Camilo Castelo Branco sofreu de neuro-sífilis. Para além de problemas
locomotores e de diplopia, desenvolveu atrofia óptica bilateral que o acabaria
por levar à cegueira e ao suicídio. Foi observado por alguns dos melhores
oftalmologistas do seu tempo, como Manuel Lopes Santiago, Augusto Sebastião
Guerra, Pedro Adriano Van Der Laan, Gama Pinto e outros.
Terá sido o próprio sofrimento que o inclinou a escrever sobre um cego
-
O
Cego
de Landim, em Novelas do Minho - e sobre um oftalmologista -
O Olho de Vidro
-,
romance baseado na vida do médico setecentista Brás Luís de Lima, autor de
Portugal Médico).
Existem diversas obras sobre a cegueira de Camilo. 'Camilo e os médicos', de
Maximiano Lemos, e 'A cegueira de Camilo', de Gomes Costa Filho, serão as mais
conhecidas. No entanto, o próprio escritor foi registando por escrito a evolução
da sua doença.
Camilo em 7-Março-1882
(União – Photographia da Casa Real, Porto)
O mal de olhos de Camilo Castelo Branco manifestou-se em 1865, ou mesmo antes.
Em 28 de Abril de 1866, Camilo confessou, em carta a José Barbosa e Silva:
Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado
que é efeito de venéreo inveterado. Sofro há 4 meses uma diplopia (visão dupla).
É horrível para quem não tem outra distracção além da leitura. Tarde será o meu
restabelecimento.
Em 6 de Junho de 1878, escreveu ao visconde de Ouguela:
Tenho de volta de mim catorze luzes para ver o que escrevo. Desde que o Sol se
esconde estou cego. O pior é que escrevo com um dos olhos fechados para não ver
tudo em duplicado.
Apontou, a 7 de Fevereiro de 1886:
Os jornais tratam da minha saúde fantasiosamente, como os médicos. A minha
enfermidade, ataxia locomotora, não é das que retrocedem, nem sequer estacionam.
Hoje ainda me sustento de pé, com dificuldade; amanhã não poderei falar das
pernas senão como retórica e luxo de anatomia. A visão segue as perturbações
medulares. Tenho cegueiras completas quando passo de um quarto luminoso para
outro mal alumiado. O que eu vejo bem é a morte a aproximar-se, e saúdo-a
risonhamente, porque a vida do meu filho Jorge também está por pouco.
Voltou a queixar-se, a 22 de Novembro de 1886:
Os incuráveis padecimentos que se vão ampliando todos os dias levam-me ao
suicídio – único remédio que lhes posso dar. Rodeado de infelicidades de espécie
moral, sendo a primeira a insânia de meu filho Jorge e a segunda os desatinos de
meu filho Nuno, nada tenho a que me ampare nas consolações da família. A mãe
destes dois desgraçados não promete longa vida; e, se eu pudesse arrastar a
minha existência até ver Ana Plácido morta, infalivelmente me suicidaria.
Escreveu, a 13 de Março de 1988:
Aqui esteve quatro horas o Dr. Gama Pinto, uma cara inteligentíssima revelando
um excelente coração. Conheceu rapidamente o meu deplorável estado, e fez-me um
bom discurso para me dar paciência e resignação com a cegueira.
Caíram todos os meus castelos no ar quando o médico, em vez de combater a minha
cegueira, tratou de me armar de paciência para tolerá-la. Fez-se na minha alma
uma noite escura, que nunca mais terá aurora.
Lamentou-se, a 22 de Junho de 1888:
Cada dia, pior. A agudeza da vista central, que ainda tinha em Lisboa,
desapareceu. Suspendi tudo que era remédio. Endoideço, porque vou cegar
inteiramente.
A 27 de Novembro de 1888, começava a desesperar:
Não dou um passo sem que me conduzam, não conheço ninguém, apenas distingo
vultos ao aproximarem-se.
Ainda escreveu, a 29 de Agosto de 1889:
Atormentam-me os frenesins tabéticos que me não deixam sossegar de noite, e
muito pouco de dia. Minha mulher acompanha-me neste calvário e verga ao peso da
cruz enorme.
Ana Plácido
A 21 de Maio de 1890, Camilo escreve ao oftalmologista Edmundo de Magalhães
Machado, de Aveiro, rogando-lhe que o salve da cegueira.
Illmo. e Exmo.
Sr., Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa
neste país durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou
cego. Ainda há quinze dias podia ver cingir-se a um dedo das minhas mãos uma
flâmula escarlate. Depois, sobreveio uma forte oftalmia que me alastrou as
córneas de tarjas sanguíneas. Há poucas horas ouvi ler no Comércio do Porto o
nome de V. Exa. Senti na alma uma extraordinária vibração de esperança. Poderá
V. Exa. salvar-me? Se eu pudesse, se uma quase paralisia me não tivesse
acorrentado a uma cadeira, iria procurá-lo. Não posso. Mas poderá V. Exa.
dizer-me o que devo esperar desta irrupção sanguínea nuns olhos em que não havia
até há pouco uma gota de sangue?
Digne-se V. Exa. perdoar à infelicidade estas perguntas feitas tão sem
cerimónia.
A 1 de Junho desse ano, o Dr. Magalhães Machado visita o escritor em Seide.
Depois de lhe examinar os olhos condenados, o médico com alguma diplomacia,
recomenda-lhe o descanso numas termas e depois, mais tarde, talvez se poderia
falar num eventual tratamento. Quando Ana Plácido acompanhava o médico até à
porta, eram três horas e um quarto da tarde, sentado na sua cadeira de balanço,
desenganado e completamente desalentado, Camilo Castelo Branco disparou um tiro
de revólver na têmpora direita para se suicidar.
Mesmo assim, sobreviveu em coma agonizante até às cinco da tarde. A 3 de Junho,
às seis da tarde, o seu cadáver chegava de comboio ao Porto e no dia seguinte,
conforme a seu pedido, foi sepultado perpetuamente no jazigo de um amigo, João
António de Freitas Fortuna, no cemitério da Venerável Irmandade de Nossa Senhora
da Lapa. Tinha 65 anos.
REFERÊNCIAS |Além do meu livro 'Eu, Camilo', este artigo apoiou-se em 'Camilo
Castelo Branco – Memórias fotobiográficas', de Viale Moutinho, e no 'Dicionário
de Camilo Castelo Branco', de Alexandre Cabral. ANTÓNIO
TRABULO
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A CAMARA ARDENTE — O MORTO.
«A vasta sala, despida de sanefas e de espelhos, com o cadaver sobre um panno,
ao meio, tinha uma solemnidade lugubre que a assemelhava a um templo vasio: o
choro da esposa e o crepitar das luzes eram os unicos sons que interrompiam a
funebre quietação do aposento.
No seu fato escuro — pardessus usado, frak e calça preta da mesma fazenda,
costume que vestia quando se suicidou — tons roxeados a cercar-lhe as narinas e
os olhos, o seu perfil macerado, fortemente vincado de rugas, o farto bigode
cahindo-lhe lasso, na bocca esse extranho rictus que parece dar ao cadaver um
riso de mofa, — o supremo escarneo da morte á vida. Lá estava elle sereno como
um adormecido, os pés salientes, a cabelleira negra e comprida, as mãos finas
cruzadas sobre o peito, o morto, mal illuminado pelo clarão de duas velas,
parecia seguir com os olhos mal cerrados a dôr da viscondessa que aos pés do seu
ultimo leito, abysmada na oração, velava sósinha.» Correio da Manhã
(1890)