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- excerto -

Retrato de um Rapaz Cego - Julius Oldach
N'este tempo, Braz Luiz, o collegial de S. Paulo, ia nos quatorze annos.
A noticia da desastrosa morte dos seus bemfeitores, revelada pelos
condiscipulos, pungiu-o, tirou-lhe d'alma sinceras lagrimas; porém,
n'aquellas edades a sensibilidade é para pouco; as saudades das pessoas
queridas que morreram não se prendem á previsão angustiosa das desgraças
porvindouras. O filho de Antonio de Sá Mourão estava de todo esquecido
do doutor Abreu, e não longe de esquecer-se de Heitor Dias da Paz.
Os mestres do collegio, cuja dilecção pelo engenho do moço se
manifestava no affago com que o divertiam de pensar no hebreu queimado e
no outro que se dera a si desesperada morte, receosos de que o santo
officio fosse ainda contender com o estudante por suppor que elle fosse
irmão de Heitor, zelosamente informaram os inquisidores dos piedosos
sentimentos de Braz Luiz, e da docilidade e devoção com que elle se
entregava aos exercicios espirituaes. O santo officio, inteirado d'isto,
deixou em paz e por conta da religiosidade dos paulistas o menino.
Como elle se alimentava e educava a expensas do collegio, o parecer dos
mestres era encaminhal-o para frade paulistano. Este intento, quando o
moço tinha quinze annos, foi contraditado pela companhia de Jesus, que
enviára delegados a recensear nas universidades e collegios de Evora e
Coimbra estudantes esperançosos, garfos de boa seiva, que se fossem
enxertando nos troncos envelhecidos, para que alguma hora não soffresse
quebra o predominio intellectual dos filhos de Santo Ignacio.
Os paulistanos offenderam-se do sequestro que os jesuitas
arbitrariamente fizeram nos seus mais grados alumnos; e, por vindicta,
entraram a despersuadir o moço de aceitar a roupeta. Facilmente o
moveram á repugnancia da vida sacerdotal, e assim se privaram tambem de
o conquistarem para si. A companhia de Jesus cathequisava, mas não
violentava. Tamsómente as vocações liberrimas e muito espontaneas lhe
serviam. Logo pois que Braz Luiz manifestou indisposição para a vida
sacerdotal, abriram mão d'elle os jesuitas, offerecendo-lhe, se
necessarios fossem, recursos com que podesse seguir a carreira para onde
pendessem os seus talentos. Quer generosidade, quer astucia com que os
padres ardilosamente grangeavam a estima quasi universal, o certo é que
Braz Luiz teria a protecção d'elles, se não tivesse a dos paulistas.
Deram-lhe a opção de modo de vida. Braz escolheu a medicina.
Aos quinze annos matriculou-se no primeiro do curso depois de ter
estudado artes, e logo deu de si tão lisongeira conta, que se estremou
entre os condiscipulos, ganhando as distincções das escolas, a estima
dos mestres, e especialmente de D. Manuel dos Reis e Sousa, a quem o
discipulo dos seus futuros escriptos se mostrará agradecido.
Ao correr do terceiro anno, a indole do academico passou por inesperada
revolução. Sem faltar ás obrigações escolares, deu-se á tunantaria dos
estudantes malcomportados. Fez-se arruador nocturno, bulhento, femieiro
e pimpão. Os paulistas ameaçaram-no de o deixarem entregue aos seus
desatinos. Braz Luiz respondia ás ameaças dando optimas lições nas
aulas, e ganhando os louvores dos lentes, sem desistir de tomar o
primeiro posto nas algazarras e assuadas nocturnas.
Em uma d'essas escaramuças á cidade baixa, travou-se uma refesta
ensanguentada entre a gente miuda de Coimbra e os estudantes. Braz,
depois de muitas proezas, caíu ferido de uma choupada, que lhe vasou o
olho direito. Alguns condiscipulos levaram-no em braços para sua casa, e
lhe assistiram affectuosamente á cura. Salvaram-no da morte: mas não
poderam salvar-lhe o olho.
Depois de dois mezes de cama, o estudante recebeu a má nova de ter
perdido o amparo dos frades. Accudiram logo os condiscipulos fintando-se
para supprirem a esmola do collegio, Braz proseguiu na formatura, e não
mais foi visto nas sortidas bellicosas, como quem já não tinha mais que
um olho para sacrificar. Os paulistanos, contentes da reforma do seu
protegido, voltaram a soccorrel-o; porém, o pundonoroso academico,
reunindo os seus condiscipulos favorecedores, expoz a reluctancia com
que aceitaria a esmola dos frades, e a satisfação com que continuaria a
recebel-a de estudantes. Applaudiram-lhe o brio, e animaram-no a
regeitar o pão vilipendioso dos paulistas.
Em 1714, tomou Braz Luiz d'Abreu gráo de licenciado em medicina. A razão
que elle teve para assignar-se _Abreu_ funda n'uma casualidade de que
resultou enganar-se Barbosa na sua _Bibliotheca Lusitana_, dando Braz
Luiz como filho de Francisco Luiz d'Abreu e Francisca Rodrigues
d'Oliveira. Foi o caso, que folheando elle o abcedario por onde começára
a soletrar, muito na primeira puericia, em companhia do seu primeiro
protector, encontrou o seu nome assim posto no alto da primeira pagina
do alphabeto: _Braz Luiz de Abreu_. Assim o escrevêra a esposa do
doutor, n'uma d'aquellas horas de ternura, em que ella encarava no
menino como em filho propriamente seu.
Ahi está onde ao medico se deparou um apellido, que elle não sabia
d'onde lhe havia de vir, por mais que discorresse sobre o modo de
rastrear seu nascimento. N'este investigavel mysterio o que a si mais
provavel se figurava era que seu pae devia de ser um homem apellidado
'Abreu'; mas como esquadrinhar-lhe a naturalidade, as aventuras da vida
ou da morte? Em Coimbra não havia para que indagal-o; porque elle não
tinha sequer vaga lembrança de ter estado em Coimbra nos primeiros
annos. Todas as suas lembranças esboçavam-se dos sete annos para áquem.
Terra que não fosse Coimbra só escassamente se recordava de Villa Flor;
e imagens de pessoas, duas sómente lhe viviam meio delidas na lembrança:
eram Francisco de Moraes e Heitor Dias da Paz.
Um condiscipulo de Mirandella encarregou-se de averiguar-lhe algumas
noticias de seu nascimento em Villa Flor. As tradições encontradas alli
eram que uma creança apparecêra em casa do hebreu Moraes, ao tempo que
seu filho voltou da Hollanda. Parentes ainda vivos d'aquelles israelitas
não sabiam dizer nada a tal respeito. O que o condiscipulo informador
accrescentou foi que dos muitos haveres do hebreu suicidado não havia
palmo de terra que a inquisição não confiscasse.
Habilitado para exercitar a medicina, comquanto lhe sobrassem creditos
de grande estudante, faltavam-lhe doentes. Á mingua de recursos, pensou
em estabelecer-se n'alguma terra desprovida de medicos. Um seu
contemporaneo da faculdade juridica convidou-o para Vizeu, onde o
encontrámos curando com muita voga e felicidade em 1715 até 1718.
No fim d'este anno, como a sua fama o atraia e a cobiça o impulsava para
terras de mais gloria e lucros, passou a residir em Lisboa. Aqui e
n'este mesmo anno começou elle a olhar tristemente para a deformidade
que lhe deixára no rosto a choupada, e achou-se não só feio, se não
repugnante a olhos de damas, que se engulhavam de lhe verem a orbita
direita vasia e coberta pela palpebra amortecida.
Cogitou o medico em arranjar um olho artificial, com que encher a orbita
nauseenta e dar contractibilidade apparente á palpebra. Investigou a
sciencia e encontrou que os gregos e egypcios fabricavam olhos
artificiaes, formando-os de uma casquinha metalica, pintada ou
esmaltada, similhante a uma metade de ovo pequeno, dividido
longitudinalmente. Este primitivo e pouco engenhoso olho não agradava ao
nosso joven medico. Indagou no estrangeiro, e de Hollanda o informaram
que estava em Amsterdam um hebreu inventor d'olhos artificiaes de
esmalte, com a qual materia substituira vantajosamente os metalicos.
Entendeu-se Braz Luiz de Abreu com o inventor hollandez, e ajustou na
orbita um olho, menos mal imitado, mediante o qual a palpebra voltou á
sua elasticidade.
Este olho de esmalte era immovel: bastava encarar na cara do medico para
logo se conhecer que a orbita direita estava envidraçada. D'ahi
seguiu-se chamarem-lhe o 'doutor Olho de Vidro', alcunha que lhe ficou
até á morte, e longos annos depois serviu de celebrar-lhe a memoria, a
magnitude dos talentos medicos e os seus não menores infortunios.
Como quer que fosse, a physionomia do doutor Braz Luiz, não obstante a
pouca illusão que embahia o falso olho, melhorou bastantemente.
FIM
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excerto de
O Olho de Vidro
Camilo Castelo Branco
4.ª edição
Lisboa, 1917
fonte: The Project Gutenberg EBook of 'O Olho de Vidro', by Camilo Castelo Branco
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