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-excerto-
Homem cego em frente
à casa em Myanmar
Su Kyi não se lembrava da primeira vez em que dera por isso. Naquela manhã,
defronte de casa, em que o chamou e ele olhou à volta, virando a cabeça ora para
um lado ora para outro, como se estivesse à sua procura? Ou teria sido uns dias
mais tarde, ao jantar, sentados num barrote de madeira em frente à cozinha
enquanto comiam o arroz e ela lhe apontou uma ave pousada na erva uns metros à
frente?
- Onde? - perguntou ele.
- Ali, junto à pedra.
- Ah, ali - disse ele, olhando na direcção errada.
Su Kyi notava que ele ia sempre pelos mesmos caminhos, fosse no jardim, em casa
ou nos prados e campos contíguos, e a frequência com que tropeçava em paus ou em
pedras quando porventura se desviava do percurso habitual. Via como ele por
vezes, no lapso de um segundo que a ela parecia uma eternidade, demorava a
agarrar na tigela ou na chávena que ela lhe dava. Como franzia ligeiramente os
olhos se fixasse alguma coisa que estivesse a mais de um par de metros de si.
Dir-se-ia que andava à procura de qualquer coisa no meio do denso nevoeiro que
em certas manhãs cobria o vale.
Tin Win não sabia quando tinha começado, mas nunca vira as montanhas e as nuvens
no horizonte com nitidez. Não os conhecia de outra forma.
Desde o dia em que a mãe desaparecera que as coisas tinham piorado. Primeiro,
deixou de conseguir enxergar a mata a partir do jardim. As árvores perderam as
formas e os contornos fundindo-se umas com as outras e dissipando-se ao longe numa mancha
verde-acastanhada. Na escola, uma neblina cinzenta cobria o professor; ouvia-lhe
a voz clara e distintamente, como se estivesse sentado junto dele, mas não
conseguia vê-lo. O mesmo acontecia com as árvores, os campos, a casa ou Su Kyi,
se ela estivesse a uma distância superior ao comprimento de um braço.
Os objectos e os seus pormenores deixaram de lhe servir de orientação, vivia
cada vez mais num mundo constituído sobretudo por cores. A mata era verde, a
casa vermelha, o céu azul, a terra castanha, a buganvília lilás e a sebe à volta
do jardim preta. Mas agora nem as cores lhe ofereciam confiança, estavam a ficar
pálidas e, com o tempo, depositou-se sobre ele uma espécie de manto branco
leitoso que cobria tudo o que estivesse para além de um raio de poucos metros.
O mundo afundava-se diante dos seus olhos, extinguia-se, como uma fogueira
quando deixa de dar calor e luz.
Tin Win era o primeiro a reconhecer que isso não o perturbava particularmente;
não tinha qualquer receio da escuridão eterna ou daquilo que se seguiria às
imagens que os seus olhos agora viam. Se tivesse nascido cego, não teria perdido
muito, dizia de si para si, e não achava que viesse a perder muito se cegasse
por completo.
E assim foi. Três dias após ter completado dez anos, ao acordar e abrir os
olhos, a neblina engolira o seu universo.
Tin Win estava deitado imóvel na cama e respirava tranquilamente. Fechou os
olhos e voltou a abri-los. Nada. Olhou para çima, onde ainda há pouco estava o
tecto, e viu apenas um buraco branco. Endireitou-se e virou a cabeça de um lado
para o outro. Onde estava a parede de madeira com pregos ferrugentos? A janela?
E a velha mesinha em cima da qual se achava o Osso de tigre que o pai há muito
achara na floresta? Para onde quer que desviasse o olhar, só via uma abóbada
branca sem contornos, sem frente nem fundo, sem fronteiras. Era como se tivesse
descoberto o infinito.
Su Kyi estava deitada a seu lado. Dormia ainda, mas não tardaria a acordar.
Sabia-o pela forma como respirava. Tin Win levantou-se cautelosamente e apalpou
com os dedos dos pés até encontrar o fim do colchão de palha. Sentiu as pernas de Su Kyi e saltou
por cima delas. Ficou de pé no quarto interrogando-se onde ficaria a cozinha.
Deu uns passos e encontrou a porta sem ir contra o umbral nem contra a parede,
dirigiu-se para a cozinha, circundou o sítio da lareira, passou pelo armário com
as tigelinhas de folha até chegar ao pátio. Não tinha dado encontrões nem
precisara de estender as mãos para apalpar. Ficou de pé em frente da porta, a
sentir o sol bater-lhe na cara e surpreendido com a segurança com que se
movimentara no meio da névoa, essa terra de ninguém.
Esquecera-se do banquinho de madeira. Bateu com a cara no chão duro, a dor na
canela fê-lo soltar um leve grito, qualquer coisa arranhara-lhe a cara, a saliva
soube-lhe a sangue.
Deixou-se ficar caído no chão, sem se mexer. Sentiu qualquer coisa a
rastejar-lhe pela face, sobre o nariz e a testa e a desaparecer no cabelo.
Movia-se muito depressa para se tratar de uma lagartixa. Talvez uma formiga, ou
um escaravelho... Não sabia. Já não conseguia distinguir uma formiga de um
escaravelho, e começou então a chorar baixinho, sem lágrimas. Como os bichos.
Não queria que nunca mais ninguém voltasse a vê-lo chorar.
Apalpou o chão com a mão, sentiu a irregularidade do terreno, passeou com os
dedos pelos minúsculos montes e vales como se estivesse a descobrir o mundo de
novo. O chão era áspero, cheio de pedras e de buracos! Como era possível não se
ter apercebido deles até então? Fez rolar um pedaço de carqueja entre o
indicador e o polegar e teve a impressão de o ver. Interrogava-se se a imagem,
todas as imagens que guardava na lembrança se iriam pouco a pouco diluindo ou
se, no futuro, iria conseguir ver o mundo quanto mais não fosse através da
janela da memória e da fantasia. Pensou em Su Kyi e viu o rosto dela diante dos
olhos.
Ficou à escuta. O chão zunia, cantava baixinho, de forma quase inaudível; eram
ruídos que ele desconhecia e que não conseguia interpretar. Tin Win percebeu que
doravante as mãos, o nariz e os ouvidos iriam guiá-lo no mundo. Aprenderia a
confiar neles? Ele, que até àquele momento da sua vida não pudera confiar em
nada nem em ninguém?
Su Kyi ergueu-o.
- O banquinho estava mesmo à tua frente - disse ela. Era uma constatação, não
uma censura.
Foi buscar água e um pano; ele passou a boca por água e ela limpou-lhe o rosto.
Pela sua respiração arfante, Tin Win percebeu o susto que Su Kyi apanhara.
- Dói muito?
Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
Sentiu de novo na saliva o sabor amargo a sangue.
- Vem para a cozinha - disse ela levantando-se e dirigindo-se para a cozinha.
Tin Win continuou sentado, sem saber que direcção tomar. Passados uns segundos,
Su Kyi voltou a vir cá fora.
- Porque não vens?
O grito dela ouviu-se até na aldeia. Passados anos, não havia em Kalaw quem já
não se lembrasse do susto enorme que apanhara ao ouvi-lo.
O médico do pequeno hospital ao fim da rua principal não sabia que dizer. Não
conhecia nenhum caso em que alguém tivesse cegado naquela idade, a não ser por
acidente. Só podia formular palpites. Era difícil que se tratasse de um tumor no
cérebro, pois o doente não tinha tonturas nem se queixava de dores de cabeça.
Podia ser uma doença nervosa ou hereditária. Sem conhecer as causas precisas,
não podia receitar nada, não havia ajuda possível. Quando muito a esperança de
que a vista voltasse, da mesma forma intrigante como desaparecera.
*
Nos primeiros meses, Tin Win procurou reconquistar o seu mundo, a casa, o jardim
e os campos à volta. Ficava horas sentado no jardim, junto à sebe, em cima do
cepo do pinheiro, debaixo do abacateiro ou em frente das papoilas, tentando
descobrir se cada objecto, cada árvore conservava o seu cheiro próprio,
inconfundível, como as pessoas. O cheiro do jardim nas traseiras da casa era
agora diferente de antigamente?
Tin Win media os caminhos em passos, calculava distâncias, traçando mapas na sua
cabeça em que inscrevia tudo aquilo que os pés e as mãos apalpavam, cada
arbusto, cada árvore, cada pedra. Queria memorizá-los, já que eles iriam ser os
substitutos dos olhos; queria, com a ajuda deles, voltar a pôr ordem na névoa
opaca que o rodeava.
Não deu resultado.
No dia seguinte, já nada estava no sítio de que se lembrava. Era como se durante
a noite alguém dispusesse de forma diferente os móveis de um compartimento. Nada
neste mundo tinha um lugar fixo, tudo estava em movimento, ao acaso e de forma
imponderável.
O médico garantira a Su Kyi que, com o tempo, os outros órgãos dos sentidos
iriam assumindo o trabalho dos olhos. Os cegos, notara o clínico, aprendiam a
confiar nos ouvidos, no nariz e nas mãos e, graças a eles, passada uma fase de
adaptação e de habituação, a orientar-se sem dificuldade no seu ambiente.
Neste caso era justamente o contrário. Tin Win tropeçava em pedras que ele sabia onde estavam havia anos, esbarrava contra árvores e
ramos a que dantes subia. Mesmo em casa, chocava com as ombreiras das portas e
as paredes. Não fosse Su Kyi avisá-lo a tempo, e já por duas vezes teria caído
na lareira.
Quando, semanas depois, ela o levou de novo consigo à aldeia pela primeira vez,
quase ia sendo atropelado por um automóvel. Estava na berma da rua e ouviu o
ruído de um veículo motorizado a aproximar-se, ouvia vozes e passos e o
resfolegar de um cavalo, ouvia pássaros e galinhas e um boi a libertar as suas
fezes, mas nada disso fazia sentido ou lhe dava uma indicação sobre a direcção
que devia tomar ou aquilo a que tinha de prestar atenção. Confiava no ouvido tão
pouco como no olfacto se cheirasse a fogo, ou nas mãos se tacteassem um
obstáculo.
Era raro o dia em que não houvesse um joelho deitado abaixo, nódoas negras,
galos na cabeça ou mãos e cotovelos esfolados.
Na escola, com as freiras e o padre de Itália, é que era particularmente
difícil. Apesar de ter autorização para se sentar na primeira fila desde que
ficara cego, e de eles se certificarem com frequência se ele conseguia
acompanhar as lições, percebia cada vez menos o que eles diziam. Na presença
deles sentia-se mais só do que nunca. Ouvia-lhes a voz, sentia-lhes a
respiração, mas não os via. Estavam de pé junto dele, à distância do comprimento
de um braço ou de uma mão travessa, mas permaneciam inatingíveis.
A proximidade de outras crianças era ainda mais insuportável. As vozes
causavam-lhe medo, e os risos, mesmo à noite, quando já estava deitado,
continuavam a ressoar-lhe nos ouvidos. Quando andavam a brincar no pátio junto à
igreja em grande animação, ele ficava sentado num banco debaixo da cerejeira e
sentia-se agrilhoado: a cada passo que ouvia, a cada exclamação, a cada
manifestação de alegria, por mais insignificante que fosse, parecia-lhe que os
grilhões se apertavam.
Su Kyi não estava absolutamente certa se fora o mundo que se afundara diante dos
seus olhos ou se fora Tin Win que simplesmente se retraíra ainda mais. Se assim
fosse, até onde chegaria esse retraimento? Com o tempo, não se recusariam os ouvidos e o nariz a
cumprir a sua função, e não perderiam os seus dedos finos e delicados a
sensibilidade, transformados em extremidades entorpecidas e inúteis?
Que era forte, muito mais forte do que ele próprio pensava ou do que o seu corpo
frágil denunciava, não tinha dúvidas - ficara a sabê-lo nos anos anteriores -,
possuidor de uma energia que podia levá-lo até ao fim do fim do mundo. Se
quisesse, o seu coração deixaria de bater tal como os olhos tinham deixado de
ver e, no mais íntimo da sua alma, pressentia que seria assim, e não de outra
forma, que ele um dia poria fim à vida. Mas Su Kyi achava que era ainda muito
cedo para isso. Primeiro ia ter de a viver.
***
O ancião ouviu atentamente a história de Tin Win da boca de Su Kyi. De vez em
quando, balançava a parte superior do corpo ou repetia palavras soltas. Quando
ela chegou ao fim, U May permaneceu um largo tempo calado. Finalmente, virou-se
para Tin Win, que ficara sempre sentado ao lado de Su Kyi.
U May falou pausadamente e usando frases curtas. Descreveu a vida dos monges,
que não têm um lar nem nada de seu a não ser o hábito e a thabeik, a tigela que
os acompanha sempre na ronda das esmolas. Explicou também que todas as manhãs,
logo depois do nascer do Sol, deambulavam pelas ruas a mendigar, que o faziam em
silêncio, permanecendo em frente de uma casa ou numa porta e aceitando,
reconhecidos, os donativos que recebiam. Falou dos seus alunos, a quem ensinava,
com a ajuda de um jovem monge, a ler, a escrever e a contar; mas a quem, no
essencial, procurava transmitir o que a vida lhe havia ensinado: que a riqueza
de um ser humano reside nos pensamentos do seu coração.
Ajoelhado imóvel em frente do ancião, Tin Win ouvia-o compenetrado. Não eram as
palavras que lhe prendiam a atenção, e sim a voz, com um poder envolvente quase
mágico. Não conhecia nenhuma que se lhe comparasse. Era macia, uma espécie de
canto melodioso, suave e harmonioso como o tilintar das campainhas da torre do
mosteiro quando a brisa passava por elas. Lembrava-lhe o som dos pássaros ao
nascer do dia e a respiração tranquila e regular de Su Kyi deitada ao seu lado a
dormir. Além de a ouvir, sentia-a penetrar-lhe na pele, como se umas mãos
estivessem a massajá-lo. O seu maior desejo era confiar-lhes o peso do corpo, o
peso da alma. À medida que o velho monge falava, a sua voz invadia-o, produzindo
nele pela primeira vez algo que no futuro iria ser frequente: Tin Win
transformava sonoridades em imagens. Viu o fumo de uma fogueira elevar-se no ar
e espalhar-se pelo compartimento, oscilar suavemente em pequenas vagas que iam e vinham como que
conduzidas por uma mão invisível, formar volutas e dançar, indo-se lentamente
dissipando.
No caminho de regresso a casa, Tin Win e Su Kyi não trocaram palavra. Ele
segurava-lhe a mão. Era quente e macia.
Na manhã seguinte, ainda o Sol não nascera, já os dois iam a caminho do
mosteiro. Tin Win estava nervoso, pois Su Kyi dissera-lhe que ele iria ficar no
mosteiro umas semanas. Teria um hábito e andaria com os outros rapazes pela
povoação a pedir esmola. A ideia não lhe agradava; tinha medo, um medo que ia
crescendo a cada passo que dava. Como iria conseguir orientar-se na aldeia, ele
que mesmo em terreno conhecido mal andava meia dúzia de metros sem tropeçar ou
embater contra algum obstáculo? O melhor que ela tinha a fazer era deixá-lo
sozinho em paz, dissera a Su Kyi; queria ficar em casa, na esteira ou no
banquinho ao canto da cozinha, os únicos lugares onde se sentia vagamente seguro
ou, pelo menos, não ameaçado.
Ela não se deixara ir em conversas. Tin Win caminhava a seu lado, contrariado, e
propositadamente devagar. Su Kyi tinha a impressão de ir a puxar um animal
teimoso. De súbito, ouviram o canto das crianças vindo do mosteiro e pararam. As
vozes tranquilizaram-no. Era como se alguém lhe acariciasse o rosto e a barriga.
Permaneceu parado à escuta. Ao canto viera juntar-se o sussurro suave da
folhagem. Não era só no Inverno que sussurrava. Tin Win apercebia-se de que, à
semelhança da voz humana, ela tinha um som, que o seu sussurro possuía matizes,
como as cores. Ouvia ramos finos a roçar uns nos outros, e as folhas a
acariciar-se. Ouvia-as cair no chão à sua frente e notava que, mesmo ao
esvoaçarem no ar, nenhuma produzia um som idêntico. Sussurros, murmúrios,
assobios, pipilares, cicios, rumores... Um pressentimento de que não ousava
falar foi-se apoderando dele. Haveria, paralelamente ao mundo das formas e das
cores, um mundo das vozes e dos sons, dos ruídos e dos tons? Um reino oculto dos
sentidos, que nos cercava sem que déssemos por isso e ainda mais emocionante e
misterioso do que o mundo dos que viam?
Tinha descoberto o dom do ouvido.
Muitos anos depois, em Nova Iorque, haveria de se lembrar desse momento ao
entrar pela primeira vez numa sala de concertos e ao ouvir a orquestra começar a
tocar. Ficou ébrio de felicidade quando ouviu o toque leve dos címbalos, vindo
do fundo, que abria a peça, acompanhado logo depois pelos violinos, pelas violas
e violoncelos, pelos oboés e flautas. Iniciavam um canto idêntico ao das folhas
naquela manhã de Verão em Kalaw. Primeiro, cada instrumento por si, depois todos
em uníssono, subjugando-lhe de tal modo os sentidos que o suor irrompia e a
respiração lhe faltava.
Su Kyi continuava a arrastá-lo e ele cambaleava a seu lado como que embriagado
por estas impressões. Meia dúzia de metros à frente a sensação já passara, tão
depressa como viera. Tin Win ouvia os próprios passos e a respiração pesada de
Su Kyi, o coro dos rapazes e uns galos a cantar... mais nada. Mas pela primeira
vez tivera a percepção do mundo e das suas maravilhas, com uma intensidade tal
que chegava a magoar, tornando-se por vezes quase insuportável.
E foi assim que tudo começou, sem que ninguém nesse dia tivesse realmente dado
por isso.
*
O dia já clareara quando chegaram ao mosteiro. Rodeado por vários monges mais
velhos, U May estava sentado no átrio a meditar. Um jovem monge estava sentado
num pequeno banco por baixo da cozinha a partir ramos secos. Dois cães à solta
brincavam à sua volta e não paravam de ladrar. Junto à escada, em fila, via-se
uma dúzia de noviços de cabeça rapada recentemente e vestindo hábitos vermelhos.
Cumprimentaram Tin Win e deram a Su Kyi um dos panos vermelho-esaros para ele.
Ela colocou-lho à volta do corpo estreito. Na noite anterior rapara-lhe a cabeça
e, ao vê-lo agora de pé entre os outros monges, tinha de novo oportunidade de
constatar como ele estava alto para a idade e como se tinha tornado um belo
rapaz. Nuca pronunciada e pescoço esguio, um narii saliente, sem ser demasiado
grande, dentes brancos como as flores da pereira defronte de casa. A pele era
cor de canela clara e, apesar dos múltiplos trambolhões e feridas, só ficara com
duas cicatrizes nos joelhos. As mãos eram estreitas, os dedos compridos e finos,
e ninguém que lhe olhasse para os pés diria que nunca tinham conhecido sapatos.
Apesar do tamanho, sentia-o vulnerável, como um pintainho a correr assustado
pelo pátio. O aspecto dele comovi-a. Havia momentos em que as lágrimas lhe
vinham aos olhos ao pensar na sua solidão e na sua desdita. Detestava esse tipo
de sentimentalismos. Não queria sentir pena dele, queria ajudá-lo, e nesse caso
a pena não era boa conselheira.
Custava-lhe ter de o deixar, ainda que fosse apenas por
semanas. U May propusera-lhe tomar conta de Tin Win por algum tempo; estava
convencido de que a companhia dos outros rapazes iria fazer-lhe bem, que a
meditação colectiva e as aulas, a tranquilidade e a rotina do dia-a-dia no
mosteiro poderiam ajudá-lo a sentir-se seguro e confiante.
Os noviços levaram-no para o meio deles, puseram-lhe uma tigela preta numa das
mãos e na outra uma cana de bambu. O monge à sua frente tinha a extremidade da
cana entalada sob o braço; o objectivo era guiar Tin Win em segurança pelo
povoado. Pouco depois, o grupo pôs-se em movimento, com passada curta e
prudente, para que os cegos pudessem acompanhar sem esforço. Os noviços
transpuseram o portão, viraram depois à direita e, com passo cadenciado e
vagaroso, dirigiram-se para a rua principal. Sem que Tin Win se tivesse
apercebido, acertaram o ritmo da marcha pelo seu, acelerando o passo quando ele
o impunha ou caminhando mais devagar quando se mostrava inseguro e a passada se
tornava mais lenta. Em frente de quase todas as casas havia um homem ou uma
mulher com um tacho de arroz ou legumes cozinhados para os monges logo ao romper
do dia. O cortejo detinha-se, as pessoas enchiam as tigelas dos noviços e faziam
uma vénia em sinal de humildade.
Tin Win não largava a thabeik nem a cana de bambu. Habituara-se a trazer consigo
um cajado comprido sempre que andava pelos campos. Fazia-o girar de um lado para
o outro como se fosse o prolongamento do braço e com ele podia apalpar o chão e
precaver-se de buracos, ramos e pedras. A cana de bambu que levava na mão não
tinha a mesma função, tornando-o dependente do monge que seguia à sua frente. O
facto de ter de percorrer a povoação sem ser na companhia de Su Kyi deixava-o
nervoso. Sentia a falta da sua mão, da sua voz, do seu riso. Os monges eram
muito calados. Tirando um «obrigado» suave proferido sempre que alguém lhes
enchia a tigela, não diziam nada, e o seu silêncio só contribuía para que se
sentisse ainda mais inseguro. Nem uma hora levou até Tin Win notar que os seus
pés descalços iam ganhando segurança aos poucos no chão arenoso. Não tropeçara.
Não caíra.
Nem as pequenas irregularidades do terreno nem os buracos o tinham feito perder
o equilíbrio. As mãos descontraíram-se. A passada passou a ser maior e mais
rápida.
De regresso ao mosteiro, ajudaram-no a subir a escada até ao terraço. Era uma
escada íngreme, sem corrimão e com degraus estreitos, e Tin Win pensou poder
subi-la sozinho. Mas dois monges pegaram-lhe na mão, um terceiro amparou-o
firmemente por trás e Tin Win ia dando um passo de cada vez. Como se estivesse a
aprender a andar.
Sentaram-se no chão da cozinha e comeram o arroz e os legumes. As chamas da
fogueira faziam labareda; por cima, estava pendurada uma caldeira coberta de
fuligem e amolgada com água a ferver. Tin Win achava-se sentado no meio dos
outros, não tinha fome e sentia-se cansado. Dir-se-ia que escalara uma montanha.
Não sabia o que o deixara mais fatigado: se a longa caminhada, se ter de confiar
no noviço que seguia à sua frente. Estava tão exausto que mal conseguiu prestar
atenção à lição de U May e à tarde, durante a meditação, deixou-se adormecer.
Foi despertado pelo riso dos monges.
À noite ficou acordado durante muito tempo. Só agora se lembrava de novo dos
ruídos maravilhosos que ouvira de manhã. Teria mesmo escutado todas aquelas
sonoridades estranhas, ou tudo não teria passado de um sonho? Se não fora uma
partida dos sentidos, onde estavam todos esses sons agora? Por que razão, por
mais que apelasse aos seus ouvidos, só conseguia ouvir o roncar dos outros
monges? Queria sentir de novo a intensidade sonora de horas antes, mas quanto
mais se esforçava menos ouvia. Por fim, até o fragor do ressonar à sua volta já
só lhe chegava sumido ao longe.
Nas semanas seguintes, Tin Win procurou partilhar com os monges o seu dia-a-dia.
Todos os dias confiava um pouco mais na cana de bambu, saboreando o prazer de
andar pela aldeia sem medo de cair ou de sofrer algum acidente. Aprendeu a
varrer o pátio e a lavar roupa, passando muitas tardes a esfregar os hábitos dos
monges numa tábua dentro de um tanque até os dedos lhe doerem da água fria.
Ajudava a lavar a louça e revelou-se particularmente hábil a atear a lenha.
Bastava-lhe apalpar ao de leve um ramo para dizer aos outros se era possível parti-lo sobre
o joelho ou se era preciso uma pedra. Em breve conseguia reconhecer os monges
não só pela voz, mas também pelo ruído que faziam a mastigar, pela forma de
tossir e de arrotar, pelo modo como caminhavam sobre o soalho, pelo barulho das
plantas dos pés na madeira.
Os melhores momentos eram as horas passadas com U May. Os miúdos sentavam-se de
pernas cruzadas à volta do velho monge, em semicírculo, e Tin Win ficava na
primeira fila, a menos de dois metros do ancião. A sua voz continuava a ter a
mesma força e a mesma magia que tanto o haviam impressionado aquando do primeiro
encontro. Mesmo quando se calava e dava a palavra ao jovem monge que o
auxiliava, Tin Win sentia-o próximo. Essa proximidade tranquilizava-o.
Transmitia-lhe um sentimento de segurança que ele habitualmente não tinha.
Muitas vezes, já depois de os outros se terem ido embora, Tin Win permanecia
sentado; arrastava-se então para mais perto de U May e bombardeava-o com
perguntas. Interessava-o sobretudo a cegueira de U May.
- Porque não consegues ver? - perguntou-lhe Tin Win certo dia.
- Quem disse que eu não consigo ver?
- A Su Kyi. Ela diz que tu és cego.
- Eu? Cego? Há muitos anos, perdi a visão, é certo. Mas isso não faz de mim um
cego. Vejo de forma diferente. Após uma breve pausa, perguntou-lhe: - E tu? És
cego?
Tin Win reflectiu.
- Consigo distinguir o claro do escuro, mais não.
- Não tens um nariz para cheirar?
- Tenho.
- Mãos para apalpar?
- Claro.
- Ouvidos para ouvir?
- Bem entendido.
Tin Win hesitou. E se contasse a U May a experiência auditiva que tivera? Mas já
haviam decorrido umas semanas sobre o sucedido e por vezes não estava certo de
que tudo não tivesse passado de imaginação sua. Preferiu não dizer nada.
- De que mais precisas tu? - perguntou U May. -- Aquilo que é essencial os olhos
não vêem. - Seguiu-se um longo silêncio e U May continuou: - Os nossos órgãos
dos sentidos gostam de nos induzir em erro e os olhos, sob esse aspecto, são os
mais enganadores. Incitam-nos a que confiemos demasiado neles. Julgamos ver o
que existe à nossa volta, mas apenas distinguimos o que está à superfície.
Precisamos de aprender a captar a essência das coisas, a sua substância, e os
olhos impedem-nos de o fazer. Eles distraem-nos, e nós deixamo-nos cegar de bom
grado. Quem confia demasiado nos olhos menospreza os outros sentidos, e não me
estou a referir apenas ao ouvido e ao olfacto. Estou a falar daquele outro órgão
que vive em nós e para o qual não temos um nome. Chamemos-lhe a bússola do nosso
coração.
Tin Win não compreendia o que U May queria dizer e fez menção de lhe perguntar
qualquer coisa, mas o ancião não lhe deu tempo para formular a pergunta.
Estendeu-lhe as mãos e Tin Win ficou surpreendido com o calor que emanavam.
- Tens de aprender a lembrar-te disso - continuou. Parece mais fácil do que de
facto é. Quem não tem olhos precisa de se manter alerta. Tem de sentir cada
movimento e cada sopro. Quando deixo de estar alerta ou me distraio, os meus
órgãos dos sentidos induzem-me em erro, pregam-me partidas, como as crianças
rabinas quando precisam que lhes dêem atenção. Por exemplo, se fico impaciente.
Nessas alturas gostaria que tudo andasse mais depressa, os meus movimentos são
precipitados, entorno o chá ou a tigela com a sopa. Não ouço o que os outros me
dizem, porque os meus pensamentos já estão algures, noutro sítio. Ou quando me
deixo dominar pela cólera. Uma vez, zanguei-me com um dos monges mais novos e,
pouco depois, quando entrei na cozinha, caí no lume. Não ouvira o crepitar da
lenha, nem sentira o cheiro. A cólera baralhara-me os sentidos. O problema não
são os olhos ou os ouvidos, Tin Win. A cólera é que nos torna cegos e surdos.
Inveja e desconfiança. Se tiveres medo ou te encolerizares, o mundo encolhe, sai
fora dos eixos. Acontece connosco como com qualquer outra pessoa que veja de
ambos os olhos. Só que essa não o nota.
U May tentou erguer-se. Tin Win deu um pulo para o ajudar. O ancião apoiou-se no
ombro dele e os dois atravessaram o átrio em direcção ao terraço. Começara a
chover. Não era uma daquelas chuvadas fortes, apenas uma ténue e cálida chuva de
Verão; vinda do telhado, a água tombava-lhes aos pés. U May inclinou-se para a
frente, e a chuva caiu-lhe no crânio rapado, escorrendo pelo pescoço e pelas
costas. Tin Win sentia a água na cabeça, escorrendo pela testa, pelas faces e
pelo nariz. Abriu a boca e pôs a língua de fora até sentir os pingos da água na
ponta.
FIM
ϟ
Na Birmânia ficou o meu coração
Autor:
Jan-Philipp Sendker
Título original: DAS HERZENHÖREN (2002)
Tradução de Manuela Pena Gomes
Editora:
Círculo de Leitores
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