

IMAGEM | Mohamed Osman, 2009
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RESUMO | Qualidade de Vida é um conceito muito
complexo que, basicamente, define a percepção que um
indivíduo tem acerca da sua situação na vida, de acordo
com o contexto cultural e com os sistemas de valores nos
quais vive, sendo essa percepção o resultado da
interacção entre os objectivos e expectativas
individuais e os indicadores objectivos disponíveis para
o ambiente sócio-cultural em que o indivíduo está
inserido. Sendo um período de crescimento, de
desenvolvimento e de novas oportunidades, mas,
simultaneamente, de desafios e incertezas, a
adolescência traz consigo tensões e ansiedades que
interferem, necessariamente, com o bem-estar dos jovens.
Para além das tensões inerentes a este período de
grandes transformações, os adolescentes portadores de
cegueira congénita ou precoce têm ainda de gerir as
tensões provocadas pelo confronto diário -
necessariamente desgastante - com as barreiras de
carácter académico, social e afectivo que, decorrentes
das concepções altamente depreciativas da sociedade -
nomeadamente da sociedade portuguesa - relativamente à
cegueira, condicionam fortemente a inclusão social
destes jovens. [...]
Para melhor se compreender a pertinência do tema da qualidade de vida de
adolescentes portadores de cegueira congénita ou precoce torna-se necessário ter
em conta alguns aspectos que, sendo aqui genericamente apresentados sob uma
forma puramente conceptual, têm o seu fundamento na vida quotidiana dos seres
humanos e resultam da interacção destes com o meio envolvente. Estes aspectos,
que seguidamente se explicitam, constituem os argumentos que, em nosso entender,
consubstanciam cabalmente a importância do tema enunciado e justificam
amplamente a existência de um maior número de estudos científicos nesta área.
Simultaneamente, servem como premissas, como pontos de partida para um estudo
que, tendo como objectivo primordial o apuramento e abordagem dos aspectos
relevantes do tema, pretende também lançar questões orientadoras para futuros
trabalhos que venham a ser desenvolvidos nesta área.
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Encontra-se hoje largamente consagrado na comunidade internacional o
princípio estruturante, para nós inquestionável, de que todo e qualquer ser
humano tem direito a uma vida digna e plena, que lhe permita um desenvolvimento
pessoal harmonioso e o usufruto dos benefícios e conquistas resultantes do
progresso da comunidade humana global. Este princípio encontra-se largamente
enunciado e sistematizado, quer na Declaração Universal dos Direitos do Homem,
proclamada pela Organização das Nações Unidas em 1948, quer na Convenção dos
Direitos da Criança, elaborada em 1959.
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O conceito de Qualidade de Vida é actualmente tido pela comunidade
científica como uma importante referência estratégica na abordagem analítica e
avaliativa dos vários aspectos que enquadram as experiências de vida dos
indivíduos. Sendo este um conceito multifactorial, cujas dimensões que o
estruturam resultam da interacção entre as características individuais e as
características do meio envolvente, importa perceber o impacto que a interacção
entre as características e necessidades especiais de certos grupos populacionais
e o meio envolvente exerce sobre a qualidade de vida desses mesmos grupos e de
que forma esse nível de qualidade de vida se reflecte na personalidade
individual.
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A adolescência é um período de mudanças profundas, de questionamento, de
desafios e oportunidades. A resposta positiva ou negativa a estes
desafios/oportunidades, estando intimamente dependente da personalidade de cada
indivíduo, vai modelar essa mesma personalidade e exercer um papel decisivo na
preparação da vida adulta.
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A cegueira, congénita ou não, traduz uma disfunção sensorial que
condiciona necessariamente a interacção do seu portador com um meio envolvente
que, fazendo um apelo quase sistemático à capacidade visual, tende a colocar
barreiras à inclusão daqueles que a não podem usar.
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Sendo uma limitação sensorial, a cegueira não diminui de forma alguma as
capacidades cognitivas/conceptuais do seu portador nem altera o cariz das suas
necessidades nos mais variados domínios de vida. Neste sentido, a cegueira não
pode constituir pretexto para negar a um indivíduo, quer o acesso à formação, ao
conhecimento e ao mercado de trabalho, quer, num sentido mais lato, a satisfação
das necessidades sociais, afectivas, materiais e de bem-estar pessoal inerentes
a qualquer ser humano.
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A cegueira congénita ou precoce significa que, desde a nascença ou desde
muito cedo, os seus portadores se vêem privados da visão e desenvolvem
estratégias sensoriais alternativas para a interacção com o meio envolvente,
estratégias essas que, sendo correctamente estimuladas e acompanhadas das
necessárias adaptações do contexto, proporcionam um acesso eficaz à interacção
social e à informação. Assim, por nunca terem usado referências visuais e por
nunca terem passado pelo processo desestruturante que acompanha a sua perda, os
portadores de cegueira congénita ou precoce constituem o melhor exemplo do tipo
de resposta que pode ser dada ao nível da participação na comunidade por parte
de um portador de cegueira.
Tomando o conceito de Qualidade de Vida como referencial estratégico
na abordagem da problemática associada às disfunções ou incapacidades - no caso
específico, a cegueira - e tendo como base as premissas atrás enunciadas, esta
dissertação tem como objectivo geral estudar os aspectos mais relevantes da
qualidade de vida da pessoa cega durante a adolescência, bem como a repercussão
desses aspectos na construção da personalidade individual.
Tendo sempre como pano de fundo o objectivo geral atrás formulado,
pretendemos atingir com este estudo os seguintes objectivos específicos:
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1 - Identificar os aspectos mais relevantes que se colocam a um adolescente
com cegueira congénita ou precoce ao nível de cada uma das dimensões de
qualidade de vida que aqui serão abordadas.
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2 - Determinar a natureza da relação entre as várias dimensões de qualidade
de vida, no caso de um adolescente com cegueira congénita ou precoce.
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3 - Identificar e analisar diferentes aspectos do impacto das concepções
socialmente predominantes sobre a cegueira na qualidade de vida de jovens
adolescentes com cegueira congénita ou precoce.
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4 - Estudar as repercussões do nível de qualidade de vida do adolescente cego
ao nível da sua personalidade.
Sem prejuízo de uma análise reflexiva e aprofundada que a seguir se fará
sobre o quadro conceptual que enquadra esta dissertação, é oportuno procedermos
nesta introdução à explicitação sumária dos conceitos que, devido à natureza do
tema abordado, têm um papel fundamental no substrato teórico que serve de
suporte a este estudo.
Qualidade de Vida - Num sentido mais lato, a qualidade de vida de um
indivíduo resulta da interacção entre as características e necessidades
individuais e as características do meio físico, social e cultural envolvente,
expressando-se essa interacção num conjunto de dimensões de vida tidas como
relevantes nesse mesmo contexto. Num sentido mais específico, entendemos aqui a
qualidade de vida como a percepção que o indivíduo tem acerca da sua situação na
vida, de acordo com o sistema de valores inerentes ao contexto cultural e social
em que está integrado. Nesta perspectiva, a qualidade de vida resulta da
interacção entre os objectivos e expectativas individuais e os indicadores
objectivos mais valorizados no seu contexto cultural e social.
Adolescência - Genericamente, definimos a Adolescência como uma fase
específica do desenvolvimento humano, fase essa que se caracteriza por mudanças
físicas e psicológicas indispensáveis para que o indivíduo atinja a maturidade e
se integre na sociedade como adulto.
Cegueira - Definimos Cegueira como a disfunção sensorial que impede um
indivíduo de se locomover, ler, escrever, realizar tarefas da vida quotidiana ou
desempenhar funções profissionais com recurso à visão. Falamos de cegueira
congénita ou precoce quando esta disfunção sensorial está presente na vida do
indivíduo desde o momento do seu nascimento ou desde os primeiros anos de vida.
Personalidade - Denominamos como personalidade o conjunto de características
psicológicas que, tendo a sua expressão prática nas opções de vida, nas opiniões
e nos actos da pessoa, marcam a individualidade, a singularidade dessa pessoa
relativamente aos seus semelhantes.
Sendo desenvolvida num âmbito relativamente restrito - estudo de 3 casos -
esta dissertação reveste-se de um carácter eminentemente reflexivo e pretende
lançar questões orientadoras e pistas de investigação numa área específica ainda
marcada por uma grande escassez de estudos. Na primeira grande secção da
dissertação apresentamos o enquadramento teórico, o qual inclui a explicação e a
análise aprofundada dos conceitos atrás apresentados, bem como um inventário tão
objectivo quanto possível de alguns trabalhos científicos que consideramos
relevantes no desenvolvimento dos mesmos. Relativamente ao conceito de Qualidade
de Vida, ideia central deste estudo, é ainda apresentada uma breve retrospectiva
histórica da sua evolução. Sendo este o conceito estruturante da dissertação, é
com base na explicação e análise do mesmo que se apresenta o modelo teórico que
serve de base ao desenvolvimento do estudo que agora apresentamos. A segunda
grande secção, dedicada à apresentação e análise de alguns casos práticos de
adolescentes portugueses com cegueira congénita ou precoce, inclui uma descrição
detalhada da metodologia utilizada, a descrição analítica dos dados recolhidos e
a análise/discussão dos resultados à luz das conclusões de outros estudos
realizados na mesma área temática ou em áreas temáticas afins. Na última secção,
apresentamos as principais conclusões do estudo e algumas questões relevantes
que, tendo-nos sido suscitadas pelos resultados, constituem-se como sugestões
para futuras investigações nesta área temática.
A abordagem científica das questões associadas à qualidade de vida dos
adolescentes com cegueira congénita ou precoce e ao desenvolvimento da
personalidade adulta não é o estudo de uma realidade restrita, cuja análise se
funda num esquema conceptual inerente a uma única área científica. Trata-se, ao
invés, do estudo de uma realidade extremamente complexa que encerra em si mesma
um conjunto de realidades cuja análise se torna, em nosso entender, essencial
para uma compreensão mais efectiva e global de toda a problemática. Sendo certo
que o conhecimento de uma realidade específica implica a formulação e
mobilização de um conjunto coerente de conceitos de natureza igualmente
específica que corresponda à realidade estudada, torna-se necessário que o
estudo de uma problemática tão abrangente e multifacetada como aquela que aqui
propomos seja apoiado por um enquadramento teórico que articule conceitos
inerentes a diferentes áreas científicas. Para que uma tal construção conceptual
possa constituir uma base válida no estudo de uma problemática com estas
características, ela deverá, simultaneamente, reflectir a origem e
especificidade dos conceitos que a integram e estabelecer uma ligação coerente
entre esses conceitos, um nexo que represente no plano teórico a dinâmica de
interacção entre os vários aspectos da realidade estudada.
A articulação coerente de diferentes noções, sobretudo quando elas pertencem
a áreas científicas distintas, implica o estabelecimento de uma hierarquia
conceptual que está intimamente relacionada com a definição do próprio
objecto/realidade em estudo, com os aspectos que o investigador elege como
prioritários na sua análise e, de uma forma mais geral, com o ângulo de
abordagem escolhido. O enquadramento teórico que serve de suporte ao presente
estudo tem como referência estruturante o conceito de Qualidade de Vida que,
pela sua própria natureza, nos remete desde logo para uma reflexão de carácter
transversal e globalizante. Assim, os aspectos que se prendem com a
adolescência, a cegueira congénita e a formação da personalidade adulta são aqui
analisados e discutidos à luz da sua relação com o nível de qualidade de vida
das populações.
Sem nos pretendermos alongar demasiado numa análise literal, será útil para o
desenvolvimento das reflexões subsequentes frisar que, genericamente, o termo
"Qualidade" indica uma propriedade ou condição de uma pessoa ou coisa que a
distingue de outras pessoas ou coisas. Isto significa que a identificação de uma
qualidade pressupõe inevitavelmente um processo de análise comparativa. Se
considerarmos o conceito de Qualidade de Vida, a análise comparativa aplica-se a
aspectos específicos da vida humana, na medida em que, num plano semântico,
Qualidade de Vida refere um registo de excelência, um nível de distinção
associado a características humanas e valores positivos como a felicidade, a
satisfação, o bem-estar, etc.
Embora se revista de um carácter muito generalista, esta definição de
Qualidade de Vida já nos dá uma noção do potencial científico do conceito, na
medida em que levanta questões no plano psicológico, no plano social e até no
plano ético. Com efeito, torna-se desde logo pertinente saber quais os factores
que determinam a satisfação, a felicidade e o bem-estar de um indivíduo.
Relativamente ao bem-estar físico ou material, é fácil identificar alguns
factores que se impõem desde logo como objectivos, pela sua importância crucial
para todos os indivíduos: a alimentação, o estado de saúde, os rendimentos, etc.
No entanto, se considerarmos o bem-estar emocional ou estados psicológicos como
a felicidade e a satisfação, muitos dos factores que para eles contribuem são de
ordem subjectiva e, por isso mesmo, variam de pessoa para pessoa, o que se
traduz na necessidade de tomarmos o indivíduo como uma das referências centrais
na definição dos elementos a considerar como relevantes para uma vida de
qualidade.
As questões suscitadas por esta primeira tentativa de definição de Qualidade
de Vida adquirem um maior grau de complexidade se tivermos em conta que as
noções de bem-estar, felicidade e satisfação acabam também por ser nalguma
medida construções culturais histórica e socialmente contextualizadas. Torna-se
pois necessário, quando trabalhamos noções desta natureza, precisar aquilo que
elas realmente representam para o indivíduo, para o grupo social ou para o
contexto cultural que estamos a considerar.
Assim, e de uma forma concisa, quando se apresenta uma definição que se
pretende científica do conceito de Qualidade de Vida, ela deve em nosso entender
preencher dois requisitos básicos:
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1 – apresentar um grau de sistematização e de concisão que permita a
utilização do conceito como referência para a recolha de dados objectivos no
âmbito do estudo de diferentes contextos sócio-culturais e de casos individuais;
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2 – apresentar um grau de flexibilidade que lhe permita captar as
especificidades do contexto estudado sem que isso implique a desarticulação do
esquema conceptual que orienta a análise.
A busca de uma definição científica de Qualidade de Vida tem mobilizado os
esforços de um número considerável de investigadores durante as últimas décadas,
dada a crescente importância estratégica do conceito no âmbito das ciências
sociais e políticas, sobretudo na abordagem das questões associadas às
disfunções ou incapacidades. Schalock & Verdugo (2006: cap. I) fundamentam a
importância do conceito de Qualidade de Vida elencando algumas características
que, em nosso entender, resumem o papel que esta noção tem desempenhado, quer na
redefinição conceptual e metodológica da investigação científica mais recente na
área das necessidades especiais, quer como suporte teórico para a dinamização de
novas formas de intervenção ao nível social e político. Assim, esta noção
mostra-nos a perspectiva do indivíduo, centrada nas dimensões nucleares de uma
vida de qualidade; é uma referência conceptual para avaliar resultados de
qualidade; é, segundo a expressão dos próprios autores, "um constructo social"
que serve de base à aplicação de estratégias; é um critério para avaliar a
eficácia dessas estratégias (Schalock &Verdugo, 2006: cap. I).
Para uma melhor compreensão do significado do conceito de Qualidade de Vida e
do papel que ele actualmente desempenha na investigação científica e na
intervenção social e política, é útil focar brevemente os momentos de reflexão e
as perspectivas conceptuais e ideológicas que constituíram os principais marcos
na evolução histórica deste conceito, tendo sempre presente a ideia expressa no
capítulo 3 da obra MAIS QUALIDADE DE VIDA PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - UMA
ESTRATÉGIA PARA PORTUGAL, segundo a qual o termo Qualidade de Vida "...abrange
muitos significados; reflecte os conhecimentos, as experiências e os valores
individuais e colectivos que a ele se reportam em diferentes épocas, espaços e
histórias; é portanto uma construção social com a marca da relatividade
cultural" (CRPG, 2007)
Definição e Operacionalização
O entendimento de que o bem-estar pessoal, familiar, comunitário e social
surge, não apenas dos progressos científicos, médicos e tecnológicos, mas de
combinações complexas destes progressos com os valores e percepções pessoais e
com os factores ambientais; o facto de o conceito de Qualidade de Vida
representar um passo em frente no processo de normalização, que coloca a tónica
nos serviços baseados na comunidade, incluindo a medida de resultados no âmbito
da vida do indivíduo inserido nessa comunidade; o surgimento do movimento de
empowerment do consumidor, com o ênfase na planificação centrada na pessoa, nos
resultados pessoais valorados e na auto-determinação, são aspectos que estiveram
na origem do interesse pela medição da Qualidade de Vida (Schalock &Verdugo,
2006: cap. I). A estes aspectos poderíamos ainda acrescentar o facto de a partir
do final dos anos sessenta do século XX se ter verificado na comunidade
internacional uma progressiva tomada de consciência de que, para comparar
países, era necessário algo mais que os indicadores económicos brutos. Esta
constatação justificou uma progressiva valorização dos indicadores sociais. Se é
verdade que estes indicadores proporcionam uma perspectiva mais global e
humanizada das reais condições de vida das populações, não é menos verdade que,
conforme constata Evans (1994), eles fornecem pouca ou nenhuma informação sobre
a qualidade de vida dos indivíduos na unidade cultural/administrativa. Esta
realidade constituiu em grande medida o fundamento de um interesse - que tem
sido crescente - pela avaliação da qualidade de vida sentida/percebida pelos
próprios indivíduos. Nesta dimensão subjectiva poderemos incluir aquilo que
Schalock & Verdugo (2006: cap. I) designam como "resultados pessoais", bem como
todos os factores que contribuem para o bem-estar de uma pessoa.
Na área das necessidades especiais, mais precisamente ao nível da
problemática relativa às disfunções ou incapacidades, o conceito de Qualidade de
Vida representa uma nova abordagem de carácter globalizante e sistémico que se
foi afirmando durante a segunda metade do século XX e cujos fundamentos poderão
ser concretizados nas seguintes ideias-chave:
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1 – O problema das disfunções ou incapacidades não pode ser encarado como um
problema meramente individual, mas sim como uma questão que diz respeito a toda
a sociedade, na qual os portadores de incapacidades estão incluídos por direito
próprio.
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2 – Para que os resultados obtidos se traduzam em benefícios de alcance
global para a vida das pessoas portadoras de disfunções ou incapacidades, as
intervenções realizadas nesta área devem visar, não apenas os aspectos
estritamente médicos, mas todos os aspectos que estruturam a vida humana, os
quais são positiva ou negativamente influenciados pela relação entre as
características individuais e as características do meio envolvente.
Estes pressupostos constituíram-se como os pilares fundamentais de um
processo de redefinição conceptual e metodológica cujo desenvolvimento teve no
conceito de Qualidade de Vida um poderoso agente de dinamização. Tendo surgido
durante os anos sessenta em diferentes discursos académicos, políticos e
ideológicos como ideia sensibilizadora, este conceito tem vindo nas últimas três
décadas a converter-se no principal eixo de uma planificação de serviços e
políticas centrada na pessoa, na avaliação dos resultados e na melhoria da
qualidade.
Durante os anos oitenta, a noção de Qualidade de Vida começou a ser utilizada
de forma mais sistemática no campo das disfunções do foro mental. No capítulo I
da obra CÓMO MEJORAR LA CALIDAD DE VIDA DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD (2006),
Schalock & Verdugo referem os principais motivos que terão contribuído para essa
assimilação:
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o conceito inclui as noções de auto-determinação, inclusão, capacitação e
igualdade, ideias que marcaram os diferentes aspectos da abordagem da
problemática inerente às disfunções ou incapacidades;
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o conceito proporcionou uma linguagem comum que reflecte as metas da
normalização, da desinstitucionalização e da integração, bem como o
reconhecimento da necessidade de avaliar os programas de intervenção;
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o conceito era coerente com a ênfase que se começava a dar aos produtos,
aos resultados de qualidade;
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o conceito reflectia as expectativas de bem-estar dos destinatários dos
serviços.
Foi durante os anos noventa do século XX que a qualidade de vida se
constituiu verdadeiramente como meta dos esforços desenvolvidos pelos grupos e
organizações no sentido da mudança dos sistemas, situação que tornou necessário um maior
investimento na compreensão, na definição e na sistematização do conceito. A
busca de uma definição de Qualidade de Vida tem propiciado aos investigadores um
vasto campo de reflexão, desde logo porque, como construção sócio-histórica que
é, o conceito abrange muitos significados, reflectindo os conhecimentos, as
experiências e os valores individuais e colectivos que a ele se reportam em
diferentes épocas, espaços e histórias; é, portanto, um conceito com a marca da
relatividade cultural (CRPG, 2007: cap. 3). Para o desenvolvimento deste estudo,
tomamos como referência a definição de Qualidade de Vida apresentada no ano de
1994 por um grupo de especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a qual
seguidamente se expõe:
"Qualidade de Vida é a percepção do indivíduo acerca da sua posição na vida,
de acordo com o contexto cultural e os sistemas de valores nos quais vive, sendo
o resultado da interacção entre os objectivos e expectativas e os indicadores
objectivos disponíveis para o seu ambiente social e cultural" (Whoqol Group
1994, cit. por CRPG, 2007: cap. 3).
Esta definição exprime o potencial e as características do conceito, de
acordo com o entendimento mais ou menos consensual que dele tem a comunidade
científica na actualidade. Incorporando a vertente simbólico-interaccional, esta
formulação equaciona o constructo "Qualidade de Vida" enquanto produto da
relação do sistema pessoal do indivíduo com os seus contextos de vida e o
ambiente sócio-cultural (CRPG, 2007: cap. 3). Nesta linha, o Whoqol Group
identifica seis domínios chave para a qualidade de vida: domínio físico; domínio
psicológico; nível de independência; relações sociais; meio ambiente;
espiritualidade/religião/crenças pessoais. A asserção de que «Qualidade de Vida
é a percepção do indivíduo acerca da sua posição na vida,...» reflecte a ideia
de que a qualidade de vida constitui uma percepção subjectiva dos clientes ou
destinatários dos serviços, ideia que é partilhada pela maioria dos
investigadores. Considerando que a avaliação realizada por cada cliente é
inevitavelmente influenciada pelo seu sistema de valores e que esses valores são
desenvolvidos através da socialização, adquire mais sentido e efectividade a
ideia de que, apesar da carga de subjectividade que lhe é inerente, o conceito
de Qualidade de Vida não pode ser equacionado independentemente do ambiente
cultural do cliente.
Dado o grau de variabilidade do conceito, tem-se verificado a necessidade de
realizar uma avaliação transcultural que permita uma elaboração funcional da
qualidade de vida assente num padrão de análise minimamente uniforme e passível
de suscitar comparações significativas. A busca de uma estrutura funcional com estas características
tem suscitado amplo debate na comunidade científica, não tendo sido possível
chegar a uma delimitação formal única. No entanto, dada a grande diversidade de
aspectos que compõem a vida humana, foi possível reunir um largo consenso por
parte dos investigadores em torno da ideia de que, qualquer estrutura funcional
de Qualidade de Vida válida em termos científicos teria de assentar numa base
multidimensional.
Este foi o ponto de partida para a produção de uma enorme quantidade de
estudos visando identificar os principais factores que podem contribuir para
melhorar a qualidade de vida. Na sequência deste esforço de uniformização e
sistematização funcional do conceito, os investigadores na área da Psicologia
Social identificaram como aspectos constituintes das dimensões transversais no
estudo da qualidade de vida a auto-regulação, a justiça social, a gratificação
no projecto pessoal, o sucesso e a protecção do ambiente (Dienner, 1995;
Schwarz, 1992, 1994, cit. por CRPG, 2007: cap. 3).
Em 1996, o investigador Robert L. Schalock apresentou um estudo no qual
identifica oito componentes críticas da qualidade de vida: bem-estar emocional;
relações interpessoais; bem-estar material; desenvolvimento pessoal; bem-estar
físico; auto-determinação; inclusão social; direitos. Uma revisão rigorosa da
literatura internacional sobre qualidade de vida realizada durante os anos de
2002 e 2003 por Miguel Ángel Verdugo Alonso e Robert L. Schalock mostrou serem
estas as dimensões de qualidade de vida mais identificadas pela generalidade dos
investigadores, o que possibilitou a adopção desta proposta como uma base de
trabalho relativamente sólida.
Paralelamente, também no ano de 2002, o trabalho desenvolvido durante a
década anterior permitiu a um grupo de especialistas estabelecer um conjunto de
princípios referentes à conceptualização, à avaliação e à aplicação do conceito
de Qualidade de Vida (Schalock & Cols., 2002).
Assim, relativamente à conceptualização, estabeleceu-se que:
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1 - A qualidade de vida é multidimensional, influenciada por factores
pessoais e
ambientais, bem como pela sua interacção.
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2 - A qualidade de vida tem os mesmos componentes para todas as pessoas.
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3 - A qualidade de vida tem componentes subjectivos e objectivos.
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4 - A qualidade de vida é melhorada com a
autodeterminação, os recursos, o projecto de vida e o
sentido de pertença, de identidade.
No que respeita à medida/avaliação, foram formulados os seguintes princípios:
-
1 - Na qualidade de vida, a medida implica o grau em que as pessoas têm
experiências de vida que valorizam.
-
2 - Na qualidade de vida, a medida reflecte as dimensões que contribuem para
uma vida completa, integrada e inter-relacionada.
-
3 - A medida de qualidade de vida tem em consideração o contexto dos
ambientes físico, social e cultural que são importantes para as pessoas.
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4 - A medida de qualidade de vida inclui medidas de experiências comuns a
todos os
seres humanos e de experiências pessoais, únicas.
No tocante à aplicação do conceito estabeleceu-se que:
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1 - A aplicação do conceito de qualidade de vida melhora o bem-estar no
âmbito de cada contexto cultural.
-
2 - Os princípios de qualidade de vida devem ser a base das intervenções e
dos
apoios.
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3 - As aplicações de qualidade de vida devem estar baseadas em evidências.
-
4 - Os princípios de qualidade de vida devem ter lugar de destaque na
educação e
formação profissional.
Sob o ponto de vista científico, estes princípios constituíram a base de uma
estrutura funcional credível de qualidade de vida, não só porque cobrem todos os
aspectos relativos à operacionalidade do conceito, mas também porque, dada a sua
abrangência, são perfeitamente aplicáveis às oito dimensões que a generalidade
dos investigadores considerou relevantes para a qualidade de vida dos seres
humanos. No plano ideológico, a formulação destes princípios obedeceu aos
desígnios de igualdade, de inclusão, de capacitação, de criação de oportunidades
positivas de crescimento e de aplicação com base nas evidências, ideias que se
tornaram referências centrais na nova abordagem das disfunções ou incapacidades,
abordagem que tem no conceito de Qualidade de Vida um pilar teórico fundamental.
Os trabalhos de investigação e avaliação mais recentes no âmbito da temática
da qualidade de vida, realizados na primeira década do século XXI, foram
desenvolvidos com base nos princípios atrás referidos e tiveram como objectivo
predominante proporcionar uma maior base conceptual e empírica para a medida e
aplicação do constructo social de qualidade de vida (Schalock & Verdugo, 2006: cap. I). O conhecimento anteriormente
produzido acerca das características funcionais do conceito de Qualidade de Vida
e dos factores que mais directamente influenciam a qualidade da vida humana
tornou possível uma clarificação das necessidades de pesquisa, com base nas
quais foram definidas algumas directrizes no tocante ao desenvolvimento de
trabalhos futuros e à utilização dos dados de qualidade de vida entretanto
recolhidos. Na obra CÓMO MEJORAR LA CALIDAD DE VIDA DE LAS PERSONAS CON
DISCAPACIDAD (capítulo I), Verdugo Alonso e Robert L. Schalock apresentam-nos
quatro directrizes fundamentais:
-
1 - Reconhecer a multidimensionalidade da qualidade de vida e desenvolver
indicadores para as respectivas dimensões.
-
2 - Avaliar os aspectos subjectivos e objectivos da vida de cada indivíduo.
-
3 - Diferenciar entre resultados a curto e a médio prazo.
-
4 - Tomar como referência os predictores dos resultados de qualidade.
Com base no reconhecimento do facto de que a qualidade de vida é
multidimensional, constatou-se a necessidade de definir com clareza os
indicadores relativos a cada dimensão, ou seja, as percepções, condutas e
condições que servem como indícios concretos da situação da pessoa relativamente
a cada uma das dimensões de qualidade de vida. A revisão da literatura
internacional sobre qualidade de vida realizada por Verdugo & Schalock nos anos
de 2002 e 2003 atestou esta necessidade e serviu como base para a formulação de
um certo número de indicadores que, distribuídos pelas dimensões de qualidade de
vida pré-definidas, formam o conjunto que a seguir se explicita:
QUADRO 1
|
DIMENSÕES
|
INDICADORES
|
Bem-estar Emocional
|
Alegria, auto-conceito e
ausência de stress.
|
Relações Interpessoais
|
Interacções, relações de amizade
e apoios.
|
Bem-estar Material
|
Situação financeira e estilo de
vida.
|
Desenvolvimento Pessoal
|
Educação, competência pessoal e
realização.
|
Bem-estar Físico
|
Atenção sanitária, estado de
saúde, actividades da vida diária e ócio.
|
Autodeterminação
|
Autonomia/controlo pessoal,
metas e valores pessoais, preferências.
|
Inclusão Social
|
Integração e participação
comunitária, papéis comunitários, apoios sociais.
|
Direitos Legais e Humanos
|
Dignidade e respeito.
|
A necessidade de avaliar os aspectos subjectivos e objectivos da vida de cada
indivíduo é inerente à própria natureza ambivalente do conceito de Qualidade de
Vida, o qual compreende aspectos objectivamente verificáveis e até
quantificáveis - circunstâncias e experiências de vida tais como o funcionamento
físico, o grau de estabilidade e de previsibilidade dos ambientes, a situação
financeira, as redes sociais e relações interpessoais, a integração e
participação na comunidade, a competência pessoal, o emprego, os contextos de
vida, a autonomia, o controlo pessoal e os direitos humanos e legais - e
aspectos subjectivos - factores como os estados emocionais (alegria, tristeza,
felicidade), a confiança em si mesmo, as aspirações e expectativas, os valores
relativamente à família, ao trabalho e à vida em geral -. Acresce ainda que,
como demonstram diversos estudos, a correlação entre as vertentes objectiva e
subjectiva é normalmente bastante baixa (Schalock & Verdugo, 2006), o que
significa que a uma situação de vida favorável no que se refere a aspectos
objectivos como o bem-estar material ou o status social pode não corresponder
uma situação igualmente favorável no tocante a aspectos subjectivos como a
realização pessoal, o bem-estar emocional ou a satisfação com a vida. É de
referir que a satisfação tem sido usada frequentemente como medida da vertente
subjectiva da qualidade de vida (Schalock &Verdugo, 2006). Segundo os autores,
esta medida é aplicável a várias dimensões da vida individual - trabalho, ócio,
saúde -, proporciona um vasto campo de investigação sobre os níveis de
satisfação de diferentes grupos populacionais e dos destinatários dos serviços e
permite medir a importância das diferentes dimensões de qualidade de vida a
nível individual. Assim, apesar de a medida da satisfação mostrar uma escassa estabilidade ao longo do tempo e pouca
correlação com os níveis de conduta objectivos, é geralmente aceite pelos
investigadores como um referencial importante na avaliação dos aspectos
subjectivos da qualidade de vida. No entanto, a sua validade como indicador do
bom contexto ambiental e dos programas de serviço, embora largamente admitida,
precisa ser cabalmente demonstrada (Schalock &Verdugo, 2006). Para este género
de avaliação são preferencialmente usados como indicadores circunstâncias e
experiências de vida objectivas na linha das que já atrás mencionamos.
A necessidade de diferenciar entre resultados a curto e a médio prazo
encontra-se relacionada com a dicotomia entre os componentes subjectivos e
objectivos da vida dos indivíduos, entre os aspectos inerentes à esfera pessoal
- cuja análise depende da subjectividade do próprio indivíduo - e os aspectos
relativos ao contexto envolvente, facilmente observáveis e verificáveis.
Partindo desta dicotomia, Schalock &Verdugo (2006: cap. I) identificam como
resultados a médio prazo aqueles cujo surgimento advém da aplicação dos
programas de serviço e que, representando circunstâncias e experiências
objectivas de vida, são facilmente observáveis e até mensuráveis: o envolvimento
em redes sociais, as relações interpessoais, a integração e participação na
comunidade, o grau de desenvolvimento de competências, etc. Os resultados a
curto prazo são aqueles que se prendem com circunstâncias que interferem, no
imediato, com a esfera pessoal e que, sendo aferidos pelo próprio indivíduo e
inerentes à sua esfera pessoal, não são imediatamente observáveis e colocam
dificuldades ao nível da sua mensurabilidade: os estados emocionais, o nível de
auto-confiança, as metas e aspirações pessoais, etc.
No entanto, estas distinções não podem em nosso entender ser feitas de uma
forma totalmente restritiva, isto porque, embora não se tenha identificado uma
correlação estável entre as vertentes objectiva e subjectiva da vida dos
indivíduos, temos de tomar sempre em consideração que as várias dimensões de
qualidade de vida, sejam elas de natureza objectiva ou subjectiva, se acham
inter-relacionadas, estando a vida dos indivíduos e das comunidades assente em
dinâmicas de natureza global e não de natureza específica. Assim, os resultados
relacionados com aspectos como os estados emocionais, o nível de auto-confiança
ou as metas e aspirações pessoais - resultados que aqui classificámos como sendo
de curto prazo e estando ligados à esfera pessoal - também podem (e, idealmente,
devem) ser potenciados pela aplicação dos programas de serviço destinados à
comunidade. Se considerarmos que as metas e aspirações pessoais podem elas
próprias ser de curto ou de médio prazo e que os estados emocionais e os níveis
de auto-confiança podem ser potenciados por circunstâncias meramente conjunturais e periféricas ou por circunstâncias estruturais e
fortemente enraizadas no contexto sócio-cultural, económico e físico envolvente,
teremos de constatar que a distinção entre resultados a curto e a médio prazo é,
em certa medida, meramente operativa.
A directriz referente à necessidade de nos centrarmos nos predictores dos
resultados de qualidade está directamente relacionada com o desenvolvimento, na
primeira década do século XXI, de modelos lógicos de programas (Andrews, 2004;
Schalock & Bonham, 2003, cit. por Schalock &Verdugo, 2006). Estes programas são
elaborados segundo um esquema no qual há a considerar os inputs - recursos
envolvidos -, os processos - serviços e apoios individualizados -, os outputs -
o número de participantes e o tempo passado no programa - e os resultados -
aquisições/conquistas pessoais -. É no âmbito deste modelo de programa, cujo
foco está centrado nos resultados pessoais e no que é necessário para os
atingir, que se torna necessária a identificação daquilo que Schalock &Verdugo
(2006) designam como "predictores dos resultados de qualidade", ou seja, as
condições específicas necessárias para que se obtenham os resultados desejados.
Neste contexto, tem-se vindo a promover o uso de esquemas de investigação que,
partindo do questionamento sobre o que é necessário fazer para atingir
determinado resultado, procuram identificar os predictores relevantes para
atingir os resultados pessoais desejados. O objectivo é, não só compreender os
predictores de resultados pessoais, mas também utilizar essa informação para
melhorar a qualidade dos programas de serviços (Schalock & Bonham, 2003;
Schalock et al., 2000, cit. por Schalock &Verdugo, 2006). Estes predictores
podem ser características pessoais (estado de saúde, nível de conduta
adaptativa), características contextuais (apoio social, tipo de residência,
rendimentos, disponibilidade de transportes) e características dos provedores
(nível de stress no trabalho, satisfação laboral).
Assim, a relevância destas directrizes vai muito para além do facto de elas
representarem um importante passo em frente nos esforços de avaliação da
qualidade de vida das pessoas em geral e das pessoas com disfunções ou
incapacidades em particular. De facto, elas procuram estabelecer as condições
necessárias para que a investigação científica possa fornecer uma contribuição
efectiva para a melhoria da qualidade de vida destas populações. Neste sentido,
a relevância conferida às percepções, sentimentos e opiniões das pessoas na
recolha dos dados que serão posteriormente submetidos às interpretações
científicas e a utilização dos resultados desse trabalho na melhoria dos
programas de serviços e apoios representam passos essenciais na consecução desse
desiderato. Esta interligação entre a vertente da produção científica e a
vertente dos serviços e apoios prestados no terreno é talvez a ideia mais marcante - e o desafio mais premente - que resulta de toda a
redefinição conceptual e metodológica que a introdução e operacionalização do
conceito de Qualidade de Vida veio desencadear no âmbito da abordagem de toda a
problemática associada às necessidades especiais.
Principais Modelos de Referência
À evolução registada nos últimos cinquenta anos ao nível dos conceitos e dos
métodos que enquadram a reflexão sobre a problemática das disfunções ou
incapacidades correspondeu uma evolução no tocante aos modelos de referência
para a organização das intervenções no contexto da reabilitação e da inclusão
social. Estes modelos reflectem-se na maneira como os diversos actores sociais
equacionam e problematizam as questões ligadas às necessidades especiais do foro
sensorial ou cognitivo. Torna-se útil fazer agora uma pequena retrospectiva da
maneira como evoluíram estes modelos, na medida em que são eles que mais
directamente influenciam o quotidiano das pessoas com disfunções ou
incapacidades, definindo as condições e o grau em que estas estão - ou não -
inseridas na sociedade a que pertencem. É igualmente útil perceber de que forma
a evolução consubstanciada nestas propostas de intervenção nos conduz à ideia da
qualidade de vida como objectivo último do processo de reabilitação e inclusão
social.
Até ao início da segunda metade do século XX - anos sessenta/setenta - as
políticas que regeram as intervenções na área da reabilitação e inserção social
basearam-se num quadro ideológico de referência que os investigadores designam
como Modelo Médico. Segundo a lógica subjacente a este modelo, as políticas
sociais baseiam-se, acima de tudo, na interpretação da natureza da deficiência.
A «deficiência» é encarada como uma característica pessoal, que dificulta a
integração do seu portador numa sociedade que funciona em moldes ditos
«normais». Nesta perspectiva, não se pode falar verdadeiramente de uma inclusão,
mas de uma integração fortemente condicionada pela inadequação das
características sensoriais ou cognitivas do indivíduo aos padrões sociais
vigentes.
Numa lógica de contestação às abordagens biomédicas, surgiu no Reino Unido,
ainda durante a década de sessenta do século XX, o chamado Modelo Social, o qual
encara a deficiência como uma questão social e não como um problema individual,
transferindo assim a responsabilidade pelas desvantagens das pessoas com
deficiências para a incapacidade da sociedade em prever e ajustar-se à
diversidade (Oliver, 1990, cit. por CRPG, 2007: cap. 3). O Modelo Social assenta
na ideia de que «a deficiência é uma experiência resultante da interacção entre
as características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele
vive, isto é, da combinação de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de
perda ou redução de funcionalidade (lesão) a uma organização social pouco
sensível à diversidade corporal» (CRPG, 2007). Considerando a deficiência, não
como uma característica do indivíduo, mas como o resultado da interacção deste
com um contexto envolvente que não contempla a diversidade, o Modelo Social dá
primazia a políticas sociais vocacionadas para a promoção de direitos e da
igualdade de oportunidades. Com base numa cultura de reconhecimento e inclusão
da diversidade, procura-se promover a compatibilidade, quer através da
habilitação/capacitação dos indivíduos, quer através da eliminação de barreiras.
No que se refere à estruturação dos apoios às populações alvo, o modelo prevê
que o atendimento das chamadas necessidades especiais seja feito nos serviços
regulares, os quais deverão estar organizados de modo a responder eficazmente às
necessidades dos diferentes grupos populacionais. De uma forma global, podemos
afirmar que o Modelo Social foi concebido com base no princípio de que os
sistemas sociais levam pessoas com lesões à experiência da incapacidade.
Encarando o indivíduo na sua dimensão estritamente social, o modelo perspectiva
a problemática das disfunções ou incapacidades enfatizando o impacto que o
contexto sócio-cultural envolvente exerce sobre cada indivíduo.
Apresentado no final dos anos setenta num artigo de Engel (CRPG, 2007: cap.
3), o Modelo Biopsicossocial representa um momento de compromisso entre as
abordagens biomédicas e as abordagens de cariz mais socializante. A ideia que
alicerça este modelo de referência é a de que o indivíduo deve ser considerado
nas suas dimensões biológica, psicológica e social, dimensões essas que, sendo
interdependentes, se afectam entre si. Partindo deste postulado, o modelo visa a
compreensão do funcionamento humano à luz das interacções entre os sistemas
biológico, psicológico e social. As características desta proposta podem ser
sintetizadas nos seguintes aspectos:
-
trata-se de um modelo aberto e interaccional que, ao enfatizar a
interdependência entre os principais domínios em que se joga a identidade do
indivíduo, equaciona a reabilitação e a inclusão social numa perspectiva
sistémica e interdisciplinar;
-
a saúde é encarada como resultado, não apenas de factores orgânicos, mas da
interacção complexa entre factores orgânicos, psicológicos e sociais;
-
segundo esta abordagem, a saúde tem impacto na pessoa, na família e
significativos, na comunidade e no Estado;
-
o modelo advoga a necessidade de uma abordagem holística e não fragmentada,
que coordene a prevenção com a reabilitação, a fim de garantir a qualidade do
funcionamento humano em cada momento;
-
o Modelo Biopsicossocial introduz um factor de humanização no processo de
reabilitação e inclusão social, na medida em que se aponta como situação ideal
que os profissionais especializados e todos os actores relevantes para a
qualidade do funcionamento humano estejam envolvidos no sistema de relações do
indivíduo;
-
trata-se, em suma, de um modelo que prevê um sistema aberto e
interdependente com a comunidade.
O principal contributo do Modelo Biopsicossocial para a reflexão e práticas
no âmbito da reabilitação e inclusão social foi sem dúvida a introdução de uma
perspectiva assumidamente sistémica. No plano teórico, esta perspectiva nega as
abordagens fragmentadas e reconhece os aspectos biológicos, psicológicos e
sociais como elementos importantes e inter-relacionados numa lógica de sistema
organizado. No plano prático, o modelo orienta a reabilitação e a inclusão
social no sentido de garantir em cada momento do processo o bem-estar dos
indivíduos alvo, por meio do equilíbrio positivo entre os vários factores que
determinam a qualidade do funcionamento humano.
Tendo como referência a ideia da vida humana como um todo resultante da
interacção de múltiplos factores, a abordagem biopsicossocial estabeleceu o
quadro teórico e operacional que permitiu a afirmação da qualidade de vida como
principal meta de referência do trabalho a desenvolver no âmbito da reabilitação
e inclusão social das pessoas com disfunções ou incapacidades. À luz da
afinidade patente entre o Modelo Biopsicossocial e a teoria dos sistemas
ecológicos de Bronfenbrenner (1989), pode definir-se Qualidade de Vida como
"condição biopsicossocial de bem-estar, integrando as experiências humanas,
objectivas e subjectivas, e as dimensões individuais e sociais de um determinado momento
sócio-histórico" (CRPG, 2007: cap. 3).
A análise da forma como evoluíram os modelos que organizam as práticas de
reabilitação e inclusão social das pessoas com disfunções ou incapacidades torna
evidente que:
-
a) os progressos ocorridos nesta área apontam inequivocamente para
intervenções que focam, não a disfunção/incapacidade em si mesma, mas o conjunto
de aspectos que podem contribuir para melhorar a qualidade de vida do seu
portador;
-
b) considerando que a qualidade de vida resulta do concurso positivo de
diversos factores que se influenciam mutuamente, essas intervenções, para serem
eficazes e atingirem a meta pretendida, deverão ser estruturadas segundo uma
perspectiva sistémica, de modo a focarem, não só os vários aspectos inerentes à
qualidade do funcionamento humano, mas também as relações que se estabelecem
entre eles.
Como já referimos em capítulo anterior, a qualidade de vida tem vindo
recentemente a afirmar-se como meta dos esforços que os grupos e organizações
desenvolvem em prol da reabilitação e inclusão social das pessoas com disfunções
ou incapacidades. As transformações que, pela sua natureza multifacetada, o
conceito veio introduzir, quer no plano da reflexão teórica, quer no plano da
intervenção prática, permitem-nos hoje considerar a existência de um Modelo de
Qualidade de Vida, na medida em que essas transformações formam um quadro
coerente, tanto ao nível dos princípios teóricos como ao nível da acção. A
decisão de apresentar e analisar este modelo num capítulo à parte, separando-o
assim dos modelos de intervenção anteriormente apresentados, foi tomada tendo em
vista que:
-
a) dada a sua abrangência e, consequentemente, o seu grau de complexidade, o
Modelo de Qualidade de Vida requer uma análise detalhada que, para além de focar
todos os aspectos relevantes, deve tornar clara a dinâmica de interacção
existente entre eles;
-
b) pela forma como articula conhecimentos anteriormente
adquiridos com os resultados das reflexões e pesquisas mais
recentes, este modelo assume uma importância estratégica numa orientação actualizada, ambiciosa e necessária do pensamento
e da prática na área das necessidades especiais decorrentes das disfunções ou
incapacidades;
-
c) atendendo aos objectivos do presente estudo e ao papel central que nele
desempenha o conceito de Qualidade de Vida, os critérios que presidem à recolha
e análise dos dados reflectem em grande medida os ítens e a estrutura
organizacional inerentes a este modelo.
A designação "Modelo de Qualidade de Vida" surge na obra MAIS QUALIDADE DE
VIDA PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - UMA ESTRATÉGIA PARA PORTUGAL (CRPG, 2007:
cap. 3) e refere uma estrutura conceptual e funcional caracterizada pela
multidimensionalidade e assente em três pilares fundamentais:
-
a) a articulação entre a definição de Qualidade de Vida proposta pelo WHOQOL
GROUP (OMS, 1994) e a perspectiva que encara a Qualidade de Vida como "condição
biopsicossocial de bem-estar, integrando as experiências humanas, objectivas e
subjectivas, e as dimensões individuais e sociais de um determinado momento
sócio-histórico" (CRPG, 2007);
-
b) o conjunto de oito dimensões de qualidade de vida identificadas por Robert
L. Schalock (1996), as quais suscitaram posteriormente um consenso alargado
entre os investigadores;
-
c) a Teoria das Necessidades Humanas (Constanza et al., 2006).
A definição da OMS identifica desde logo a Qualidade de Vida como uma percepção
do indivíduo. Este ponto prévio é importante na medida em que potencia e
reflecte uma tendência que se tem vindo a afirmar no plano da intervenção no
terreno: cada vez mais o processo de reabilitação e inclusão social tem em conta
a sensibilidade, as opiniões e as expectativas de vida das pessoas que dele
beneficiam. Por outro lado, ao enfatizar a importância da interacção entre os
objectivos e expectativas do indivíduo e os indicadores objectivos disponíveis
para o ambiente social e cultural em causa, a definição torna claro que a
qualidade de vida resulta da interacção entre a esfera individual - estado de
saúde física e mental, motivações, expectativas, experiências pessoais, etc. - e
o contexto sócio-cultural envolvente, traduzindo assim uma realidade
multifacetada que é o produto da relação de equilíbrio entre aspectos de
natureza diversa mas mutuamente influenciáveis. Assim, no seu conjunto, a
definição da OMS enquadra-se perfeitamente na perspectiva biopsicossocial, que
salienta a importância da relação entre os domínios biológico, psicológico e
social para o bem-estar do indivíduo, relação essa que assume os contornos inerentes ao
momento sócio-histórico que se esteja a considerar.
As oito dimensões de qualidade de vida identificadas por Robert L. Schalock
reflectem aspectos da vida consensualmente considerados como áreas-chave para o
bem-estar humano. O valor representativo destas dimensões reside sobretudo no
facto de elas terem sido as mais referidas pelas populações inquiridas em
numerosos estudos realizados durante a última década do século XX, os quais
tinham por objectivo identificar os principais factores que podem contribuir
para melhorar a qualidade de vida. Tomadas no seu conjunto, estas dimensões
representam um todo coerente em que as partes se influenciam mutuamente, numa
dinâmica que reflecte a natureza multifacetada e sistémica do conceito de
Qualidade de Vida. Considerando cada uma das dimensões de forma separada,
constatamos que elas se enquadram na definição de Qualidade de Vida como
"condição biopsicossocial de bem-estar, (...)", na medida em que podemos
identificar dimensões claramente pertencentes ao domínio biológico - bem-estar
físico -, dimensões do domínio psicológico - bem-estar emocional -, dimensões
que se inscrevem no domínio social - bem-estar material, inclusão social e
direitos - e, finalmente, dimensões que implicam directamente os domínios
psicológico e social - relações interpessoais, desenvolvimento pessoal e
auto-determinação -. No entanto, esta análise compartimentada serve apenas um
propósito utilitário: o de tornar clara a natureza intrínseca de cada uma das
dimensões de qualidade de vida. Feita esta clarificação, torna-se necessário ter
presente que os domínios biológico, psicológico e social são interdependentes e
que as dimensões de qualidade de vida formam um todo integrado cujo sentido só
pode ser inteiramente compreendido se tivermos em conta as relações que se
estabelecem entre elas.
A Teoria das Necessidades Humanas (Constanza et al., 2006) é uma abordagem
que operacionaliza o conceito de Qualidade de Vida em articulação com as
necessidades humanas, o bem-estar subjectivo e as oportunidades disponíveis no
meio ambiente. À
luz desta abordagem, a qualidade de vida é entendida como "uma interacção entre
as necessidades humanas e a percepção subjectiva da sua realização, enquanto
processo mediado pelas oportunidades disponíveis" (Constanza et al., 2006,
adaptado por CRPG, 2007: cap. 3). Como se pode constatar pela definição
apresentada, um dos pontos centrais da Teoria das Necessidades Humanas é o
estabelecimento de uma relação entre a qualidade de vida dos indivíduos e as
oportunidades que o meio envolvente disponibiliza para satisfazer as
necessidades humanas com vista à promoção do capital humano e social. O
enriquecimento desse leque de oportunidades está intimamente dependente do conjunto de
opções políticas disponibilizadas para o efeito.
Embora a Teoria das Necessidades Humanas seja apenas um dos pilares do Modelo
de Qualidade de Vida, julgamos necessário consagrar mais algumas linhas ao
aprofundamento da breve apresentação já feita, atendendo ao valor desta
proposta, não apenas como contributo para a consolidação teórica do mesmo
modelo, mas sobretudo como referência fundamental para a sua operacionalização.
Assim, os autores do estudo que sustenta esta teoria referem como oportunidades
para satisfazer as necessidades humanas a existência de tempo e de capital
humano, natural e social. No que concerne especificamente às necessidades
humanas, são identificados quatro domínios fundamentais:
QUADRO 2
|
DOMÍNIOS
|
NECESSIDADES
|
Subsistência
|
Reprodução e segurança
|
Afecto
|
Compreensão e participação
|
Lazer
|
Espiritualidade e
criatividade/expressão emocional
|
Identidade
|
Liberdade
|
A satisfação destas necessidades mediante as oportunidades disponíveis em
quantidade e qualidade aceitáveis resulta, segundo a teoria em análise, no
bem-estar subjectivo, traduzido nos sentimentos de alegria, utilidade e
segurança/estabilidade social para os indivíduos e/ou grupos. Segundo os
autores, esta situação de estabilidade e realização social está intimamente
relacionada - como consequência e como factor de dinamização - com o
desenvolvimento de normas sociais que deverão ter o seu reflexo e o seu suporte
de dinamização ao nível da esfera política. (CRPG, 2007: cap.3). Em termos
globais, o estudo que temos vindo a referir torna evidente que a concepção das
acções para a promoção da qualidade de vida deve centrar-se em três eixos
políticos fundamentais: a criação de oportunidades, o desenvolvimento de
competências e a mudança de normas e valores.
Apresentados os três pontos de referência em que assenta a estrutura
conceptual e operacional subjacente ao Modelo de Qualidade de Vida, torna-se
necessário perceber de que forma eles se inter-relacionam num todo coerente.
Assim, e numa primeira análise, a definição de Qualidade de Vida proposta pela
OMS, o conjunto de dimensões de qualidade de vida identificado por Schalock e a Teoria das Necessidades Humanas (Constanza
et al., 2006) são três resultados visíveis do esforço de reflexão e pesquisa que
a comunidade científica internacional tem vindo a desenvolver ao nível da
promoção e da avaliação da qualidade de vida da população em geral e de alguns
grupos sociais mais vulneráveis, em particular. Neste estudo, optámos por
apresentar estes três elementos pela ordem do seu aparecimento, pois dessa forma
fica mais evidente a relação de sequência e continuidade existente entre eles.
Assim, a definição de Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde (1994),
sendo de carácter bastante generalista, acaba por determinar em termos básicos a
natureza do conceito, estabelecendo bases orientadoras para a investigação,
reflexão e debate subsequentes. As oito dimensões de qualidade de vida
identificadas por Robert L. Schalock em 1996 clarificam os aspectos a ter em
conta, tornando mais fácil e passível de sistematização a recolha de dados
concretos no âmbito dos estudos de avaliação da qualidade de vida. A Teoria das
Necessidades Humanas proporciona dois contributos que consideramos essenciais.
Por um lado, equaciona o conceito de Qualidade de Vida - tal como está definido
- e as dimensões que o concretizam à luz de uma visão política, criando assim as
condições teóricas para que esta problemática seja introduzida de uma forma mais
efectiva como tema a ter em conta pelos órgãos políticos de decisão de âmbito
nacional e internacional. Por outro lado, esta proposta confere ao Modelo de
Qualidade de Vida um sentido operacional que faz com que este não seja apenas um
mero exercício de reflexão teórica, de âmbito estritamente académico, mas seja
também um modelo de intervenção com alcance político e social, capaz de
contribuir eficazmente para a resolução dos problemas sociais mais prementes dos
vários extractos populacionais, sobretudo dos mais vulneráveis.
Mas uma análise mais detalhada demonstra que, sob alguns aspectos, a
formulação da Teoria das Necessidades Humanas assenta em dados resultantes do
estudo de Schalock, o qual, recorde-se, apresentámos como o segundo elemento da
estrutura subjacente ao Modelo de Qualidade de Vida. De facto, um exame mais
pormenorizado dos domínios em que, segundo os autores, se expressam as
necessidades humanas -subsistência, afecto, lazer e identidade - demonstra
claramente que estes cobrem todo o universo inerente às oito dimensões de
qualidade de vida identificadas dez anos antes por Schalock. Do mesmo modo, os
três eixos fundamentais em que, segundo o mesmo estudo, se devem centrar as
acções para a promoção da qualidade de vida - criação de oportunidades,
desenvolvimento de competências, mudança de normas e valores - traduzem linhas
de acção que, quer pela natureza de cada uma delas, quer pelo seu carácter
abrangente, acabam também por ter impacto ao nível de todas as dimensões de qualidade de vida. Esse impacto
torna-se mais óbvio se levarmos em linha de conta a relação de interdependência
que existe entre os vários aspectos que se consideram determinantes para a
qualidade de vida dos seres humanos.
Em resumo, as relações existentes entre os três principais pontos de
referência do Modelo de Qualidade de Vida formam uma estrutura bastante
complexa, passível de ser analisada, tanto numa perspectiva sincrónica como numa
perspectiva diacrónica. A dinâmica de sincronismo inerente a este modelo está
patente no facto de os três pontos de referência do mesmo nos remeterem para uma
realidade multifacetada cujo traço mais visível é a relação de interdependência
existente entre as oito dimensões de qualidade de vida, relação essa que, em
cada momento de vida, determina o universo biopsicossocial de cada indivíduo. A
dimensão diacrónica do modelo prende-se com a forma como este reflecte a
evolução das investigações e da reflexão teórica na área da qualidade de vida,
sobretudo ao longo destas últimas duas décadas e meia. Na verdade, se
considerarmos a forma como surgiram os três estudos que servem de pontos de
referência ao modelo, constataremos que o primeiro - a definição de Qualidade de
Vida da OMS - criou as condições para o surgimento do segundo - as oito
dimensões de Qualidade vida -, o qual, por sua vez, estabeleceu as condições
concretas para a elaboração do terceiro - a Teoria das Necessidades Humanas -.
Numa primeira abordagem, pode caracterizar-se a adolescência como um período
de crescimento e de novas oportunidades, mas também de mudanças, desafios e
incertezas passíveis de afectar o bem-estar (Gómez-Vela & Verdugo, 2006: cap.
II). Efectivamente, as transformações - tanto físicas como psicológicas - que
ocorrem nesta etapa da vida colocam os jovens perante uma realidade que, sob
muitos aspectos, representa um corte com o que existia anteriormente, isto é,
com a realidade física e psicológica inerente à infância. Acresce que a nova
realidade não é estável, pois as mudanças de carácter físico e psíquico a que
nos referimos ocorrem de forma gradual e por etapas, ao longo de quase dez anos,
o que gera instabilidade a vários níveis e obriga os jovens a um esforço
permanente na busca de referências identitárias. Este esforço de adaptação faz
da adolescência uma etapa crucial na vida humana, dado que a resposta positiva
ou negativa às mudanças, desafios e oportunidades, estando dependente da
personalidade de cada indivíduo, vai modelar essa mesma personalidade e exercer
uma influência determinante na construção de um modo de vida e de uma identidade
adulta.
A definição e caracterização daquilo que consideramos como Adolescência
coloca algumas questões de ordem conceptual e metodológica que é necessário
analisar sob pena de obtermos uma visão parcelar e redutora de uma etapa de vida
que é, sob muitos aspectos, tão determinante e complexa. Na sua dissertação
intitulada A VIVÊNCIA DA SEXUALIDADE POR ADOLESCENTES PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA
VISUAL (2007:cap.2), Camilla Pontes Bezerra refere a existência de uma
diversidade de conceitos para caracterizar a Adolescência e, por consequência, a
inexistência de uma definição clara, objectiva e única. Faz notar que "as
definições para caracterizar o início e o fim da adolescência não têm carácter
universal"; que, considerando os aspectos biopsicossociais, "o início e o fim da
adolescência não é aos 10 e aos 19 anos para todas as pessoas" e que "os
fenómenos de amadurecimento biológico, psicológico e social não acontecem de
forma sincronizada no tempo". Acrescenta que, por razões que se prendem com as
dinâmicas sociais que se estabelecem, nas classes menos favorecidas o
amadurecimento psicossocial ocorre em ritmo mais acelerado e conclui deste facto
que "a sexualidade, a gravidez e a maternidade são reflexos do contexto em que
se desenvolvem" (Vitiello, 1988, cit. por Bezerra, 2007: cap. 2). Neste sentido,
a autora sustenta que, "mais que uma etapa cronologicamente definida, a
adolescência é um fenómeno histórico e social muito variável".
Ainda relativamente a esta análise, é importante termos presente que, sendo a
adolescência um fenómeno tão complexo e abrangente, ela torna-se objecto de
estudo para diversas áreas científicas. A este propósito, Pontes Bezerra defende
a ideia de que "as concepções de adolescência existentes advêm da necessidade
das várias disciplinas de representar melhor o seu universo de estudo (Corrêa,
2004, cit. por Bezerra, 2007: cap. 2).
Tomando como ponto de partida a ideia consensual de que a adolescência é um
dos períodos mais importantes da vida do indivíduo, período no qual se sucedem
eventos de vária ordem que constroem as bases da vida adulta (Corrêa, 2004, cit.
por Bezerra, 2007), julgamos pertinente referir duas propostas para a definição
de Adolescência que, traduzindo diferentes graus de profundidade na análise, são
complementares e proporcionam no seu conjunto uma perspectiva que consideramos
suficientemente abrangente - e portanto bastante válida - desta etapa da vida
humana. Uma das propostas, de âmbito mais genérico, sustenta que a Adolescência
é "uma fase específica do desenvolvimento humano, caracterizada por mudanças
fundamentais para que o indivíduo possa atingir a maturidade e se inserir na
sociedade no papel de adulto" (UNICEF, 2002, cit. por Bezerra, 2007: cap. 2). A
outra proposta, de cariz mais técnico, reconhece como Adolescência "o período
situado entre 10 e 19 anos, caracterizado pelo amadurecimento físico,
psicológico e social, transição da infância para a idade adulta". Especifica
ainda que a Adolescência "é subdividida em dois períodos: 10 a 14 anos, fase em
que há o aparecimento de caracteres sexuais secundários, e 15 a 19 anos,
finalização do crescimento e desenvolvimento morfológicos" (OMS, 1998-2002, cit.
por Bezerra, 2007: cap. 2).
A definição de Adolescência proposta pela UNICEF reveste-se, como já
salientámos, de um carácter muito genérico. No entanto, é essa circunstância que
lhe confere um certo grau de universalidade, na medida em que todas as
comunidades humanas, qualquer que seja o contexto cultural que lhes esteja
subjacente, partilham a noção de que, para se inserir na sociedade no papel de
adulto, qualquer ser humano tem de passar por um processo de mudanças e adquirir
características que não possui, nem à nascença, nem durante o período que
actualmente denominamos como Infância. A definição proposta pela Organização
Mundial de Saúde coloca alguns problemas no que respeita à sua universalização
em virtude da associação de referências cronológicas precisas a momentos
considerados chave na adolescência. No entanto, ela revela-se extremamente
válida no que respeita à sistematização do conceito, na medida em que fornece
informação explícita sobre a forma como decorre o processo de mudanças inerente à adolescência e proporciona, de modo
implícito, uma perspectiva das necessidades do ser humano no decorrer desse
processo.
A informação constante destas propostas e a relação de complementaridade
existente entre elas permite-nos definir a Adolescência como uma fase específica
do desenvolvimento humano que marca a transição entre a Infância e a idade
adulta e que se caracteriza por mudanças físicas, psicológicas e sociais
indispensáveis para que o indivíduo atinja a maturidade e se integre na
sociedade como adulto. A noção de que para atingir a maturidade e se integrar na
sociedade como adulto qualquer ser humano tem de sofrer um processo de mudanças
confere a esta definição o grau de universalidade necessário à sua utilização
como referência para a recolha de dados, não só no âmbito deste estudo em
particular, como também no âmbito de estudos realizados em diferentes contextos
sócio-culturais. O facto de não existirem referências cronológicas concretas
associadas a cada uma das mudanças reforça esse potencial de adaptabilidade. Por
outro lado, ao especificar o tipo de mudanças que ocorrem, esta formulação
conceptual permite perceber as experiências vividas e as necessidades sentidas
pelos seres humanos durante a adolescência.
Conforme referem Miguel Ángel Verdugo Alonso e Maria Gómez-Vela na obra
COMO
MEJORAR LA CALIDAD DE VIDA DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD (2006: cap. II), o
interesse pela satisfação que os adolescentes sentem com a sua vida é recente:
começou a verificar-se apenas a partir da última década do século XX. A
consequência mais notória deste facto é a de, segundo os mesmos autores, os
instrumentos de avaliação da qualidade de vida para a população adolescente
serem escassos e evidenciarem limitações. Na mesma linha de pensamento, os
autores fazem ainda notar que a ampliação da concepção de bem-estar verificada
nos últimos anos tornou necessários novos desenvolvimentos sobre a satisfação
vital sentida durante a adolescência, desenvolvimentos esses que a maioria dos
estudos relativos a esta faixa populacional não reflecte.
Assim, as primeiras abordagens à qualidade de vida na adolescência tiveram um
carácter marcadamente psicopatológico (Gilman & Huebner, 2000; Huebner, 1994,
cit. por Gómez-Vela &Verdugo, 2006: cap. II) e não contemplaram, nem a qualidade
de vida na sua globalidade - tal como ela é hoje entendida -, nem a adolescência
como um processo de mudanças biológicas, psicológicas e sociais indispensável
para que o indivíduo assuma o seu papel na sociedade como adulto. No entanto,
Gómez-Vela & Verdugo referem a existência de trabalhos cujas conclusões, embora
com carácter parcelar, fornecem pistas importantes para o estudo da qualidade de
vida desta faixa populacional. Para efeitos de enquadramento e discussão dos resultados do presente estudo, consideramos pertinente fazer
referência a alguns desses dados, a saber:
-
a) o auto-conceito, a auto-estima, a maturidade psicológica, as relações com
o sexo oposto e a aceitação no grupo de iguais são variáveis que afectam
positiva ou negativamente o bem-estar que se experimenta na adolescência;
-
b) existe uma relação negativa entre o bem-estar dos adolescentes e factores
como a ansiedade, os estados neuróticos, os sintomas depressivos, a solidão e o
stress;
-
c) o nível de satisfação/insatisfação com a vida exerce influência sobre a
forma de enfrentar factores de stress próprios da adolescência, podendo estar na
origem da adopção de condutas de risco.
Partindo do reconhecimento de que os modelos teóricos e os instrumentos de
avaliação da qualidade de vida são escassos - quer no que respeita à população
adolescente em geral, quer no que respeita aos jovens com disfunções ou
incapacidades em particular - e evidenciam limitações e incoerências com a
formulação actual do conceito de Qualidade de Vida, Gómez-Vela & Verdugo (2006:
cap. II) apresentam-nos a sua pesquisa, que teve como objectivos:
-
a) elaborar uma referência conceptual sobre a qualidade de vida na
adolescência;
-
b) construir, com base nessa referência, um instrumento de avaliação adaptado
às características de adolescentes com e sem disfunções ou incapacidades.
Para a elaboração da referência conceptual pretendida, os autores procederam,
numa primeira fase, à revisão analítica de todos os modelos conceptuais
relativos à qualidade de vida de grupos populacionais que possuem
características comuns com os adolescentes. A lista de dimensões e indicadores
de qualidade de vida resultante dessa revisão foi posteriormente submetida a uma
análise de frequência para determinar quais as dimensões mais referidas pelas
populações alvo. Foi identificado um conjunto de sete dimensões: relações
interpessoais; bem-estar material; desenvolvimento pessoal; bem-estar emocional;
integração na comunidade; bem-estar físico; auto-determinação.
Para comprovar a adequação destas sete dimensões como abordagem à qualidade
de vida dos adolescentes, os autores construíram um questionário com sete
perguntas de final aberto sobre alguns aspectos relevantes da vida e o grau de
satisfação que os adolescentes experimentam relativamente a eles. O questionário
foi aplicado a 39 jovens, mais de metade dos quais era portador de algum tipo de
disfunção/incapacidade, predominantemente nas áreas motora e intelectual. Uma
análise qualitativa das respostas obtidas, consistindo na divisão de cada uma delas em orações e na
associação de cada oração a um indicador e a uma das sete dimensões
referidas, permitiu estabelecer a estrutura conceptual que seguidamente
se apresenta e que serve de referência para a recolha de dados no âmbito
do presente estudo:
DIMENSÕES
|
INDICADORES
|
Relações
Interpessoais
|
Relações com a
família, com os amigos, com os companheiros e com os conhecidos; redes
de apoio social.
|
Bem-estar Material
|
Alimentação;
habitação; estatuto económico da família; posses.
|
Desenvolvimento
Pessoal
|
Habilidades,
capacidades e competências; actividades significativas; educação,
oportunidades formativas; ócio.
|
Bem-estar
Emocional
|
Satisfação,
felicidade, bem-estar geral; segurança pessoal/emocional; auto-conceito,
auto-estima e auto-imagem; metas e aspirações pessoais; crenças,
espiritualidade.
|
Integração/Presença na Comunidade
|
Acesso, presença,
participação e aceitação na comunidade; estatuto dentro do grupo social;
integração; actividades sócio-comunitárias; normalização; acesso aos
serviços comunitários.
|
Bem-estar Físico
|
Saúde e estado
físico; mobilidade; segurança física; assistência sanitária.
|
Auto-determinação
|
Escolhas pessoais;
tomada de decisões; controlo pessoal; capacitação; autonomia
|
Com base nesta referência conceptual, os autores
elaboraram um questionário de avaliação da qualidade de vida adaptado às
características da população adolescente com e sem disfunções ou incapacidades,
o qual aplicaram num universo de 1121 alunos da Educação Secundária Obrigatória,
contactados através dos Centros Educativos de Salamanca. Mencionamos
seguidamente alguns dos resultados obtidos no âmbito desta pesquisa, na medida
em que, à semelhança de outros dados que temos vindo a apresentar, eles
constituem referências importantes para o enquadramento e discussão dos
resultados do presente estudo.
Assim, os jovens com disfunções ou incapacidades obtiveram pontuações
inferiores às dos restantes adolescentes nas dimensões Desenvolvimento Pessoal,
Bem-estar Físico e Autodeterminação.
No respeitante ao Desenvolvimento Pessoal, 54% dos alunos com disfunções ou
incapacidades apresentavam atraso escolar e 32% revelavam problemas cognitivos.
Gómez-Vela & Verdugo Alonso sustentam que o carácter academicista da educação
coloca maiores dificuldades a alunos com estas características, sendo assim
compreensível a percepção negativa destes relativamente ao seu desempenho
educativo e as suas baixas expectativas no tocante às possibilidades de
progredirem no futuro a partir da formação que recebem.
No que concerne à dimensão Bem-estar Físico foi detectada a presença de
problemas visuais, auditivos e de hiperactividade. Os autores da investigação
salientam que esta última problemática e as dificuldades cognitivas geram
problemas de conduta que, em muitos casos, implicam a toma de medicamentos.
Todas estas circunstâncias conduziram a que as respostas dadas pelos jovens às
questões relativas a esta dimensão fossem apenas o reflexo das problemáticas por
eles vividas.
No que se refere à dimensão Autodeterminação, Gómez-Vela & Verdugo Alonso
fazem notar que os adolescentes com disfunções ou incapacidades - que, por um
lado, se confrontam com os obstáculos que o contexto envolvente lhes coloca e,
por outro, sentem as necessidades e exigências inerentes à própria adolescência
- vêem muito limitado o seu direito de tomar decisões relevantes sobre a sua
vida, de fazer escolhas significativas e de sentir que exercem controlo sobre
aspectos tão importantes como a educação ou as amizades.
Ainda no âmbito da pesquisa que temos vindo a referir e tomando como base a
comparação entre os adolescentes com e sem disfunções ou incapacidades, os
autores constatam que, nas respostas à secção qualitativa do questionário, os
primeiros fizeram mais referências a questões ligadas à dimensão
Integração/Presença na Comunidade, atribuindo importância a aspectos como: ser
aceites; dispor das mesmas oportunidades para aceder e participar na comunidade;
viver uma vida normalizada.
Gómez-Vela & Verdugo Alonso referem ainda que os elementos do sexo masculino
com e sem disfunções ou incapacidades obtiveram pontuações superiores às dos
elementos do sexo feminino na dimensão Bem-estar Emocional e inferiores na
dimensão Desenvolvimento Pessoal. Os elementos do sexo feminino mostraram-se
mais satisfeitos que os do sexo masculino relativamente às experiências e
resultados académicos, mas menos satisfeitos consigo próprios, com a sua imagem
e com a sua vida em geral.
Registe-se ainda que, quer no grupo dos adolescentes com disfunções ou
incapacidades, quer no grupo dos que não apresentavam qualquer alteração, os
elementos com mais de 15 anos obtiveram pontuações inferiores nas dimensões
Relações Interpessoais, Integração/Presença na Comunidade, Desenvolvimento
Pessoal, Bem-estar Emocional e Bem-estar Físico. Os autores atribuem estes
resultados às exigências evolutivas e às características inerentes ao período
final da adolescência. O facto de os elementos com mais de 15 anos terem obtido
pontuações superiores às dos restantes na dimensão Autodeterminação - e isto
também em ambos os grupos - reflecte, segundo os autores, a maior independência
e a maior capacidade de controlar a própria vida que os adolescentes com mais
idade necessariamente evidenciam.
Embora os estudos sobre a qualidade de vida da população adolescente em geral
- e dos adolescentes com disfunções ou incapacidades, em particular - sejam
escassos e alguns deles de carácter muito parcelar, os dados existentes permitem
afirmar que, sendo a Adolescência um período de incertezas, de desafios e de
oportunidades de desenvolvimento para todos os seres humanos, ela é uma etapa
duplamente crítica para os portadores de disfunções ou incapacidades, na medida
em que estes têm ainda de se confrontar com os obstáculos que advêm da
interacção entre as suas características e as características do meio
sócio-cultural e físico envolvente, obstáculos esses que:
-
a) limitam e por vezes inviabilizam as respostas positivas destes
adolescentes aos desafios inerentes ao processo de mudança e crescimento;
-
b) limitam ou impedem o aproveitamento das oportunidades de desenvolvimento e
a satisfação das necessidades biológicas, psicológicas e sociais próprias da
adolescência;
-
c) comprometem, por esta via, o
desenvolvimento harmonioso destes adolescentes,
condicionando a sua posterior capacidade para
desempenhar as tarefas e os papéis exigidos pela
sociedade a um ser humano adulto.
A definição de "cego" não é evidente nem universal (Cunha, 2007: cap.2). Esta
afirmação pode gerar alguma perplexidade se, de uma forma generalista,
encararmos a cegueira como a ausência da capacidade visual. No entanto, ela
traduz uma realidade bastante mais complexa, cuja análise se torna indispensável
para uma definição cabal do conceito. Quando falamos de cegueira podemos
considerar dois ângulos de abordagem: uma vertente puramente biomédica, que se
prende com a delimitação do grau de acuidade visual a partir do qual um
indivíduo é considerado cego, e uma vertente mais prática, que equaciona esta
disfunção sensorial com referência às suas implicações na vida das pessoas e
procura caracterizar o quadro funcional que nos permite falar de cegueira.
Em 1989, a OMS apresentou uma proposta para a "classificação da cegueira e
das visões sub-normais", que identificava os seguintes quadros clínicos: visão
normal, caracterizada por uma disfunção visual nula ou ligeira; ambliopia,
traduzindo uma disfunção visual moderada ou grave; cegueira, classificada como
profunda, quase total ou total (Hugonnier-Clayette et al., 1989, cit. por Cunha,
2007:cap.2). A cada um destes quadros clínicos foram associadas indicações
relativas aos valores de acuidade visual correspondentes. No entanto, esta
classificação reveste-se, em si mesma, de um carácter bastante abstracto, na
medida em que não contempla as repercussões de cada um dos quadros clínicos na
vida dos indivíduos.
Assim, Hugonnier-Clayette et al., (1989) apresentaram uma classificação mais
concreta, baseada em noções que reflectem as implicações práticas desta
disfunção sensorial, a saber:
-
A "cegueira de locomoção ou prática" - Corresponde à situação em que "o
indivíduo já não pode encontrar um caminho por meio da visão", nem "contar os
dedos à distância de dois metros (...)";
-
A "cegueira legal" - "É o grau de acometimento visual que permite a um
indivíduo receber um auxílio" e varia de país para país;
-
A "cegueira profissional, ou económica"
- Assim designada "quando impede um sujeito
de desempenhar um trabalho qualquer".
"Corresponde à acuidade de 1/10 no melhor
olho (...)".
Baseando-nos no princípio de que qualquer estudo sobre a qualidade de vida de
grupos populacionais com características específicas deve centrar-se na
interacção entre essas características e o meio envolvente, optámos, para
efeitos da presente dissertação, por uma definição de carácter eminentemente
prático, que nos remete para as implicações desta disfunção sensorial na
interacção entre as características do seu portador e as características do meio
físico, social e cultural no qual ele se move. Assim, consideramos como Cegueira
a disfunção sensorial que impede um indivíduo de se locomover, ler, escrever,
realizar tarefas da vida quotidiana ou desempenhar funções profissionais com
recurso à visão.
Em nosso entender, esta definição enquadra-se perfeitamente numa abordagem
actualizada da problemática relativa às disfunções ou incapacidades, na medida
em que, sem deixar de descrever a característica física específica - a disfunção
sensorial designada como Cegueira - equaciona a incapacidade do seu portador
para realizar determinada tarefa, não como um facto inerente à própria disfunção
sensorial, mas como uma incapacidade de desempenhar uma determinada tarefa com
recurso ao sentido afectado por essa disfunção sensorial: no caso, a visão. Ao
admitirmos que determinada tarefa ou função não pode ser desempenhada com
recurso ao sentido da visão mas pode sê-lo com recurso a outros sentidos,
estamos a assumir implicitamente que, se se verificar um ajuste do meio físico
envolvente às características perceptivas do portador de cegueira, a
incapacidade deixa de existir. Este raciocínio - alicerçado, não num mero
exercício especulativo, mas no conhecimento concreto das potencialidades
perceptivas do corpo humano - leva-nos a concluir que:
-
a) sendo possível adequar o meio físico envolvente ao desempenho de
determinada tarefa/função por um indivíduo com características perceptivas
específicas, a decisão de proceder ou não a tal adequação depende sempre da
perspectiva e da vontade de quem, em cada situação, tem o poder de decidir;
-
b) a capacidade ou incapacidade do
portador de cegueira ou de qualquer
outra disfunção sensorial para
desempenhar esta ou aquela tarefa/função
está intimamente dependente dos valores
sócio-culturais que presidem à
estruturação do meio físico em que essa
tarefa/função é desempenhada.
"Atestam as pesquisas mais recentes que os olhos são responsáveis por no
mínimo 80% das impressões recebidas através da sensibilidade. Habitamos um mundo
que se manifesta de forma predominantemente visual" (Oliveira, 1998, cit. por
Batista, 2008). Interpretada sob uma perspectiva radicada no senso comum - que
estabelece uma equivalência quase absoluta entre percepção e conhecimento - esta
afirmação poderia ser tomada como um argumento científico em favor de uma
concepção da cegueira como factor incapacitante em si mesmo e como causa de uma
supostamente inevitável exclusão económica, social e mesmo afectiva dos seus
portadores. Todavia, são precisamente os avanços científicos mais recentes na
compreensão da maneira como se forma e estrutura o conhecimento humano que
contribuem decisivamente para desmistificar uma concepção da cegueira que, sendo
ainda hoje dominante em muitos sectores, viola gritantemente os princípios
éticos que deverão presidir a uma sociedade que se pretende cada vez mais
inclusiva e participada.
Assim, uma análise mais cuidada das implicações subjacentes à afirmação de
que "os olhos são responsáveis por no mínimo 80% das impressões recebidas
através da sensibilidade" torna desde logo necessária a reflexão sobre algumas
questões de cariz epistemológico:
-
"O que é conhecer? Ver é conhecer? Sentir sensorialmente é conhecer?"
(Batista, 2008).
As abordagens a este assunto na área da psicologia e na área educacional
relacionam o acto de conhecer com a aquisição de conceitos (Batista, 2008). Ou
seja, o indivíduo só conhece verdadeiramente algo quando é capaz de organizar em
conceitos as informações recebidas/percepcionadas através dos sentidos. Uma
revisão da literatura internacional produzida entre 1980 e 2004 em torno das
capacidades de conceptualização evidenciadas pelas pessoas cegas mostra a
existência de um número relativamente reduzido de estudos sobre a matéria. No
entanto, a tendência geral dos resultados desses estudos indica que os cegos
apresentam capacidades conceptuais semelhantes às das pessoas com visão, estando
as diferenças relacionadas com modos alternativos de processamento cognitivo das
informações sensoriais (Nunes, 2004, cit. por Batista, 2008).
Uma revisão de literatura sobre o desenvolvimento de crianças cegas (Lewis,
2003) permite igualmente concluir que "a cegueira não impede o desenvolvimento,
mas este difere de diversos modos do apresentado pelas crianças videntes"
(Lewis, 2003, cit. por Batista, 2008). A autora da mesma revisão sugere
igualmente que o estudo de crianças cegas pode ser significativo para as teorias
do desenvolvimento e apresenta três implicações teóricas decorrentes das
conclusões a que chegou.
A primeira dessas implicações prende-se com a necessidade de identificar
rotas alternativas de desenvolvimento (Lewis, 2003, cit. por Batista, 2008). A
autora refere a linguagem como principal fonte de informação para a criança cega
e como possível substituto para muito do que ela perde pela falta de visão. No
entanto, baseando-se numa concepção do conhecimento como fruto da interacção
entre as informações provenientes dos sentidos e os processos cognitivos,
Cecília Guarnieri Batista lembra que a linguagem é importante para qualquer
pessoa e que é difícil falar num único substituto para a visão. No caso das
crianças cegas, Batista coloca como questão central a de saber "como se
organizam e se integram as informações provenientes dos sentidos remanescentes e
qual o papel da linguagem e do pensamento nessa organização".
A segunda implicação está relacionada com a necessidade de se investigarem as
influências ambientais ao longo da história do desenvolvimento da criança,
deixando assim de se considerar o limite orgânico como único factor de produção
de dificuldades. Segundo Lewis (2003, cit. por Batista, 2008), essa investigação
torna-se particularmente necessária no caso das crianças cegas que denotam
problemas de desenvolvimento mas que não apresentam problemas cerebrais que os
justifiquem.
A terceira implicação refere-se à necessidade de trabalhar com formulações
teóricas que não se baseiem apenas no estudo do desenvolvimento de crianças sem
problemas visuais. Neste sentido, Lewis (2003, cit. por Batista, 2008) critica
os modelos organicistas de abordagem ao desenvolvimento infantil, os quais
estabelecem etapas claramente delimitadas do desenvolvimento e, como sucede no
caso da teoria do desenvolvimento proposta por Piaget, encaram o aparecimento de
diferentes manifestações como reflexo da habilidade subjacente de representação
do ambiente, por parte da criança. Lewis propõe a substituição dos modelos
organicistas por modelos contextualistas que:
-
enfatizam a descontinuidade no processo de desenvolvimento do ser humano,
por oposição a uma ideia de continuidade linear;
-
encaram a criança como sujeito activo da sua socialização e desenvolvimento
e não como um ser passivo, totalmente dependente de imperativos biológicos e do
ambiente social;
-
concebem a história do desenvolvimento como narrativa, como representação
de eventos passados, e não como mera fotografia de um dado momento do processo
(Lewis, 2003, cit. por Batista, 2008).
Como facilmente se pode constatar, estas implicações teóricas não dizem
apenas respeito ao estudo do desenvolvimento infantil. Elas abrangem o estudo de
todo o processo de desenvolvimento dos seres humanos e reflectem toda uma nova
perspectiva científica que, no caso dos portadores de cegueira congénita ou
precoce, tem repercussões extremamente importantes. Com efeito, o reconhecimento
de que os portadores de cegueira têm capacidades conceptuais idênticas às dos
cidadãos sem problemas visuais coloca desde logo a sociedade perante o
imperativo ético de criar condições para que os cegos acedam ao conhecimento em
pé de igualdade com os restantes cidadãos. Em termos práticos, este imperativo
traduz-se no desafio de criar formas de apresentação e representação da
informação que se adequem às características sensoriais de quem se vê privado do
sentido da visão.
Para uma melhor compreensão das características sensoriais dos portadores de
cegueira julgamos importante ter em conta as diferenças entre a percepção e
processamento da informação mediante o tacto e mediante a visão. Sobre este
assunto, é de novo Cecília Guarnieri Batista que, no seu trabalho intitulado
FORMAÇÃO DE CONCEITOS EM CRIANÇAS CEGAS: QUESTÕES TEÓRICAS E IMPLICAÇÕES
EDUCACIONAIS (2008), nos dá conta da investigação desenvolvida por E. Ochaita e
A. Rosa (1995), os quais apresentam o "sistema háptico" ou "tacto activo" como o
sistema sensorial mais importante para o conhecimento do mundo pela pessoa cega.
Assim, a captação mediante o tacto é muito mais lenta do que a proporcionada
pelo sistema visual e a informação recebida tem carácter sequencial, o que traz
como consequência uma maior carga na memória de trabalho - que corresponde,
necessariamente, a um maior esforço mental, acrescentamos - quando os objectos a
serem explorados são grandes ou numerosos. Enquanto o tacto só pode explorar as
superfícies que se encontram ao alcance da mão e permite captar sequencialmente
determinadas propriedades dos objectos - temperatura, textura, forma e relações
espaciais -, a visão permite a obtenção de informação simultânea e à distância
(Ochaita & Rosa, 1995, cit. por Batista, 2008).
Da análise destas diferenças decorre a conclusão óbvia de que a visão é o
sistema sensorial mais imediato e um dos mais abrangentes. Ou seja, numa grande
parte das situações do nosso quotidiano, o sistema visual é o primeiro a receber
a informação, podendo desde logo captar diferentes aspectos de uma mesma
realidade. Sobretudo ao nível do senso comum, este facto tem dado origem a uma
valorização do papel da visão, valorização essa que, segundo Batista (2008), se
tem reflectido nalguns erros de avaliação que a própria autora explicita.
O primeiro desses erros consiste em confundir o papel da percepção visual
global com o dos processos mentais superiores na compreensão de conceitos
(Batista, 2008). Este foi o equívoco que mais directamente terá contribuído para
que, durante muito tempo, as capacidades cognitivas das pessoas cegas fossem
colocadas em questão e para que os mecanismos de exclusão se tivessem enraizado
na nossa sociedade de forma tão profunda.
O segundo erro consiste em subestimar o valor das informações sequenciais
(Batista, 2008). Esta atitude entra em contradição com a dinâmica subjacente a
aspectos basilares da vida humana, na medida em que menospreza implicitamente um
facto importantíssimo: a linguagem verbal e a música - que estruturam desde
sempre o universo vivencial do ser humano e reflectem, por assim dizer, tudo o
que este tem de mais elaborado no tocante às capacidades de conceptualização -
são manifestações que se organizam segundo uma lógica informativa de carácter
predominantemente sequencial.
Há ainda um outro aspecto que consideramos importante e ao qual Cecília
Guarnieri Batista faz referência: as pessoas que não apresentam disfunções
visuais baseiam-se muito mais em informações conjugadas a partir de vários
sentidos do que unicamente na visão. A desvalorização deste facto leva a que
algumas tarefas sejam consideradas como essencialmente visuais quando na
realidade não o são, pois vários sentidos - entre os quais o sentido
proprioceptivo - participam na sua execução, que, em última análise, não pode
dispensar o papel fundamental dos processos cognitivos. É nesta medida que,
"para um cego, não se trata de substituir a visão por outros sentidos,
supostamente inactivos, mas de os accionar de forma diferente" (Batista, 2008).
Ainda relativamente a esta matéria, consideramos pertinente referir o
seguinte: ao longo deste subcapítulo temos vindo a caracterizar a visão como um
dos sistemas sensoriais mais imediatos e abrangentes, devido à sua capacidade de
captar informações simultâneas e à distância. No entanto, não podemos descorar o
papel importantíssimo que tem para o ser humano o sentido da audição, o qual,
tal como o sistema visual, pode captar e analisar informações simultâneas, embora possa não ser tão imediato nalgumas
situações. Para os portadores de cegueira, a audição constitui-se como um
sentido de extrema importância, na medida em que, por via das características
que referimos sumariamente, fornece ao indivíduo algumas pistas de orientação,
de análise espacial e de conceptualização similares às que ele obteria através
do sistema visual. É um facto inegável o de que, para todos os seres humanos que
dela podem fazer uso - mesmo para os que não apresentam qualquer disfunção
visual - a audição está presente na grande maioria das actividades do nosso
dia-a-dia.
Considerando todas as ideias que temos vindo a desenvolver ao longo deste
subcapítulo, não se nos afigura exacta a afirmação de que "os olhos são
responsáveis por no mínimo 80% das impressões recebidas através da
sensibilidade". Pensamos ser mais correcto admitirmos que o sistema sensorial
visual participa na captação de pelo menos 80% da informação recebida através da
sensibilidade. Esta perspectiva parece-nos mais adequada na medida em que, não
deixando de salientar o papel central do sistema sensorial visual para quem dele
pode fazer uso, reconhece a existência de outras formas de acesso à informação e
de construção do conhecimento. Pensamos igualmente que esta formulação se
encontra mais em consonância com as recentes concepções sobre conceitos que,
como salienta Cecília Guarnieri Batista (2008), apontam para a importância dos
processos cognitivos - essencialmente a linguagem e o pensamento - na elaboração
e integração das informações provenientes dos sentidos.
Concepções Hegemónicas e Contra-hegemónicas
Pelas lógicas subjacentes ao paradigma sócio-cultural ocidental, o défice
implicado pela cegueira é ampliado, sendo a consequente associação entre esta
disfunção sensorial e a "meta-narrativa da tragédia pessoal" um factor que luta
diariamente com os intentos e desejos das pessoas cegas (Martins, 2006: cap. V).
Embora sob outros ângulos, esta realidade já foi abordada noutros momentos desta
dissertação. No subcapítulo anterior apresentámos e questionámos algumas ideias
que contribuíram para a consolidação e manutenção deste paradigma
sócio-cultural. No entanto, a concepção da cegueira como factor incapacitante em si mesmo e como tragédia pessoal tem raízes mais profundas que importa
igualmente analisar e questionar, pois é nelas que verdadeiramente se fundam as
ideias que criticámos anteriormente e cujo impacto social tão nocivo tem sido
para a afirmação das capacidades e dos direitos de participação das pessoas
cegas.
A questão de fundo que agora pretendemos discutir prende-se com aspectos de
ordem antropológica, cuja análise deverá sempre partir de uma evidência que
consideramos de extrema relevância: o corpo é um dado incontornável da nossa
existência (Martins, 2006: cap.V). Neste sentido, é lícito afirmar-se que
existem determinados eventos - uma disfunção sensorial, por exemplo - que
alertam os seres humanos para a importância do corpo como veículo da sua
existência. Cabe aqui esclarecer que, tal como refere Bruno Sena Martins na sua
obra «E SE EU FOSSE CEGO?»: Narrativas Silenciadas da Deficiência (2006: cap.V),
esses eventos não criam por si a centralidade do corpo; eles apenas tornam os
seres humanos mais conscientes do carácter incorporado da existência. Ou seja,
os eventos a que nos referimos potenciam "uma acrescida consciência corporal"
(Ledder, 1990, cit. por Martins, 2006: cap.V), por via daquilo que o mesmo autor
designa como "dys-appearance": a "tematização do corpo que acompanha a disfunção
e estados problemáticos" (Ledder, 1990, cit. por Martins, 2006: cap.V). Com base
na formulação de Drew Ledder, Bruno Sena Martins esclarece o conceito, definindo
"dys-appearance" como "o acréscimo de consciência do corpo por via de uma
irregularidade, de uma perda ou de um excesso no seu funcionamento". À luz deste
conceito, "o corpo da pessoa cega assume pertinência enquanto expressão de uma
perda e de uma privação" (Martins, 2006: cap.V).
É actualmente uma ideia consensual a de que o corpo se constitui como ponto
fulcral de algumas das mais graves formas de desigualdade, de controlo social e
de discriminação na sociedade contemporânea. Estes processos de segregação
apresentam como denominador comum a inscrição arbitrária de sentido nos corpos e
nas suas diferenças sem ter em conta a dimensão do corpo vivido, isto é, a forma
como as pessoas em causa experienciam e gerem as características que diferenciam
os seus corpos dos restantes. Mesmo no plano científico, as leituras
interpretativas de que o corpo tem sido alvo nas últimas décadas reproduzem
frequentemente uma exclusão da dimensão incorporada da experiência. Sobre este
assunto, Bruno Sena Martins cita Miguel Vale de Almeida (1996: 16), o qual
afirma em jeito de balanço sucinto da reflexão e da pesquisa científica
realizada nesta área: "Privilegiou-se a inscrição, negligenciou-se a
incorporação".
Uma razão para que tal tenha acontecido prende-se com o facto de, no âmbito
das ciências sociais, as abordagens ao corpo humano terem sido sempre
condicionadas pela oposição marcada entre "natureza e cultura", entre "ciências
e humanidades", entre "mundo natural e cultura humana" (Martins, 2006: cap.V).
Este esquema oposicional tem as suas raízes filosóficas no pensamento
cartesiano, o qual, ao afirmar a separação entre corpo e mente e entre sujeito e
objecto, consagrou o carácter desincorporado do conhecimento como factor
fundamental de neutralidade e objectividade, o que implicou o menosprezo do
papel do corpo e dos sentidos no acesso ao mundo, numa lógica segundo a qual o
corpo seria sempre objecto e nunca sujeito de conhecimento.
Outra razão para a longa negligência da dimensão relativa à experiência
incorporada está relacionada com o facto de, durante as últimas décadas, a
crítica social se ter desenvolvido tendo presente a memória das atrocidades
promovidas por regimes sociológicos que se legitimaram pela atribuição de
naturezas aos corpos (Martins, 2006: cap.V). Não querendo negar a influência de
tal memória sobre a crítica sócio-antropológica subsequente, pensamos que esta
segunda razão acaba por se constituir como um paradoxo: ao praticarem a
atribuição arbitrária de naturezas aos corpos para justificarem as suas
campanhas de violência e extermínio, esses regimes reproduziram e levaram ao
extremo os processos de silenciamento da experiência incorporada, aplicando-os
aos indivíduos e populações que pretendiam perseguir e exterminar. Neste
sentido, consideramos que o conhecimento da violência e do terror exercidos
deveria antes ter-se constituído como uma razão decisiva para que mais cedo se
tivessem realizado estudos sérios sobre as questões ligadas à experiência
incorporada. Tais estudos teriam contribuído para promover a valorização e o
respeito relativamente a diferentes formas de pensar, percepcionar, ser e
conhecer e ter-se-iam constituído como alicerce científico fundamental para uma
crítica social sólida com vista a desacreditar absoluta e definitivamente
regimes que, pelas suas ideologias e acções, tão nocivos se revelaram para a
comunidade humana global.
EMBODIMENT AND EXPERIENCE - obra organizada por Thomas Csordas (1994) -
constituiu um momento importante para que o tema da experiência incorporada se
afirmasse no âmbito dos estudos sócio-antropológicos (Martins, 2006: cap. V).
Através da apresentação da referida obra, Csordas propõe de facto a incorporação
como novo paradigma para a Antropologia. O autor faz assentar a sua proposta no
postulado segundo o qual "os outros objectos do mundo existem para nós por via
de uma relação sensorial de que o nosso corpo é fundamento primeiro" (Csordas,
1994, cit. por Martins, 2006: cap. V). Esta ideia representa uma ruptura com o pensamento cartesiano e com o paradigma sócio-antropológico
que lhe está associado, porque:
-
a) numa primeira análise, traduz o reconhecimento do papel do corpo e dos
sentidos como mediadores do acesso ao mundo e ao conhecimento;
-
b) coloca em causa as dualidades mente/corpo e sujeito/objecto, que
constituem a base estruturante das concepções filosóficas tradicionais (Martins,
2006: cap. V);
-
c) pressupõe a necessidade de "o corpo não ser apenas entendido como objecto
em relação à cultura, mas, igualmente, como sujeito de cultura" (idem).
Consideramos agora pertinente explicitar em que medida é que, com base no
paradigma sócio-antropológico da Incorporação, se pode explicar e desmontar a
"meta-narrativa da tragédia pessoal" que remete a grande maioria das pessoas
cegas, malgrado as suas capacidades, para uma situação de exclusão social.
Como ponto de partida, é necessário ter presente que, à luz desta teoria, a
razão não é desincorporada; isto é, resulta das características do cérebro, do
sistema neuronal, do corpo e do meio em que estamos envolvidos (Lakoff &
Johnson, 1999, cit. por Martins, 2006: cap.V). Do mesmo modo, os processos
cognitivos são profundamente influenciados pelas implicações da nossa existência
incorporada e, mais especificamente, pelas características dos nossos sistemas
sensório-motores (idem). Desenvolvendo esta linha de raciocínio, os autores
questionam a tradicional divisão entre percepção e concepção. Se tomarmos como
ponto de referência a ideia de que a percepção e os processos corporais não só
enformam a concepção como também moldam a razão que preside à elaboração dos
conceitos, acederemos a uma compreensão mais cabal da importância do corpo e das
suas características sensório-motoras na construção do conhecimento e na
formação das ideias que cada ser humano possui acerca do mundo, dos outros
corpos e das suas possíveis diferenças (idem). A este propósito, os autores
lembram que a imaginação projectiva é uma capacidade vital.
Sobre o mesmo assunto, Bruno Sena Martins faz notar que "uma função central
da mente incorporada é a empática", função que o próprio define como uma
"capacidade para a projecção imaginativa" e acerca da qual afirma que, sendo
"uma forma de "transcendência"", é "uma capacidade eminentemente corporal". É
através desta capacidade projectiva que se procura vivenciar imaginativamente as
experiências vividas por pessoas cujos corpos apresentam características que os
diferenciam dos restantes ao nível do funcionamento. No entanto, estas
projecções dão sempre origem a uma identificação vivencial descontextualizada,
na medida em que, sendo elaboradas a partir da experiência incorporada de corpos com determinadas características, representam muito mais as
ansiedades nutridas em torno da hipotética perda ou alteração de uma
característica/função corporal da qual sempre se fez uso do que a experiência
realmente vivida pelas pessoas que, efectivamente privadas de uma função
corporal, lograram reconfigurar o seu modo de vida em consonância com a sua nova
realidade corpórea.
Assim, a projecção imaginativa da cegueira, elaborada por parte de sujeitos
cujos corpos dispõem do sentido da visão, apenas confere acesso a uma versão
ampliada - e portanto distorcida - do impacto realmente causado por esta
disfunção nos corpos e nas vivências dos seus portadores. Tal projecção é
invariavelmente encarada como sendo a experiência efectivamente vivida pelos
portadores de cegueira. No entanto, ela apenas reflecte, em sentido negativo, a
enorme importância que possui o sentido da visão para quem dele pode fazer uso.
(Recordemos que a visão é o sistema sensorial mais imediato - isto é, aquele que
primeiro recebe muitas das informações sensoriais - e está envolvido na captação
de pelo menos 80% da informação que recebemos.) Daqui decorre o seguinte: um
indivíduo sem problemas visuais que projecte imaginativamente a cegueira
consegue aceder ao sofrimento provocado pela perda abrupta do sentido da visão
por parte de quem dele sempre fez uso, mas não consegue aceder ao modo como se
organizam as múltiplas possibilidades de um mundo que se constrói ou reconfigura
na ausência do sentido da visão. De igual modo, não consegue incorporar as
experiências em que a perda de visão foi lenta ou não se fez de todo sentir. A
cegueira congénita ou precoce é um exemplo desta última situação.
Para sistematizar a análise das implicações sócio-antropológicas geradas a
partir das concepções culturalmente dominantes sobre a cegueira, consideramos
importante a introdução do conceito de Liminaridade. Bruno Sena Martins (2006:
cap.V) define Liminaridade como "passagem transformadora mediada por um período
em que o indivíduo se retira dos mundos da vida social (...)". Introduzido em
1909 por Arnold van Gennes no âmbito da análise sócio-antropológica com a obra
LES RITES DE PASSAGE, este conceito foi recuperado por Victor Turner, que
estendeu a sua aplicação à leitura dos dramas sociais (Martins, 2006: cap.V).
É um dado adquirido o de que os indivíduos portadores de cegueira remetem a
eventual desestruturação decorrente dessa disfunção para um período provisório e
liminar das suas vidas, período que por norma superam através da sua capacidade
de reajustamento, reconfigurando a sua forma de interagir com o que os rodeia e
criando com isso condições para uma reconstrução digna das suas vidas. No
entanto, também se torna evidente que esse esforço de reconstrução não tem, na
maioria dos casos, grandes efeitos práticos - seja ao nível social, pessoal ou profissional-, pois as concepções culturalmente dominantes
sobre a cegueira colocam sérios constrangimentos à integração dos seus
portadores, impedindo-os de aceder àquilo que Bruno Sena Martins designa como
"agregação social" e remetendo-os assim para contextos de exclusão que
correspondem ao que Victor Turner (1974) designa sob o conceito genérico de
Comunitas: "...ambiente de cumplicidade, partilha, comunidade, camaradagem e de
horizontalidade, que se gera entre os indivíduos que estão colocados à margem da
sociedade, sem um estatuto social definido, e que vivem em conjunto a
ambiguidade algures entre o já-não e o ainda-não, a ambiguidade entre duas fases
da vida pessoal e social (...)" (Martins, 2006: cap. V). Ou seja, as concepções
que associam a cegueira à incapacidade e à tragédia pessoal acabam por impor -
por via externa - aos portadores desta disfunção sensorial uma contínua
liminaridade social que resulta de valores que eles próprios lograram desmentir
através da superação da sua liminaridade subjectiva.
O fenómeno sócio-antropológico que acabámos de descrever configura uma
situação de exclusão social que, no caso português, se reflecte em áreas tão
vitais para os seres humanos como a educação, o emprego ou as relações sociais.
No domínio da educação verifica-se que, no cumprimento do estabelecido na
Constituição da República de 1976, os alunos com disfunções ou incapacidades -
nomeadamente os portadores de cegueira - frequentam o ensino regular, situação
que, por princípio, se afigura como positiva, na medida em que, por um lado,
favorece a integração social destes alunos, preparando-os desde cedo para uma
vida em sociedade, e, por outro, proporciona à sociedade uma maior proximidade e
um maior conhecimento relativamente à diferença. Todavia, este potencial
tendente à construção de uma imagem social positiva da cegueira não tem sido
concretizado na prática, dado que a escolaridade e as aprendizagens obtidas
pelos alunos cegos neste contexto educativo têm sido marcadas por grande
precariedade. Tal facto fica a dever-se à falta de meios que, adequando-se às
características sensoriais destes alunos, lhes permitam a realização das
aprendizagens gerais e específicas indispensáveis:
-
o material em formato apropriado é disponibilizado tardiamente;
-
os professores de apoio são escassos e denotam grandes lacunas ao
nível da formação específica, desconhecendo muitos deles o sistema braille e as
técnicas de mobilidade.
Daqui decorre um quadro que se caracteriza por elevadas taxas de abandono
escolar entre os alunos cegos, pela carência de aprendizagens e saberes
específicos necessários aos portadores de cegueira e por um desfasamento entre
os níveis de escolaridade obtidos e as competências efectivamente adquiridas pelos alunos (Martins, 2006: cap.IV).
No tocante ao ensino superior, a existência de pré-requisitos altamente
restritivos relativamente à cegueira e a inexistência de um dispositivo legal
que enquadre a criação de estruturas de apoio nas universidades são factores
que, no mínimo, condicionam fortemente a escolha dos cursos por parte dos
estudantes cegos e, no limite, inviabilizam o acesso destes aos cursos
universitários (idem).
No domínio do emprego, a ausência de um património de conhecimentos e
competências que permita a inserção no mercado de trabalho, o desconhecimento
evidenciado pelas entidades empregadoras e pela sociedade em geral relativamente
à legislação que protege o emprego das pessoas com deficiência, o reduzido
alcance prático dessa mesma legislação e a activação de preconceitos por parte
dos empregadores - que resulta na desqualificação sistemática das competências
apresentadas pelos candidatos portadores de disfunções ou incapacidades - são
factores determinantes para que, segundo estimativas de dirigentes da ACAPO -
Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal - a taxa de desemprego entre as
pessoas cegas seja em Portugal de cerca de 80%.
No domínio das relações sociais e da valorização pessoal, as ideias
desqualificantes de incapacidade e de tragédia pessoal criam em torno da
cegueira um estigma que funciona como factor inibitório - se não mesmo
impeditivo - da assunção desta disfunção e de tudo o que lhe está inerente por
parte dos seus portadores. Assim, muitas pessoas cegas mostram relutância ou
mesmo recusa em usar ou mesmo aprender o sistema braille para a leitura e
escrita e em usar a bengala para as deslocações.
Relativamente ao sistema braille, a situação reveste-se de particular
gravidade, dado que o efeito desta inibição é ainda ampliado por uma negligência
que as instâncias educativas têm mostrado nas duas últimas décadas no que
concerne ao ensino do sistema braille aos alunos portadores de cegueira. Sendo o
braille, por excelência, o sistema de leitura e escrita das pessoas cegas, a
conjugação entre a inibição dos seus potenciais utilizadores e a negligência
patenteada pelas instâncias educativas tem produzido graves lacunas ao nível da
formação básica dos alunos portadores de cegueira, dificultando ainda mais o já
difícil acesso destes à informação e ao conhecimento e gerando situações de um
quase analfabetismo, com o consequente impacto negativo ao nível da valorização
e auto-valorização pessoal e social destes jovens.
No tocante à locomoção, Bruno Sena Martins (2006: cap.IV) dá-nos uma ideia
fiel e detalhada da forma como o uso da bengala, ao implicar a assunção de uma
condição, coloca os seus utilizadores em confronto directo com as concepções sociais
dominantes sobre a cegueira. Este confronto gera um efeito de despersonalização,
mediante o qual a identidade pessoal, as referências e vivências particulares e
individuais de quem é cego são ignoradas em favor da imposição arbitrária de uma
identidade estereotipada do "cego" que decorre das construções desqualificantes
geradas no nosso contexto sócio-cultural relativamente à cegueira. A tensão
provocada por este processo nas pessoas cegas está bem patente nos chamados
"encontros mistos" (Goffman, 1990, cit. por Martins, 2006: cap. IV), nos quais o
indivíduo dito "normal" oferece ajuda ao indivíduo "estigmatizado", adoptando
atitudes ou emitindo comentários que, reflectindo as concepções hegemónicas,
reproduzem os mecanismos de exclusão e actualizam a imposição arbitrária de uma
identidade ao "estigmatizado".
Naturalmente, esta luta de identidades em torno da cegueira assume contornos
mais problemáticos durante a adolescência, período em que os jovens constroem a
sua identidade pessoal e social e em que os olhares e apreciações dos pares
adquirem grande importância. Isto explica o facto de muitos indivíduos cegos
sentirem uma especial inibição no uso da bengala durante a adolescência. Este
constrangimento acaba por se revelar prejudicial à valorização e
auto-valorização destes adolescentes, na medida em que é a bengala que garante a
locomoção autónoma e a consequente liberdade de movimentos a quem não pode fazer
uso do sistema sensorial visual. Sobre este assunto, é particularmente
esclarecedor o texto das conclusões de uma conferência dinamizada pela ACAPO em
1991: "A Mobilidade foi considerada a actividade de maior relevância no
currículo reabilitacional dos cegos por ser o caminho para a sua independência e
autonomia" (ACAPO, 1991, cit. por Martins, 2006: cap. IV).
Em suma, a situação de exclusão social em que se encontram as pessoas cegas -
nomeadamente no contexto sócio-cultural português - assume contornos
particularmente graves, dado que são as concepções hegemónicas sobre a cegueira
e os mecanismos de controlo social a elas ligados que promovem a marginalização
destas pessoas e, simultaneamente, as inibem na aquisição das técnicas e saberes
específicos que lhes garantiriam a valorização pessoal, social e profissional e
as colocariam em condições de desmentir os valores em nome dos quais são
marginalizadas. A constatação desta realidade leva-nos à convicção de que, em
Portugal, os constrangimentos, os desafios e as barreiras que se colocam a um
indivíduo portador de cegueira que ambicione construir um projecto de vida
minimamente digno e gratificante acabam por fazer recair sobre esse indivíduo
quase todo o ónus de um esforço de adaptação que deveria ser partilhado entre
ele e a comunidade a que por direito próprio pertence.
[...]
Ao propormo-nos levar a cabo um trabalho de reflexão e pesquisa sobre a
qualidade de vida de adolescentes portugueses com cegueira congénita ou precoce,
tínhamos em mente o propósito de, quer através da apresentação, análise e
interpretação de dados concretos, quer através do lançamento de pistas para
novas abordagens, contribuir para o aprofundamento do conhecimento numa área
ainda pouco estudada. Para responder a tal propósito, o trabalho implicou uma
reflexão teórica que, tendo como ponto central o papel do conceito de Qualidade
de Vida na evolução da investigação científica e das práticas de intervenção na
área das necessidades especiais, incluiu uma revisão analítica da literatura
internacional mais relevante que tem vindo a ser produzida em torno dos
conceitos de Qualidade de Vida, Adolescência e Cegueira.
Com base na estrutura operacional proposta por Gómez-Vela & Verdugo (2006)
para o conceito de Qualidade de Vida na adolescência e tendo como principal
referência orientadora o instrumento de avaliação construído pelos mesmos
autores, foi elaborado um modelo de entrevista semi-estruturada, através do qual
foram recolhidos os dados que acabámos de apresentar, analisar e discutir.
O estudo de cujas conclusões agora nos ocupamos partiu de seis premissas que
enunciámos na secção introdutória e que, na nossa perspectiva, justificam
largamente a importância e a pertinência de um tema ainda pouco explorado.
Algumas delas funcionaram igualmente como hipóteses de trabalho que importa
agora reequacionar à luz da informação recolhida e da análise que dela nos foi
possível fazer.
Uma dessas premissas dizia respeito ao facto de a adolescência ser um período
de mudanças, desafios e oportunidades que solicitam aos jovens respostas que,
estando dependentes da personalidade e características/necessidades pessoais de
cada um, vão influenciar decisivamente essa mesma personalidade e o processo de
construção de uma vida adulta. Tanto a informação proveniente da literatura
consultada como a informação decorrente dos dados recolhidos no âmbito da
pesquisa permitem-nos afirmar que, no caso dos adolescentes portadores de
cegueira congénita ou precoce, a adolescência constitui um duplo desafio. Tal
como os outros adolescentes, eles têm de responder positivamente aos desafios,
satisfazer as necessidades e aproveitar as oportunidades de desenvolvimento
inerentes a este período da vida. No entanto, é-lhes exigido um esforço
suplementar, na medida em que têm de se confrontar e tentar ultrapassar as
barreiras sócio-culturais que a própria sociedade lhes impõe e que dificultam em
grande medida, tanto as respostas produtivas aos desafios e oportunidades, como a satisfação das necessidades comuns a todos os
adolescentes, sejam ou não portadores de disfunções ou incapacidades.
Outra premissa importante relacionava-se com o facto de a cegueira ser uma
disfunção sensorial que condiciona a interacção do seu portador com um meio
envolvente que, fazendo um apelo sistemático à visão, tende a colocar barreiras
a quem não pode fazer uso desse sentido. Relativamente a este aspecto, quer a
literatura mais recente sobre o tema, quer os dados por nós recolhidos,
permitem-nos afirmar que a cegueira não constitui em si mesma motivo para as
dificuldades que os seus portadores muitas vezes experimentam na interacção
física e social com o meio envolvente, na medida em que um indivíduo portador de
cegueira está apto a receber, a processar mentalmente e a transmitir informação
- ideias, conceitos, etc. - e a agir em consonância com a percepção que tem de
si próprio e do meio que o envolve. Apenas não pode receber informação por meio
do sentido da visão. As barreiras com que os portadores de cegueira se
confrontam são-lhes impostas externamente e revestem-se de um cariz
sócio-cultural que as torna facilmente questionáveis se pensarmos que, apesar da
enorme quantidade de referentes visuais que o mundo nos apresenta, é bem certo
que este não se manifesta de forma exclusivamente visual e, mesmo quando os
apelos visuais constituem a primeira impressão, são quase sempre acompanhados de
apelos dirigidos a outros sentidos. Nesta perspectiva, reforçamos a ideia de que
cabe à sociedade o esforço de providenciar as necessárias adaptações para que os
ambientes em que se jogam os aspectos principais da vida de qualquer ser humano
sejam mais inclusivos, não apenas para os portadores de cegueira, mas para os
portadores de outras disfunções sensoriais ou de outro tipo. Assim, e
relativamente a esta premissa, a nossa conclusão vai no sentido de reforçar tão
claramente quanto nos seja possível a ideia de que os referentes de incapacidade
que o senso comum atribui à cegueira não decorrem automaticamente das
características dos portadores de cegueira, mas são antes o resultado da
interacção destas com um meio sócio-cultural que sobrevaloriza as experiências
vivenciais baseadas na visão - necessariamente parcelares e redutoras - e
negligencia o capital de riqueza e diversidade implicado em experiências
vivenciais marcadas pela plurisensorialidade e, consequentemente, mais
abrangentes, mais plenas e mais inclusivas.
A conclusão relativa à premissa anterior acaba por nos conduzir ao reforço de
uma ideia que também apresentámos como premissa inicial: a de que, sendo uma
disfunção sensorial, a cegueira não diminui de forma nenhuma as capacidades
cognitivas/conceptuais do seu portador nem altera o cariz de necessidades que
são comuns a todos os seres humanos.
Com efeito, embora estejam intimamente relacionadas entre si, a percepção e a
cognição/conceptualização não são a mesma coisa: são dois processos distintos. O
portador de cegueira está impossibilitado de receber a informação através do
sistema perceptivo visual, mas está apto a recebê-la através de todos os outros
sentidos. Consequentemente, pode processá-la. A capacidade de
cognição/conceptualização não é, pois, de forma nenhuma, afectada pela ausência
da visão. Apenas o modo como a informação é recebida e organizada sofre ligeiras
alterações, que são decorrentes das características dos sistemas perceptivos
remanescentes. Assim, o portador de cegueira, para além de sentir as
necessidades inerentes a todos os seres humanos - no caso, referimo-nos às que
são próprias da adolescência -, tem algumas necessidades específicas,
relacionadas com adaptações perfeitamente exequíveis a realizar no meio
envolvente. Satisfeitas estas necessidades, os portadores de cegueira,
nomeadamente os adolescentes, estão em condições de realizar o processo de
desenvolvimento e de socialização a que todo o adolescente tem direito.
Uma última ideia que nos serviu como premissa foi a de que a cegueira, quando
é congénita ou precoce, possibilita que, desde cedo, os seus portadores
desenvolvam estratégias sensoriais alternativas para a interacção com o meio
envolvente, estratégias essas que, sendo correctamente estimuladas e
acompanhadas das necessárias adaptações de contexto, proporcionam um acesso
eficaz à interacção social e à informação. Neste sentido, acrescentámos que, por
nunca terem usado referências visuais e por não terem passado pelo processo de
desestruturação inerente à sua perda - ou por este ter sido grandemente atenuado
-, os portadores de cegueira congénita ou precoce constituem o melhor exemplo do
tipo de resposta que pode ser dada pelas pessoas cegas no tocante à participação
na comunidade. Relativamente a este ponto, tanto a bibliografia consultada -
sobretudo a referente ao contexto português - como as entrevistas realizadas
fornecem dados bastante preocupantes relativamente à situação dos adolescentes
portadores de cegueira congénita ou precoce em Portugal. Para aquilatar da
verdadeira gravidade da situação a que nos referimos é necessário ter presente
que o desenvolvimento cabal das estratégias alternativas a que aludimos
pressupõe orientação especializada e que, a par dessas estratégias, o portador
de cegueira tem de adquirir competências específicas que lhe proporcionem uma
efectiva inclusão social. Entre essas competências assumem especial importância
o domínio do sistema Braille, nas vertentes de escrita e leitura, e o domínio
das técnicas de mobilidade, essencial para a conquista de níveis aceitáveis de
independência. Sucede que, ao longo das últimas décadas - com especial
incidência nos últimos anos do século XX - tem vindo a assistir-se em Portugal a uma progressiva degradação das condições em que se proporcionam às crianças
e adolescentes cegos, quer a aprendizagem do sistema Braille, quer a aquisição
das técnicas de mobilidade. As graves lacunas ao nível da formação de
professores para estas áreas, a escassez de materiais didácticos adaptados e uma
organização deficitária dos recursos e serviços de apoio existentes são as
principais características de um contexto educacional que, objectivamente, tem
fomentado o insucesso e o abandono escolar entre os alunos cegos, contribuindo
de uma forma perversa para reforçar as concepções extremamente negativas detidas
pela sociedade portuguesa a respeito da cegueira. Para além de grave, a situação
torna-se paradoxal na medida em que os problemas que acabámos de referir
decorrem da aplicação incorrecta de medidas tendentes a promover a inclusão dos
alunos com disfunções ou incapacidades - nomeadamente os portadores de cegueira
- no sistema educativo regular, medidas estas que, reflectindo o propósito
estabelecido na Constituição da República Portuguesa de â976, teriam como último
desígnio potencializar a inserção e a valorização social dos destinatários. No
entanto, no caso dos portadores de cegueira, este processo traduziu-se no
desmantelamento de estruturas de apoio anteriormente existentes e pela
integração dos alunos numa estrutura de ensino regular que, embora se pretenda
inclusiva, não teve em conta as especificidades e necessidades próprias dos
alunos cegos.
Com esta última reflexão pretendemos certamente enfatizar a necessidade
urgente de tornar mais efectivo - diríamos mesmo, mais real - o processo de
inclusão dos portadores de cegueira na escola regular. Para que tal aconteça de
uma forma sustentada, é necessário que o sistema educativo proporcione a estes
utentes as condições necessárias à aquisição das já referidas competências sem
as quais a efectiva inclusão e valorização social destes nunca poderá ser uma
realidade.
Tendo como objectivo geral de referência o estudo dos aspectos mais
relevantes da qualidade de vida da pessoa cega durante a adolescência, bem como
a repercussão dos mesmos na construção da personalidade individual e de uma vida
adulta, esta dissertação teve de responder a alguns objectivos específicos que
enunciámos na secção introdutória e relativamente aos quais sintetizamos agora
as principais ideias a reter da pesquisa realizada.
1 - No respeitante aos principais aspectos que se
colocam a um jovem
adolescente com cegueira
congénita ou precoce ao
nível de cada uma das
dimensões de qualidade de
vida, eles foram sendo referidos e analisados no âmbito da apresentação, análise e
discussão dos dados recolhidos. Da análise realizada, consideramos importante
reter as seguintes ideias.
A) Quanto à dimensão Bem-estar Físico, torna-se claro que, na maioria dos
casos, a cegueira não constitui por si só um problema de saúde capaz de afectar
directamente o bem-estar diário dos seus portadores. Ela surge, muitas vezes,
associada a outras disfunções ou como consequência de outras problemáticas com
um impacto muito mais real e negativo ao nível físico. Neste sentido, a cegueira
não inviabiliza de modo algum a actividade física e o acesso dos seus portadores
à prática desportiva, cujos benefícios para a saúde são inquestionáveis e cuja
importância é largamente reconhecida pelos entrevistados, pois todos eles
praticaram, praticam ou tencionam praticar desporto.
B) No referente ao Bem-estar Material, conclui-se que as dificuldades
económicas que atingem muitas das famílias de pessoas com disfunções ou
incapacidades acabam por ser também sentidas pelos adolescentes com cegueira
congénita ou precoce, que às necessidades e constrangimentos decorrentes da sua
problemática acabam por somar os constrangimentos - por vezes diários -
decorrentes da débil situação financeira do agregado familiar.
C) No plano do Desenvolvimento Pessoal, verifica-se que os alunos - crianças
e adolescentes - portadores de cegueira congénita ou precoce se defrontam com
dois problemas essenciais: por um lado, a carência de professores especializados
em áreas específicas que são estratégicas no caso da cegueira, o que condiciona
fortemente a aquisição de competências tão importantes como o domínio do sistema
Braille - leitura e escrita - e o domínio das técnicas básicas de mobilidade;
por outro, a quase inexistência de materiais didácticos adaptados, o que impede
um trabalho produtivo destes alunos em disciplinas nas quais poderiam
perfeitamente ter êxito. Estas duas situações acabam por condicionar a
construção de projectos de vida adulta que correspondam às verdadeiras
capacidades e interesses dos alunos cegos.
D) No tocante à dimensão Integração/Presença na Comunidade, constatamos uma
muito reduzida participação dos adolescentes cegos em actividades de lazer, de
que em alguns casos desconhecem mesmo a existência. Constatamos igualmente,
entre os adolescentes cegos, o sentimento de que os seus direitos não são
devidamente respeitados. Pelos indícios recolhidos, consideramos que este
sentimento se justifica. Por um lado, a crença de que a ausência do sentido da
visão torna os cegos incapazes de uma interacção efectiva com o meio envolvente
leva a que, com demasiada frequência, os adolescentes portadores de cegueira sejam excluídos dos esquemas de socialização que tão importantes se tornam
nesta etapa da vida. Por outro lado, o sistema educativo português, que se
auto-caracteriza como inclusivo, não promove uma efectiva cultura de respeito
pela diferença e valorização da diversidade porque:
-
- tolera e relativiza comportamentos de média e de alta gravidade que
constituem verdadeiros atentados à segurança, à liberdade e à dignidade de quem
deles é vítima;
-
- desautoriza, implícita e por vezes explicitamente, os agentes que ainda
procuram combater este género de comportamentos e tentam promover os valores
culturais que atrás referimos;
-
- priva esses mesmos agentes - estamos obviamente a referi-nos aos
professores - da formação e dos meios que lhes permitiriam criar as condições
indispensáveis para que os alunos cegos desenvolvam plenamente as suas
capacidades e se insiram de forma gratificante e digna no contexto escolar e
social envolvente.
E) Considerando a dimensão Relações Interpessoais, deste estudo pode
concluir-se que os mecanismos de exclusão que dificultam - e em muitos casos
inviabilizam - a inserção social dos adolescentes portadores de cegueira
congénita ou precoce têm as suas primeiras manifestações no contexto da família
alargada: os familiares - nomeadamente primos, tios, etc. - de adolescentes
cegos, ou se afastam deles com receio de serem associados ao universo da
cegueira e por essa via serem também estigmatizados, ou, com o intuito de tornar
pouco visível o que consideram um problema social embaraçoso até para o agregado
familiar, procuram criar condições para que o jovem se distancie de experiências
e vivências tão necessárias durante a adolescência e exteriorize até pouca
propensão para elas. Podemos igualmente concluir que a matriz dos
relacionamentos nutridos no seio familiar exerce uma influência considerável na
forma como o jovem adolescente cego gere os relacionamentos no contexto social
mais lato.
F) No que se refere ao Bem-estar Emocional, podemos seguramente identificar a
baixa auto-estima como um fenómeno recorrente entre os adolescentes cegos, o
qual surge como resultado das continuadas experiências de exclusão a que estes
estão sujeitos, experiências essas que, influenciando negativamente a forma de
encarar os desafios futuros, acabam por contribuir para que a dinâmica de
exclusão social se torne um círculo vicioso muito difícil de contrariar.
Constatamos igualmente que os significados atribuídos pelos adolescentes cegos
ao conceito de Felicidade nos remetem para a satisfação de necessidades que,
sendo comuns a todos os seres humanos, são particularmente sentidas por estes
jovens em virtude do seu permanente confronto com os condicionalismos impostos por um sistema
sócio-cultural que, obrigando-os a uma luta diária para se adaptarem ao contexto
naquilo que é essencial, retira-lhes energia e apetência psíquica e mental para
encararem algumas experiências gratificantes e enriquecedoras que são vividas de
forma quase banal por outros adolescentes.
G) No plano da Autodeterminação, podemos afirmar que as decisões tomadas
pelos adolescentes cegos, nomeadamente os de mais idade, estão relacionadas
essencialmente com a vida académica. Como é óbvio, esta afirmação só tem
carácter conclusivo se for considerada com referência ao universo estudado,
podendo ou não ser desmentida por futuras pesquisas. Ainda assim, os dados
analisados permitem-nos apresentar a seguinte conclusão, que consideramos desde
já generalizável: os adolescentes portadores de cegueira congénita ou precoce
apresentam ou estão em condições de apresentar uma capacidade para tomar
decisões semelhante à que evidenciam ou podem evidenciar os seus pares sem
disfunções ou incapacidades. No entanto, no caso dos adolescentes cegos, o
exercício dessa capacidade é condicionado pela interacção entre as
características específicas de um portador de cegueira e as características de
um meio envolvente que não contempla tais especificidades.
2 - Observadas num plano geral, as relações que se estabelecem entre as
várias dimensões de qualidade de vida são de interdependência e processam-se
segundo dinâmicas interaccionais que, podendo variar consoante os contextos e
situações específicas, têm como padrão comum o facto de todas as dimensões se
influenciarem mutuamente, em maior eu menor grau. No caso dos adolescentes com
cegueira congénita ou precoce, a dinâmica subjacente às relações entre as várias
dimensões de qualidade de vida estabelece um esquema interaccional estruturado
da seguinte forma:
A) A prevalência de relações interpessoais gratificantes é um factor de
bem-estar emocional, dado que promove sentimentos de utilidade, pertença,
afecto, confiança, auto-confiança - em suma, sentimentos de felicidade - que, à
partida, tornam o adolescente mais apto para dinamizar e expandir o seu universo
de relações interpessoais. Inversamente, mas seguindo a mesma lógica de
interacção, as relações interpessoais de afastamento e exclusão provocam estados
emocionais de insegurança, desconfiança, baixa auto-estima e depressão que
inibem o adolescente cego na construção de um universo de relações interpessoais
mais rico.
B) Um bom nível de desenvolvimento pessoal potencia uma integração/presença
mais efectiva do adolescente cego na comunidade a que pertence. Tal como na
situação anterior, esta lógica interaccional também se verifica no sentido
inverso, isto é, no sentido negativo.
C) As decisões que o adolescente cego toma no âmbito do seu desenvolvimento
pessoal e a existência de oportunidades de desenvolvimento adequadas às suas
expectativas, características e necessidades são factores que, por um lado,
potenciam a integração/presença do jovem na comunidade a que pertence e, por
outro, contribuem para expandir e enriquecer o seu universo de relações
interpessoais, o que, por sua vez, pode operar mudanças positivas ao nível do
estado emocional.
D) O nível de bem-estar físico, conforme seja alto ou baixo, tem um papel
facilitador ou inibidor das interacções positivas entre o Desenvolvimento
Pessoal, a Integração/Presença na Comunidade, as Relações Interpessoais e o
Bem-estar Emocional.
E) O nível de autodeterminação evidenciado por um adolescente cego é
consequência das interacções positivas ou negativas que se estabelecem entre o
Desenvolvimento Pessoal, a Integração/Presença na Comunidade, as Relações
Interpessoais e o Bem-estar Emocional, interacções que podem ser potenciadas ou
inibidas em função do nível de Bem-estar Físico do adolescente.
F) O impacto potencialmente negativo das carências económicas na forma como
se inter-relacionam os restantes aspectos inerentes à vida dos adolescentes
cegos é por vezes atenuado por alguns mecanismos de apoio previstos para estes
casos e pelos apoios espontâneos que, surgidos no seio das redes de relações dos
destinatários, acabam por colmatar as graves lacunas que em Portugal se
verificam ao nível do cumprimento das responsabilidades do Estado no que
respeita à garantia da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.
3 - As concepções socialmente predominantes sobre a
cegueira reflectem-se, de forma directa ou indirecta, em todas as vertentes da
vida dos seus portadores. Neste sentido, o seu impacto na qualidade de vida dos
adolescentes cegos é transversal, na medida em que se faz sentir ao nível de
todas as dimensões que a concretizam. No entanto, esse impacto faz-se notar com
especial (ênfase ao nível do bem-estar emocional, das relações interpessoais, do
desenvolvimento pessoal e da integração/presença dos adolescentes cegos nas
comunidades a que pertencem. É ainda de realçar que, dada a relação de
interdependência que se regista entre as várias dimensões de qualidade de vida,
o efeito negativo das concepções detidas pela sociedade - mormente a sociedade portuguesa - sobre a cegueira, para além de
ser sentido pelos jovens ao nível de cada uma das áreas de vida, é ainda
ampliado pela dinâmica interaccional que se estabelece entre elas.
4 - Quanto às repercussões do nível de qualidade de vida dos adolescentes
cegos na formação da personalidade, é-nos lícito concluir que estas advêm
essencialmente da dinâmica interaccional subjacente aos binómios estado
emocional/relações interpessoais e desenvolvimento pessoal/presença na
comunidade. No entanto, mais do que repercussões na construção da personalidade,
o nível de qualidade de vida dos adolescentes cegos acaba por ter reflexos
decisivos na construção de todo um modo de vida inerente à fase adulta.
Considerando as metas a que nos propusemos e os resultados alcançados,
pensamos que este estudo conseguiu atingir os objectivos que o nortearam. Temos
consciência de que, dado o reduzido número de participantes do estudo, o valor
das conclusões agora apresentadas reside sobretudo no facto de elas
representarem pistas válidas para futuros estudos nesta área temática. Em todo o
caso, consideramos também que, pela sua natureza e por serem baseadas em dados
recolhidos junto de membros da população alvo deste estudo, elas dão um
contributo efectivo para uma compreensão mais aprofundada da real situação de
vida de um adolescente portador de cegueira congénita ou precoce no contexto
sócio-cultural português.
FIM
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Partes I e III
(Conclusão) de
A Qualidade de Vida
de Adolescentes com
Cegueira Congénita ou
Precoce em Portugal: Implicações na
Construção da Personalidade e da
Vida Adulta
autor: NUNO FILIPE DA SILVA MARQUES
Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre em Comunicação
Alternativa e Tecnologias de Apoio no Curso de Mestrado em Comunicação
Alternativa e Tecnologias de Apoio, conferido pela Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias.
Escola de Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação
Orientador: Professor Doutor António Rebelo
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Lisboa, 2011
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