tornar-se reféns de uma leitura estritamente epistémica do
sofrimento. Isto
sobretudo pelo facto de, na esteira de Max Weber, se ter colocado no centro das
abordagens
do sofrimento a produção de discursos que contemplam o seu lugar no seio de
narrativas
coerentes da existência (Kleinman, 1992: 189-190). Este autor sugere que as
leituras das
experiências de dor e de sofrimento poderão ser profundamente enriquecidas se
forem
apreendidas enquanto formas de resistência ao fluxo da experiência no seio dos
"mundos
locais" dos sujeitos. Fundado na análise de sujeitos que padecem de dores crónicas, o
autor
sugere que uma tal abordagem permite aceder à tessitura das vivências em que os
sujeitos se
debatem com experiências geradoras de sofrimento. Uma formulação que me parece
deveras
valorosa para que se possa contemplar o carácter instável das continuadas
construções e
reconstruções com que os sujeitos apreendem determinados eventos a partir dos
seus
"mundos locais". Mas também porque muitas experiências são vivenciadas não como
narrativas teodiceias, mas como formas de alienação que convocam um mundo
caótico, e são
vividas como eventos desestruturantes que fracassam em encontrar lugar na
linguagem.
Nas histórias de vida em que o surgimento da cegueira invoca o lugar de um
sofrimento que é possível associar à angústia da transgressão corporal, pude
perceber como
elemento mais premente o facto de esse sofrimento surgir como parte de um
passado que se
fez estranho. Este percurso através da diversidade das experiências da cegueira
coloca-nos,
numa primeira instância, perante a evidência da impossível generalização da
relação entre a
cegueira e a ideia de trágica privação, seja porque muitas pessoas nascem cegas,
seja pelos
muitos casos em que a cegueira surge de um modo gradual. No entanto, alojados no
propósito de reconhecer o eventual papel desestruturante da perda de visão nas
experiências
corpóreas da cegueira, contemplámos mais demoradamente algumas narrativas em que
a
cegueira surgiu num contexto de absoluta ruptura vivencial, tornando-se evidente
como, em
determinados sujeitos, a perda de visão constitui um verdadeiro cataclismo
pessoal.
Estabeleceu-se assim um enfoque que procurou pulsar aquele espectro de
experiências em
que a ideia da cegueira como uma perda questionadora do sentido da existência, e
como
tragédia pessoal, encontra correlato nas experiências dos sujeitos. Assim, o
confronto com as
experiências em que a cegueira surge na vida dos sujeitos associada a uma forte
ruptura
vivencial e a um forte sofrimento pessoal foi também o confronto com a
capacidade de
ajustamento dos sujeitos, expressa nas construções pelas quais as suas
existências foram resignificadas.
Essas construções narrativas denotam em particular a passagem órfica, a
descida ao inferno: "morri e voltei a nascer." No entanto, a contextualização narrativa
pelos
sujeitos de experiências de perda e sofrimento não deixa de tornar notória a
disparidade
imposta pelas representações culturais hegemónicas em torno da cegueira que
adscrevem os
sujeitos a uma posição de liminaridade social.
O conceito de liminaridade foi introduzido na análise sócio-antropológica por
Arnold
Van Gennep em Les rites de passage (1909). Este autor analisou os ritos que
acompanham as
transições de lugar, de estado, de posição social e de idade, dividindo-os em
três fases. A fase
de separação, onde se representa o apartar do indivíduo ou do grupo de um
determinado
ponto da estrutura social ou de um determinado conjunto de condições sociais; a
fase
liminar, em que o sujeito do ritual se encontra numa situação ambígua, estando
numa fase
que é destituída dos atributos do estado anterior e do vindouro; e a agregação,
a fase em que
a passagem é consumada (Turner, 1967: 94). Esta fase de liminaridade viria mais
tarde a ser
elaborada e alargada no seu âmbito por Victor Turner que empregou o conceito de
liminaridade na análise dos ritos de passagem e o estendeu para a leitura dos
dramas sociais.
Nas narrativas em que pulsámos o sofrimento implicado na transgressão vivencial
trazida
pela cegueira, de modo a compreender aquilo que de verdade existe nas
representações
hegemónicas dessa condição, extrai-se a ilação de como a premência do sofrimento
é, na
maior parte dos casos, contextualizada numa fase de luto e de re-significação
existencial.
Neste sentido, o laço apertado que a projecção hegemónica da "narrativa da tragédia
pessoal" estabelece entre cegueira, infortúnio, incapacidade e privação, aparece-nos
largamente desadequado da reflexividade das pessoas cegas, mesmo naquelas em que
a
angústia da transgressão corporal esteve, de facto, em algum período, associada
à vivência da
cegueira.
É, pois, por referência ao ajustamento existencial dos sujeitos à cegueira, e a
uma
transformação que não é apenas do estatuto social, mas também do ânimo e da
reflexividade
dos sujeitos acerca da sua condição física, que o vínculo entre sofrimento e
liminaridade se
sedimenta nas narrativas de perda que me foram confiadas. No entanto, se essa
transformação permite criar as condições para que um novo ânimo para viver vá ao
encontro
de uma leitura positiva da cegueira e das capacidades das pessoas cegas, o que
se verifica é
que esse renovado ensejo se confronta com os constrangimentos e preconceitos que
obviam à
integração das pessoas cegas na nossa sociedade. Ainda que as narrativas de
superação a que
acedi pudessem estar depuradas pelo meio onde as obtive, o que me parece
analiticamente
instigante é o facto de os sujeitos que relegam a vigência das ideias de
infortúnio e
incapacidade para um período liminar passado terem que confrontar a perpetuação
de uma
situação de liminaridade social. Esta liminaridade social substancia-se na
permanência
cultural dos referentes de perda, infortúnio, incapacidade e tragédia, com que a
cegueira é
culturalmente pensada à luz das concepções hegemónicas. Ainda que as ideias de
incapacidade e
infortúnio sejam subjectivamente desvinculadas da vida de quem cegou
subitamente, a experiência da
vida em sociedade apresenta uma disposição para as reactualizar.
Portanto, o desafio de um enfoque no sofrimento corpóreo que pode estar
associado à
cegueira vem aportar de modo pungente numa perplexidade que, de novo, nos envia
para os
termos da opressão social das pessoas cegas, e das representações que a fundam.
Refiro-me à
perplexidade suscitada pela perniciosa disparidade — perante a qual as reflexões
das
pessoas cegas nos colocam — entre a capacidade dos sujeitos para fazerem face à
transgressão corporal implicada em determinadas formas de cegueira, e a
perpetuação, nos
referentes culturais hegemónicos, dos temas existenciais que foram
subjectivamente
superados: a tragédia, o sofrimento, a privação e a incapacidade. Portanto,
ainda que a
ênfase nesta secção seja dada ao que pode haver de "tragédia pessoal" na descida de
uma
cegueira sobre a carne, a reflexividade das pessoas cegas obriga-nos a um
des-centramento,
oferecido nas narrativas, em que o impacto da perda é narrativamente
contextualizado.
O acesso a estas experiências de liminaridade, ligadas a uma re-significação
existencial
que se segue ao advento da cegueira, mostra-nos o quão difícil é a passagem
final para a
"agregação social" plena, ou seja, o quão difícil é a inclusão social no seio de uma
estrutura
sociocultural em que a desqualificação das pessoas cegas se encontra embutida
nas
representações hegemónicas. Ou seja, a passagem vivida pelas pessoas que são
separadas da
estrutura social pelo advir da cegueira, que após a sua moratória recuperam o
alento para viverem
enquanto pessoas cegas, dificilmente poderá ficar completa se a reintegração
social tomar como um
dado a estrutura social vigente, em particular o modo como esta se relaciona com
as pessoas com
deficiência e com a cegueira.
No fundo, este congelamento na liminaridade social, passível de acontecer mesmo
após uma transição subjectiva capacitante, toma parte numa persuasão mais ampla:
a
persuasão de que o lugar das pessoas cegas na nossa sociedade se encontra
vinculado a uma
perspectiva fatalista e incapacitante da cegueira, e de que a transformação para
uma tessitura
social mais inclusiva depende do reconhecimento da reflexividade e das
narrativas pessoais
das pessoas cegas. Seja pela assunção contra-hegemónica de como a cegueira pode
ser vivida
em termos positivos, onde recebem ênfase as capacidades e a alegria de viver das
pessoas
cegas, seja pelo modo como as vozes das pessoas cegas nos colocam perante uma
organização social que está muito longe de garantir a equidade de oportunidades.
As pessoas
que cegam subitamente empreendem uma dolorosa experiência de aprendizagem e
reconstrução, em
que o significado da vida e o significado da cegueira tendem a dançar juntos.
Seria importante que uma
aprendizagem social, informada pelas experiências das pessoas cegas pudesse
emular — e aprender
com — essa reconfiguração das implicações da cegueira.
Assim, a ênfase que conferimos ao sofrimento que poderá estar associado à perda
de
visão acaba por nos sugerir a ideia de que essas experiências, subjectivamente
reconfiguradas, trazem também elas uma riqueza cultural destabilizadora dos
termos
fatalistas e compassivos como a cegueira é hegemonicamente apreendida. A
continuada
situação de liminaridade que tantas vezes é vivida por quem já superou as
implicações de
uma experiência de perda, reconfigurando os termos da existência, resignificando
a vida de
ensejos, exprime, de modo pungente, que a fatalista ideia de tragédia pessoal,
não sendo um
equívoco social associado à cegueira, é certamente uma estrutura conceptual
desinformada
das reflexões e experiências das pessoas cegas. De facto, no contacto que
estabeleci com as
narrativas das pessoas cegas, frequentemente marcadas por experiências de
exclusão, o que
assoma como trágico é o facto de alguém ter que viver refém de valores que ousou
superar.
3. Empatia Corpórea e Tragédia
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiencia, é comunicar interiormente
com o mundo,
com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles.
Merleau-Ponty
Veena Das (1997: 69-70) evoca Wittgenstein, numa curiosa expressão da
impossibilidade de apreendermos a dor do outro. A alguém que sente uma dor na
mão
esquerda, diz-nos o filósofo, é-lhe pedido que feche os olhos e que toque o
sítio que lhe dói
com a sua mão direita; após tal ser feito a pessoa reconhece que estava a tocar
afinal a mão
do seu vizinho; e seria então isto que aconteceria se acaso pudéssemos sentir a
dor do outro.
Com bem representa a hipótese de Wittgenstein, o sofrimento somático é apenas
uma
expressão particular das posições, irremediavelmente diversas, que separam as
existências
corpóreas dos sujeitos. No entanto, o tema do sofrimento ganha aqui acuidade, na
medida
em que pretendo incidir no modo como a cegueira é pensada enquanto dor, perda e
incapacidade a partir de uma posição estrutural diferente, ou seja, a partir de
um corpo que
vê.
Não negando os matizes e idiossincrasias de todas as experiências, quero
deter-me, em
particular, nas implicações do modo como a cegueira é pensada como uma posição
estrutural
radicalmente diversa. Tentamos, portanto, conferir relevância aos termos em que
a alteridade
da cegueira é constituída como uma projecção a partir de experiências corpóreas
fundadas
na visão. Uma tal abordagem implica mergulhar na experiência incorporada,
reconhecendo o
corpo como um relevante sujeito de conhecimento. A centralidade do sofrimento
que aqui se
elabora não tem tanto a ver com a experiência do sujeito sofredor, como na
secção anterior,
mas sim com a projecção de uma transgressão corporal, indiciadora de sofrimento,
a partir
do corpo de quem vê.
Importantes estatísticas realizadas nos Estados Unidos mostram que a cegueira é
uma
das condições mais temidas pela população, só sendo precedida pelo cancro e pelo
HIV/SIDA (cf. NFB, 2002). Este dado não deixa de ser relevante, e embora seja
congruente
com todo um conjunto de construções e itinerários históricos a que atrás nos
dedicámos, ele
reflecte também, creio, a ansiedade pessoal que a cegueira muitas vezes suscita
nas pessoas
que vêem. Nesse sentido, haveria a considerar as percepções da cegueira também
como o
correlato negativo da importância que a visão detém para quem dela pode tirar
partido, uma
importância que não será só estritamente funcional, mas que de um modo decisivo
tende a
sustentar e permear a própria construção do mundo. A projecção da incapacidade e
da
prisão sensorial que a cegueira faz supor para quem o mundo é, fenomenológica e
ontologicamente, uma realidade marcadamente visual, faz com que o impacto
sociocultural
da "narrativa da tragédia pessoal" tenda a ser — como o reflectem as referidas
estatísticas —
muito mais premente para a cegueira do que para outras deficiências físicas.
Na verdade, este é um dado que se foi tornando crescentemente importante ao
longo
do meu envolvimento com o tema da cegueira. A minha experiência junto das
pessoas cegas
operou uma profunda elisão do dramatismo com que eu pensava a experiência da
cegueira:
cedo o contacto com as perspectivas positivas e as idiossincrasias pessoais
operaram um
esbatimento da cegueira enquanto referente central nas interacções pessoais.
Mas, ao mesmo
tempo que as minhas próprias concepções, informadas que foram pelas experiências
das
pessoas cegas, nutriram de uma profunda desdramatização do que é ser cego, os
termos em
que a generalidade das pessoas tende a apreender a cegueira, fundados nas suas
projecções
pessoais — ansiosas e carregadas de dramatismo —, foi adquirindo uma inelutável
centralidade analítica. Ou seja, tornou-se importante perceber de que modo a
relevância que
a visão ocupa na vida de quem vê concorre para as representações dominantes da
cegueira. E
foi, sem dúvida, esta dimensão, que se tornou absolutamente relevante na minha
experiência
etnográfica, que tive mais dificuldade em articular à luz do idioma das ciências
sociais em
que estava imbuído.
A enunciação desta fonte de significado para as representações hegemónicas da
cegueira torna imperativo, em particular, a negação do dualismo cartesiano à luz
do qual o
corpo tem sido reiteradamente desqualificado enquanto sujeito de conhecimento. A
renitente
efectividade deste dualismo, o estreitamento que resulta da consagração da mente
como
locus de conhecimento, e o legado de um positivismo que procura negar as
consequências
epistemológicas da localização incorporada, são os elementos que tendem a tornar
singularmente fugaz o encalço de corpos que pensam. São, pois, as implicações
epistemológicas
de uma diferente posição estrutural em relação à cegueira — a posição das
pessoas para quem a visão é
um elemento fulcral na experiência — que se torna premente explorar, a fim de
reconhcermos outras
fontes de sentido que, em congruência com valores históricos e culturais,
continuam a laborar, sobre o
reiterado silenciamento das experiências de quem conhece a cegueira no próprio
corpo.
De facto, como referimos, a ênfase nos corpos enquanto a base existencial da
cultura,
enquanto sujeitos de conhecimento (Csordas, 1990, 1994a), não equivale à negação
da
imersão cultural, da partilha de esquemas interpretativos da realidade e da
codificação
contextual de determinadas experiências. Como mais poderosa expressão disto
mesmo,
destaco aquele que é um dos momentos críticos mais bem conseguidos de Embodiment
and
Experience (Csordas, 1994c), a já mencionada obra que Thomas Csordas organiza.
Refiro-me
ao artigo em que Lindsay French (1994) elabora aquilo que considero ser uma
instrutiva
articulação entre a iniludível imersão cultural das apreensões da diferença
corporal e a
pertinência de que se pode revestir a assunção do corpo enquanto produtor de
sentido.
Partindo de uma etnografia realizada num campo de deslocados situado na
fronteira entre o
Camboja e a Tail}ndia, Lindsay French procura analisar os "mundos morais locais" em
que
se inserem as experiências dos muitos ex-soldados que ficaram com os membros
amputados,
em virtude das minas anti-pessoal profusamente disseminadas durante a guerra.
Numa
primeira instância, o baixo estatuto social das pessoas amputadas surge permeado
pelos
elementos económicos, políticos e culturais que pontuam a vida no campo de
refugiados.
Assim haveria a considerar diversos elementos. Primeiro, o facto de a amputação
impedir a
realização dos trabalhos, eminentemente físicos, disponíveis no campo de
deslocados,
ficando os homens amputados ainda mais sujeitos às condições de profunda
precariedade
económica que se faziam sentir no campo. Situação que acarretava uma profunda
depreciação social, uma vez que a capacidade de prover sustento e segurança para
a família
se estabelece como um elemento central no prestígio social dos homens. Mas,
ainda mais
importantes do que as consequências económicas da perda de um membro são as
construções culturais e religiosas que fundavam o pensar de uma tal diferença
corporal,
sustentando relações de poder profundamente depreciativas para os homens
amputados.
Particularmente importante é a hierarquia de mérito e virtude estabelecida
naquele contexto
à luz do Budismo Theravada, eminentemente relacionada com os conceitos de karma
e
reincarnação. Perante as apropriações correntes naquele contexto, a experiência
da
amputação constitui uma profunda descida no estatuto de virtude, representando
um karma
de estatuto inferior, marcado pelo demérito e pelo espectro do infortúnio. Tais
elementos
permitem explicar grandemente a situação de descrédito vivida pelos homens
amputados,
criando-se um rol de circunstâncias em que comportamentos como o roubo e
alcoolismo por
parte destes reforçavam, num ciclo vicioso, a sua sujeição ao desprezo e aversão
social.
No entanto, Lindsay French traz ainda um outro elemento que no seu entender
concorre para a compreensão das respostas sociais às pessoas amputadas. A autora
considera
o facto de insoluvelmente vivermos em corpos e através deles como um postulado
que se
imporá revisitar, para que se possa apreender em que medida a relação com o dano
corporal
de outrem é mediada por um movimento projectivo pelo qual esse dano é "trazido
para
casa". Ou seja, importará reconhecer o lugar eminente passível de ser ocupado
pelas
ansiedades pessoais suscitadas pela projecção, no próprio corpo, da amputação,
uma ideia
que nos coloca perante a eventual relevância detida pelas respostas viscerais
nos significados
e nas relações socialmente estabelecidas:
-
We respond viscerally to the spectre of amputation: it challenges our own sense
of bodily
integrity, and conjures up the nightmares of our own dismemberment. We feel an
instinctive
sympathetic identification with the amputee by virtue of our own embodied being,
but our
identification frightens us; thus we are drawn toward and repelled by amputees
simultaneously, both feeling and afraid to feel that we are (or could be) "just like them"
(French,
1994: 73-74).
São exactamente as ansiedades pessoais suscitadas por uma relação visceral
simpática
com o corpo do outro, esse "pesadelo do próprio desmembramento", que pretendo
considerar. A identificação empática com o outro corpo é, pois, um dos
mecanismos pelos
quais diferentes posições estruturais entram em relação. E, como nos diz Lindsay
French
para o caso da amputação, a criação de uma identificação visceral com o corpo do
outro
induz à criação da ideia de que se apreende de facto a experiência do outro.
Mas, essa
construção, inevitavelmente descontextualizada, é também uma elaboração que cria
a
persuasão errónea que é possível entender, por exemplo, os termos corpóreos da
experiência
como a perda de uma perna. É precisamente o lugar desta construção empática
corporal a
que julgo ser relevante atentar, enquanto fonte de formulações empáticas da
experiência da
cegueira, elaborações que ocupam um lugar que considero não ser desprezável na
leitura das
representações dominantes em torno de tal deficiência.
Maurice Merleau-Ponty afirmava categoricamente: "Estamos presos ao mundo e
não
chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo" (1999: 26).
Conforme
constata o filósofo, estamos, isso é certo, presos a um corpo pelo qual
existimos no mundo. É
a pertinência desse enlace co-extensivo com o ser que se torna pertinente
reconhecer. O
estatuto de um corpo cognoscente desvela-se como uma incontornável marca da
relação com
o mundo, uma marca que emerge como uma dimensão irremediavelmente valorosa para
que
se compreendam os significados que estão associados à cegueira na nossa
sociedade. Uma
importante contribuição para o reconhecimento do lugar do corpo tem vindo das
ciências
cognitivas, tendo constituído um momento precursor a publicação de The Embodied
Mind em
1991 (Varela et al., 1991). Nesta obra os autores tecem a irónica constatação da
incorporação
da mente, fundando uma óbvia crítica às ambições de um conhecimento
transcendente,
desincorporado e separado das contingências sócio-históricas, que se estabeleceu
como
dominante na epistemologia ocidental:
Foi erradamente assumido que apenas uma perspectiva que transcenda a
incorporação
humana, a imersão cultural, a compreensão imaginativa, e a localização dentro de
tradições
historicamente mutáveis pode garantir a possibilidade de objectividade (1991:
138).
Neste sentido, recuperamos a apologia daquilo que, seguindo a crítica de Donna
Haraway, se designa como a "doutrina da objectividade incorporada". Aí se enuncia
a
necessidade de reconhecimento da localização dos sujeitos em pontos de vistas
particulares,
e a inevitabilidade de perspectivas parciais. Tentando não perder contacto com o
modo como
as experiências são codificadas e interpretadas por referência às comunidades de
sentido, a
obra The Embodied Mind emerge como um influente texto que, na esteira de Maurice
Merleau-
Ponty, coloca ao seu centro a importância de se considerar seriamente o carácter
incorporado
de todo o conhecimento. Uma persuasão que se investia com particular acutilância
para
questionar o modo como a mente vinha sendo dissociada do corpo, à luz da
metáfora do
computacional que se estabeleceu como modelo interpretativo dominante da mente
humana
no seio das ciências cognitivas.
Na senda deste trabalho influente, é igualmente das ciências cognitivas que
surge a
formulação que mais consistentemente articula a premência dos corpos
cognoscentes com a
relevância que vim a atribuir às projecções da cegueira. Refiro-me à poderosa
persuasão
construída em Philosophy in the Flesh: The Embodied Mind and its Challenge to
Western Thought
(Lakoff e Johnson, 1999). Nesta obra, a ênfase conferida ao corpo e aos
processos corporais no
conhecimento vem negar num mesmo momento o desarreigamento da razão cartesiana,
inscrita numa mente autónoma ao corpo, e as visões pós-estruturalistas, em que o
significado, entendido como algo de relativo e radicalmente contingente, descura
o lugar do
corpo e do cérebro como o constrangimento constitutivo de todo o saber.
Contra as teorias tradicionais do conhecimento humano, os autores chamam a
atenção
para o facto de que a razão, longe de ser desincorporada, emerge das
características do nosso
cérebro, dos nossos corpos, da experiência corporal, da nossa estrutura
neuronal, e do meio
em que estamos imersos.
Em articulação com esta tese central, que vincula a razão no corpo que a
permite,
Lakoff e Johnson defendem também outras especificidades da razão humana que são
frequentemente negligenciadas e que aqui destaco. Primeiro, o facto de a maior
parte da
actividade racional não ser consciente, mas sim inconsciente, confluindo-se com
um senso
comum não reflectido que está na base de todas as actividades 5,
aquilo a que os
autores
chama a "mão invisível que molda o pensamento consciente" (Lakoff e
Johnson, 1999: 12).
Em segundo lugar, o facto de a razão não ser puramente literal, mas sim
eminentemente
metafórica e imaginativa; as metáforas não são apenas uma forma porventura
poética ou
demonstrativa para expressar ideias, mas são aquilo mesmo que torna o pensamento
possível: "eliminando as metáforas eliminar-se-ia a filosofia" (ibidem: 129).
Existem
inúmeras metáforas que estruturam o nosso raciocínio, encontrando-se muitas
delas (as que
os autores designam por primárias) estabelecidas ao nível do inconsciente
cognitivo. Por
outro lado, muitas das metáforas que estruturam o nosso pensamento estão
frequentemente
vinculadas à nossa experiência incorporada e ao nosso funcionamento
sensório-motor, no
sentido que as características e relações dos objectos no mundo suportam
indelevelmente o
modo como o raciocínio é engendrado. Em terceiro lugar, a razão não é um
processo
desapaixonado, mas sim algo de profundamente engajado com a tessitura das
emoções.
A assunção de que os processos cognitivos estão profundamente marcados pelas
implicações da nossa existência incorporada e pelas características dos sistemas
sensóriomotores
conduz os autores a negar a tradicional divisão entre percepção e concepção.
Nesse
herdado dualismo reconhece-se a centralidade do corpo nos processos perceptivos
ao mesmo
tempo que se nega o seu lugar na concepção, isto é, na formação e uso de
conceitos. Portanto,
mais do que chamar a atenção para a contaminação da concepção pelos processos
perceptivos, eminentemente associados ao corpo e ao sistema sensório-motor, os
autores
defendem a insustentabilidade de uma tal divisão à luz da ideia de que a
percepção e os
processos corporais não só informam a concepção, mas moldam a razão por que se
elaboram
os conceitos6 (Lakoff e Johnson, 1999: 37-38). É, pois, esta incontornável
importância do corpo
no conhecimento, nas ideias formadas sobre o mundo — e sobre outros corpos no
mundo —, que a crítica destes autores oferece para que possamos aceder ao modo como se
forma e
sustenta um conceito de cegueira elaborado a partir de corpos cuja experiência
social, cognitiva e sensório-motora, está profundamente estabelecida sobre a visão.
Sustentados neste quadro de ideias, os autores defendem o conceito de "realismo
incorporado". À luz de um tal conceito, a capacidade de conhecer, de aceder ao
real, não tem
por objectivo uma ideia das coisas como elas são, mas sim a capacidade de um
conhecimento
que nos permita funcionar e florescer no mundo. Assim, ao mesmo tempo que o
realismo
incorporado nega a possibilidade de uma descrição definitiva do mundo, uma vez
que uma
tal empresa se vincula à natureza relativa dos nossos corpos, cérebros e
interacções com o
meio, ele nega um relativismo extremo, no sentido em que supõe a possibilidade
de, na
ciência e na vida de todos os dias, se consolidarem descrições estáveis do real.
A análise dos
autores, embora se invista em focalizar o corpo como sujeito de conhecimentos,
não descura
completamente o modo como os significados variam culturalmente. Até porque as
raízes
corpóreas de determinadas construções não dizem só respeito à experiência
individual, mas
também ao modo como as cognições, que ganham forma a partir dos corpos, são
codificadas
e legadas no seio de um sistema de valores. Conforme referem os autores, o "realismo
incorporado" nega relativismo radical que subscreve uma contingência não "domesticada"
pelos corpos, existe a assunção da variabilidade e multiplicidade advindas das
instâncias de
construção social (Lakoff e Johnson, 1999: 37, 38).
A persuasão de que pensamos embutidos na carne, e que damos carne aos conceitos
através de metáforas e da imaginação, conduz-nos precisamente às projecções
imaginativas
corpóreas como uma via para a produção de sentido acerca de outras posições
estruturais,
6 Embora os autores atribuam uma comunalidade ao corpo humano, falando sempre num
"nosso corpo", se atentarmos às
diferenças fenomenológicas que, por exemplo, nos coloca uma pessoa que tenha
nascido cega, a abolição da divisão entre
percepção e cognição coloca interessantes questões acerca das implicações da
cegueira na formulação de conceitos,
isto é, como via para as relações empáticas com outros corpos. É precisamente a
relevância
que encontrei nestas elaborações de sentido, fundadas no modo como os eventos
acontecidos
noutros corpos são "trazidos para casa," que Lakoff e Johnson explicitam quando
defendem
a capacidade para a imaginação projectiva como uma faculdade cognitiva vital
(Lakoff e
Johnson, 1999: 565). Como os autores afirmam, a imaginação e a incorporação
articulam-se
na possibilidade do conhecimento, fundando a própria possibilidade de ciência:
-
As embodied imaginative creatures, we never were separated or divorced from
reality in the
first place. What always made science possible is our embodiment, not our
transcendence of it,
and our imagination, not our avoidance of it (ibidem: 93).
O carácter imaginativo da razão, e o vínculo que a liga ao facto da
incorporação, tem
como uma das suas mais poderosas expressões na projecção empática o processo
pelo qual o
sujeito "sai do seu corpo" para vivenciar a experiência do corpo de outrem. O
quadro
destabilizador das perspectivas tradicionais de conhecimento que Lakoff e
Johnson oferecem
constitui um poderoso itinerário para que possam ser considerados outros
elementos da
experiência vivida. E se é verdade que as propostas têm como primeiro impacto a
desmobilização de alguns dos pilares em que se sustentou a legitimação das
formas
hegemónicas de conhecimento na modernidade, cria-se também um espaço para a
articulação de algumas questões cujas implicações sociais tendem a ser
negligenciadas.
Para o texto deste trabalho, assoma com indelével fulgor a relevância que esta
obra
permite atribuir à imaginação corpórea e às relações empáticas entre corpos,
significativamente sustentados como recursos cognitivos genésicos da experiência
humana.
É sobre esta espécie de transcendência imanente ao facto de sermos corpos que
pretendo
pensar as representações da cegueira:
-
A major function of the embodied mind is empathic. From birth we have the
capacity to imitate
others, to vividly imagine being another person, doing what that person does,
experiencing
what that person experiences. The capacity for imaginative projection is a vital
cognitive
faculty. Experientially, it is a form of "transcendence." Through it, one can
experience
something akin to "getting out of our bodies"—
yet it is very much a bodily capacity ... There is
nothing mystical about it. Is what we do when we imitate. Yet this most common
of experiences
is a form of "transcendence", a form of being in the other (ibidem: 565).
É esta forma de "ser no outro", por via de projecções imaginativas em que o
próprio
corpo é feito um "tubo de ensaio" da cegueira, que labora para que as concepções
hegemónicas da cegueira sejam, nalguma medida, o correlato das ansiedades com
que ela é
empaticamente percebida. Tento, pois, conceder relevância a esse
experimentalismo
sensorial que a cegueira evoca nos corpos cognoscentes cuja construção do mundo
— cosmovisão ou mundividência — é eminentemente visual. As conclusões advindas de
uma tal
relação empática são instrutivamente escritas por José Saramago (1995: 15),
referindo-se a
uma das personagens do Ensaio Sobre a Cegueira:
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na
adolescência,
ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco minutos
com os olhos
fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma terrível desgraça, (...)
Esta construção empática imaginativa tende a elaborar a ideia da cegueira como
uma
desgraça, uma infelicidade. Em face da extrema importância que a visão detém
para quem
dela possa tomar partido, a projecção no próprio corpo da sua ausência
irrevogável faz supor
uma atroz experiência de privação. Tal como na reacção visceral para com a
imagem da
amputação de que Lindsay French nos falava, também aqui há uma identificação
descontextualizada com o "mal físico" do outro. No entanto, no caso da cegueira,
a
imaginação empática corpórea que permite "ser no outro" não tem a ver com aquilo que
se
vê, mas com a perda sensorial que a impossibilidade de ver faz supor.
A questão que me parece central é o facto de o espectro da cegueira, acolhido no
corpo de quem
não é cego, poder ser tomado como forma de acesso à experiência das pessoas
cegas, tornando-as
repositórios correlativos das ansiedades aí suscitadas. A relevância destas
ansiedades, seja nas
construções estabelecidas acerca da cegueira, seja nas respostas sociais
concretas às pessoas
cegas, consolidou-se ao longo do trabalho de campo, mas também se revelou, desde
logo,
fora dele. Isto, nas muitas conversas que estabeleci com amigos e conhecidos em
que, a
propósito do tema da minha tese, de falava da cegueira, e onde pude perceber,
uma vez
mais, o quanto as perspectivas da cegueira era fundadas nas ideias de infortúnio
e
incapacidade, em claro contraste com as vidas das pessoas cegas que me foram
dadas a
conhecer. Mas, com maior importância para este momento do trabalho, pude também
perceber o quanto essas construções são fundadas em respostas ansiosas e
viscerais ao
espectro da própria cegueira, não sendo
incomuns expressões como: "não sei como é que eles
conseguem...", "acho que preferia suicidar-me", "faz-me tanta impressão", "não sei como
é
que reagiria", "penso nisso sempre que fico às escuras", etc. No mesmo sentido foram
as
reflexões de algumas pessoas com quem falei após uma actividade proposta pela
ACAPO em
que os transeuntes eram convidados a usar a bengala com uma venda nos olhos: "Sabe
bem
poder tirar a venda", "se eu ficasse assim não sei o que faria..., "deve ser uma coisa terrível".
Elementos que ficaram igualmente reificados no pânico de algumas das pessoas
que, após
uns segundos com a venda, se mostraram incapazes de completar a experiência por
não
conseguirem suportar, ainda que por momentos, o desconforto da privação de
visão.
Na relação com as pessoas cegas, a relevância das ansiedades pessoais que se
desenvolvem em relação à cegueira tornaram-se patentes em muitos momentos das
actividades; particularmente naquelas situações em que eu as acompanhava,
sozinhas ou em
grupo, e ouvia as conversas suscitadas pela nossa presença, as perguntas que às
vezes me
faziam, ou as abordagens que eram feitas a quem me acompanhava. Tais elementos
tornavam patente o quanto as atitudes compassivas e paternalistas se articulam
com uma
suposição ansiosa do quão terrível deverá ser a cegueira. Aí pude denotar
profusamente
reacções semelhantes às que citei a propósito das minhas conversas pessoais, mas
também a
difícil aceitação de que a felicidade e realização das pessoas cegas — ou a sua
busca — não
está refém, na esmagadora maioria dos casos, da eventualidade de poderem ver.
Criou-se
assim um óbvio contraste entre a familiaridade que estabeleci com vidas e
momentos de
partilha em que a cegueira era desdramatizada e trivializada, raras vezes
surgindo como
uma questão fora das minhas preocupações epistemológicas, e o impacto
destabilizador que
se tornava notório na generalidade das pessoas. Mas este elemento não se tornou
presente
apenas nas actividades que observei. As ansiedades suscitadas pela transgressão
de
referências que a cegueira evoca manifestaram-se igualmente, com recorrência,
nos relatos
deferidos que me foram sendo confiados. Particularmente, nas recorrentes alusões
presentes
nas reflexões e histórias de vida, onde se denota o quanto as apreensões sociais
das pessoas
cegas são fundadas em imaginários informados por presunções viscerais, ansiosas
e pessoais
em relação às implicações da cegueira.
Uma situação ilustrativa passou-se numa conversa, num contexto de férias, em que
um
associado, falando para mim e para mais duas pessoas na mesa do café, contava o
trauma
por que passou aquando da cegueira, há muito trazida por um acidente, e do
processo de
reconstrução existencial que se lhe seguiu. A resposta ansiosa que foi dada por
uma senhora,
esposa de um colaborador da ACAPO, falando das suas percepções da cegueira, é
representativa daquilo que aqui venho pretendendo enfatizar: "Sabe, muitas vezes fecho
os
olhos tentando..., mas... não consigo imaginar!". Sendo evidente, naquela mesa, o
contraste
com o homem para quem a sua cegueira estava há muito distante de tais agonismos.
Por
outro lado, era bem patente, na referida senhora, como a ideia que ao longo dos
anos havia
elaborado acerca da experiência da cegueira estava ainda alojada na projecção no
seu próprio
corpo da angústia da transgressão corporal. Ou, melhor dizendo, era patente o
confronto entre
um conhecimento das formas de ser de algumas pessoas cegas para quem a vivência
da
cegueira é entendida de modo positivo, e as recapitulações pessoais corpóreas do
drama que
a cegueira deveria ser, ainda assim.
A questão é que a esmagadora maioria das pessoas, não tendo qualquer contacto
com
as vivências das pessoas cegas — em congruência com os valores sócio-históricos
que, como
analisámos, tendem a vincular a cegueira à experiência da marginalidade e aos
referentes de
infortúnio e incapacidade — tende a presumir um "conhecimento" que lhes advém da
experiência do próprio corpo. O ponto central é que as elaborações empáticas,
por via das
quais as implicações da cegueira são adivinhadas, no fundo, como forma de
superação da
diferente posição estrutural implicada por diferentes incorporações, produzem
uma
identificação necessariamente fora do contexto. Como assinalava Lindsay French,
elabora-se
uma relação empática que leva a que se crie uma identificação que mais não é do
que a
errónea persuasão de que se acede à experiência do outro. Neste caso, à
experiência da
cegueira.
Na verdade, a projecção corpórea da cegueira permite supor a magnitude do
impacto
da perda de visão, assim como a angústia da privação implicada por uma tal
experiência.
Nesse sentido, a incorporação imaginativa da cegueira confere acesso presuntivo
à transgressão que
está implicada nas experiências de cegueira abrupta, pelo contraponto imediato
que estabelece com uma
existência sensual visualmente informada. Mas, exactamente por isso, tende a
fomentar uma
premonição da cegueira pelo prisma de um défice e de uma ruptura drástica com o
mundo
eminentemente visual de quem vê. Ou seja, um corpo que se move num mundo de que
a visão é parte
essencial consegue adivinhar o eventual impacto da perda desse sentido, mas
fracassa em perceber
como é que o mundo se constrói ou reconfigura sem a visão como um campo de
múltiplas
possibilidades. Isto é, fracassa em aceder às experiências da cegueira após a
liminaridade da
perda, e fracassa em apreender as experiências em que a perda foi lentamente
conhecida ou
não se fez sentir de todo. A cegueira ansiosamente pulsada nos corpos de quem vê
é uma elaboração
imaginativa em que a irredutibilidade da experiência corpórea se torna
flagrante, e onde a vinculação
do tema do sofrimento à cegueira se constitui como o produto mais saliente da
tentativa superação
empática dessa irredutibilidade.
Portanto, é minha persuasão que a vigência da narrativa da tragédia pessoal nas
representações hegemónicas em torno da cegueira é relevantemente nutrida pelas
imaginações empáticas, por via das quais a cegueira é "trazida para casa" dos corpos que
a
pensam.
No sentido que dele fiz, perseguir um corpo transgressor implicou três
movimentos
diferentes. Em primeiro lugar, que fossem cruzadas as fronteiras disciplinares
tradicionais no
esforço de análise. Em segundo, o reconhecimento de como a experiência corpórea
da
cegueira pode desestabilizar os termos da existência. E, em terceiro, implicou
perscrutar a
relevância cultural difusa da transgressão da cegueira enquanto uma suposição
advinda de
uma projecção empática.
No entanto, a relevância sociocultural que as projecções empáticas da cegueira
assumem na nossa cultura não poderá ser entendida fora da sua congruência com os
traços e
itinerários culturais e estruturais a que longamente fizemos referência. É,
pois, por referência
às heranças históricas e simbólicas da cegueira, à sua definição enquanto
condição
patológica, ao tráfego com o capitalismo industrial, aos trilhos modernos de
valorização
pessoal, ao visualismo, que as elaborações empáticas corpóreas ganham relevância
para a
consolidação de um imaginário incapacitante e excludente. Deste modo podemos
identificar
uma dramática confluência entre os valores historicamente herdados na
estigmatização da
cegueira, as condições estruturais que ratificam o silenciamento das
experiências das pessoas
cegas, e a transgressão existencial prefigurada nas formulações corpóreas que
pensam a
cegueira de alhures.
Portanto, longe de nos enviar para fora das particularidades de um contexto
cultural e
político, ou para a reconstrução de universalismos fenomenológicos, o
reconhecimento da
relevância do tema da experiência incorporada coloca os corpos em contexto,
enunciando,
por outro prisma, o imperativo do reconhecimento das perspectivas e reflexões
das pessoas
cegas. Assevera-nos, mais uma vez, que na impossibilidade de vivermos as vidas
dos outros
devemos procurar ouvir o que eles têm a dizer sobre si. Assevera-nos, com
ironia, que
"qualquer forma de ver é uma forma de não ver" (Lukes, 1973:149).
ϟ
notas
-
1 Na realidade, as formulações teóricas que conduzem Thomas Csordas à
organização da obra Embodiment and Experience, já se
encontravam largamente presentes num galardoado artigo publicado em 1990 na
revista Ethos, com o título de "Embodiment as a
Paradigm for Anthropology", pelo que o reconhecimento da import}ncia do livro em questão não poderá ser realizada
sem referência ao seu predecessor teórico.
Δ
-
2 Parte II deste trabalho. Δ
-
3 Inclusive, nos primeiros anos da sua licenciatura, e por via de alguma
desmotivação, chegou a pôr a hipótese de se transferir
para um curso ligado ao Design.
Δ
-
4 Aquilo que Victor Turner designa por "communitas" (1974). Δ
-
5 Os autores exemplificam dando conta, por exemplo, do conjunto de processos
cognitivos não reflectidos que permitem a uma
pessoa manter uma conversação (Lakoff e Johnson, 1999: 10, 11). Δ
ϟ
excerto da obra:
Lugares da Cegueira: Portugal e Moçambique no trânsito de sentidos
autor:
Bruno Sena Martins
Universidade de Coimbra Junho de 2011
13.Mai.2020
Maria José Alegre
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