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 Sobre a Deficiência Visual


O Sofredor do Ver

Maura Lopes Cançado

L'Aveugle - VictorVasarely, 1946
O Cego - VictorVasarely, 1946


Sobretudo forma. Sobretudo sólida. E pedra.
PEDRA
Só, surgindo da areia.
Sólida e nua como para sempre.
Em defesa e guerra.
De olhos esforçados, míopes, visão saindo fina, quase indecisa, a perguntar:
– Mas devo? Devo? E devo?
Chegando úmida e jovem à crueza mostrada além de quieta: pedra.


Inconsciente um homem avançava em glória e perigo, não sabendo mesmo aonde já chegara, podendo, nas mil possibilidades, ter com um gesto desenhado o impossível. Ou se solidificara em sua natureza mais primária? De qualquer forma, começado o trabalho, penetrava anônimo, tal seu feitio simples, ele que sempre pensou nas dificuldades subterrâneas dos ratos, meticuloso, evitando matar o mais pequeno inseto – ele para quem mundo era mundo, embora no íntimo procurasse atento o coração da terra.

E bebendo na mão a água de um regato, perguntava-se onde estava a culpa, temendo mentir-se para sua tranquilidade.

Quanto a ser bom, em que consistia mesmo? Pode alguém imolar-se sem fugir ao destino? E mesmo que o faça, a quê dar nosso sangue? A falta estando dentro ou fora de nós mesmos, perguntava-se se não iria quebrar a harmonia, dando consolo a um cego. Em verdade ignorando onde se achava a pobreza, e mesmo o que significava pobreza. Sentia-se rico e despojado ao mesmo tempo, tentava dar-se, quando tudo completo o recusava, em guarda.

Perplexo e em busca vivera até então o homem de quem não se necessitava. É que ignorava o imprescindível de sua pessoa no mundo, apenas sendo.

Ocupando-se do que julgava mínimo e despercebido aos outros, não sonhou jamais a que grau de poder e acuidade o levaram quando, se perdendo, descobriu um mundo. Novo e sutil, que se capta em luz e velocidade, sem possibilidade de legar. Acabara de chegar à pureza rútila de uma substância ainda não classificada em nenhum reino, embora objetiva e direta, indubitável como o mineral. O olhar. Teria pensado antes, disperso nos muitos elementos que o compunham. Seguido adiante, onde um traço úmido e solitário deixava nítido o alcance do mar na praia, mostrado sem necessidade de reparos. Sim, o homem, ele se ocupava de pequenas coisas grandes.

Não ousando muito, via, o que lhe dava mais tempo em vida. Isto ignorava, embora acontecesse, a ele. Mas agora, em inteiro conhecimento, penetrava sem reservas, mudo e rápido, exposto à morte: porque havia guerra. Sim, ele o tomaria no colo como a um cãozinho indefeso e único, protegendo-o. O homem fremia em luz e encantamento. Ele que sempre quisera participar de qualquer maneira, não recusando mesmo o papel de palhaço, apesar de ser triste e sombrio. Sua alegria achava-se em campo alheio: a bola correndo rápida e feliz antes do pé que a esperava.

O perigo agora é que, consciente da luta, tomava posição, esquecendo suas próprias exigências. E um guerreiro necessita de armas. Mesmo porque, o destino de um homem é mais lento e incompleto do que a realização de um olhar. Que não morre, voltando sempre aos mesmos ou a outros olhos, para glória fugaz, inconsciência e morte.

O homem:

Se alguém o visse por qualquer ângulo, nada teria a acrescentar, além de um homem parado numa praia, olhando. Impossível mesmo a outro jurar que ele via, nisso consistindo a tranquilidade de quem o visse. A qualquer pessoa sendo possível, no máximo, julgá-lo não vendo exatamente, recolhido ao pensamento: pensar no pássaro e, sem caminhos, vê-lo voando à mão. – Entretanto ele se desligara para caminhos apenas, permitindo-se ir e voltar ignorando de onde. Era sua conquista a de perder-se, perdido ganhando em busca, o que sempre o caracterizou, ainda que inconsciente.

Nas lutas fundem-se heróis. E até mesmo se supera a vida, sendo possível a eternidade. Quanto a ele, em breve seria eterno – num limite mínimo de tempo. Achava-se no limiar.

Começada há pouco sua história tinha um título: A história do ver.

Do mover das ondas estendera o olhar até o horizonte. Nada intencionado, foi, porém, aí, o começo de uma realidade além dos limites conhecidos, não alcançada ainda por incapacidade ou precaução. Defesa também: pois havia guerra. Disto saberia até a morte no escuro, para onde levaram depois, esclarecido e excessivo. Mesmo contada, sua história jamais se exteriorizou, ninguém pôde penetrá-la em compreensão. O que seria, talvez, contradizê-la.

Partindo das mesmas compreendeu a importância das formas em relação ao olhar. E com esforço, da forma aos olhos, isolou o elemento de ligação.

Vago no princípio. Crescendo em entendimento viu sem lentes na claridade do meio-dia. A visão, clara e feliz em traço reto. Agonizante depois, perdendo-se sem exigência de armas, mandada direta, nua, à lâmina fria, cega do horizonte.

O olhar. Sabia-o ingênuo e desprotegido como o que se toma no colo. Ele esperava saber como ajudá-lo. Lutaria, e morreria por ele. Enquanto isso, o coração chumbado e frio doía-lhe, nos ouvidos gritavam-lhe de dentro, ensurdecendo-o como se o chamassem para si próprio. Pensou um pouco compreendendo humano, cerrou as pálpebras nauseado, toda aquela exigência gritando-lhe enérgica, tentando em desespero íntimo fazê-lo voltar-se para seu próprio corpo. (Compreendeu que muita coisa devia ser quebrada, para enfim se libertar.) Olhos fechados, quase em escuro, desligou-se para o pensamento. Em sombras compreendia o mar, vendo-o lento, contínuo. Perdeu-se mais, envolvido pela massa escura, não totalmente em contato e sem comprometer-se: o que se larga em tempo num banco, deixando os dedos soltos e alegres. Compactas as sombras não eram propriamente vistas nem tocadas, podendo conduzi-lo ao sono, ocultas em frente: algo cobrindo a si mesmo. Atingia-as sem nenhum instrumento, pois eram justamente a falta.

Mesmo renascido diria ter visto o escuro na morte. E o que era o escuro?

Cambaleou miserável, abriu os olhos, prendeu-os ao horizonte claro.

Caminhou para o que sempre buscara, o coração frio pesando-lhe como uma advertência. Ele que sempre desejou amar aos pequeninos, inocente da força e solidão que os resguardavam, esquecido de que, ao tentar dar a mão a uma criança bem pequena e desconhecida, vira-lhe nos olhos surpresos a intrusão do que não fora solicitado.

Parado continuava o homem, a inteligência rápida noutra espécie de vibração. Pupilas bipartidas, entanto obstinadas. Não: independente dos olhos a mutilação do veículo. Buscava por onde começar. Mas lentamente subia em compreensão, havia muita dor. Não diretamente nele, isto podia jurar.

Em sacrifício o olhar.

Deixando o mar o homem virou-se vendo a pedra. A dez passos, formando pirâmide, mostrava a face lisa e firme, sem reentrâncias. O olhar rompia o espaço, casando-se à pedra mostrava-a aos olhos. O homem seguia o olhar: largo como água que se entorna e espalha respeitando os limites encimados de azul, projetando-se árido na certeza mineral sem pulsações. Cego às porosidades da pedra porque pedra. E um olhar, principalmente míope, ultrapassaria suas próprias possibilidades se penetrasse massa opaca.

O homem Não que temesse; mas por ignorância, conservava-se ainda fora, não encontrando meios para entrar na luta. Trancou as pálpebras com veemência, abrindo-as buscou rápido o momento da partida. Não o alcançou, sofrendo a pedra imediatamente. Lembrou-se de que alguma coisa restava para ser quebrada. No mais fundo de si, à parte, um desejo remoto insistia em revolta, prendendo-o a um condicionamento do qual necessitava se libertar, até ficar limpo ao ponto de aceitar outra realidade fora de si. O homem caminhava.

Em sacrifício o olhar. Mesmo interceptado por algum corpo, teria sua missão cumprida denunciando-o aos olhos. Esta a natureza completa, curta e eterna do elemento que não dava tempo a reflexões, vivendo mais veloz do que um possível arrependimento. Porque então já se cumprira. Sendo-lhe possível ainda vagar por séculos à procura do que lhe desse vida, que constituía o instante apenas antes da morte. Ondas visuais se integrando viriam repetir-se, o que não as libertava delas mesmas, alcançando o fundo do mar ou atingindo estrelas.

Crescendo em entendimento o homem entrava em luta de peito aberto.

Deu alguns passos contornando a pedra, já certo de sua missão. E ele já não se achava mais feliz. Como lâmina a aresta da pedra fulminava bipartindo o olhar exangue, gritando vazio em aço, subindo e descendo, até que os olhos soltaram lágrimas. Não por eles – e esta foi a primeira participação direta do homem com a função do olhar. Em guerra o humano lançava flechas.

Que em dor cortava o espaço abrindo caminho, atingindo o alvo. Formas quebrando dardos. Mesmo o líquido, visto de longe, se defendia. Na luta, compacto funcionava. E nas reentrâncias da matéria, áreas resistindo cruas, pátios cimentados. Na peleja o escuro era muralha. A terra vista de longe, um campo de batalha. Disso sabia quieto na praia, o homem.

Deu alguns passos em torno olhando fixo.

A pedra.

Certo de seu papel, buscava dar ao olhar, senão repouso, maciez na forma, sondando-a, e nesta busca, era inevitável, sofria o olhar.

O homem:

Tentava usar seu poder, e a única forma de prová-lo seria dando ao olhar morte sem dor. Um poderoso a quem se permitia escolher apenas o local de matar. Mas esta única liberdade o elevara. Noutro campo seria escravo.

Porque então o homem era rei.

Suave agora, o olhar percorria reentrâncias úmidas da pedra, sombreadas, quase macias – lodosas. Conseguia dar-lhe o homem um pouco de inutilidade e demora, acumulando-o sem alterar o ataque, consumindo-o de qualquer forma, em túmulo ou campo aberto.

E o homem sentiu que se desligara de sua natureza, complexa e apodrecível, nenhum animal ou planta podendo mais alcançá-lo, só a pedra tomando-lhe em sede e quietude um pouco do que constantemente renascia em seu corpo. Mas não se sentia feliz, sofrendo pelo olhar, renegando tudo mais que o desviasse do caminho claro e simples, só lhe importando a forma, onde se dava a imolação. Sabia-se em terreno árido, não lhe sendo possível ganhar nem perder, ele a quem nada mais dizia o corpo, complexo e apodrecível, simplificado, tal seu desprendimento, à maneira do que morria ao nascer. Esquecendo-se mostrava-se em todo seu egoísmo, o corpo abandonado, ele se evadindo de si em generosidade. Já então achava-se completamente definido.

A defesa: matar sem dor. Embora, numa realidade superior, ignorasse se havia, e onde estava a dor.

Trabalhava exausto, sondando, nisto consistindo sua participação voluntária, recusando o abrigo das sombras, porque então a luta seria baixa, cava – chumbo e revolta, como na morte. A pedra prendia-o. De outro mundo, olhando a terra, veriam: vergado e sujo, o escravo mostrando ao amo o pó dos caminhos. O servo, para morrer depois, atravessando a estrada. Um filho mandado à guerra. Ele pensava no olhar. Que já era o próximo, subindo em pesquisa como lâmpada dirigida, quase em fúria, sofrendo o cinzento lavado, logo acima e dos lados da cavidade.

Circulou o homem, parando em frente à parte mais miserável e agressiva da pedra. Quis virar-se ou trancar os olhos, não o fazendo por recusa do corpo, cansado, sedento. Era, ele ignorava, um guerreiro afoito, sem armas.

Mesmo porque, em verdade, não entrara em luta: apenas se entregara à sua pretensão. Continuava sofrendo a solidão do homem. O rei sem súditos.

Lascada, a pedra feria nos pontiagudos, sem pena. Saliências frias, terríveis, compunham aquela face, da base ao vértice, em defesa e guerra.

Teve-a inteira no olhar desprevenido e macio, sozinho nos pontiagudos, onde vivia o bastante para sua natureza (que não era a do homem), brilhando em vida e sol, deixando-se inexorável pelo penhasco arestado. O homem culpava-se, desesperado e inútil. Em último esforço guiou o olhar até o vértice, lembrando-se do azul. Talvez pudesse, deixando-o em paz, perder-se na distância.

Foi quando, incapaz de continuar se ignorando, sentiu as mãos frias, a testa ardente, ele que não as tivera durante tanto tempo. Um peso enorme fê-lo cambalear, o coração magoado e frio, enquanto a cabeça, dançando, alucinava-o em vingança pelo abandono. Apodrecida a carne caía lenta na areia. Sol. Garganta ressequida negando-se. Mar nos ouvidos. Ele sabia o céu sobre o corpo, de súbito possuído por um egoísmo terrível e tardio.

Caía, enquanto tudo se recusava, exigindo. Pôde ainda detestar a generosidade na qual se perdera. O homem necessitado e exposto a si próprio. A batalha absurda de duas horas tombando-o.

Alguma coisa soltou-se do cimo da pedra se espalhando em luz. A matéria, não possuindo voz, cantava à maneira de sua natureza, perdendose, de acordo com seu único e possível destino.

Quieta e só, representava a pedra: solidez e forma.

O sol cumpria-se.

E o ar sufocava o peito de um homem. Um homem. Havia guerra.

FIM


Maura Lopes Cançado

Perfil Biográfico de
Maura Lopes Cançado
por MAURÍCIO MEIRELES

[...] Pelo menos literariamente, Maura estava no auge de sua glória (em 1961, até conseguira um emprego de escrevente datilógrafa do Ministério da Educação, onde ficou por oito anos, entre uma internação e outra, até ser aposentada por causa de sua doença mental).

Primeiro, a escritora lançou Hospício é Deus, em 1965. O diário, como já sabemos, era fruto de sua passagem pelo Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, entre o fim de 1959 e começo de 1960 (onde, ao todo, a autora foi internada pelo menos doze vezes; sem contar outras clínicas). O livro, cujo incentivo para a escrita viera de Reynaldo Jardim, a quem Maura dizia não dever nada, ganhou resenhas positivas, algumas enquanto ainda estava no prelo.

Uma declaração de Jardim, aliás, foi para o anúncio de uma edição do diário em 1991, feita pelo Círculo do Livro: “Este é um livro perigoso, feito para comprometer irremediavelmente sua consciência. A tranquilidade dos que se julgam impunes e lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam para dentro de si mesmos, que Deus também pode ser o Inferno, ou o Hospício”. José Carlos Oliveira, o Carlinhos Oliveira, diria no Jornal do Brasil que a obra era um “livro desesperadamente honesto”.

Assis Brasil, por sua vez, via na linguagem de Maura um primitivismo, uma arte espontânea, que de seu mundo particular retratava a condição humana.

Em 1968, era a vez de O sofredor do ver, igualmente elogiado, que reunia contos publicados no JB e textos inéditos. O tema da loucura continuava lá, como em “Introdução a Alda”, sobre a paciente catatônica do Engenho de Dentro, mas Maura parecia tomar um novo caminho literariamente. Quem aponta a transição é Assis Brasil, no Correio da Manhã: “A segunda parte [do livro] traz uma espécie de libertação da escritora em relação às suas ‘confissões’”. Para o crítico, a passagem entre “confissão” e “criação” começa no conto “O sofredor do ver” – no qual o protagonista é um homem – e já está completa em textos como “São Gonçalo do Abaeté” e “Pavana”.

“Sem dúvida, Maura Lopes Cançado já se conscientizou de seu compromisso com a literatura – a substituição do ‘eu-confessor’ por narrativas em terceira pessoa ou por uma poética em primeira pessoa que amplia o seu horizonte criativo e o escritor passa a não depender, exclusivamente, de sua imediata experiência de vida”, escreve Assis Brasil. [...]

Ninguém visita a interna do cubículo 2. (ler neste site) É a essa conclusão que chega Margarida Autran, de O Globo, ao procurar Maura Lopes Cançado na Penitenciária Lemos Brito. Repórter de cultura, Margarida recebera a missão de verificar as condições em que vivia a escritora, que agora se encontrava na Rua Frei Caneca, no centro da cidade. A jornalista escreveu, no subtítulo de sua matéria: “A escritora Maura Lopes Cançado está cega e desesperada”.

Quando Maura e Margarida se encontraram, a autora estava com a visão comprometida por uma catarata avançada no olho esquerdo. “Uma noite tive uma dor de cabeça horrível e, de manhã, não enxergava mais com esta vista. Aqui não tem oftalmologista e não posso sair para ir ao médico”, afirmava Maura. “Você não sabe o que é ficar cega, o medo que a gente tem. Não tomo mais banho com medo de pegar o sabão e ser um bicho. Não consigo dormir com medo que joguem um rato pela janela”. Mais tarde, a escritora deixaria de enxergar também com o olho direito. Por muitos anos, circularia a versão de que a escritora sofria de uma cegueira de origem psicológica – mas ela depois foi operada e voltou a enxergar.


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O Sofredor do Ver
-conto-
Maura Lopes Cançado (1929-1993)
in Colectânea de contos O SOFREDOR DE VER (1968)
Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016.

 


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21.Out.2023
Publicado por MJA