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Mulher conduz um homem cego - Cornelis Massijs, c. 1538
Existem inúmeras superstições populares ligadas aos olhos:
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Quando um lobo avista alguém, antes de ser por ela visto, a pessoa perde a
fala. [4]
-
Passar pelos olhos um ovo quente, acabado de pôr, tem a virtude de aclarar a
vista. [4]
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Olhar-se a um espelho, tendo a cara inflamada, agrava a inflamação. [5]
-
Ao encontrar-se um ninho de andorinha, devem cegar-se os filhos, pois a
andorinha vai buscar uma pedrinha que tem a virtude de lhes restituir a vista e
que por isso deixa ficar no ninho. Subtrai-se então a pedra do ninho e não há
doença de olhos que resista à sua influência benéfica. [4]
-
Nascem treçolhos nos olhos de qualquer pessoa a quem uma mulher grávida peça
uma coisa e não lha dê. [4]
-
Para talhar o terçolho, acende-se uma fogueira numa casa que tenha duas
portas. Quem tem o terçolho, entra a correr por uma porta e salta três vezes a
pés juntos por cima da fogueira, gritando: “Aqui-del-rei! Fogo em casa do
terçogo!” Depois sai pela outra porta, gritando o mesmo. [5]
-
Um afogado começa a deitar sangue pelos olhos e pelo nariz, quando se lhe
chega ao pé, um parente próximo ou remoto. [4]
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Quando um finado fica de olhos abertos, é sinal que está chamando por alguém
da família. [4]
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Ver-se de noite sem luz, é ver o Diabo. [4]
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Não se deve ter uma luz acesa, numa casa sem ninguém, porque está a alumiar o
Diabo. [5]
As doenças de olhos eram tratadas pelo povo com mezinhas caseiras, que não iam
além da simples lavagem com água de rosas ou água de malvas. As doenças mais
correntes eram:
-
BOLIDAS - Manchas esbranquiçadas que apareciam na íris.
-
CABRITA – Mancha de sangue no branco do olho.
-
FARPÃO - Borbulha inflamatória na córnea.
-
REXA – Úlcera traumática da córnea, adquirida normalmente na ceifa ou no
varejo da azeitona.
-
TERÇOLHO - Pequeno tumor no bordo das pálpebras.
Para a remoção de corpos estranhos dos olhos, recorria-se às chamadas pedras
alguereras, ou d'alguêro, vendidas em feiras e mercados e que ao serem
introduzidas nos olhos originavam produção abundante de lágrimas,as quais
expulsavam qualquer corpo estranho à vista.
Para além das mezinhas, as doenças de olhos eram tratadas com benzeduras. Uma
reza usada na benzedura dos olhos, diz assim:
-
“Em lavor de Santa Luzia
-
Esta vista venho benzer:
-
De prego, de farpa e farpão.
-
De cabra (?), de cabrito (?), de rôxidâo,
-
De vermelhidão e d'enflamação,
-
De bicha e de bichão!...
-
Ê te corto e te torno a cortar,
-
Rabo, cabeça e raízes do coração
-
P'ra que te seques e te mirres
-
Em lavor de Santa Luzia,
-
Padre-Nosso... Avém-Maria.” [6]
Mas há outras rezas empregues na benzedura de olhos, como esta:
-
“A mão de Deus e a da Virja Maria vá adiente da minha
-
P'ra qu'apagu'estas rechas, estes farpões,
-
Estes carnazões, estes cravos, estes pregos,
-
Estas bolidas, êste mal d'olhos...
-
Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
-
Padre-Nosso… Avém-Maria.” [6]
Durante a benzedura, a benzedeira segura numa mão um objecto cortante (faca,
navalha ou canivete) e na outra, um bocado de pau de loendro no qual corta,
quando as palavras do ensalmo o declaram, ao mesmo tempo que aproxima dos olhos
do paciente, o objecto cortante e o pedaço de loendro.
A benzedura é efectuada durante cinco, sete ou nove dias, findos os quais, a
doença deve estar debelada. Faz-se então, o seguinte ofertamento:
-
“Ofereço estas santas benzeduras à Senhora Santa Luzia que livrou este olho do
arpão, cravo e récha. Em nome de Deus Padre, de Deus Filho, de Deus 'Sprito
Santo e de Santa Luzia. Padre Nosso e Avém-Maria”. [6]
Vejamos ainda mais uma reza utilizada na benzedura dos olhos:
-
“Eu te benzo... (nome da pessoa)
-
rexa, cabrita, farpão.
-
Santa Luzia por aqui passou,
-
com o seu manto borrifou;
-
assim tu te aches como ela se achou.
-
Em nome de Deus e da Virgem Maria
-
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]
Reza-se nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam
um Padre Nosso e uma Ave Maria, oferecidos a Santa Luzia.
Existe uma reza expecífica, usada na benzedura do farpão. Uma das suas muitas
variantes diz o seguinte:
Diz a benzedeira:
-
“Jesus, santo nome de Jesus,
-
onde está o santo nome de Jesus,
-
não está mal nenhum“
Continua a benzedeira:
-
“Eu te corto.”
Responde o doente:
-
“Farpão.”
Continua a benzedeira:
-
“Eu t’o corto da cabeça,
-
eu t’o corto dos braços,
-
eu t’o corto das pernas,
-
para que não possas reinar.
-
Aqui te hás-de secar,
-
aqui te hás-de mirrar,
-
daqui não hás-de passar.
-
Hei-de te mandar deitar
-
para lá das águas do mar,
-
onde não ouças galinhas nem galos cantar,
-
nem filhos bradar.
-
Em louvor de Deus e de Maria,
-
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]
Enquanto são pronunciadas aquelas palavras, a benzedeira passa por cima do
farpão um anel de ouro ou um dente de alho. A benzedura é feita nove vezes e ao
fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam um Padre Nosso e uma Ave
Maria, oferecidos a Santa Luzia e à sagrada Morte e Paixão de Cristo.
OLHOS DE SANTA LUZIA
Como se sabe o povo é superticioso e por tradição popular era dado ao uso de
amuletos. Um deles, conhecido por “Olhos de Santa Luzia”, em prata, era usado
num fio ao pescoço, para prevenir as doenças de olhos, assim como ofertados à
Santa, em cumprimento de promessa por graça recebida. De resto, os devotos
rezavam uma “Oração a Santa Luzia”:
-
“Ó Santa Luzia
-
Que saras dos olhos
-
Livrai-nos d’escolhos
-
De nout’ e de dia.
-
Ó Santa Luzia
-
Bendita sejais,
-
Por seres bendita,
-
No Céu descansais.” [6]
MAU-OLHADO
O mau-olhado é uma faculdade atribuída a certos indivíduos de trazerem desgraça
àqueles para quem olham. O povo ainda hoje crê que o chamado mau-olhado pode ser
comunicado a outrem, por quem tem o poder de o fazer, por querer ou mesmo sem
querer. Crê ainda que o mau-olhado tanto se pode manifestar em pessoas como em
animais, sob a forma de doenças como o quebranto ou então estar na origem de
desastres, perdas materiais ou outros malefícios.
São correntes superstições populares relativas ao mau-olhado:
-
Por causa do mau-olhado, é bom trincar um alho em jejum. [4]
-
Para livrar das bruxas ou do mau-olhado, é bom pôr uma ferradura na porta. [5]
Para talhar o mau-olhado, a benzedeira tem de verificar primeiro se a doença do
paciente tem ou não origem em mau-olhado. Para tal, deita um fio de azeite num
pires, molha nele três dedos e deixa cair três pingos na água contida numa
bacia. Se as pingas se juntarem, é mau-olhado que o paciente tem. Se não se
juntarem não é. Em seguida, torna a molhar os dedos no azeite e faz sobre as
pingas que estão na água o sinal da cruz, ao mesmo tempo que pronuncia as
palavras rituais da reza:
-
“Fulano (Nome da pessoa) Deus te fez,
-
Deus te criou,
-
Deus te tire o mal
-
Que no teu corpo entrou.” [2]
Eis uma das muitas rezas usadas na benzedura do mau-olhado:
Começa a benzedeira:
-
“Jesus, santo nome de Jesus,
-
onde está o santo nome de Jesus,
-
não está mal nenhum“
Diz depois a benzedeira:
-
“Eu te benzo, criatura, do mau-olhado.
-
Se for na cabeça, em nome da Senhora da Cabeça,
-
se for nos olhos, em nome de Santa Luzia,
-
se for na cara, em nome de Santa Clara,
-
se for nos braços, em louvor de S. Marcos,
-
se for nas costas, em louvor da Senhora das Verónicas,
-
e se for no corpo, em louvou do meu Senhor Jesus Cristo
-
que tem o poder todo.
-
Santa Ana pariu a Virgem
-
e a Virgem pariu o meu Senhor Jesus Cristo
-
assim como isto é verdade
-
assim seja este olhado daqui tirado
-
e para as ondas do mar deitado,
-
Onde não ouça galo nem galinha cantar
-
Em louvor de Deus e de Maria,
-
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]
Esta benzedura é feita nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira que
segura um rosário na mão e o paciente, rezam uma Salve Rainha oferecidas a Nossa
Senhora.
QUEBRANTO
Para o povo, o quebranto é causado pelo mau-olhado e tem sintomas próprios:
bocejos, mal-estar, dores no corpo, náuseas, arrepios, debilidade, definhamento.
São vulgares as superstições populares relativas ao quebranto:
-
Para livrar de quebranto, é bom pregar uma ferradura nas portas das casas,
pela parte de fora. [4]
-
As crianças pequenas podem ser protegidas do quebranto, pondo-lhes ao pescoço
um cordão de seda preta onde estejam enfiados um signo saimão, três vinténs em
prata furados, uma argola, um dente de lobo, uma meia-lua e uma figa. [4]
-
Para se tratar uma criança de quebranto, juntam-se quatro pedaços de chita,
quatro de algodão, quatro de sapatos velhos, quatro de pato-do-mar, quatro ramos
de aroeira, quatro de rosmaninho, quatro de alecrim, deita-se tudo no lume e
passa-se a criança doente pelo fumo. [5]
Para saber se um paciente tem ou não quebranto, a benzedeira começa por proferir
cinco vezes seguidas, as palavras cerimoniais da seguinte reza:
-
“Fulano (Nome da pessoa),
-
Deus te remiu, Deus te criou,
-
Deus te livre de quem para ti mal olhou!
-
Deus te livre deste cobranto:
-
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! [7]
Seguidamente, a benzedeira verte cinco pingas de azeite num prato com água pura.
Se é quebranto, as pingas espalham-se. Se não é, juntam-se. E sendo quebranto,
existe a crença de que a pessoa começa desde logo a melhorar.
Apresentamos de seguida uma reza usada na benzedura do quebranto, de sol e de
lua. Diz a benzedeira:
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“Fulano (nome das pessoa) dois olhos te olharam mal,
-
Três te hão-de olhar bem,
-
Em nome de Deus Pai, do Filho
-
E do Espírito Santo, Amem
-
Quando Nossa Senhora pelo Mundo andou,
-
Com Santa Margarida se encontrou,
-
E lhe perguntou:
-
— Onde vais. Margarida?
-
— Eu à Vossa busca ia.
-
Tenho um filho doente
-
De sol e de lua e de fito morria.
-
Com que o curarei eu, Senhora?
-
— Com a cinza do lar
-
O Mundo será salvo.
-
A lua por aqui passou
-
E a cor de Fulano levou,
-
E a dela deixou.
-
Ela há-de tornar a passar,
-
A cor de Fulano há-de deixar,
-
E a dela há-de levar
-
Para as ondas do mar
-
Onde não oiça
-
Nem galos nem galinhas cantar,
-
Nem mãe por seu filho bradar.” [2]
No final, benzedeira e paciente rezam um Pai Nosso e uma Ave Maria que oferecem
a Nossa Senhora e à Sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
EPÍLOGO
A medicina popular, misto de empirismo e crenças arcaicas, indepedentemente dos
seus resultados práticos, é merecedora de todo o nosso respeito, não só pela
riqueza da sua literatura oral, como pelo papel que desempenhou na formação das
identidades culturais regionais.
E com este post damos por terminada a abordagem efectuada ao sentido da visão,
através dos múltiplos domínios da nossa literatura oral. Fazemos votos para que
esta nossa incursão tenha sido do agrado dos leitores.
BIBLIOGRAFIA
-
[1]
ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
-
[2] DELGADO, Manuel Joaquim. A Etnografia e o Folclore do Baixo Alentejo.
Separata da Revista “Ocidente”. Lisboa, 1956.
-
[3] OLIVEIRA, Ataíde de. “Therapeutica Mystica-Bendeduras”, A Tradição:
revista mensal d’Ethnografia Portuguesa. Série I, Anno I, n.º 9. Serpa, Set. 1899,
-
[4] CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de
Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
-
[5] CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de
Filosofia, Vol. IV Porto, 1882.
-
[6] ROQUE, Joaquim. Rezas e Benzeduras Populares. Minerva Comercial. Beja,
1946.
-
[7] LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. X. Imprensa
Nacional-Casa da moeda. Lisboa, 1988.
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