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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


A Cegueira na Estrada para Damasco

Carmen Seganfredo & Ademilson Franchini

Conversão de Paulo na estrada de Damasco - Caravaggio, 1601
Conversão de Paulo na estrada de Damasco - Caravaggio, 1601


Saulo de Tarso era o nome do homem que acompanhara, impassível, a execução do primeiro mártir da cristandade. Seu nome se celebrizara rapidamente entre os judeus como aquele que “devastava a igreja, agarrando homens e mulheres e os pondo na prisão”.

Então, certo, dia, Saulo prontificou-se a ir pessoalmente a Damasco continuar por lá a sua obra nefasta de perseguição aos cristãos. Estando, porém, quase às portas da cidade, foi ofuscado por uma luz repentina que descia do céu.

Caindo da sua montaria, Saulo escutou uma voz a lhe dizer, nitidamente:

– Saulo, Saulo, por que me persegues?

Ainda estendido sobre o pó da estrada, ele indagou aos céus:

– Quem é você, Senhor?

Aqueles que acompanhavam Saulo permaneceram mudos de espanto, pois podendo escutar a voz, não podiam saber de onde ela vinha.

Saulo, que até então estivera cego para a mensagem de Cristo, conseguiu reerguer-se, mas somente para descobrir que agora que enxergava Cristo tornara-se cego para tudo o mais (numa belíssima alegoria acerca da fé).

Levado pelos demais, Saulo entrou em Damasco sem enxergar um palmo adiante do nariz, e ali permaneceu, durante três dias sem ver, comer ou beber.

Enquanto isso, na mesma cidade de Damasco, havia um certo Ananias (que, naturalmente, não tem nada a ver com o outro fulminado por Deus). Esse homem, sendo cristão, foi avisado por uma visão celestial de que deveria procurar Saulo numa determinada casa da rua Principal. O notável é que Saulo, tomado pela cegueira, teve também uma visão, na qual esse homem lhe entraria pela casa para impor as mãos sobre si, curando-o da cegueira.

Ananias, a princípio, refugou a missão.

– Mas, Senhor, esse homem é inimigo contumaz de seus discípulos! – disse ele.

Mas a voz insistiu, dizendo que Saulo fora escolhido para ser, agora, o instrumento para divulgar o seu nome.

No mesmo dia, Ananias fez o que o Senhor lhe ordenara e adentrou a casa onde Saulo estava, realizando a visão que ele tivera. Assim que o visitante colocou suas mãos sobre os olhos do enfermo, caíram dos olhos deste as escamas que o impediam de ver.

Saulo – que a partir de agora, para evitar-se confusões, será chamado sempre de Paulo, seu nome romano –, uma vez curado, foi batizado e começou a pregar as idéias de Cristo, para grande espanto dos judeus.

– Não era este o homem que massacrava os cristãos? – diziam todos, apalermados.

Logo, de perseguidor, Paulo passou a perseguido, de sorte que muito em breve teve de fugir de Damasco escondido dentro de um cesto, que seus amigos baixaram do alto dos muros da cidade.

 

*

Paulo, decerto, bem que mereceria o título de padroeiro da navegação, pois poucos homens se entregaram com tanto gosto a navegar como ele.

Animado pela sua nova fé, o “décimo terceiro” apóstolo entregou-se à pregação com extraordinário ímpeto.

A verdade, porém, é que Paulo nunca foi apóstolo efetivo, mas nem por isso deixou de ser mais importante na história da Igreja do que quaisquer dos outros – sendo superado, talvez, somente por Pedro e João.

Tal como Cristo e Pedro, Paulo curou e ressuscitou, enchendo de espanto todas as terras por onde passou. Em Listra, estando junto com outro pregador chamado Barnabé, curou um mutilado de nascença, o que lhe valeu sérias complicações, já que o povo tomou-o por um “deus”. Nem o fato de ter explicado àqueles pagãos incultos que não se tratava disso pôde evitar que a coisa terminasse muito mal, pois que acabou sendo apedrejado por alguns judeus que moravam na cidade e levado como morto até a saída da cidade.

Estranha-se apenas que, logo em seguida, ao ser rodeado pelos discípulos, Paulo tenha se levantado e entrado na cidade, partindo já no dia seguinte para outro destino.

Depois de retornar a Antioquia, andou por outros lugares até chegar novamente a Jerusalém, para o famoso concílio que ali se realizou, sempre cercado por polêmicas ruidosas que o opunham não só aos judeus como também aos cristãos judaizantes, que se recusavam a abandonar as práticas da lei judaica, como a circuncisão.

Ao encerrar-se o concílio, Paulo foi chamado por Deus a pregar na Macedônia e, depois, em Roma, onde outra grande tribulação o esperava. E tudo deu-se assim por causa de uma profetisa do lugar – na verdade, uma modesta criada, que levava o lucro do seu negócio aos seus patrões. Ora, essa mulher, tão logo pôs os olhos sobre Paulo e seu acompanhante, decidiu persegui-los por toda a parte, exclamando sempre a mesma coisa:

– Estes homens são servos do Deus Altíssimo e nos pregam o caminho da salvação!

Por algum motivo que os comentadores não sabem precisar (sugerem alguns que ela estivesse a referir-se ao paganíssimo Zeus), o fato é que Paulo acabou irritando-se com esse pregão piedoso e, depois de voltar-se para a criada profetisa, lhe disse:

– Em nome de Jesus Cristo, eu te ordeno que saias dela!

Imediatamente o espírito que a fazia dizer essas coisas abandonou-a, deixando-a impotente para realizar as lucrativas previsões que faziam a alegria de seus patrões. Por causa disso, estes inventaram uma acusação qualquer contra Paulo, acusando-o de subversão.

Como resultado, Paulo terminou açoitado e preso com seu companheiro, que se chamava Silas. Mas o Senhor, decidido a repetir as fugas de Pedro, fez com que também Paulo fosse protagonista de uma, igualmente miraculosa. (Desta feita, um terremoto sacudiu os alicerces da prisão, fazendo com que as correntes se soltassem e as portas se abrissem.)

Antes de escapar, Paulo ainda teve tempo de abençoar um dos guardas, que foi lançar-se aos seus pés.


*

Um episódio sumamente curioso, entre tantos outros que cercam a vida desse verdadeiro prodígio de energia, ocorreu durante uma de suas tantas estadias por terras gregas.

À véspera de sua partida do lugar onde estava, Paulo decidira fazer uma extensa prédica aos discípulos, e pôs-se a falar incansavelmente até a meia-noite num local tão cheio de espectadores que um deles, chamado Êutico, teve de sentar-se no parapeito de uma janela.

Era, pois, meia-noite, quando esse desastrado jovem, visivelmente narcotizado pela pregação de Paulo, acabou por perder o equilíbrio e despencar do terceiro andar no chão do prédio, onde perdeu a vida.

Paulo, ao saber do desastre, desceu correndo as escadas e foi ver o que acontecera ao pobre jovem.

– Está morto! Está morto! – bradavam os amigos, de dor.

Paulo, num gesto rápido, lançou-se, então, sobre o corpo e, depois de estreitá-lo fortemente em seus braços, acalmou o desespero dos demais:

– Não se assustem, pois ainda está vivo! – disse ele.

Depois de ressuscitar o jovem, Paulo subiu novamente até o terceiro andar, onde retomou sua pregação até a madrugada.


*

Depois de várias outras viagens e peripécias menores, Paulo foi parar em Jerusalém, onde acabou aprisionado pelos judeus. Depois de fazer uma vibrante defesa de sua fé, acabou sendo remetido a Roma, na condição de prisioneiro, o que acabou sendo a melhor solução, já que um grupo de judeus da cidade havia jurado não comer nem beber nada sem antes acabar com a sua vida.

Durante a viagem marítima, porém, desencadeou-se fortíssimo temporal, que durou vários dias. Perseguidos pelo temido vento de furacão chamado Aquilão, os ocupantes do navio tiveram motivos de sobra para lamentar o fato de terem ignorado as advertências que Paulo fizera antes que as âncoras tivessem sido erguidas.

Depois de alijarem quase toda a carga, o navio foi encalhar nuns baixios, ficando a proa encravada entre os rochedos. Os soldados já haviam decidido matar os prisioneiros – dentre os quais Paulo – quando o oficial encarregado os proibiu, fazendo com que todos fossem levados a terra, a nado ou agarrados em pranchas e peças do navio.

Todos, afinal, chegaram são e salvos, graças, em grande parte, ao bom senso que Paulo usou para acalmar a tripulação durante todo o período da tempestade, exortando-os a confiar no poder do Senhor, que, por meio de um anjo, lhe dissera que Deus decidira poupar a vida de todos, já que era preciso que Paulo chegasse a Roma para levar a cabo a sua obra de evangelização.

Já a salvo, Paulo deu outra prova de que o Senhor andava nos seus passos. Estando na ilha de Malta, foi picado por uma víbora, arrancando dos nativos este comentário:

– Certamente este prisioneiro é um assassino, já que a justiça divina não se cansa de persegui-lo!

Porém, Paulo lançou sobre a fogueira a víbora que se prendera à sua mão? e continuou impassível, sem sofrer qualquer dano em sua saúde, o que arrancou dos mesmos nativos este outro comentário, ligeiramente diferente:

– Certamente este homem é um deus, já que a justiça divina não se cansa de protegê-lo!

O Livro dos Atos dos Apóstolos conclui dizendo que Paulo viveu dois anos inteiros em Roma, numa casa alugada, vigiado por um soldado. Ali proclamou o Reino de Deus, ensinando tudo quanto dizia respeito a Jesus “com toda a liberdade e sem impedimento”.

Não há nesse livro, portanto, qualquer referência ao martírio de Paulo, nem tampouco ao de Pedro, ficando esses relatos a cargo de outras fontes da tradição cristã.

FIM


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capa de 'As 100 melhores histórias da Bíblia'


'PAULO, O “DÉCIMO TERCEIRO” APÓSTOLO' + 'AS VIAGENS DE PAULO'
in 'As 100 melhores histórias da Bíblia'
autores: Carmen Seganfredo & Ademilson Franchini
Edição: Porto Alegre | L&PM, 2011.

 

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8.Abr.2019
Maria José Alegre