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Le Faux Miroir - Rene Magritte, 1928
Resta ainda falar do prazer destes olhos carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos e piedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim as
tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos e dos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o céu.
Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus
que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo
o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos,
mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, a procuro e, se sua
ausência se prolonga, a alma se entristece.
Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida, caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder!

Tobias cura o pai da cegueira - Rembrandt, 1636
Luz que via Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los!

Isaac velho e cego abençoa Jacob - Govert Flinck, 1638
Luz que via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos!
E a seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem em que queria dispô-los o pai, que via com os olhos corporais, mas de acordo
com seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os que a vêem e amam formam um único ser.

Jacob, cego, no seu leito de morte, cruza as mãos para
abençoar Ephraim e Manasseh - Benjamin West, 1766
Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem
encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. É assim que desejo
ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes
meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas
por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel.
Quantos encantos os homens acrescentaram às seduções dos olhos, com a variedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, de objetos
de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longe ultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa. Exteriormente perseguem
as produções de suas artes, e em seu interior abandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez.
Quanto a mim, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te um hino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por mim. As
belezas que da alma do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que é superior às nossas almas e pela qual minha alma suspira dia e noite.
Entretanto, os que geram e os amantes das belezas exteriores, tiram da beleza soberana apenas o critério para julgá-las, mas não uma regra para usá-las bem.
Contudo, a norma ali está, mas eles não a vêem. Se a vissem, não se afastariam , e guardariam sua força para ti, e não a dissipariam em fatigantes delícias.
Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia
está diante de meus olhos. Miseravelmente eu caio, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foi suave, e outras
infligindo-me
uma pena, por ter ficado preso ao chão.
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Santo Agostinho
(Tagaste, 354 - Hipona, 430)
Filósofo e padre da Igreja. Filho de mãe cristã (Mónica, santificada pela Igreja) e de pai pagão, não é baptizado. Menospreza o cristianismo até que, aos dezoito anos,
enquanto estuda em Cartago, ao ler o Hortênsio de Cícero, inicia uma procura angustiada da verdade. Após uns anos de adesão ao maniqueísmo, converte-se primeiro a esta
doutrina no ano de 374 e posteriormente ao cepticismo. Professor de Retórica em Cartago e depois em Milão. Nesta última cidade (384) conhece as doutrinas neoplatónicas;
isto, mais o contacto com Santo Ambrósio, bispo da cidade, predispõe-o a admitir o Deus dos cristãos. Pouco a pouco apercebe-se de que a fé cristã satisfaz todas as suas
inquietações teóricas e práticas e entrega-se inteiramente a ela; é baptizado em 387. Passa por Roma e regressa à sua Tagaste natal, na costa africana, onde organiza uma
comunidade monástica. Ordenado sacerdote em 391, quatro anos mais tarde é já bispo de Hipona, cargo em que desenvolve uma actividade pastoral e intelectual extraordinária
até à sua morte.
Entre as suas obras contam-se grandes tratados (Contra Os Académicos), obras polémicas contra outras correntes teológicas e filosóficas, A Cidade de Deus e
as suas famosas Confissões. Esta autobiografia espiritual é famosa pela sua introspecção psicológica e pela profundidade e agudeza das suas especulações. O
conjunto da sua obra e do seu pensamento fazem dele o grande filósofo do cristianismo anterior a Tomás de Aquino (século xiii).
in
vidas lusofonas

excerto das
CONFISSÕES
SANTO AGOSTINHO, séc. IV
LIVRO DÉCIMO - CAPÍTULO XXXIV
17.Abr.2014
Publicado por
MJA
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