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 Sobre a Deficiência Visual


O Velho Cego

-conto Krahó-

versão de Vilma Chiara

Old Blindy Arapahoe - fotografia de J.V. Dedrick, 1909
Old Blindy Arapahoe - J. V. Dedrick, foto de 1909


Um índio tem três filho. A mulher dêle morreu. A mulher do outro falou que quer criá os menino dele. Falou com o véio e ele deu os dois, um home e uma mocinha. E vai criando os dois menino. Mas muié dele tá com preguiça. Então levou os menino para deixá no mato. E levaram pra tirá abêia com combuca comprida e machado. Só pra enganar!

Andaram muito. Chegaram no meio do mato e pendurou a combuca. Aí andaram mais uma légua e deixou os menino esperando.

— Depois eu venho buscá! — Mas deixou os menino.

Os menino chamaram e combuca respondeu: Uhh!

— Ói, papai tá gritando! — Assustaram, gritou outra vez e combuca respondeu.

Andaram, andaram e acharam combuca.

— E agora? Nois se perdeu!

E foram andando nesse rumo pra achar morador. Caminharam até achar a casa de um véio cego que tinha muito mendoim, sem criação, num tinha galinha nem nada. Mas o véio tava cuidando do mendoim com vara, para espantar passarinho.

Os menino foram ver e viram que era só aquele véio cego. Foram tirando mendoim.

O menino tirava e levava pra irmà dele. E o véio escuitava que remexia, e passava a vara.

Mas o menino era sabido, ia desviando e corria. Aí a irmã queria também buscá o mendoim, mas não sabia bem. E o véio bateu com a vara no braço dela. Gritou logo.

— Quem tá aí panhando meu mendoim?

O menino falou:

— Não adianta mais se escondê. Já sabe! Somo nóis! — E disse o nome dêle.

Aí véio disse:

— Não tem nada não, pode comê. — Deu comida pra êles. Botou num quarto fechado e só dava comida.

Passou dois mês e quis espiar como eles tava. Quis vêr o dedo no burado da parede e achou que tava grandinho.

Passou quatro mêis, aí o menino saiu pelo telhado e matou dois lagartixa do rabo mais grosso. Aí o véio foi pedir o dedo e o menino mostrou o rabo de lagartixa e viu que tava grande.

Foi dando de comê. E o menino saiu e matou dois calango e mostrava os rabo pro véio. E aí êle achou que êles tava já bem grande e botou pra fora, e mandou êles rachar muito pau e fazer fornage pra tacho e mandou enchê água.

Aí deus Pápam chegou e perguntou o que tava fazendo. O menino explicou que tava fazendo fogueira grande pra êles brincar, que o véio mandou.

Deus falou, que êle tava enganado, êle ia ensinar:

— Quando o véio mandá vocês dançá em volta do fogo, vocês diz que não sabe, pra êle ensiná primeiro.

De madrugada botaram fogo em baixo do tacho. Deixou ferver bem e avisaram o cego.

— Tá bom.

— Tá? Então vão brincar aí pertinho!

— Nós não sabe, brinca você primeiro!

— Tá bom, vou mostrá.

Então os meino empurraram o cego pro tacho. Êle gritou, pegou na beira do tacho pra saí. O menino pegou num pau e bateu duro nos dedo dêle. O véio caiu dentro da água quente e morreu. Cozinharam muito até que secou água. Pegou fogo no velho, virou cinza.

Aí, deus disse pra fazer dois bolo bem igualzinho da cinza e jogá o resto em cima da casa.

Esperaram que a cinza esfriou. Fizeram os bolos e puzeram o resto em cima da casa. Da cinza do cego saiu galo cantando, muita galinha, pintinho.

Passou uma hora, saiu cachorro balançando rabo, fazendo baruio. A moça falou pra ver o cachorro. Êle saiu, viu dois cachorro grande, muito bonito, um macho, outro fêmea.

Êle foi caçar, falou pra não mexer com os cachorros.

A irmã botou prego nas oreias dos cachorros pra êles não escutar nadinha.

O menino foi andando. Viu Jacu. Atirou! Viu outro. Atirou, e os dois jacu ficaram prêso lá em cima do pau. Êle subiu. Tá chegando lá em cima. Aí veio um bicho feio pra comê. Falou:

— Desce aqui!

— Num desço não!

— Desce, sinão eu derrubo o pau!

— Pode derrubá!

O bicho mordeu o pau e tirou um bocadão:

— Agora desce!

O rapaz disse: — Espera, eu grito, depois eu desço.

O bicho esperou. Gritou. Gritou muito. O cachorro não escutava, que tinha os dois pregos nas oreia. Gritou, gritou muito mesmo, e o cachorro sempre escutou um bocadinho.

Aí veiu correndo. Era cachorro fêmea que veiu. Chegou, brigou muito com bicho feio, até que ficou cansado.

Chegou o macho, e derrubou logo e mataram o bicho. O rapaz desceu e foi embora.

Brigou muito com irmã. Chorou muito. Cozinharam os jacu. Comeram e dormiram. Aí ficaram imaginando pra mudar de lugar, para escolher lugar melhó pra morá. E então foram andando procurando, andando. Mataram frango. Fizeram frito. Pegaram os pinto pra levar pra criar.

Chegaram numa tapera de pousada. Foi caçar e achou jacu otra veis. Atirou. Mas o jacu não caiu, não. Ficou lá em cima no pau. Tinha outro jacu. Atirou outro, e também não caiu. Aí êle subiu no pau e foi buscar. Quando tava lá em cima, veiu outro bicho feio, grande, de cabeça grande. O cachorro fêmea avançou. Logo desceu. Levou o jacu pra irmã cozinhá. Tinha lá nessa pousada uma barroca funda, buracão, pra descê com um cipó até no fundo. Aí que acabaram de comê, rapais foi descê pra buscá água.

Chegaram dois rapais. Viram êsse moça bonita. Conversou pra ir embora mais êles.

E moça foi mesmo. Não se importou com irmão dela lá em baixo da barroca. Aí os rapais cortaram corda pra rapais não subir.

Êle ficou lá em baixo, passou, passou muitos dias, e êle morreu de frio!

Aí chegaram uns home e escutaram os charro e pensaram:

— Aí tem cachorro, cadê o dono dêle? — Vai vê, tá arranchando por aí!

— Vamos bebê água!

Chegaram na barroca, e tava lá o cachorro oiando pra baixo. Aí êles viram o dono lá em baixo.

— Como foi? Vai vê, êle morreu de frio!

Cortaram pau comprido. Fizeram escada pra buscar o rapais. Fizeram cama de paia e subiram o rapais. Cachorro ficaram tudo alegre. O home deixaram lá mesmo e foram embora. Os cachorro começaram a lamber o rapais tudinho. Cachorro começa lambendo cabeça, o macho. E fêmea lambendo o pé, até o embigo. Lamberam tudinho. Daí viraram de costa e começaram outra vez lambendo. Sempre lambendo. O dono abriu os zóio e viu os dois cachorro. Tava procurando irmã.

— Como foi? Irmã sumiu, deixou eu lá na barroca com frio.

Aí ficou muito zangado. Comeram do frito que tava escondido. E foi embora só procurando irmã. Procurando, preguntando prôs moradô se tinha visto a môça com dois rapais.

— Vi, sim, foram nesta estrada mesmo.

Foi andando, até chegar noutro morador. Êsse ensinou casa dela, uma fazenda grande. Aí chegou lá, e tava irmã. Irmã ficou contente, mas irmão tava zangado. Pegou chicote e surrou muito, muito. Deixou lá no chão e foi embora. Andou muito. Chegou numa cidade grande que tinha um bicho que comia gente na rua. Povo todo tá oiando êsse rapais com dois cachorro tão grande, si não queria matá o bicho. Aí rapais encontrou o homem rico da cidade, que queria pagar pra êle matá o bicho ruim. Acertaram o pagamento, muito, muito dinheiro. Aí rapais acertou com êle e perguntou que hora é que o bicho saia.

— De noite!

Chegou de noite. Levaram êle lá na casa que o bicho saia. E êle ficou lá de fronte na outra casa, só esperando, esperando, tudo quietinho. Aí, coisa de oito hora saiu o bicho feio, de boca grande. O rapais mandou o cachorro fêmea. Aí brigou com o bicho até fica cansado. Aí êle botou o outro cachorro grande, o macho pra brigá. Êle chegou e foi pegando logo no pescoço do bicho que tava cansado. Brigou, brigou! Aí rapais saiu com arma e atirou. Matou o bicho feio.

O povo saiu tudinho na rua. E espiaram o bicho feio e os cachorro. E o rapais ganhou todo aquêle dinheirão, ficou rico agora!

FIM

 


O Velho Cego:
Uma reflexão krahó sobre o contato interétnico

Luís Roberto Cardoso de Oliveira
[...] A situação do velho cego, mesmo que por razões diversas, tem algumas semelhanças com a das crianças. Como estes, a sua participação nas atividades econômicas do grupo é irrelevante. Além disto, os velhos são afastados das decisões "tanto no plano da vida coletiva como no plano da vida doméstica" e, assim como as crianças passam a maior parte do tempo brincando, os velhos passam a maior parte do dia dormindo. De resto, a liberdade que as crianças têm de desrespeitar as normas do grupo é readquirida pelos velhos que, a partir de uma certa idade, ficam livres de uma série de tabus a que tinham que obedecer durante a juventude. Pode-se dizer que ao mesmo tempo que os meninos estão num processo de integração na sociedade (as meninas, assim como as mulheres estão sempre numa situação liminar entre a natureza e a sociedade), os velhos caminham em direção inversa.
Por outro lado, a cegueira do velho, juntamente com o fato de morar sozinho no meio do mato, acentua a ambiguidade de nosso personagem. Interpretando a cegueira como uma doença verificamos que o velho cego reune os dois requisitos para que um indivíduo se torne Xamã [curador ou feiticeiro, de acordo com o caráter de suas ações]. De acordo com Melatti todos os Xamãs Krahó receberam seus poderes (normalmente de um animal ou vegetal) quando estavam doentes e se encontravam sozinhos (afastados do grupo), reproduzindo a experiência vivida por Tirkre, um dos heróis da mitologia Krahó. (ver Melatti, 1970 e 1975).
Além disto a cegueira durante a velhice pode ser atribuida à quebra de um tabú alimentar durante a juventude, o que por si só já colocaria o "velho cego" numa situação liminar. A propósito, na cultura Krahó, existem alguns rituais que permitem ao indivíduo que se encontra numa situação liminar, por ter infringido alguma norma do grupo, reitegrar-se na sociedade; como exemplo, poderíamos citar o rito de reintegração do assassino Ramkókuhem. Neste sentido é possível que o velho não tenha realizado nenhum destes ritos (se é que neste caso existe ritual de reintegração previsto pela sociedade) optando pela permanência na liminaridade.

De qualquer forma, o que gostaríamos de acentuar é a situação duplamente liminar (ambígua) em que se encontram o velho e o casal de irmãos (os orfãos) quando se interrelacionam.
Ao longo de nossa análise tentamos demonstrar que o mito do Velho Cego foi elaborado a partir do conhecimento da existência do homem branco e portanto posterior ao Mito de Auké que explica o aparecimento deste personagem no cenário indígena. Vimos como o problema que norteia a primeira parte do mito, a oposição meninos (casal de irmãos)/sociedade, serve para marcar a perda da autonomia indígena (o problema é resolvido fora do âmbito da sociedade tribal, e não seria errado dizer que a solução é dada pelos brancos) e a perda do controle sobre a ordem tribal, introduzindo a problemática central do mito que poderíamos denominar como; a busca de uma solução, ou, a procura de uma alternativa para a sobrevivência da sociedade Krahó. Neste sentido, em relação ao mito de Auké, o conto do Velho Cego seria um segundo momento da reflexão indígena sobre a situação do contato interétnico.
Por outro lado, assinalamos também que a alternativa apresentada pelo mito, ainda que ao nível individual (a integração do rapaz no mundo dos brancos), não passa de uma solução aparente para a situação crítica em que a sociedade se encontra, pois, como vimos, o mito expressa exatamente o oposto da solução alternativa que apontamos acima. Isto é, constata a impossibilidade de integração à sociedade nacional paralelamente à proximidade do fim (da morte) da sociedade indígena. Aliás parafraseando Lévi-Strauss, isto "acontecerá sempre que o mito procure exprimir uma verdade negativa". Em outras palavras o mito aponta para uma situação mas a sociedade se recusa a acreditar nela.  in Monografias.com

 

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O Velho Cego
conto Krahó
versão publicada por Vilma Chiara, 1961
Fonte do texto e análise: Monografias.com
 

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2.Out.2012
Publicado por MJA