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 Sobre a Deficiência Visual

Implicações de ser Pai e Mãe de um Bebé Deficiente Visual

Patrícia Roveda
 

Blind daughter of the artist -Simon Glucklich
A filha cega do artista - Simon Glucklich


“A criança que nasce parece ser a realização de um desejo consciente, integrado dentro de um plano de vida em relação com os ideais sociais e familiares de cada sujeito” (BYDLOWISKI apud SOULÉ, 1987).

Esta seção foi constituída com a intenção de verificarmos algumas reações e sentimentos comumente apresentados pelos pais de um bebê com deficiência visual, segundo a bibliografia pesquisada. Sabemos das dificuldades enfrentadas pelo profissional de intervenção precoce ao deparar-se com certas atitudes dos pais, frente às quais desconhecem a origem e os motivos, o que pode dificultar-lhe o trabalho a ser realizado com a família. Consideramos também a relevância do entendimento de alguns aspectos da relação que se estabelece entre a mãe e o bebê, devido a importância desta relação para o desenvolvimento da criança.

Esperamos que, a partir do estudo das “prováveis implicações da experiência de ser pai e mãe de um bebê deficiente visual”, seja possível estabelecer um diálogo com os pais de modo a auxiliá-los na superação de suas possíveis dificuldades adaptativas.
 

1.  REAÇÕES DA FAMÍLIA FRENTE AO NASCIMENTO DE UM FILHO CEGO OU COM BAIXA VISÃO

Leonhardt (1992) indica a existência de alguns problemas comumente enfrentados pelos pais, após o nascimento de uma criança com deficiência visual: o desinteresse do profissional pelo problema que enfrentam, a ocultação ou suposta ocultação do déficit, a forma incompreensível pela qual recebem, às vezes, o diagnóstico, a falta de sensibilidade ao comunicar-lhes o ocorrido, entre outros. A autora observa também que o choque e a dor causados pelo diagnóstico da deficiência visual, podem interferir na interpretação, por parte dos pais, dos sentimentos dos médicos, os quais são muitas vezes julgados como insensíveis pela família da criança deficiente. Na busca por uma resposta que amenize a dor e, insatisfeitos com o primeiro diagnóstico recebido, os pais podem iniciar uma “peregrinação”, procurando por um profissional que apresente uma explicação que os satisfaça, diz Buscaglia (1993).

O autor cita Anderson (1971) que em sua pesquisa aponta que problemas na comunicação entre pais de crianças deficientes e profissionais da área da saúde, são prováveis causadores deste “comportamento volúvel”, muitas vezes apresentado pelos pais, após receberem o diagnóstico da deficiência de seu filho:

De acordo com o autor, o comportamento volúvel refere-se a pais que consultam um mesmo profissional ou diversos profissionais de uma maneira em que as visitas se sucedem sem que encontrem solução para um problema solucionável.

Evidentemente este comportamento não terá como causa apenas uma inabilidade médica em comunicar o diagnóstico. É o que relata Buscaglia (1993, p. 57) quando nos diz que “o motivo mais comum, porém, é que, embora o diagnóstico seja preciso, os pais se recusam a aceitá-lo”. Ainda, segundo o autor, o medo, a ansiedade ou confusão conseqüente pode levar os pais a uma consulta a outro profissional, o qual se espera, fornecerá uma explicação menos ameaçadora, possivelmente mais clara e simples dos problemas da criança.

O resultado desta reação pode ser o não atendimento, por parte dos pais, das recomendações médicas. Ao relatar o resultado de pesquisas sobre o atendimento às recomendações médicas por parte das famílias, Buscaglia (1993) afirma que uma descoberta bastante significativa foi o fato de que os pais estavam mais dispostos a seguir as recomendações se concordassem com o diagnóstico e a avaliação do problema por parte do profissional. “Os pesquisadores ressaltaram o fato de que, a menos que os pais compreendam e aceitem as informações que lhe são apresentadas, muito pouco pode ser feito pela criança” (BUSCAGLIA, 1993, p. 60).

Podemos então, a partir do exposto acima, considerar que a comunicação do diagnóstico médico às famílias é um momento crucial. Essa idéia é referendada por Leonhardt (1992), ao colocar que os pais de crianças cegas enfrentam a crise mais importante no momento em que se lhes comunica o diagnóstico.

Esta crise é, quem sabe, a mais significativa, mas não a única, já que se seguirão outras crises cíclicas, principalmente em momentos de mudanças. Nenhum casal está preparado para ter um filho cego. Não se está, portanto, nem emocional nem pedagogicamente preparado para enfrentar esta situação (LEONHARDT,1992, p. 24-25).

Há ainda outras reações comum aos pais que acabam de receber a notícia que seu bebê é deficiente visual. Assim, a autora revela que os pais podem ter a sensação de que o bebê não é seu, sentir-se desvinculado em relação a ele e não ter necessidade de acariciar, abraçar e olhar o seu bebê. Dessa forma surgem crises de choro e irritabilidade, atitudes como fechar-se em si mesmo e na própria dor, perdas de apetite e do desejo de viver, insônia, confusão a respeito da própria identidade, desejos de fuga no espaço e no tempo e o sentimento de uma ferida profunda na própria auto-estima (LEONHARDT, 1992, p. 25). A família poderá viver então uma fase de dor intensa, pela perda da criança idealizada.

[...] É-lhes pedido que aceitem uma realidade não desejada. A criança perfeita que esperavam não veio e, em seu lugar, terão de aceitar algo muito aquém de suas expectativas. Essa tomada de consciência traz consigo uma dor profunda e a decepção para toda a família (BUSCAGLIA, 1993, p.106).


1.1 Enfrentando o luto

De acordo com Leonhardt (1993, p. 25), esse sentimento de perda da criança perfeita “necessita ser vivido e elaborado através de diversas etapas que implica a experiência da dor, a fim de poder chegar a uma boa adaptação da realidade, a aceitação da criança real, a criança e sua cegueira”.

Ao descrever o pesar e o luto vivenciados por adultos, Bowlby (1997, p. 115) aponta que “embora a intensidade do pesar varie consideravelmente de indivíduo para indivíduo, existe um padrão geral básico”. A partir de seus estudos, o autor apresenta o luto dividido em quatro fases sendo que a primeira fase é “usualmente bastante breve”. São elas:
 

  1. Fase do atordoamento: dura habitualmente entre algumas horas a uma semana e pode ser interrompida por descargas de profunda aflição ou ansiedade;

  2. Fase de anseio e busca da figura perdida, que persiste durante meses e, com freqüência, anos;

  3. Fase de desorganização e desespero;

  4. Fase de um grau maior ou menor de reorganização.

Ao fazer referência a estas fases, Leonhardt (1992, p. 26) afirma que todo este processo é prolongado, durando com freqüência muitos meses e, em geral, anos. Afirma ainda que se durante o processo, acaso há uma renúncia à dor, “a adaptação será superficial e a capacidade afetiva e emocional será seriamente afetada, traduzindo-se em uma diminuição da preocupação pelas demais pessoas e na própria capacidade de amar”.

Brazelton (apud LEONHARDT, 1992, p. 26) explica a importância da vivência plena destes momentos de dor e afirma que quando o processo de dor é desviado, os pais ficam encapsulados na expressão de seus sentimentos, tomando então grande força os mecanismos de defesa, o que dificulta a adaptação positiva à realidade enfrentada.

Desta forma, identificamos o sentimento de luto da família como algo positivo, necessário à adaptação à realidade a ser compreendida. É o desequilíbrio que antecede a estabilidade dos sentimentos. O que diferencia o resultado de um processo que pode se apresentar como bem ou mal elaborado, são as distintas posições escolhidas por cada um dos pais, na resolução de seu conflito interno. Com o intuito de entender melhor esse processo inicial vivenciado pelos pais, Leonhardt (1992) apresenta uma análise das etapas evolutivas da adaptação destes frente à deficiência visual de seus filhos, na qual identificou três etapas distintas.

Na primeira etapa, observa-se crises de adaptação; na segunda etapa, é possível notar algumas dinâmicas adaptativas e na terceira e última etapa, os pais adquirem uma posição relativamente estável frente a situação.

A seguir, a figura demonstrativa destas etapas, exatamente como Leonhardt (1992, p. 27) apresenta em seu livro.
 

Figura - Etapas evolutivas de adaptação que seguem os pais de crianças deficientes visuais  -  Fonte: Leonhardt (1992)
Figura - Etapas evolutivas de adaptação que seguem os pais
de crianças deficientes visuais  -  Fonte: Leonhardt (1992)

 

Sobre as etapas de adaptação, a autora revela que durante a primeira, frente ao choque emocional, pode-se observar duas atitudes: uma de negação total ou parcial do diagnóstico e outra, paralela e em estreita inter-relação com a anterior, que constitui-se na necessidade de confirmar o diagnóstico.

Após a certeza do diagnóstico, “começa uma etapa na qual os pais apresentam uma torrente de emoções e sentimentos” (LEONHARDT, 1992, p. 26).

Segundo Leonhardt (1992, p. 26), a culpa, a depressão e a problemática familiar constituem-se nos três eixos em torno dos quais se movimenta a dinâmica de adaptação, relativa à segunda etapa, sendo que “a partir de sua melhor ou menor resolução, ocorrem posições de adaptação que constituem a terceira etapa”.

A terceira etapa, de acordo com o exposto na figura acima, apresenta três posições de adaptação: positiva, negativa e desintegrada.

Leonhardt (1992, p. 28) destaca duas atitudes que revelam uma posição considerada positiva: uma aceitação conectada com a realidade do déficit e as limitações que dele derivam e uma adequação mais relativa, produzida por uma aceitação mais frágil. Quanto à posição negativa, a autora aponta que a mesma é produzida quando não se chega a aceitar de forma realista o déficit e suas limitações, sendo que fantasias e negações dos distintos efeitos produzidos pela cegueira ocupariam um importante lugar, impedindo a percepção da realidade.

Dessa forma, haveria uma não resolução das crises emocionais que ocorrem constantemente, impedindo a progressão a etapas de equilíbrio e reorganização estáveis.

Quanto à terceira posição, a desintegrada, Leonhardt (1992, p. 28) afirma que esta seria responsável pelos efeitos mais prejudiciais para as relações familiares, com conseqüências de difícil resolução: separação do casal, desintegração da personalidade, dissociação da realidade, enfermidade mental.

Após o estudo das etapas evolutivas pelas quais os pais vivenciam o processo de adaptação à realidade, verificamos que há diferentes resultados e que também é possível observar indícios de que estes pais enfrentam dificuldades ao elaborar seus sentimentos, o que identificaremos a seguir.


1.2 Atitudes dos pais com dificuldades de elaboração no processo adaptativo

O estudo das etapas evolutivas vivenciadas pelos pais de bebês com deficiência, nos traz a certeza de que atenção aos pais, em suas falas e atitudes, deve ser uma preocupação de todos os profissionais que atuam com crianças deficientes e suas famílias. Com uma atitude atenciosa, é possível identificarmos nos pais sinais de dificuldades na elaboração de seus sentimentos em relação ao bebê. De acordo com Leonhardt (1992), é possível que algumas atitudes sejam comuns em pais com dificuldades de elaboração no processo adaptativo, sendo possível a identificação destes sinais em qualquer etapa do processo.

Contudo, é mister destacar que tais atitudes não estão isoladas de um contexto social e este, por sua vez, pode influenciar a predominância ou não de certas reações parentais frente à deficiência da criança. É o que demonstra Fonseca (1995) ao afirmar que quando nasce uma criança deficiente, a sociedade modifica as suas condutas com aquela família: ninguém envia cartões de parabéns, há choros, emotividades provincianas e culpabilidades hereditárias inconscientes que “dramatizam” ainda mais a situação.

Em outras palavras, “a problemática da deficiência reflete a maturidade humana e cultural de uma comunidade” (FONSECA,1995, p. 7), pois toda a marca ou estigma, segundo o autor, revela o conjunto de valores e de atitudes provenientes do meio cultural no qual o indivíduo se encontra.

Há implicitamente uma relatividade cultural, que está na base do julgamento que distingue entre “deficientes” e “não-deficientes”. Essa relatividade obscura, tênue, sutil e confusa, procura, de alguma forma, “afastar” ou “excluir” os “indesejáveis”, cuja presença “ofende”, “perturba” e “ameaça” a ordem social (FONSECA, 1995, p. 7).

Para Amiralian (1997b, p. 34), esta não aceitação da deficiência, sob o ponto de vista da psicologia, revela que o deficiente “mostra-nos concretamente a nossa debilidade e nos surpreende com a maciça negação de nossa onipotência”. A autora nos lembra também que a deficiência é intolerável, não só por fazer ressurgir insuportáveis angústias de castração, destruição e desmoronamento, mas também por lembrar do deficiente como um “sobrevivente que escapou de um cataclismo”, de uma catástrofe ocorrida que poderá acontecer a qualquer um.

Pode-se dizer então que as dificuldades enfrentadas pela família em seu processo adaptativo são constituídas por dificuldades internas e outras decorrentes de fatores psicossociais. É o que nos aponta Buscaglia (1993, p. 80) ao afirmar que “qualquer ocorrência sociopatológica dentro da sociedade mais ampla também exercerá seus efeitos sobre a família e todos os seus membros”.

Este autor ainda nos diz que qualquer pessoa do ponto de vista biológico pode ser capaz de gerar uma criança, porém, mesmo estando em condições biológicas adequadas, uma pessoa pode ter dificuldades em desempenhar seu papel de tutor, sendo o bebê deficiente ou não.

Buscaglia (1993, p. 93) observa também que o vocábulo pais [grifo nosso] tem um certo poder em nossa sociedade e que, a partir de funções específicas e expectativas relacionadas a este vocábulo, cria-se um conjunto de conceitos estereotipados que mais adiante servirá de estímulo a certas atitudes e emoções preconcebidas. Porém, “um pai ou mãe é, em primeiro lugar, uma pessoa” e por isso devemos considerar que “ter um filho é apenas uma parte do complicado papel desempenhado por um indivíduo”. Talvez este papel fique ainda mais confuso quando há o diagnóstico de uma deficiência, pois, de acordo com a idéia do autor, uma mulher nunca entra em um hospital para dar à luz a um bebê estando emocionalmente preparada para a eventualidade de uma criança deficiente.

Considerando essas definições, é fácil pensar que os pais que se encontram em dificuldades de elaboração, podem necessitar de alguém que seja capaz de interpretar suas reações e auxiliá-los em momentos difíceis, a cada etapa evolutiva dos processos de adaptação, conforme exposto anteriormente.

A partir da convivência com famílias as quais teve a oportunidade de acompanhar durante intervenções realizadas, Leonhardt (1992) observou alguns comportamentos dos pais os quais ela denominou de “atitudes negativas”. Tais atitudes podem indicar que estes pais passam por dificuldades ao lidar com seus sentimentos. Destas reações observadas, a autora destaca a superproteção, a negação, a rejeição encoberta e a rejeição manifesta, atitudes que podem revelar uma resolução problemática.

Sobre a superproteção, a autora nos diz que esta atitude se observa em pais que valorizam exclusivamente o déficit, esquecendo que a criança cega é, antes de tudo, uma criança. Pressionados emocionalmente por seus sentimentos, estes pais superprotegem a criança e realizam tudo aquilo que ela poderia fazer, privando-lhes das experiências normais que toda a criança deve realizar para ter um bom desenvolvimento.

Amiralian (1997a), ao discorrer sobre a superproteção como uma das reações dos pais ante a cegueira, corrobora com a idéia e aponta-nos o duplo prejuízo causado por esta atitude. Ela nos diz que os pais que adotam uma atitude de superproteção para com seus filhos, fazendo tudo por eles, além de estarem impedindo importantes experiências favorecedoras de seu desenvolvimento, estão também transmitindo-lhes um conceito de incapacidade e insuficiência de difícil superação (AMIRALIAN, 1997a, p. 68). A mensagem captada pela criança que é alvo de atitudes superprotetoras, é a de uma inaptidão para realizar de forma independente aquilo que é feito por ela, como por exemplo: vestir ou despir uma roupa, comer sem auxílio, procurar um objeto, etc., o que poderá causar uma acomodação da criança, como também dos pais, a esta situação. Por este motivo a autora afirma que o autoconceito de incapacidade, uma vez instalado, é algo muito penoso de ser desfeito. Porém, verificamos que nem toda a atitude superprotetora tem uma conotação negativa.

Leonhardt (1992), ao aprofundar sua avaliação sobre este comportamento, divide a superproteção em dois subgrupos: a superproteção negativa e a superproteção positiva. Dessa forma, a autora afirma que a superproteção negativa é “aquela que não permite a criança crescer” e que corta qualquer espontaneidade e interesse e, a superprotação positiva, “aquela que permite o desenvolvimento, potencializa a criança, acolhe e estimula o crescimento” (p. 29). Já os efeitos da superproteção negativa são importantes, visto que atrasa o desenvolvimento geral da criança tanto de ordem física e mental, quanto emocional e socialmente, reafirmando o que foi constatado no parágrafo anterior.

O sentimento de negação é observável em pais que se esforçam e fazem sacrifícios com o objetivo de mostrar a todo o mundo que a criança é “como todas as outras”. Segundo a autora, estes pais têm a necessidade de provar que a criança é perfeita, a fim de minimizar seu sentimento de culpa.

Desta forma, podem não levar em conta as necessidades e possibilidades da criança: não estimulam a exploração tátil da criança quando se está fora de casa, dirige-lhe uma linguagem com completas conotações de vidente, sem permitir ou animá-lo a expressar suas próprias sensações e percepções a fim de que seja ele mesmo (LEONHARDT, 1992, p. 29).

Sabemos o quanto é importante a exploração do ambiente para a orientação da criança cega, de acordo com o exposto na seção três, onde abordamos o desenvolvimento da criança deficiente visual. A autora afirma ainda que a atitude de negação, segundo o grau de perfeição que se pretenda da criança cega, pode chegar a “interferir em seu desenvolvimento harmônico, tanto físico como psíquico, deixando-lhe inseguro, insatisfeito e desanimado” (LEONHARDT, 1992, p. 29).

Brazelton (1994) apresenta uma idéia diferente sobre a negação, classificando-a como um mecanismo de defesa dos pais. O autor defende que esta negação ajuda os pais a não esmorecer e, ao mesmo tempo, reconhece que esta atitude necessita de certo “reajuste”, no sentido de ficarmos vigilantes a este comportamento.

Em casos de rejeição encoberta, Leonhardt (1992) explica que os pais rejeitam a criança cega, mas tentam compensar os sentimentos de culpa com uma aparente preocupação e demonstração de amor e sacrifício. Basicamente, os pais vivem a cegueira da criança como uma desgraça.

Expressões como: “cuidarei dele enquanto viver”, “agora que é pequeno, é difícil ensinar-lhe, não sei o que fazer, mas quando crescer, lhe ensinarei”, podem ser indicativo de uma rejeição dissimulada (LEONHARDT, 1992, p. 30).

Quanto à rejeição manifesta, Leonhardt (1992) afirma que são poucos os pais que mostram tal atitude, manifestada por hostilidade e negligência com a criança.

Sommers (apud LEONHARDT, 1992, p. 30) indica que estes pais “falam de seus filhos sem afeto, não se ocupam deles, ignoram seus êxitos e manifestam uma irritação evidente frente às responsabilidades associadas à educação da criança cega”. A maioria das mães deste grupo e, às vezes, os pais, são conscientes de seus sentimentos hostis e negativos, estabelecendo defesas para justificá-los.

Devido a isso, a criança cega poderá não desenvolver sentimentos de pertença e segurança, como resultado desta falta de afeto por ela percebida. Assim, suas respostas sociais poderão ser negativas e agressivas, isolando-se do mundo externo que lhe é pouco gratificante, podendo até mesmo desenvolver algumas características identificadas em crianças autistas como o isolamento, a falta de comunicação, entre outros.

Buscaglia (1993, p. 107), ao revelar sentimentos especiais de pais de deficientes, ressalta que estes apresentam um elevado nível de ansiedade e profundos sentimentos de culpa. Aponta ainda a vergonha, o medo e a incerteza como outros sentimentos comuns a esses pais.

Há ainda outros pais que fingirão alegria e bem-estar, que irão querer provar à família e aos amigos que são fortes e estão preparados para o que vier, que amam o filho, independente de sua incapacidade, e que a vida para eles seguirá em frente. Esses pais sufocarão a dor e o desespero (BUSCAGLIA, 1993, p. 109).

O autor afirma também que estes mecanismos de defesa, como o “fingir alegria e bem-estar”, são ativados sob grande tensão e que na maior parte dos casos, “representam um quebra-galho, não uma solução permanente”. Estes padrões de defesa “como tal, servirão a seu propósito, mas, em longo prazo cobrarão seu tributo”, pois “o controle das emoções consome muita energia” (BUSCAGLIA, 1993, p. 109). Dessa forma, o investimento emocional, utilizado como mecanismo de defesa, poderá levar os pais a um desgaste de sua relação com a criança.


1.3 Os pais vivenciam crises cíclicas

Leonhardt (1992) e sua equipe de trabalho, têm comprovado que, após o período de adaptação inicial, há o surgimento de novos momentos de inadaptação, denominados cíclicos, pois “o fato de ter uma criança cega ou com um grave déficit, determina um estresse crônico que se aguça nas seguintes situações”(Leonhardt 1992, p. 32-33):

  1. quando posteriormente se diagnostica na criança outras alterações graves, além da cegueira;

  2. no primeiro aniversário da criança;

  3. as festas familiares, associadas a intensas emoções em que se revivem sentimentos pessoais da própria história dos pais;

  4. nascimentos no âmbito familiar ou na vizinhança;

  5. cada nova situação que implica um crescimento, representa reviver a perda, uma nova dor: as primeiras saídas na vizinhança e o fato de ter que realizar um reconhecimento social da cegueira da criança;

  6. quando o pequeno começa a freqüentar a creche e os pais sentem ambivalência de sentimentos que causa a separação por um lado e por outro a alegria de poder fazer “como os outros”;

  7. se produzem crises muito dolorosas relacionadas com problemas nos olhos da criança;

  8. quando a criança começa a ficar consciente de sua diferença;

  9. com o crescimento, a partir dos 4 anos, a criança cega se sente forte e tem grandes desejos de correr e mover-se no espaço, como seus companheiros videntes.

Segundo Leonhardt (1992, p. 34), em todos estes momentos novas crises serão produzidas e, nestas ocasiões, sentimentos como a tristeza, a insônia, a falta de apetite e novos medos e inseguranças podem ser revividos com força. Estas situações são de difícil superação para o casal, ainda mais se as relações já eram difíceis e conflitivas antes da constatação da deficiência visual do bebê, o que poderá muitas vezes levar ao rompimento da relação.

Buscaglia (1993, p. 113) reforça a idéia de superação difícil afirmando que os sentimentos e as percepções freqüentemente não são previsíveis nem lógicos e, portanto, não é algo simples lidar. Os pais precisarão estudar seus sentimentos, medos, desejos e ansiedades. “Isto não significa um estudo do tipo “lições práticas e rápidas”, mas exigirá deles que trabalhem os sentimentos ao longo dos anos”.

Na visão de Brazelton (1994), a avaliação das reações dos pais tem uma conotação um pouco diferente. O autor afirma que reações e defesas angustiosas são naturais e que, pelo seu caráter adaptativo, devem ser aceitas. Declara também que as pessoas que cuidam dos pais e dos recém-nascidos, devem compreender que tais defesas são necessárias e que, desde que bem entendidas, não são forçosamente destrutivas. Um profissional que atua nesta área pode vê-las como parte integrante das tentativas de recuperação feita pelos pais, bem como do seu empenho em ajustar-se a um bebê que nada tem a ver com o bebê dos seus sonhos.

O importante, segundo Buscaglia (1993, p. 100), é que possamos compreender o fato óbvio de que “os pais dessas crianças são apenas humanos e, como tais, terão de enfrentar suas próprias necessidades especiais”. Precisarão também se conscientizar de seus sentimentos verdadeiros, perdendo os temores em relação a estes. Também terão de aceitar o desafio de seu crescimento emocional e intelectual e os riscos envolvidos nesse processo, assim como terão de estar dispostos a experimentar as transformações. O autor defende que uma criança deficiente pode ser uma oportunidade de crescimento para os pais e afirma que, em certo sentido, como indivíduo único, cada um de nós deve crescer de modo independente, a fim de crescer com os outros. Os pais, porém, só podem realizar isso se estiverem dispostos a aceitar o fato de que “são pessoas em primeiro lugar, pais em segundo e só então pais de uma criança deficiente” (BUSCAGLIA, 1993, p. 101).


2.  ASPECTOS RELACIONAIS NA FORMAÇÃO DA DÍADE MÃE-BEBÊ

Ainda que pais e mães tenham que enfrentar juntos a realidade que se lhes impõe, as atenções maiores estão voltadas às reações das mães, talvez pela importância que a psicologia e a psiquiatria atribuem à relação destas com seus bebês. É o que nos diz Cramer (1987, p. 26) sobre a importância que Spitz atribui à relação mãe-filho. Esta tem sido explorada de maneira importante, estando ainda no centro de uma das correntes mais importantes da psicologia e psiquiatria do bebê: a da interação.

Assim, segundo Buscaglia (1993), a maior parte das pesquisas válidas a respeito do período inicial de reação dos pais, diz respeito aos sentimentos e respostas da mãe.

Através de nossa pesquisa bibliográfica, identificamos que alguns autores desenvolvem suas teorias a respeito da relação mãe bebê, baseados em experimentos do campo da etologia (Ramo da biologia que estuda o comportamento dos animais. In: LAROUSSE CULTURAL, 1992, p. 476.) Spitz (1998); Schäppi (1987); Bowlby (1997).

Neste sentido, Schäppi (1987, p. 104), ao descrever seus estudos sobre o modelo etológico da relação mãe-bebê, afirma que o bebê humano “é um ser matrícola, particularmente dependente”. Segundo este autor, um ser matrícola é aquele que apresenta-se, no início de sua vida, totalmente dependente de sua relação com a mãe para a sua sobrevivência e desenvolvimento.

Ainda sobre a relação da mãe com seu bebê, Bronfenbrenner (1996, p. 94) afirma que o relacionamento mãe-criança “implica um padrão duradouro e generalizado de sentimentos e atos recíprocos”. Podemos dizer então que a manutenção deste relacionamento depende do grau de interação que se estabelece a partir das trocas afetivas que ocorrem entre a mãe e o bebê.

Luria (1985) valoriza esta relação, demonstrando sua importância para a formação dos processos mentais da criança. Ele indica que as primeiras palavras da mãe, quando mostra a seu filho distintos objetos e os nomeia, atribuindo-lhes uma palavra determinada, têm uma importante influência, não avaliável, porém, decisiva na formação de processos mentais do bebê.

Esta idéia de Luria (1985) é reforçada por Brazelton e Greenspan (2002, p. 23), ao defenderem a importância de relacionamentos sustentadores para o desenvolvimento de uma criança:

Estudos mais recentes revelaram que padrões familiares que prejudicam o cuidado sustentador podem levar a um comprometimento significativo nas capacidades cognitivas e emocionais. Interações sustentadoras, afetuosas, com bebês e crianças pequenas, por outro lado, ajudam o sistema nervoso central a crescer adequadamente.

Winnicott (1996) defende a relação da mãe com seu bebê para o processo de elaboração deste como sujeito, pois constata que esta elaboração está fundamentada na autopercepção, a partir do sentimento de unidade entre o bebê e sua mãe, ou seja, a díade primária, sendo que esta identificação primária é o que dará significação ao ser, considerando que “a condição de ser é o início de tudo” (WINNICOTT, 1996, p. 09).

Este autor afirma também que a mãe, ao relacionar-se com seu bebê, desempenha a importante função de “ego auxiliar”, o que possibilita a constituição e construção do próprio ego deste bebê.

A mãe, como ego auxiliar, funciona na hora de segurar seu bebê de modo satisfatório e facilita o desenvolvimento emocional de forma natural. Também é definido pela capacidade da mãe de identificar-se com aquele ser – o bebê -, no que diz respeito ao atendimento de suas necessidades básicas (WINNICOTT, 1996, p. 31).

Amiralian (1997b) complementa a idéia de Winnicott (1996), afirmando que essa identificação da mãe com seu bebê é o estado natural da mãe “devotada comum”, da mãe que está naturalmente interessada em seu bebê e por isso é capaz de vê-lo como ele é, “capaz de perceber suas necessidades e de refletir em seu rosto aquilo que ele realmente é” (AMIRALIAN, 1997b, p. 41). Esta capacidade da mãe em perceber a real situação de seu bebê é um indicativo da disposição materna em aceitá-lo, independente de suas condições.

Essa identificação e interação da mãe com o seu bebê, sofrem importantes alterações em casos de bebês deficientes da visão. É o que afirma Brazelton (apud CRAMER, 1987) em seus estudos sobre a interação de uma mãe com seu filho cego. Cramer (1987, p. 46), ao avaliar o resultado destes estudos, constatou a necessidade de um trabalho particular de educação da mãe, pois a interação estará “fundamentalmente modificada em seus mínimos detalhes”. O autor cita ainda as pesquisas de Fraiberg sobre as crianças cegas de nascença. Tais pesquisas demonstram que não somente a interação será profundamente modificada por esta deficiência congênita, mas igualmente toda a organização do ego e a organização libidinal.

Ao demonstrar as reações das mães frente ao seu bebê deficiente visual, Leonhardt (1992) afirma que muitas expressam uma sensação de fracasso do seu papel materno e seu desejo de renunciar a maternidade. Podem inclusive chegar a desinteressar-se completamente da criança que percebem como uma parte delas mesmas que precisa ser negada. Dessa forma, uma mãe que, devido a sua depressão tem um baixo grau de resposta às mensagens que seu filho lhe envia, pode permanecer fechada em si mesma e insensível as necessidades de amor e relação que apresenta a criança, sem responder nem reagir, privando-lhe assim de uma mãe emocionalmente viva e capaz de corresponder-lhe, defende a autora. Esta atitude materna, por sua vez, poderá desmotivar o bebê em suas tentativas de comunicação com a mãe, possibilitando o resfriamento das relações e suas conseqüências nocivas para o desenvolvimento da criança.

Esta “privação da mãe” a qual Leonhardt (1992) refere-se foi alvo de estudos de Bowlby (2001). O autor considera uma situação de privação aquela na qual a criança não encontra uma relação satisfatória com sua mãe.

“Assim, uma criança sofre privação quando, vivendo em sua casa, a mãe (ou mãe substituta permanente) é incapaz de proporcionar-lhe os cuidados amorosos de que as crianças pequenas precisam” (BOWLBY, 2001 p. 04).

Os efeitos desta privação correspondem a prejuízos na saúde mental desta criança. Bowlby (2001), em seus estudos, relaciona esta privação como sendo uma das causas da doença mental infantil. Leonhardt (1992) afirma que esta atitude da mãe pode conduzir a criança a uma separação de seu contato e, em troca, a buscar satisfação em seu próprio corpo ou em objetos inanimados, condutas que, sem uma intervenção rápida e oportuna, podem evoluir para um transtorno grave de personalidade.

Contudo, é preciso ainda considerar que a mãe de uma criança deficiente muitas vezes se vê sobrecarregada em suas funções maternas, o que também pode influenciar na relação mãe-bebê. É o que afirma Buscaglia (1993, p. 132):

A mulher, vendo-se sozinha e com maior carga de responsabilidade na criação do bebê, quase sempre se refugia em uma relação forçada, de dependência mútua com a criança deficiente o que leva com freqüência a uma inconsciente e perigosa limitação ainda maior da criança.

Esta relação de dependência entre a mãe e seu bebê deficiente, é evidenciada por Leonhardt (1992) como algo patológico, onde a mãe satisfaz uma necessidade pessoal na medida em que comprova seu relevante papel. Neste sentido, a autora relata que o fato da mãe acreditar que a criança necessita de sua proteção, a faz prolongar seu status materno indefinidamente.

A partir destas constatações, acreditamos que tanto a mãe quanto a criança influenciam-se mutuamente no que diz respeito à formação da personalidade. É o que nos aponta Bowlby (2001, p. 69), ao afirmar que “os cuidados maternos com uma criança não se prestam a um rodízio; trata-se de uma relação humana viva, que altera tanto a personalidade da mãe quanto a do filho”.

A personalidade da mãe, sua organização interna, suas primeiras relações com o bebê cego, põem em marcha mecanismos profundos, medos encobertos; o fato de conhecer estes mecanismos poderá ajudar no processo terapêutico, assim como criar, refazer, ampliar e melhorar as relações com o bebê (LEONHARDT, 1992, p. 30).

Diante de tudo o que foi revelado nesta seção, é importante considerar a contribuição de Buscaglia (1993), ao defender a idéia de que seja necessário o auxílio os pais, no intuito de aceitarem suas próprias limitações, reconhecendo-se como seres humanos em desenvolvimento:

É imperativo que vejamos e ajudemos os pais de deficientes a se verem primeiramente como pessoas, iguais a todas as outras, com as mesmas forças, limitações e variações mentais [...]. Eles não precisam de início aceitar coisa alguma, exceto o desafio de assumir a responsabilidade de crescer, realizar seus potenciais, aprender e tornar-se um ser humano melhor, ao lado de suas crianças especiais (BUSCAGLIA, 1993, p. 99).

A partir do entendimento das reações dos pais frente à deficiência e dos aspectos que influenciam a relação da mãe com seu bebê, acreditamos ser possível proporcionar aos pais o auxílio profissional do qual eles tanto necessitam, conforme defende o autor acima citado.



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excerto da:
Dissertação de Mestrado
PEDAGOGIA DO SIGNIFICADO: CONTRIBUIÇÕES À INTERVENÇÃO PRECOCE EM BEBÊS COM DEFICIÊNCIA VISUAL
PATRÍCIA AMÉLIA ROVEDA
Porto Alegre, 2007

 

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1.Maio.2013
publicado por MJA