

imagem: Cego com bastão -
pintura da escola de Francesco Villamena (séc. XVI)
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Introdução: Este trabalho apresenta resultados de um estudo que objetivou
desvelar a influência da percepção plantar na orientação e mobilidade de um
estudante cego. A fisiologia da percepção plantar se apresenta por sistemas
proprioceptivos, protagonizados por neuroreceptores, como os fusos musculares.
| Metodologia: Tratou‐se de uma abordagem qualitativa, sob perspectiva
teórico‐metodológica do Estudo de Caso com inspiração
fenomenológica‐existencial. O sujeito foi um estudante cego de uma escola
pública em Vitória (ES), Brasil. | Resultados: Os resultados mostraram que quando com pés descalços, o estudante
percebeu e distinguiu as diferentes texturas dos pisos, entretanto, quando da
utilização de calçados, houve significativa perda na percepção plantar.
| Conclusões: Considerando as limitações deste estudo, as conclusões nos
direcionaram para o entendimento de que a percepção plantar, se traduz, para o
estudante cego, como fator de significativa importância para auxiliar na sua
própria orientação e mobilidade.
Introdução
Diante das configurações sociais e políticas brasileiras, que se apresentam no
cotidiano da atualidade, é notória a presença de tensões relacionadas às mais
diversas áreas do conhecimento. Os meios científicos e acadêmicos, frente às
tensões, cada vez mais, se debruçam sobre estudos que possam de alguma maneira,
considerar possibilidades para viabilizar melhores condições em todos os
âmbitos.
Na área da Educação, diversos temas têm sido abordados, dentre esses, estão
àqueles relacionados à educação e inclusão de uma diversidade de estudantes
presentes nos ambientes educacionais comuns, sobretudo daqueles estudantes que
são considerados como público‐alvo da Educação Especial. Em assim sendo, a
instituição escolar não pode se furtar da responsabilidade de receber os
estudantes em uma ambiência educacional focada na garantia dos direitos de
acesso e permanência desses sujeitos na escola.
Nesse trilho, se faz de fundamental importância, pensar o estudante cego
público‐alvo da educação especial como sujeito de direitos e possibilidades.
Faz‐se necessário, um olhar diferenciado que considere a pluralidade de valores
relacionais que emergem da convivência desses sujeitos com seus colegas,
professores e os objetos de conhecimento. As escolas são espaços comuns para
todos e possuem significativa importância para a formação do ser humano, na sua
relação com o outro e com o mundo.
A motivação por este estudo se deu pela presença provocadora de crianças cegas
nas aulas de educação física em escolas públicas do município de Vitória (ES).
Na práxis pedagógica dos autores, professor da área e orientador acadêmico,
desvela‐se a pertinência de mais estudos, donde se descubra o corpo do estudante
cego, frente a si mesmo, ao outro e aos objetos do mundo.
Justificamos nosso interesse por estudar questões relacionadas à percepção
plantar do estudante cego, por acreditarmos ser a temática, presente e relevante
para a área de educação física, sobretudo nos processos de ensino e aprendizagem
da orientação e mobilidade de estudantes cegos que se encontram regularmente
matriculados no ensino público comum da rede municipal da cidade de Vitória (ES)
Brasil.
Santos (2014) destaca que a desorientação, ou a orientação inadequada, pode
prejudicar a mobilidade da pessoa cega, e isso faz com que muitas pessoas
internalizem um sentimento de ser “desajeitadas”.
Já Goffman (1988) estudando a produção do estigma, verifica que a sociedade
maioral tem preconceitos contra o cego, preconizando prescrições
comportamentais, de impacto no corpo.
Porto (2002) desvela que os sentidos do ver e viver, nos leva à procura de
apreensões e sensações do ver e não ver (ser cego) com os “olhos”, indo também
mais além, o ver e viver com o corpo.
Em um estudo (Nunes e Lomônaco, 2010), vêm nos falar que, tanto na literatura,
quanto na mídia, as pessoas cegas, frequentemente, são tidas como especiais e
com características profundamente diferenciadas das outras. Esse preconceito
impede que se perceba o cego como um ser de possibilidades.
Merleau‐Ponty valoriza questões relacionadas à percepção e à interdependencia
que existe entre o homem e o mundo em que vive. Nessa direção, o corpo é para o
autor, o centro de toda percepção humana, onde todo o sentir se dá de uma forma
composta por várias e diferentes dimensões. Em seu livro “Fenomenologia da
percepção “, o autor aborda temas e conceitos como, o corpo próprio, o mundo
percebido e o ser‐para‐si e o ser‐no‐mundo, trazendo a lume a percepção. De acordo com o autor, quando o ser humano se depara com algo que se apresenta
diante de sua consciência, primeiro nota e percebe esse objeto em total harmonia
com a sua forma, a partir de sua consciência perceptiva, a partir desta vivência
relacional, surgem outras relações de sentido, como por exemplo, a corporeidade,
que é, para o autor, a relação do sujeito com seu próprio corpo.
A teoria de Merleau‐Ponty nos leva a uma compreensão de que para entender a
percepção humana se faz necessário aproximar de parâmetros fenomênicos que
possibilitam um melhor conhecimento sobre os elementos da percepção. Nessa
perspectiva, nos diz que o conhecimento do fenômeno é gerado em torno do próprio
fenômeno. Para Merleau‐Ponty, o ser humano é o centro da discussão. O
conhecimento nasce e faz‐se sensível em sua corporeidade.
Objetivos
Este estudo objetivou desvelar a influência da percepção plantar na orientação e
mobilidade de um estudante cego, na ambiência escolar, e em vias públicas da
cidade de Vitória, (ES) – Brasil.
Abordagem Metodológica
Tratou‐se de uma abordagem qualitativa, sob a perspectiva teórico‐metodológica
do estudo de Caso com inspiração fenomenológica‐existencial. O sujeito foi um
estudante cego de 14 anos de idade matriculado na oitava série da rede de
educação básica do ensino público municipal da cidade de Vitória (ES), Brasil.
Para recolha de dados, utilizamos entrevistas e diário de campo. Para desvelar a
percepção plantar do cego, observou‐se o deslocamento em marcha, por diferentes
pisos, inclusive fora da escola.
A fisiologia da percepção plantar se apresenta por sistemas proprioceptivos,
protagonizados por neuroreceptores, como os fusos musculares. Estes, por sua
vez, por meio de impulsos nervosos, possibilitam a transmissão de informações de
partes do corpo, neste caso dos pés, aos órgãos sensoriais localizados nas
articulações e em suas proximidades. Estas informações nervosas são sintetizadas
no córtex, e assim possibilitam uma percepção da espacialidade do corpo próprio.
A fenomenologia tem sido utilizada para investigar fenômenos relacionados aos
modos de ser do humano nas mais variadas perspectivas e aspectos de sua vida
relacional.
Na tentativa de nos apropriarmos dos espaços e tempos da escola nas aulas de
educação física, organizamos nossa recolha de dados de modo tal, que nos
possibilitou desde o início, a obtenção de informações, que se mostraram de
significativa importância nas análises e discussões.
O desenvolvimento de nosso trabalho de campo se deu no turno vespertino, com
periodicidade semanal e frequência de três dias por semana ‐ segundas‐feiras,
terças‐feiras e quintas‐feiras. Nas terças e quintas‐feiras o professor
ministrava aulas na turma onde estava matriculado o estudante cego. Observamos
trinta e duas (32) aulas de educação física. Ao final de cada dia na escola,
após o encerramento das aulas, acompanhávamos o estudante cego pelas ruas da
cidade no caminho compreendido entre a escola e a residência do estudante. As
segundas‐feiras eram reservadas para acompanhar o planejamento semanal do
professor. Nestes dias, tivemos momentos reservados para um contato mais próximo
com o professor regente de educação física. Esses contatos nos possibilitaram
refletir mais detidamente sobre fatos vividos pelo estudante cego, nas aulas
educação física, a parir da interpretação do professor em seus planejamentos.
No Brasil, legislações garantem o acesso e a permanência de estudantes
considerados como público‐alvo da educação especial nas escolas públicas de todo
o território nacional. Na cidade de Vitória que é capital do Espírito Santo,
essa realidade não se difere. Em se tratando, especificamente de estudantes com deficiência visual, nos anos
de 2012, 2013 e 2014, a rede de ensino público do munícipio de Vitória,
registrou um quantitativo de matrículas de acordo com a tabela abaixo.
Matrículas por
ano
|
Matrículas de
Estudantes com Deficiência Visual no ano de 2012
|
Matrículas de
Estudantes com Deficiência Visual no ano de 2013
|
Matrículas
de Estudantes com Deficiência Visual no ano de 2014
|
Seguimento
|
Estudantes baixa visão em
2012
|
Estudantes cegos em 2012
|
Estudantes baixa visão em
2013
|
Estudantes cegos em 2013
|
Estudantes baixa visão em
2014
|
Estudantes cegos em 2014
|
Educação
Infantil
|
9
|
2
|
12
|
1
|
19
|
1
|
Ensino
Fundamental
|
70
|
7
|
35
|
6
|
73
|
11
|
Análise e discussão dos dados
A observação do fenômeno se dentro do ambiente escolar e fora da escola. A
análise dos dados se deu numa perspectiva fenomenológica donde se procurou
resgatar os modos de ser do cego, a partir da percepção plantar e de sua
corporeidade, durante aulas de educação física e caminhadas por ruas e calçadas
da cidade. Observaram‐se tanto as percepções do estudante cego em seu
deslocamento em marcha, quanto o número de passos por minuto em diferentes pisos
e solos, tais como areia, pavimentação em cimento, ladrilhos em alto relevo e
asfalto, como também pisos emborrachados em alto relevo, que têm como objetivo
servir de “alerta” para pessoas cegas.
O estudante cego quando na escola, se mostrou experiente nos seus modos de ser.
Caminhava com segurança pelos corredores da escola sem o auxílio da bengala. Na
quadra poliesportiva, durante as aulas de educação física, o estudante cego se
deslocava com cuidado, percebendo o piso liso com cautela durante as atividades
da aula.
Em uma atividade de futebol com bola de guizos, o estudante em sua corporeidade,
com muita atenção escutava o som produzido pelo rolar da bola. De pés descalços,
utilizando sua percepção plantar e guiado pelo som produzido pela bola o
estudante caminhava pela quadra em direção à bola até percebê‐la com a planta de
seus pés, para então dar seguimento ao jogo, conduzindo e chutando a bola em
direção ao gol.
Em outra aula, que teve como objetivo trabalhar com os estudantes, modalidades
do atletismo, o estudante cego se lançava em direção às barreiras físicas
distribuídas pela quadra da escola, para transpô‐las. Ao se aproximar de um
conjunto de tatames organizados par exercícios de rolamentos, o estudante cego,
utilizando sua percepção plantar, tomava ciência da textura e do volume
representados pelos tatames, para só então se lançar em direção ao piso
emborrachado para realizar o exercício de rolamento.
O estudante cego em sua corporeidade demonstrava segurança ao desempenhar a
atividade com admissível sentimento de conquista e de se sentir incluído na
escola, na aula de educação física e na atividade proposta, percebíamos que se
lançava então ao desconhecido e pela sua corporeidade, se mostrava ele mesmo no
mundo.
Para além dos limites da escola, o estudante cego se embrenhava pelos caminhos
da cidade em direção à sua residência. Nas calçadas e ruas da cidade, o caminhar
era mais cuidadoso e necessitava do auxílio da bengala. Terrenos arenosos,
esburacados e desnivelados, faziam parte da realidade vivida por aquele
estudante. Por muito, utilizar a bengala isoladamente, não era suficiente, se
fazia de fundamental importância utilizar a bengala em conjunto com a percepção
plantar, para conseguir transpor as barreiras urbanas e se proteger de situações
que colocavam sua integridade física em eminente risco.
No município de Vitória o padrão para a construção das calçadas, rampas e
entradas de garagens é estabelecido pelo projeto Calçada Cidadã e pelo Anexo IV
do Decreto 15.200/2011, que regulamenta o Código de Posturas do município e
determina algumas regras com utilização de materiais específicos, tais como, a
utilização de ladrilhos hidráulicos pastilhados ou com ranhuras, medindo 20x20
cm e na cor vermelha. A construção e manutenção das calçadas do município são de
responsabilidade dos proprietários dos imóveis situados em frente delas, de
acordo com a Lei Municipal 6.525/05 e o Código de Posturas.
Apesar de ser responsabilidade do proprietário do imóvel, qualquer serviço de
construção, reconstrução ou manutenção de calçadas, ainda não há uma
fiscalização efetiva que garanta a construção de calçadas de acordo com o padrão
exigido pela prefeitura. Assim, em muitas ruas da cidade, sequer existem
calçadas, quanto mais calçadas cidadãs. Essa realidade social afeta diretamente
no acesso e deslocamento de muitas pessoas, como idosos, cadeirantes e aqueles
que são considerados como público‐alvo da educação especial, a exemplo de
pessoas cegas, dentre outros cidadãos.
Neste estudo, pudemos observar que de acordo coma textura, ou volume dos
diferentes pisos, por onde o estudante cego transitava em seus deslocamentos, o
número de passos variava significativamente. A tabela abaixo mostra a relação de
interdependência entre o número de passos por minuto em diferentes pisos e
situações do cotidiano do estudante cego.
Tipo de Piso
|
Situação
|
Número de passos / minuto
|
Liso ‐ Quadra
|
Futebol de 5. Sem bengala
|
103 passos/min
|
Calçada lisa com ladrilhos.
|
Caminhada p/ casa. Com auxílio da bengala
|
53 passos/min
|
Dentro dos padrões municipais.
|
|
|
Calçada esburacada e desnivelada
|
Caminhada p/ casa. Com auxílio da bengala
|
32
passos/min
|
A tabela acima nos direciona para uma reflexão sobre a questão dos espaços e
tempos da pessoa cega, que são próprios de sua condição de ser e merecem
tratamento digno e respeitoso. Uma outra questão que a tabela acima no leva a
refletir, se refere a necessidade de que se estabeleçam políticas públicas que
venham de fato garantir o acesso e a permanência de pessoas consideradas como
público‐alvo da educação especial, nos mais diversos ambientes de nossa
sociedade
Assim, o estudante cego vive a experimentar diferentes mundos e situações, nesse
mesmo mundo que se revelava em uma relação de interdependência entre sua
percepção plantar e sua corporeidade com o espaço de sua ação nos seus modos de
ser no mundo.
Conclusões
Considerando as limitações deste estudo, as conclusões nos direcionaram para o
entendimento de que a percepção plantar, se traduz, para o estudante cego, como
fator de significativa importância para auxiliar na sua própria orientação e
mobilidade. Nesse sentido, entendemos que na constituição de um ser autônomo,
que possui seu corpo próprio como parte indivisa do mundo, sua corporeidade está
em constante mudança nos seus modos de ser no mundo e com as coisas.
Assim, no bojo das interlocuções realizadas neste estudo, podemos aceitar a
compreensão de que ser estudante cego em aulas de educação física e no mundo, se
faz necessário assumir‐se como sujeito de sua própria superação, usando de suas
subjetividades e percepções numa perspectiva que conduza sua emancipação
relacional, permeada por suas emoções e sentimentos e de conquista – uma
autonomia humana, sempre diante do outro.
O aparecer cuidadoso do estudante cego caminhando pela quadra da escola, ou
pelas ruas da cidade, desvelava uma situação relacional de sua corporeidade no
espaço e no tempo, percebendo o mundo de várias formas e sentidos. Sentidos e
formas corporais que são parte integrante da disciplina educação física, onde o
corpo em sua corporeidade, mantem uma ligação direta com todo o mundo e as
coisas do mundo que habita, percebendo‐o e sentindo na sua plenitude.
Assim, o corpo do ser, estudante, cego, se move e age, se curvando, se erguendo,
caminhando e se constituindo por meio das relações sociais, para ser capaz de
transformar sua própria realidade, contribuindo para o seu reconhecimento
próprio como ser histórico‐social, que produz cultura, história e conhecimento –
um ser sendo que é constantemente afetado em sua corporeidade.
Referências bibliográficas:
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-
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Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7611.htm.
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deficiência visual: baixa visão e cegueira. Brasília: MEC/SEE, 2010.
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Nunes, S.; Lomônaco, J. F. B.
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Porto, E. T. R. A corporeidade do cego: novos olhares. Campinas: Unicamp/FEF,
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Santos, A.
O cego, o espaço, o corpo e o movimento. 2014. Disponível em:
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Acesso em 02 set. 2014.
ϟ
Educação Física, Cegueira e Percepção Plantar
Ruy Antônio Wanderley Rodrigues Miranda & Hiran Pinel
publicação online: Agosto 2016
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