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 Sobre a Deficiência Visual

 

O Leitor Cego

Denise Ventura Schittine

jorge luis borges
fotografia de Jorge Luis Borges


Até agora (*) traçamos o caminho histórico que nos levou à figura do leitor como a entendemos hoje. Esse leitor que participa e influi no texto. Um leitor que começou como um mero “instrumento vocal” necessário para passar o conteúdo de um escrito ao leitor como é atualmente: um “interpretador” do texto. Durante todo esse trajeto, assistimos gradualmente à transferência da importância do par voz/escuta para o olhar/interpretação. Não se trata de criar antagonismos desnecessários, mas de nos fazer entender as conquistas pelas quais o leitor foi passando ao longo do tempo até transformar a leitura num ato particularmente privado.

As mudanças foram graduais, em seu tempo, levaram séculos. O facto é que a palavra falada, repositário da memória, privilégio dos poetas, foi perdendo sua supremacia para a palavra escrita. A pena substituía a voz. Talvez um dos primeiros registros sobre isso apareça no livro seis das Confissões de Santo Agostinho, quando ele se inquietava com aquele singular espetáculo de um homem sozinho em seu quarto lendo um livro sem articular as palavras. “Cuando Ambrósio leia, pasaba la vista sobre las páginas penetrando su alma, en el sentido, sin proferir una palavra ni mover la lengua” (BORGES in Otras inquisiciones, 1974, p.714). Fica claro nesse trecho relatado por Jorge Luis Borges que o que naquele momento causava tanta impressão era algo que iria se confirmar nos próximos anos relativos à história da leitura: que o texto passa pelos olhos penetrando diretamente na alma. O conhecimento e a sabedoria passam a ser adquiridos através do olhar, que filtra e direciona para o cérebro. Os olhos se transformam no filtro do mundo.

Observaremos ao longo deste capítulo que autores diversos fizeram leituras diferentes dessa importância do olhar. No entanto, uma coisa é certa: são os olhos que incidem luz sobre o texto. Quando tratamos de leitores que ficaram cegos, precisamos lembrar que eles perderam esse meio de contato com o livro. Um meio que, acima de tudo, garantia independência no ato de leitura. Para além do simples facto de que o olhar faz a mediação direta entre o leitor e o texto, existe o livro como objeto, a noção de seu tamanho, textura e cor. Até o cheiro do livro nos parece dado no momento da visão. Fora isso, há todas as sensações ligadas ao ato de leitura: o lugar onde estamos, a visão da paisagem que nos cerca, os barulhos que vêm de fora, os cheiros que experimentamos, as memórias de outras leituras ou outros momentos que passamos ao ler livros parecidos ou ao ler o mesmo livro.

Todas estas sensações estão contidas no momento e no ato de leitura. Lembremo-nos de Cézanne em seu esforço de pintura que foi um desafio para toda a sua vida e também obra. Sua ideia ao pintar era imobilizar as sensações e deter o movimento: o quadro deve ser o resultado da visão expressiva do pintor, por isso tem caráter provisório, está em aberto, inacabado. O mesmo acontece com este quadro que o leitor pinta no ato de leitura. Ele volta, de alguma maneira, àquela percepção primordial em que as distinções entre tato, visão e os sentidos em geral são desconhecidas. A leitura o leva para aquele estado em que todas essas sensações estão misturadas, e, sem dúvida, a responsável por essa experiência é a visão:

Nós vemos a profundidade, o aveludado, a maciez, a dureza dos objetos – Cézanne dizia mesmo: seu cheiro. Se o pintor quer exprimir o mundo, é preciso que o arranjo de cores traga em si esse Todo indivisível; caso contrário, sua pintura será uma alusão às coisas e não as mostrará na unidade imperiosa, na presença, na plenitude insuperável que é, para todos nós, a definição do real.(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 130)

É este “Todo indivisível” que o leitor capta durante o ato da leitura e é também dele que o leitor cego vai abrir mão. Se, no entanto, algum dia esse leitor enxergou quais são os resquícios que carrega de seus atos de leitura passados?


1.

Olhos: espelhos de sabedoria

Supremacia dos olhos. Anos antes de Cézanne se arriscar neste golpe de vista sinestésico sobre a arte que fez Merleau-Ponty elaborar filosoficamente a função do olhar, a importância da visão já vinha sendo estudada. O Renascimento chegava com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e, principalmente, cultivando o valor do Humanismo. O homem como o centro e a medida de todas as coisas. O homem criando, construindo, arquitetando, pintando e esculpindo pelo toque das mãos, mas não sem o intermédio definitivo dos olhos, estes perscrutadores de mundo. É descoberta renascentista a “espiritualidade da visão”, o olho como escrita e leitura do mundo, criador de todas as artes. Não é por acaso que Leonardo da Vinci em seu Traité de la peinture define com grande paixão o olho:

É o príncipe das matemáticas: suas disciplinas são intimamente certas; determinou as altitudes e dimensões das estrelas; descobriu os elementos e seus níveis; permitiu o anúncio de acontecimentos futuros, graças ao curso dos astros; engendrou a arquitetura, a perspectiva, a divina pintura (...) O que o olho não faz? Desloca os homens de leste para oeste, inventou a navegação e ultrapassa a natureza cujas obras são finitas, enquanto aquelas que o olho comanda às mãos são infinitas, como demonstra a pintura. (DA VINCI, 1987, pp. 89-90)
 

Mecanismo da Visão - Leonardo da Vinci, desenho 1492
Mecanismo da Visão - Leonardo da Vinci, desenho 1492


O mundo definitivamente abandonava a Idade das Trevas e entrava no Renascimento tendo como guias os olhos: duas lanternas que lançavam luz sobre o mundo.

A visão renascentista influenciada pela tradição neoplatônica era de um olhar revelador. É Giordano Bruno que escreve que “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”, pensamento que coloca finalmente o olho na zona de transição entre a materialidade e a espiritualidade, entre o corpo e o pensamento. Em vários quadros renascentistas, uma pequena janela era pintada dentro dos olhos: seria ela a porta de entrada para o espírito? Ou melhor: não é a partir deles que o espírito pode vagar fantasmaticamente pelo mundo externo? Leonardo dizia: “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento.” Cabia ao pintor espelhar cada uma dessas coisas em sua obra, Da Vinci sabia disso.

O olho é a parte da carne que pode sair do corpo, vagar pelo mundo, mas é também o reflexo das coisas que existem lá fora onde se dá o teatro do mundo. Como conceituaria Marilena Chaui, “as janelas da alma são também espelhos do mundo”. E não apenas porque o espelho facilitou uma série de técnicas pictóricas, como porque, citando Platão, o olho é um espelho vivo, refletindo na pupila a imagem do rosto que vemos, daquele que olha. No fim, acreditamos que a visão nos faz sair de nós mesmos e trazer o mundo para nosso interior. E a predisposição para o que veremos e o que traremos para o nosso registro é inteiramente pessoal. Nisso consiste a leitura que temos do mundo e bastante do nosso papel como leitor.

O Renascimento vinha para afirmar o poder do olhar. Poder que tinha sua origem distante na mitologia. A força realizadora e destruidora do olhar que transformara em estátuas de sal as filhas e a mulher de Ló, que fez com que Édipo desistisse de sua visão e que ajudou Perseu a petrificar a Medusa. Um olhar que ainda guardava as forças mágicas e feiticeiras de outros mundos. Ou a visão, sentido cheio de curiosidade, que segundo Santo Agostinho se contentava apenas com a superfície das coisas e, desavisadamente, usurpava os outros sentidos.
 

(...) um desejo de conhecer tudo, por meio da carne. Este desejo curioso e vão disfarça-se sob o nome de conhecimento e ciência. Como nasce da paixão de conhecer tudo, é chamado, nas divinas Escrituras, de concupiscência dos olhos, por serem estes os sentidos mais aptos para o conhecimento. É aos olhos que propriamente pertence o ver. Empregamos, contudo, esse termo mesmo em relação aos outros sentidos, quando os usamos para obter qualquer conhecimento. (...) Por isso não só dizemos “vê como isto brilha” – pois só os olhos podem sentir – , mas também “vê como ressoa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro”. (SANTO AGOSTINHO, X, 1973, p.222)

É uma questão de linguagem. O verbo “ver” entra no lugar de todos os outros e está tão ligado ao domínio intelectual que quem não aprende a ler é considerado “cego”. Invade a área das ciências e da medicina: o bom médico não é só aquele que vê os sintomas, mas sabe como descrevê-los, tem o controle da linguagem.

E de facto a linguagem é muito importante. Quando observamos a etimologia das palavras ligadas ao ato de ver, percebemos que muitas estão ligadas ao conhecimento. Por exemplo, a própria filosofia é chamada théoria, ação de ver, contemplar, ou théorema: o que se pode contemplar, regra, espetáculo e preceito. Só para dar dois exemplos de duas palavras muito próximas ao nosso vocabulário. E partir dessas, um monte de outras que designam ideias aproximadas – luz, luz dos olhos, brilhar, irradiar, mostrar, clarear – ou completamente opostas – como esconder, ocultar, escuridão, cela, esconderijo. Até chegar aos significados da visão na sua função mais mística, que é a da fantasia, do fantástico, da imaginação e do ser visionário. Mas, sem dúvida, a raiz em que vamos nos deter mais aqui é a de eidô.

Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime. Eidô – ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber (...) (CHAUI, 2006, p. 35)

Ver é saber. Saber é ver além. Levando em conta que o conhecimento era mérito de poucos. Muitos ainda precisavam de “luz”, estavam de alguma maneira, cegos. As conceituações sobre a visão, no entanto, nem sempre foram as mesmas e nem sempre muito promissoras. Platão já alardeava sua desconfiança em relação aos sentidos, plasmada na separação entre o corpo e a alma. A visão física, corporal, era aquela responsável pelo engano, pelas ilusões (lembrando que os olhos do corpo para Platão só enxergavam as sombras). Só a visão do intelecto era capaz de vislumbrar a verdade, contemplar as ideias que, a princípio, eram invisíveis ao corpo. René Descartes dá um passo maior quando começa a destrinchar visão, buscando explicações físico-matemáticas para o seu funcionamento e pesquisando as maneiras de corrigi-la. A Dióptrica era uma maneira de afastar os “fantasmas sensitivo-sentimentais” relacionados à visão e trazer o olhar definitivamente para o campo da razão. A ciência marcava o surgimento do pensamento cartesiano com o princípio da Idade Moderna, que daria o seu golpe de misericórdia na supremacia da visão com o aperfeiçoamento do telescópio por Galileu Galilei.

Com essa descoberta a credibilidade da visão a olho nu se modificou. O telescópio era prova de que havia uma variedade de coisas que os olhos humanos não podiam alcançar. E tudo isso era feito “corrigindo” a visão a olho nu através da modificação das distâncias, luminosidades e grandezas.

Os olhos estorvam a visão. Iludem-nos, mentem-nos e, graças à geometria que preside o telescópio, onde a experiência é guiada pela razão, confirmam o verso de La Fontaine (...): “meus olhos nunca me enganam, mentindo-me sempre.” CHAUI, 2006, p.55).

O olho, então, introduziria obstáculos, interferências no ato de ver, e só a tecnologia seria capaz de “corrigir o olhar”. Depois de alguns anos de soberania absoluta, o telescópio ensinava não só que o homem deixava de ser o centro do Universo, que passava a ser heliocêntrico, como também que o ponto de vista humano, sua visão, precisava ser reparado, e a tecnologia o ensinaria a “ver melhor”. Todas essas descobertas, incluindo aí o microscópio, em 1590 – que servia para aproximar as coisas e fazer entender que a matéria compacta vista pelos olhos era formada de uma trama invisível a eles – visavam explicar o funcionamento do olhar. No entanto, sabemos, há mais do que isso. O olho não é um mero e obediente trabalhador do pensamento.
 

2.

O olho interior

O divórcio entre o ato de olhar e a visão foi matéria da arte, da filosofia e da religião. As teorias neoplatônicas lideradas por Plotino defendiam que os olhos carnais deveriam ser fechados para que a alma do homem pudesse mergulhar no belo. Era preciso preparar o terreno para que o “olho de espírito” se abrisse. O homem teria que abandonar a consciência do seu corpo e a distração que a visão do mundo a sua volta gerava para que a alma recebesse a iluminação do verdadeiro. Instaura-se uma tradição contra as belezas corporais, que enganam, iludem e não mostram a verdade. A fábula de Narciso, contada uma e outra vez, de um homem que viu a sua imagem refletida, apaixonou-se por ela e, ao tentar tocá-la, morreu afogado nas águas do rio, é a melhor metáfora para esse momento. Como Platão, Plotino acredita na separação entre o corpo e a alma, também como ele, desconfia dos sentidos, mas aponta uma saída contra as visões mundanas e carnais: manter o foco do olho interior, ver as belezas da alma.

Porque é necessário que quem veja as belezas corporais não se apresse em correr atrás delas. Deverá persuadir-se de que são imagens, sombras, ondas, fugir dessa beleza que representam. Se alguém corresse atrás delas, lhe aconteceria o que nos conta a fábula do homem que, atraído por sua bela imagem refletida nas águas, submergiu na corrente profunda e nela desapareceu. Coisa semelhante ocorre com quem se prende à beleza dos corpos e não é capaz de abandoná-la. Não será seu corpo, mas sua alma que submergirá nos abismos obscuros e funestos para o intelecto, levando a alma a uma cega convivência com as sombras, na região do Hades. (...) Que é o olho interior? (Plotino in CHAUI, 2006, p. 50)

O olho interior era o olho do espírito. Já em Plotino fica claro que é preciso desembaraçar-se da confusão, dos limites e do que falta no olhar carnal para adquirir mais sabedoria com o olhar espiritual. Facilmente a tradição neoplatônica foi utilizada por teólogos como Santo Agostinho, que percebia os olhos carnais como curiosos, ávidos e com desejo pela aparência do visto. Ao contrário do olho interior que podia chegar a ter a visão de uma luz sobrenatural, embora o êxtase da visão de Deus fosse reservado apenas aos santos. E, depois, as mesmas ideias foram utilizadas por Malebranche no seu estudo das relações entre a alma e o corpo: o filósofo acreditava que uma análise das percepções da alma se dava por três modos distintos – os sentidos, a imaginação e o entendimento.

A cegueira então de alguma forma passa a ser não apenas física, mas interna. Uma deformação ou deficiência nos olhos carnais pode ser compensada com uma excelente visão interior. A visão do espírito pode vir através da religião, da retidão de caráter, do conhecimento ou das artes. No Renascimento o olhar virou um espelho que refletia a alma; esta, a Natureza; e a Natureza se refletia nas artes. Finalmente o homem tinha luz própria, a da visão intelectual, que se diferenciava da luz divina de Deus. O filósofo e matemático francês Charles de Bovelles dizia que os olhos carnais (ou “mundanos”) eram duas esferas perfeitas, criações divinas, mas que permaneciam com apenas um lado voltado para o mundo e seus estímulos visuais e de cores, a outra parte, presa à cabeça, permanecia “cega”. Ao fechar o olho humano na parte interior do corpo, a Natureza desafiava o homem a desenvolver sozinho e por meio da sabedoria de si mesmo a visão interior. Bovelles acreditava que o intelecto se assemelhava ao olho mundano: se estivesse preso à sensação dos sentidos, estaria semicego e semividente, veria as coisas do mundo, mas não os desejos interiores do homem.

Descartes propunha uma saída radical para despertar esse olhar interior:

Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais ou, pelo menos, uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei vãs e falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. (DESCARTES, 2005, p. 136)

Voltar-se para si, descobrir-se. Eis a saída de Descartes: fechar os olhos das distrações do mundo e passear internamente pela alma. Buscar uma fonte de autoconhecimento. Tornar-se cego ao espetáculo do mundo.

Quando o racionalismo de Descartes ainda estava longe de chegar ao fim, aparece uma visão inteiramente nova e conturbada gerada pelo poeta inglês John Milton. Milton pertencia à seita dos Puritanos e era extremamente religioso. Além disso, ia seguir a carreira eclesiástica, mas por conta do temperamento inquieto terminou saindo da St Paul's School, em Londres, para matricular-se no Christ's College, Cambridge, em 1625. Permaneceu aí por sete anos até se formar com louvor e estudar uma série de disciplinas, entre elas, teologia, filosofia, história e literatura. Cresceu numa época em que o latim era considerado a língua dos homens cultos, percorreu a Itália com o intuito de completar sua instrução – lugar onde chegou a conhecer Galileu – e escreveu poemas em inglês e italiano.

Milton baseava muito de seus escritos na doutrina da Igreja e nos ensinamentos de Santo Agostinho. Ele faz parte de um grupo de homens que depositavam uma fé indiscutível na Bíblia. O seu poema épico mais importante é O paraíso perdido, escrito como um ato de fé e perante uma imensa dificuldade: Milton estava cego. Os primeiros traços da cegueira o assaltaram por volta de 1652, quando já tinha 44 anos e uma relativa fama como poeta depois de ter publicado Lycidas. Os motivos físicos de sua cegueira são desconhecidos: glaucoma crônico, complicações de miopia e catarata já foram algumas das causas registradas pelos seus biógrafos. Lembrando que em seu principal poema, O paraíso perdido, o homem perde o Paraíso por desobediência a Deus, imaginamos o pobre autor com o advento da cegueira repetindo mentalmente a última frase de Cristo na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” No entanto, as melhores declarações de fé de Milton foram escritas no período de sua cegueira, que veio num momento em que estava no auge de seu potencial e, estranhamente, se sentia nas mãos de Deus. Em uma carta destinada ao amigo Leonard Philaras, datada de setembro de 1654, Milton declara abertamente sua aceitação da cegueira resignado com a vontade de Deus.

And I often think that since the days of darkness, to which every man is destined, are, as thewise man warns, many; that mine, by the great mercy of Providence, happening in the midst of leisure, and studies, and the conversation and salutations of my friends are much bighter than the shades of death. But if is written, man does not live by bread alone, but by every word that proceedeth out of the mouth of God, why should not any one submit for this reason also, that he can see not only with his eyes, but that the leading and providence of God is sufficient sight. Truly, if He take care of me – if He provide for me – which he does, and lead me by the hand, and accompany me through life, I shall willingly permit my eyes to be unemployed. (MILTON, 1829, pp. 69-70)

O que chama atenção neste trecho é que ele diz atravessar a escuridão com ajuda de estudos, lazer e conversas com amigos: alimentos para a alma, visões importantes para o olho interior.

Milton chegou a pensar que sua cegueira veio como castigo de Deus por ele ter participado na revolta de Cromwell, que depôs o rei Carlos I. A perda da visão, no entanto, não o impediu de trabalhar ativamente. Os primeiros oito anos de sua vida de cego dedicou a Oliver Cromwell, como Secretário de Línguas Estrangeiras, responsabilizando-se pela tradução de cartas do latim para o inglês e vice-versa. Conseguia ditar e ler as cartas graças à ajuda de secretários e amanuenses. Mais tarde, com a derrota dos puritanos e triunfo dos realistas, Milton abandonou a vida pública e voltou a alentar um antigo projeto: compor um poema épico da literatura inglesa. A princípio, o poema seria estruturado tendo como base um tema patriótico: a lenda do rei Arthur. No entanto, Milton decidiu contar a história que levaria à tentação e à queda do Primeiro Homem. O paraíso perdido fala do castigo de Adão e Eva e das consequências sofridas por eles pelo facto de não obedecer às leis divinas. “O pano de fundo do conceito de Milton relativo ao Pecado original da Humanidade reside, pois, na crença que há mil anos prevalece, no princípio da obediência aos superiores” (prefácio a edição de O paraíso perdido, 1994, p.15).

Mais do que apenas culpa e expiação, o épico de Milton lança uma série de questões originais sobre o tema do olhar através de um número consistente de metáforas visuais. É o ponto de vista de quem sofreu no próprio corpo a perda da visão, mas que como vidente se muniu de conhecimento para desenvolver o olhar interior. Milton não está satisfeito de fazer a viagem para o autoconhecimento e despertar o olhar interior sozinho, convida o leitor a explorar o caminho junto com ele. E não vai ser fácil ao leitor que se propor o desafio, porque, de quebra, Milton irá vendar-lhe os olhos. O importante nesta obra não é aceitar-se como cego (o autor o entende como um desígnio de Deus), mas desenvolver uma perspectiva particular de cegueira que participa o leitor como um espectador que será incluído e transformado pela obra. E o caminho do texto não é tradicionalmente de princípio, meio e fim, mas in media res: no meio do relato. O que não significa que o autor tenha estabelecido um centro, mas sim que está avisando ao leitor que seu movimento será em direção às margens.

Diz o crítico John Rumbrich que os leitores de Milton começam jogados em meio à confusão do Inferno sem entender ao certo o curso da narrativa.

“Depois lança-se logo o poema para o meio do assunto, e mostra Satã com seus anjos dentro do Inferno, descrito não no centro da criação (...), mas nas trevas exteriores mais propriamente chamadas Caos” (MILTON, 1994, p.21).

Desconforto da cegueira. O leitor experimenta fazer parte de um quadro em que os acontecimentos que geraram o ocorrido e os que vão suceder-lhe estão em suspenso. Ainda supreendido pela falta de direção que lhe dá o autor, depara-se com um guia particular: Satã. Um anjo caído, privado da visão “celestial”, desnorteado pela perda da luz, cego de inveja e ressentimento. Dupla escuridão: trevas do reino de Hades, trevas internas decorrentes do sofrimento pela punição.

Mas o mais desconfortável ainda está por vir. Este anjo caído, esta figura de nome impronunciável (com todo o poder negativo que evocar seu nome pode trazer) causa, estranhamente, uma atração. O interesse vem do seu forte poder de persuasão. O poeta se recusara a apresentar o diabo como uma figura desprezível. Ele que ousara reunir um exército de rebeldes para combater a Autoridade Divina, ele que conseguira convencer o casal edênico a realizar uma traição ao Criador, não podia ser um antagonista medíocre. “Milton atribui a Satã o poder da majestade de um arcanjo, e, de início, sob certos aspectos, não podemos furtar-nos a admirá-lo” (prefácio a edição de O paraíso perdido, 1994, p.16). Realmente o poeta confere um caráter de nobreza ao personagem, que, mesmo expulso do Paraíso e sujeito à humilhação do exílio, pretende ainda arrebanhar reforços para sua causa. O seu verdadeiro caráter vai se esboçando ao longo do poema, até virar uma simples sombra à espreita da figura divina. “Alguns críticos pensam que, no início do poema, Milton imprime a Satã um aspecto demasiadamente nobre, esforçando-se depois em corrigir seu erro, degradando-o subsequentemente.” (prefácio a edição de O paraíso perdido, 1994, p.17).

De facto a figura do anjo caído é como uma primeira memória fotográfica para o leitor: difícil de esquecer. O livro segue o empurrando para a sombra, mas essa figura escorregadia, que ousou fazer o caminho contrário da luz em direção às trevas, continua no inconsciente do leitor. É impressionante o quadro visual que se forma na imaginação de quem lê ao acompanhar o momento de desesperança e desânimo dos anjos após o sofrimento da queda, seguido da força de seu despertar. É como se houvesse uma esperança ou uma recuperação possível para o grupo: o leitor, então, vê-se quase torcendo pela reconquista desses anjos. “Despertai, levantai-nos, companheiros,/ Ou ficai para sempre aqui submersos!”, suplica o anjo mau. E lembramos da gravura de Debret em que uma massa infinita de anjos perde-se no crepúsculo: eles não estão mais sob o signo da luz ardente do fogo, mas pairando em cima, próximos às núvens (ainda que negras ou cinzas) e brandindo suas lanças. A paisagem anterior de desolação e desespero parece ganhar movimento: essa legião de anjos por entre as nuvens é o espelho manchado e turvo da paisagem celeste.

Ouvem-no e coram: logo sobre as asas
Vai-se erguendo cada um, qual sentinela
Que apanhada a dormir por duro cabo
Logo insta pressurosa em pôr-se alerta.
(MILTON, 1994, p. 37)

Que poder é esse de erguer uma multidão com as palavras? E erguê-la em meio à escuridão e à desorientação? O texto de Milton esconde uma reflexão complexa sobre a visão, que articula mundos internos e externos. Na condição de cego e crente, ele antecipa a perspectiva pós-estruturalista da cegueira proposta por Jacques Derrida em seu livro Mémoires d'Aveugle. Milton coloca o benefício da dúvida quando, no primeiro livro, evoca a expressão paradoxal “escuridão visível”. Num confuso Caos onde a única luz é o “diamante intenso do fogo”, luz que arde, turva e embaça, é possível a um anjo mau ver tão longe quanto é permitido aos anjos: “Prisão de horror que imensa se arredonda/ Ardendo como amplíssima fornalha/ Mas luz nenhuma dessas flamas se ergue;/ Vertem somente escuridão visível” (MILTON, 1994, p. 23). Luiz Fernando Ferreira Sá e Miriam Piedade Mansur defendem em seu ensaio “John Milton e Derrida: sob o signo da cegueira” que esta expressão miltoniana cancela o olho visível e insere um outro, capaz de enxergar na escuridão. Acreditam que “a dialética da filosofia tradicional em relação à visão/cegueira, (...) deve ser colocada sob rasura, com o cancelamento do olho literal e a inserção da visão figurativa no escopo da intepretação.” (SÁ e MANSUR, 2008, p.213). Os autores popõem então desconfiar da visão física e entender ou refletir mais profundamente sobre a “superficialidade das imagens”.

Uma relação ambiciosa e arriscada proposta pelos pesquisadores, mas que talvez tenha uma raiz numa estranha coincidência: Milton e Derrida, de maneiras diferentes, perderam a visão em algum momento da vida. A perda dos olhos carnais, sentir fisicamente a experiência da cegueira fez com que ambos produzissem obras intelectuais a partir disso. Derrida foi durante duas semanas vítima de uma paralisia facial de origem viral. O resultado foi a desfiguração, o nervo facial inflamado, o lado esquerdo do rosto rígido, além do olho esquerdo fixo sem poder se mover. E o impedimento de piscar o olho, “este instante de cegueira que garante à vista sua respiração” (DERRIDA, 1990, p. 38). Foram duas semanas de terror e espanto, mas o inesquecível para o filósofo foi a inacreditável quantidade de equipamentos e exames médicos para acompanhar e inspecionar a enfermidade. Derrida ficou perdido entre o dia e a noite, até que conseguiu curar-se com um sentimento de conversão e, ao mesmo tempo, de ressurreição.

Poucos dias depois, Derrida iria ao Louvre fazer a primeira reunião que iria gerar a exposição Mémoires d' Aveugle a partir das coleções do museu. O desafio da curadoria era confiar a escolha de uma proposta que gerasse uma reflexão sobre alguma virtude demonstrativa da obra e destacasse algo essencial da coleção do museu. Voltando para casa depois desse encontro, imediatamente ele pensou em um título provisório para encabeçar suas notas L’ouvre où ne pas voir:

Ceci ne doit pas se lire, je vous l’ai dit, comme le journal d’une exposition. J’en retiens seulement la chance ou le lieu d’une question pensive: que pourrait être un journal d’ aveugle, l’intime ou l’autre, et le jour, donc, le rythme des jours et des nuits sans jour, les dates et les calendriers qui scandent les mémoires? (DERRIDA, 1990, p. 38)

Essa reflexão inicial coloca o seu estudo sob a tensão do olhar. Não quer refletir sobre poemas, cantos ou relatos de cegos, mas memórias. E, portanto, um tipo de escrita que coloca as ideias no campo da realidade: a cegueira sentida na carne. E, mais, a dimensão de tempo e espaço, que para o cego não podem ser mensurados: não há a visão do relógio, do calendário, das datas.

Partindo de sua própria dificuldade de desenhar, Derrida se pergunta sobre como a invisibilidade pode gerar o desenho. Pergunta simples, mas que traz à tona novamente a expressão de Milton “escuridão visível”. Dentro das trevas é possível enxergar algo? Nossos olhos físicos nos alertam para as falácias do mundo? A insularidade do cego em sua escuridão o isola ou priva das coisas? Derrida não define respostas, mas aponta linhas de força que nos ajudam a refletir sobre essas perguntas. O “cego que existe nele” renunciou há muito ao desenho por sofrer de um traço imperfeito, ao contrário do irmão mais velho, desenhista talentoso: todos os desenhos enquadrados e religiosamente presos nas paredes dos quartos da casa. O olho de Derrida o fazia admirar o irmão, mas também denunciava um desejo fratricida. Ele iria insistir no esboço? Não, o filósofo renunciaria ao desenho em favor da palavra : “j’étais appelé par un autre trait, cette graphie de mots invisibles, cet accord du temps et de la voix qu’on appelle verbe – ou écriture”(DERRIDA, 1990, p. 46). A retomada ao desenho se dá pelo limite do trauma. Num inverno em que está velando sua mãe no hospital, Derrida decide desenhar o perfil dela. O retorno ao traço se dá pela tentação de registrar este momento entre a vida e a morte, em que ela está num silêncio letárgico e não pode reconhecer as pessoas porque, infelizmente, tem os olhos velados pela catarata.

Essa trajetória um pouco filosófica, um pouco pessoal é a que o filósofo vai traçar em Mémoires d’aveugle, definido por ele como “um autorretrato e algumas ruínas”. Françoise Viatte alerta no prefácio que provavelmente cada pessoa ao fim do percurso da exposição encontrará sua própria luz – própria ou no sentido figurado – mas já estará, pelo menos, nos caminhos do desvelamento. Não teria algo em comum com o difícil caminho que Milton propõe ao leitor? Derrida volta à noção de diferença que não aceita a eleição de um centro (de um logocentro) que estabelece a avaliação do eu como única possível. Significante e significado se confundem em Derrida, se descentralizam, caminham em direção à margem e resumem o caráter de “indecidibilidade dos signos”: o que por si só já torna impossível um interpretação “única e monocular”. Mutável, desestabilizado, o signo deve ser lido ao poucos, pela revelação de significados secretos: é esse movimento que leva a leitura para o campo da escuridão. “A interpretação de um signo, de acordo com Derrida, deve seguir um ato que procede da noite e escapa ao campo de visão”. (MANSUR e SÁ, 2008, p. 216). É a necessidade de chegar à escuridão para alcançar a experiência de visibilidade: tornar-se um pouco cego.

É o mesmo que Borges propõe em seus escritos: enxergar de outra maneira a partir de sua própria cegueira. Ou não seria a sua expressão “neblina luminosa”, que aparece no poema On his blindess, uma alusão aberta à “escuridão visível” de Milton? Borges dedicou parte de sua obra oferecendo ao leitor não só experiências particulares recolhidas de sua própria cegueira como da cegueira de outros homens. A neblina borgeana reduz todas as coisas a algo “sem forma e sem cor”, mas faz uma ideia nascer de todas elas. O que Borges propõe está no cerne da expressão paradoxal de Milton.

Usando dois pensamentos do desenho, Derrida estabelece dois tipos de cegueira, correlatas. A cegueira transcendental e a sacrificial. A primeira surge exatamente da invisível condição de possibilidade do desenho: desenhar sem um modelo à frente, sem um objeto real para copiar. Desenhar de memória. A cegueira sacrificial pode ser o tema do desenho: o sacrifício corporal da perda dos olhos representado no acontecimento da imolação, no espetáculo ou na representação dos cegos. Entre os dois, o acontecimento pode dar lugar à palavra do relato do mito, da profecia, do messianismo, do romance familiar ou das cenas da vida cotidiana.

As cegueiras transcendental e sacrifical são, na verdade, duas formas de interpretação que disseminam o significado do aspecto falho do literal e, consequentemente, descentralizam a essência do olhar físico, guiando a interpretação para uma perspectiva de “escuridão visível.” (MANSUR e SÁ, 2008, p. 216).

Derrida explica que todo desenho parte do que não é visto. Mesmo se o desenho é representativo ou figurativo – o modelo posando na frente do artista –, o traço vai ser esboçado “na noite”.

O que Jacques Derrida, John Milton e Borges defendem é essa escuridão primordial que antecede todas as ideias. E como ela se mescla à luz para produzir uma nova leitura. Escuridão e visibilidade como dois conceitos opostos que se complementam e se reforçam simultaneamente. Os autores desejam conduzir o leitor de textos e de mundo para um lugar de leitura em que não apenas os olhos externos sejam estimulados. Querem distanciar o olhar literal para alcançar o figurativo e, através dele, descobrir os riscos da visão carnal. Em momentos diferentes, todos desafiaram o modo de olhar para descentralizar e reavaliar a^visão a partir de um único ponto de vista, um único eu. No desconforto, vivido pessoalmente, descobriram na cegueira uma forma de visibilidade, de sabedoria. Querem compartilhar isso com o leitor, querem que ele usufrua e aprenda com essa experiência.

A experiência das cegueiras derridianas, o movimento do externo em direção ao olhar interior, como um ato de “descer para o caminho da sabedoria”, é representada por um processo de introspecção. Em O paraíso perdido, a mesma tentativa de cegueira ocorre na experiência do eu/olho como um paraíso perdido, interiorizado pela perspectiva da “escuridão visível” em um ato de reconquista do “paraíso interior”.
(MANSUR e SÁ, 2008, p. 220).

É o movimento de uma visão exterior rumo a uma interior que interfere e auxilia num olhar mais consciente do mundo. Para ler o mundo, é preciso ser “cego”.

Merleau-Ponty segue com essa problemática ao colocar o homem como vidente e objeto do olhar. Ou seja, apesar de todas as metáforas ligadas à visão interior, a este olho intelectual, que observa e critica as imagens recebidas, existe o corpo, suporte material da visão, limitação final na qual sempre esbarramos. Ponty nos convida a fazer as pazes entre os sentidos e o intelecto, entre o olhar e a visão. Ele questiona o que aconteceria com a filosofia se tivesse abandonado o espectador intelectual absoluto para apostar no vidente. Depois dessa longa jornada interior realizada pelo olho do espírito, que cada leitor voltasse uma ou duas vezes à experiência do olhar. Voltar ao sensível porque é através dele que se entrelaçam a interioridade e a exterioridade. “Ver, assim como tocar ou mover-se, não é uma decisão do espírito, não nasce do “eu penso”, (...), mas origina-se do corpo que, silenciosamente, diz “eu posso” (CHAUI, 2006, p. 59). A visão se origina no meio das coisas, o homem é o mundo que pensa, mundo que está na essência de sua própria carne. Por isso, seja qual for a leitura de mundo proposta por Milton, Derrida ou Borges, ela será feita a partir da ferida aberta no corpo, da cegueira sentida na carne.

Então, voltamos à indecidibilidade de Derrida, as coisas se oferecem ao olhar de forma inacabada. Os olhos nunca vão conseguir vê-las totalmente de uma só vez, com todas as faces que dispõem. O olho espiritual, interno, imagina que vê as coisas em sua totalidade porque delas se apropria em termos conceituais, no entanto as coisas são mais do que isso, são o que podemos depreender de nossos sentidos: profundidade, cor, volume, rugosidade, sabores, odores e toques. E cada uma dessas qualidades é um ramo do Ser. São elementos visíveis tecidos de invisibilidade. Marilena Chaui aponta a terceira dimensão do espaço em Merleau-Ponty: a invisibilidade, “aquilo sem o que não vemos e sem o que nada seria visível”. O que é apenas sugerido por um quadro de visão. Isso quer dizer que, apesar de acreditar que o saber, o conhecimento, enfim, o intelecto se instala nos horizontes abertos da percepção, para qualquer ponto que o olho se direciona ele capta dos objetos uma parte, a outra é intuída pelo que não podemos ver. “Isso quer dizer, finalmente, que o próprio do visível é ter um forro de invisível em sentido estrito, que ele torna presente com uma certa ausência” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 53).

E se a ausência que se dá na visão for a do próprio olhar? E se a falta for justamente o olho carnal: o sensível exemplar do corpo, vidente e visível? Se os olhos falham em uma determinada época da vida, não significa que perderam sua dimensão do sensível. O sensível está lá, não apenas pela intervenção dos outros sentidos, mas também como a memória do que já foi visto. Ponty acredita que a visão é o meio que é dado para que o homem esteja ausente de si mesmo, enquanto assiste por dentro à fissão do Ser e, por último, volta a fechar-se. Cézanne já alertava que a natureza está no interior, ou seja, as coisas manifestam uma visibilidade material que esconde uma “visibilidade secreta”. Para Ponty, o pintor enquanto produz precisa praticar a teoria mágica da visão. “Nada muda se ele não pinta a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível”, explica o filósofo acerca do pintor. O que significa que é possível fazer uma releitura do mundo depois de tê-lo visto “ao menos uma vez”, é possível pintar, desenhar, ler ou escrever apesar da cegueira.
 

3.

Fragmentos de um mundo visível

Em seu belo relato Sobre a leitura, Marcel Proust nos faz reviver através de suas memórias os momentos que passamos junto aos nossos livros queridos. O mergulho nesse mundo espetacular, que nos afastava de todo o mundo visível, era um sentimento de imersão para o qual qualquer coisa que nos trazia de volta à realidade parecia um espetáculo vulgar ao “prazer divino” da leitura. Um amigo que vinha convidar para alguma brincadeira, os raios de sol que nos incomodavam primeiro esquentando a cabeça, depois refletindo agressivamente nas páginas, o jantar que nos aguardava e que, apenas pensávamos em terminar para completar o capítulo ainda não lido. No início de Sobre a leitura, Proust abre um livro que tenta ler insistentemente. Sai correndo do passeio matinal pelo parque e se esgueira pela cozinha para aproveitar todo o tempo anterior ao almoço. Como companheiros, os pratos, a folhinha de calendário, o fogo e o relógio: silenciosos e coniventes com o ato da leitura, não incomodam o jovem leitor. Até que outras vozes aparecem, interrompem, e vem a frase derradeira: “Feche seu livro, está na hora do almoço.” E que tortura precisar retardar a tão sonhada volta ao livro. Depois de uma refeição que parecia mais longa do que o comum, lá ia o jovem Proust “retirar-se em seu quarto”, um santuário em que todos os objetos de decoração pareciam facilitar o ato de leitura: as cortinas altas e brancas, a poltrona, a toalha de mesa que ficava sobre a cômoda, as flores, uma imagem de Cristo, o cenário ideal.

Se fosse possível ler apenas aí. Mas o mundo levava Proust para outros lugares. À tarde ele precisava sair novamente e andar até o parque. Antes que os outros terminassem o chá, o rapaz já tinha escapado para sentar-se próximo à vegetação mais distante do parque, onde não havia qualquer risco de ser descoberto e onde o silêncio era profundo. A sensação de segurança era abalada vez ou outra pelos gritos ao longe, o toque do sino da igreja (que o advertia das horas que passavam) ou as vozes que chamavam o seu nome, se aproximavam e, depois, se afastavam por não o encontrar. Este livro que tirava suas noites de sono, Proust só denomina perto da página quarenta de seu relato: chama-se El capitán fracasa, de Théophile Gautier. E o nome só é revelado tão adiante porque não importa. O que sobrou da memória dessa leitura para Proust foi a descoberta de algumas frases, que para ele eram as mais originais e belas da obra, e a lembrança fortíssima de todos os lugares, momentos e pessoas aos quais ele precisou renunciar para levar adiante sua leitura. Como Proust, voltamos a estes livros de antanho porque desejamos ver refletidos neles casas, lugares e pessoas que não existem mais. O que essas leituras deixam em nós “es sobre todo la imagen de los lugares y de los días que las hemos realizado” (PROUST, 2006, p. 29).

O amor pelos livros não está apenas numa vista cansada pelo excesso de leitura. Está em todos os lugares e pessoas reais a que o leitor renunciou para estar naquele momento único com seu próprio livro. Todo leitor cria hábitos, pequenos rituais de leitura, que se repetem e precisam ser seguidos a cada vez que abre um livro. Fazer um chá, limpar os óculos, regular a luz do abajur e afundar-se confortavelmente numa poltrona com as pernas estendidas, esperar que o silêncio venha e, só então, abrir o livro e iniciar a leitura. Uma das qualidades mais importantes adquiridas pelo leitor nos últimos tempos é a noção de privacidade. Tomar o livro como se fosse nosso melhor amigo, o confidente para o qual contamos nossos mais profundos segredos. O homem vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sabe só, afirma Daniel Pennac. No ato da leitura estamos apenas os dois: nós e o livro. E tudo que está à volta não chega a desaparecer, mas começa lentamente a ser incorporado no ato de leitura.

Um amigo fiel, o livro não pede exclusividade. Enquanto estamos lendo, podemos parar, retomar, saltar trechos ou virar as costas sem que ele nunca se ofenda. Livros são quase nossos reféns: submetemo-los a tudo. Nas mais públicas declarações de amor somos capazes de marcá-los, escrever neles, molhá-los, deixar que auréolas marrons sejam feitas pelo café que cai de nossas xícaras.

Alberto Manguel foi filho de diplomata e lembra-se da dificuldade de privacidade que tinha: cada ano, uma casa nova, um novo país, uma nova língua a aprender, um novo espaço físico a explorar. Viveu uma infância e adolescência nômadas em que a única companhia e sensação de lar eram seus livros: “a combinação de cama e livro concedia-me uma espécie de lar ao qual eu sabia que podia voltar noite após noite, sob qualquer céu.” (MANGUEL, 1997, p.177).

Manguel era ainda adolescente quando empreendeu uma aventura particular na Biblioteca de seu pai em Buenos Aires (o senhor Manguel comprava livros a metro e pedia para que fossem cortados e encadernados para ficarem da mesma altura nas estantes). Pegou a enorme enciclopédia espanhola Espasa-Calpe e começou por conta própria sua iniciação sexual buscando verbetes relacionados com sexo. Na sua pequena viagem literária buscou o significado de palavras como “masturbação”, “prostituição”, “pênis” e “vagina”; quando estava atento aos efeitos da gonorreia, seu pai entrou na biblioteca e sentou-se na escrivaninha. Manguel ficou à espera de uma repreensão pela leitura proibida, mas se deliciou com a descoberta de que o pai nunca poderia enxergar através da capa do livro. Portanto, mesmo estando a alguns passos, ninguém, a menos que ele quisesse, poderia saber o que estava lendo. O mundo dos livros, com tudo o que estava proibido ou vetado, pertencia a ele.

O sabor e o prazer derivado de um livro sem dúvida dependem completamente do tempo e do espaço em que o leitor o explora. Cada ambiente propõe um tipo de concentração diferente ao leitor. E é claro que para quem ama os livros não é difícil ficar imerso numa história estando num transporte público – trem, ônibus, metrô – ou sentado confortavelmente na poltrona de casa. Os livros que lemos numa biblioteca pública nunca vão ter o mesmo sabor dos que foram lidos no quarto, no sótão ou na cozinha. Volumes explorados no isolamento, numa leitura particular são diferentes dos lidos coletivamente, numa reunião de família ou num grupo de estudos. Cada uma dessas leituras terá um cheiro e gosto particulares. Todas as horas dedicadas a elas são horas “roubadas”. O tempo para ler é o mesmo que temos para amar: um tempo “roubado à obrigação de viver”.

Alguns leitores históricos mostram suas maneiras particulares de desenvolver o hábito. Filha de um rígido pai militar e de uma mãe que não acreditava na ficção, Colette aprendeu desde cedo a separar os livros que lia da vida em comum com os pais e encontrou um refúgio no próprio quarto, na cama. Esse seu hábito de leitura se repetiria até o fim da vida. Independentemente dos lugares onde tenha morado, sempre buscava um espaço de isolamento onde leria sem ser perturbada. Henry Miller acreditava que todas as suas boas leituras tinham sido feitas no banheiro. Esse era o lugar ao qual Proust recorria também para a leitura, uma de suas atividades de “solidão inviolável”. Marguerite Duras lia muito pouco em lugares abertos como praias e jardins. Não queria que a luz do dia ofuscasse a luz do livro.

Fora isso, até que recobremos a vontade de compartilhar nossas leituras, esse prazer é inteiramente egoísta. Descobrimos um livro, e um novo mundo se apresenta para nós. Um mundo diferente ao que vemos e vivemos e onde podemos nos abrigar. Walter Benjamin dizia que não lia livros, habitava neles, morava entre suas linhas e, mesmo que os fechasse por tempo indeterminado, quando voltava se surpreendia que ainda existissem no ponto em que tinha parado. Depois de terminado o livro, a longa travessia, o leitor tem todo o direito de calar-se, porque aquela leitura “não lhe oferece qualquer explicação definitiva sobre seu destino, mas tece uma trama cerrada de conivências entre a vida e ele.”(PENNAC, 1993, p. 167).

As sensações de liberdade e privacidade serão as primeiras das quais o leitor cego se verá roubado. Elas foram ganhos importantes na longa história da leitura que este leitor terá que abrir mão, a menos que aprenda o braille. Depois, vem a terrível sensação de perder o ambiente de leitura. Sensação que, pouco a pouco, vai se desfazendo na medida em que o leitor se dá conta de que seu ambiente não é apenas visual, mas formado com a ajuda dos outros sentidos. Este leitor vai precisar fazer novas adaptações ao ato de leitura e às posturas de leitura. No entanto, uma coisa é certa: a memória afetiva dos livros que um dia leu, essa não se perde com a visão.

Tocamos os livros e nos vêm lembranças, relê-los ou simplesmente folheá-los nos leva de volta aos lugares, nos faz revisitar histórias, momentos, partes de nossa biografia que pareciam esquecidas, amarelecidas nas folhas.

Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui – rabiscos, passagens de ônibus, pedaços de papel com nomes e números misteriosos, às vezes uma data e um local na guarda do livro, levando-me de volta a um certo café, a um quarto de hotel distante, a um verão longínquo. (MANGUEL, 1997, pp. 269-270)

O leitor precisa do conforto de retomar essas experiências. É essa memória que faz ele passear pelos livros. Reconhecer-se ao reconhecê-los. E essa memória é mutável para cada leitor, mesmo que o livro lido seja o mesmo. O enorme aposento de estantes envidraçadas que embalou as leituras infantis de Borges, o peso e a textura dos livros de Charles Schweitzer que com seu cheiro de mofo povoaram a imaginação do pequeno Sartre, a expressão do pai de José Mindlin ao ver que o filho “lia” o livro de cabeça para baixo. A cegueira pode apagar a visão concreta dessas páginas, mas nunca a memória que provém delas. Walt Whitman acreditava na extrema importância do ambiente para o hábito da leitura, saía das bibliotecas e ia para as paisagens remotas do campo ou das praias de Long Island onde lia o Novo e o Velho Testamento de ponta a ponta. Sentia que era capaz de absorver melhor um livro numa leitura ao ar livre do que dentro de uma biblioteca. A maior parte da obra de Dante, Whitman enfrentou sentado em um bosque. E a pergunta que ele sempre se fazia era porque nunca havia sido “soterrado” pelas obras desses grandes mestres. “Provavelmente porque os li na presença plena da Natureza, sob o sol, com paisagens e panoramas a perder de vista ou o mar quebrando na praia.” (MANGUEL, 1997, p. 194).

Esses lugares servem de cenário, alentam a leitura e ativam a memória cada vez que pegamos um livro. Mindlin recorda-se de sua própria voz recitando Júlio Verne para a mãe que bordava e tinha uma “paciência evangélica” para ouvi-lo e encorajá-lo. O ambiente todo está lá: a sala, o peso do livro, sua mãe bordando com o tecido sobre os joelhos. Cesário Rodrigues voltou no tempo quando foi à Feira de São Cristóvão e, mesmo na confusão de vozes a sua volta, pôde se relembrar dos cordéis de sua infância: “Você volta no tempo, começa a se lembrar de toda a vida, quando lia aquilo ali, quando via nas feiras ou quando ouvia nas casas onde eles iam cantar nas localidades mais próximas, você lembra tudo. É um passeio no tempo.” (DA SILVA, 2010, p. 3 – Anexo 5). São palavras que atiçam uma ou outra cor e começam a pintar na memória uma paisagem agora não vista.
 

4.

As saídas

Em fins de 1955, Jorge Luis Borges foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. O reconhecimento de seu trabalho e de sua personalidade como escritor veio junto com a queda do governo peronista. Mas esse desejo tão antigo de estar à frente da suntuosa biblioteca vinha junto com uma terrível confirmação de um destino pessoal: a cegueira do escritor. Nesse momento, Borges mais uma vez se voltou para a literatura, sua principal saída, e escreveu o Poema de los dones:

Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche
                      (BORGES, 2006, p. 63)

O cargo estava envolto numa grande mitologia, os dois diretores anteriores a Borges, Paul Groussac e José Marmol, ficaram cegos. Quando Borges invoca no poema o nome de Deus, não é pelos mesmos motivos de Milton. Borges via no poeta alguém que aceitara a cegueira de forma muito mais “valente” que ele. O nome de Deus aparece porque de forma irônica, a única forma como Borges via a figura divina, dá ao escritor dons que se contradizem: uma quantidade de livros e a incapacidade de lê-los.

Embora aceite a cegueira como um destino, Borges pretende fazer dela um grande instrumento. “Esas cosas nos fueran dadas para que las transmutemos, para que hagamos de la miserable circunstancia de nuestra vida, cosas eternas o que aspiren a serlo./ Si el ciego piensa así, está salvado. La ceguera es un don.”, ele dizia em sua conferência dada sobre a cegueira no teatro Coliseo de Buenos Aires. Seja como for, a saída de Borges para a cegueira anunciada foi plasmá-la na escrita: era isso ou teria morrido. Ele tratou de trabalhar o tema da cegueira em suas histórias e seus poemas. O seu “olho interior” foi desenvolvido, mas de uma maneira diferente da miltoniana: não é para livrar-se das distrações terrestres, mas para compensar a cegueira externa com um conhecimento intelectual fortíssimo adquirido nos livros.

Milton se guia em sua confiança no arbítrio de Deus. Borges gostaria muito de aceitar a postura de Milton, mas seu ceticismo o impede. Para ele a visão é uma das vias mais importantes do conhecimento, não pode resignar-se a perdê-la. Além dos vários escritos sobre a visão e a cegueira, Borges busca no destino e nos exemplos de outros escritores uma maneira também de definir-se como sujeito. Entretanto existem duas outras saídas que estão de alguma maneira relacionadas uma a outra e que têm uma relação direta com o seu olhar como leitor, e não como autor. Munido da informação de que um dia ficaria cego, Borges confiou em duas “portas de emergência”: a memória e a biblioteca mental. Uma foi formada com a ajuda da outra. A memória foi desenvolvida e alimentada e ajudou a reunir, pouco a pouco, os volumes formadores de sua biblioteca mental. Falamos dessas duas saídas porque são as primeiras usadas por leitores ávidos que ficaram cegos.


4.1 

Memória

Talvez por isso a memória seja um assunto tão frequente da literatura que borgeana. Era a sua maneira de ser leitor, de pensar a leitura. Irma Zangara, uma de suas alunas no grupo de literatura anglo-saxônica, acreditava que ele educou a própria memória desde muito jovem para aguentar as condições adversas da cegueira. Maria Kodama na conferência denominada Borges e yo (conferência ditada alguma vezes, a última feita em setembro de 2010 numa cerimônia de homenagem ao mestre em Rosário) conta que, ao saber que iria ficar cego, Borges desenvolveu poderosamente sua memória. Ela se lembra de avidez com que ele, já cego, descrevia cada um dos detalhes de suas gravuras preferidas e de como repetia os poemas de que mais gostava “que ficavam ali nos vastos cavalos da memória para que pudesse pegá-los quando necessitasse”. O pai de Borges, um dos antecessores genéticos da cegueira, ensinara ao filho desde pequeno a recuperar o passado formulando, várias vezes, perguntas filosóficas tais como qual o sabor, aroma e cor de uma maçã.

O facto é que Borges era um leitor que confiava em sua própria memória e que também fazia dela, de seus enganos e de seus ganhos para a leitura, um assunto para sua literatura. A memória de Shakespeare mostra que mesmo no final da vida (o texto foi escrito em 1980) o assunto ainda era um desafio e um mistério para o leitor Borges. Nesse conto, o protagonista, Hermann Soergel, um estudioso de Shakespeare, aceita carregar a memória do bardo sem se dar conta de que ter acesso às lembranças do outro não lhe dará necessariamente o dom da narrativa.

Hermann no momento em que recebe a memória já está com um princípio de cegueira, imagina que terá, mais do que tudo, uma explosão de memórias visuais que o fará voltar ao momento em que foi vidente. Grande engano: as primeiras revelações mnemônicas de Shakespeare são metáforas auditivas, não visuais – primeiro fala algumas palavras, depois assobia uma melodia. Pouco a pouco, inicia-se uma transformação gradual dos seus sonhos: rostos e lugares que não conhecia entravam em suas noites. Soergel, como bom leitor, persegue textos, inspirações, passa a reler todos os livros que sabia que fizeram parte da biblioteca de Shakespeare. Termina preso em zonas obscuras da memória de um homem que, na realidade, era trivial como todas as outras. Essa era uma das questões de Borges: temia ficar preso nas zonas de sombra produzidas por sua memória. Diria isso em seu poema El grabado:

A veces me da miedo la memoria.
En sus cóncavas grutas y palacios -
(dijo San Agustín) hay tantas cosas.
El infierno y el cielo está en ella.
(BORGES in História de la noche, 2007, p. 217)

Soergel termina por querer livrar-se daquela segunda memória, acoplada à sua, que não lhe dá sequer a possibilidade de escrever a biografia de Shakespeare: ter a memória do escritor não lhe garante o dom da prosa. Claro, Borges acredita que a memória é um dos instrumentos mais poderosos para um leitor enfrentar a cegueira. No entanto, uma memória bem praticada, com algum filtro.

O mesmo acontece com o famoso personagem de Funes, o memorioso: tinha uma memória prodigiosa tão difícil de suportar que fazia com que ele negasse o presente. “Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”, dizia. Ao contrário de Soergel, suas lembranças eram vívidas e visuais: lembrava-se com riqueza de detalhes de todos os cachos e frutos de uma parreira, ou das formas das nuvens austrais do amanhecer de um determinado ano, podendo compará-las às pequenas rachaduras de um livro em couro que tinha visto apenas uma vez ou aos sulcos feitos pelo remo nas águas de um rio. Não tinha tempo para viver, lembrar se tornara sua atividade principal. Como diz o narrador do conto: “Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos” (BORGES, 2001, p. 128).

Fazer o trabalho memorial de leitor não cabia a Funes. O personagem guardava uma série de informações sem, no entanto, articulá-las intelectualmente. Outra coisa era a memória de Borges, prodigiosa também, mas de leitor cuidadoso, atento. Enquanto lia algo novo, relia coisas antigas, articulava textos internamente e não deixava de deliciar quem quer que o estivesse ouvindo com sua vasta capacidade de armazenamento.

Debido a su colosal memória toda lectura era, en su caso, relectura. Sus labios se movían dibujando las palabras leídas, repetiendo frases que había aprendido hacía décadas. Se acordaba de las letras de los primeros tangos, recordaba versos atroces de poetas largamente muertos, fragmentos de diálogos y descripciones tomadas de novelas y cuentos, así como adivinanzas, juegos de palabras o acertijos, largos poemas en inglés, alemán y español (...), versos de las sagas nórdicas, injuriosas anécdotas sobre personas conocidas o pasajes de Virgilio (MANGUEL, 2003, p. 42)

As palavras de Manguel, um dos ledores mais frequentes de Borges, provam que o autor tinha uma memória implacável. Borges dizia que invejava a memória inventiva de autores como De Quincey, capazes de transformar os poucos versos de uma tradição em um poema de setenta páginas. Mas nunca saberemos se era um comentário genuíno ou mais uma de suas ironias.

O facto é que coincidência ou não o relato sobre a memória de Shakespeare contém uma detalhe quase histórico: aquele que detém a memória precisa oferecê-la ao novo “proprietário” em voz alta. Na verdade, o ritual misterioso que o conto desvenda é uma alusão à importância da memória para se guardar um texto, seja ele visual, oral, de imagens ou de sons. Na cultura islâmica a maior parte da literatura árabe antiga foi confiada por muito tempo à memória de seus leitores, embora vários textos, incluindo o Corão tenham sido redigidos. O aprendizado era, então, feito através da leitura em voz alta: era mais importante para eles que os textos entrassem no corpo através da mente e não dos olhos. “Dada a crença islâmica de que apenas a transmissão oral era verdadeiramente legítima, a memória era tida como o grande repositório de uma biblioteca”. (MANGUEL, 2006, p. 164).

Desde sempre há leitores que puderam adquirir seus livros e outros que, por motivos materiais, políticos ou sociais não tiveram condições de tê-los. A memória cumpriu um papel fundamental na posse dos textos: uma vez memorizados, eles pertenciam para sempre àquele leitor. Rachel Korn, poetisa iídiche, ficou exilada de sua terra natal, a Galícia Oriental, durante muito tempo da vida, período em que viveu no Canadá. Aflita pelos livros que havia deixado para trás, Rachel se deu conta de que jamais poderia perder sua biblioteca se a recordasse e lesse em espírito. Mesmo depois de chegar a Montreal, a poetisa passou a treinar a memória da filha: pedia que ela decorasse os poemas de Púchkin, Akhmatova e Mandelstam como se fossem preces noturnas. Conhecia de cor muitos deles e, às vezes, corrigia um ou outro trecho que a filha declamava desatenta.

No Cairo do século XV, por exemplo, poucos eruditos tinham aposentos pessoais unicamente para o trabalho, a maioria dos leitores precisava usar as bibliotecas de escolas públicas e mesquitas. Naquela época, o leitor ao consultar um livro, para conseguir levá-lo para casa, tinha que copiar trechos ou simplesmente gravá-los na memória. Alberto Manguel em seu grande estudo sobre as bibliotecas, A biblioteca à noite, conta que no século XII o estudioso Ibn Jama’a recomendava que seus alunos comprassem os livros que pudessem, mas afirmava que o mais importante é que levassem no coração os textos de que gostavam. “Levar no coração” é guardar em nossa memória de leitores, mesmo imperfeita, os livros que escolhemos por motivos amorosos, ou seja, independe da necessidade ou da urgência de formar um acervo.

Pelo tipo de criação ou simplesmente pelo amor que sempre teve pela leitura, José Mindlin acabou memorizando uma série de poemas. Considerava os poetas como companheiros de suas horas de leitura. Com eles, mesmo cego, podia ainda passear pelas paisagens do Brasil que inspiravam Manoel de Barros ou as experiências do cotidiano feminino que permeiam a escrita de Adélia Prado. Na sua antologia de poesias própria, feita internamente por sua memória, estão trechos de versos ou poemas desses poetas brasileiros misturados a outros como As flores do Mal, de Charles Baudelaire, os sonetos de Ronsard, os de Camões, de Rimbaud, de Paul Verlaine e de Paul Éluard. Nesse estranho livro está também quase todo O navio negreiro, de Castro Alves, que Mindlin memorizou jovem, mas soube de cor até o fim da vida. Esta antologia complexa, fragmentária e pouco usual é fruto de suas próprias preferências como leitor que terminaram gravadas em sua memória. É o que Mindlin, de uma forma ou de outra, escolheu levar no coração. Para Ibn Jama’a, “a arte da memória tinha afinidade com a da arquitetura, uma vez que, ao praticá-la, o leitor podia construir para si um palácio pessoal repleto de tesouros, declarando sua posse dos textos que elegera profunda e definitivamente” (MANGUEL, 2006, p. 159). Esse pensamento é interessante porque não restringe o ato de leitura à posse, não o faz depender da materialidade do livro.

É claro que essa memória de leitor não permanece imutável. Fabricamos novas antologias, novos romances, alguns poemas que são fruto da mistura de vários, encurtamos livros imensos, abreviamos outros a apenas uma simples paisagem de acordo com o nosso percurso como leitores. Um autor nunca mais é o mesmo depois de lermos outro e encontrarmos em nossa vasta biblioteca memorial pontos de aproximação entre os dois. Pontos que, talvez, só existam para nós. Cada leitor trança os fios mnemônicos de seus livros de maneira diferente. E cada leitor nunca é o mesmo depois de uma nova leitura. Alberto Manguel se dá conta de que em sua memória A tempestade, de Shakespeare, reduz-se a um par de versos considerados por ele imortais ao passo que um romance breve como o Pedro Páramo, de João Rulfo, é responsável por toda a ideia de paisagem mexicana que ele tem como leitor. Assim como para mim Crime e Castigo preenche toda a paisagem do Aterro do Flamengo, nas horas passadas no engarrafamento da faculdade até a casa, e A morte e a morte de Quincas Berro D’água é todo aconchego da varanda do meu sítio em Miguel Pereira, com cheiro de pão e risadas ao fundo.

De alguns livros lembramos como se fossem uma paisagem pintada em tons coloridos, outros viraram uma única imagem estática, como uma fotografia em sépia, de outros, ainda, recordamos apenas o título, embora isso não faça deles livros menos importantes. Alguns cegos dariam tudo para revisitar esses lugares – reais e imaginários, dentro e fora dos livros – nos quais estiveram quando ainda podiam ver. Outros redescobrem esses lugares através da voz do ledor. No escuro, os leitores cegos não se perdem, têm uma luz própria representada pela memória dos livros que leram. A literatura não cansou de falar sobre o poder dessa memória, sobre o resquício que ela é não só do que lemos, mas daquilo que somos. No livro Fahrenheit 451, o bombeiro Montag vive em uma cidade deserta de pessoas e pensamentos, onde o fogo é responsável pela “limpeza das ideias”. Sua função é simples: receber uma denúncia, encontrar a casa onde os estão os livros, queimá-los. Fahrenheit 451 é a temperatura ideal para se queimar um livro.

O que Guy Montag não sabia, ou pelo menos não desconfiava, é que não era feliz. Teve todas as suas memórias apagadas pelo fogo, este “diamante e intenso”, nas palavras de Milton. Uma luz destruidora que apenas é questionada quando em contraste com a luz do rosto da menina Clarisse: “aconchegante e rara e levemente agradável de uma vela”, uma luz perfeita para a leitura. Clarisse, a personagem equivalente à deusa Mnémosine, é ela que ajuda a despertar o desejo das leituras e as sensações adormecidas no bombeiro. “Você é feliz?”, pergunta a moça para depois se perder na sombra e deixar Guy com a absurda questão. Montag vive num mundo em que a as luzes são a da histérica eletricidade e do terrível fogo. Sua função está deslocada: os bombeiros não atuam mais como aplacadores de fogo, mas provocam incêndios, destroem memórias.

O filtro da água acabou não apenas porque as casas ficaram à prova de fogo, como as pessoas ficaram à prova de suas próprias memórias. A água que reflete o olhar e os pensamentos do homem. Sem esse espelho natural, Montag encontrará no rosto de Clarisse um enorme espelho, um poço de água. Mas a função da água, aquela que saía dos canos das mangueiras dos bombeiros e foi substituída por fogo, é de suma importância no livro. Lembremos que Lete é a órfã da memória, filha de uma união terrível entre a Noite e a Discórdia. Lete, já aponta Virgílio em seu Eneida, é o rio que banha as almas que vão em direção a Hades e permite que elas esqueçam o que foram no passado para nascer novamente. Entretanto, esse esquecimento levará consigo não apenas os pesares, como também as alegrias. Montag esqueceu sua “existência anterior” e precisa passar uma vez mais pelo filtro da água para recuperá-la.

Não sabemos exatamente em que momento do livro isso acontece, mas Montag por curiosidade ou por audácia começa a roubar livros dos incêndios de que participa. Onde poderia ter começado? O leitor atento repara que, em uma cena, Clarisse convida o bombeiro não só a andar na chuva como a experimentá-la. Depois de uma longa conversa na qual Clarisse pergunta se ele nunca foi tentado a ler algum livro, Montag sente seu corpo dividir-se em duas metades:  “uma quente, a outra fria, esta macia, aquela dura, uma trêmula, a outra firme, uma oprimindo a outra.” (BRADBURY, 2009, p. 42). Depois dessa mistura de sensações antagônicas, decide finalmente caminhar na chuva, inclinar a cabeça para trás e provar a água. O rosto queimado como uma ponta de rolha recebia seu jorro de água natural, da chuva, fogo e água se juntavam dentro de seu corpo. Em casa, o “mal” já estava feito: dentro do tubo de ventilação do ar-condicionado um grupo de livros roubado nos incêndios crescia, como um animal morto que um dia aparece.

E até que Guy Montag se revele um traidor, até que de facto possam provar que escondia livros, alguns dias se passam, muitos pensamentos o consomem, e sua temperatura corporal aumenta: o fogo interno lança um alerta. Com febre, ele se permite faltar ao trabalho e estaria indeciso sobre voltar. Mas a água já havia entrado no seu corpo. Ele não volta ao quartel de bombeiros e decide colocar sua esposa, Mildred, como cúmplice do roubo dos livros. Passa as últimas 48 horas que tem para decidir voltar ao trabalho lendo. Não está feliz, aí está a resposta que devia a Clarisse. Na verdade, não consegue lembrar-se do momento em que foi feliz, sequer se recorda de quando conheceu sua mulher. Lê com as telas de entretenimento da sala desligadas, uma luz cinza fraca e a chuva lá fora. Decide fugir. A esposa ficará para trás, irá delatá-lo para depois esquecê-lo. Montag seguirá, então, sua trajetória rumo a um novo Lete: um rio que fará com que ele recobre a importância da memória.

Saído da confusão e do caos desta cidade envolta em chamas e cinzas de livros, ele passa pela água uma segunda vez. Agora ele precisa desvencilhar-se da perseguição dos bombeiros e do “sabujo”.  Mas nem a “tempestade de luz” que os helicópteros lançam sobre o rio é capaz de localizar o bombeiro. Uma vez dentro dele, uma súbita escuridão e calmaria recaem sobre o protagonista: é a cegueira anterior à descoberta. Flutuando no rio, as luzes da cidade, das calçadas, dos fogos de artifício espetaculares estão distantes, passam a pertencer a um mundo que ficou para trás. É como se, pela primeira vez, um viajante de Hades saísse do fogo eterno para, no caminho contrário, reencontrar a própria memória: deparar-se com uma “procissão de estrelas”. Purificado, desarmado, desfeito da pele queimada que carregava as marcas de centenas de bibliotecas destruídas, esse homem tem um único pensamento: é preciso voltar ao ato de salvar e guardar lembranças, seja nos livros, nos discos ou na cabeça das pessoas.


4.2

As bibliotecas

Voltemos à história de Pirandello Mondo di carta e a seu personagem, o professor Balicci. Perdido em seu mundo de carta, sem os olhos para poder orientar-se nesta Babel que sempre conheceu, esse homem toma uma primeira resolução: decide organizar sua biblioteca. Balicci passara quase toda a vida lendo e comprando livros. Conhecia geograficamente, apesar da bagunça, cada recanto de sua casa, tinha livros amontoados no sofá, nas estantes, nos degraus da escada, nas mesas e no chão. De uma hora para outra, com o aviso incontestável do médico de que não podia mais ler, se sente perdido. Por que seus livros não estavam ordenados por assunto ou por que eles negavam às mãos a organização perfeita que ele tinha na cabeça?

Fece mettere un avviso nei giornali, per avere qualcuno pratico di biblioteche, che si incaricasse di quel lavoro d'ordinamento. In capo a due giorni gli si presentò un giovinotto saccente, il quale rimase molto meravigliato nel trovarsi davanti un cieco che voleva riordinata la libreria e che pretendeva per giunta di guidarlo. (PIRANDELLO, 2007, p. 508)

Balicci não está errado: a biblioteca de um homem é sua biografia. Cada livro está ali por um motivo especial que só diz respeito a ele. Quando o assunto é organizar sua própria biblioteca, mesmo sendo cego, o melhor guia é ele. A biblioteca é o reflexo de seu dono que não se dá apenas pela escolha dos títulos, mas pelas associações internas que eles guardam e que fazem com que se avizinhem nas estantes. Na minha estante Dostoiévski e Borges estão lado a lado simplesmente porque são uns de meus autores prediletos e precisam estar sempre à altura das mãos. São como se fossem minhas obras de referência, gosto de consultá-los como a oráculos para me inspirar ou simplesmente dar um “respiro literário” entre uma leitura e outra que esteja fazendo.

Uma crença antiga cristã coloca os homens carregando livros na cena do Juízo Final. De facto, é verdade, podemos ser julgados pelos livros que lemos. São eles que testemunharão a nosso favor ou não, porque contam muito do que somos e fomos. A biblioteca de Alberto Manguel, como a maioria das bibliotecas pessoais, não possui um catálogo. A ordem dos livros nas estantes é feita por sequências e padrões inteiramente pessoais. Para ele, basta imaginar o espaço de sua biblioteca para que possa lembrar-se da disposição de livros. “A ordem das estantes, planejada e ao mesmo tempo aleatória, a seleção de temas, a história íntima da sobrevivência de cada livro, os vestígios entre as páginas de certas épocas e certos lugares, tudo isso aponta para um leitor singular” (MANGUEL, 2006, p. 162). As bibliotecas são fruto dessa organização particular do leitor, mas também de seus hábitos de leitura. Muitos leitores preferem colocar os seus livros num espaço pequeno, gostam de sentir-se próximos deles enquanto leem. Outros preferem um espaço circular, e há ainda aqueles que gostam de ter uma enorme janela ou porta que dê para a paisagem externa, respiro dos olhos interiores e exteriores entre uma leitura e outra.

Em geral, os leitores gostam de sentir o aconchego do espaço, pensar que os livros estão à altura de suas mãos. Uma das coisas mais gostosas dentro de uma biblioteca é a surpresa: buscamos um livro e encontramos outro. E não é que às vezes é justamente o segundo que nos serve? O arquiteto Henri Labrouste, responsável pelo projeto da biblioteca nacional francesa, era um grande bibliófilo e acreditava que o segredo do aconchego de uma biblioteca nacional era traduzir a vastidão em intimidade. O seu projeto para abrigar os livros saídos da coleção particular de Luís XI previa uma série de detalhes que transformaria o ambiente no local ideal para leitura. Os domos de vidro deixavam a luz natural entrar diretamente na biblioteca, e as colunas de metal que suportavam os arcos dos domos davam um ar de jardim de inverno ao conjunto arquitetônico. Para completar, Labrouste pretendia dar proporções humanas ao vasto espaço, mesmo nas áreas não destinadas à leitura, as estantes teriam que ter a largura da envergadura e a altura do alcance da mão de uma pessoa de porte médio. Ou seja, a ideia era fazer o leitor sentir-se confortável, andar livremente pela biblioteca e poder consultar por conta própria os livros que quisesse, enfim, ter total liberdade.

O facto é que cada biblioteca está diretamente associada à história, gosto e hábitos de seu idealizador. Os pontos de associação dentro de uma biblioteca refletem a configuração da mente de quem a constrói. Visitar a biblioteca alheia é perder-se na mente do outro. Pensamos que podemos, a partir dos livros, entender o leitor que a gerou, mas por trás das folhas, entre as páginas, existe um segredo que pertence apenas a quem concebeu aquele espaço. Eu me lembro do dia em que visitei a biblioteca de José Mindlin. Embora seja um lugar permitido para visitantes, ela parece guardar as características de seu dono: é grande para uma biblioteca “particular”, mas ao mesmo tempo aconchegante, iluminada, localizada no meio de um jardim. Entrei, olhei as prateleiras, identifiquei os autores, mas me senti um pouco perdida. E a pergunta que me vinha à cabeça era como um cego podia se orientar naquele espaço? Cristina Antunes, ledora de Mindlin durante tantos anos explica:

Como ele (Dr. José) que a biblioteca é disciplinada porque reflete o gosto de leitura dele. O que é verdade, mas também não é verdade. Porque tem uma interdisciplinaridade na biblioteca, tem um cuidado com a formação da Brasiliana e das várias coleções. (ANTUNES, 2010, p. 3 – Anexo 3)

 

Para depois complementar que Mindlin conhece de cor a biblioteca. A exceção das aquisições novas, “os livros todos que ele foi adquirindo ao longo da vida, ele sabe: que edição é, que ano é, de que tipografia é, quem imprimiu.” (ANTUNES, 2010, p. 3 – Anexo 3).

O desconforto que senti nessa minha visita foi o mesmo que o filósofo Ernest Cassirer teve quando visitou a biblioteca de Aby Warburg. Warburg tinha uma paixão vital pelos livros e passou a colecioná-los, assim como José Mindlin.

Como não tinha meios para comprá-los, fez uma estranha troca: abriu mão de seus direitos de primogênito em relação à empresa familiar para o seu irmão mais novo, Max. Em troca, Max deveria fornecer os recursos para ajudar a formar sua biblioteca. Começava aí uma reunião de livros que se tornou tão grande que em 1909 precisou ser transferida para outra casa. O método de Warburg era de um sistema de catalogação inteiramente idiossincrático: queria que sua coleção de livros tivesse fluidez e vivacidade e não que ficasse restrita a cronologias ou histórias literárias. Essa característica aliada ao tipo de memória do escritor, que era completamente iconográfica, estabelecia, a partir de imagens, complexas conexões, terminaram por desorientar Cassirer.

Pouco a pouco, através Fritz Saxl, diretor-assistente da coleção, Cassirer foi convidado a entrar na ordenação de universo particular de Warburg. Nela, os compêndios de arte dividiam estantes com obras de literatura e religião, os livros de filosofia ficavam junto aos de astrologia, magia e folclore. Warburg acreditava numa espécie de lei da “boa vizinhança”, ou seja, o livro procurado nem sempre continha o que seu leitor buscava, mas sim o seu vizinho desconhecido. Ao fim da visita, Cassirer estava convencido de que nunca mais voltaria àquela biblioteca sob pena de perder-se para sempre no labirinto do outro. “Não foram os campos temáticos da biblioteca que me causaram aquela impressão avassaladora, mas antes o próprio princípio de organização da biblioteca”, explicava Cassirer (MANGUEL, 2006, p. 166). O que o assombrou foi o descobrimento de uma identidade leitora misteriosa e inclassificável em Warburg.

Nem sempre as bibliotecas são formadas apenas pela organização física. Há, de forma subliminar, um esquema mental que atua sobre elas. A biblioteca de Marlene Amorim, leitora cega, é uma representação do que foi sua vida. Nela existem alguns livros de histórias que sobraram de uma infância com pouca leitura e as revistas que seu pai trazia das viagens completando as lembranças que restaram da infância. Há uma prateleira com livros de ficção, outra com os livros religiosos (Bíblias de várias religiões, Novo e Antigo Testamento, As mais belas histórias da Bíblia) e ainda uma outra com partituras, hinários e livros sobre o aprendizado teórico e prático de música. Por último, uma prateleira com biografias e quase uma nova biblioteca com livros em braille. Se não fosse pelas repetidas perdas de livros com a chuva ou as obras de vizinhos e a constante mudança de prateleiras por conta dos netos, Marlene saberia de cor tudo o que há em suas estantes. Não é difícil porque essa biblioteca é um resumo da sua vida. De parte das histórias que ouviu na infância através do pai, dos livros em inglês que teve durante o magistério ainda vidente, da escolha pela faculdade de música na UNIRIO, já cega, das enormes partituras que lia com dificuldade por sua incapacidade visual, da escolha da igreja como saída para voltar a tocar piano, os hinários que precisava aprender “de ouvido” por não conseguir mais ler partituras e, por último, os livros em braille, necessidade adquirida no final da vida. A biblioteca de Marlene encerra o seu ciclo vital: todas as coisas que aprendeu desde que começou a ser leitora até virar uma leitora cega.

Junto com essa biblioteca física, palpável, há uma outra: mental. Esta segunda reserva literária inclui todas as histórias que ouviu dos pais e contou para os filhos, todos os livros que, quando não tinha dinheiro, era obrigada a pegar emprestado nas bibliotecas públicas e ainda todos os livros que escutou de ledores ou gravados em CD depois de ficar inteiramente cega. Leitores, videntes ou não, possuem essa reserva de livros guardados na mente, que podem acessar ou não em momentos diferentes de vida e leitura. Essa biblioteca, sem dúvida, não padece das mesmas regras que regem uma biblioteca física. Ela se faz de forma afetiva não por acúmulo, mas por experiências, ao longo dos anos. Nela perdoamos a ausência de alguns autores que “não poderiam faltar” em nossas estantes. Nela, a organização dos livros muda de tempos em tempos: uns são esquecidos, outros lembrados, uns ressuscitados pela simples leitura de um novo volume ou pela visão de uma cena cotidiana. Esses livros mudam sempre de lugar na estante do nosso cérebro, são acionados cada vez que fazemos uma viagem, realizamos uma nova aventura, conhecemos pessoas, nos apaixonamos.

O importante é entender que, tanto como autores, como colecionadores ou leitores várias vezes misturamos as duas bibliotecas em nosso labirinto mental. E a memória é muitas vezes responsável por fazer prevalecer a biblioteca que levamos no pensamento sobre a outra que está à frente de nossos olhos. É com a ajuda da biblioteca mental que alguns cegos vão prosseguir no seu caminho de colecionar textos. Não apenas textos, mas sensações, cheiros, cenas e paisagens. É uma questão de voltar à ideia de que os livros queridos devem ser levados no coração e à máxima islâmica de que biblioteca e memória são sinônimos. Jorge Luis Borges acreditava nisso. O desavisado que fosse ao seu apartamento na rua Maipú ficava impressionado: para um homem que acreditava que se o Paraíso existisse teria a forma de uma biblioteca a sua própria era bastante modesta. Sua casa não tinha mais que um punhado de estantes na sala. Conta-se que o jovem Mário Vargas Llosa visitou Borges nos anos 50 nesse mesmo apartamento e,  espantado, perguntou por que o escritor não vivia em um lugar grande e mais luxuoso. Borges ficou irritado e respondeu dizendo que em Buenos Aires, diferente de Lima, as pessoas eram menos devotas da ostentação.

Quem frequentou o mestre como amigo, para ler ou para fazer parte dos grupos de discussão literária que animavam sua casa sempre se impressionou com a simplicidade como vivia. Simplicidade que refletia em sua própria biblioteca.

María Esther Vázquez se recorda perfeitamente da disposição dos livros: “Não tinha muitos livros em sua casa. No comedor havia uma biblioteca em forma de esquina, localizada em duas paredes. E depois tinha uma biblioteca no seu quarto: destas antigas que tinham os armários com porta de vidro.” (VAZQUEZ, 2008, p.3 – Anexo 6). Eram poucas estantes, mas que encerravam o essencial de suas leituras, começando por seu maior orgulho: as enciclopédias e dicionários. Isto já denunciava bastante da biografia do mestre. Desde pequeno se interessara pelas obras de referência quando visitava a Biblioteca Nacional com seu pai e, tímido demais para pedir um livro, pegava um dos volumes da Britannica e não desgrudava os olhos até que Jorge Guillermo voltasse. Nessa singela aventura, que era tão especial para o menino, descobriu palavras como “druidas”, que depois se transformariam em objeto de escrita e estudo.

Mais velho, Borges jamais perderia o hábito de consultar um dicionário ou enciclopédia e pedia aos seus ledores que o ajudassem nisso. As obras de referência habitavam as estantes da sala junto com os livros em inglês, língua que o fez penetrar cedo na literatura de Stevenson, Chesterton, Henry James e Kipling. Aí também guardava vários romances de Eça de Queiroz, La piedra lunar, de Wilkie Collins, livros de Lugones, Groussac e Güiraldes, Life on the Mississippi, de Mark Twain, além de Ulisses e Finnegans Wake, obras de James Joyce em que, depois confessaria, jamais teria chegado ao final. Também havia algumas obras de Oscar Wilde e de Lewis Carroll misturadas à “famosa” edição da Garnier de Dom Quixote de capa vermelha e com ilustrações, ele teria lido a versão em inglês antes de aventurar-se pela espanhola. Em seu quarto, que mais parecia a cela de um monge, entre os pouquíssimos móveis estava a estante envidraçada que continha uma das mais completas coleções de literatura anglo-saxã e islandesa, paixão adquirida no final de sua vida. Em alguma outra parte da casa, talvez no quarto de sua mãe, estava a literatura argentina. Sua modéstia chegava às próprias estantes: não tinha exemplares de sua obra em sua casa. Todos os que recebia automaticamente dava de presente. Dizia que queria uma biblioteca apenas com grandes escritores e que não figurava entre eles.

Com essa pequena quantidade de livros uma pergunta nos persegue: onde estava, então, a verdadeira biblioteca de Borges? Podemos arriscar que em sua cabeça. María Esther colocava: “Além do mais, por que ter uma biblioteca física se ele tem tudo em sua cabeça?” A biblioteca mental do escritor era, esta sim, enorme. A memória de livros lidos, de trechos, de opiniões de autores, de citações estava arquivada com a minuciosidade de um bibliotecário em sua cabeça. Quando necessitava de um livro, tirava-o desta “caixa de Pandora” que era seu cérebro. Alicia Jurado dizia que:

El resultado de este torrente literario es que junto a Borges se aprende sin cesar; no solo parece haberlo leído casi todo, sino que cualquier comentário que hace es imprevisto e implica un enfoque original. (...) Le ayuda enormemente su prodigiosa memoria: recuerda las fechas, las ediciones, los versículos, de modo impressionante; (...) (JURADO, 1964, p. 15).

Borges era o homem feito livro, o bibliotecário cego que aparece em tantos de seus próprios contos, aquele que sabia andar com desenvoltura na enorme biblioteca de Babel e que completava dentro dela o ciclo de uma vida. Por isso, como leitores, precisamos salvaguardar a memória sempre. Porque ela é nossa maior garantia de que vamos continuar lendo quando nossos olhos nos faltarem. Em Fahrenheit 451 bastou o bombeiro Montag passar pelo rio para que seus outros sentidos, há tanto tempo adormecidos, despertassem. O roçar do mato, o amarelo de um vidro de mostarda, o aroma de cravos vermelhos do quintal da casa vizinha, a noite gigantesca de árvores que investiam e retrocediam em direção a ele várias vezes como se fossem o compasso de uma respiração. Sabia o que procurava: um grupo de deserdados, andarilhos espalhados pelo campo, vivendo próximo aos trilhos do trem, que ainda sobrevivem com seus livros e memórias porque se tornaram apenas uma ameaça distante das cidades. Ao encontrá-los, qual não é a surpresa do bombeiro: esses memorialistas também queimam livros. Eles mesmos se responsabilizam pela perda material dos volumes com medo de que sejam encontrados. Granger, um dos intelectuais que fazem parte do grupo explica: “o melhor é guardá-los na cabeça, onde ninguém virá procurá-los. Somos todos fragmentos de obras de história, literatura e direito internacional. Byron, Tom Paine, Maquiavel ou Cristo, tudo está aqui.” (BRADBURY, 2009, p. 214).

Cada um daqueles homens perde, por um determinado momento, a própria identidade para converter-se no livro que memorizou. Um grupo de professores, filósofos e críticos literários transformados, como mágica, em Charles Darwin, Schopenhauer, Aristófanes, Confúncio e até alguns apóstolos. E não porque, como no conto de Borges, herdaram a memória desses escritores, mas porque memorizaram suas obras, parágrafo por parágrafo. Podem ser uma nova tentativa de Alexandria depois do incêndio, com os fragmentos do que se lembram chegam a restaurar todos os livros perdidos na cidade. E qual a ideia? É a de que esses livros humanos sejam folheados. De geração em geração, de boca em boca, passando dos filhos aos netos, eles encontrarão uma maneira democrática e possível de colocar este conteúdo ao alcance de um número maior de pessoas. Escondidos nos trilhos, perdidos na noite, esses homens foram aprendendo que são menos importantes que a memória que carregam: “vagabundos por fora, bibliotecas por dentro”.


5. 

A leitura compartilhada

Com a cegueira, o mundo real vem impor limites ao mundo de papel. Os livros, fiéis companheiros, se tornam objetos distantes. Depois de orientar o jovem a organizar sua própria biblioteca, dividi-la por assunto e redescobrir cada livro como um amigo reencontrado, o professor Balicci se sente envolto numa escuridão mais aconchegante. No entanto, observa os livros e continua sem ver a luz que deles emana. O silêncio é completo. “Con la fronte appoggiata sul dorso dei libri allineati sui palchetti degli scaffali, passava ora le giornate quasi aspettando che, per via di quel contatto, la materia stampata gli si travasasse dentro” (PIRANDELLO, 2007, p. 509).

Há coisas que a memória não é capaz de restaurar. Caprichosa, ela se apresenta em traços, fragmentos de livros e lugares de leitura pescados ao acaso.

Carregar a literatura no arquivo cerebral não é o bastante. Cada mundo de papel precisa ganhar vida, precisa de um ou mais leitores que possam habitá-lo. Impedidos fisicamente de voltar a penetrar nos livros, esses leitores cegos procuram ledores. Sua sabedoria precisa ser estimulada com novas leituras, com o retorno a leituras antigas, com o manejar da matéria viva que é o livro. Não deixar de ler nunca, continuar a construir dia a dia este mundo de papel: suas ruas, esquinas, rios, casas. Memorizá-los ou não, dar a chance para que estas linhas, estes caminhos, estes labirintos se entrecruzem na própria cabeça formando outros, apontando novas saídas.

Muitos leitores ao perderem a visão têm a coragem de mergulhar no aprendizado de leitura e escrita de uma nova linguagem: o braille. Outros, notadamente os de que estamos tratando neste trabalho, vão recorrer aos ledores.

Estes cegos vão procurar guias externos que possam acompanhá-los pelo texto. A ideia inicial é de que essas pessoas sejam um prolongamento de seus olhos seguindo a narrativa, uma prótese de suas próprias mãos a folhear o livro. No entanto, essa aventura encontra um limite. O limite do outro. O ledor é também um leitor, com suas experiências de leitura, suas opiniões e sua voz. Essa relação pode transformar-se em uma terrível tensão entre estas duas visões ou, para o bem de ambos (leitor e ledor), ser uma maneira prazerosa e inteligente de compartilhar.

Mas como compartilhar a leitura depois de tanto tempo para conquistá-la como ato privado? Como abrir mão do nosso egoísmo? Como pensar que o livro não é mais “meu”, e sim “nosso”? Quando um leitor toma para si a tarefa de ler um livro, começa ali uma relação. Primeiro se estabelece um pacto. Um pacto de silêncio, de recolhimento. Inicia, então, um “diálogo” com o livro e, a partir daí, como já vimos, desenvolve a voz interior. Aquela que ouvimos por dentro: concordando e discordando do texto, relacionando-o com os assuntos que se desenrolaram durante o nosso dia, relacionando aquele texto com outros que estamos lendo ou que já lemos. É o momento solitário do voo do leitor pelo texto sem seguir as orientações do autor, do editor ou de quem quer que seja.

No meio dessa torrente de pensamentos e palavras, desse fluxo interno de pensamento aparece, de improviso, esse ledor, alguém que vai emprestar a voz ao texto. Árdua tarefa tem o ledor de leitores que ficaram cegos: ler para homens que já conhecem um texto, que já tiveram condições um dia de lê-lo “com os próprios olhos”, que já construíram seus caminhos particulares dentro do labirinto textual e, agora, se tornaram dependentes desses novos guias. O ledor então vai precisar, por alguns instantes pelo menos, apagar a sua própria voz interior para emprestá-la ao texto. Ser um bom ledor é fazer o texto falar, é tornar-se transparente, converter-se em simples via de acesso. O professor Balicci, por exemplo, não encontra na voz cantante de Tilde Pagliocchini um eco de sua própria voz. Entre as idas e vindas da difícil relação entre os dois, ele acaba entendendo que a única maneira de compartilhar aqueles livros com ela é fazê-la lê-los em silêncio, ouvir a respiração da moça, o lento passar das páginas, estabelecer uma relação tão íntima que possa fazer coincidir a sua voz interior com a dela.

Estar em sintonia é mais do que importante. No entanto, como em qualquer relação, a do leitor cego com o seu ledor não tem regras. O essencial é que ambos estejam afinados com suas próprias vozes internas e com a voz do livro. Na peça Leitor por horas, de José Sanchis Sinisterra, Celso, pai de Lorena (uma moça cega), contrata os serviços de Ismael, um escritor frustrado que se transforma em ledor. Neste trecho da entrevista que faz com Ismael, Celso destaca algumas das características que imagina fundamentais para o cargo. Pede para que Ismael leia um trecho de um livro e, a partir daí, orienta-o:

CELSO – Não é a mesma coisa.

ISMAEL – Não.

CELSO – Desta vez o senhor pôs intenção demais, significado demais. Quis me impor sua leitura, a sua interpretação.

ISMAEL – Desculpe.

CELSO – Como que me dizendo o que eu devia entender do texto.

...

ISMAEL – Posso tentar outra vez?

CELSO – Era uma questão de transparência. Isso, é esta a palavra: transparência. Compreende?

ISMAEL - Acho que sim.

CELSO – Um órgão puramente fisiológico, sem mais pensamento do que o necessário para transformar a cadeia de signos gráficos em...

ISMAEL - Sei, sei.

CELSO - ... em unidades melódicas e rítmicas de significação.

ISMAEL – Compreendo. É como se...

CELSO – Quando empregamos pensamento demais, a transparência se perde. E aparece uma figura interposta, que é a sua; alguma coisa do senhor ali no meio, entre mim e o texto. (SINISTERRA, 2006, p. 2-3).


O que o pai zeloso espera do ledor é uma transparência. Como Lorena, a leitora cega, é uma personagem de temperamento difícil e uma leitora exigente, é preciso que o texto não venha até ela com qualquer intermédio de interpretação do ledor.

Essas características de imparcialidade e neutralidade que são cobradas do ledor vão se modificando à medida que o leitor cego adquire confiança em seu guia e é capaz de entender a relação de troca e não mais da supressão de uma leitura em função da outra, ou de uma voz em função da outra. Borges quando precisava de ledores procurava “quem estava à mão”, no entanto, se a pessoa não tinha o mínimo de inteligência ou possibilidade de trocar impressões com ele, não era chamada para fazer uma nova leitura. Então, diante do estranhamento que causa essa nova figura interposta entre o texto e o leitor, nada mais natural do que procurar vozes cotidianas, vozes amadas, vozes dispostas e pertencentes a rostos já conhecidos que possam dar vida ao texto. Amigos, família e amores são os ledores mais procurados pelos cegos, talvez porque com eles a experiência de compartilhar um texto encontre uma explicação, uma finalidade.

Em seu livro Como um romance, Daniel Pennac propõe aos pais desesperados pela falta de leitura dos filhos adolescentes que voltem a ler textos em voz alta para eles. É claro que a experiência se renova, não tem mais o caráter anterior de um adulto apresentando um mundo à criança, o leitor iniciante. A leitura deve ganhar o sabor do compartilhamento, de querer dividir com o outro, com aquele que amamos, um pouco de nosso interesse. Se pensarmos, mesmo como leitores videntes, fazemos da leitura um ato compartilhado. Lemos, calamos, retardamos o contato e, claro, não fazemos relatórios críticos dos livros, mas esperamos em nosso íntimo dividir com o outro aquilo que descobrimos. Pennac lembra que todos nós temos uma lista de leituras que estamos “devendo”, seja para a universidade, para a crítica ou para o trabalho. E talvez não possamos nos furtar do que disso tudo é obrigação, mas sem dúvida devemos os textos mais belos que já lemos a uma pessoa querida: um amigo, alguém da família, um amante. “Talvez porque, justamente, é próprio do sentimento, como do desejo de ler, preferir. Amar é, pois, fazer dom de nossas preferências àqueles que preferimos. E esses partilhamentos povoam a invisível cidadela de nossa liberdade. Somos habitados por livros e amigos.” (PENNAC, 1993, p.84). Quando visitamos, então, estas obras, evocamos a presença daquela pessoa. Buscamos ali um pouco de seus gostos, de suas preferências e das razões que o fizeram colocar o livro em nossas mãos. Querendo ou não, em tempos e espaços diferentes estamos partilhando leituras.

Embora com liberdade de escolher os seus “pares de compartilhamento”, o leitor cego enfrenta ainda outras barreiras. De posse dessa “nova ferramenta” de leitura que se interpõe entre ele e o texto, há uma modificação drástica na postura de leitura. O silêncio inquebrantável, a sensação de cumplicidade de estar só com a imaginação e o livro e, finalmente, o ato de leitura como ato de privacidade se perdem, se modificam. A voz interior, criada para discussão interna, no silêncio, se vê invadida por uma nova voz, vinda de fora, a princípio invasiva, depois cúmplice. Há uma reeducação dos processos de leitura. Reinvenção, releitura, mas agora dentro de um sistema que propõe parceria. Ainda assim é possível voltar àquela sensação primeira? A de estarmos só com o livro? Tudo depende da obstinação de cada leitor.

A leitora Marlene Amorim explica que a sua cumplicidade com o livro nunca se perdeu, nem depois de ficar cega: “Quando estou interessada no livro, o mundo pode cair em volta. Sempre fui assim. Quando pego uma coisa para ler, pode acontecer o que for que não me atrapalha” (AMORIM, 2010, p. 9 – Anexo 2). Consegue entrar no texto porque constrói uma bolha de silêncio que engloba ela e o ledor. A mesma obstinação que levou Borges a perder definitivamente o que lhe restava de visão. O médico já o havia proibido a leitura, mas em um crepúsculo em que viajava de trem resolveu continuar a narrativa envolvente de um livro. O trem entrou em um túnel e, quando saiu, Borges estava completamente cego.

Concentrar-se no texto. Concentrar-se até perder-se nele e fazer parte dele, parte do mundo de papel. Perdidos os olhos carnais, os cegos podem envolver-se na imaginação, criar e visitar outros mundos que como videntes jamais visitariam. Fazer dos livros um refúgio, uma nova pátria. Habitar no livro de tal maneira que o mundo lá fora não importe mais, que um muro absoluto de silêncio coloque o leitor em contato com sua fantasia. Sentir-se abrigado por esses livros. E, depois, trazer a mesma condição de conforto e de concentração para junto do ledor. Assim, sintonizando os tempos e as perspectivas, é possível ler em conjunto com tudo o que a leitura possibilita: consultas de outros textos, volta a um texto anterior, pular trechos e anotar nas páginas do livro.

José Mindlin observa que sempre praticou a “poligamia” em termos de leitura. Mesmo encontrando nos livros uma amizade “antiga e sólida”, nunca se contentou em ficar apenas com um deles: gostava de ler dois, três textos simultaneamente. Com a cegueira, não abandonou o seu costume de leitor, mais de uma vez já pediu para um ledor pegar um outro livro na estante. “Causo muitas vezes espanto quanto peço isso, mas funciona.” (MINDLIN, 2010, p. 5 – Anexo 7). O ledor entende, afinal, ele não é o único que tem um número de livros na mesa de trabalho e uma segunda pilha que o espera na cabeceira, para a hora de dormir. Mindlin também não abriu mão de um outro direito de leitor: fazer anotações relacionadas aos livros. Nunca os rabiscou, seu respeito por eles foi o que o transformou em colecionador, mas não deixa de fazer anotações em separado. E, embora com a perda da visão a escrita também se perca um pouco, é capaz de realizar os seus comentários sobre o texto por escrito para, só depois, pedir para alguém ler e poder corrigi-los.

Marlene Amorim foi a vida inteira uma leitora de livros emprestados de amigos ou das bibliotecas. Quando vidente, não podia escrever nos livros. Depois de ficar cega não se furta do prazer de, ao ler um livro seu, pedir a um ledor que sublinhe trechos e anote ao lado os comentários que ela dita. Muitos leitores cegos se renderam às facilidades dos meios eletrônicos. O gravador virou o instrumento para conservar a leitura do outro, ao voltar para casa o leitor cego pode reler através dele. Esta espécie de “memória artificial” é de extrema utilidade: permite que o ledor se faça presente através da voz em qualquer lugar onde o cego esteja.

Ajuda tremendamente no estudo de novas línguas: é possível pedir ao ledor que repita duas ou várias vezes a pronúncia de palavras novas. Alguns computadores já vêm com um sistema de voz embutido que possibilita ao cego fazer as anotações no texto e solicitar que o computador repita o que ele quis escrever, esta escrita pode ser feita diretamente no teclado ou ditada. O mesmo sistema permite ao leitor cego uma ferramenta de hipertexto: ao não entender uma palavra, ele pode voltar a ela e pedir para que o dicionário encontre o significado, corrija a pronúncia, entre outras coisas.

A ajuda tecnológica é ilimitada. Mas uma grande parte de leitores cegos prefere conjugar os dois recursos: os ledores humanos e digitais. Borges, por exemplo, tinha uma aversão imensa à própria voz. Não tinha bom ouvido, é verdade, mas não gostava de escutar-se. Valia-se muito de sua memória, mas tinha uma grande ansiedade por tomar notas das coisas que o interessavam em cada livro que lia. Irma Zangara, uma de suas ledoras, encontrou uma vez dentro de um livro em inglês (uma espécie de tratado sobre Espinosa) uma anotação na contracapa. Com letras desencontradas, brutas e um pouco ilegíveis, letras de cego, estava aí um esboço do poema Los espejos, escrito por Borges de próprio punho. Alberto Manguel também se lembra de que o mestre com frequência solicitava o Dicionário Enciclopédico de Montaner e Simón para fazer uma 
consulta. Quase sempre pedia para anotar algum dado que o interessava no final do volume com o número da página correspondente. “Misteriosas anotaciones, fruto de manos distintas, salpicaban las paginas de guarda de sus libros” (MANGUEL, 2003, p. 32).

Apesar de todas as limitações causadas pela cegueira, Borges defendia abertamente o lugar do leitor. Para ele o leitor era também criador porque ordena e dá vida ao texto. Cada leitura, um novo caminho, um novo olhar. Um mesmo leitor pode percorrer o mesmo texto de uma, duas ou mais formas distintas. E o bom leitor, o leitor ideal, para Borges, era uma destas espécies de cisne raras, ou estes pássaros que vemos cantar poucas vezes na vida. No entanto, sendo bons ou maus leitores, uma coisa Borges sabia: era necessário sempre respeitar a imagem mental que cada leitor guarda da leitura de um texto. Por isso, o autor não acreditava em descrições:

Creo que las descripciones son en general muy falsas (...) Si un novelista nos habla de un hombre de barba negra, lo imaginás en seguida. (...) Si más adelante, se os dan detalles sobre el color de los ojos, sobre la tez, etc... y si esto no coincide con vuestra primera imagen, no la aceptás, la rechazáis. (CHARBONNIER, 1967, p. 86/87)

Seja por sua cegueira ou por excesso de abstração e lógica, Borges acreditava que um texto deveria ter a força para gerar imagens mentais poderosas nos leitores. Não ousem, então, roubar a imagem singular que cada um tem sobre um texto, porque ela é única. O processo de leitura é a conjugação de ver as palavras e dotá-las de sentido através da voz e das imagens interiores de cada leitor. Esse processo sempre encantou Borges não como leitor, mas também como autor. Ele acreditava e defendia a ficção no lugar da realidade, a palavra no lugar da imagem. Enfim, acreditava no “mundo de papel”, seu universo de criação.


6.

Reler

Se o tempo de leitura é um tempo roubado, o que dizer do tempo de releitura? Reler está entre os pecados capitais do leitor. Émile Faguet, um importante crítico literário francês do século XX, arriscava alguns motivos para releitura. Entre eles, três mereciam destaque: para compreender melhor um texto e a ideia de um autor, para desfrutar o detalhe do estilo e, finalmente, para nos comparar a nós mesmos. Se formos observar a terceira razão, o pecado da releitura anda de mãos dadas com a vaidade. Os resultados nem sempre são os mais satisfatórios, terminamos por descobrir que os lugares, as aventuras, as paisagens, as pessoas e os livros que tanto nos empolgavam se tornaram distantes, impessoais, alguns até banais. Ou somos nós que deixamos de sentir e ler como antes?

Exatamente pelo facto de a primeira leitura ser feita com mais sofreguidão, com mais impetuosidade, é que pode haver nela esse fator do novo, do inédito. Uma primeira leitura em geral faz com que descubramos o texto. As releituras já são uma forma de descobrirmos um pouco de nós mesmos. Sempre vamos nos perguntar o que será que encontramos naquele livro em nossa juventude para que ele fosse tão importante. Por alguns dias esquecemos lugares, pessoas reais, para ficar na companhia dele. E ele nos deu uma revelação na época que talvez nunca voltemos a ter de novo. Esse primeiro leitor que fomos, mais aventureiro, pode deixar passar uma série de assuntos interessantes no livro que depois serão recuperados em outras leituras. Mas é bonito também descobrirmos traços do leitor que fomos nesses livros. A memória, sempre traiçoeira, faz com que voltemos a esses códices como se pudéssemos ter o benefício da surpresa, como se tivéssemos esquecido o destino do personagem. Teimamos em nos enganar que voltamos ao mesmo tempo com a primeira inocência: os meandros e os labirintos do nosso cérebro o procuram por algum motivo. Alberto Manguel caminha pela própria biblioteca, abre um livro que jamais imaginou abrir antes e encontra um verso esplêndido que imagina sobre medida para aquele momento de sua vida. Até fechar novamente o livro e verificar que, na última página, ele mesmo mais jovem (e talvez mais sábio) marcou a mesma passagem.

Que estranhos caminhos o teriam levado de volta àquela leitura? Alguns livros que jamais amamos, descobrimos com surpresa que nós mesmos, mais adultos e mais maduros como leitores, passamos a apreciar. Reler por prazer. Um texto que nos foi imposto há tanto tempo pela escola ou pela universidade, que fazia parte de uma obrigação ou de uma prova, e que, de repente, muda de figura porque simplesmente o estamos lendo em um momento de lazer. Não importa o tamanho ou o estilo do livro: reler vem da vontade de reencontrar. Seja de reencontrar o leitor que um dia fomos, seja de reencontrar o livro como um velho conhecido. Leitores cegos gostam de releituras, seja porque voltam a reencontrar o leitor vidente que um dia foram, seja porque estão dentro de uma “zona de conforto”.

Uma e outra vez esses leitores que perderam a visão vão voltar aos textos antigos. Fechados os olhos, pontos de contato com as páginas escritas, eles escutarão esses textos recuperando um pouco da inocência da primeira leitura. E tudo aquilo que deixaram passar porque estavam distraídos com “o mundo lá fora” entra agora pelos outros sentidos, de maneira renovada. “Eu acho a releitura um dos grandes prazeres da vida”, diria José Mindlin. Ele releu Marcel Proust com Cristina Antunes. Para ela também era a segunda leitura, e o interessante disso é que ambos puderam ter uma visão nova de um mesmo livro que já tinham lido em separado, mas nunca compartilhando. “Por outro lado, a leitura de Proust em voz alta fluía, era outra coisa: tinha música, tinha um ritmo.” (ANTUNES, 2010, p. 1 – Anexo 3). O mais interessante é que, essa leitura, Cristina começou sem pensar que a faria toda novamente, ela nunca cogitou que gostaria de ler Proust de novo e acabou se encantando.

A mesma música de Proust maravilharia também João Cabral de Melo Neto nas poucas leituras em voz alta que escutou. Memorialista, preocupado com as sensações retiradas dos sentidos, Proust escreveu uma obra que tomou quase o tempo de sua vida toda, mas que tinha todas as características de uma grande narrativa. As descrições longas e as cenas que aguçavam os sentidos chamaram atenção desses leitores cegos. Uma simples mordida em um bolinho molhado no chá trazia de volta a lembrança de uma infância, uma mãe amada e o ambiente em que se estava lendo o livro. Andar por aquela casa, participar daquelas festas, esperar a mãe que virá, a cada noite, para acalmar o filho, se apaixonar tantas e tantas vezes acompanhando esta saga é uma maneira de o leitor voltar à sua casa, ao ambiente conhecido, às frases aconchegantes.

Maria Kodama dizia que Borges sentiu durante toda a sua vida uma certa nostalgia dos livros que não poderia ler. Mas também leu pouquíssimos de seus contemporâneos. Em compensação tratou de ler e reler o que conhecia melhor para poder “entesourar” esses livros em sua memória. Gostava de manter o culto dos livros porque acreditava que, quando um leitor lia um livro, automaticamente recebia o tempo que transcorreu desde o dia em que foi escrito até o momento da sua leitura. María Esther Vázquez conta que Borges gostava muito de que lessem para ele e, quase sempre, os livros que conhecia. Era saboroso para os seus ledores, porque nessas releituras ele redescobria pontos novos e os compartilhava de maneira generosa. Mas Borges não usava apenas a releitura como zona de conforto. Na verdade, uma série de pensamentos que iriam gerar novos mundos e ideias para sua escrita surgia a partir dessas visitas. Longe de estar buscando conforto, ele voltava uma e outra vez, através de suas releituras, a temas que lhe eram caros e que, portanto, mereciam uma vez mais um papel de destaque em sua escrita.

Até porque reler um texto é voltar a outros tantos. Cada vez que retornamos a um autor, não nos furtamos de olhá-lo sob a luz de vários outros. Reler, para Daniel Pennac, está dentro dos direitos fundamentais do leitor. É preciso reler para não pular os trechos que antes, por falta de tempo ou de maturidade, deixamos para trás. É preciso reler sob um outro ângulo ou simplesmente para verificarmos algo que ficou perdido lá no fundo de nossa memória. Reler, enfim, para nos darmos uma segunda chance de entendimento. Querer mais, e mais do mesmo, é o desejo que trouxemos do passado, da criança que fomos e que pedia a repetição da história, mas que se renova, agora, no presente. “Nossas releituras adultas têm muito deste desejo: nos encantar com a sensação de permanência e as encontramos, a cada vez, sempre ricas em novos encantamentos.” (PENNAC, 1993, p.153). É uma prova de amor sempre renovada. Cegos releem para mostrar que amam e voltam aos mesmos textos porque sabem que eles nunca os teriam abandonado por não poderem enxergar.

FIM

 

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"O Leitor cego" - é um excerto (cap V) da obra:
'Lendo e escrevendo no escuro: leitores e autores cegos e as suas estratégias para manter a relação com o texto'
Autora: Denise Ventura Schittine
Tese de Doutoramento - PUC Rio Janeiro, 2011
 


 

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23.Jun.2017
Publicado por MJA