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Cego - Constantin
Makovsky, 1880
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Ao visconde de Ougueta
Sejamos amigos como foram nossos pais
e deixemos a
nossos filhos o exemplo que recebemos.
I
Foi ha treze annos, em uma tarde calmosa de agosto, neste mesmo
escriptorio, e n'aquelle canapé, que o cego de Landim esteve sentado.
São inolvidaveis as feições do homem. Tinha cincoenta e cinco annos,
rijos como raros homens de vida contrariada se gabam aos quarenta.
Resumbrava-lhe no semblante anafado a paz e a saude da consciencia.
Tinha as espaduas largas: cabia-lhe muito ar no peito; coração e pulmões
aviventavam-se na amplidão da pleura elastica. Envidraçava as pupilas
alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes aros de ouro. Trajava
de preto, a sobrecasaca abotoada, a calça justa, e a bota lustrosa;
apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no
castão de prata de uma bengala.
Eu não o conhecia quando me deram um bilhete de visita com este
nome - ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.
Em S. Miguel de Seide, uma visita, que se fizesse preceder do seu
cartão, era a primeira.- Quem é? - perguntei ao creado.
- É o cego de Landim.
- E esse cego quem é?
O interrogado, para me esclarecer superabundantemente, respondeu que era
o CEGO, como se se tratasse de um cego por excellencia e de historica
publicidade: Tobias, Homero, Milton, etc.
Mandei que o conduzissem ao meu escriptorio. Ouvi passos que subiam
rapidos e seguros uns doze degráos: e, no patamar da escada, esta
pergunta muito sacudida:- Á esquerda ou á direita?
- Á esquerda - respondi, e fui recebel-o á entrada.
Estendeu-me firme dois dedos, e desfechou-me logo em estylo de
presidente de camara municipal sertaneja ás pessoas reaes, uma allocução
á minha immortalidade de romancista, lamentando que eu ainda não tivesse
em Portugal uma estatua... equestre; parece-me que elle não disse
estatua equestre. Achei-lhe rasão. Eu tambem já tinha lamentado aquillo
mesmo; porém, cumpria-me regeitar modestamente a estatua, como o duque
de Coimbra, agradecendo a virginal lembrança do sr. Pinto Monteiro.
- Tenho ouvido ler os seus livros immortaes
- disse elle - Não os leio
porque sou cego.- Completamente? - perguntei, parecendo-me incompossivel a cegueira
absoluta com a segurança da sua agilidade nos movimentos.
- Completamente cego, ha trinta e trez annos. Na flôr da idade, quando
saudava as flôres da minha vigesima segunda primavera, ceguei.
- E resignou-se...
- Se me resignei!... Morri de dôr, e resuscitei em trevas eternas... O
sol, nunca mais!Pungia-me a compaixão. Disse-lhe consolações banaes; citei os mais
luminosos cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o principe da lyra
peninsular, Castilho, e elle atalhou:
- Castilho tem o genio que vê as coisas da terra e do ceu. Eu tenho as
duas cegueiras do corpo e da alma.
Achei-o eloquentemente sobrio e áttico; figurou-se-me até litterato dos
bons. Lembrei-me se elle vinha convidar-me para fundarmos um jornal em
Landim, ou se viria pedir-me para o propôr socio correspondente da
academia real das sciencias.Discretiamos de parte a parte em variados assumptos, até que elle
explicou as suas pretenções. Tinha um litigio pendente sobre a posse
disputada de umas azenhas que lhe haviam custado tres contos de réis, e
pedia a minha valiosa preponderancia afim de que os juizes de segunda
instancia lhe fizessem justiça inteira.
Observei-lhe que a minha influencia poderia ser-lhe necessaria, se a
justiça estivesse da parte do seu contendor; por quanto, quem não tem
justiça é que pede.- Apoiado! - interrompeu elle - A razão diz isso; mas acontece que o meu
contendor pede porque não tem justiça; ora não vão os juizes cuidar que
eu tenho mais confiança na lei do que n'elles...
Pareceu me sagaz, argucioso e um pouco germanico o cego.
Deu-me quatro memoriaes, accendeu o terceiro charuto, e ergueu-se.
Acompanhei-o até ao portão, e vi-o cavalgar com garbo quasi marialva uma
vistosa egua, passar as redeas falsas pelas outras com destreza,
esporear e partir sósinho.
***
Ora, o cego perdeu a demanda das asenhas por que as asenhas não eram
perfeitamente d'elle, e eu não podia pedir aos desembargadores que as
tirassem ao dono e m'as dessem a mim para eu as dar ao cego.
Nunca mais o vi. Retirou-me a admiração e mais a estatua. E, cinco annos
depois, morreu.A historia dos homens descommunaes deve começar a escrever-se á lampada
do seu tumulo. Á luz da vida tudo são miragens nas acções dos heroes e
estrabismos na contemplação dos panegyristas. É tempo de bosquejar o
perfil d'este homem esquecido, e quem quizer que o tire a vulto em marmore mais presistente. Pretendo desmentir os aleivosos que reputam
Portugal um alfôbre de lyricos, romancistas salobros de amoríos de
aldeia, porque não temos personagens bastantemente succulentos de quem
se espremam romances em 4 volumes.
IINascera em Landim em 11 de dezembro de 1808.
1808! Os biographos portuguezes, se escrevem de pessoa nascida n'aquella
data ou por perto, relatam-nos derramadamente a revolução franceza a
começar em Luiz XVI, exhibem a guerra peninsular, e concluem o curso de
historia moderna ligando fatidicamente á evolução social o nascimento
d'aquelle sujeito.No anno 1808, uma das muitas pessoas que nasceram sem pesarem um
escropulo, pelo pezo velho, na balança dos lusos destinos, foi aquelle
Antonio José Pinto Monteiro.Seu pai barbeava em Landim com ferocidade impune. A espada de Affonso
Henriques e as navalhas d'elle tem tradições sanguinarias. Ainda hoje,
transcorridos setenta annos, os netos dos seus freguezes parece que
herdaram a sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim falla-se d'elle
como de Torrequemada em Valhadolid. Aquelle barbeiro é uma lenda como a
de Gerião, assassinado por Hercules, e a do monstro de Rhodes cantado
por Schiller.Antonio, o primogenito d'este esfolador, estudou primeiras lettras com
rara esperteza. Aos onze annos, era prodigio em taboada e bastardinho.
Aos doze, imitava firmas com perfeição despremiada, e vingava-se do
menospreço em que o estado o esquecia, estabelecendo correspondencias
entre pessoas que não se correspondiam, mediante as quaes, uma vez por
outra, agenciava alguns pintos.Como talentos taes não se atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o
rapaz soffreu algumas contuzões. Um monge benedictino de S. Tyrso
compadeceu-se do moço, em tão verdes annos perdido, á conta da sua
habilidade funesta: pagou-lhe passagem para o Brazil, porque sabia que
os ares de Sancta Cruz são como os do Eden para refazer innocentes.
Empregou-se como caixeiro no Rio. Foi estimado nos primeiros trez annos.
Estremava-se dos seus broncos patricios no dom da palavra, nas lerias
aos freguezes, nos ardis licitos do balcão, nas ladroices
consuetudinarias que affirmam a vocação pronunciada, as quaes, no calão
da optica mercantil, se chamam: «lume no olho.» Nas horas feriadas, lia
applicadamente e tangia violão. A sua especialidade litteraria era a
eloquencia tribunicia. Estudara francez para ler Mirabeau e Danton.
Enchera-se d'elles, e ensaiava republicas federalistas com os caixeiros,
pedindo cabeças de reis a uns pobres parvajolas que suspiravam apenas
por cabeças de gorazes.Os patrões não farejaram um acabado Robespierre no caixeiro; mas, como
desconhecessem a vantagem da apotheose dos girondinos em uma loja de
molhados, expulsaram-no como republicano.
Pinto Monteiro intrommetteu-se na politica brazileira, iniciou-se na
maçonaria em 1830, fez discursos vermelhos contra o imperador e escreveu
clandestinamente. Esteve assim na fronteira do paiz promettido aos
eternos Paturots. É indeterminavel o estadîo que elle ganharia, se um
militar imperialista lhe não cortasse o rosto com um latego. Uma das
tagantadas contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.
IIIReagiu ao desastre com peito de ferro. Menos rija alma ingolphara-se na
espessura da sua treva. Elle não. Pediu ao inferno luz emprestada para
entrar na vareda das suas victimas. Accendeu interiormente, no carcere
do seu espirito, a lampada do odio. A vingança leval-o-hia pela mão,
como Malvina ao cego de Macpherson. Perdoa-me a comparação, ó bardo
caledonio! - que eu já vi Marat comparado a Jesus Christo.
Quando lhe deram alta na barra da enfermaria, pediu o seu violão, sahiu
ás praças, preludiou e cantou umas trovas com arpejo triste, ás portas
dos argentarios e dos taverneiros. As trovas faziam saudades da patria,
e a musica gemia as toadas dos lunduns do Minho. Os ouvintes
contemplavam-no com dó e davam-lhe esmolas avultadas para regressar a
Portugal, ao ninho seu.
Tinha elle um moço: era portuguez ilheu, alguns
annos mais novo. Levara-o a doença, a podridão do vicio á mesma
enfermaria; e a penuria e o instincto vincularam-no ao cego. Chamava-se
Amaro Fayal; mas os que lhe conheciam as prendas corrompiam-lhe o
appellido, e chamavam-lhe o Amaro Faiante. Pessoas escassas de
caridade indulgente diziam que a maldade do cego e os olhos do moço
completavam dois refinados maraus.
Pinto Monteiro trajava limpamente, banqueteava-se á proporção, e
dulcificava os confortos cazeiros com o amor de uma aventureira mal
prosperada como tantas que o archipelago açoriano exportava consignadas
aos Cressos da rua do Ouvidor, que pachalisavam nas chacaras da Tejuca.
Creara uma sociedade nova. Acercara de si toda a vadiagem suspeita, os
ratoneiros já marcados com o stigma da sentença, os mysteriosos,
famintos sem occupação, negros e brancos, não topados ao acaso, mas
inscriptos nos registros da policia, e afuroados pela sagacidade de
Amaro Fayal. Tinha lido as Memorias de Vidocq, - o celebrado chefe de
policia de Paris. Encantara-o a equidade do governo que elevara Vidocq,
o ladrão famoso, áquella magistratura: por que elle, por espaço de vinte
annos, exercitara o latrocinio e grangeara nas galés os amigos que
depois entregava á grilheta.Pinto Monteiro organisou a bohemia que, até áquelle anno, roubando sem
methodo nem estatutos, exercitara a ladroeira d'um modo indigno de paiz
em via de civilisação. Fez-se eleger presidente por unanimidade e nomeou
seu secretario Amaro Fayal. Havia um proposito quasi heroico n'este
feito, como logo veremos. Investido d'esta presidencia incompativel com
as artes lyricas, depoz o violão, e, á semelhança do poeta latino,
immudeceu os cantares, tacuit musa. Sentia-se no congresso uma alma
nova, cheia de fomentos e apontada a rasgar horisontes dilatados.
Quem ouvisse discursar o presidente sociologicamente, ficaria em duvida
se furtar era sciencia ou arte. Pinto Monteiro enxertava nas suas
prelecções sobre a propriedade umas vergonteas que depois enverdeceram
com estylo melhor nas theorias de Cabet. Os malandrins mais
intelligentes, depois que o ouviram, desfizeram-se de escrupulos
incommodos, e entre si assentiram que não eram ladrões, mas simplesmente
desherdados pela sociedade madrasta, e victimas d'uma qualificação já
obsoleta. A terminologia do livro 5.º das Ordenações em um paiz joven,
exhuberante, e que tem o sabiá e o côco, era uma anomalia.
D'esta arte organisada a quadrilha, sob a influencia auspiciosa de um
cerebro pensante, os cidadãos eram roubados mais artisticamente; na
empalmação dos relogios conhecia-se que havia ideas de physica, de
mechanica, de equilibrio, de dynamica e sciencias correlativas. Os
alumnos da reforma parecia collaborarem no Manual do prestidigitador
de Roret, e abandonavam como archaismo aos poderes publicos a Arte de
furtar de quem quer que seja.A sociedade prosperava a olhos vistos, posto que o prezidente não
tivesse olho nenhum: - N'esta independencia dos orgãos de relação prova a
alma a sua immortalidade. Foi então que Pinto Monteiro e o secretario,
munidos dos livros de registo e de toda a escripturação, se apresentaram
ao chefe da policia Fortunato de Brito.
Eis aqui a reputação de um homem sacrificada á extirpação do crime. Os
Codros e os Curcios, na restauração da moral publica, fazem isto.
O chefe da policia conveio nas propostas de Pinto Monteiro, que
estatuira conservar-se na confidencia dos ladrões e delatar a paragem
dos roubos quando no descobril-os redundassem á policia creditos e
interesses. O cego esclarecera Fortunato sobre a organisação do
funccionalismo policial em Paris, ensinara-lhe alvitres ignorados, e
promettia auxilial-o n'um ramo ainda mal cultivado no Brazil - a
espionagem politica.Surtiu os previstos resultados a perfidia. Os larapios mais soezes eram
arrebanhados para a casa da correcção; mas os ladravazes mais ladinos
poupava-os o presidente para não perturbar de improviso o equililibrio
do cosmos. É necessario que haja escandalos, diz o Evangelho.
Como agente secreto de policia recebia do cofre do estado; como chefe da
«Associação dos desherdados», auferia o seu quinhão do peculio commum,
afora as forragens da presidencia, etc.
Este periodo da vida do cego durou cinco annos; as duas rendas
sobejavam-lhe á fartura do passadio; principiou Monteiro a engrossar o
peculio, quando a delator e agente ajuntou o estipendio de espião.
Voltando ás antigas camaradagens politicas, fallou nas sociedades
secretas com exacerbada virulencia; e, victima do dispotismo militar,
mostrava os olhos estoirados e baços com a dolente magestade do general
Belizario, vencedor dos hunos.Constou ao governo que Pinto Monteiro ousára pedir um Cromwell de quem
elle cego fosse o Milton. A comparação seria modesta, se não fosse
sanguinaria. O governo brazileiro, com a subtileza propria dos cerebros
formados com tapioca e ananaz, intendeu que o pescoço do sr. D. Pedro II
era ameaçado pelo cego com a tragedia de Carlos Stuart.
A Fortunato de Brito foi ordenado que vigiasse e processasse o sedicioso
cego. Intalação! O chefe de policia foi explicar ao seu ministro que os
discursos de Pinto Monteiro eram boízes armadas a passaros bisnáos de
mais alta volateria. O conflicto remediou-se prescindindo o espião da
oratoria, e attendendo sómente a seguir o rastilho das revoluções
urdidas no Rio, para rebentarem nas provincias.
Como em meio de tanta lida ainda lhe sobrava tempo, Monteiro ensaiou por
sua conta, e sem auxilio da malta, uma reversão de propriedade, termos
adquados á sua qualidade de desherdado.
Havia morrido um carroceiro quando, avençado com o cego, experimentava a
sua fortuna em aventuras de moeda falsa, mandando abrir os cunhos no
Porto.A cidade da Virgem tem tido filhos de raro engenho na gravura; mas os
seus concidadãos, desamoraveis com as graças do buril, crearam á volta
d'elles uma atmosphera fria de desalento, e no pedestal em que os
sonhadores, como Morghen e Bartolozzi, entreviram a gloria a
offerecer-lhes umas sopas de vaca, o menospreço publico poz-lhes a fome.
Seria bonito para o martyrologio da arte que os honrados alumnos da
Academia das bellas-artes se deixassem perecer de anemia; porém, as
poderosas reacções do estomago impulsaram-nos a acceitar o unico lavor
que se lhes offerecia: abrir cunhos de moeda. Este ramo das artes
imitativas floriu no Porto como planta indigena, a termos de haver ali
trabalhos excellentes e muito em conta. Já se conheciam os gravadores
portuenses como hoje se conhecem os capellistas da rua de Cedofeita: - o
primeiro barateiro, o rei dos barateiros, o barateiro sem competidor.
Faziam-se notas a 5% quando a arte estava no berço, ainda timorata;
depois, á medida que a prosperidade das emprezas internacionaes
augmentava o pedido, os bons artistas davam de mão aos brazões dos
sinetes, ás chapas dos portões e ás firmas dus anneis; e, rivalisando-se
no primor e na barateza da obra, já davam um conto de notas falsas por
dez mil reis sinceros.Era este o preço da dezena de contos que o carroceiro mandara comprar
por intermedio de Pinto Monteiro, e não chegara a receber, atalhado pela
morte. Deixára, porém, segredado á viuva que se entendesse com o seu
amigo Monteiro, quando lhe entregassem a encommenda.
Não sei se estas notas eram parte de uns tresentos contos que por esse
tempo sahiram do Porto para o Brazil dentro da imagem do Senhor dos
Passos. Não averiguei as profanações que se deram n'essa remessa; o que
sei é que a viuva avisou o cego; e que, no mesmo dia do aviso, o chefe
da policia colhia de sobresalto a viuva, escondendo o rolo das notas
entre o guarda-infante e a parte subjacente que ella julgava intangivel
aos contactos brutos dos esbirros.
Levada a interrogatorios, foi pronunciada; mas, desde que ella entrou no
carcere, Pinto Monteiro, consternado até ás lagrimas, assistiu-lhe com a
mais desvelada bemquerença, constituindo-se seu procurador.
Esta mulher herdara a independencia. Gemeu em ferros seis annos
cumprindo a cummutação d'uma sentença que a condemnava a degredo para a
Ilha de Fernando. Essa commutação custara-lhe o restante dos seus
haveres, absorvidos pelo cego de Landim. Quando sahiu do carcere, e se
viu roubada pelo amigo de seu marido, e reduzida a mendigar, denunciou
ao chefe da policia a cumplicidade de Monteiro no negocio das notas.
Fortunato de Brito conveio que o seu agente era infame maior da marca:
mas fazia se mister que tivesse aquelle tamanho para dar pela barba á
corpolencia da corrupção. O cego de Landim gosava a inviolabilidade de
mal necessario.A extorsão feita á viuva divulgou-se e acerbou os antigos odios contra
Pinto Monteiro. De mais a mais, elle tinha offendido o espirito dos
estatutos, que eram obra sua. Os consocios acharam irregular e menos
honesto que o seu presidente levasse o egoismo á extremidade de
reivindicar só para si direitos de propriedade commum. Toda a
propriedade alheia era d'elles todos, pelos modos. Alguns d'estes, mais
penetrantes, incutiram no phalansterio a suspeita de que o chefe tivesse
intelligencias com a policia. Um mulato de grandes brios, notavel
capoeira, e muito summario nos processos d'aquella especie, fez lampejar
o aço da sua faca e declarou que ia anavalhar o redenho do cego.
Quando esta scena tumultuaria se passava na taverna do João Valverde, na
rua do Catête, Pinto Monteiro e Amaro Fayal já estavam a bordo da galera
Tentadora, que velejava para o Porto.
IVEm setembro de 1840 appareceu em Landim Pinto Monteiro e o seu chamado
guarda-livros. Acompanhava-os a açoriana, intitulada honorificamente
esposa do cego. Era uma mulher desnalgada, sardenta, ruiva, alta e
possante, com bretoejas rosaceas na testa, e um caracol de barba no
queixo inferior. Galhardeava moírées, calçava botas verdes, e trazia
uns merinaques que rugiam como as cavernas dos ventos.
Pinto Monteiro alugou casa em quanto reedificava outra sobre o casebre
de seus pais. O guarda-livros dizia com certo resguardo que o patrão era
muito rico. Convergiram logo das freguezias circumvisinhas bastantes
cavalheiros a visital-o, uns porque haviam sido seus condiscipulos na
escola, outros por parentesco não remoto.
O cego banqueteava os seus hospedes com iguarias incognitas apimentadas
por cosinheiras negras. Os commensaes, gente saturada de vegetaes e
milho, comiam á tripa fôrra, e levavam em si d'aquella mesa lauta raras
indigestões, muitas saudades e copia de vinhos. O cego tinha uma irmã
dez annos mais nova, que surgiu com bandós, dom e espartílhos d'entre um
balão da cunhada. Fallou-se do casamento da moça, dotada pelo irmão com
dez contos. Os morgados já corveteavam os seus pôtros por Landim, e de
longes terras vinham propostas de casamento, por intermedio de padres e
beatas. A rapariga, que eu conheci a encanecer na decadencia dos
cincenta annos, devia ter sido uma trigueira sanguinea com as mordentes
graças das sobrancelhas travadas, e negras como a pennugem do bigode.
Pinto Monteiro passava temporadas no Porto com Amaro Fayal. Era ali que
elle cumpria a mensagem a que fôra enviado pelo chefe da policia
fluminense. Viera, sob condições estipuladas, relacionar-se com os
exportadores de moeda-falsa, e estatuir, de harmonia com os
interessados, bazes organicas e auspiciosas para negocio menos precario.
O resultado, previsto pelo cego e applaudido por Fortunato de Brito, era
a policia conhecer no imperio brasileiro os cumplices dos agentes que
residiam no Porto, e, de uma vez para sempre, abranger em rede
varredoira os principaes.Conseguira captar a confiança dos dois gravadores mais habilidosos e
conhecidos alem-mar; mas um d'elles, Coutinho, o ancião que eu vi morrer
na enfermaria da Relação em 1861, não delatou as pessoas com quem
negociava, posto que o cego lhe garantisse uma velhice abastada nos
confortos da honra. O outro artista, que morreu rico, apezar de se ter
remido da cadeia á custa de dezenas de contos, tambem não denunciou os
seus freguezes; mas convidou o cego a mercar-lhe au rabais uns
cincoenta contos, resto da ultima edição.
E o cego comprou-os.
Em 1841, a hospedaria dilecta dos brazileiros de profissão (distingam-se
assim dos brazileiros do Brazil) era a do Estanislau na Batalha. Ali
havia a sem ceremonia do chinello de liga á meza-redonda; os collarinhos
arregaçados deixavam arejar as pescoceiras rorejantes de suor, que se
limpavam aos guardanapos; cada qual podia comer o arroz com a faca e o talharim com o garfo; a laranja era descascada á unha, e os caroços das
azeitonas podiam ser cuspidos na meza, bem como as esquirolas do pernil
do porco desentalladas a palito das luras dos queixaes. E era até de
direito commum cada qual caçar de guet-apens a importuna mosca na cara
e decapital-a publicamente. Estava-se ali á vontade, como nos jantares
de Peleu e Patroclo, com um grande estridor de mastigação e arrôtos.
O cego hospedava-se no Estanislau , e dizia ao secretario:
- Estamos com a nossa gente, Amaro amigo.
A idade, a compostura e o palavriado, com a reputação de rico, deram-lhe
na meza o logar mais auctorisado. Os brazileiros, vindos do Rio,
conheciam aquella figura; alguns sabiam que o homem se tinha arranjado
com expedientes mysteriosos; mas isto mesmo era qualidade meritoria e
relevante no commensal. Rosnava-se de moeda-falsa; até alguem teve a
ousadia de repetir o boato corrente ao guarda-livros. Amaro Fayal deu
aos hombros, sorrindo, e disse:- A moeda-falsa é commercio como qualquer outro, com vantagens em
proporção dos riscos. Negocio execrando só conheço um: é o da
escravatura. Ha tambem uns negocios que, depois de muitos annos de
estafa, não deixam nada: esses chamam-se negocios tolos. Assevero lhes
que a riqueza do sr. Pinto Monteiro não se fez com a escravaria.
Estava lançado o dardo. Esta franqueza deu margem a discussões, nas
quaes o cego e o Fayal descobriram entre os contendores os menos
escrupulosos. Volvidos alguns dias, Pinto Monteiro tinha vendido os
cincoenta contos de notas a um brazileiro da Maya, e era encarregado de
agenciar cem contos para outros que o primeiro alliciara. N'esta
transação cobrára o cego percentagem, e pedira sociedade no quinto dos
interesses, com a clausula de dirigir no imperio a circulação da
moeda-papel. Pactuaram a viagem para julho d'aquelle anno. Pinto
Monteiro convencionou acompanhal-os, a fim de liquidar o restante dos
seus haveres, dar impulso ao negocio e vir depois descançar na patria.
Depois de uma demora de dois mezes, Pinto Monteiro recebeu no Porto a
infausta nova de que a açoriana, captiva das negaças de um hespanhol
operador da catarata, fugira com elle para a Galliza. Bacorejou-lhe ao
cego que estava roubado, e o palpite funesto realisou-se.
A quantia devia ser valiosa, por que o trahido amante suspendeu as obras
começadas e desfez contractos apalavrados de compras. Ficou na memoria
dos contemporaneos a respeito da perfida, uma palavra do cego,
significativa de sua indole:- Se o hespanhol levasse a mulher e me não levasse o dinheiro,
penhorava-me bastante. Como me tirou as cataratas do coração, pagou-se
por suas mãos o patife!A opinião publica de Landim irritou-se quando soube que a fugitiva era
simplesmente manceba do cego. A moral exigia que elle fosse marido, para
não se desvaliarem os quilates do escandalo.
V
No mez aprasado, Pinto Monteiro regressou ao Rio de Janeiro, acompanhado
de sua irmã D. Anna das Neves. Embarcaram no Porto com elle os amigos e
socios grangeados no hotel. O brazileiro da Maya, comprador dos
cincoenta contos, levava algumas pipas de vinho verde, e uma d'estas
vasilhas havia sido fabricada, conforme o modêlo que dera o cego, e sob
a fiscalisação de Amaro Fayal. No reverso das quatro aduelas do bojo
pregaram um quadrado de madeira com chanfradura onde invasasse o rebordo
de um caixote de flandres; a pregagem do quadrado ficava occulta debaixo
de quatro dos arcos de ferro. O caixote continha duzentos contos em
notas brazileiras, e era estanhado nas juncturas de modo que o liquido
as não penetrasse, atravez de uma grossa capa de chumbo.
Chegados ao Rio, a carregação entrou nos armazens da alfandega, e Pinto
Moreira com a sua familia hospedou-se em casa de Fortunato de Brito. Ao
apontar o dia seguinte, os passageiros delatados pelo cego eram prezos;
a pipa despejada e desfeita; e o caixote das notas conduzido ao tribunal
para se lavrar aucto. Os quatro portuguezes morreram no degredo,
perdidos os haveres que já tinham adquirido honradamente. Pinto Monteiro
recebeu dez contos de réis, os 5% estipulados e deduzidos da preza.
O leitor vai descobrindo que eu não estou escrevendo um romance. Consta
me que, no Rio, os homens que já o eram ha trinta annos, recordam estes
factos com algumas miudezas que não pude obter nem já agora inventarei.
Os meus apontamentos são exactissimos no summario das excentricidades do
cego; mas escassos dos pormenores que eu rigorosamente quizera não
omittir.Aqui me contam elles os amores da morena filha de Landim com o chefe da
policia. Este episodio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se em um
chefe de policia coubessem scenas de amor brazileiro, morbidas e
somnolentas, como tão languidamente as derrete o sr. J. d'Alencar. Em
paiz de tanto passarinho, tantissimas flores a recenderem cheiros
varios, cascatas e lagos, um ceo estrellado de bananas, uma linguagem a
suspirar mimices de sutaque, com isto, e com uma rêde - ou duas por causa
da moral - a bamboarem-se entre dois coqueiros, eu mettia n'ellas o chefe
da policia e a irmã do cego, um sabiá por cima, um papagaio de um lado,
um saguí do outro, e veriam que meigas moquenquices, que arrulhar de
rôlas eu não estylava d'esta penna de ferro! Mas eu não sei se me
acreditariam coisas tão perigrinas entre o virginal Fortunato, chefe da
policia, e ella, a menina Neves que já havia colhido as boninas de vinte
e nove primaveras nas florestas do seu Minho, onde a maroteira é
pre-historica.Amores e desventuras de peor natureza nos levam a outro incidente, e ahi
veremos que Pinto Monteiro fareja todos os latibulos em que se acoite
algum crime, e não consente que a corrupção do seculo XIX ponha pé em
ramo verde no novo mundo.Certa carioca, esposa de um João Tinoco, portuguez, fizera assassinar
com veneno o marido por um escravo: mas com tal resguardo que o
conjugicidio não escoou dos muros da chacara onde ella impunemente se
dava ás delicias de Agrippina. Isto de chamar Agrippina á viuva de João
Tinoco é excesso de erudição. Ella não tinha idéa nenhuma de ser posta
em parallelo historico com a envenenadora de Claudio; o que ella queria
era que a deixassem gostar as alegrias da viuvez de um marido que
entrara em casa de seu pae como aguadeiro; e, exaltado a esposo, a
quizera forçar a fidelidades incombinaveis com o clima, desenvolvendo de
mais a mais um excedente de calorico na esposa com o atricto do murro
portuguez de lei.Tinoco tivera um caixeiro que expulsara quando lhe descobriu capacidade
para o adulterio, segundo informações de um marçano que vira piscarem-se
reciprocamente os olhos direitos á sinhá e o caixeiro. Eis o fio que
conduz o cego até ao thalamo infamado e d'ahi á campa do inulto João
Tinoco. O assassinado tinha irmãos abastados no Rio. Pinto Monteiro
revela-lhes que seu mano morrera de morte violenta, e, coberto de
lagrimas, não podendo mostrar os intestinos dilacerados de Tinoco, como
Antonio a tunica de Cesar, põe as mãos convulsas no ventre, e exclama:
- Despedaçaram-lhe as entranhas as agonias do arsenico! etc.
Fez terror.
Rugem vingança os irmãos; o cego dá vulto ás difficuldades das provas
judiciarias; franqueiam-lhe dinheiro sem conta, e um grande premio, se a
prova se fizer.Vejam os profundos segredos do ceu! Os crimes obscuros quasi nunca é a
lampada da virtude que os descortina; são sempre os cerdos que fossam e
tiram á tona dos lamaceiros as podridões submersas.
Pinto Monteiro fez surdir á flôr da terra as podridões de Tinoco, e a
toxicologia declarou que o homem morrera envenenado pela massa de Frei
Cosme. Não vá o leitor cuidar que entra na novella um frade que
manipulava massas homicidas. Não, senhor. A massa de Frei Cosme é uma
farinha saturada de arsenico.A viuva não pôde defender-se, desde que a negra confessou que envenenára
o amo em um timbal de borrachos, por ordem da senhora. Degradaram por
toda a vida a ré convicta, privando-a dos bens herdados do esposo. Com a
chacara preciosa foi galardoada a benemerita sollicitude de Pinto
Monteiro - o vingador de Tinoco e da Moral, que eu sempre escreverei com
o M maior que eu pudér.Fortunato de Brito, o chefe da policia, foi demittido por este tempo.
Antonio José Pinto Monteiro resolveu repatriar-se. A denuncia dos
moedeiros açulara-lhe muitos e poderosos mastins. A imprensa brazileira
insultava a colonia portugueza pelo facto do crime e pelo facto do
delator. A equidade foi estranha aos odios e injurias que golpearam
Monteiro. Não lhe descontaram na perfidia as vantagens commerciaes que
derivaram d'ella. Cessára o panico e o terror imminente de um cataclismo
no credito e nas casas bancarias. A policia, allumiada pelo cego, sabia
as veredas que em Portugal conduziam aos balancés. A gente honesta, e, o
commercio honrado rejubilavam com a traição de Pinto Monteiro; mas,
atidos ao velho proloquio onde não reluz faúla de philosophia pratica,
execravam o homem que levara ás plagas do degredo os salteadores da
probidade incauta.Esta victima ainda não estava inscripta no martyriologio dos grandes
lapidarios da civilisação.
VI
Os meus informadores, que mais privaram na intimidade de Pinto Monteiro,
dizem que elle, no segundo regresso a Portugal, trouxera, além de
secretario, dois filhos, que deixára no Porto a educar no collegio da
Lapa, e uma filha ainda muito na flôr da mocidade. Da mãe d'estes
meninos, que pouco ha vivia ainda nos arrabaldes do Rio de Janeiro, não
ha nada romanesco; mas bem póde ser que houvesse da parte d'ella um
profundo sentimento de dó com muitissima abnegação de si mesma; e no
coração do cego com certeza houve extremoso amor de pai. Os tigres
sempre tem, e os homens costumam ter ás vezes este sancto instincto de
amarem os filhos.Vinte e tantos contos prefaziam os haveres de Pinto Monteiro. Concluiu
as obras principiadas, comprou terras, e dirigiu pelo tacto as
bemfeitorias que fez no predio que habitava. Ha duas horas que eu estive
a reparar, por cima do muro do jardim, na graciosa vivenda que elle
enchera de luz como se um beijo do sol de agosto podesse descondensar a
algida escuridão de seus olhos. Ali passaram alegres dias os seus
convivas sob os caramancheis das parreiras. O grande prazer de Monteiro
era dar banquetes opiparos.Ouvia lêr as Artes de cosinha , conhecia Brillat-Savarin, enchia-se do
fino sentimento dos guisados; e, apontando a petuitaria aos vapores das
cassarolas, marcava quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau.
Fazia pensar se a vista, voltando-se para o interior, penetrava nos refêgos membranaceos o ideal do estomago! Se um cego illustre deplorava
o perdido paraiso, outro cego parecia tel-o encontrado na cosinha.
Elle, que na America posera o cauterio á ladroagem, á falsificação das
notas e ao adulterio aggravado pelo homicidio, não sabia como amordaçar
a maledicencia dos seus conterraneos, se não occupando-lhes as linguas
no trabalho da deglutição. A cada injuria que lhe chegava aos ouvidos,
mandava comprar dois leitões.- Mano Antonio, dizem que tu entregaste os ladrões ao chefe da
policia - dizia a menina Neves.- Dizem? pois, visto que não os posso entregar a elles, compra um peru e
dá-lh'o ámanhã com recheio.- Mano Antonio, agora dizem que denunciaste os da moeda falsa.
- Compra anhos e capões; attasca essas linguas em podim de batata,
embola-m'os com almondegas, deita-lhes aziar de ovos em fio, afoga-lhes
os escrupulos em vinho de 1815, menina.
E, depois, tinha outra paixão que o deliciava: arranjar casamentos.
Florecem hoje em Landim alguns cazaes de pessoas ditosas que elle
ajoujou, vencendo estorvos á custa de engenhosas intrigas, e até de
liberalidades de suas abatidas posses.
A filha de um cabaneiro, que se creava por sua casa, era o passa-tempo
do cego. Chamava-se a Narciza do «Bravo», - alcunha paterna. Até aos
treze annos andava vestida de rapaz, e media-se com os mais gaiatos a
trepar á grimpa de um pinheiro, no assalto nocturno ás cerejeiras, em
duellos á pedrada, no jogo do pao e no murro. Era virilmente bella, e
bem feita; mas os meneios adquiridos nos trajos de rapaz
desengraçavam-na vestida de mulher. Ella mesmo olhava para si com zanga
e puxava a repellões as saias esfrangalhando-se. Pinto Monteiro dava
tento destes phrenesis, ria-se muito, e contava-lhe casos de mulheres
portuguezas que batalharam incognitas, cobrindo os seios com arnez de
ferro.Estava no plano do cego cazal-a. Narciza dizia-lhe que não pensasse em
tal, porque a primeira pirraça que o marido lhe fizesse, favas contadas,
esmurrava-lhe os focinhos. Este programma não assustou Pinto Monteiro,
visto que os focinhos ameaçados eram os do marido.
A rapariga foi pretendida extra-matrimonialmente por varios devassos de
Landim, S. Thryso, e terras circumjacentes. A virago tinha perrixil do
que morde nas linguas já embotadas; mas tambem tinha mãos nervudas e uns
dedos nodosos que se fechavam em forma de box, assim que os pimpões lhe
cantavam desafinados.Um d'estes era um forte lavrador de Sequeirô, o Custodio da Carvalha.
Apaixonou-se com a resistencia, e fallou-lhe serio em casamento. Narciza
contou a passagem ao cego, que batia as palmas com vehemente jubilo,
exclamando:- Ó moça, aproveita antes que o rapaz se arrependa! Olha que elle colhe
trinta carros, e é um bonacheirão... E que tal o achas de figura?
- Eu sei cá!...
- Tu gostas d'elle ou não gostas?
- Como se nunca nos vissemos.
- Então, não o conhecias ha muito tempo já?
- Nunca o vi mais gordo.
- Mas queres cazar com elle ou não?
- Tanto se me dá como se me deu; mas o padrinho diga-lhe que, se se faz
fino commigo, eu pinto ahi a manta, que elle não sabe de que freguezia
é. Eu não ponho unhas em foicinha nem sachola, ouviu? Não fui creada na lavoira. Se elle pega a mandar-me sachar milho ou cegar herva, temo'las
armadas.- Caza, que tu amansarás... - dizia o cego.
E cazou.
Monteiro deu-lhe magnifico enxoval, cordão, cabaças, anneis, broche;
vestiu-se de fino panno; foi padrinho do casamento, banqueteou os noivos
com muitos convidados, chamou a musica de Paiva de Ruivães, e queimou
dez duzias de bombas reaes.O marido sentiu as fascinações que enchem de delicias o inferno dos
corações escravos. Ella manietou-o sem violencia de mau genio, com as
suas caricias de gata que desembainha as unhas brincando. Folia rija!
Romagens, quantas havia no Minho; festanças com tres clarinetes e
requinta todos os domingos na eira; a Cana verde e o Regadinho saltado
pelas maiatas mais frandunas; brodios e vinho, fasta fora. Comprou egua
de marca, vestiu-se de amazona, e ella ahi ia com o marido corcovado,
somnambulo, a chotar na mula esparavonada atraz d'ella por essas feiras
e romarias. Ás vezes, se os moleiros não despejavam depressa os caminhos
atravancados com os seus jumentos carregados de foles, verberava-os com
o chicotinho, e chamava-lhes canalhas. Em questões com os visinhos, por
causa de regas ou invasões de gado, fazia ameaças sanguinarias.
Carregava as espingardas do marido e atirava aos gaios com pontaria
infallivel. Quando soube que as senhoras do Porto usavam collete e
gravata á laia de homens, exultou, como quem vê triumphar a sua idéa, e
quiz vestir calções e botas á Frederica.
O lavrador, já no cairel do abysmo, vendidas as melhores propriedades,
quiz reagir. Viu que tinha pela frente um virago de fibras. Afroixou por
medo e por amor. O pusillanime vergava ao prestigio da força. Narcisa
offuscava-o com a rutilante belleza do demonio, disfarçado na lendaria
Dama Pé de Cabra, e n'outras damas que o leitor conhece com pés
chinezes.Dobados dez annos de vertiginosa dissipação, o lavrador resvalou do
idiotismo á sepultura, amando ainda a mulher que vendera um lençol para
lhe comprar a ultima gallinha. E Narcisa, viuva aos vinte e oito annos,
e ainda formosa, atirou com a honra ás goelas do dragão da miseria, e
não chorou uma lagrima.Havia uma amiga que lhe dizia palavras dolorosas, com sincero dó: era a
irmã do cego. Pobre Neves! quem te predisséra o supplicio dos teus
derradeiros annos, ligada ao destino da mulher que tu crearas com
maternal ternura!...
VIIEntretanto, o padrinho de Narcisa não escarmentava no sestro de
casamenteiro; é certo porém que similhantes casos assim funestos, não se
repetiram nas suas operações matrimoniaes. Por esse tempo, casou elle a
filha com diminuto dote, e abriu a carreira do sacerdocio a um filho,
que outras vocações depois afastaram da egreja. Os seus teres, com
judiciosa economia, seriam bastantes á decencia aldeã; porém, privar-se
da mesa farta e franca, era privar-se de amigos que lhe festejassem as
anecdotas. Pinto Monteiro, no dia em que falisse de auditorio, começaria
a morrer no abafador silencio da cellula penitenciaria.
Empobrecia rapidamente: mas dava a perceber que a philosophia de Job é a
ultima moeda com que o homem decahido compra a resignação e a gloria
eterna, par dessus le marché dizia elle.
Amaro Fayal, confidente dos secretos desfalques do patrão, pensou em
retirar-se para o Brazil, visto que não tinha secretaria para
fiscalisar, nem desprendimento tamanho que acceitasse outra vez o
officio de moço de cego.É aqui o logar de repetir litteralmente uma accusação que todos os meus
informadores, sem discrepancia, irrogam ao cego de Landim:
Um lavrador da Lamella, induzido por Pinto Monteiro, vendeu as suas
herdades por alguns contos de réis, a fim de ir negociar no Brazil e
centuplicar o seu dinheiro. Sahiu Monteiro com destino ao Rio, levando
em sua companhia o lavrador. Passados dias, apparece em Landim o cego,
fingindo-se doentissimo, e diz que o seu companheiro embarcara, e elle
retrocedera forçado pela molestia. Ora, do lavrador nunca mais houve
noticia; mas, no governo civil de Lisboa, fôra visado o passaporte de
José Pereira da Lamella, e o mesmo nome inscripto na lista dos
passageiros. Isto não obstante, o cego era accusado de haver matado em
Lisboa o lavrador, não podendo roubal-o por maneira mais suave; e a
certeza confirmou-se quando parentes que o Lamella tinha no Rio,
perguntados a tal respeito, responderam que nunca viram tal homem, nem,
depois de chamado pela imprensa de todas as provincias, apparecera.
Asseveravam, porém, que um nome similhante se lia na lista dos
passageiros desembarcados no Rio, no mesmo navio e mez em que de
Portugal se informava que elle partira.
Seria mais natural suppor que José Pereira morrera obscuramente em
alguma rossa; mas á calumnia pareceu mais romantico decidir que o cego o
matára.- Como presumem os senhores que o cego matasse o lavrador? - perguntei.
- Não sabemos; mas o mais provavel é que o atirasse ao rio quando o bote
ia para bordo da galera.Esta era e é a opinião corrente. Pelos modos, o cego, em pleno sol do
Tejo, na presença dos barqueiros, alijou o passageiro ao rio, e fez
remar para terra o bote com a bagagem do morto; depois, saltou no Caes
das Columnas com a mala do dinheiro debaixo do braço, e ás apalpadellas
lá se foi pacificamente caminho de Landim.
Corre parelhas em maldade e estupidez esta aleivosia, é certo; mas o
lavrador, de feito, fôra assassinado em Lisboa.
Agora, posto que tardia, ahi vem a rehabilitação de Antonio José Pinto
Monteiro.Quem induzira o lavrador da Lamella a vender as terras foi Amaro Fayal,
offerecendo-lhe sociedade em negocio que rendia 200%. O Pereira da Lamella era calaceiro. O trabalho agricola pezava-lhe: as suas terras,
avaliadas em cinco contos, rendiam escassamente o passadio grosseiro do
lavrador minhoto. Calculou, firmado na prova mathematica das cifras de
Amaro, que, ao fim de cinco annos, devia ter cinco contos dez vezes
multiplicados. É claro: 200% - 5 vezes 10 - 50 contos. Vendeu as terras e
partiu com o ex-secretario do cego. Pinto Monteiro, sinceramente
affeiçoado ao seu confidente de vinte annos de varia fortuna,
acompanhou-o até ao Porto, e d'ali voltou para Landim algum tanto
enfermo, e ás pessoas que lhe perguntavam pelo Pereira da Lamella
respondia naturalmente que tinha embarcado. Dava-lhe, porém, que scismar
não estar o nome de Amaro Fayal na lista dos passageiros.
O leitor já descobriu que o assassino do lavrador foi Amaro; que o
passaporte do morto serviu para o matador; mas ignora os pormenores do
crime, e eu tambem os não sei.Passados annos, um correspondente de gazeta escrevera o essensial da
calumnia que assacava o homicidio ao cego. O delegado de Villa Nova de
Famalicão, Soares d'Azevedo, e advogado de Pinto Monteiro em diversas
demandas, aconselhou-o que justificasse a sua innocencia n'este crime
que lhe imputavam, porque deixal-o á calumnia e á revelia era
arriscar-se a perder todos os seus pleitos. O cego, com a lucida
intuição de quem tinha longa pratica de crimes tenebrosos, explicou a
morte do lavrador, comprovando-a pelas circumstancias do passaporte,
pela omissão do nome do homicida na lista dos desembarcados no Rio, e
pela certeza que lhe deram de Amaro Fayal ter morrido poucos dias depois
que chegára, no hospital, com o roubo ainda intacto, segundo vira na
noticia dos espolios dos fallecidos. Replicou-lhe o delegado que
semelhante justificação era insufficiente: o cego redarguiu que não
tinha outra, nem essa mesma daria, se Amaro Fayal fosse vivo, por que no
seu braço se amparara vinte annos, vinte annos vira pelos olhos d'elle,
e mal remunerado o despedira, sem que o seu guarda-livros murmurasse da
mesquinhez da paga.
VIIIEm 1858 o cego, escasso de posses, escorregava na ladeira da pobreza.
Havia vendido ou hypothecado as terras. Perdera demandas valiosas:
parece que em quasi todas influiu a sua má nota a desculpar a injustiça.
Duas quintas lhe foram extorquidas com tão estranho desafôro, que é
mister acceitar-se intervenção de jurisprudencia divina para que o homem
as perdesse, pois é de crêr que as adquirisse com dinheiro deshonrado.
Dizia elle que viera encontrar em Portugal especies de ladrões
fleugmaticos e frios, que não topara nos climas quentes; e que o larapio
luso-brasileiro era francamente analphabeto e lerdo, ao passo que o
ladrão, extreme e puramente luso, era, por via de regra, além perverso,
bacharel formado. Alludia a dois adversarios jurisconsultos que eu
escondo á curiosidade do leitor, por que me sustém o pulso um quasi
religioso respeito á memoria honesta de Paiva e Pona, e tambem de Pêgas.
Com as ultimas moedas, abriu Pinto Monteiro um botequim em Famalicão,
faz hoje dezesete annos. A villa, n'esse tempo, estava na apojadura das
suas prosperidades. Choviam ali brazileiros que nem maná nos areaes da
Mesopotamia. Dos paúes alagadiços irrompiam casas de azulejos
variegados. Villa Nova era o centro da locomoção do Minho, da mercancia
agricola, da villegiatura dos portuenses; mas não tinha o «café» - a
prova real da civilisação.Pinto Monteiro contava com as leis do progresso; porém, Villa Nova que
hoje, na extrema decadencia, tem tres «cafés» com dois limões sorvados e
tres garrafas de licor de canella, em tempos florentissimos não
sustentou o botequim do cego em que havia cognac, coraçáo, chartreuse,
kermann e absintho. É porque, ha dezesete annos, o progresso material
desconhecia a precisão dos «cafés», paragens d'uns ociosos que se
putrificam, raça amollentada no sybaritismo da cerveja de quartola, com
grandes orgias de cigarros de Xabregas.
O cego apenas vendia algum capilé aos vigarios encatarroados e orchatas
aos adiposos. A ruina ia consummar-se e o botiquim fechar-se, quando
chegou á villa, e se hospedou no hotel um brazileiro doente vindo do Rio
com sua esposa. Pinto Monteiro conhecia de nome o enfermo.
Visitou-o e acompanhou-o nos desalentos da cachexia, animando-o ou
distrahindo-o com a sua variada e jovial conversação. Alvino Azevedo
affeiçoou-se-lhe a ponto de, chegado ao termo dos soffrimentos, lhe
confiar sua mulher, pedindo-lhe que a protegesse e guiasse na
administração dos seus haveres. A esposa do enfermo estava um pouco
longe da idade em que as viuvas correm perigo, se as não vigiam: tinha
setenta annos feitos, e já não conservava toda a frescura das suas
dezoito primaveras nem os dentes completos. Os dons do espirito não eram
transcendentes nem talvez bastantes para seduzirem outro marido: D.
Joanna Tecla era idiota.O cachetico expirou nos braços do cego, despedindo-se da esposa com uma
olhadella cheia de saudades, e talvez de esperanças no paraizo de
Mafoma; em que as mulheres velhas remoçam. Ella chorou copiosamente, e
declarou que aquelle morto era o terceiro marido que lhe fugia para o
ceo. Elles tinham tido razão em fugir todos.
D. Tecla passou para casa do cego com todo o resguardo da sua pudicicia,
acompanhada pela mana Neves.Passados os tres dias de nôjo, perguntou-lhe Pinto Monteiro se queria
voltar ao Brazil, sua patria, ou ficar em Portugal, recebendo os
rendimentos dos seus predios no Rio. A viuva respondeu que a sua posição
era muito melindrosa; que uma senhora não podia ir sósinha para tão
longe; que o mundo estava cheio de homens mal creados que mediam tudo
pela mesma raza; que não queria sujeitar-se a algum desaguisado por
essas terras de Christo; que em fim, não ia para o Brazil sem ter
familia muito honesta com quem fosse.
- Mas então, minha senhora; - redarguiu o cego
- quer, entretanto que não
vai, viver sósinha em Villa Nova, ou dá nos o prazer da sua companhia?
Seu defunto esposo encarregou-me de a dirigir; eu, porém, o que farei é
conformar-me com a vontade da senhora, que já tem sufficiente idade para
saber o que lhe convem.- Não sei nada do mundo - acudiu Tecla - Estou muito verde. O senhor é que
ha de guiar-me.- Deus lhe dê melhor guia do que um cego, minha senhora;... mas ahi tem
a minha mana que lhe será companheira e irmã.
No dia seguinte, Monteiro fechou o botiquim com um sorriso sarcastico, e
o ar solemne e vingativo de quem fechava a porta que franqueára á
civilisação de Villa Nova. Elle vociferou que os habitantes de Famalicão
eram indignos do «Café», deu volta á chave, e foi caminho de Landim com
a hospeda e a irmã.
IXOs dois predios que a viuva possuia na rua da Quitanda valiam quarenta
contos de réis fracos; as suas joias, dádivas de tres maridos, eram
muitas e nem todas de pedras falsas. A idade da viuva animava um quarto
marido, na hypothese de caber a esse quarto a vez de a ver fugir para o
céo a ella. O certo é que andavam já dois empregados da fazenda e outros
tantos da administração a expiarem o ensejo de lhe seduzirem a
inexperiencia, quando a viram ir impertigada n'umas andilhas, caminho de
Landim, a chotar, e a rir-se dos solavancos do macho.
Os pretendentes pegaram de gritar contra o cego, assacando-lhe o rapto e
a coacção da viuva. O juiz de direito viu-se forçado a deferir ao
requerimento de um curioso que pedia uma visita domiciliaria ao carcere
privado de D. Joanna Tecla Alves. Effectivamente a hospeda de Pinto
Monteiro foi interrogada em presença de testemuhas, se estava n'aquella
casa por sua livre vontade, não coagida nem seduzida.
Respondeu que estava muito contente, e que podia estar onde quizesse.
O juiz concordou.
Algumas cartas amorosas em papel perfumado lhe enviou o mais galan dos
funccionarios de Famalicão. Joanna Tecla relia as cartas com secretas
delicias; mas, no exterior, fingia-se de uma isenção que faria
envergonhar Arthemisa, viuva de Mausólo e as combustiveis viuvas do
Malabar. Perguntava á sua amiga Neves quem era o tolo que lhe escrevia;
e, rindo com a garridice arisca dos dezeseis annos, dizia que seria
grande pagode mangar com elle, respondendo-lhe ás cartas.
A mana do cego segredava ao irmão:
- Olha que a velha é tola, mano Antonio; trata de cortar os voadouros á
cegonha: senão, hasde vêl-a voar aos braços do quarto marido.
- O quarto marido heide ser eu!
- disse o cego com uma visagem de martyr
voluntario - Heide ser eu o quarto marido - repetiu elle, tragando um copo
de rhum para ganhar alma - porque a ter de entrar n'esta casa o espectro
da miseria, é melhor que entre Joanna Tecla. Não me lembra como se
chamava um cego que dava graças a Deus porque não podia vêr um certo
tyranno; eu tambem as dou, porque não posso vêr a minha noiva. - E enchia
o copo esvasiado, mascava o charuto, e fazia com as duas pernas um curso
de geometria - Sacrifico-me a ti e a meus filhos. Vou ser o bode
expiatorio das minhas e vossas prodigalidades; mas levo a certeza de que
ella ao menos me será esposa fiel - o que é raro antes dos setenta annos.
O seu terceiro defuncto disse-me que Tecla era uma paz d'alma, bruta
sim, mas boa. Emfim, mana, sonda-m'a; vê se lhe achas vontade de casar
quarta vez.- Tomára ella! - acudiu a irmã - Está sempre a dizer: «Isto de mulher sem
homem é como peixe fóra de agua.» Põe papelotes todas as noites, e faz
caracoes quando se ergue. Que quer isto dizer? Queres que eu lhe toque
no casamento comtigo?- Toca; que eu começo hoje a fazer-lhe a côrte.
Na tarde d'esse dia, passeava Monteiro, debaixo da parreira do seu
quintal, pelo braço da viuva. As calhandras e os pintasilgos trilavam os
seus requebros ás margens do rio Pele. As rãs coaxavam nas pôças, e as
auras ciciavam na ramaria dos álamos. Era uma tarde de tirar amores do
olho de uma couve lombarda.Passeavam silenciosos, quando ao longe, no pinhal do mosteiro, cantou um
cuco.- Olhe o cuquinho a cantar! - disse ella com meiguice.
- Gosta de ouvir o cuco, sr.ª D. Tecla?
- perguntou o cego.- Eu gosto de toda a passarinhada - respondeu ella com as denguices
infantis da Lili de Goethe.- O cuco é passaro de máo agoiro! - tornou elle
- Eu, com medo de tal ave,
não quiz casar.Tecla riu-se descompassadamente, provando que conhecia a línguagem
symbolica da ave agoureira. E o cego, n'esta entreaberta de galhofa,
beliscou-lhe a polpa do braço esquerdo.
- Ai! - exclamou ella - Isto que foi?!
- Não se ria assim das fraquezas do proximo, Joanninha!
- respondeu o
cego, dando ao beliscão o ar innocente de um gracejo familiar - Eu não
quiz casar nunca porque o meu coração nunca sentíu ao perto nem ao longe
a mulher digna d'elle. Cheguei aos cincoenta e dois annos, pode-se
dizer, sem ouvir a este coração as palpitações que estou agora ouvindo.
É a primeira vez... - e estreitava-lhe o braço contra o lado esquerdo com
umas pressões trémulas - é a primeira vez que amo; porque é esta a
primeira vez que encontro a mulher, a esposa digna da minha ternura. Que
me responde, Tecla? não me responde, prenda adorada? - instava elle
sacudindo-lhe a mão com transporte.
A viuva inclinou a face para o seio, deixou-se apertar com o indolente
abandono de suas faculdades sensitivas, esteve impando como quem suspira
a custo, e murmurou:- De vagar se vai ao longe, sr. Monteiro.
XAquillo foi depressa. O fervor reciproco dos noivos, e o preceito do
poeta pagão que manda não adiar os prazeres, abreviaram quanto possivel
a identificação das duas almas. O reitor, que os recebeu, era um padre
bom e jovial que até a estes noivos disse o que dizia a todos: «Eu
espero o vosso primeiro filho d'aqui a nove mezes.» A noiva entreabriu á
flor dos beiços um hypothetico sorriso de pudor; o cego, porém, ferido
na infecundidade da esposa, disse, carregando o semblante:
- N'este acto, sr. reitor, são improprias as chalaças.
O padre, querendo emendar eruditamente a inadvertencia, respondeu:
- As santas escripturas fallam de Sára...
- Eu não sou Abrahão
- replicou o cego, voltando-lhe as costas.
Reverdeceram os contentamentos da meza lauta e das intimas palestras ao
fogão. D. Tecla Monteiro confessava que nunca tão felizes lhe derivaram
os dias da existencia. O cego sentia se docemente ameigado e bem, com o
rosto no regaço da esposa. Saboreava os santos aconchêgos da companheira
canonica. Recendia-lhe o ninho dos seus amores licitos um patriarchismo
anterior ao sacramento do matrimonio, é verdade, mas puro como os
conubios de Jacob e Lia, de Ruth e Booz. Ella não o idolatrava com o
maior phrenesi, mas aquecia-lhe no inverno os lençoes com botijas, e de
manhã levava-lhe uma chavena de sagú, que pessoalmente cosinhava com
todos os primores d'uma vocação especial para os mingáos.
Na venda das propriedades liquidára Monteiro menos do seu valor; mas
ainda assim não desceu de vinte contos de réis o dote da esposa. Parte
d'este capital empregou-o em uma quinta no Alto-Douro, outra parte na
reincidencia de pleitos que havia perdido, e o restante nas opulencias
da meza, e nas liberalidades com os renovados amigos. Do mesmo passo que
a opinião publica encarecia a velhacaria do cego, formava-se uma
confederação de sujeitos que lhe exploravam a perdularia generosidade.
Emprestava facilmente dinheiro, e não negava esmola, nem se desculpava
com a falta de cobres. «Tal desculpa seria boa, - dizia elle - se os
mendigos se offendessem com as pratas.» E tambem dizia: «Ninguem dá
esmolas mais ás escondidas do que eu, porque nem vejo as pessoas a quem
as dou!» Triste gracejo proferido por um cego.
Pinto Monteiro, que tanto refinára em astucias, no ultimo quartel da
vida, deixava-se enganar por qualquer velhaco montezinho. A quinta do
Alto Douro, comprada por seis contos de réis, foi uma venda fraudulenta:
a propriedade estava hypothecada á fazenda nacional, e o vendedor,
apresentando titulos falsos, recebeu o dinheiro no Porto, e fugiu. Os
convivas do cego rejubilavam a cada arremesso novo que a desfortuna lhe
dava para a pobreza, e as pessoas contemplativas observavam ás
incredulas que o enorme delinquente estava soffrendo retaliações
providenciaes. É de crer que sim.Lance admiravel! Pinto Monteiro mantinha serenidade socratica e
imperterrita a cada lançada que lhe resvalava na rodella da philosophia.
Se a irmã ou a esposa choravam, e elle dava tento d'isso, dizia-lhes: «É
uma vergonha chorar quando a vida é tão curta! As dores são um sonho mau
de que se acorda na sepultura.»Ao sentir desfibrar-se-lhe a corda tenaz da paciencia, digna de um
christão, emborcava garrafas de genebra, e fumava sempre até cair
marasmado pelo alcool e pela nicotina; mas, se antes da prostração, se
exaltava em desvarios de ebrio, as phrases refloreciam os raptos de
eloquencia que aos vinte e cinco annos o arrebatavam nos clubs
fluminenses. N'estas occasiões, projectava ir ao parlamento, e ensaiava
discursos tão bonitos que pareciam ser decorados no «Diario das
Camaras.» Ás vezes pedia á mulher e á irmã que lhe fizessem «ápartes»
para o picarem. A boa de D. Tecla dava-lhe para se rir, ou pedia-lhe
amorosamente que se deitasse - pedido que a gente não pode fazer a todos
os oradores parlamentares.N'estas intermittencias, quasi sempre risonhas, se passavam os dias e
boa parte das noites n'aquella murmurosa casa de Landim. D. Tecla
desmentira os viticinios que a deploravam, esbulhada do dote e
abandonada á piedade do Azylo das velhas do Camarão. Não teve uma hora
de tristeza esta senhora; nem se quer ligeira borrasca de ciume, em sete
annos de casada, lhe nublou as suas alegrias de esposa leal. Ás setenta
e seis primaveras seguiu-se um inverno rigoroso de catarraes e gota, com
perturbações no apparelho digestivo, tympanites e colicas flatulentas. A
morte arrebatou-a em dezembro de 1861 dos braços do marido que, pela
primeira vez na sua vida, chorou.
XISete annos de glacial solidão giaram sobre a alma de Pinto Monteiro. As
portas da sua casa raro se abriam. Concordemente se disse que o cego
estava pobre pela terceira vez. Era verdade: estava pobre - vendia o
restante das joias da mulher.Ás vezes entrava n'aquella casa a Narcisa do Bravo, sentava-se á mesa
ainda abundante do padrinho, e matava a fome. A irmã do cego
debulhava-se em pranto a confrontar aquella desgraçada de rosto empolado
com esfoliações rubras á formosa noiva de Custodio da Carvalha, á gentil
amazona por amor de quem alguns fidalgos de Guimarães terçaram as suas
badines de caoutchouc na romaria de S. Torquato.
Sobre todas as famas repellentes, ganhara Narcisa, com legitimo direito,
a de ladra, e ladra á mão armada. Os mais queixosos eram os que lhe
colheram as flôres já outoniças da belleza, e a regeitaram com a
brutalidade do tedio. Narcisa sahia-lhes de rosto nas concavidades das
congostas escuras, e abocava-lhes á cara uma pistola de dois canos; e
elles, com um fingido sorriso de piedade despresadora, atiravam-lhe a
forçada esmola. Outras vezes, escalava as janellas das alcôvas
conhecidas, e entroixava os bragaes como se inventariasse o espolio de
um esposo fallecido. E temiam-na como a um scelerado disposto a vender
cara a vida, por que ella deixava entrever a coronha da pistola entre os
atacadores do collete escarlate, e, se sofraldava as saias, quando
saltava as poldras dos ribeiros, mostrava a faca de ponta atravessada na
liga. Os regedores das freguezias que ella frequentava tinham ordem de a
capturarem; mas o mêdo, predicado pacifico d'estes magistrados, era a
resalva de Narcisa.O cego de Landim não ignorava a desastrosa sahida de sua afilhada;
conselhos, n'aquella extremidade, eram perdidos; censuras, a si proprio
as fazia o cego por que encetára a perdição d'aquella moça, tirando-a da
arribana de seu pae, para a crear nas regalias da abundancia, sem
vislumbres de religião, em plena liberdade de se viciar com as
travessuras e gaiatices que lhe festejavam. Narciza era talvez uma das
polés que torturaram o cego nas impenetraveis agonias dos seus ultimos
seis annos.Contava um rapazinho, creado de Pinto Monteiro, que ouvira, uma vez, sua
ama dizer a Narciza que ia mandar vender dois cobertores porque não
havia dinheiro em casa; e que Narciza lhe dissera que não vendesse os
cobertores, por que ella ia vender a sua pistola por meia moeda. Não
tenho outro lance generoso que possa referir de Narciza do Bravo.
Quando este caso passou, entrava Antonio José Pinto Monteiro nos
paroxismos da morte. A 28 de novembro de 1868, pelas dez horas da manhã,
disse á irmã que lhe accendesse um cigarro, e abrisse as janellas, que
sentia grande calor e ancia. Sentou se no leito, e inspirou
consoladoramente a columna de ar frigidissimo que lhe bateu no rosto, ao
abrir da janella. Pediu uma chavena de café, e, emquanto a irmã o fazia,
Narcisa veiu para a beira do padrinho.
- Quem é? - perguntou o cego.
- Sou eu, padrinho. Está melhor?
- Vou estar melhor, filha. Isto vai acabar. Quando eu morrer, faze
companhia á minha pobre irmã...Narcisa chorava, beijando a mão do cego, que se estorcia nas dôres da
cystite. Ao cahir da noite, a prostração, a febre, os soluços, e o frio
das extremidades diagnosticavam a gangrena. No 1.º de dezembro, o cego
de Landim expirou reclinado ao seio de Narciza, que se sentara no leito
para o amparar nos derradeiros arrancos.
As suas ultimas palavras, no delirio que precedeu a morte, encerram toda
a moralidade d'esta biographia:- Eu tinha tres filhos que criei com tanto amor... Que é d'elles?...
E mais nada.
Os tres filhos do cego de Landim affrontar-se-hiam com o nome de seu
pai? Para ter um peito amigo que o amparasse na agonia, foi mister que a
sociedade remessasse para dentro da alcova do moribundo uma mulher
perdida. Mas, lá ao longe, no Brazil, houve lagrimas saudosas no coração
de uma filha. Pois quando é que Deus consentiu que uma filha as não
chorasse... n'um epitaphio?
CONCLUSÃO
No cemiterio de Landim está uma sepultura com este letreiro:
AQUI JAZ
ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO
NASCEU
A 11 DE DEZEMBRO DE 1808
FALLECEU
A 1 DE DEZEMBRO DE 1868TRIBUTO DE GRATIDÃO
DE ETERNA SAUDADE
QUE LHE DEDICA SUA INCONSOLAVEL FILHA
GUILHERMINAAnna das Neves ideara uma perspectiva de felicidades: viver os restantes
annos em recatada pobreza, morrer mais desamparada que o irmão, e ser
levada como quem remove um entulho ali para aquella sepultura onde se pulverisavam os ossos execrados do cego.
Estas felicidades não as gosa quem quer.
Um dia, a justiça, perseguindo Narcisa pelo roubo de uma coberta de
fêlpo, soube que a Neves a mandara vender. A ordem de captura involveu-a
como receptadora de roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa, e
encontraram, para maior prova do crime, um açafate de maçãs camoezas,
dois calondros e algumas batatas que Narcisa recolhera, de colheita
aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protectora. A irmã do cego
foi capturada, e, sem fiança, encarcerada na lobrega enchovia de
Famalicão. Dias depois davam-lhe a companhia de Narciza, que se
entregara á prisão, arrojando a pistola, quando lhe disseram que a Neves
estava preza. O juiz misericordioso condemnou-as a oito mezes de prisão,
dado que os jurados as sobrecarregassem de crimes benemeritos de degredo
perpetuo.Cumprida a sentença, D. Anna das Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa
que o irmão comprára em nome d'ella. Com o producto d'essa venda
transferiu-se, em 1872, ao Brazil, e levou comsigo Narcisa do Bravo.
Parece que não tinha outros amores n'este mundo, e desejava expirar,
como o irmão, nos braços d'ella.E visto que não estamos dispostos a deixal-a morrer nos nossos braços, ó
leitor, parece-me caridosa coisa que a não fulminemos com a nossa
honrada raiva. Sou de opinião que sejamos inexoravelmente severos com os
desgraçados e com as desgraçadas, quando elles e ellas repellirem a
felicidade que lhes offerecermos.
Camilo Castelo Branco
S. Miguel de Seide - Julho de 1876
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20.Jun.2010
Publicado por
MJA
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