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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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O Corpo Cego: o Verbo e a Intensificação da Deficiência

Eduardo de Paula Azzini & Ana Carolina Capellini Rigoni

Blind Vision - Chaitan (2014)
Blind Vision Chaitan (2014)

Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o papel da linguagem na educação corporal da pessoa cega, em particular. A partir de discussões em aulas de doutorado sobre como o verbo, a palavra falada pode influenciar e determinar o comportamento humano, as relações entre as pessoas e as diferentes formas de “ver” e estar no mundo, nos perguntamos como uma pessoa com deficiência visual se relaciona com os indivíduos a sua volta? Como vivenciam as práticas corporais? E como utilizam seu tempo disponível? Foi utilizada revisão de literatura e o tratamento dos textos encontrados de acordo com Severino (2002) através de leitura textual temática e interpretativa para criarmos uma abordagem mais adequada ao texto. Propomos uma aproximação teórica dos estudos de Jacques Gleyse (2006) em seu artigo “A carne e o verbo”, com a prática e vivência de atividades dirigidas a cegos de uma ONG da cidade de Piracicaba/SP. Como resultado, encontramos diferenças entre os corpos ditos “normais" e os que possuem alguma deficiência justamente pelo uso do verbo como condicionante das relações humanas, tanto no sentido de liberdade quanto nas privações sociais. A linguagem produzida acarreta diferenças significativas de convivência, comportamento, modo de viver e experimentar o mundo, tanto das pessoas com deficiência quanto daquelas que não possuem tal característica. Assim, esse exercício de reflexão sobre como a palavra, o verbo atua na carne, no corpo, pode nos levar a uma melhor maneira de incluir, estar e nos relacionar com a pessoa cega.


1. Introdução

Diversas pesquisas apontam para o papel da linguagem (oral) nas formas de educação do corpo. Desde que nascemos somos educados pelo e através do outro. A Antropologia vem demonstrando o modo como os processos de alteridade são os principais instrumentos de educação dos gostos e comportamentos. A este processo cultural, de produção e transmissão de conhecimento, atribuímos os diversos aspectos sociais e históricos que permeiam a vida humana.

Como afirma Soares (1) (2013), há um conjunto de pedagogias que visam a educação dos corpos. Dentre estas inúmeras pedagogias de transmissão cultural, a linguagem talvez seja a principal. É fundamentalmente através da linguagem oral que ocorre a mediação de conhecimentos.

Em outras palavras, toda relação de ensino-aprendizagem é, de alguma maneira, mediada por ela. É no seio das relações com o “outro” que formamos nossa identidade e nos constituímos como humanos. A linguagem e, neste caso, o verbo, no sentido atribuído pelo francês Jacques Gleyse (2) (2006), pode tanto nos expandir/libertar quanto nos limitar no que diz respeito a nossas atitudes em relação aos outros e ao mundo. Para Gleyse (2006), o verbo (a linguagem, a palavra, etc), educa a carne (o corpo). Foi, portanto, partindo dessas ideias e de nossa experiência profissional com pessoas com deficiência visual que estas reflexões tiveram início. Gleyse (2006) inicia seu argumento chamando a atenção para a estreita relação entre carne e verbo. Para ele, são as palavras pronunciadas ao longo da vida e os atos realizados que nos dizem o que devemos fazer e ser. São as palavras que incrustam na carne e no cérebro as ideias com as quais compactuamos, bem como aquelas que rejeitamos. Através de inúmeros exemplos, o autor vai demonstrando como, ao longo da história, fomos aprendendo, progressivamente, uma série de interditos corporais produzidos pelo verbo dominante. Interditos alimentares, sexuais, de vestimenta, comportamentais etc. Neste sentido, linguagens (verbos) diferentes constroem corpos também diferentes.

Foi diante destes argumentos que buscamos pensar nas diferenças entre os corpos ditos “normais” e dos corpos com deficiência. Neste caso, focamos, especificamente os “corpos cegos”. Para além das diferenças anatômicas/biológicas que marcam estes corpos, nos detivemos nas possíveis diferenças produzidas pelo “verbo” e, consequentemente, pela cultura.

Há, ainda, uma segunda questão norteadora destas reflexões, que diz respeito ao modo como percebemos o mundo e nos relacionamos com ele. Entendemos, como menciona Ingold (3) (2008), que aqueles que possuem visão desenvolvem um habitus que privilegia este sentido no que diz respeito a percepção da vida. Mas, sabemos que estas relações com o mundo podem ser desenvolvidas por outros sentidos e experiências. De todo modo, há uma linguagem que media nossas experiências, sejam elas pautadas na visão ou em outros sentidos. Tal linguagem é produto e produtora das diversas formas de viver e conhecer o mundo. Quando expressa de maneira oral/verbal, os produtos da linguagem são capazes de estruturar e dar sentido às diversas experiências. Quando denominamos alguém como “deficiente”, por exemplo, não estamos apenas definindo conceitos, mas enquadrando pessoas em categorias capazes de moldar sua identidade e seu comportamento diante do mundo. Basta analisarmos o próprio conceito de “deficiência” que, segundo o Ministério da Educação, é a perda ou anormalidade da estrutura ou função que resulta numa limitação ou incapacidade no desempenho normal (BRASIL4, 2002). A forma oral utilizada para definir deficiência já “marca”, por si só, a pessoa cujo conceito lhe foi direcionado. As palavras “anormalidade”, “limitação”, “incapacidade” são determinantes não só para classificar esse corpo diferente, como para estruturar sua postura (corporeidade) diante da vida.

Se atentarmos, no entanto, ao que fala Merleau Ponty5 (1971) compreenderemos que qualquer corpo deve experimentar o mundo à sua maneira. Para o autor, o corpo não é limitado pela falta dessa ou daquela estrutura. O corpo é dinâmico e como um organismo vivo em completa conexão com o mundo, busca maneiras de se (re) organizar de acordo com as especificidades de sua existência. Obviamente estes corpos são marcados pela diferença do ponto de vista de sua composição biológica. Tal diferença, no entanto, produz formas diferenciadas de convivência e relação da pessoa cega com os outros e reflete, especialmente, na forma como os outros (normais) se comportam diante destas pessoas.

Baseados em uma condição física que compõe a identidade da pessoa (neste caso a cegueira), criamos modos distintos de tratá-la. Em geral, nossa relação com as pessoas cegas é permeada por atitudes de cuidado excessivo, proteção e vigilância diferentes das que temos para com as pessoas ditas “normais”. Neste sentido, a linguagem oral por nós utilizada nas relações com esses “corpos” que não possuem o sentido da visão, certamente são distintos daqueles utilizados com outras pessoas. Foi partindo deste pressuposto que buscamos elaborar um exercício de reflexão sobre a forma como o verbo incide sobre a carne e os comportamentos das pessoas cegas.

Neste sentido, o objetivo deste trabalho foi refletir sobre o papel da linguagem na educação corporal da pessoa cega e como esta educação se reflete no aprendizado e envolvimento destes sujeitos com as práticas corporais, no tempo disponível. Ainda que a base do artigo seja teórica, é importante ressaltar que todas as reflexões aqui elaboradas são fruto, além de ampla revisão de literatura, de nossa experiência de mais de 12 anos, com alunos com deficiência visual 1.


2. A carne e o verbo

Em certas tribos da Melanésia, um antropólogo constatou um mito que visa a explicar que a comida do rei é mortal para qualquer outra pessoa. O objetivo parece ser proteger a linhagem real. Um jovem, infelizmente, comeu, à beira de um caminho, mangas caídas de uma cesta pertencente ao rei. Alguns dias mais tarde, ele soube que estas mangas eram destinadas ao rei e, ao tomar conhecimento deste fato, o jovem morre na semana seguinte. A lição parece evidente: quaisquer que sejam as causas da morte, esta foi provocada pela lógica da linguagem. Pouco importa se a linguagem sozinha matou o jovem, ou se foram produtos mortais que ele ingeriu sem saber; em todo caso, foram exatamente as palavras “a comida do rei é mortal para outra pessoa” que agiram sobre a carne, suprimindo-a (GLEYSE, 2006, p.5).

O fato, narrado por Gleyse (2006), demonstra claramente o modo como a “lógica da linguagem” é capaz de agir sobre o corpo e influenciar grupos e sociedades, simplesmente por sua tradição oral. No caso citado pelo autor, a morte do jovem foi prescrita pelo verbo. Outro exemplo deste tipo de influência está relacionado a interferência do verbo na aparência. Para o autor, “existe toda uma espécie de constrangimentos ligados à vestimenta, aos cabelos e aos pelos em que o verbo dita sua lei à carne” (GLEYSE, 2006, p.6).

O verbo, neste caso, não só é responsável por influenciar individualmente a construção da aparência, como está diretamente associado a formação de modelos corporais, que afetam a coletividade. Segundo Le Breton6 (2007), em qualquer lugar existe uma socialização corporal, ou seja, desde o nascimento a criança incorpora e reproduz os traços físicos da sociedade a qual pertence e desenvolve significados por meio das relações estabelecidas com seus pares sociais.

Esta regulação do corpo (não só através das palavras, mas principalmente por meio delas), é parte das consequências do “processo civilizador”, tal qual Norbert Elias7 (1994) nos esclarece.

Estes mecanismos de aprendizagem do corpo são, em geral, advindos das classes dominantes, que ditam ao povo formas de se vestir, de se comportar, de se alimentar etc.

Deste modo, todas as relações estabelecidas com o outro, com o meio ambiente e com as coisas são, antes de tudo, corporais. Todas as manifestações humanas são produzidas no e pelo corpo, pois como Le Breton (p.7, 2007) afirma, a existência é corporal: “Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator”.

Dessa forma, é possível afirmar que, apesar da singularidade da qual cada indivíduo se constitui, existe uma espécie de coerção social capaz de dirigir ações, movimentos e gostos, que implica diretamente na educação do corpo da sociedade. É a partir desta educação coletiva que surgem os padrões culturais ou, como denomina Le Breton (2007), o “ethos” de um grupo ou sociedade.

Como Mauss8 (2003) já afirmava, em seu clássico texto sobre as técnicas corporais, a criança aprende imitando o adulto. Assim também afirmou Bourdieu9 (2009), ao elaborar sua teoria do habitus. O autor cita, por exemplo, a forma como um filho se torna extremamente parecido com o pai, em termos de gestualidade, sem que isto tenha se dado de maneira intencional ou consciente. Se no caso das pessoas ditas “normais”, o sentido da visão é responsável, em grande parte, por estes processos de aprendizagem, a educação corporal da pessoa cega se constrói a partir de modos distintos. O fato de não existir uma relação na qual o cego observa o outro não significa que ele não aprenda na interação com ele. Esta interação, ainda que seja mediada pelo verbo, é eminentemente corporal, construída a partir da forma como percebemos o outro e sua presença no mundo.

Em nossa sociedade, historicamente apegada às características biológicas, na qual somos submetidos a concepções de corpo extremamente naturalizadas e padronizadas, as pessoas que apresentam qualquer diferença do ponto de vista anatômico, são classificadas como deficientes. Neste caso, a deficiência é explicada e organizada numa lógica “naturalista”, na qual atribuímos à pessoa uma identidade pautada exclusivamente em características físicas.

Para Porto10 (2005), este modo de compreender o cego, focando em seus aspectos biológicos, é uma forma reducionista de situá-lo no mundo.

Se, do ponto de vista da produção de conhecimento a Antropologia já superou suas teorias evolucionistas, provando que as diferenças físicas estão longe de serem suficientes e válidas para conhecermos e identificarmos as pessoas, do ponto de vista do senso comum, são justamente as características físicas que “definem” o que é normal e o que não é. Deste modo, pautados numa visão estritamente biológica, transformamos as diferenças físicas em anormalidade. Num mundo onde a “normalidade” é definida e compreendida como algo padronizado, um corpo cego é um corpo deficiente e não apenas diferente. Numa sociedade onde a concepção de corpo assume formas preestabelecidas, um corpo mutilado ou que desde seu nascimento apresenta características fora dos “padrões” é facilmente classificado como limitado e inferior.

Azzini11 (2007) já mencionava a existência de um confronto entre os conceitos de normalidade e deficiência, evidenciando que estes conceitos estão cada vez mais obsoletos e ultrapassados no que diz respeito a classificação dos corpos. Atrelar as diferenças físicas a uma noção de deficiência é hierarquizar os seres humanos e reduzir sua enorme capacidade de se adaptar à vida e ao mundo, nas mais diversas condições existenciais. Certamente, como anuncia Oliver Sacks, no filme “Janela da Alma”, podemos ver sem os olhos. Outros sentidos nos informam e nos permitem formular imagens sobre o mundo em que vivemos.

O ato de ver e de olhar não se limita a olhar para fora, não se limita a olhar o visível, mas também o invisível. De certa forma, é o que chamamos de imaginação. [...] O que vemos é constantemente modificado por nosso conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções, pela cultura, pelas teorias científicas recentes.

Sugerimos que os olhos são passivos, que as coisas apenas entram, mas a alma e a imaginação também saem. Assim, posso ver com os olhos da mente” (JANELA12, 2002). Na mesma linha de pensamento, Ingold (2008) critica a “obsessão ocidental pelo olho”.

Para ele, atribuir uma noção de dominância da visão, classificando-a como o sentido superior aos demais é característica de uma ciência positivista e, portanto, deve ser superada. Ao esboçar suas ideias sobre uma “Antropologia dos Sentidos”, o mesmo autor defende as diversas formas de “estar no mundo” e como a corporeidade contempla uma complexidade de experiências perceptivas e de vida. Neste caso, atribuir à pessoa cega uma deficiência corporal é considerar sua forma de “estar no mundo” não somente diferente, mas prejudicada por sua corporeidade. É como se organizássemos a experiência corporal a partir de esferas divididas, na qual a visão tem função primordial em relação aos outros sentidos.

Em nossa experiência profissional, ministrando aulas de Educação Física a grupos de pessoas cegas, presenciamos, cotidianamente, exemplos que desconstroem a ideia de que a cegueira é uma incapacidade. Ao observarmos os alunos, percebemos como interagem pautados em outros sentidos, como é o caso, por exemplo, dos alunos que reconhecem quem está chegando, apenas pelo som produzido pela bengala ou, ainda, pelo modo como eles identificam o estado emocional de seus colegas imediatamente ao se cumprimentarem, apenas pelo tom de voz ou pela maneira como falam. O fato de não verem a expressão facial do outro não incapacita as percepções e relações.

Se, como afirma Mauss (2003), o corpo é tanto matéria prima como ferramenta da cultura, é preciso olharmos para ele a partir de uma noção de totalidade, sem hierarquizar as partes. Desafio dos mais difíceis numa sociedade cada vez mais obcecada pela aparência.

Como afirma Le Breton (2007), há um processo de aprimoramento do corpo, nunca antes visto e a possibilidade de aperfeiçoar e prolongar a vida gera um impacto sem sem precedentes. Uma vez que extrapolamos os limites do corpo “natural” não é de se estranhar que a busca por corpos perfeitos esteja presente no cotidiano da maioria das pessoas. Os seres humanos têm superado seus limites físicos a cada dia, caminhando para a maximização das funções corporais, através da biotecnologia. As diversas transformações possíveis visam o alcance da beleza, da otimização do desempenho, da longevidade e do poder. Diante disso, hierarquizamos os corpos/pessoas, atribuindo sucesso aos que atingem os padrões estabelecidos e inferioridade aos que nele não se encaixam.

Ao fazermos isso, vamos nos habituando a olhar para o “outro” (para o diferente) como alguém não somente diferente, mas desigual, produzindo uma hierarquização entre os corpos, segundo a qual o diferente não representa apenas a diversidade, mas inferioridade de um individuo perante os demais. Deste ponto de vista, este alguém desigual e, portanto, inferior em suas capacidades corporais, precisaria de tratamento diferenciado (especial). Assim, vamos condicionando a forma como tratamos as pessoas “deficientes” e, principalmente, a forma como dirigimos nossas palavras a elas. Há palavras (verbalizações) específicas, distintas, que contribuem, ainda mais, para uma educação limitada e limitadora, que se incrusta na carne (no corpo) da pessoa intensificando aquilo que ela já reconhece como uma deficiência.

Obviamente não podemos justificar a limitação corporal apenas pelo “verbo”, já que a linguagem verbal é apenas uma das formas de comunicação do ser humano. Todavia, a construção da linguagem afeta a carne e atua sobre o corpo, consagrando estereótipos sociais.

Como afirma Gleyse (2006): O corpo, ou seja, a carne é, nesse caso, considerado uma espécie de metáfora ou anamorfose do mundo.

Porém, mais uma vez, ainda, é claramente o verbo que circula no espaço social, que formaliza o sistema de interdição ou de prescrição, o qual o corpo, após uma longa aprendizagem generacional e uma rápida aprendizagem individual na educação infantil, torna seu.

Nós mesmos, ao longo de nossa experiência profissional, temos constatado diversos exemplos que reiteram a citação acima. Temos, ao longo destes anos, convivido com pessoas diversas e com os mais variados níveis de comprometimento visual. Trabalhamos com aqueles que nasceram cegos (cegueira congênita) e com aqueles que se tornaram cegos depois de algum tempo (cegueira adquirida); Dentre eles ainda temos aqueles que são classificados como completamente cegos e aqueles que possuem baixa visão. Atendemos crianças, jovens e adultos de diferentes classes sociais. As experiências destes alunos são muito diversas e em cada um deles podemos perceber as formas como o verbo atua na carne de forma diferenciada.


2.1 O verbo e as limitações impostas às práticas corporais

Alguns casos demonstram muito bem o modo como as palavras ouvidas pelos alunos com algum tipo de deficiência visual, ao longo da vida, educaram seus corpos e movimentos. É óbvio que a própria experiência de viver e de conhecer o mundo sem o sentido da visão, por si só educa corpos e gestos de maneira particular, no entanto, a forma como as pessoas são tratadas reflete diretamente na educação do corpo “cego”.

Podemos citar o exemplo de um de nossos exalunos, já adulto e muito “adaptado” ao uso da bengala nos locais que conhecia. Ocorre que ele estava iniciando seu processo de adaptação em algo novo: pegar o ônibus para ir até a nossa instituição. O fato é que sua frequência não durou muito e ao encontrá-lo, algum tempo depois, ele nos contou o que havia acontecido. Logo em uma das primeiras vezes em que se encontrava sozinho, aguardando o ônibus num terminal urbano, um cidadão se aproximou e lhe perguntou o que ele estava fazendo lá, já que era muito perigoso para um cego estar sozinho num lugar como aquele. O homem ainda conclui dizendo-lhe que o lugar dele não era ali, mas em casa, que é um lugar mais seguro para pessoas (deficientes) como ele. Talvez este não tenha sido o único motivo pelo qual esse aluno desistiu de frequentar nossa instituição, mas ele afirmava que justamente depois disso nunca mais se sentiu a vontade para estar sozinho no terminal de ônibus.

É possível partir do pressuposto de que, talvez, justamente as palavras e, é claro, os sentidos – culturalmente construídos e nela expressados, marcaram nosso aluno e, naquele momento, intensificaram (simbolicamente) sua deficiência. Podemos arriscar e dizer que as limitações de deslocamento incorporadas por nosso aluno foram impostas muito mais pela atitude do cidadão que lhe abordou do que por sua deficiência visual. Tal limitação reduziu uma série de experiências que poderiam ser vivenciadas por nosso aluno, incluindo aquelas relativas as práticas corporais e ao lazer, como era o caso das atividades oferecidas pela nossa instituição.

Outro exemplo aconteceu durante um passeio com nossos alunos no aquário da cidade.

Os alunos foram todos acompanhados pelas mães e por nós, professores. Neste dia, uma das mães, sem esconder que se sentia contrariada, disse em tom muito alto que não entendia o que estavam fazendo ali, já que seu filho não enxergava. A própria mãe assumira uma postura limitadora em relação às experiências do filho. Como se “conhecer” fosse algo definido apenas pela visão. Não é difícil imaginar que uma mãe com tal opinião aja de forma semelhante em outras situações, atribuindo ao filho um papel limitado. Opiniões como essa, cotidianamente verbalizadas, educam o filho e o inserem no lugar da deficiência. É preciso considerar que a relação deste aluno com o mundo se dá através de suas percepções (mesmo não sendo visuais), ou seja, através da união dos sentidos que formam sua corporeidade. É a partir de experiências de totalidade, que o ser humano percebe e apreende o mundo.

No exemplo dado, fica clara a dificuldade enfrentada pela pessoa com deficiência, que além da adaptação cotidiana exigida pela própria condição física, num mundo todo organizado para pessoas que enxergam, há uma forma específica de tratamento a ela direcionada, mediada por uma linguagem que a limita e até a incapacita para diversas atividades. Neste caso, o verbo intensifica um sentimento de “falta”, de “déficit”, que dificulta seu sentimento de pertencimento àquele espaço social.

Le Breton (2007) já analisa o que ele denomina de uma disposição pautada nos aspectos biológicos que produz e reproduz determinados padrões. O autor critica esta concepção que reduz o corpo apenas a sua porção biológica e, com isso, justifica uma condição que é, antes de tudo, social. Essas concepções biologizadas explicam as diversas barreiras que a pessoa com deficiência encontra em suas relações com o mundo, já que, quando se coloca a prova o destino de um corpo apenas pelo viés biológico é toda a corporeidade que se coloca em cheque (LE BRETON, 2007). Neste caso, o que justamente se coloca à prova é a normalidade ou anormalidade de um corpo.

A fenomenologia de Merleau-Ponty pode nos ajudar a refletir sobre os padrões de normalidade e as questões que emergem desta classificação. O autor faz a seguinte reflexão: Ver é ter cores, ou luzes, ouvir é ter sons, sentir é ter qualidades, e, para saber o que é sentir, não bastaria ter visto o vermelho ou ouvido um lá? – o vermelho e o verde não são sensações, são sensibilidades, e a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto. (MERLEAU-PONTY, 1971: p.23).

Ao afirmar que as qualidades pertencem aos objetos e não são, em si, uma propriedade da consciência, o autor pontua a diferença entre visão e percepção. Se a qualidade do objeto é objetiva, as maneiras como as percebemos varia de acordo com nossas formas de estar no mundo. A percepção antecede e procede ao concreto. Isto desvincula a cegueira de um conceito relacionado a incapacidade e a coloca na chave da diversidade. Se o verbo marca os corpos, como Gleyse (2006) afirma, esta compreensão é significativa do ponto de vista da dignidade e igualdade humana.

Perceberemos, neste sentido, que limitante não é falta ou perda de um sentido (visão), mas o modo como desenvolvemos nossas capacidades de percepção. Pensemos no seguinte exemplo: quando uma pessoa acostumada a perceber o mundo através do sentido da visão – e, consequentemente limitada no desenvolvimento dos outros modos de percepção-, entra numa sala completamente escura, ela mal consegue se mover. O sentimento de insegurança que a invade é determinado não por uma incapacidade de ver, mas por uma inabilidade de usar os outros sentidos, tão bem quanto usa o da visão. Uma pessoa cega, por outro lado, faz isso muito melhor.

Neste sentido, ambos darão um jeito de se mover pelo espaço, de maneiras diferentes.

Outro exemplo para pensarmos pode ser o de alguns camponeses que caçam para ter alimento e à medida que entram na mata fechada e escura suas visões ficam prejudicadas. Podemos ir mais longe e pensar que, para não espantarem a caça, também não podem falar uns com os outros. Momentaneamente essas pessoas se tornam "deficientes visuais" e sentem sua forma de linguagem mais corriqueira – a verbal – ser praticamente inutilizada. Com o tempo, no entanto, esta experiência exige que os camponeses aprendam a se comunicar de outras maneiras, a partir de outros sinais mais adequados e, acima de tudo, que eles desenvolvam formas de localização e movimentação independentes da visão. Ou seja, neste exemplo, os camponeses precisam se adaptar através de sentidos que eles não utilizavam tão bem até o momento.

A partir desta necessidade, no entanto, eles passam a “treinar” estes outros sentidos ou, pelo menos, formas diferentes de utilizá-los. A momentânea limitação da visão e da fala, longe de incapacitar estas pessoas, produz novas formas de vivenciar a experiência e, fundamentalmente, novas formas de experimentar o mundo, via corporeidade.

Os caçadores não perdem o status social de “normalidade”, uma vez que não há depreciação do corpo nem classificações padronizadas. Eles não são identificados como anormais ou incapazes apesar de assim estarem, momentaneamente. Se a breve cegueira dos caçadores durante uma caça noturna não torna a experiência da caçada incompleta, porque a cegueira permanente de uma pessoa tornaria sua experiência no mundo incompleta? O poder do “verbo”, que exerce influência direta na sociedade, influencia um tipo de educação sobre o corpo, e pode corroborar com a ideia equivocada de que o corpo considerado deficiente é aquele incompleto, fragilizado, o qual precisa que tudo seja meticulosamente preparado para que seu caminho seja o menos árduo possível. Planeja-se de forma “especial” todas as atividades, que são vistas como mais difíceis para as pessoas cegas do que para as outras. A mesma dificuldade atribuída a todos os passos da pessoa cega serve como justificativa para sua não participação social.

Quando uma mãe adverte seu filho dizendo “cuidado, você vai se machucar”, ela pensa, de fato, nos limites deste cuidado? Cuidados que, obviamente, são necessários, mas que vindo de uma mãe super-protetora, por exemplo, podem transformar o filho numa criança e num adulto inseguro.

Ao incorporarmos a ideia de que uma pessoa com algum tipo de deficiência é incapaz e assim procedermos através da forma como dialogamos com ela, não estamos apenas exercendo nossos cuidados, mas, também, limitando algumas de suas possibilidades. Não estamos, com isso, negando as diferentes condições de “estar no mundo” e as diferentes necessidades de cuidado, mas nos questionando sobre até que ponto nossas palavras (o verbo) estão preservando ou limitando o outro. Até que ponto uma palavra nossa pode “intensificar” a deficiência? Quando falo a um cego que ele não deveria estar sozinho num terminal de ônibus, não estou “cuidando” dele, mas colocando-o num determinado lugar o qual eu acredito que ele deva ocupar – e este lugar não é o mesmo que o meu.

Ainda em relação as limitações, Marcellino13 (2012) aponta para as inúmeras barreiras sociais do lazer, citando as de classe, de nível de formação, de faixa etária, de gênero e outras.

Como bem aponta o autor, uma das principais barreiras do lazer é aquela que se refere ao acesso dos espaços e equipamentos. Ao analisarmos os espaços de lazer nas cidades brasileiras, por exemplo, podemos perceber o quanto ainda estamos distantes de um planejamento que leve em conta a acessibilidade 2 de todos. Azzini 14 (2014) constatou, em seus estudos sobre acessibilidade na cidade de Piracicaba – SP, que existe uma distância enorme entre o estabelecido pela legislação vigente e a realidade dos espaços públicos de lazer. O autor classificou as áreas de lazer pesquisadas como incompletas em termos de acessibilidade.

Neste sentido, a pessoa cega, além de não conseguir chegar ao espaço de lazer, não consegue vivenciar o lazer de forma independente e autônoma. Mesmo que ela esteja disposta ela nem sempre é estimulada e, de fato, inserida nos locais propícios às práticas corporais e de lazer, que, em sua maioria, não possui profissionais preparados e nem equipamentos acessíveis, confirmando a precariedade de políticas, capazes de educar a população para lidar com as diferenças.

Além destas questões é preciso levar em conta outro aspecto que dificulta o acesso às práticas corporais das pessoas cegas: o tempo. Munster 15 (2004) entende que o tempo da pessoa com alguma deficiência é diferente de outras parcelas da população, pois, por estarem, em grande parte, afastadas do mercado de trabalho, são vistas como “improdutivas” e, portanto, necessitadas de algum tipo de “reabilitação”. Este problema que emerge da lógica capitalista, transforma a noção de tempo disponível da pessoa que não possui uma ocupação trabalhista, uma vez que, de acordo com os estudos do lazer (MARCELLINO, 2012), considera-se tempo disponível somente aquele que foi conquistado fora do tempo de trabalho e das outras obrigações sociais, familiares e religiosas. Dessa forma, as pessoas com algum tipo de deficiência, que em sua maioria não estão trabalhando, são compreendidas como “reabilitáveis”. O termo reabilitáveis, neste caso, se refere a estar apto/(re)habilitado para produzir, para trabalhar, sugerindo, desta forma, que somente assim passarão a ter o direito de desfrutar das práticas realizadas no tempo disponível.

Neste sentido, ficam evidentes que, se “acessibilidade” e “tempo” são barreiras ao acesso às práticas de lazer da sociedade em geral, elas se intensificam quando se trata de pessoas cegas. Fato é que isto parece acontecer muito mais por conta das barreiras simbólicas (estabelecidas pela linguagem e comportamento) do que pelas “barreiras físicas/biológicas” deste público. Neste sentido, não basta que a sociedade desenvolva cada vez mais maneiras de “incluir” as pessoas com deficiência como, por exemplo, através do Braille, da língua de sinais, dos ônibus adaptados, se não refletirmos sobre o modo como nossos comportamentos e palavras têm sido excludentes. Ao mesmo tempo em que desenvolvemos tecnologias potencialmente includentes, ainda somos falhos em termos de educação. As relações humanas se dão de forma excludente e pouco estimuladora no que diz respeito a oportunidade de experimentar o mundo de forma igualitária. Não é só da falta de visão que padece uma pessoa cega, mas invariavelmente da falta de experiências relacionadas a outras partes do corpo, ao movimento e às práticas corporais realizadas no tempo disponível.


3. Considerações finais

Magnani, Silva e Teixeira16 (2008), num estudo sobre a surdez, mas que serve igualmente para falarmos da cegueira, nos lembram que, se na área das ciências da saúde estas condições são predominantemente encaradas como uma falta, nas novas configurações das ciências humanas e sociais elas são compreendidas sob o ângulo de uma marca distintiva, geradora de formas singulares de comunicação, relações, valores, práticas e comportamentos específicos. Dito de outra forma, todos os seres humanos possuem modos singulares de estar no mundo. As habilidades e aptidões para as mais diversas atividades são aprendidas ao longo de nossas experiências, transformando-se lentamente em habitus. Por isso, o termo “deficiente” é ruim enquanto expressão da linguagem. Dele derivam palavras (ou “verbos”, como sugere Gleyse) relacionadas às ideias de incapacidade, falta, incompletude, limitação. Verbos estes que educam os corpos e definem experiências e comportamentos.

Portanto, ao constatarmos, a partir de nossa prática profissional, o modo como as pessoas com deficiência visual são limitadas em suas formas de experimentar, aprender e usufruir das práticas corporais no contexto do lazer e o quanto isso se deve, em partes, à forma como nos comunicamos com elas e sobre elas, compreendemos a necessidade de refletir sobre as questões aqui colocadas.

Se, por um lado, advogamos por um tratamento igualitário para todas as pessoas, independentemente de suas diferenças biológicas, por outro lado, acreditamos que é preciso considerar as singularidades de cada um e suas formas de “estar no mundo”. Cada pessoa expressa sua corporeidade e suas relações com o mundo de maneira ímpar. De acordo com Marleau Ponty (1971), estar presente no espaço e no tempo é mais do que ter um corpo que se movimenta. É sentir, se relacionar com esse mundo, interagir com outros corpos e com seu próprio corpo. Estar vivo é experimentar e explorar todas e quaisquer possibilidades do corpo, fazendo dele um objeto único e capaz de se organizar e se adaptar. Como diria Ingold (2008), estar vivo é fundamentar nossa existência nos fluxos de relações com os outros e com o mundo. Por isso é preciso nos conscientizarmos de que o modo como elaboramos nossa linguagem e a compartilhamos com os outros compõe e altera significativamente este fluxo.


4. Referências Bibliográficas

1. SOARES CL. Dialogo Sem Fronteira: pedagogia e educação do corpo. Youtube, 21 jun. 2013. https://www.youtube.com/watch?v=iWsUYs9Z0Mw. Acesso em: 05.05.2018.
2. GLEYSE, J. A carne e o verbo: In: Coloquio Internacional de Pesquisa. Campinas: FEF/UNICAMP; 2006.
3. INGOLD, T. Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano. Ponto Urbe Revista do núcleo de antropologia urbana, São Paulo, USP; 2008.
4. BRASIL. Deficiente Visual: Educação e Reabilitação: In: Programa de Apoio a Educação de Deficientes visuais. Brasilia: MEC/SEESP; 2002.
5. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.
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9. BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 2009.
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11. AZZINI, EP. (Monografia). Corporeidade entre deficiência e normalidade. Faculdade de Ciências e Saúde, Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba. 2007.
12. JANELA da Alma. Produção de Flávio R. Tambellini. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes; 2002. DVD (73min.).
13. MARCELLINO, NC. Estudos do Lazer: uma introdução. Campinas: Autores Associados, 2012.
14. AZZINI, EP. (Dissertação). Espaços e Equipamentos Públicos de Lazer esportivo: acessibilidade da pessoa com deficiência - o caso de Piracicaba-SP. Faculdade de Ciências e Saúde, Universidade Metodista de Piracicaba: Piracicaba, 2014.
15. MUNSTER, MAV. Atividades Recreativas e Deficiência: perspectivas para a inclusão. In: SCHWARTZ, GM. Atividades Recreativas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004.
16. MANGANI, JGC., SILVA, CAA.,TEIXEIRA, JM. As festas juninas no calendário de lazer de jovens surdos na cidade de São Paulo. In: LUCENA, CT., CAMPOS, MCS. Questões ambientais e sociabilidades. São Paulo: Humanitas, Fapesp, 2008
17. SASSAKI RK. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA;2006.


Notas

1 Relatos de professor de Educação Física em uma ONG que atende pessoas com deficiência visual na cidade de Piracicaba -SP, desde 2006.

2 Segundo, Sassaki (17) (2006) o termo acessibilidade não se restringe ao aspecto arquitetônico e ao local físico, mas também, a outras dimensões como: comunicacional, metodológica, instrumental, programática e atitudinal, ou seja, o ambiente deve ser receptivo para qualquer pessoa, com ou sem deficiência, oferecendo possibilidade de autonomia e independência.
 


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Eduardo de Paula Azzini | Universidade Metodista de Piracicaba.
Ana Carolina Capellini Rigoni | Universidade Federal do Espírito Santo
Email: duazzini@uol.com.br
Saúde & TransformaçãoSocial UFSC
Florianópolis, v.10, n.1/2/3, p.44-53, 2019.
http://incubadora.periodicos.ufsc.br/

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15.Jan.2022
Maria José Alegre