
Sara Joana Branco dos Santos

A filha
cega do artista - Simon Glucklich
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Em “A criança cega e a
literatura infantil”, exploram-se as dificuldades de leitura por parte da
criança com deficiência visual e analisa-se o estado da arte da literatura
infantil para este público específico. O capítulo “A
Casa Azul”, inicia-se com uma breve reflexão sobre a tradução e a
tiflologia seguida da apresentação do texto de partida “A Casa Azul”, a análise
do texto de partida – com o levantamento de problemas tradutivos – e a sua
tradução intersemiótica, projectando- se um novo livro dirigido à criança cega
que inclui uma nova forma e dimensão e uma nova concepção de personagens e
cenários.
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A criança com deficiência visual tem, à partida, uma desvantagem no acesso
à literatura adequada à sua idade porque não consegue ver as imagens, que
complementam e muitas vezes são elemento primordial do texto. Como se sabe,
existem livros infantis somente com imagens, sem recurso a texto explicativo,
por exemplo, 'O Pequeno Azul' ou 'O balãozinho vermelho', da Editora Kalandraka.
Segundo o Centro de Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual
(CAIPDV, em associação com a ANIP - Associação Nacional de Intervenção
Precoce) sediado em Carvalhosas, Coimbra, o livro é introduzido à criança cega a
partir de imagens com textura ou impressas em Braille, o que, na opinião dos
especialistas deste centro, não é totalmente eficiente. Para Viviana Ferreira
(contacto pessoal), psicóloga, as crianças têm dificuldade em compreender o que
se representa nas imagens, sendo-lhes mais fácil apreender o livro se este tiver
figuras a duas ou três dimensões. Na verdade, práticas pedagógicas têm
confirmado que as crianças cegas precisam de estar em contacto com objectos de
variadas formas, tamanhos e cores.
-
[a] criança deficiente visual grave adquire os conceitos de permanência e de
constância do objecto bastante mais tarde do que a criança que vê. Entre muitos
outros factores, isto depende de, por ela não ver, levar mais tempo a
aperceber-se
de que o objecto ainda existe, mesmo quando já não o segura na mão.
É necessário contestar esta afirmação de Sonja Ekvall e.al. no sentido em
que é generalista; para vários cegos com quem abordei algumas das questões
analisadas nesta dissertação, a causa principal de a criança cega apreender mais
tarde os conceitos de constância e permanência dos objectos decorre do facto de
a visão ser global e o tacto ser analítico. Ilustrando: se se deixa cair uma
folha de
papel no chão, uma pessoa normovisual encontra-a rapidamente, caso a folha não
seja da mesma cor do soalho, ao percorrer a sala com os olhos, mas um cego
encontra-a quando lhe tocar. A “fisicalidade” e o contacto físico com os
objectos
influem na ideia de conceptualização, pois a visão permite-nos uma percepção
global do que nos rodeia. Em suma, para colher informações através do tacto tem
de haver contacto que é sempre circunscrito à área efectivamente tocada.
No que respeita à proximidade com a escrita e a leitura, segundo as autoras,
é facto que se deve introduzir a escrita ponteada (leia-se Braille) no meio
ambiente da criança deficiente visual o mais cedo possível, tão cedo como a criança que
vê tem acesso a textos no meio à sua volta. (Ibidem) Deste modo, a criança cega, apesar de não conseguir ver as imagens, pode
ler o texto de um livro, o que lhe traz autonomia, confiança e auto-estima. Qual
é a criança que não gosta de ler um livro por si mesma? Já em 1929, Vygostky (“The
Fundamental Problems of Defectology”) defendia que a educação não deve
basear-se na ideia de que o cego está condenado à inferioridade social; não é de
todo importante que a criança cega não consiga visualizar letras. É importante
que aprenda a ler e que o faça na mesma medida em que o faz a criança normovisual.
-
[…] considerar a criança que nasceu cega como sendo uma criança normal sem a
visão será impor-lhe um conjunto artificial de dimensões, tais como o
desenvolvimento sensorial sem a visão, ou o desenvolvimento afectivo sem a
visão. Somente pela compreensão e aceitação de um desenvolvimento sensorial,
um desenvolvimento cognitivo da linguagem, e um desenvolvimento afectivo que
lhe são peculiares, é que podemos admitir que a criança cega seja uma criança
‘total’.
As autoras pretendem clarificar que apesar da ideia de igualdade defendida
por Vygostky, é mais eficaz que se reconheça que a criança cega tem uma
limitação, mas que esta não é limitativa.
A criança cega pode não ler um livro com os seus olhos, mas poderá lê-lo
com os outros sentidos e recorrendo, logo que possível, ao Braille, o que
implica alfabetização e uma acuidade táctil desenvolvidas, competências que transcendem
uma criança de seis ou sete anos. Como referiu Plaza, (2008:56)
[…] se culturalmente o sentido visual é dominante, parece ser o tacto o sentido
original a partir do qual todos os demais foram diferenciados. Tacto e contacto
confirmam-nos a realidade que vemos.
Para o mesmo autor, (Ibid:139) o tacto é o mais importante dos sentidos,
pois o “carácter táctil-sensorial permite dialogar em ritmo intervisual,
intertextual e intersensorial com os vários códigos da informação”.
Para as técnicas do CAIPDV (contacto pessoal), o sentido que mais
rapidamente transmite à criança cega a realidade que a circunda é o sentido
auditivo, visto que o tacto se desenvolve mais tardiamente e são necessários
alguns anos até que a criança cega atinja um determinado nível de destreza.
Quem já leu livros para crianças e é normovisual poderá questionar-se
sobre as dificuldades de uma criança cega na leitura de um livro. O nosso mundo
é mais organizado de forma visual do que de forma auditiva e o livro infantil para
normovisuais centra-se precisamente nesse sentido: a visão. A corroborar esta
ideia, em 'Visual Thinking', Arnheim afirma que “vision is the primary medium of
thought” (1996:18) Todavia, Herculano de Carvalho em Teoria da Linguagem
(1970:86), considera que desde que a aprendizagem comece suficientemente
cedo, a aquisição da linguagem não está condicionada pelo meio físico em que vive.
O livro para a infância é, essencialmente, uma ponte de diálogo entre o
mundo dos adultos e o mundo da criança. Através da escrita adequada e de um
aspecto gráfico apelativo, os mais novos apreendem mensagens que visam
prepará-los para a vida em sociedade. Quase todos os livros infanto-juvenis
possuem uma mensagem de moralidade, introduzida pelo autor e completada
pelos desenhos do(a) ilustrador(a). Efectivamente, os livros para crianças são,
dependendo do nível etário do público infantil a que se destinam, coloridos,
graficamente estruturados, com imagens maiores do que o texto, apelando à
imaginação, ao sonho, à concepção inventiva da criança.
É com base nestas perspectivas que se pretende provar que a criança cega
poderá, se lhe forem disponibilizados, determinados recursos que permitam o uso
dos meios sensoriais de que dispõe, apreender o conto “A Casa Azul ”, sem ter de
ficar prejudicada face à criança normoleitora. (Relativamente a este termo cf.: Russo:2010)
A tradução do livro infantil em Portugal foi fundamental até à década de 70,
uma vez que os livros infantis produzidos no nosso país eram escassos e aqueles
que não se coadunavam com a ideologia da época eram censurados. Para Ana
Fontes (contacto pessoal), a leitura de livros infantis por parte das crianças
cegas era somente feita através do Braille. Antes de aprender a ler, a criança ouvia
ler e ganhava uma motivação para aprender a ler por si própria.
Rui Marques Veloso (contacto pessoal), docente da Escola Superior de
Educação e estudioso da literatura infantil, afirma que, com a mentalidade
pós-25 de Abril, pode constar-se que houve, efectivamente, um boom na produção
nacional, o que não significa que não se traduzam muitos autores estrangeiros.
Segundo Maria Teresa Cortez, a preocupação com a literatura infantil
iniciou-se com Luís Filipe Leite no artigo “Literatura de puerícia”, em 1855.
Também Carolina Michaëlis, no artigo “A cartilha portuguesa e em especial a do
Snr. João de Deus” menciona a importância das Primeiras leituras (1877). Estas
seriam, segundo a estudiosa (Cortez, 2001:168) "selecção de textos coligados por
João de Deus para complementarem a Cartilha e que incluíam, mormente, leituras
morais e instrutivas – demasiadamente áridas, pesadas e tristes – destinadas à
formação do bom menino, do bom filho e do bom aluno." Carolina Michaëlis demonstrou preocupação pela formação da criança e
apela a um "trabalho conjunto de descoberta da literatura popular nacional e uma
oferta desses tesouros à literatura portuguesa”. Acérrima defensora do ensino
escolástico alemão, Michaëlis, revela um interesse pela tradução de contos
populares alemães. De acordo com Cortez, (ibid.:171):
-
[…] se no incentivo ao pedir de empréstimo contos tradicionais de outros países
Carolina teve (…) a resistência de pelo menos alguns representantes do
movimento etnográfico, como Adolfo Coelho à cabeça, a sua apologia de uma
ligação estreita entre a nascente literatura infantil portuguesa e o espólio
nacional da literatura popular contou com o acordo pleno dos nossos folcloristas. De
facto, o impulso decisivo que a literatura infantil tem nesta altura em Portugal, é como
Ester Lemos faz notar, indissociável das investigações etnográficas.
Ainda segundo esta autora (Ibid:173), a partir de 1875, o interesse pela
literatura popular nacional, em conjunto com uma aposta na edificação de uma
literatura infantil, reflectiu-se de forma favorável, ainda que com algum
desagrado de alguns, na tradução de contos de outros países. Exemplo das primeiras
traduções são os contos de Grimm, a colecção de Andersen e, posteriormente, a
de Perraut.
Também em 1881, na Gazeta de Notícias, Eça apela à escrita para a
infância, fornecendo o exemplo de Inglaterra, com os "Livros adaptados a todas
as idades". A literatura infantil em Portugal inicia então os seus primeiros passos
a partir do último quartel do século XIX, embora, como conclui Cortez (Ibid.:176),
as traduções constituam:
-
[…] o grande bolo das leituras disponíveis e a produção original teima em
tardar, já que os nomes sonantes das nossas letras preferem coligir o que se lhes afigura
mais apropriado entre a literatura nacional e estrangeira. Mas começam a
despontar as primeiras experiências literárias dedicadas à infância, que irão
ganhar novo fôlego para o final do século.
Segundo informação obtida na Biblioteca Municipal de Coimbra, neste
momento, quando é aberto o Depósito Legal – o que acontece, por norma,
mensalmente – os livros de teor infanto-juvenil posteriormente catalogados são
equivalentes em número, no que respeita às traduções para português de autores
espanhóis e/ingleses, e às produções de autores nacionais. A título de exemplo,
com ajuda de bibliotecárias, verifica-se que foram registados no Depósito Legal
100 e 150 livros com cota de literatura infantil, de entre os cerca de 2000
recebidos. Desses números, em ambas as amostras, no que respeita a literatura
para a infância, a tradução e a produção nacional eram quase equivalentes,
embora o registo de traduções fosse ligeiramente superior.
No que concerne ao estado-da-arte da utilização de diferentes recursos para
as crianças cegas ou com baixa visão, importa mencionar que existe – sobretudo a
nível internacional – trabalho efectuado de modo a proporcionar alternativas ao
Braille; desde livros com cheiro (smelly books), sons (noisy books), e sabores a
livros com formas específicas, objectos pendentes (tactile books), às histórias
com relevo. Para os adultos cegos entrevistados, os smelly books e noisy books são
desconhecidos. As histórias eram-lhes apresentadas em Braille e, antes de
saberem ler, as histórias eram contadas por um adulto presente, ouvidas em
discos de vinil ou pela rádio. Nas décadas de 50 e 60, o programa da Emissora
Nacional “Emissão Infantil”, transmitido ao sábado às 19 horas, terá sido um dos
programas mais relevantes. Na verdade, a rádio tem de tratar os ouvintes como se
fossem cegos. As alternativas para tradução intersemiótica são iguais para
todos, já que aqui o sentido da visão está, por definição, ausente de meio.
Existem vários estudos sobre o ensino e desenvolvimento da leitura à criança
cega.
Para uma análise mais detalhada, leia-se:
o Aldrich, F.K. and Sheppard, L.
(2001). “Tactile graphics in school education:
Perspectives from pupils”. The British Journal of Visual Impairment, 19, 69-73.
Sage Publications, London;
o Jansson, G.
and Holmes, E. (2002). “Can we read depth in tactile pictures?” In Art beyond
sight: A resource guide to art, creativity
and visual impairment, (ed. E.S Axel and N.S Levent). AFB Press, New York;
o Ripley, M. and Sommerich, S. (1998).
"Guidelines for making tactile books for young children". Clearvision, London.
John Healy, autor de livros infantis para crianças com necessidades
especiais, escreveu o artigo “Words into pictures”, no qual trata o conceito de
“escrita cuneiforme”, um género de escrita ancestral iniciada pelos Sumérios na
Mesopotâmia por volta do ano IV a.C., que se definia pelo molde de materiais
(como barro) para transmitir conceitos que podemos definir como “portáteis”,
para incitar à comunicação. Equiparada à escrita hieroglífica e e/ou pictórica,
designa-se cuneiforme visto que era concebida em formato de cunha e o escritor poderia
usar uma única ferramenta para fazer uma grande variedade de signos. Esta
técnica é ainda hoje utilizada, de forma adaptativa, em contexto de sala de
aula, de modo a facilitar a comunicação entre educadores e crianças com deficiência.
As técnicas do CAIPDV, Inês Marques e Viviana Ferreira (contacto pessoal),
lamentam que os recursos existentes para a criança cega não sejam em maior
quantidade e qualidade. Da ludoteca do CAIPDV destaca-se a light-box, uma caixa
em cartão que, durante a visita destas técnicas aos infantários, escolas e até
domicílios das crianças com quem trabalham, é abastecida de produtos, desde
alimentos a peças de roupa, dependendo do tema que se queira tratar. Estas
especialistas têm por experiência que, com itens verdadeiros, as crianças cegas
não só desenvolvem a memória, como apreendem facilmente o conceito que lhes
é apresentado.
Vários académicos têm efectuado trabalhos sobre como se deve efectuar a
leitura de histórias para crianças com problemas de visão, tendo como recurso os
demais sentidos, mormente o tacto. Tomando como exemplo Neil Johnston, em
“Telling Stories Through Touch” (2006), os livros para crianças cegas podem ser
ilustrados com representações tácteis que realcem o texto e as personagens, na
mesma proporção em que as imagens auxiliam a criança normovisual. Os
elementos tácteis permitem à criança cega sentir, puxar, levantar, abanar,
chocalhar, o que estimula os outros sentidos. Para tal, os materiais podem ser
os mais diversos (envolvendo critérios de segurança): veludo, tecidos de pele,
plástico (como policloreto de vinil), redes, tecidos rendados, botões,
missangas, couro artificial, colchas, esponjas, material de tapetes de borracha, argila,
areia, madeira, talheres, tampas de plástico, meias, pequenos rolos de cabelo, botões,
sinos, flores e folhas artificiais, pompons, plumas, entre outros. Como refere
Johnston (Ibid.), se a criança não vê, precisa de ser estimulada a pegar nos
objectos e manipulá-los. Os livros tácteis, em específico, servem-se da narração
passo-a-passo e socorrem-se de personagens cativantes que servem de
condutores da criança ao longo da história.
A história infantil pode ser, em si, uma estratégia alternativa de comunicação.
O recurso às ilustrações ou pictogramas contribui para o desenvolvimento da
memória, mais concretamente, na recordação da história. De facto, o papel da
ilustração como auxiliador comunicativo da história tem sido objecto de estudo
por parte de académicos como Isabel Calado (2000), que parte do conceito de imagem
funcional de modo a analisar o efeito que as imagens em geral acrescentam às
mensagens verbais. A autora (Calado:105), afirma que a “imagem é um poder que
reforça a comunicação. Mais ainda, refere que (Ibid:111), no tocante à
literatura infantil, cabe à “imagem interpretar a informação textual”.
O trabalho que aqui se apresenta pretende traduzir o “poder” da ilustração
e, através do recurso a outros sentidos para além do sentido da visão que a
ilustração requer para ser percepcionada, tornar uma história infantil acessível
a um público que não vê.
“A CASA AZUL”
A tradução é uma acção multifacetada que resulta da complexidade da
própria comunicação humana. Estudá-la enquanto acto ou produto requer
múltiplos olhares que se apoiam em variadas ciências e abordagens teóricas.
Torna-se difícil estudar o assunto sem que se recorra à Linguística, à História,
à Semiótica, aos Estudos Culturais ou aos Estudos Comparados, entre outros.
Somente a partir da segunda metade do século XX é que os Estudos de
Tradução surgem como uma disciplina autónoma, capaz de descrever as múltiplas
facetas do seu objecto de estudo. Para James Holmes ([1972]1988), a Linguística,
a Literatura e Lógica não abarcavam a complexidade da área, o que o leva a
elaborar uma análise descrevendo o campo, definindo o seu objecto (a tradução
enquanto processo e produto), apontando possibilidades de estudos e de diálogo
com outras disciplinas e a composição de vários manuais introdutórios e de
enciclopédias da área.
Tem sido no âmbito da tradução audiovisual que a Tradução se vem a
descentralizar da palavra escrita para se ver tratada enquanto actividade que
versa um texto de partida multimedial, assente em variadíssimos códigos verbais,
sonoros e visuais. É também com a tradução audiovisual que a tradução se
assume nas suas três vertentes jakobsonianas – interlinguística,
intralinguística e intersemiótica. E é ainda nesta área que se desenvolvem as principais
estratégias de tradução/tradaptação de materiais para pessoas com deficiência sensorial –
surdez ou cegueira.
Inicialmente voltada para a tradução interlinguística, através da legendagem
e da dobragem, a tradução audiovisual vê o seu domínio alargado à tradução
intralinguística através da legendagem para surdos e à tradução intersemiótica
essencialmente através da audiodescrição para cegos. O campo de actuação da
TAV é hoje lato e rico, encontrando-se já no seu âmbito abordagens híbridas, que
vão muito para além da tradução na sua concepção tradicional e que tocam em
novas acções como a própria tradaptação ou a transcriação. É neste âmbito que
se torna possível equacionar a tradução de um livro infantil para crianças
cegas.
No que respeita à tradução infanto-juvenil, esta proporciona o acesso às
culturas de outras línguas e a outras formas de entender o mundo. Como escreveu
Jakobson, a leitura é algo que aprendemos a fazer: ela é determinada pela
experiência cultural do leitor e este colabora na criação do significado do
texto, trazendo até ele a sua experiência, atitudes e emoções (Apud Fiske,
2008:62-63).
Este “abrir de janelas” para novos mundos requer particular atenção quando o
jovem leitor se vê condicionado por falta de acuidade visual.
Mais do que a literatura infanto-juvenil em si, interessa portanto tratar aqui a
tradução da literatura infantil numa perspectiva tiflológica. A tiflologia é “o
estudo sobre a instrução dos cegos” (Houaiss, 2003). O termo formou-se a partir dos
vocábulos gregos "typhlos" (cego) e "logos" (conhecimento racional) no seu
sentido mais amplo e pretende designar o ramo do conhecimento que tem por
objecto a problemática da cegueira e os fenómenos específicos relacionados com
os cegos.
Valentin Haüy foi um notável mentor deste conceito. Acreditou que era
possível instruir crianças e jovens cegos e fundou, em Paris, no ano de 1784, a
primeira escola dirigida para deficientes visuais. Recorreu a um processo de
leitura e escrita usando os caracteres comuns gravados em relevo, processo que viria a
ser substituído pelo sistema baseado em pontos concebido por Louis Braille
(1825), inspirado na sonografia de Barbier de la Serre.
A tiflologia é a abrangência da cegueira nas várias áreas multidisciplinares e
tem, como escreve Leonardo Silva, (2005):
-
[…] o objectivo de compreender integralmente o deficit funcional motivado pela
deficiência visual em todas as suas implicações intrínsecas e extrínsecas ao
deficiente e procurar, na medida do possível, reduzir ou eliminar essas
implicações.
Pretende-se, através desta tese, abordar a tradução numa perspectiva
tiflológica, uma vez que se preparará um guião do conto “A Casa Azul” dirigido à
criança cega, tomando como referência teórica a tradução intersemiótica e
perspectivando a nova obra como um instrumento pedagógico que pode vir a
contribuir para o melhoramento das competências comunicativas da criança cega
ou com baixa visão.
“A Casa Azul”, com ilustrações de José Palrinhas foi um conto concebido
para um concurso nacional de literatura infantil, Concurso Literário da Trofa –
Conto Infantil – Prémio Matilde Rosa Araújo.
José Palrinhas nasceu em Coimbra, em 1981. Conclui o curso Tecnológico
de Mecânica na Escola Secundária Avelar Brotero, em Coimbra, efectuando o
respectivo estágio em Lion, França, no âmbito do Programa Leonardo da Vinci. Em
2000 ingressa no curso de Arquitectura na Universidade das Artes de Coimbra,
mas opta por licenciar-se em Design de Equipamento. Desde 2005 que trabalha como
freelancer, em visualizações virtuais a 3D, projectos de mobiliário, de
equipamentos, de interiores, pequenos trabalhos de ilustração e concursos de
design automóvel promovidos pela editora de revistas Automagazin.
“A Casa Azul” é um conto dirigido preponderantemente a um púbico-alvo
com idades compreendidas entre os cinco e os oito anos. A história contém
mensagens claras: a importância da unicidade e da aceitação da diferença. Com
efeito, vivemos numa sociedade em que é evidente a falta de preparação para o
que é diferente e o texto caracteriza-se pelo seu objectivo antidiscriminatório,
abordando ainda a questão da singularidade e da procura de perfeição. Pretendese
que a criança se aceite como é e aceite os outros, sem a esteira da crítica ou
do complexo.
O enredo é simples: a personagem central é uma casa azul, situada num
local distante da cidade, rodeada por um bosque, e que apenas tem por
companhia as árvores e as flores do jardim, um cão e uma gata. A casa azul vive
triste porque não é igual às outras casas que consegue ver do bosque,
considerando que a sua cor marca, inevitavelmente, a condição de estar isolada,
o que permite ao leitor concluir que a questão da diferença é encarada como um
infortúnio. De forma a questionar a razão da sua infelicidade, surgem as
restantes personagens que usam as suas próprias características para revelar a sua
singularidade de forma positiva.
Apresentamos, de seguida, o texto e as ilustrações originais.

Ilustração
1
Era uma vez uma casa azul que vivia muito triste num bosque afastado da cidade,
rodeada de grandes pinheiros e fortes giestas.
A casa azul passava o dia a suspirar porque tinha um grande desgosto: era azul e
queria ser caiada de branco! De onde estava edificada, a casa azul costumava ver
as suas amigas todas pintadas de branco na aldeia junto ao bosque.

Ilustração
2
- Oh, porque não sou eu branca como as outras casas? O azul nem combina com a cor
da floresta!
As suas vizinhas árvores e mesmo as flores do seu jardim já a tinham tentado
convencer de que ser uma casa azul era muito original! - Assim, podes chamar
mais a atenção dos pássaros, que ficam deslumbrados com a tua cor semelhante à
do céu! Olha bem para nós, há pessoas que também não gostam dos nossos aromas,
mas não nos importamos.
Ainda assim, nada… A casa azul continuava tristíssima.

Ilustração
3
Também o Sebastião, o cão que a guardava dia e noite, para que nenhum assaltante
se chegasse perto dela, a tentou animar:
- Mas tu não sabes o quão bonito é o mar? E não sabes que o mar é azul?
Para que queres tu ser pintada de branco? Já olhaste bem para mim? Também sou um
cão demasiado grande e desengonçado…os meninos e as meninas costumam ter medo de
mim! E tu sabes que eu não faço mal a ninguém.
- Oh, mas todos gostam de ti!, ripostou a casa azul, as pessoas quando visitam a
floresta ficam muito espantadas a olhar para mim, e é, certamente, pela minha
cor!

Ilustração
4
Então, a astuta gata Valentina disse em tom maternal:
- Ora vês? É precisamente por não teres uma cor vulgar que olham para ti! A tua
cor faz de ti especial e diferente e ser diferente não significa que as pessoas
não possam gostar de ti como és. Tal como não significa que tenham medo de ti,
pelo contrário, despertas a curiosidade e o interesse! Olha bem para mim,
coberta de pêlo negro, tu não achas que há pessoas que têm medo de mim, que
pensam que levo azar por onde passo? Eu não me preocupo com isso porque sei que
as pessoas têm medo do que não conhecem e lhes parece estranho…

Ilustração 5
A casa azul ficou pensativa com as palavras da gata Valentina. De facto, era uma
gata bem redonda e muito preta, como os gatos das bruxas, mas todos gostavam
dela! E o Sebastião era mesmo demasiado grande e desengonçado, mas também todos
o estimavam! E ainda as suas amigas flores também poderiam ser mais viçosas e
coloridas, mas todas as borboletas as apreciavam!
Na verdade, cada um é como é! E não significa que sejamos melhores ou piores do
que os outros. Temos de gostar de nós próprios, de nos aceitarmos e de nos
respeitarmos. Só assim poderemos também aceitar a diversidade e aprender a amar
as diferenças dos outros. A casa azul passou a ser uma casa muito feliz porque
percebeu que ser diferente também é ser belo!
*
1) Análise do texto: levantamento de problemas
É nosso intuito que o conto a que as crianças cegas poderão aceder, de
forma limitada, pela leitura em voz alta, seja acessível (querendo significar
legível)
à criança deficiente visual sem que se recorra a uma transcrição em Braille, mas
testando estratégias que a tradução intersemiótica permite e que envolvem a
tradução dos elementos textuais em formatos como relevos, texturas, sons e
cheiros. Tendo em conta que se trata de um conto para crianças, que contém
imagens aliadas ao texto, estas imagens, por si só, enviam uma mensagem à
criança normoleitora, que interpreta as figuras e as personagens. Todavia, com a
utilização de texturas, relevos e dispositivos que incorporem os sentidos sonoro
e olfactivo, a criança cega também conseguirá “ler” “A Casa Azul”. No caso
específico da adaptação do conto à criança cega, tentou-se explorar as vozes das
personagens, música, os relevos, e os aromas dos cenários.
Como já mencionado anteriormente, para este projecto foi necessário o
contacto com especialistas na área da intervenção precoce e apoio à criança cega
e/ou com baixa visão. Assim, com o CAIPDV e as colaboradoras Inês Marques e
Viviana Ferreira, efectuou-se um processo de levantamento de questões para a
análise do conto original com vista a examinar e tentar contornar os elementos
identificados no conto que indiciam linguisticamente aspectos, objectos e
conceitos a que normalmente se tem acesso, através da visão, constituindo, portanto,
ruídos na tarefa tradutiva em termos deste público específico do texto de chegada.
A casa azul (cor pouco comum na fachada das casas) vive triste e isolada.
Assim, as restantes personagens iniciam um processo de auto-apreciação e
valorização de características que lhes são exclusivas:
-
As flores chamam a atenção para o facto de as pessoas e animais em geral
gostarem da sua figura e da sua cor, mas ponderam a possibilidade de não
apreciarem outra das suas características: o aroma;
-
A figura do cão argumenta que apesar da sua utilidade como protector da
casa e dos seus moradores, é um animal “demasiado grande e desengonçado”, o
que poderá não ser visualmente apelativo e, inclusivamente, causar receio;
-
A gata usa precisamente a superstição (popular) de ser de cor negra, e,
neste contexto, de ser sinónimo de má sorte, para valorizar as características
da casa azul.
Na verdade, a gata é a personagem que surge com uma actuação
explicativa, afirmando à casa azul que a sua cor faz dela especial e diferente e
acrescentando que tal não significa que as pessoas não possam gostar e respeitar
essas diferenças. Simultaneamente, não implica que tenham medo do que é
diferente, pelo contrário, ser diferente suscita a curiosidade e o interesse,
num espectro de positividade.
No fim do conto, a casa azul pondera todas as características positivas e
restritivas das restantes personagens intervenientes e, num acto de
autoavaliação, assume-se pela sua unicidade. A mensagem do conto torna-se, assim, numa
importante revelação e, simultaneamente, numa tomada de consciência para a
casa azul e para a criança leitora: todos temos as nossas particularidades,
todos temos a ânsia de perfeição, mas o que nos auxilia no curso de vida é a aceitação
de nós próprios tal como somos, com as nossas características e /ou diferenças
que nos tornam, inevitavelmente, únicos.
O conto, não publicado, foi inicialmente concebido para crianças
normoleitoras. Aquando da leitura da história e da apreensão da mensagem, a
criança normovisual conseguirá, em princípio, e porque tem acesso directo aos
elementos linguísticos e gráficos, imaginar as personagens, o cenário onde
decorre a narrativa e aceder à noção de igualdade e do direito à diferença.
Todavia, perante o mesmo conto, a criança cega congénita deparar-se-á com
várias questões e que se relacionam com a problemática da percepção da
materialidade visual das cores, distâncias, perspectivas, e de conceitos
socioculturais.
É importante diferenciar o caso da cegueira congénita visto que uma criança
que perca a visão por volta dos cinco anos já terá adquirido a noção real de
cor, pelo menos de algumas cores – desde logo, da diferença entre claro e escuro,
preto e branco. À criança funcionalmente cega tem de ser ensinado que o mar e o
céu são azuis, que as casas portuguesas são geralmente brancas, tal como tem
de lhe ser ensinada a superstição de os gatos pretos serem, normalmente, símbolo
de azar.
A criança cega sem outra patologia conseguirá entender a mensagem do
conto; para isso teremos de verificar se ela já possui conceitos essenciais para
a compreensão do mesmo. Enquanto professores de uma língua estrangeira,
quando temos um novo texto para dar a ler aos alunos, é necessário fazer o
mesmo tipo de exercício de reconhecimento; é necessário introduzir o vocabulário
novo, recorrendo à forma de tradução mais adequada que se dispõe, caso
contrário, fracassamos. Para Ana Fontes (contacto pessoal), é impossível
transmitir à pessoa cega congénita a noção real de cor. É uma perda
indissociável da cegueira congénita com a qual o/a cego/a tem de viver. No dia-a-dia, no
vestuário, por exemplo, só a memória ajuda a saber que cores combinam entre si.
Identifiquemos de forma mais sistematizada os aspectos particulares que se
relacionam com a problemática da visão contidos no conto:
-
Terá a noção da cor e conseguirá apreender a questão da diferença entre
o branco (cor comum de uma casa portuguesa) e o azul? Conseguirá apreender as
comparações e sugestões das restantes personagens quando dialogam entre si?
Tais problemas revelam-se quando as flores argumentam que a cor azul atrai a
atenção dos pássaros pois comparam-na à cor do céu ou quando relembram que o
mar – elemento, por norma, belo aos olhos de todos – partilha da cor da casa, o
que pressupõe que ela também seja bela.
-
Terá a noção da distância, visto que a casa azul “vive num bosque
afastado da cidade”?
-
Terá a concepção de aldeia e de cidade? No texto, a criança normovisual
percebe, através das imagens, que a casa azul está localizada fora da zona
citadina, encontrando-se isolada no bosque. Terá a criança cega o conceito de
perspectiva?
-
Alcançará a ideia de “desengonçado” que caracteriza o cão Sebastião?
-
Conseguirá apreender determinadas implicações socioculturais, como as
implícitas na pergunta da gata Valentina sobre a cor negra ser sinónimo de má
sorte?
Segundo especialistas como Vygostky, (1929) as crianças cegas já possuem
concepções do mundo circundante a partir dos dois anos de idade. Conseguem
diferenciar as cores em contexto de conversa e sempre associadas a ideias.
Também segundo as peritas do CAIPDV, as crianças com deficiência visual sem
outras patologias associadas aprendem cedo a efectuar associação de conceitos
como “o sol é amarelo”; “as folhas das árvores são verdes”; “o céu e o mar são
azuis”. Esta diferenciação é não só linguística mas também conceptual.
Desta forma concluímos que a cor azul do conto original não causa
propriamente problema à criança cega, não sendo objecto de estranheza, uma vez
que esta não possui, como a criança normovisual, a percepção real de cor.
Importante é criar um elemento característico da casa – que a criança cega já
identifica – e torná-lo estranho, como será estranho à criança normoleitora a
cor azul numa habitação.
Segundo Gambier (2003:177), “[t]he blind and visually impaired need different
levels of detail and content in audiodescriptions. (…) People born blind have no
visual memory to draw upon, and hence have little or no interest in the colour
of someone's hair, description of their clothing, etc.” Esta questão da memória
visual referida por Gambier é também importante na consideração da adaptação deste
conto para um público infantil com deficiência visual:
No que concerne ao entendimento de espaços como “céu” (“os pássaros
voam no céu”) e expressões como “cor semelhante à do céu”, a criança não terá
problema, como já havíamos referido, em relacionar os conceitos, pois, aquando
da apreensão de conceitos como as cores, apreende também em contexto escolar
e familiar conceitos como “os peixes nadam na água”; “os cães e os gatos
caminham em terra”; “as árvores e as flores têm folhas”. A criança também
aprende dicotomias sobretudo por meio dos sentidos olfactivo e gustativo. A este
respeito leia-se Heimers, Wilhelm [1965]1970:
-
[…] esses dois sentidos enriquecem as impressões que a criança obtém do seu
ambiente. (…) Os alimentos e as bebidas cultivam o paladar desde cedo. Mas é
preciso que a criança conheça os diversos paladares. Diga-lhe por exemplo: o mel
é doce, o limão é azedo, explique-lhe o sentido de amargo, ameno, forte,
salgado, etc. (…) Com o tempo a criança cega adquire através do paladar e do olfacto
inúmeros novos conhecimentos e saberá diferenciar muitas coisas graças a esses
dois sentidos.
No que concerne à perspectiva, contida na noção da distância (a casa azul
vive num bosque afastado da cidade), para as peritas do CAIPDV, trata-se de um
conceito difícil para o cego, embora este entenda o conceito de demora, através
da noção do tempo percorrido entre um local e outro. Também o adjectivo
“desengonçado”, que caracteriza o cão Sebastião, será quase impossível de
transmitir à criança cega. Assim, concluímos que tanto no que diz respeito à
noção de perspectiva da casa, como no que concerne à figura do cão, será necessário
substituir estes conceitos por outros que possam, sem alterar a natureza do
conto, ser mais objectivos e permitir um melhor entendimento por parte da criança cega.
No que diz respeito às expressões como “cor vulgar” ou factos socioculturais
como a cor negra ser símbolo de tristeza e/ou azar, a criança cega entre os
cinco e os oitos não terá ainda a percepção destes conceitos que são, essencialmente, de
carácter popular. Uma leitura orientada do conto poderá ser necessária nesta
situação mais concreta, em que um adulto poderá explicar à criança cega (que
ainda não tem estes conhecimentos) que um gato preto é considerado pela
sociedade supersticiosa como um símbolo de má sorte.
2) Tradução Intersemiótica do texto “A Casa Azul”
Em face dos problemas equacionados, é chegada a altura de discutir um
novo livro dirigido à criança cega, contabilizando necessidades de adaptação
face ao público-alvo.
Como refere Nord, ([1988] 2005:17), cada texto de chegada depende do seu
receptor, ou, mais concretamente, das suas necessidades comunicativas: “[t]he
reception of the text depends on the individual expectations of the receivers (…)
their social background, their world knowledge and/or their communicative needs.”
Salienta-se da citação de Nord as necessidades específicas inerentes à
compreensão do conto que este público não normovisual enfrentará. A sua
recepção do texto de chegada seria, sem adaptações, difícil e até monótona
(lembremo-nos de que grande parte da literatura infantil para a criança cega se
cinge à transcrição dos contos para Braille) ou dependente da leitura efectuada
por outra pessoa. Pretende-se com o novo livro/texto de chegada de “A Casa Azul”
que a criança cega seja o mais autónoma quanto possível, explorando o conto por
si mesma.
Para uma melhor compreensão do trabalho que aqui se propõe, foram
realizadas várias imagens que foram concebidas nos programas Autocad e
Photoshop de modo a projectarem-se os eventuais dispositivos a ser inseridos no
livro.
O novo conto/texto de chegada teria (face ao “original”) cinco páginas, além
da capa e contracapa. Às páginas de texto com página de imagem correlativa
contidas no conto original corresponderia somente uma página no novo livro.
Exemplificando, a página 1, que surge como descritiva da localização da casa
azul relativamente à cidade, seguida da página 2, com a ilustração respectiva,
surgiria como um todo, e assim sucessivamente, podendo a criança cega descobrir e
imaginar as indicações sugeridas pelo conto, através dos recursos e dispositivos
que se tratarão seguidamente.
No que respeita às cores referidas no texto de partida, estas deveriam ser
mantidas no texto/livro de chegada, pois é importante que a criança imagine a
cor, que toque o(s) objecto(s) de cor, tal como é importante, caso seja um livro cuja
leitura é partilhada pelos pais, familiares e educadores, que seja real a
reacção dos seus leitores, que a estimulem à leitura do livro. Não podemos banalizar a
importância da actividade de leitura, que deve ser estimulada por todos aqueles
que rodeiam a criança cega. Como refere Maria Cristina Hoffman (2008):
A leitura de adultos significativos para as crianças, é uma atividade prazerosa,
uma forma de brincar com as palavras, de proporcionar uma rica fonte para a
imaginação, que transporta a criança para mundos diferentes. Pais e professores
da Educação Infantil são os responsáveis por criar os laços das crianças com a
leitura. A infância é o tempo de maior disponibilidade a influências. As
crianças gostam de “imitar” atos de leitura, e a família e os professores são ótimos
modelos de leitores competentes.
É necessário à criança cega ouvir palavras do quotidiano das pessoas
normovisuais, como: “Olha, que lindo livro que tens!”; “A casa é de um azul
muito bonito!”, pois sentir-se-á estimulada integrada e disposta a participar. No
artigo “The preschool child who is blind”, do U.S. Department of Health, Education and
Welfare (1985), pode ler-se, em tradução, “use exactamente as mesmas palavras
que as pessoas que vêem usam. "Maria, olha que lindo vestido tem esta boneca!"
"João, vamos ao jardim ver as flores."
Como poderá a criança cega apreender as distâncias ou reconhecer
conceitos como “cidade” e “bosque”? Os recursos para livros tácteis passam pela
introdução de texturas, aromas e até música. De forma a adaptar estes conceitos
ao novo texto de chegada, uma hipótese seria permitir a identificação da cidade
e do bosque através de sons e cheiros característicos destes locais distintos, o
que implicaria que estas crianças já seriam capazes de identificá-los em
contextos referenciais.
Quando ensinamos a uma criança – normovisual ou cega – as diferenças
entre “cidade” e “campo”, fazemo-lo através da enunciação de conceitos
dicotómicos como:
-
cidade= indústria, barulho de carros, fábricas, pessoas nas ruas,
prédios habitacionais, lojas, mercados locais, transportes públicos:
autocarro, comboio, metro, edifícios institucionais, jardins municipais.
-
campo= agricultura, canto dos pássaros, casas pequenas, jardins
privados, quintais, mercearias, pracetas, aroma a bosque, flores
campestres, animais nos pastos.
Como representar estas dicotomias? Poder-se-ia usar o recurso áudio para a
criança cega distinguir entre a “cidade” e o “bosque”, além da composição da
textura de cimento, por exemplo, para representar as casas na cidade, seguida do
material sintético ou orgânico que representasse os troncos e as copas das
árvores. Segundo Viviana Ferreira (contacto pessoal), o importante é a
representação do tronco, que se torna elemento caracterizador da árvore em si. A
criança cega aprende o que é uma árvore ao tocar no tronco, que está mais
acessível, seguindo-se a noção da copa através do conceito de sombra e,
consequentemente, da altura da árvore.
Inicialmente equacionámos a hipótese de a criança cega dispor, em
simultâneo, de recursos audiotácteis, e que, eventualmente pudesse usufruir do
sentido olfactivo, havendo, para isso, outro dispositivo integrado no livro que
permitisse à criança premir outro botão e sentir os aromas indicados pelos
conceitos visuais. A ideia de ter apenas um único botão que providenciasse as
sugestões dos sentidos auditivos e olfactivos parece restritiva, pois uma
criança gosta de explorar as várias facetas de um livro e, neste caso concreto, a
criança cega, mais do que a normoleitora, sensibilizada para os restantes sentidos,
poderia querer, diferenciadamente, explorar os dispositivos do livro, querer
cheirar os aromas da cidade e do bosque e não ouvir os sons correspondentes e viceversa.
O conceito englobaria um pequeno botão junto da representação da “cidade”
e do “bosque”, de modo a que pudesse ouvir os sons característicos dos mesmos.
Assim, quando accionasse o botão relativo à cidade, ouviria uma gravação com
sons de tráfego, pessoas a correr apressadas, buzinas de carros e outros meios
de transporte, etc. Do mesmo modo, quando accionasse o botão relativo ao bosque,
ouviria sons de aves, de água corrente, de animais nos pastos. Os
próprios botões podiam ter uma textura diferente, de modo a serem mais
distintivos; um botão com material arenoso para caracterizar a cidade e outro
com base em madeira para caracterizar a floresta.
Todavia, Viviana Ferreira considera que apesar da necessidade constante –
e obviamente importante – de a criança cega descobrir o que tem diante de si, e
em especial da falta de acesso ao texto e imagens, seria mais eficiente que lhe
fosse apresentado apenas um botão, que accionasse, em simultâneo o dispositivo
áudio e olfactivo do bosque e da cidade; caso contrário, na experiência da
psicóloga, a atenção da criança dispersa-se e ela afasta-se do intuito inicial
que é a leitura do conto.
Estas adaptações, obrigatórias no texto de chegada, advêm das
necessidades especiais da criança com deficiência visual e podem ser
enquadradas nas especificidades da tarefa tradutiva analisadas por Nord
([1988]2005:49):
The situation of a translator can be compared with that of a text producer. (…)
they are usually allowed a certain scope in which to give free reign to their own
stylistic creativity and preferences, if they so wish.
O tradutor deve então considerar o público-alvo e conceber um texto de
chegada com as alterações necessárias, sem alterar o conceito inicial do texto
de partida. Uma tradução não é um mero exercício de equivalência de uma língua
para outra e Nord ([1988] 2005:153) reforça-o: “equivalence is not a very
practicable criterion for a translation. A translator needs to know exactly
which type of effect is required.”
Partindo do pressuposto de que o livro seria publicado, na íntegra, por uma
gráfica, a pedido de editora, com uma primeira tiragem de 500 livros, número
mínimo para uma primeira edição, considerando preocupações ambientais e
monetárias, o novo livro seria criado em formato A3, na horizontal, com páginas
de 2cm de espessura.
Chegados a este momento do projecto, retomamos a parceria com o
ilustrador e designer do conto, José Palrinhas. Tendo em conta o seu
envolvimento num projecto de Design Inclusivo, no qual lhe foi necessário desenvolver
dispositivos e conceber objectos que facilitassem a comunicação da criança/jovem
deficiente visual, a sua concepção profissional permitiu-nos discutir questões
como o tamanho do (eventual) livro, os materiais a serem utilizados e os tipos
de mecanismos a serem integrados.
Como já foi referido, cada umas das cinco páginas do novo livro – texto de
chegada – corresponderiam a duas páginas do livro original, agregando texto e
imagem numa só página com relevo, textura, dispositivo de áudio e de libertação
de aromas. De forma a incorporar este dispositivo, na contracapa seria
incorporado um chip, as pilhas e as micro-colunas necessárias para a difusão do
som. O livro seria elaborado em cartão estampado, do qual sobressaísse o relevo
de determinadas personagens e fossem incluídas outras, elaboradas em materiais
como velcro, poliestireno ou esponja. Inês Marques, do CAIPDV (contacto
pessoal), considera que, na prática, as crianças cegas são mais receptivas às
matérias neutras, como vinil ou plástico, uma vez que devido à sua
hipersensibilidade táctil, algumas crianças sentem repulsa em tocar em materiais
como veludo, velcro ou pêlo.
As capas e contracapas seriam envolvidas num plástico, semelhante ao
látex, hidrófobo, de modo a não permitir a absorção de água a proteger os
dispositivos accionados electronicamente. Também aquando da aquisição do livro,
a criança cega receberia um CD com a versão narrada da história, admitindo a
existência de audiodescrição das imagens, elemento que não só complementaria
como auxiliaria a exploração da obra na sua vertente táctil e icónica no momento
da leitura.
Na base de cartão com relevo, surgiriam cenários e personagens noutras
texturas: caminhos em base arenosa envernizada, casas (da cidade)
representadas por pequenos poliedros, as copas das árvores em relva sintética ou
materiais em felpo e os troncos recorrendo a casca de pinheiro. Tendo em conta a
informação recolhida relativa à noção de árvore, seria relevante identificar as
árvores salientando-se essencialmente o tronco e substituir a imagem original da
copa do pinheiro por uma copa redonda, com folhas agregadas.
As flores e as personagens como o cão Sebastião e a gata Valentina
poderiam incorporar esferovite, embora algumas partes – como orelhas e focinho –
fossem preenchidas com veludo. Os olhos poderiam ser produzidos em plástico
vidrado e pequenas cerdas representativas das pestanas, o que permitiria à
criança cega apreender o rosto da personagem. No que respeita à representação
do Sebastião, um cão “grande e desengonçado”, Viviana Ferreira considera que
este conceito deveria ser substituído por um conceito semelhante, mas mais
acessível ao imaginário da criança. Assim, associar uma rima a Sebastião, como
“o tropeção”, permitiria à criança entender a ideia inicial porque, se tropeça,
depreende-se que não terá grande agilidade. Além disso, esta alcunha atribui à
personagem uma característica mais jocosa, o que pode suscitar alguma empatia
por parte dos leitores.
Este aspecto mostra que não se trata de adaptar o texto sobretudo através
das imagens ou ilustrações que passariam de visuais a tácteis, olfactivas,
sonoras e até gustativas, mas pensar o próprio texto como elemento a ser traduzido
também em termos verbais.
Perante o que concluímos anteriormente, seria difícil à criança cega
percepcionar a noção de distância apresentada na primeira imagem do conto
original, da qual a criança normoleitora depreenderá a existência de uma
distância entre o bosque e a cidade. Assim, optar-se-ia (também de acordo com Viviana
Ferreira) por não se inserir as casas da cidade, que não só não seriam
detectadas no seu conceito de distância como poderiam tornar-se dado perturbador na leitura
do conto.
É a pensar nas competências da criança cega que a primeira concepção da
página do novo livro/texto de chegada foi alvo de alteração. Na Ilustração 1 do
texto de partida as casas edificadas na cidade anteriormente desenhadas em
perspectiva – no horizonte – são removidas no texto de chegada de modo a não
causar ruído à criança cega.
Segundo Nord ([1988]2005:33), para que exista uma tradução eficiente é
necessário o equilíbrio entre “preservação” e “adaptação”, sendo que os
antípodas – transcrição versus produção livre – balizam o campo de actuação do tradutor,
ao qual caberá decidir, caso a caso, qual o melhor procedimento a adoptar.
Neste contexto também Gambier e Neves nos dão um contributo sobre as
adaptações na tarefa tradutiva, sobretudo com o conceito de tradaptação. Para
Gambier (2003:178), “transadaptation might allow us to go beyond the usual
dichotomy (literal/free translation, translation/adaptation, etc.) and take
target audiences into consideration more directly.” Segundo este autor, toda a tradução
audiovisual é tradaptação. Para Neves (2007), o termo tradaptação agrega-se à
Legendagem para Surdos e pressupõe traduzir e transferir toda a informação
contida em todas as camadas, como por exemplo, nas bandas sonoras de filmes,
e transpô-las para um formato visual. Tal adaptação permite que as pessoas que
não ouvem o som possam captar o texto audiovisual tanto quanto possível.
Com este conceito, os autores reforçam assim a relevância da necessidade
de trabalhar o texto de partida em conformidade com as capacidades do
públicoalvo.
Tendo em conta os mecanismos envolvidos, depreende-se que esta
discussão carecesse de um trabalho de equipa que compreendesse várias áreas e
especialistas, como designers gráficos e de equipamento, engenheiros
electrotécnicos e peritos na pedagogia da criança portadora de deficiência. Foi
recentemente que a Universidade Nova de Lisboa desenvolveu um programa
inovador que poderia ser uma mais-valia para o protótipo deste livro; cientistas
do
Centro de Investigação de Materiais da Faculdade de Ciências e Tecnologia
conseguiram produzir transístores em papel que poderão ser explorados em ecrãs
de papel, etiquetas e pacotes inteligentes. De facto, os transístores são a base
de
qualquer equipamento electrónico e estes investigadores implementaram a técnica
de os conceber em papel, o que se torna descartável, mais barato, e capaz de
abrir infinitas possibilidades de aplicação.
No caso de uma nova versão de “A Casa Azul ”, este dispositivo teria a
vantagem de baixar os custos de produção, bem como facilitar o manuseamento
do livro, que se tornaria menos espesso e, naturalmente, mais leve.
Segundo especialistas como Jonhston, N. (2000), é de notar que a existência
de muitos elementos (personagens/descrições) numa página pode causar
confusão à criança cega que descobre o livro por si mesma. Adicionalmente, todos
os elementos com características amovíveis deveriam encontrar-se devidamente
agregados ao livro, de forma a que a criança os pudesse manipular sem correr o
risco de os perder. Tenhamos em mente que é errado julgarmos que, por ser cega,
a criança não se diverte com um brinquedo tal como a criança normovisual. Os
brinquedos estimulam a fantasia e o lado imaginativo. Importante é dar à criança
brinquedos simples para que os possa manipular bem. Através da aprendizagem
com os brinquedos, a criança desperta outras curiosidades estimula a
criatividade e torna as suas mãos mais ágeis.
No que respeita às personagens de “A Casa Azul” e ao cenário que a envolve,
poder-se-ia, também à luz do que refere Johnston (2000), evidenciar uma
característica específica de uma personagem para representar o seu conceito;
Em posição frontal (o que auxilia a criança a um maior reconhecimento) a
casa azul poderia ser um pequeno quadrado cujo telhado seria um
triângulo. Os olhos – quadrados menores – seriam as janelas e a porta,
redonda, em forma de arco, para afigurar tristeza e em arco invertido para
caracterizar alegria (a porta deveria, segundo Johnston, ter uma maçaneta,
símbolo prático da sua representação). A expressão de tristeza da Casa
Azul poderia ser intensificada com o que Johnston sugere para a
representação das lágrimas, recorrendo a material como lantejoulas,
embora no nosso entender, fosse mais eficaz utilizar material como o
silicone, ou um plástico deslizante, que desse a ideia de humidade.
O cão Sebastião e a gata Valentina são, para a criança normovisual,
símbolos básicos do conceito de animais. Para que a criança cega os
pudesse apreender, o cão poderia ser caracterizado por quatro patas
compridas, uma cauda curta, uma cabeça redonda e orelhas longas e
caídas. Para as patas, cabeça, orelhas, dorso e cauda poder-se-ia utilizar
tecido felpudo sendo os olhos representados por botões. Para a gata
Valentina, poderiam utilizar-se os mesmos materiais, salientando-se as
orelhas pontiagudas, a cauda volumosa e, mais particularmente, os
bigodes, de corda ou plástico flexível.
As flores que decoram o jardim da casa azul são também elemento de
caracterização, podendo ser representadas por caules compridos, núcleos redondos
e pétalas definidas, elaborados em tecidos aveludados e aromatizados. (Talvez seja ainda necessário equacionar a possibilidade de aliar as texturas
e os aromas ao sabor de determinados elementos: no bosque é comum encontrarem-se bagas silvestres, logo, poderia ser
interessante incluir uma paleta de sabores (com textura semelhante aos batons comestíveis), embora seja
eventualmente uma valência menos praticável, visto que temos de considerar a perecividade destes produtos.)
Uma das características deste livro seria, como já referido, a incorporação
(para além de dispositivos de relevo, aromas e sabores) de uma versão áudio da
narrativa, o que implica uma abordagem às vozes das personagens. Em tradução,
estes elementos são designados de supra-segmentais, como explica Nord
([1988]2005:132):
It is important to distinguish supra segment features, in their function as
features of verbal text organizations, from the non verbal or para-verbal elements
accompanying a text, such as facial expressions, gestures, etc.
Com efeito, pelas ilustrações, a criança normovisual apercebe-se das
expressões faciais d’ “A Casa Azul” e dos aspectos corporais de personagens
como o Cão Sebastião e a Gata Valentina. A criança cega não tem acesso directo
à ilustração, mas através da exploração de elementos como as suas vozes, as
características não verbais e meramente visuais destas personagens poderão ser
traduzidas intersemioticamente através da atribuição, às suas vozes, dos seus
traços particulares (inicialmente acedidos pelo sentido da visão).
-
A Casa Azul – é uma personagem frágil, triste e insegura quanto à sua
condição física, e sendo “casa” do género feminino, pressupõe um tom de voz
feminino e delicado, com uma ligeira entoação infantil.
-
As flores – são as primeiras personagens de mediação, tentando destacar a
qualidade única da casa azul. São conselheiras e sororais. O seu tom de voz
deveria ser jovem e harmonioso.
-
O Sebastião – é um cão “grande e desengonçado”, mas cujas palavras nos
remetem para uma postura calma e fraterna. O seu tom de voz deveria ser de uma
“pessoa” mais velha e experiente, manifestando alguma condescendência.
-
A Valentina – é uma gata dócil e astuta, que serve de voz catártica do
conto. O seu timbre deveria ser sereno e maternal, de personagem sábia e
paciente, aliando assertividade e candura.
Se este livro seria bem recebido pela criança cega, só ela no-lo poderia
demonstrar. Como salienta Nord, ([1988] 2005:18) no que refere à materialização
do sentido do texto de chegada, esta depende do contexto da recepção (e,
conclui-se, das capacidades do receptor) mais do que do contexto de partida e da
intenção
do autor ou do tradutor.
O novo livro/texto de chegada ficará então completo após a leitura e comentários
do público-alvo.
ϟ
excerto de
TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:
“TRADUZIR A VISÃO NOUTROS SENTIDOS”
GUIÃO DE PRODUÇÃO DE LIVRO INFANTIL PARA CRIANÇAS CEGAS
autora: Sara Joana Branco dos Santos
Dissertação de Mestrado em Tradução, apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação da
Professora Doutora Isabel Pedro dos Santos e da Professora Doutora
Josélia Neves.
Coimbra, 2010
Δ
17.Dez.2017
publicado
por
MJA
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