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José Guerra

Homem cego - John Kirby, 1990
Sentado numa cadeira de espaldar alto, tamborilava os dedos na parte
lateral do couro rijo que formava o assento. O gesto era esquecido, porque o
pensamento flutuava por entre sucessivas imagens que eu não conseguia
suster. Aquela casa desconhecida, de aspecto austero, intimidava-me.
O anafado recepcionista que abrira a porta, depois de saber ao que
vínhamos, havia apontado com o seu gorducho indicador as rígidas cadeiras e
fizera um sussurrado telefonema. Finalmente disse: o senhor doutor manda
aguardar.
Aguardámos. Vindos do outro lado do balcão, chegavam até mim os estalidos
inconfundíveis das comutações de uma velha central telefónica, que repetidas
vezes eram interrompidas pelo som de uma estridente campainha, ao qual
respondia sempre a voz timbrada de um homem.
Minha mãe segredou-me: o rapaz que está a atender o telefone também não
vê.
Por aquela altura, todos em minha casa evitavam pronunciar a palavra
cego. Confesso que eu também não a desejava ouvir. Fiquei a imaginar as mãos
do rapaz, percorrendo e tacteando o painel da central telefónica, ligando e
desligando negócios, amores, aflições e contentamentos.
De repente, dei por mim a passar os dedos nas rugosidades do couro da
cadeira. Pareceu-me que não havia qualquer diferença entre o que sentia e o
que seria capaz de sentir se não tivesse ficado cego. Mas logo pensei que
esse sentir lendário dos cegos também havia de ser partilhado comigo. Se não
fosse assim por que haveriam de existir Centros de Reabilitação?
Chegou ordem para subirmos. Minha mãe levantou-se, agarrei o seu braço e,
juntos, enfrentámos os degraus da larga escada de pedra que levava ao piso
superior. Quando atingimos o primeiro patamar, parámos defronte de uma
porta, perante a qual a minha progenitora hesitou durante breve momento. Com
a mão direita ainda pousada sobre o polido corrimão de pedra, verifiquei que
ele, depois de executar uma curva perfeita, esgueirava-se velozmente por ali
acima, pronto a levar-me a locais ainda mais hostis que aqueles que agora
enfrentava.
Vindas do lado de dentro chegavam até nós várias vozes, entrecortadas por
sonoras gargalhadas.
Empurrámos a porta que nos separava daquele tumulto e, logo que entrámos,
a conversa amainou, até se extinguir. Uma mulher, ainda jovem,
cumprimentou-nos com afabilidade, apresentando-se como Directora do Centro.
Depois dirigindo-se às suas ruidosas companhias, disse: o novo estagiário!
O grupo manteve-se por instantes silencioso, observador. Por fim, uma
empertigada voz de rapariga perguntou: Como te chamas? Respondi, contrafeito,
com o nome de família. Houve um silêncio e depois ela, dando um leve trejeito de
riso à voz, retorquiu: mas esse é o teu apelido. Não tem nome?
Os seus companheiros, que começavam a entabular comentários, deixaram escapar
leves risadas e voltaram a silenciar-se. Com voz agastada, pela entrada pouco
promissora, resmunguei o meu nome.
Um providencial toque de campainha veio em meu socorro, e todos, esquecendo
a minha presença, dirigiram-se, dois a dois, para as diferentes portas que
circundavam aquele vestíbulo, desaparecendo por completo.
A Directora indicou-nos um sofá e, gentilmente, pediu que tivéssemos a
paciência de esperar mais um pouco, até o senhor doutor nos receber.
Sentámo-nos e, com alívio, confirmei que estávamos novamente sozinhos.
Sentia-me desconfiado, amargurado, perdido. E aquele pesadelo, que já não
distinguia a noite do dia, o sono da insónia, reapareceu. A sequência era
inevitavelmente a mesma: uma luz de relâmpago, terrível, avassaladora, o calor
aveludado do sangue que brotava em borbulhões, e depois aquele zunir dilacerante
que me gelava a alma e o corpo.
Das zonas mais recônditas e obscuras da minha alma, emergiam todos os medos,
todas as incertezas. Como seria a vida no futuro? Oh! A condição humana! Ontem
intrépido, vigoroso, seguro. Hoje inválido, cego, dependente. Como justificar a
teimosia de ainda estar vivo?
Uma mão amiga pousou no meu ombro, e numa voz tranquila, o psicólogo Martinho
do Rosário - Bernardo Santareno para a Literatura Portuguesa -, disse-me: vem
meu amigo!
Foram estas as primeiras palavras que ouvi do homem que, mais tarde, desceria
ao fundo das minhas angústias e desesperos para me acompanhar no retorno à vida.
FIM

José Guerra
13-09-1952 — 7-12-2012
ϟ
José Adelino Guerra era Piloto da Força Aérea Portuguesa,
quando aos 22 anos ficou cego, num acidente provocado pela explosão de uma
granada. Passado o período inicial de reabilitação psicológica e funcional,
licenciou-se em Direito e fez uma pós-graduação em Ciências Documentais.
Exerceu funções dirigentes quer na ACAPO - Associação dos Cegos e
Amblíopes de Portugal quer na
ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Foi responsável
pela gestão técnica da primeira Biblioteca Braille do centro do País, integrada
na Biblioteca Municipal de Coimbra.
Em “Renascer” – conto com o qual ganhou a 4.ª edição do
concurso “Um Livro é um Amigo” - relata o seu primeiro contacto com o Centro de
Reabilitação da Fundação Raquel e Martin Sain e o seu Psicólogo o Dr. Martinho do Rosário/Bernardo Santareno.
8-Fev-2008
Publicado por
MJA
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