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imagem: The Blind Woman - Tsvelov Alexey, 2006
Estou tensa como as cordas de um violino. Se relaxar eu morro.
A tensão foi forte demais: há duas semanas, em seguida a uma insuportável dor de
cabeça, a escritora Maura Lopes Cançado acordou cega do olho esquerdo, como
pouco antes já havia acontecido com o direito.
Cega, presa num cubículo de um
metro imundo e infestado de percevejos, abandonada pêlos amigos, esquecida pêlos
que a apontaram como a melhor escritora de 68 por seu livro "O sofredor do ver",
ela é um ser humano em desespero.
Física e psiquicamente doente, desnutrida,
olhos e dentes exigindo cuidados imediatos, sem nenhum tratamento psiquiátrico,
da Maura que surgiu como revelação no "Suplemento dominical do Jornal do
Brasil", em 58, resta apenas a desconcertante lucidez e a surpreendente
inteligência. Vítima do sistema psiquiátrico que ela própria foi das primeiras a
denunciar em seu romance de estréia, "Hospício é deus", lançado em 65, Maura
Lopes Cançado está hoje irregularmente detida no Hospital Penal da Penitenciaria
Lemos de Brito, junto com presos comuns portadores de todos os tipos de
moléstias contagiosas. Para o juiz Benedito Motta Mello, da Vara do 2.º Tribunal
do Júri, onde em outubro de 74 ela foi considerada penalmente irresponsável, sua
situação é "ridícula e triste".
—
Visita para a Maura?
A surpresa do guarda se justifica. Há meses não aparece ninguém para visitar a
interna do cubículo 2. E, depois de minuciosamente revistada, ao contrário do
que acontece com os outros visitantes, não sou conduzida a cela, mas a um pátio
interno, um árido triângulo cimentado onde três arvores desgalhadas são
circundadas por bancos de cimento. Debaixo do banco que me é apontado, um rato
morto.
— Ora, isto não é nada. De noite há centenas deles correndo por aqui.
Ato contínuo, o guarda providencia a retirada do rato, cujo cheiro pútrido torna
o ar irrespirável. Um interno o pega com uma pá e o joga por cima de um portão
de ferro. Por um buraco, espio o outro lado. E a lavanderia do hospital.
— Ela vai demorar. Leva horas se arrumando.
A informação vem acompanhada de um riso debochado. Maura demora se arrumando.
Três anos de cadeia não lhe roubaram a vaidade, o respeito por seu próprio
corpo. Afinal ela surge, trôpega, amparada e ofuscada pelo sol que há muito
tempo não a aquece. O banho de sol também lhe é negado. Precocemente
envelhecida, os cabelos manchados por uma tintura antiga, mal se equilibrando
sob os sapatos de plataforma. Maura não procura disfarçar sua intensa emoção.
Não sabe se acende o cigarro ou se enxuga as lágrimas. Tem tanto o que falar,
tanto o que perguntar. Seu único contato com o mundo exterior é um radinho de
pilha. Nem ler ela pode mais. Sobre a íris do olho direito é visível um círculo
branco, como uma lente de contato opaca.
— Eu estava apavorada com ameaças de espancamento. Uma noite tive uma dor de
cabeça horrível e, de manhã, não enxergava mais com esta vista. Não sei o que me
aconteceu. Aqui não tem oftalmologista e eu não posso sair para ir a um médico.
Com a outra vista ela também vê muito pouco, cada vez menos desde que, ao ser
transferida do Presídio de Bangu para este local, há oito meses, sumiram com
seus óculos. De todos os seus pertences — livros, máquina de escrever, alguma
roupa e produtos de toucador —, apenas os óculos e os originais de seu terceiro
livro desapareceram. Os livros de Maura incomodam porque ela não tem medo de
falar.
"Estou no hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o
coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: tremulo, exangue — e
sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças
perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro — como o que não se
pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde — paradas
bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: hospício é não se sabe o
quê, porque hospício é deus". ("Hospício é deus", 1965)
Maura nasceu numa fazenda do interior de Minas, rica e mimada. Foi uma criança
precoce, "monstruosamente inteligente, perplexa e sozinha". Aos catorze anos
quis ser aviadora e, no aeroclube onde pretendia obter um breve de piloto,
conheceu um jovem aviador pouco mais velho do que ela com quem se casou. O
casamento durou doze meses ao final dos quais Maura se viu com um filho e sem
condições de reintegrar-se na preconceituosa
sociedade mineira. Tinha apenas dezoito anos quando se internou pela primeira
vez num sanatório.
"Ninguém entendeu esta internação a não ser eu mesma: necessitava
desesperadamente de amor e proteção... O sanatório parecia-me romântico e belo.
Havia um certo mistério que me atraía. "A partir daí sua vida foi uma
interminável e sofrida peregrinação por caros sanatórios particulares e, quando
o dinheiro acabou, por hospitais públicos. Foi em sua terceira passagem pelo
Hospital do Engenho de Dentro que ela escreveu "Hospício é deus". E foi na Casa
de Saúde Doutor Eiras, durante uma crise — e valendo-se da deficiência de
segurança, indispensável numa casa especializada em doenças mentais —, que Maura
matou uma outra interna.
"Devo escrever sempre no princípio de cada página do meu diário que sou uma
psicopata. Talvez esta afirmação venha a despertar-me, mostrando a dura
realidade que parece tremular entre esta névoa longa e difícil que envolve meus
dias, me obrigando a marchar, dura e sacudida — e sem recuos." ("Hospício é
deus").
Na segunda visita deixam-me ir a cela, um cubículo mínimo atulhado de livros
onde mal há espaço para uma pessoa se mover. Além da cama ha, debaixo da janela,
um vaso sanitário e uma pequena pia, onde Maura toma banho, alerta ao visor da
porta que pode ser aberto a qualquer momento por um guarda. Antes dela esta cela
foi ocupada por um tuberculoso. Na do lado, convalesceu um portador de hepatite.
No cubículo 40 há um leproso. Ou melhor, "hanseático", como prefere o médico
para não traumatizar o doente.
Encontro uma Maura mais esperançosa, menos angustiada, remoçada até em suas
calças compridas. Ela toma café frio numa caneca de plástico encardida e pede
que lhe leve frutas ("Não gosto de maça nem de pêra. São frutas de doente.
Prefiro goiaba, caqui"). Quando chega o jantar, uma sopa pouco convidativa num
prato de alumínio, folheamos juntas uma revista de moda (ela enxerga apenas
sombras coloridas e pede que eu lhe descreva as roupas). Faz até questão de me
mostrar suas botas de cano longo.
Maura Lopes Cançado foi julgada na 2a Vara do 1.º Tribunal do Júri. No dia 15 de
outubro de 1974 foi absolvida, "considerada incapaz de atender ao carater
criminoso do fato que praticou". Mas o juiz impõe a ré a medida de segurança de
internação em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de seis anos. E aí esta o
impasse: o manicômio judiciário não recebe mulheres. Era impossível para Maura
sobreviver em liberdade. Tinha medo de matar, de se matar.
— Fui então ao juiz e pedi para me prender. Eu pensava que numa cadeia a gente
entrava e, desde que ficasse quietinha numa cela, poderia ler, reescrever meu
livro.
Maura esteve na carceragem feminina São Judas Tadeu, na de Agua Santa em Bangu
(onde fez uma entrevista com Lou para "Fatos e Fotos" e uma reportagem sobre o
presídio, esta nunca publicada), no serviço de Biopsicologia e agora está no
Hospital Penal da Penitenciária Lemos Brito. Depois de três anos de cela em
cela, viu que a cadeia não era bem o que imaginava.
"Ao mesmo tempo ridícula e triste é a situação. Ridícula porque constata não
contar o sistema penitenciário do mais importante estado da federação com um
órgão especializado para o internamento da acusada, reconhecidamente perigosa.
Triste porque, para dar-se a acusada o tratamento de que ela necessita, não
ficará sujeita à vigilância que a garantia da ordem pública aconselha. Diga o
curador da acusada em que estabelecimento particular deseja interná-la."
(Benedito Motta Mello, juiz substituto dali Vara do 2 .º Tribunal de Júri) Maura,
funcionária aposentada do Ministério da Educação e Cultura, não tem condições de
pagar uma casa de saúde particular. O Pinei, inquirido pelo juiz, diz que
poderia aceitá-la, mas "no momento está em reformas" e indica o Hospital Pedro
H. Este nega-se a recebê-la porque funciona como hospital aberto. O Hospital
Psiquiátrico Penitenciário Nelson Hungria nem sequer respondeu. Maura não pode
esperar mais.
Terceira visita. O cubículo está cheio de lixo, pontas de cigarro por toda
parte, tudo está em desordem e malcheiroso, moscas sobrevoam as canecas de café
frio onde bóiam formigas. Sobre a cama, desalinhada, fronha e lençóis imundos.
Maura me recebe descabelada, de camisola, toda angústia. Esta cega.
— Você não sabe o que é ficar cega, o medo que a gente tem. Um troço infernal.
Não tomo mais banho, com medo de pegar o sabão e ser um bicho. Não consigo
dormir com medo de que joguem um rato pela janela.
Coloco em suas mãos um sanduíche que trouxe da rua. Ela o devora apressada,
faminta.
— Não como mais a comida daqui. Outro dia me trouxeram uma comida podre, a carne
cheia de bichos e fedorenta. Me chamam de "madame", "minha tia", "minha avó". E
disseram tambem "é presa, tem que comer escarrado, comida, cuspida". Não posso
mais comer. Tenho medo. Senti gosto de amoníaco no café. Uma vez um médico da
Biopsicologia me disse: "Vão procurar te massacrar porque não gostam de pessoas
inteligentes. Você é artigo 22 e sua ligação com a imprensa é uma faca de dois
gumes. Se aceitar se corromper, pode ter uma boa vida na cadeia. Você tem
força". Agora o que eu quero é salvar minha vida.
Numa pequena agenda ela anota uma série de coisas e me pede que leia. E difícil.
Sem enxergar, escreveu palavras superpostas, garatujas. Falando aos borbotões,
faz um relato de tudo o que viu e viveu nesses três anos.
— Se puserem você numa caixa cheia de pulgas, as pulgas vão ter um valor imenso
para você. Você não vai se interessar pêlos intelectuais, por exemplo, porque
não tem nenhuma relação extracaixa.
Ela precisa urgentemente sair da caixa.
— O juiz decreta que até 1980 eu sou louca. A partir daí cessa minha
periculosidade. Por que esta onipotência, esta onisciência do juiz? Depois o
advogado grita que eu estou ilegalmente presa. Por que então estou presa?
Qual será a real periculosidade de uma pessoa cega? O Estado não tem local
adequado para acolher Maura Lopes Cançado. Não seria o caso, então, de financiar
seu tratamento numa casa de saúde particular? E o Ministério da Educação, do
qual ela é pensionista?
"Como punir a inconsciência é o que não entendo. Entretanto, o médico, depois de
rotular um indivíduo de irresponsável, inconsciente, exige deste mesmo indivíduo
a responsabilidade de seus atos ao mandar (ou permitir que se faça) castiga-lo.
De que falta pode um louco ser acusado?
De ser louco? É o que venho observando e sentindo na carne".
FIM
Maura Lopes Cançado nasceu em São Gonçalo do Abaete, município de Minas Gerais,
em 27 de janeiro de 1930. Maura, que ambicionava ser a maior escritora da língua
portuguesa e que já na adolescência pilotava aviões, saiu do interior de Minas
Gerais para Belo Horizonte e, na década de 1950, mudando-se para o Rio de
Janeiro, passou a conviver com poetas, artistas e intelectuais, sobretudo do
mundo literário. Aclamada como grande revelação da literatura brasileira em seu
tempo, sua obra é fortemente marcada por sua experiência como paciente de
hospitais psiquiátricos.
Devido a
desequilíbrios emocionais, acrescidos com a retirada de seu filho por uma
vizinha, acabou em hospícios, aonde chegou a assassinar uma outra paciente.
Depois de cumprir a sua pena, Maura chegou a viver em liberdade. Operou a
vista e voltou a enxergar. Internada – por vontade própria – inúmeras vezes ao
longo da vida, Maura encontrou nas palavras uma maneira de se relacionar com sua
doença e sua condição de paciente psiquiátrica. Morreu com 64 anos, em 1993.
Entre romances, escândalos e diversas internações, Maura Lopes Cançado publicou,
na década de 1960, seus dois livros, que a tornariam uma das autoras mais
comentadas da época: "Hospício é deus" (1965) e "O sofredor de ver" (1968) .
in
GrupoAutêntica
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título: 'Ninguém Visita a Interna do Cubículo 2'
autora: Margarida Autran, jornalista
artigo publicado no jornal "O Globo" em 1978.
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