Ana
Maria Medeiros
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Vienna - foto 1878-1898
A pessoa que perde a visão quando jovem ou
adulta, se, por um lado, "já viu o que havia para ver no mundo", como diz o
povo, por outro, tem de defrontar-se com o trauma psicológico da perda. Pelos
casos que conhecemos, o processo de superação depende muito da atitude pessoal,
da situação sócio económica, cultural e familiar, mas aconselha-se que essas
pessoas sejam alvo de acompanhamento psicológico, bem como as suas famílias.
É natural que a pessoa sinta que o seu mundo ruiu ao cegar. As bases em que
ele se sustentava deixarão de existir. Realizar tarefas quotidianas em casa,
andar na rua, dirigir-se para a escola ou emprego, entre outras, deixará de ser
possível antes de se ter iniciado um processo de reabilitação.
As famílias, que tantas vezes se sentem indefesas perante a adversidade,
respondem de forma desajustada, compreensivelmente. As duas respostas familiares
mais comuns são o abandono ou a super protecção. A ajuda deverá vir tanto dos
serviços de saúde, como da escola, no caso de crianças e jovens, implementando
programas sempre no sentido de considerar que o indivíduo é um todo e que a sua
reeducação objectivamente procurará que os seus níveis de participação na vida
familiar e social sejam, quanto possível, repostos.
Os profissionais de saúde e os professores não devem esquecer que as perdas
que a cegueira traz são muitas. Segundo Carrol (1968), podem ser sistematizadas
da seguinte forma:
-
perdas emocionais,
-
perdas das competências básicas,
-
perdas na
consideração pessoal,
-
perdas relacionadas à ocupação profissional,
-
perdas na
comunicação e
-
perdas que implicam a personalidade como um todo.
As perdas emocionais caracterizam-se pela fragmentação da auto-imagem e perda
da auto-estima. O indivíduo, que tinha a sua vida centrada no sentido da visão,
deixa de poder sentir-se como uma pessoa completa, considerando-se, pela
diferença física, alguém inferior, alguém que não é o que era e que surge
diferente dos outros que o rodeiam. O peso do que lhe sucedeu assume tais
proporções que pode ficar psicologicamente instável. Tarefas simples do
quotidiano, como olhar-se ao espelho, escolher uma peça de roupa ou cumprimentar
um amigo à distância, tornam-se impossíveis e geram situações de afastamento, de
necessidade de ajuda e de angústia.
Se cada um tem uma auto-imagem, independentemente de ser real ou não, ao
cegar o indivíduo a perde. Sente que é outra pessoa e que dificilmente voltará a
ser alguém que interesse aos outros.
A sua relação com os outros e com a cegueira dependerá também da forma como
via os cegos enquanto conservava a sua visão. Se a sua percepção dos cegos
valorizava factores como a mendicidade, a pobreza e a dependência, naturalmente
que não acreditará com a mesma convicção na sua reabilitação. Se, por outro
lado, associava cegos a artistas, a pessoas que enfrentavam a vida
corajosamente, a sua posição face ao futuro, ao cegar, não será desesperada.
A pessoa que cega repentinamente perde as
competências básicas. Não se saberá
vestir, não será capaz de se alimentar, de se locomover, de se desviar de
obstáculos, de se apresentar de forma socialmente aceitável... Terá imensas
dificuldades em orientar-se, em fazer opções em termos espaciais, como escolher
pontos de referência. A cegueira repentina como que imobiliza o indivíduo que a
experimenta. Sentidos como o olfacto e paladar, antes tão negligenciados,
tornam-se lentamente muitíssimo importantes, o mesmo sucedendo com a audição e
com o tacto. Enquanto o sentido da visão não for substituído pelos outros, o cego
sente-se como que perdido no mundo e sujeito a um constante sentimento de
pânico, temendo sempre pela sua segurança, seja no meio familiar ou no espaço
exterior.
A não realização de competências básicas, por um lado, levam-no a
considerar-se como alguém agora
incapaz de ser reconhecido pelo que fazia quando
via; por outro, tornou-se alguém completamente dependente de familiares ou de
amigos, o que veio romper antigos equilíbrios que norteavam a sua vida.
Incapaz de realizar as tarefas comuns do dia-a-dia, tornando-se dependente, o
cego perde a sua liberdade, a sua intimidade, a sua posição no seio familiar e
muito daquilo que o unia aos outros. O mesmo se pode dizer que sucede com as
competências relacionadas com a
ocupação profissional. Não podendo trabalhar, de
repente vê-se sem mais um traço da sua identidade, que é a sua profissão. Perde
também os colegas de trabalho, as vivências que uma profissão traz ao dia-a-dia
de quem trabalha, a interrupção de uma carreira, a degradação da sua situação económica e a esperança em relação ao futuro... Se ainda é estudante, o seu
desempenho académico fica em risco e muitas vezes o abandono da escola ou
universidade é a resposta ao que sente.
As perdas relacionadas com a
comunicação são relevantíssimas. A perda de
visão impedirá a leitura, antes tão natural, bem como a observação de obras de
arte, a assistência de espectáculos, seja presencialmente seja através da
televisão. Se se trata de alguém que gostava de ler, de ver exposições de
pintura e de assistir a espectáculos de cinema ou teatro, sentirá que a sua perda
é enorme.
Faltar-lhe-á um conjunto de pontos de identificação com o mundo, pontos que
antes encontrava em livros, jornais, em publicações relacionadas com a sua área
profissional... Além disso, não podendo consultar os seus extractos bancários,
ler as facturas da água, electricidade e telefone..., verifica que a sua vida
privada é vasculhada por terceiros, o que lhe causará angústia.
Apesar de existirem respostas de tipo tecnológico para muitos dos problemas
aqui apresentados, não podemos esquecer que
a cegueira afeta o indivíduo como um
todo e que a resposta a esta situação varia com os indivíduos. Há os que reagem
e superam, reorganizando a sua vida, mas há muitos outros que se vitimizam,
assumindo-se como "coitadinhos", como merecedores de pena, nada preocupados em
crescer como pessoas.
Por considerarmos que a cegueira repentina afecta a vida completa de uma
pessoa, concordamos com Bruno e Mota (2001, p. 144) quando escrevem que: "...é ingénuo considerar que a cegueira é uma deficiência que atinge somente a visão.
Ela pode abalar seriamente a estrutura psíquica de quem venha a adquiri-la".
Conhecedoras dos contornos do problema da perda de visão, as pessoas que
rodeiam o cego recente devem reagir o mais naturalmente possível. Não faltar com
a ajuda quando necessária, mas evitar a comiseração e a piedade que melindram
quem é alvo delas.
Não é, contudo, possível esquecer as vicissitudes da nova condição. As
pessoas devem compreender que aquele que cegou se torna uma pessoa diferente e
que perdeu a sua privacidade. É agora alguém marcado, alguém que perdeu o seu
antigo anonimato. Por isso, pede-se a quem o rodeia que nem o subestime, nem o
valorize sem razão.
Muitos cegos recentes, ao verem que ganham notoriedade, tentam dar o passo
para a frente sem resolver os problemas básicos da vida. Tornam-se extremamente
dependentes, embora pareçam apresentar uma autonomia e uma participação social
merecedoras de louvor. Ao contrário desta pessoa, é comum também surgir o cego
recente que, como perdeu o sentido que o ligava ao mundo, como não pode apreciar
a natureza, o que é belo, isola-se e corta os laços com o meio exterior.
Os técnicos de reabilitação devem estar atentos a estas situações e perceber
o que está em jogo para buscarem o equilíbrio, trabalhando em conjunto com a
família e, se possível, com a comunidade.
O mesmo se espera da escola. Pede-se-lhe que não permita que haja rupturas na
vida acadêmica dos alunos que cegaram recentemente. Como na maior parte dos
casos a cegueira não é repentina, antes a perda da visão é lenta e gradual, a
prevenção deve ser uma prioridade para professores e outros técnicos.
Por outro lado, é preciso determinar quando deverá ter início a aprendizagem
do sistema Braille. Como escreve Correia (2008), "...a transição para o sistema
Braille deverá fazer-se sem saltos, não sendo necessário interromper os estudos.
Hoje estão disponíveis um conjunto de meios tecnológicos que configuram
alternativas válidas para que os alunos consigam dominar o Braille gradualmente
e de forma tão cômoda quanto possível, até o tornarem no seu meio natural de
escrita e leitura."
Muito dificilmente uma pessoa normovisual compreende e consegue experienciar
o que é ser cego. É ilusão julgar que fechar os olhos, realizar tarefas na
escuridão ou deixar-se guiar por outrem, resumem o que é ser cego (Martins,
2006). Para este autor, a dificuldade de um normovisual perceber o que é ser
cego e, consequentemente a sua integração na sociedade, está ligada aos
preconceitos profundamente arraigados na nossa cultura. Podemos encontrá-los na
Bíblia e na mitologia, através da figura de Tirésias.
Por um lado, ser cego, como são os cegos que surgem nas nossas aldeias, vilas
e cidades, não é apenas não ver. Trata-se de pessoas que adquiriram um conjunto
de competências que lhes permite enfrentar o quotidiano em segurança, com
comodidade e de forma profícua. Por outro, a pessoa cega não é apenas a sua
cegueira, mas alguém que tem uma vida como qualquer outro ser humano.
Para a pessoa de visão normal é quase impossível imaginar-se sem o seu
sentido primordial, colocar-se na posição do cego que se cruza consigo na rua,
compreender determinadas atitudes que o vê tomar. Muitas vezes o que é natural
para um cego não o é para um normovisual. Quantas vezes é um cego agarrado por
diversas mãos ao descer de um comboio, mas logo abandonado na plataforma da
estação? Que dizer deste comportamento se considerarmos que ele precisaria, em
vez da ajuda para descer da carruagem, da informação da localização das escadas
mais próximas para se poder dirigir para a saída? Este exemplo de incompreensão
é bem claro e percebe-se que pode conduzir a pequenos desentendimentos.
Naturalmente será mal visto o cego que recuse uma ajuda para descer do comboio,
considerada necessária pelos que o rodeiam. Muitos casos de agressividade por
parte das pessoas com deficiência resulta de situações como a que descrevemos.
Os cegos ainda hoje são considerados seres exóticos por muitos que com eles
se cruzam. A sua cegueira avulta como característica primordial. Os cegos são
olhados como uma comunidade, como um todo e não como pessoas isoladas e quantas
vezes sem relação alguma com outros cegos que vivem na mesma rua ou bairro.
Os cegos, na opinião popular, são todos inteligentes e lindos (Correia,
1995). O anedotário pinta-nos um cego, umas vezes, ladino, bizarro e malvado,
mas, outras, infeliz e humilhado. As artes dão também um contributo para esta
visão estereotipada do cego. A literatura e o cinema estão cheios de exemplos em
que cegos são descritos de uma forma difícil de aceitar por um espírito
esclarecido. Prova disso é o que sucede em "O Rosário" (Barclay, 1970), em que o
protagonista perde a visão e a sua enfermeira coloca cordas para ligar o piano à
poltrona para que ele se possa deslocar com comodidade. Outro exemplo caricato
aparece em O Milagre (Wallace, 1984), em que a personagem cega conta os passos
para se deslocar quer em casa quer na rua. Também esta personagem sofreu a perda
da visão e acredita poder ser curada por um milagre de Nossa Senhora de Lurdes.
Há a tendência para julgar que os deficientes visuais apresentam as mesmas
características pessoais. Refletindo sobre o assunto, Delgado Cobo, Gutierrez
Rodriguez e Toro Bueno (2003, p. 119) escrevem que: "Podemos afirmar que não
encontramos elementos que nos permitam falar na existência de uma personalidade
do cego", acrescentando que, embora se possam observar alguns traços e
tendências, muitos cegos não possuem a maior parte deles.
BIBLIOGRAFIA.
-
BARCLAY, Florence,
O Rosário, Lisboa, Editorial Minerva, 1970.
-
BRUNO, Marilda Moraes Garcia e MOTA, Maria Glória Batista da,
Deficiência Visual, Série Atualidades Pedagógicas, Brasília, Ministério da
Educação/Secretaria de Educação Especial, 2001.
-
-
CORREIA, Fernando Jorge A., "Os Cegos Perante a Opinião Pública", Actas do
1.º Congresso da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, Lisboa, Associação
dos Cegos e Amblíopes de Portugal, 1995.
-
CORREIA, Fernando Jorge A., "O Futuro do Jovem Cego de Hoje", Conferência
Proferida no 1º Congresso Ibérico de Educação Especial: Percursos e Percalços,
Santa Casa da Misericórdia do Porto/ Universidade Lusíada, Dezembro, 2008
-
DELGADO COBO, A; GUTIERREZ RODRÍGUEZ, M. e TORO BUENO, S., "Personalidade e
Auto-imagem do Cego", Manuel Bueno Martín e Salvador Toro Bueno (coords.),
DEFICIÊNCIA VISUAL - Aspectos Psicoevolutivos e Educativos, Santos, Livraria
Editora, 2003, pp. 117-128.
-
MARTINS, Bruno Sena, "E Se Eu Fosse Cego?": Narrativas Silenciadas da
Deficiência, Porto, Edições Afrontamento, 2006.
-
WALLACE, Irving,
O Milagre, Lisboa, Livros do
Brasil, 1984
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Ana
Maria Medeiros
[Professora de Braille No
Instituto de S. Manuel no Porto.]
Δ
26.Out.2009
publicado
por
MJA
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