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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


Ligar, desligar

Colleen McCullough

 

- Espero que não considere a minha pergunta impertinente, Claire, mas sempre foi cega? - perguntou.

- Oh, sim - disse ela em tom animado. - Sou um daqueles bebés de incubadora a quem deram oxigénio puro. Culpe a ignorância da época.

A vaga de piedade que sentiu fê-lo desviar os olhos para um grupo de fotografias emolduradas numa das paredes, algumas das quais tão antigas que eram apenas daguerreótipos de tom sépia. Uma forte semelhança familiar era comum a todos os rostos: feições rectas e duras, sobrancelhas muito marcadas e cabelo escuro e espesso. A única diferente era evidentemente a mais recente: uma mulher idosa, cujo rosto recordava muito mais os de Charles e Claire, desde o cabelo fino aos olhos claros e húmidos e às feições longas e lúgubres. A mãe? Se assim fosse, então eles não tinham saído aos Ponsonby, mas sim a ela.

- A minha mãe - disse Claire com uma capacidade inquietante de perceber o que se passava no mundo dos que vêem. - Não deixe que a minha presciência o incomode, tenente. Em certa medida, é apenas um truque.

- Vejo que é a vossa mãe, e que se parecem ambos mais com ela do que com a linhagem Ponsonby.

- Ela era uma Sunnington de Cleveland, e é verdade que nós saímos mais aos Sunnington. A mamã morreu há três anos, uma morte misericordiosa. Sofria de demência muito severa. Mas não se pode pôr uma Filha da Revolução Americana num lar de velhotas senis, portanto fui eu que cuidei dela até ao amargo final. Com alguma ajuda excelente das autoridades do condado, tenho de o dizer.

- "Então é a casa de uma FRA, pensou Carmine. "Ponsonby e a irmã provavelmente não votam em ninguém à esquerda de Genghis Khan."

Levantou-se, ligeiramente tonto; os Ponsonby serviam o seu xerez em copos de vinho, não em cálices.

- Obrigado pela hospitalidade, agradeço muito - olhou para a cadela, deitada de olhos postos nele. - Adeus, Biddy. Foi um prazer conhecer-te.

- O que pensas do bom tenente Delmonico? - perguntou Charles Ponsonby à irmã quando voltou para a cozinha.

- Que não deixa passar muita coisa - disse ela, misturando claras em castelo no molho de queijo e espinafres.

- É verdade. Amanhã vão andar a espezinhar a nossa floresta.

- Importas-te?

- Nem um pouco - disse Charles, despejando o souflé na caçarola e colocando-a no forno quente. - Mas tenho pena dele. As buscas em vão devem ser exasperantes.


- O Carmine parece em baixo - murmurou Marciano a Patrick.

- Ele e a Desdemona não se falam. O comissário Silvestri pigarreou.

- Então quantos é que se recusaram a deixar-nos dar uma vista de olhos sem mandato?

- De uma maneira geral, foram bastante cooperativos - disse Carmine, que parecia de facto em baixo. - Consegui ver tudo o que pedi para ver, embora tenha tido o cuidado de ter sempre pelo menos um deles comigo. Não pedi autorização a Charles Ponsonby para inspeccionar a floresta porque achei que não valia a pena. Se o Corey e o Abe encontrarem algum rasto recente no meio desta neve toda, ou evidências de rastos recentes que tenham sido cobertos, então pedirei. Mas aposto que os oito hectares estão intactos, porquê aborrecer o Chuck e a Claire antes do tempo?

- Gosta da Claire Ponsonby - disse Silvestri, fazendo uma afirmação.

- Sim, gosto. É uma mulher fantástica, não guarda qualquer ressentimento. - Afastou-a da mente. - Para responder à sua pergunta original, até agora ouvi recusas do Satsuma, do Chandra e do Schiller, os três estrangeiros. Aposto que o Satsuma enviou o seu peão particular, Eido, para a casa de Cape Cod, dez segundos depois de eu ter saído do apartamento dele. O Chandra é um filho da mãe arrogante, mas isso é provavelmente compreensível, sendo o primeiro filho de um marajá. Mesmo que conseguíssemos um mandato, ele queixar-se-ia à Embaixada da índia, e essa é uma nação muito sensível e agressiva. O Schiller é um caso mais patético. Não suspeito que seja capaz de nada mais estranho do que ter muitas fotografias de rapazes nus nas paredes, mas não insisti por causa da tentativa de suicídio. Foi a sério, não apenas uma encenação.

Carmine sorriu.

- Por falar em fotografias de homens nus, encontrei uma extraordinária no quarto da Tâmara Vilich, no meio das correntes e do cabedal. Nem mais nem menos do que o ambicioso neurocirurgião, Keith Kyneton, que, despido, fica melhor do que o Mr. Universo. Dizem que estes tipos do culturismo o fazem para compensar um pénis pequeno, mas não posso dizer que seja o caso dele. Tem um instrumento digno de uma estrela pornográfica.

- Vejam só, quem diria? - disse Marciano, recostando-se na cadeira para evitar o fumo do charuto de Silvestri; por que diabo tinha de estar sempre debaixo do nariz dele? - Isso elimina os Kyneton? Ou a Tâmara Vilich?

- Não completamente, Danny, apesar de nunca terem estado em lugar de destaque na minha lista. Ela pinta quadros muito doentios e é uma dominadora.

- Então o Keith gosta de levar porrada.

- É o que parece. No entanto, a Tâmara não lhe pode deixar marcas, senão a esposa devotada repararia. É da mãe dele que tenho mais pena.

- Mais uma de quem gosta - disse Silvestri.

- Bom, seria preocupante se não gostasse de ninguém.

- Quais são os teus planos agora? - perguntou Marciano.

- Confrontar a Tâmara com a história dos Kyneton.

- Isso não te custará nada. Já percebi que dela não gostas.

Apanhou-a no gabinete dela.

- Vi a fotografia do Keith Kyneton por baixo da da sua mãe - disse, sem rodeios, admirando o espírito dela; os seus olhos, mais esverdeados sob esta luz, ergueram-se para o rosto dele sem sinais de medo.

- O sexo não é um homicídio, tenente - disse ela. - Nem sequer é um crime, entre adultos responsáveis.

- Não estou interessado no sexo, Miss Vilich. Quero saber onde se encontram para o fazer.

- Na minha casa, no meu apartamento.

- Com metade da vizinhança a trabalhar algures na Faculdade de Medicina da Chubb ou na Colina da Ciência? Com certeza que, mais cedo ou mais tarde, alguém que conhecesse Kyneton ou o seu carro o veria. Acho que têm um esconderijo noutro sítio qualquer.

- Está enganado, não temos. Sou solteira, vivo sozinha e o Keith certifica-se de que não há ninguém à vista se chegar antes de escurecer. Mas nunca chega antes de escurecer. É por isso que eu adoro o Inverno.

- E os vizinhos que possam estar a espreitar por trás das cortinas? O seu caso com o doutor Kyneton dá-lhe uma dupla ligação ao Hug. A mulher e a amante trabalham aqui. A mulher dele sabe?

- Vive na ignorância total, mas suponho que você vai dar com a língua nos dentes - disse Tâmara com ar amuado.

- Eu não dou com a língua nos dentes, Miss Vilich, mas tenho de falar com o Keith Kyneton para me certificar de que não existe um esconderijo algures. A vossa relação cheira-me a violência, e a violência geralmente implica um esconderijo seguro.

- Onde os gritos não possam ser ouvidos. Nunca chegamos tão longe, tenente, é mais uma questão de representar determinados cenários - disse ela. - A professora severa com o aluno mal comportado, a polícia com as suas algemas e bastão... sabe como é. - A sua expressão alterou-se e Tâmara estremeceu. - Ele vai deixar-me. Oh, meu Deus, que hei-de fazer? Que hei-de fazer depois de ele me deixar?

"O que só mostra", pensou Carmine depois de sair, "como as ideias feitas podem estar erradas. Eu pensava que ela não amava ninguém para além de si própria, mas afinal é louca por um imbecil como Keith Kyneton, o que talvez explique os seus quadros. Eles representam como ela se sente em relação ao amor - que tristeza, odiar o amor!

Porque sabe que o Keith só lá vai pelo sexo. É Hilda quem ele ama - se for capaz de amar alguém."

Tâmara apanhou-o no elevador.

- Se se apressar, tenente, encontrará o doutor Kyneton entre operações - disse ela. - Hospital de Holloman, décimo andar. O melhor caminho é pelo túnel.

O túnel era tão sinistro como todos os túneis; depois de explorar o labirinto de túneis em que os japoneses viviam em algumas ilhas do Pacífico, durante a Guerra, Carmine temia-os. Em Londres, tivera de fazer um esforço para descer às profundezas da terra para atravessar os túneis do metropolitano. Nos túneis havia uma espécie de ronco, uma raiva transmitida pela terra ultrajada e invadida. Por mais vazios ou vivamente iluminados que fossem, os túneis sugeriam sempre terrores escondidos.

Percorreu os cem metros do túnel do Hug, virou para o corredor da direita e saiu na cave do hospital, perto da lavandaria.

Todas as salas de operações eram no décimo andar, mas o Dr. Keith Kyneton estava à espera dele junto dos elevadores, com uma bata verde e um par de máscaras de algodão ao pescoço.

- Privado, tenho de insistir para que mantenhamos isto privado - disse o neurocirurgião num murmúrio. - Aqui, depressa!

"Aqui" era uma sala de armazenamento atafulhada de caixas de material, sem cadeiras ou qualquer atmosfera que Carmine pudesse utilizar para causar efeito.

- Miss Vilich contou-lhe, não foi? - perguntou o doutor. - Nunca quis que ela tirasse aquela maldita fotografia!

- Devia tê-la rasgado.

- Oh, céus, será que não compreende, tenente? Ela queria-a! A Tâmara é... é fantástica.

- Acredito, para quem tenha gostos bizarros. A Enfermeira Cateter e o seu estojo de clisteres. Quem começou, ela ou o senhor?

- Honestamente, não me lembro. Estávamos ambos bêbados, numa festa do hospital a que a Hilda não pôde ir.

- Há quanto tempo foi isso?

- Há dois anos. No Natal de mil novecentos e sessenta e três.

- Onde é que se encontram?

- Em casa da Tâmara. Tenho sempre muito cuidado a entrar e a sair.

- Em mais lado nenhum? Não têm nenhum esconderijozinho secreto no campo?

- Não, só em casa dela.

De súbito Kyneton virou-se, segurou nos braços de Carmine, trémulo, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.

- Tenente! Por favor, suplico-lhe, não conte a ninguém! A minha sociedade em Nova Iorque está quase concretizada mas, se descobrirem uma coisa destas, perderei a minha oportunidade! - exclamou.

Com a mente repleta de imagens de Ruth e Hilda, dos seus constantes sacrifícios por este bebé grande e mimado, Carmine libertou-se violentamente.

- Não me toque, seu maldito egoísta! Estou-me borrifando para a sua preciosa clínica em Nova Iorque, mas por acaso gosto da sua mãe e da sua mulher. Não merece nenhuma delas! Eu não falarei nisto a ninguém, mas não pode ser estúpido ao ponto de pensar que Miss Tâmara Vilich será igualmente caridosa, com certeza! Você acabará por deixá-la, por mais fantástico que seja o sexo bizarro, e ela retaliará como qualquer outra mulher desprezada. Amanhã, todas as pessoas que são importantes para si saberão. O seu professor, a sua mãe, a sua mulher e os médicos de Nova Iorque.

Os ombros de Kyneton abateram-se. Procurou em vão uma cadeira e encostou-se a um caixote de compressas.

- Oh, meu Deus, meu Deus, estou arruinado*.

- Recomponha-se, Kyneton, por amor de Deus! - exclamou Carmine. - Não está arruinado... ainda. Encontre alguém que o substitua na próxima operação, mande a sua mulher para casa e siga-a. Quando estiver sozinho com ela e com a sua mãe, confesse. Ponha-se de joelhos e implore o perdão delas. Jure nunca mais o fazer. E não esconda nada. Tem lábia suficiente para as conquistar. Mas Deus o ajude se não tratar bem aquelas duas mulheres daqui para a frente, está a ouvir? Para já não vou acusá-lo de nada, mas não pense que não consigo encontrar qualquer coisa de que o acusar, se quiser, e vou estar de olho em si enquanto for polícia. Mais uma coisa. Da próxima vez que fizer compras no Borks Brothers, compre qualquer coisa bonita para a sua mãe e para a sua mulher no Bonwit's.

"Teria o filho da mãe prestado atenção? Sim, mas só àquilo que achou que poderia servir para o salvar."

- Nada disso me ajuda em relação à sociedade.

- Claro que sim! Desde que a sua mãe e a sua mulher estejam do seu lado. Entre os três, podem fazer com que a Tâmara Vilich pareça uma mulher frustrada a dizer uma carrada de mentiras.

As engrenagens estavam a girar; Kyneton animou-se visivelmente.

- Sim, sim, estou a ver o que quer dizer! É a melhor maneira!

Um instante depois, Carmine estava só. Keith Kyneton desaparecera para tapar os seus buracos, sem uma palavra de agradecimento.

- O que é que o senhor julga que está aqui a fazer? - inquiriu uma voz feminina irada.

Carmine mostrou o impressionante distintivo dourado à enfermeira, que parecia prestes a chamar a segurança do hospital.

- Estou a fazer penitência, minha senhora - disse ele. - Uma penitência terrível.

O mundo, quando estava coberto de neve fresca, era tão bonito; assim que despiu os abafos, Carmine virou uma das poltronas para a janela enorme que dava para o porto e apagou todas as luzes interiores. O amarelo vivo das luzes da auto-estrada ofendia-o, mas, quando reflectido pelos mantos de neve, era mais suave, mais dourado.

O gelo estava a começar a aproximar-se, vindo da costa leste, apesar de os molhes ainda serem um vazio escuro, salpicado de centelhas; estava demasiado vento para reflexos longos e ondulantes. Os ferrys estavam parados até Maio.

O que havia de fazer em relação a Desdemona? Todas as suas tentativas de abordagem tinham sido rejeitadas, todos os seus bilhetes com pedidos de desculpa devolvidos por abrir, enfiados por baixo da sua porta. Até este momento não compreendia honestamente o porquê de ela ter ficado tão mortalmente ofendida, de estar a ser tão inflexível - sim, ele ultrapassara os limites, mas não era natural que todas as pessoas discutissem de vez em quando, discordassem em alguma coisa? Isto tinha algo a ver com o orgulho dela, mas Carmine não conseguia perceber exactamente o quê. Aquela barreira entre nacionalidades erguera-se, demasiado alta para conseguir espreitar por cima. Teria sido a sua observação sobre comprar um vestido de vez em quando, ou simplesmente o facto de se ter atrevido a questionar o comportamento dela? Teria feito com que ela se sentisse menos feminina, ou grotesca, ou... ou...

- Desisto - disse, apoiando o queixo na mão, e tentou pensar no Fantasma. Era o seu novo nome para o Monstro, que não tinha nada em comum com a concepção popular dos monstros. Ele era um fantasma.


- Vou dar um passeio, querida - disse Maurice Finch a Catherine quando se levantou da mesa do pequeno-almoço. - Não me apetece muito ir trabalhar hoje, mas vou pensar nisso enquanto passeio.

- Claro, fazes bem - disse a mulher, olhando pela janela para o termómetro do exterior. - Está muito frio, por isso agasalha-te... e, se decidires ir trabalhar, põe o carro a aquecer quando voltares. - Catherine achava que ele parecia consideravelmente mais animado ultimamente, e sabia porquê. Kurt Schiller voltara ao Hug e falara com Maurice para lhe garantir que não fora a discussão entre ambos a causa da tentativa de suicídio. Segundo parecia, o amor da vida dele trocara-o por outra pessoa. O imbecil do nazi (a opinião de Catherine sobre Schiller não se alterara um milímetro) não entrara em pormenores, mas ela calculava que os homens que gostavam de homens eram tão vulneráveis como os homens que gostavam de mulheres; alguma lambisgóia - que importava o sexo da lambisgóia em questão? - fartara-se de ser adorada e sentira necessidade de alguém com uma abordagem diferente e, talvez, uma conta bancária mais choruda.

Viu Maurie da janela enquanto ele se afastava pelo caminho gelado que levava ao pomar de macieiras, o seu local preferido. Eram árvores velhas, nunca tinham sido podadas para manter a produção de frutos a um nível relativamente baixo, mas na Primavera isso transformava-as num mar de flores brancas que deixava uma pessoa de boca aberta, e no Outono ficavam carregadas de frutos vermelhos e brilhantes que pareciam decorações de árvore de Natal. Vários anos antes, Maurie decidira orientar alguns dos ramos de forma a formar arcos; a velha madeira rangera em protesto, mas Maurie fizera-o de forma tão gentil e lenta que agora os carreiros entre as árvores eram como as naves de uma catedral.

Maurice desapareceu e ela virou-se para lavar a loiça.

Depois ouviu um grito agudo e horripilante. Um dos pratos caiu e desfez-se em cacos, enquanto Catherine pegava num casaco e saía a correr. Os chinelos escorregaram e deslizaram no gelo, mas conseguiu manter o equilíbrio. Outro grito! Sem sentir sequer a temperatura negativa, correu mais depressa.

Maurie estava de pé junto do maravilhoso muro de pedra que circundava o pomar, olhando por cima dele para algo que cintilava em cima do monte de neve, dura como pedra, que se acumulara junto do muro durante o último nevão.

Catherine olhou também e depois puxou-o com ela, de volta para o calor da cozinha, para a sanidade. Para onde podia chamar a polícia.

Carmine e Patrick estavam de pé onde Maurice Finch estivera" uma vez que os pés dele tinham eliminado quaisquer outras pegadas que pudessem ter existido antes - altamente improvável, de qualquer maneira, na opinião de ambos os homens.

Margaretta Bewlee estava inteira, à excepção da cabeça, que não se via em lado nenhum. Contra a brancura estonteante, a sua pele cor de chocolate parecia ainda mais escura, o cor-de-rosa das palmas das mãos e das solas dos pés condizendo com a cor do vestido que trazia: uma peça de renda cor-de-rosa, bordado com pedras brilhantes. Era suficientemente curto para deixar ver um par de cuecas de seda cor-de-rosa, manchadas de forma sinistra.

- Meu Deus, é tudo diferente! - disse Patrick.

- Vemo-nos na morgue - disse Carmine, dando meia volta. - Se ficar aqui, vou atrasar-te.

Entrou, encontrando os Finch sentados muito juntos à mesa do pequeno-almoço, com uma garrafa de vinho Manischewitz entre os dois.

- Porquê eu? - perguntou Finch, lívido.

- Beba mais um pouco de vinho, doutor Finch. E, se soubéssemos a resposta a essa pergunta, talvez tivéssemos uma boa oportunidade de apanhar este filho da mãe. Posso sentar-me?

- Sente-se, sente-se! - exclamou Catherine, indicando um copo limpo. - Beba um pouco, também deve estar a precisar.

Apesar de não gostar muito de vinho doce, o Manischewitz ajudou; Carmine pousou o copo e olhou para Catherine.

- Ouviu alguma coisa durante a noite, Mrs. Finch? Está tanto frio que tudo faz barulho.

-Absolutamente nada, tenente. Depois de chegar a casa, o Maurie esteve algum tempo a pôr turfa e adubo no seu túnel dos cogumelos, mas às dez horas estávamos na cama e dormimos até às seis da manhã de hoje.

- Túnel de cogumelos?

- Pensei em ver se conseguia cultivar algumas das variedades de gourmet - disse Finch, parecendo um pouco melhor. - Os cogumelos são um produto muito fino, mas não compreendo porquê, depois de ver como crescem num campo.

- Importa-se que revistemos a sua propriedade, doutor? Receio que a descoberta de Margaretta aqui o torne necessário.

- Faça o que quiser, faça o que for preciso para apanhar esse monstro! - Finch levantou-se, como um velho. - No entanto, acho que sei por que razão não ouvimos nada, tenente. Quer ver?

- Claro.

Com cuidado para não pisar nenhuma zona de terreno que parecesse ter sido remexida, Maurice Finch conduziu Carmine através da área das estufas, depois entre os dois grandes telheiros aquecidos onde estavam as galinhas de Catherine. Finalmente, a uns bons quinhentos metros da casa, Finch parou e apontou.

- Está a ver aquele caminho? Vem desde um portão na estrada cento e trinta e três e termina ao fundo do pomar. Limpamo-lo com o tractor por causa do regato... quando o regato transborda, corta o acesso da nossa casa à cento e trinta e três. Se o Monstro soubesse da existência deste caminho, podia usá-lo e nós nunca o ouviríamos.

- Muito obrigado, doutor Finch. Volte para junto da sua mulher.

Finch obedeceu sem protestar, enquanto Carmine ia à procura de Abe e Corey para lhes explicar onde deviam procurar sinais do fantasma. "Ele é um fantasma, entrou e saiu como um fantasma, mas é um fantasma muito bem informado, este fantasma. A propriedade de Maurice Finch está cruzada pelos seus rastos, mas o fantasma sabe onde está cada um. E fez uma boa pergunta, doutor Finch: "Porquê eu?" De facto, porquê?" Carmine fez os possíveis por estar de volta ao edifício dos Serviços Municipais antes de Patrick trazer o corpo de Margaretta; esta era uma autópsia que queria ver do princípio ao fim.

- Ela foi colocada em cima de um monte de neve gelada, gelo sólido, mas desconfio que já estava congelada quando ele a largou ali - disse Patrick, enquanto ele e Paul tiravam cuidadosamente o corpo do saco. - O solo está gelado em todo o lado, nada mais pequeno do que uma retroescavadora conseguiria escavar para a enterrar, mas desta vez ele não estava a tentar escondê-la, nem mesmo por pouco tempo. Largou-a bem à vista, com um vestido cintilante.

Os três homens olharam para Margaretta e para o seu vestido peculiar.

- Não vi muitas vezes a Sophia com vestidos de festa - disse Carmine - , mas tu, com tantas raparigas, Patsy, deves ter visto dezenas de vestidos de festa. Isto não é o vestido de uma adolescente, pois não? Ela foi enfiada num vestido de criança.

- Sim. Quando a levantámos vimos que não estava abotoado nas costas. Os ombros da Margaretta são demasiado largos, mas os seus braços são finos, por isso, de frente, ele conseguiu fazer com que parecesse bem.

O vestido tinha mangas de balão, com punhos estreitos, e cintura própria para um corpo de criança - larga e um pouco baixa. Numa criança de dez anos chegaria provavelmente aos joelhos; nesta jovem mal tapava o cimo das coxas. A renda rosa-coral era francesa, calculou Carmine; renda cara, bordada numa base de tule fino mas forte. Depois alguém cosera o que pareciam ser várias centenas de pedras brilhantes transparentes em todo o vestido, num padrão semelhante ao da renda; cada pedra estava perfurada na ponta para deixar passar a linha. Um trabalho manual minucioso, que devia ter adicionado muitos dólares ao preço. Teria de mostrar isto a Desdemona para ter uma estimativa mais exacta da qualidade e do valor.

Viu Patrick e Paul despirem o estranho vestido a Margaretta, com o cuidado de o preservarem intacto. Uma das razões pelas quais gostava tanto do primo, era o respeito de Patrick pelos mortos. Por mais repugnantes que fossem alguns dos corpos que encontrava - matéria fecal, vómito, mucos inimagináveis - Patrick lidava com eles como se fossem a obra de Deus, e uma obra feita com amor.

Por baixo do vestido, Margaretta vestia apenas um par de cuecas de seda cor-de-rosa que lhe chegavam à cintura e às coxas: cuecas modestas. Estavam manchadas de sangue entre as pernas, mas não excessivamente. Quando as despiram, viram que ela tinha os órgãos genitais depilados.

- É o nosso homem, não há dúvida - disse Carmine. - Alguma ideia de como morreu, antes de começares?

- Não foi de perda de sangue, isso é certo. A pele está da cor devida e tem apenas uma incisão no pescoço, onde foi decapitada. Não tem marcas de cordas nos tornozelos, embora eu ache que foi presa com a habitual faixa de lona sobre o peito. Talvez ele tenha usado outra na parte inferior das pernas, entre as violações, mas tenho de ver melhor para o verificar. - Comprimiu os lábios. - Acho que desta vez ele a violou até a matar. Não há muito sangue externamente, mas tem o abdómen muito inchado para alguém que ainda não entrou no processo de decomposição. Depois de morrer, foi colocada num congelador até ele entender que era altura de se livrar do corpo.

- Então - disse Carmine, afastando-se da mesa - , espero por ti no teu gabinete, Patsy. Tencionava assistir a esta autópsia, mas acho que não consigo.

Marciano veio ter com ele no exterior.

- Estás um bocado pálido, Carmine. Já tomaste o pequeno-almoço?

- Não, nem quero.

- Claro que queres. - Cheirou o hálito de Carmine. - O problema é que estiveste a beber.

- Chamas bebida a um copo de Manischewitz?

- Não. Até o Silvestri o classificaria como sumo de uvas. Anda daí, podes pôr-me a par das novidades no Malvolio's.

Não conseguira comer muito da torrada com xarope de ácer, mas voltou ao escritório a sentir-se um pouco melhor por ter tentado comer. Este dia ia trazer um sofrimento mental maior do que qualquer outro; tinha um pressentimento de que Mr. Bewlee insistiria em ver os restos mortais da filha, independentemente do que dissesse o sacerdote da sua religião ou de quem se oferecesse para o substituir nesta tarefa terrível. Não poderiam deixá-lo ver algumas partes, mas ele devia conhecer cada linha nas palmas das mãos dela, talvez alguma pequena cicatriz num pé, onde lhe tirara em tempos uma farpa, a forma das unhas... as doces e encantadoras intimidades da paternidade que Carmine nunca vivera. Como é estranho, ter um filho que não se conhece verdadeiramente, que sempre viveu longe de nós e em cuja companhia nos sentimos como um estranho.

Agora que se habituara a chamar fantasma ao assassino, alguns cantos e recessos da sua mente tinham-se deslocado, permitindo que fracos raios de luz incidissem nas suas profundezas; desde a noite em que olhara para o porto de Holloman, sob a neve, Carmine dera por si a pensar em novas linhas, e ver Margaretta Bewlee com o seu vestido de festa, naquela neve gelada, abrira outra porta que o chamava sedutoramente, fora do seu alcance, como um fantasma de uma ideia. Um fantasma...

Depois percebeu. Não era um fantasma. Dois fantasmas.

Como seria mais fácil se fossem dois! A velocidade e o silêncio, a invisibilidade. Dois: um para lançar o isco, outro para puxar a presa. Tinha de haver um isco, algo que uma rapariga de dezasseis anos, tão pura como a neve, engolisse tão avidamente como um salmão engolia a mosca certa. Um gatinho abandonado, um cachorrinho sujo e maltratado?

Éter... éter! Um deles agitava o isco, o outro aproximava-se por trás, como um relâmpago, e colocava um pano ensopado em éter sobre o rosto da rapariga - não lhe dando hipótese de emitir qualquer som, sem correr o risco de levar uma dentada, sem o perigo de a mão lhe escorregar momentaneamente, permitindo um grito. A rapariga ficaria inconsciente em segundos, aspirando o éter para os pulmões enquanto se debatia. Depois duas pessoas para a transportarem, para lhe darem uma injecção, para a enfiarem num veículo ou num esconderijo temporário. Éter... o Hug.

Sônia Liebman estava na sala de operações do Hug, a arrumar as coisas depois de uma sopa de cérebro de ratos. Quando viu Carmine a sua expressão ensombrou-se - mas não por causa dele.

- Oh, tenente, já soube! O pobre Maurie está bem?

- Está. Nem podia não estar, com aquela mulher.

- Então o Hug continua metido nisto, certo?

- Ou alguém quer fazer com que assim pareça, Mrs. Liebman - Fez uma pausa, mas não viu qualquer interesse em ser dissimulado. - Tem algum éter na sala de operações?

- perguntou.

- Claro, mas não éter anestésico, apenas éter anídrico vulgar. Aqui está - disse, conduzindo-o à antecâmara, onde apontou para uma fila de latas numa prateleira alta.

- Funcionaria como anestésico? - perguntou ele, tirando uma lata da prateleira para a examinar. Era mais ou menos do tamanho de uma lata de pêssegos grande, mas com um gargalo curto e estreito encimado por uma tampa metálica. Não uma tampa, mas um selo! O material devia ser tão volátil, pensou, que nem a tampa mais estanque o impediria de se evaporar.

- Eu uso-o como anestésico quando estou a descerebrar gatos.

- Quer dizer quando lhes remove o cérebro?

- Está a aprender, tenente. Sim, é isso.

- Como é que os eteriza?

Em resposta, ela pegou num recipiente feito de plexiglass transparente que se encontrava a um canto; tinha cerca de oitenta centímetros quadrados, setenta e cinco de altura, e uma tampa estanque presa por grampos.

- É uma antiga câmara de cromatografia - disse ela. - Ponho uma toalha grossa no fundo, esvazio uma lata de éter para cima da toalha, enfio o gato lá dentro e fecho a tampa. Na verdade, faço-o lá fora, nas escadas de incêndio, onde a ventilação é melhor. O animal fica inconsciente bastante depressa, mas não se magoa antes de adormecer porque as paredes são lisas.

- E tem alguma importância que se magoe, quando está prestes a perder o cérebro sem sequer voltar a acordar? - perguntou Carmine.

Ela encolheu-se como uma cobra prestes a atacar.

- Sim, seu idiota, claro que tem importância! - disse entre dentes. - Nenhum animal é sujeito a dor ou sofrimento na minha sala de operações! O que pensa que isto é, a indústria de cosméticos? Conheço veterinários que não tratam os animais tão bem como nós!

- Desculpe, Mrs. Liebman, não quis ofendê-la. Perdoe a minha ignorância - disse Carmine, em tom humilde. - Como é que abre a lata? - perguntou, para mudar de assunto.

- Provavelmente há um instrumento próprio - disse ela, mais calma - , mas eu não o tenho, por isso uso um par de tenazes velhas.

Parecia um alicate grande, excepto que as duas pontas côncavas eram oponíveis e mordiam o que fosse colocado entre elas. Por exemplo a macia tampa metálica de uma lata de éter, como Sônia Liebman demonstrou em seguida. Carmine recuou perante o cheiro que pareceu saltar da lata mais depressa do que um génio de uma garrafa.

- Não gosta? - perguntou ela, surpreendida. - Eu adoro.

- Sabe que quantidade de éter tem em armazém?

- Não com exactidão... não é um produto valioso nem importante. Quando vejo que a prateleira está a ficar vazia, simplesmente encomendo mais. Uso-o para descerebrações, mas também é usado para limpar os instrumentos de vidro, se um investigador pretende fazer um teste que exija a ausência completa de qualquer tipo de resíduos.

- Porquê éter?

- Porque temos muito, mas alguns investigadores preferem clorofórmio. - Franziu a testa e, subitamente, pareceu compreender. - Oh, estou a ver onde quer chegar!

O éter não dura muito no corpo, tenente, tal como não se agarra ao vidro. Bastam algumas inalações para o dissipar, eliminando-o dos pulmões e da corrente sanguínea. Não posso usar pentotal ou nembutal para anestesiar um animal para descerebração, porque permanecem no cérebro durante horas. O éter desaparece... puf.

- Não podia usar um gás anestésico?

Sônia Liebman pestanejou, como se estivesse espantada com a estupidez dele.

- Claro que podia, mas porquê? Os humanos colaboram e não têm garras nem presas. Com os animais, é uma injecção de nembutal parentérico ou a câmara de éter.

- A câmara de éter é comum nos laboratórios de investigação? Foi a gota de água. Ela virou-se e começou a arrumar uma série de instrumentos cirúrgicos.

- Não faço ideia - respondeu, numa voz tão fria como o ar lá fora. - Inventei a técnica sozinha e, para mim, isso é tudo o que interessa.

Sentindo-se como se devesse deixar a presença dela às arrecuas e fazendo vénias, Carmine deixou Mrs. Liebman em brasa com a perfeita estupidez dos polícias.

-A Mercedes e a Francine foram brutalmente violadas com uma série de instrumentos, e calculo que ele tenha feito o mesmo com a Margaretta, de início - disse Patrick a Carmine, Silvestri, Marciano, Corey e Abe. - Depois passou a um instrumento novo que deve estar incrustado com farpas e bicos, talvez com uma lâmina na ponta.

Desfez-lhe tudo por dentro... intestinos, bexiga, rins, chegou mesmo ao fígado. Lacerações maciças e múltiplas. Ela morreu de choque antes de poder morrer de hemorragia interna. Havia um pouco de Demerol no seu sangue, portanto, para onde quer que ele tenha levado a Margaretta depois de a raptar, era demasiado longe de Groton para poder contar apenas com o éter depois dos primeiros minutos. A propósito, não encontrei quaisquer vestígios de éter na fronha.

- Esperavas encontrar? - perguntou Marciano.

- Não, mas, quando chegámos a casa dos Bewlee, consegui sentir o cheiro a éter numa pequena prega da fronha.

- Ela perdeu sangue quando foi decapitada? - perguntou Abe.

- Muito pouco. Já estava morta há várias horas quando ele o fez. Uma vez que era muito alta, parece que ele usou uma faixa em cada perna para a prender, para além da faixa do peito.

- Se ela morreu logo, porquê esperar treze dias para se livrar do corpo? O que é que lhe fez? - perguntou Corey.

- Pô-la num congelador suficientemente grande para ela caber deitada.

- Já foi identificada? - perguntou Carmine. O rosto de Patrick contraiu-se.

- Sim, pelo pai. Ele estava tão calmo! Ela tem uma pequena cicatriz na mão esquerda... uma dentada de cão. Assim que a viu, ele disse logo que era a filha, agradeceu-nos e saiu.

A sala ficou em silêncio. "Como é que eu lidaria com a situação se fosse Sophia?", pensou Carmine. Sem dúvida que os outros homens prementes o sentiam ainda mais intensamente, pois todos eles tinham filhas que não tinham partido para a Califórnia antes de os laços estarem devidamente forjados. "O Inferno é bom demais para este animal."

- Patsy - disse Carmine, quebrando o silêncio - , será possível que sejam dois?

- Dois? - repetiu Patrick, sem compreender. - Queres dizer dois assassinos?

- Sim.

Silvestri mordeu o charuto, fez uma careta e atirou-o para o cesto dos papéis.

- Dois como ele? Está a brincar, com certeza!

- Não, John, não estou. Quanto mais penso nesta série de raptos, mais fico convencido de que seriam precisas duas pessoas para os levar a cabo. Daí a pensar em dois assassinos é um passo lógico.

- Um passo de mil metros, Carmine - disse Silvestri. - Dois monstros? Como é que se teriam encontrado um ao outro?

- Não sei, mas talvez através de algo tão comum como um anúncio nos classificados pessoais do National Enquirer. Discreto, mas claro como água para alguém com os mesmos gostos. Ou talvez se conheçam há anos, talvez tenham até crescido juntos. Ou talvez se tenham conhecido por acaso numa festa.

Abe olhou para Corey e revirou os olhos; estavam a imaginar terem de passar vários dias nos arquivos do National Enquirer à procura de um anúncio com pelo menos dois anos.

- Estás a especular, Carmine - disse Marciano.

- Eu sei, eu sei! Mas esqueçam por um momento como eles se terão conhecido e concentrem-se no que acontece à vítima. Percebi que tem de haver um isco. Estas raparigas não são do género de se deixarem atrair por um convite de um homem qualquer, nem de cair na oferta de uma audição para o cinema, nenhum dos ardis que funcionariam em raparigas educadas com menos cuidado. Mas pensem como seria difícil um homem só apanhá-las sem um isco!

Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com o seu raciocínio.

- Por exemplo, a Mercedes, que fechou a tampa do piano, despediu-se da Irmã Theresa e saiu pela porta do anexo de música. E, em algum sítio isolado, sem ninguém por perto, a Mercedes vê algo tão irresistível que tem de se aproximar. Algo que lhe fala ao coração, como um gatinho esfomeado ou um cachorrinho. Mas, como o isco tem de estar no sítio exacto, há mais alguém junto do animal. Enquanto a Mercedes está envolvida, o outro homem ataca. Um para lançar o isco, outro para a apanhar.

Ou pensem na Francine, algures perto das casas de banho, ou mesmo dentro delas. Viu o isco, comoveu-se, foi apanhada. Ainda havia demasiadas pessoas dentro da escola para correrem o risco de a tirar das instalações, portanto colocaram-na dentro do armário dos colchões. Seria muito mais fácil fazer uma coisa dessas à pressa se fossem dois! Era quarta-feira, os ginásios estavam desertos e a sala de química é mesmo ao lado das casas de banho. No caso da Margaretta, a irmã estava a dormir mesmo ao lado. Não usaram isco, mas acham que o assassino correria o risco de a Linda acordar, quando todos os seus planos são tão meticulosos? A segunda pessoa tinha um novo papel, vigiar Linda e agir se ela desse sinais de acordar. Como isso não aconteceu, dois homens não teriam dificuldade em retirar uma rapariga tão alta pela janela, um do lado de dentro, outro do lado de fora.

- Por que raio estás a complicar tanto as coisas? - perguntou Patrick.

- As coisas são tão complicadas como têm de ser, Patsy. Se um assassino não é suficiente, então temos de pensar que são dois.

- Concordo - disse Silvestri subitamente - , mas não vamos dizer uma palavra sobre esta teoria do Carmine a ninguém fora desta sala.

- Mais uma coisa, John. O vestido de festa. Gostava de o mostrar a Desdemona Dupre.

- Porquê?

- Porque ela faz uns bordados incríveis. O vestido não tem etiqueta, nunca ninguém viu outro parecido, e quero tentar descobrir onde começar a procurar a pessoa que o fez. Isso significa que preciso de saber quanto custaria se fosse comprado numa loja, ou quanto é que alguém como a Desdemona levaria por o fazer. Ela aceita encomendas, saberá dar-me uma ideia.

- Muito bem, assim que o Paul já não precisar dele... e se acha que ela não falará nisso a ninguém.

- Confio nela.


O jornal mais lógico para procurar alguém que tivesse colocado um anúncio à procura de um parceiro fosse para o que fosse, desde negócios a sexo ou homicídio, era o National Enquirer, que era lido em todo o país e estava disponível em qualquer supermercado, junto das caixas, entre as pastilhas elásticas e as revistas. Depois de falar com três psiquiatras que se tinham especializado em homicídio, Carmine pôde fornecer a Corey e Abe algumas palavras-chave, antes de os mandar ler os classificados entre Janeiro de 1963 e Junho de 1964. O Fantasma podia ter estabelecido a sua macabra colaboração antes do desaparecimento da primeira rapariga, ou podia ter percebido como a tarefa seria mais fácil com um ajudante depois de dar início à carreira de assassino.

A natureza do isco utilizado era bastante clara para Carmine: um objecto de piedade, de apelo irresistível a uma jovem sensível e de bom coração. Assim, abandonou essa linha de pensamento para se dedicar a perceber que tipo de instalações serviriam para prender as raparigas enquanto eram violadas, mortas e armazenadas. A sensação generalizada entre a polícia era de que as instalações seriam improvisadas; apenas Patrick compreendia o que Carmine queria dizer quando afirmava que as instalações eram tudo menos improvisadas. Uma pessoa suficientemente obsessiva para alinhar um bilhete à esquadria, havia de querer que o seu "laboratório" fosse perfeito.

Depois da descoberta do corpo de Margaretta Bewlee na propriedade de um Hugger, os Huggers atropelaram-se para oferecer permissão à polícia para inspeccionar o que quisesse. Até Satsuma, Chandra e Schiller cederam. O túnel de cogumelos de Maurice Finch era apenas isso; outra busca na casa mortuária de Benjamin Liebman não resultou em nada; o "ninho" de Addison Forbes consistia de duas divisões, uma por cima da outra, atafulhadas de material de leitura profissional em prateleiras ou empilhado; a cave dos Smith era apenas o paraíso dos comboios; a cabana de Walter Polonowski era um ninho de amor, com fotografias de Marian em poses decorosas por todo o lado, uma cama grande e uma pequena cozinha. Paola Polonowski aproveitara a oportunidade e seguira a polícia até à cabana, e, em resultado dessa visita, Polonowski vivia agora com Marian e parecia muito mais feliz. O retiro de Hideki Satsuma era perto da curva de Cape Cod em Orleans, um local desenhado por um arquitecto para um homem solteiro, que não continha nada mais censurável do que uma quantidade imensa de pornografia com tendências violentas, mas não homicidas. O que não surpreendera muito Carmine, cuja estada no Japão lhe dera a conhecer a tendência japonesa para pornografia ilustrada. O Dr. Nur Chandra estava apenas a ser "teimoso", como diria Desdemona; a sua actividade secreta na casa de campo era um computador de nova geração que ele estava a tentar programar sem recorrer a um dos brilhantes estudantes de Medicina da Chubb, que financiavam o seu curso criando programas para fins científicos específicos. Chandra estava tão certo do seu Prémio Nobel que não falaria do seu trabalho a ninguém, muito menos a um jovem estudante super-inteligente e ambicioso. A floresta dos Ponsonbys era uma floresta; sem quaisquer cabanas, barracões, celeiros ou abrigos subterrâneos. E o pior segredo de Kurt Schiller era uma fotografia de si próprio, com o pai e Adolf Hitler. O pai fora um capitão de submarino condecorado, convidado a conhecer o Fiihrer e que levara consigo o filho louro; Hitler adorava rapazinhos louros com pais corajosos. Schiller Sénior fora ao fundo com o seu submarino quando encontrara uma carga de profundidade em 1944; Kurt tinha, na altura, dez anos.

Assim, segundo Silvestri, Marciano e os restantes membros da hierarquia superior da polícia do Connecticut, as instalações do assassino deviam ser improvisadas.

Caso contrário, alguém teria reparado.

"Mas não são improvisadas", disse Carmine a si próprio. "Se eu fosse o fantasma, o que quereria? Um ambiente imaculado, claro. Superfícies que pudessem ser lavadas à mangueirada, escrupulosamente limpas. Isso significava azulejos e não cimento, metal e não madeira ou pedra. Quereria uma sala de operações. Dois Fantasmas podiam construir uma, se fossem hábeis de mãos; até podiam fazer uma instalação eléctrica. O que provavelmente não conseguiriam fazer era canalizações, mas o local tinha de estar canalizado. Precisava de um abastecimento de água de alta pressão, um escoamento funcional e ligação a um sistema de esgotos ou a uma fossa séptica. Os Fantasmas deviam querer também uma casa de banho, para si próprios, se não para as vítimas. Essas usariam provavelmente arras-tadeiras e seriam lavadas com uma esponja."

Assim, enquanto Abe e Corey esquadrinhavam os classificados pessoais do National Enquirer, Carmine verificou as propriedades de todos os Huggers, em busca de contas de água ou electricidade acima do que seria de esperar. Infelizmente, os Huggers mais prósperos viviam em locais onde podiam usar água de um furo e não canalizada, e ninguém tinha uma conta de electricidade excessiva. Um gerador? Era possível, se conseguissem abafar o ruído. Depois dessa busca infrutífera, investigou todas as empresas de canalizações e canalizadores independentes, de uma ponta à outra do Connecticut. Procurava um trabalho lucrativo que tivesse envolvido a instalação de algo talvez descrito como um ginásio privado, ou uma instalação recreativa luxuosa, ou mesmo uma piscina. Os que encontrou revelaram-se genuínos, todos nos condados de Fairfield e Litchfield. Sabia que aquilo que procurava apontava para alguém com dinheiro, mas sempre achara que o Fantasma tinha muito dinheiro. Para onde quer que se virasse, o resultado era sempre o mesmo: nada. Isso queria dizer uma de três coisas: primeira, que os dois Fantasmas eram capazes de fazer as suas próprias canalizações; ou, segunda, que tinham contratado um canalizador, a quem tinham pago generosamente em dinheiro vivo para ser discreto e fugir aos impostos; ou, terceira, que os Fantasmas tinham arrendado ou comprado instalações já adequadas aos seus objectivos, como uma clínica veterinária ou um consultório de cirurgia. Fez alguns telefonemas para tentar saber quantas clínicas veterinárias ou consultórios tinham mudado de mãos em finais de 1963, mas as que tinham sido vendidas pertenciam a negócios legítimos. O habitual: nada, nada, nada.

Como o vestido de renda cor-de-rosa estava adornado com duzentas e sessenta e cinco pedras brilhantes, e cada uma destas tinha de ser examinada para confirmar que ostentava apenas um conjunto de impressões digitais, presumivelmente da costureira, só seis dias depois Carmine pôde mostrar a peça de vestuário a Desdemona.

Tocou à campainha, sentindo-se mais desastrado e ansioso do que no liceu, quando a rapariga dos seus sonhos aceitara o seu convite para a levar ao baile de finalistas.

Boca seca, coração na garganta - só lhe faltavam as flores.

- Desdemona, é o Carmine. Venho em trabalho. Não abra a porta, eu introduzo a combinação.

- Como está? - perguntou ele, despindo os abafos e pousando a caixa do vestido (merda, o que havia ela de pensar?) em cima da mesa.

Desdemona não parecia contente nem aborrecida de o ver.

- Estou bem, mas a morrer de tédio - disse. Depois apontou para a caixa do vestido. - O que é isso?

- Algo que tive de garantir ao comissário que você não discutiria com ninguém. Eu sei que não o fará, mas ele não. Talvez não saiba que a última vítima, Margaretta Bewlee, foi encontrada com um vestido de festa de criança. Não conseguimos localizar a sua origem, mas pensei que, com o seu olho para este tipo de trabalhos, pudesse dizer-nos qualquer coisa sobre ele.

Em menos de um segundo ela abrira a caixa e retirara o vestido. Ergueu-o, virou-o e, finalmente, estendeu-o sobre a mesa. - Presumo que esta rapariga não foi cortada aos pedaços?

- Não, faltava-lhe apenas a cabeça.

- Os jornais dizem que ela era alta. Isto não lhe devia servir.

" - E não servia, mas enfiaram-na nele, de qualquer maneira. Ela tinha os ombros demasiado largos para que o assassino conseguisse abotoá-lo nas costas, o que leva à minha primeira pergunta... porquê botões? Hoje em dia é tudo com fecho éclair.

Paul tinha abotoado os botões, que cintilavam como jóias verdadeiras sob a luz do candeeiro de mesa.

- Por isto - disse ela, tocando num dos botões. - Um fecho éclair teria estragado o efeito. Estes brilham.

- Alguma vez viu um vestido assim?

- Apenas numa peça de teatro, quando era pequena, mas esse foi improvisado devido ao racionamento de roupa. Este é muito pretensioso.

- É feito à mão?

- Até certo ponto, mas provavelmente não tanto como pensa. As pedras foram cosidas à mão, sim, mas por um especialista que é capaz de o fazer mais depressa do que você almoça. A pessoa deve trabalhar à peça. Enfia a agulha no buraco, dá uma volta à pedra com a linha, depois passa a agulha pela renda até à próxima pedra... está a ver?

Carmine estava a ver.

- Faltam algumas pedras, porque não foram bem cosidas, e as outras saem numa fiada tão longa como a linha enfiada na agulha... vê?

- Pensei que tivesse sido o Paul, no laboratório, a fazer isso.

- Não, o mais provável é que tenha sido resultado de maus-tratos, e não acredito que isso tenha acontecido num laboratório de patologia.

- Então o que está a dizer é que este vestido é acessível?

- Para quem tenha mais de cem dólares para dar por um vestido que a criança provavelmente usará apenas uma ou duas vezes, sim. Tem tudo a ver com lucro, Carmine.

Quem faz e vende estes vestidos sabe que o vestido será usado poucas vezes, por isso corta em tudo o que pode para poupar despesas. O forro é sintético, não de seda, e o saiote é um tule barato enrijecido com goma espessa.

- E a renda?

- Francesa, mas não de primeira categoria. Feita à máquina.

- Dentro desses preços, acha que devíamos procurar na secção de crianças de locais como o Saks e o Bloomingdale's em Nova Iorque? Ou talvez o Alexander's no Connecticut?

- Numa loja ou armazém relativamente caro, com certeza. Eu classificaria este vestido de vistoso, não elegante.

- Como o cavalo de estimação de Astor - disse ele distraidamente.

- Desculpe?

- É apenas um ditado - inspirou profundamente. - Estou perdoado?

O olhar dela suavizou-se, chegando mesmo a brilhar.

- Suponho que sim, seu idiota mal-educado. Carmine Delmonico a menos é pior do que Carmine Delmonico a mais.

- Malvolio's?

- Sim, por favor!

- Mudando de assunto - disse ele mais tarde, enquanto bebiam café. - É tarde, podemos conversar aqui. Perícia de mãos.

- Quem a tem e quem não a tem, no Hug?

- Exacto.

- Começando pelo professor?

- Como está ele, já agora?

- Fechado num manicómio de luxo algures para os lados de Bridgeport, em Trumbull. Imagino que devem estar a adorá-lo como paciente. A maioria da clientela consiste de alcoólicos ou toxicode-pendentes em recuperação, para além de carradas de neuroses ansiosas. Já o pobre professor teve um grave esgotamento... ilusão, alucinações, delírios, perda de contacto com a realidade. Quanto à sua perícia manual, é considerável.

- Acha que seria capaz de fazer a instalação eléctrica e a canalização de uma casa?

- Não lhe passaria pela cabeça fazê-lo, Carmine. Qualquer coisa que exija trabalho manual duro seria considerada abaixo da sua categoria. O professor não gosta de sujar as mãos.

- Ponsonby?

- Era incapaz de mudar a anilha de uma torneira.

- Polonowski?

- É bastante dotado para pequenos trabalhos domésticos. Não tem dinheiro para contratar um carpinteiro sempre que as crianças estragam uma porta, ou um canalizador quando os miúdos enfiam um boneco de peluche na sanita.

- Satsuma?

Ela revirou os olhos.

- Tenente, francamente] Para que acha que serve o Eido? E há também a mulher do Eido, ela mata-se a trabalhar. E o Chandra tem um exército de lacaios de turbante.

- Forbes?

- Diria que é competente com as mãos. Sei que faz alguns trabalhos em casa. Tiveram tanta sorte, os Forbes! Quando a compraram, a taxa de juro era de dois por cento, e têm trinta anos para a pagar. Agora vale uma fortuna, claro... virada para a água, oito mil metros quadrados, sem tanques de petróleo por perto.

- A transferência daqueles tanques para o fundo de Oak Street beneficiou todos os que moram na margem leste. Finch?

- Constrói as suas próprias estufas e viveiros... parece que há uma grande diferença, segundo ele me disse. Não se esquiva a escavar um túnel para cogumelos. Mas eu diria que a Catherine é ainda mais competente. Tem milhares de galinhas.

- Hunter e Ho, os engenheiros?

- Esses eram capazes de construir o Empire State Building com melhoramentos.

- Cecil?

- Isso não é uma acusação terrível? - perguntou ela, franzindo a testa. - Não sei dizer, Carmine. Ele tem capacidades, mas na nossa mente temos tendência a encará-lo não só como um subalterno, mas como um subalterno negro. Não admira que nos odeiem. Merecemos ser odiados.

- Otis?

- De momento, o Otis não pode levantar pesos. Parece que tem um princípio de insuficiência cardíaca, por isso estou a tentar conseguir-lhe uma boa pensão junto dos Parsons. Pessoalmente, duvido que os seus problemas tenham a ver com o trabalho. O seu pesadelo é o sobrinho da Celeste, o Wesley. O Otis morre de medo de que o rapaz cause algum problema à Celeste. O Buraco e a Argyle Avenue são um barril de pólvora.

- Espere pela Primavera - disse Carmine com expressão sombria. - Conseguimos ganhar algum tempo, graças às condições meteorológicas, mas quando melhorarem isto vai explodir em todas as direcções.

- O marido da Anna Donato é canalizador.

- Anna Donato... refresque-me a memória.

- Cuida de todo o equipamento avariado, é muito boa.

- O lar Kyneton?

- Oh, céus! Nos dias que correm, o terceiro piso é um autêntico circo. A Hilda e a Tâmara desembainharam as espadas. Essencialmente gritos, mas já houve uma ocasião em que se atiraram uma à outra, aos pontapés e às dentadas. Foram precisos os quatro funcionários administrativos e eu para as separar. Estamos profundamente gratos por o professor não estar presente para ver as mulheres no seu pior. No entanto, a Hilda estará fora do Hug antes do regresso do professor. O seu querido, adorado Keith conseguiu a sociedade que queria em Nova Iorque.

- E o Schiller?

- Não tem jeito nenhum com as mãos. Nem sequer consegue afiar a lâmina de um micrótomo. Atenção, também não precisa. Para isso é que servem os técnicos.

- E se fôssemos até minha casa beber um conhaque? Desdemona levantou-se.

- Estava a ver que nunca mais me convidava.

Carmine caminhou ao lado dela, novamente naquela neblina de êxtase que sentira no liceu, quando o seu par do baile de finalistas lhe dissera que adorara a noite e lhe oferecera os lábios. Não que Desdemona estivesse prestes a oferecer-lhe os lábios. Uma pena. Eram cheios e não estavam pintados. Começou a rir-se ao recordar o trabalho que tivera para limpar o batom vermelho vivo dos lábios.

- Qual é a piada?

- Nada, nada.


Na segunda-feira, dia vinte e quatro de Janeiro, o comissário Silvestri organizou uma conferência discreta, para a qual convidou os vários líderes das investigações sobre o Fantasma em todo o Connecticut.

- Dentro de uma semana terão passado trinta dias - disse, perante uma sala cheia de homens silenciosos - , e não fazemos a mínima ideia se o Fantasma ou Fantasmas alteraram o padrão para uma vítima por mês, ou se ainda continuam no padrão de uma vítima de dois em dois meses, tendo-se limitado a celebrar a entrada no Ano Novo com um ataque especial.

Apesar de a imprensa ainda se referir ao assassino como Monstro, a maior parte dos polícias envolvidos aludia agora a ele como fantasma ou fantasmas. As ideias de Carmine tinham pegado, porque homens como o tenente Joe Brown de Norwalk percebiam que faziam sentido.

- Entre esta quinta-feira, dia vinte e sete, e a quinta-feira seguinte, três de Fevereiro, todos os departamentos terão uma equipa de vigilância a controlar qualquer suspeito que possam ter, vinte e quatro horas por dia. Se não obtivermos qualquer resultado, pelo menos haverá um processo de eliminação. Se soubermos que um suspeito foi vigiado e que não teve hipótese de iludir essa vigilância, podemos excluir esse suspeito se desaparecer alguma rapariga.

- E se não desaparecer nenhuma rapariga? - perguntou um polícia de Stamford.

- Nesse caso, repetiremos o processo no final de Fevereiro. Concordo com o Carmine quando diz que tudo o que sabemos aponta para muitas alterações... o intervalo temporal, um rapto nocturno, o vestido de festa, apenas decapitação... mas não podemos ter a certeza se ele entrou permanentemente num novo padrão. Seja uma pessoa ou duas, o assassino está muito à nossa frente. Temos de continuar a trabalhar, o melhor que sabemos.

- E se desaparecer uma rapariga e nenhum dos suspeitos estiver envolvido? - perguntou um polícia de Hartford.

- Voltaremos a rever as nossas opções, mas de forma diferente. Alargamos o cerco de modo a abranger novos suspeitos, mas não abandonamos os antigos. Passo a palavra ao Carmine.

Que tinha pouco mais a dizer, excepto em relação aos suspeitos actuais.

- Holloman encontra-se na posição singular de ter muito mais do que um suspeito - disse. - Os restantes departamentos vigiarão violadores conhecidos com historial de violência, enquanto Holloman tem um grupo de suspeitos sem qualquer historial conhecido de violação ou violência. Os funcionários do Hug e duas outras pessoas.

No total, trinta e dois suspeitos. Não conseguimos manter tanta gente sob vigilância vinte e quatro horas por dia, e é por isso que estou a pedir voluntários dos outros departamentos para nos darem uma ajuda. As nossas equipas têm de ser compostas por homens experientes, que não adormeçam no serviço nem se distraiam com os seus pensamentos. Se algum de vocês puder dispensar homens de confiança, agradeceríamos muito a ajuda.

E assim foi. Vinte e nove Huggers, mais o professor Frank Watson, Wesley le Clerc e o professor Robert Mordent Smith, seriam vigiados dia e noite por homens cuja atenção não vacilaria. Uma tarefa formidável, mesmo em termos logísticos.

Um número surpreendente dos suspeitos de Holloman vivia na estrada 133 ou perto dela, e a 133 era uma típica estrada estadual: uma faixa em cada sentido, sinuosa, com poucos abrigos; nem bermas largas, nem centros comerciais e respectivos parques de estacionamento, nem áreas de descanso. Tudo o que havia na Boston Post Road, enquanto a estrada 133 deambulava de aldeia em aldeia, era uma ou outra rua lateral de habitações. Tâmara Vilich e Marvin Schilman, ambos em Sycamore, perto do centro de Holloman, eram fáceis de vigiar, bem como Cecil e Otis, na Eleventh Street. Mas os Smiths, os Ponsonbys, os Finches, Mrs. Polonowski, os Watsons, os Chandras e os Kynetons estavam todos, de alguma forma, ligados à estrada 133.

O motel duvidoso que ostentava o nome de Major Minor ficava adjacente a Ponsonby Lane, na 133, e há muitos anos que não tinha tanta actividade nocturna como prometia ter na próxima semana.

Carmine, Corey e Abe dividiram a vigilância à residência dos Ponsonby em três turnos de oito horas; Carmine escolhera os Ponsonby simplesmente por achar que nenhum dos suspeitos produziria qualquer resultado e, até aqui, os Ponsonby tinham recebido menos atenções do que, por exemplo, os Smith ou os Finch. Encontraram um local para se esconderem, num maciço de loureiros a cinquenta metros do caminho de acesso à residência Ponsonby, do lado da estrada 133, depois de estabelecerem que Ponsonby Lane era um beco sem saída e que a casa dos Ponsonby não tinha qualquer outro acesso para veículos à excepção deste caminho.

Ele próprio estudara tudo antecipadamente, tendo chegado à conclusão de que os Forbes seriam os mais difíceis de observar, devido à fachada voltada para a água e à encosta íngreme e com vegetação cerrada que levava de East Circle, a estrada da frente, até à água; a casa ficava numa espécie de plataforma a meio. Os Smiths também não eram fáceis, tendo em conta a colina onde ficava a casa, os bosques densos e aquele caminho de acesso sinuoso. No entanto, o professor estava decididamente encarcerado no hospício de Marsh Manor, em Bridgeport, do lado de Trumbull, guardado pela polícia de Bridgeport. Quanto aos Finches - ainda bem que praticamente os eliminara da sua lista.

Tinham nada mais, nada menos, do que quatro portões para a estrada 133, e em nenhum deles um carro podia esconder-se sem ser detectado por olhos atentos. Norwalk estava a tratar de Kurt Schiller e Torrington vigiava Walter Polonowski e a sua amante na cabana a norte do estado.

Então por que razão Carmine achava que este imenso exercício de vigilância seria infrutífero? Não sabia dizer porquê, honesta-mente, excepto que os Fantasmas eram fantasmas, e os fantasmas só se deixavam ver quando queriam ser vistos.


Tinham caído cinquenta e cinco centímetros de neve na quarta-feira anterior, sem qualquer degelo em seguida, o que não era invulgar em Janeiro. Em vez disso, a temperatura caíra para seis graus negativos, ainda menos à noite. A vigilância tornou-se um pesadelo, com os homens enrolados em todos os casacos de peles que esposas ou mães podiam doar, tapetes de pêlo, peles de urso, cobertores, várias camadas de lã, roupa interior térmica, cobertores eléctricos que podiam ser ligados a uma bateria DC, botijas do século dezanove cheias de carvão de churrasco, tudo o que pudesse afastar o frio. Pois, naturalmente, assim que o mercúrio caía abaixo dos dois graus negativos, nenhum motor podia continuar a trabalhar, porque o espesso vapor branco que saía do tubo de escape trairia a presença de um carro ocupado. Os homens com mais sorte estavam encolhidos dentro de peles de caça do Alasca.

Carmine fazia o turno da meia-noite às oito da manhã, todas as noites, no seu Buick de interiores de veludo pelos quais agradecia a todos os santos.

A noite de domingo para segunda-feira foi a mais fria de todas, com dezassete graus negativos. Encolhido dentro de dois cobertores de caxemira, vigiou com as janelas abertas apenas o suficiente para impedir que os vidros embaciassem e os dentes a baterem como castanholas.

Os loureiros escondiam-no bem mas, na quinta-feira, a primeira noite da sua vigília, estivera preocupado com Biddy - a cadela poderia sentir a sua presença e ladrar.

Mas tal não acontecera, nem então nem nesta noite. Apenas um homem descerebrado se aventuraria a sair de casa, pensou; era a estação das lareiras, do calor maravilhoso dos aquecedores, de arranjar coisas para fazer em casa. Se os Fantasmas tinham planeado um rapto, com certeza que este frio terrível os deteria.

A propriedade dos Ponsonby tinha sido uma dor de cabeça. Um bloco de dois hectares de área, mais comprido do que largo, que descia numa inclinação íngreme a partir de uma crista que constituía também os limites na parte de trás; a antiga casa ficava perto da estrada, rodeada por floresta pouco densa. A crista que se estendia por trás de todos os quarteirões desse lado de Ponsonby Lane era, na verdade, o começo de uma reserva florestal de oito hectares, doada, não ao estado, mas ao Conselho do Condado de Holloman, por Isaac Ponsonby, avô de Charles e Claire. Isaac era um apreciador de veados que odiava a caça; "estes oito hectares", dizia o seu testamento, "seriam reservados para um parque de veados dentro do condado, perto da cidade." Para além de pregar alguns sinais de proibido caçar, o conselho não prestara qualquer atenção ao legado. Hoje continuava mais ou menos igual ao que fora no tempo de Isaac, uma floresta relativamente densa, abundantemente povoada por veados. Começava na crista e descia por uma encosta até Deer Lane, uma curta viela com quatro casas no lado oposto; o parque de veados continuava do outro lado do largo existente ao fundo de Deer Lane e impedira que a construção se estendesse mais. Embora Carmine tivesse a certeza de que Charles Ponsonby não era atlético o suficiente para empreender uma caminhada dessas com dezassete graus abaixo de zero, tivera de posicionar outros carros nas imediações: em Deer Lane, nas suas esquinas e na estrada 133. Estes observadores informaram-no de que não havia mais nenhum carro estacionado em Deer Lane.

A noite estava típica de condições tão árcticas: céu não propriamente negro, mas de um azul profundo, salpicado de estrelas brilhantes, nem uma nuvem à vista. Lindo!

Não se ouvia qualquer som, para além do bater dos seus dentes, não se viam movimentos nem lanternas lá fora, não se ouvia o ranger dos pneus de um carro num caminho gelado.

E, como a inércia era desconhecida para Carmine, começou a brincar com uma ideia que lhe viera à cabeça, exactamente no mesmo segundo em que uma estrela cadente traçara o seu caminho ardente pela abóbada celeste.

"Olha para o lado religioso das coisas, Carmine. Pensa nas treze raparigas, desde Rosita Esperanza, a primeira a ser raptada... dez delas eram católicas. Rachel Simpson era filha de um sacerdote episcopal. Francine Murray e Margaretta Bewlee eram baptistas. Mas nenhuma das raparigas protestantes era de uma Igreja branca.

Então por que não juntar o catolicismo ao protestantismo negro? O que é que isso te diz, Carmine? Que estamos a lidar com um fanático protestante branco, é o que isto me diz. Não demos a devida importância à enorme preponderância de raparigas católicas, talvez porque os Fantasmas pareceram desviar-se desse caminho com Francine e Margaretta. Mais de setenta e cinco por cento de raparigas católicas, a filha de um sacerdote protestante negro, a filha de um casamento racialmente misto e... Margaretta. Margaretta, a única que não encaixa. Haverá algo sobre a família Bewlee que não saibamos?" Esquecido do frio, desejou impacientemente que a manhã chegasse, para o libertar deste trabalho infrutífero e improdutivo e lhe permitir que fosse falar com Mr.Bewlee.

O seu rádio emitiu um som baixo e breve, o sinal de que um polícia estava a aproximar-se do carro. Carmine olhou para o relógio e viu que eram cinco da manhã, demasiado tarde para acontecer qualquer coisa se o plano fosse um rapto nocturno. Uma coisa era certa, os Ponsonbys não se tinham mexido.

Patrick entrou para o lugar do passageiro e estendeu-lhe uma garrafa-termo, com um sorriso.

- O melhor do Malvolio's. Obriguei o Luigi a fazer uma cafeteira de café fresco e os pãezinhos de passas tinham acabado de chegar.

- Patsy, adoro-te.

Beberam e comeram em silêncio durante cinco minutos, e depois Carmine contou ao primo a sua nova teoria. Para sua desilusão, Patrick não lhe deu muito valor.

- O problema é que já estás envolvido neste caso há tanto tempo que esgotaste todas as probabilidades e não te resta mais nada senão as improbabilidades.

- Mas há um preconceito religioso, e está relacionado com a raça!

- Concordo, mas não é a religião que interessa aos Fantasmas. O que lhes interessa é o facto de as famílias tementes a Deus produzirem o tipo de raparigas que eles procuram.

- Os Bewlees estão a esconder alguma coisa, têm de estar - murmurou Carmine. - Se assim não for, a Margaretta não encaixa.

- Ela não encaixa - disse Patrick em tom paciente - , porque a tua hipótese é de loucos. Volta ao básico! Se pensares nos Fantasmas primeiro como violadores e só depois como assassinos, então não verás um fanático religioso de qualquer cor ou denominação, cristã ou não. Verás um ou dois homens que odeiam todas as mulheres, umas mais do que outras. Os Fantasmas odeiam a virtude, aliada à cor da pele, aliada a um rosto, aliado a outras coisas que desconhecemos. Mas conhecemos a parte da virtude, da cor da pele, do rosto, da juventude. Nenhuma delas era completamente branca e nenhuma delas será completamente branca, tenho a certeza disso. Simplesmente a melhor fonte de vítimas para eles está entre as latinas e católicas. As crianças são educadas como se fossem mais novas do que realmente são, rigorosamente vigiadas e muito amadas. Tu sabes disso, Carmine! Mas as famílias não são recém-chegadas à América, e penso que um fanático religioso escolheria imigrantes recentes como alvo... para reduzir a afluência, espalhar a notícia entre quem quiser imigrar para cá de que as suas filhas serão violadas e chacinadas. A resposta está nos aspectos mais básicos do caso.

- Mesmo assim, vou falar com Mr. Bewlee - disse Carmine obstinadamente.

- Se tens mesmo de ir, vai. Mas ela não vai encaixar porque o padrão que estás a ver é fruto da tua imaginação. Estás a ser vítima de uma batalha contra o cansaço.

Ficaram em silêncio; dentro de menos de três horas, o turno terminaria.

Pouco antes das sete da manhã o rádio emitiu um som diferente: aquele que queria dizer "saiam discretamente de onde estão e vão para o ponto de encontro, porque foi raptada uma rapariga".

O ponto de encontro de Carmine era o motel Major Minor, onde ele e Patrick requisitaram o telefone da recepção. Era o próprio major que estava de serviço, ansioso por saber o que estava a acontecer. Todos os quartos tinham sido reservados pela polícia de Holloman por uma soma que eles - e ele - sabiam ser exorbitante, especialmente uma vez que ninguém os usava. O letreiro de esgotado era mais uma camuflagem para os carros estacionados, e o major não o colocaria a menos que fosse verdade.

Enquanto Carmine falava, Patrick observava o major Minor pensando distraidamente se, tal como tantas pessoas de nomes sugestivos, o jovem F. Sharp Minor teria ido para West Point decidido a alcançar o posto que tornaria o seu nome uma contradição em termos(1). *1. Trocadilho com a expressão "Major Minor" que, à letra, pode ser traduzido como "Maior Menor", sendo que "Major" é também um posto militar e "Minor" é o apelido da personagem. (N. da T.) Agora na casa dos cinquenta, com o nariz abatatado e vermelho de alguém que gostava demasiado da pinga, tinha a atitude de um guerreiro de secretária: se os formulários estiverem correctamente preenchidos e a papelada estiver certa, façam o que quiserem, seja espancar um soldado ou roubar armas. Este aspecto da natureza do major Minor ajudava num negócio onde os clientes vinham passar uma hora a meio da tarde; o parque de estacionamento principal era nas traseiras, para que nenhuma esposa que fosse a passar na estrada 133 pudesse ver o carro do marido. A dada altura, Carmine estivera suficientemente desesperado para considerar o major F. Sharp Minor como um suspeito, por nenhuma outra razão senão o facto de saber que todos os quartos tinham orifícios para espiar. O velho vilão livrara-se das câmaras depois de um detective particular o ter apanhado a filmar o director de uma empresa com a secretária, mas o major Minor ainda podia olhar.

- Norwich - disse Carmine. - O Corey, o Abe e o Paul estarão aqui dentro de um minuto - afastou-se mais do major. - Ela é de origem libanesa mas a família está em Norwich desde mil novecentos e trinta e sete. Chama-se Faith Khouri.

- São muçulmanos? - perguntou Patrick, incrédulo.

- Não, católicos da facção maronita. Duvido que exista uma Igreja Maronita, por isso frequentam a Igreja Católica normal.

- Norwich é uma cidade bastante grande.

- Sim, mas eles vivem num local relativamente isolado. Mr. Khouri tem uma loja de conveniência em Norwich. Mora a norte, a meio caminho de Willimantic.

Abe estacionou o Ford, seguido por Paul na carrinha preta de Patrick.

- Nem sei por que raio nos vamos dar ao trabalho de ir até lá - disse Corey enquanto o Ford arrancava a uma velocidade normal; não ligariam a sirene nem as luzes até estarem bem longe de Ponsonby Lane.

"Esta", pensou Carmine com um suspiro, "é a observação de um homem desesperado. Não sou o único com um caso sério de fadiga de combate. Estamos a começar a acreditar que nunca apanharemos os Fantasmas. Esta é a quarta rapariga, desde que sabemos da existência deles, e não estamos mais perto de os apanhar. Corey já chegou ao limite das suas forças e eu não sei quanto tempo me faltará para chegar ao limite das minhas."

- Vamos lá, Cor - disse, como se a observação de Corey fosse normal - , porque temos de ver com os nossos próprios olhos o local do rapto. Abe, se seguirmos para norte pela 1-91 até Hartford, e depois virarmos para leste, a estrada será melhor do que se formos pela 1-95 até New London.

- Não podemos - disse Abe brevemente. - Cinco camiões despistaram-se.

- Pelo menos - disse Carmine, instalando-se confortavelmente no seu adorado assento - , o aquecimento está ligado. Vou dormir um bocadinho.

A residência dos Khouri ficava numa rua sinuosa, não muito longe do rio Shetucket, e era tão encantadora como o cenário que a rodeava. A casa em si mesma era tradicional, mas construída em várias fases, o que conferia ângulos engraçados aos três pisos. Entre a casa e a estrada havia um lago enorme, completamente gelado nesta altura do ano, bem como o regato que levava do lago ao rio gelado; fora limpo de neve para ser usado como ringue de patinagem, mas um pequeno pontão de madeira sugeria também canoas no Verão. Alguns juncos chocavam uns contra os outros com um som oco e, à distância, o Sol lançava um brilho dourado sobre os campos brancos e lisos.

À volta da casa viam-se os esqueletos de Inverno de bétulas e salgueiros, e havia um velho carvalho, enorme, no cimo de um pequeno monte do outro lado do lago. Este sugeria piqueniques à sombra, no Verão. Que ambiente podia ser melhor para uma criança do que este perfeito sonho americano?

Carmine ficou a saber que havia sete filhos; apenas um rapaz de dezanove anos, Anthony, não vivia em casa. O seu irmão Mark tinha dezassete, depois vinha Faith, com dezasseis, Nora com catorze, Emily com doze e Matthew, com dez; Philippa, de oito anos, era a mais nova.

A intensidade do sofrimento da família impossibilitava falar com qualquer um deles, incluindo o pai. Quase trinta anos de América não tinham eliminado a reacção levantina à perda de um filho. Quando Carmine conseguiu encontrar uma fotografia de Faith, percebeu o que Patrick estivera a tentar fazê-lo ver em Ponsonby Lane.

Faith parecia irmã das outras vítimas, desde os caracóis negros aos olhos grandes e aos lábios sensuais. Em termos de cor de pele, era a mais clara; morena como uma rapariga mediterrânica, do Sul de Itália ou da Sicília.

Patrick parecia derrotado quando encontrou Carmine cá fora, no alpendre frio.

- A neve está tão dura que eles conseguiram estender uma faixa de palha desde a estrada ao alpendre das traseiras... parece um tapete barato - disse. - Limparam e salgaram a estrada onde estacionaram, portanto não há marcas de pneus que não tenham sido destruídas pela polícia local. Abriram a porta das traseiras com uma chave ou uma gazua, e eu diria que eles sabiam exactamente onde era o quarto de Faith. Tinha o seu próprio quarto... todos os filhos têm um quarto só para si...

O dela era no primeiro andar, que é onde todos dormem. Devem tê-la encontrado a dormir. Os únicos sinais de luta são os lençóis ligeiramente agitados aos pés da cama, talvez ela tenha esperneado um pouco. Depois levaram-na por onde tinham entrado, por cima da palha, até à estrada e ao veículo deles. Por aquilo que conseguimos perceber, ninguém ouviu nada. Deram pela falta dela quando não apareceu para o pequeno-almoço, que a mãe serve cedo nesta altura do ano. A viagem de carro até Norwich demora uma hora nestas estradas mal limpas. Os miúdos vão com o pai e ficam na loja até à hora das aulas. A escola fica perto.

- Estás a fazer o meu trabalho, Patsy. Alguma ideia da altura dela? Peso?

- Só quando o padre Hannigan e as suas freiras chegarem. O sofrimento lá dentro está descontrolado e ninguém me deixa dar um tranquilizante a ninguém. Estão a arrancar os cabelos aos punhados.

- E há sangue pelo ar, Mrs. Khouri insiste em arranhar o rosto. É por isso que estou aqui fora, não lá dentro - disse Carmine com um suspiro. - Não que o sangue e os cabelos importem. Os Fantasmas não deixaram qualquer vestígio de uma coisa ou outra.

- A família já está a dar a Faith como morta.

- E podes culpá-los, Patsy, honestamente? Nós temos sido tão úteis como tetas num boi, e isto está a começar a afectar o Abe e o Corey. Estão a sofrer muito, simplesmente não o demonstram.

Patrick semicerrou os olhos e soltou um suspiro de alívio.

-Ali vem o padre e as freiras. Talvez eles saibam como acalmar estas pessoas.

Se não o conseguissem, pelo menos o padre Hannigan e as três freiras que o acompanhavam puderam dar a Carmine as informações de que necessitava. Faith media um metro e cinquenta e cinco e pesava cerca de quarenta quilos. Esguia, ainda não muito desenvolvida. Uma rapariga adorável, devota, com média excelente em todas as disciplinas, mais voltada para as ciências; a sua ambição era seguir Medicina. Estava previsto que se juntasse às voluntárias do Hospital St. Stan no Verão, mas até agora os pais tinham-na mantido em casa; não queriam que ela se dedicasse às boas obras demasiado cedo. Anthony, o irmão ausente, estava a estudar Medicina na Universidade Brown; parecia que todos os filhos tinham interesse pelas ciências humanas. A família era muito unida e altamente respeitada. A loja ficava numa parte boa de Norwich e nunca fora assaltada, a casa nunca fora roubada, nenhum deles fora alguma vez atacado ou molestado.

- Voltamos sempre à inocência irrepreensível, ao rosto, à idade, possivelmente à religião - disse Carmine a Silvestri quando regressou a Holloman. - Ultimamente, nem a cor da pele nem o tamanho têm preocupado os Fantasmas, mas temos sempre os três primeiros aspectos e, na maioria dos casos, o quarto. O presente que a mãe de Margaretta Bewlee lhe deu pelo seu décimo sexto aniversário foi uma ida a um salão de beleza, para esticar o cabelo e o pentear como a Dionne Warwick... ela ia cantar uma das músicas da Dionne num concerto da escola. Essa notícia fez-me pensar, mas depois de verificar percebi que não evidenciava qualquer... como dizer?...

qualquer declínio de virtude. Embora a Margaretta seja a que me faz mais confusão, John. É a única pérola negra numa colecção de pérolas cremes. Demasiado alta, demasiado escura, demasiado ina-propriada.

- Talvez os fantasmas se estejam a aproveitar da onda racial. Não resta dúvida de que as suas actividades não estão a ajudar em nada a situação.

- Então por que não outra vítima igualmente negra, agora? As palavras cruzadas do Times tinham um problema há pouco tempo, a pista era "voltar atrás". A solução era "rejeitar". Quando a vi ri até às lágrimas. Para onde quer que me vire, sou rejeitado.

Silvestrí não disse o que estava a pensar: "precisas de umas longas férias no Hawai, Carmine. Mas ainda não. Não posso dar-me ao luxo de o retirar deste caso. Se ele não conseguir resolvê-lo, ninguém conseguirá."

- Está na altura de eu dar uma conferência de imprensa - disse, - Não tenho nada para dizer aos malditos, mas tenho de me penitenciar por isso em público. - Pigarreou e roeu a ponta de um charuto muito maltratado. - O governador concorda que eu devo penitenciar-me em público.

- Como um favor a Hartford?

- Não, ainda não. Como julga que eu passo a maior parte dos dias? Ao telefone com Hartford.

- Nenhum dos Huggers pôs um pé fora de casa a noite passada. Embora isso não signifique que eu não tenciono vigiá-los dentro de trinta dias, John. Ainda tenho a sensação de que o Hug está muito envolvido nisto, e não apenas como objecto de vingança - disse Carmine. - Que percentagem da verdade vai dizer à imprensa?

- Um pouco disto, um bocadinho daquilo. Nada sobre o vestido de festa de Margaretta. E nada sobre a possibilidade de serem dois assassinos.


O salão da Câmara Municipal de Holloman era famoso pela sua acústica e, desde que os deveres administrativos do presidente tinham sido transferidos para os Serviços Municipais, uma década antes, o salão da Câmara de Holloman fora deixado para aquilo em que era melhor: receber os maiores virtuosos e orquestras sinfónicas do mundo.

Por trás do auditório havia uma sala de ensaios concebida para os artistas gravarem e ensaiarem; os suportes para pautas e cadeiras, dispostos em filas semicirculares, não sugeriam o assassinato de nada mais horrível do que a música. John Silvestri subiu ao pódio do maestro, no seu melhor uniforme, com a Medalha de Honra ao pescoço.

Isto, mais as condecorações ao peito, dizia que ele não era um homem qualquer.

Apareceram cerca de cinquenta jornalistas, na sua maioria de jornais e revistas, uma equipa de televisão da estação local de Holloman e um repórter da rádio whmn.

Os maiores jornais diários nacionais enviaram correspondentes; embora o Monstro do Connecticut fosse notícia, um editor astuto compreendia que este exercício policial não ia resultar em quaisquer desenvolvimentos sensacionais. O resultado da conferência de imprensa seria apenas uma oportunidade para escrever editoriais contundentes sobre a incompetência policial.

Mas Silvestri tinha muito jeito para falar em público, principalmente quando se estava a penitenciar. Ninguém, pensou Carmine enquanto o ouvia, se penitenciava de forma mais graciosa, com maior prazer aparente em fazê-lo.

- Apesar das temperaturas glaciais, vários departamentos policiais em todo o estado mantiveram um total de noventa e seis suspeitos sob vigilância, vinte e quatro horas por dia, desde a passada quinta-feira até ao rapto de Faith Khouri. Trinta e duas destas pessoas em Holloman ou nos arredores. Nenhuma delas poderia ter estado envolvida no rapto, o que significa que não estamos mais perto de conhecer a identidade do homem a quem vocês chamam o Monstro do Connecticut, mas a quem nós agora chamamos o Fantasma.

- Bom nome - disse a jornalista criminal do Holloman Post. - Têm alguma evidência que implique alguém? Seja quem for?

- Acabei de responder a essa pergunta, Mrs. Longford.

- Este assassino... o Fantasma, gosto do nome... deve ter um local especial para onde leva as suas vítimas. Não está na altura de começarem a procurá-lo melhor?

Revistando instalações, por exemplo?

- Não podemos revistar qualquer local habitado sem um mandato, minha senhora, como sabe. E mais, a senhora seria a primeira a cair-nos em cima se o fizéssemos.

- Sob circunstâncias normais, sim. Mas isto é diferente.

- Diferente como? Por causa da natureza horrível dos crimes? Concordo, enquanto pessoa, mas como autoridade não posso concordar. Uma força policial pode ser um braço vital da lei, mas, numa sociedade livre como a nossa, é também limitada pela própria lei que existe para servir. O povo americano tem direitos constitucionais que nós, a polícia, somos obrigados a respeitar. Uma suspeita sem provas não nos dá o poder de entrar pela casa de uma pessoa à procura de evidências que não conseguimos encontrar noutro lado. As evidências têm de surgir primeiro. Temos de apresentar um caso comprovativo ao braço judicial da lei, de modo a obtermos permissão para investigar. As meras palavras não podem persuadir nenhum juiz a emitir um mandato sem factos concretos. E nós não temos factos concretos, Mrs. Longford.

Os restantes jornalistas davam-se por satisfeitos de ser Mrs. Diane Longford a ter o trabalho todo; as perguntas dela não resultariam em nada, de qualquer modo, e todos sentiam o cheiro a café e donuts proveniente da mesa ao fundo do salão.

- E por que razão não têm factos concretos, senhor comissário? Quer dizer, é difícil perceber como é que tantos homens experientes estão a investigar estes homicídios desde princípios de Outubro sem conseguirem encontrar um único facto concreto! Ou está a dizer que o assassino é um fantasma a sério!

A ironia não afectava Silvestri mais do que a agressividade ou o charme; prosseguiu, impassível.

- Não, não é um fantasma a sério, minha senhora, mas sim alguém muito mais perigoso, muito mais mortífero. Pense no nosso - assassino como um felino selvagem muito forte... um leopardo, por exemplo. Está confortavelmente instalado numa árvore, na orla da floresta, perfeitamente camuflado, observando uma manada de veados a pastar que se vai aproximando da floresta e da sua árvore. Para um pássaro nessa mesma árvore, os veados são todos iguais. Mas o leopardo vê cada veado de maneira diferente e selecciona um, em particular, como o seu alvo. Para ele, aquele veado é mais apetitoso, mais suculento do que os outros. Oh, o leopardo é muito paciente! Os veados passam por baixo da árvore mas ele não se mexe, e os veados não o conseguem ver nem cheirar em cima do ramo... e depois o seu veado passa debaixo da árvore. O ataque é tão rápido que os restantes veados mal têm tempo de começar a correr antes de o leopardo voltar a subir à árvore com a sua presa, agora impotente, de pescoço partido.

Silvestri respirou fundo; qaptara a atenção da audiência. - Admito que a metáfora não é brilhante, mas uso-a para ilustrar a magnitude daquilo que enfrentamos com o Fantasma. De onde nos encontramos, ele é invisível. Tal como os veados não pensam em olhar para cima, tal como os cheiros que o vento leva até aos veados têm origem apenas ao nível deles e não no alto de uma árvore, o mesmo se passa connosco. Ainda não nos ocorreu procurá-lo no sítio certo porque não fazemos ideia de qual será esse sítio, não sabemos que tipo de local ele utiliza. Podemos passar por ele na rua todos os dias... a senhora pode passar por ele na rua todos os dias, Mrs. Longford. Mas o rosto dele é vulgar, o seu passo é normal... tudo nele é normal. À superfície, é apenas um gato, não um leopardo. Por baixo, é Dorian Gray, Mr. Hyde, os rostos de Eva, a encarnação de Satã.

- Nesse caso, que protecção pode a comunidade ter contra ele?

- Eu diria vigilância, mas essa vigilância não o impediu de raptar raparigas de um tipo específico mesmo depois de termos inundado o Connecticut de boletins e avisos.

No entanto, parece-me evidente que o assustámos, que o forçámos a pôr de lado os raptos em plena luz do dia, que o obrigámos a agir agora a coberto da noite. Não é nada de que possamos vangloriar-nos, porque não conseguimos impedi-lo de agir. Nem sequer abrandar. Mas é um raio de esperança. Se ele está mais assustado do que antes, e se mantivermos a pressão, acabará por cometer erros. E, senhoras e senhores da imprensa, têm a minha palavra de que não desperdiçaremos esses erros. Eles farão de nós o leopardo em cima da árvore, e dele um veado em particular.

- Ele saiu-se bem - disse Carmine a Desdemona nessa noite. - O correspondente da Associated Press perguntou-lhe se tencionava concorrer ao cargo de governador nas próximas eleições. "Não, Mr. Dalby" respondeu ele, com um sorriso de orelha a orelha. "Em comparação com os cargos governamentais, a sina de um polícia é muito melhor, mesmo com fantasmas."

- As pessoas reagem-lhe bem. Quando o vi no noticiário das seis, fez-me lembrar um ursinho de peluche velho e gasto.

- Mais importante ainda, o governador gosta dele. Não se pode tratar heróis de guerra como idiotas incompetentes.

- Ele deve ter sido um herói de guerra já de idade avançada.

- É verdade.

- Pareces um pouco fanhoso, Carmine. Estás a ficar constipado?

- perguntou ela, pegando noutra fatia de piza. Oh, era muito bom estar novamente de boas relações com ele!

- Depois de passarmos horas em carros sem aquecimento, com a temperatura abaixo de zero, estamos todos a ficar constipados.

- Pelo menos não precisaram de me vigiar a mim.

- Mas vigiámos, Desdemona.

- Oh, a quantidade de homens necessária! - murmurou ela, o seu lado de gestora assombrado pela magnitude da tarefa, como sempre. - Noventa e seis pessoas?

-Sim.

- Com quem é que ficaste?

- É informação confidencial, não posso responder. O que se tem passado no Hug desde que a Faith desapareceu?

- O professor continua no manicómio. Quando descobrir que o Nur Chandra aceitou uma colocação em Harvard, vai ter outro esgotamento. É pior do que perder a sua estrela mais brilhante, porque o contrato do Nur diz que os macacos vão com ele. Acho que o Nur convidou o Cecil para se mudar também para o Massachusetts... o Cecil está doido de alegria. Acabou-se a vida no gueto. Os Chandras compraram uma propriedade luxuosa e o Cecil terá direito a uma casinha encantadora. Estou contente por ele, mas tenho muita pena do professor.

- Parece-me estranho. Um contrato que o deixa levar coisas que foram pagas por outras pessoas? Isso é como um congressista levar a espingarda Remington da parede do seu gabinete quando não é reeleito.

- Quando o Nur veio para o Hug, o professor tinha todas as razões do mundo para ignorar essa estipulação. Sabia que o Nur nunca encontraria outro local tão perfeito como o Hug para as suas pesquisas. E isso foi verdade, até este maldito assassino monstruoso aparecer.

- Sim, quem podia ter previsto uma coisa destas? Estou a ficar tão paranóico que isso me parece um motivo. Afinal de contas, há um Prémio Nobel em jogo.

- Sabes - disse ela com ar pensativo - , sempre tive o estranho pressentimento de que o Nur Chandra não ganhará o Prémio Nobel. De alguma maneira, tem sido tudo demasiado fácil. O único macaco que mostrou qualquer sinal de um estado epiléptico condicionado foi o Eustace, e, em ciência, é muito perigoso depositar todas as esperanças numa única estrela. E se o Eustace sempre tivesse tido tendências epilépticas, e tenha sido algo completamente distinto dos estímulos aplicados pelo Nur a trazer essas tendências ao de cima? Já aconteceram coisas mais estranhas.

- És muito mais inteligente do que eles todos juntos - disse Carmine, em tom apreciativo.

- Suficientemente inteligente para saber que eu não vou ganhar Prémio Nobel nenhum!

Mudaram-se para as grandes poltronas. Geralmente Carmine sentava-se ao lado de Desdemona, mas esta noite sentou-se em frente dela, pensando que olhar para o seu rosto razoável e sensato poderia animá-lo um pouco.

No dia anterior fora a Groton falar com Edward Bewlee, um homem tão razoável e sensato como Desdemona. Mas a conversa não resolvera mistério nenhum.

- A Etta estava decidida a ser uma estrela de rock famosa - dissera Mr. Bewlee. - Tinha uma voz maravilhosa e dançava bem.

E dançava bem. Teria sido isso que apelara aos Fantasmas? De volta ao presente - ao rosto razoável e sensato de Desdemona.

- Mais alguma notícia da Frente Hug? - perguntou.

- O Chuck Ponsonby está a substituir o professor. Não é uma das minhas pessoas preferidas, mas pelo menos é comigo que vem falar quando tem problemas, não com a Tâmara. Segundo parece, ela tentou falar com o Keith Kyneton e ele bateu-lhe com a porta do gabinete na cara. Portanto é decididamente a Hilda que ostenta a coroa de louros do vencedor. A aparência dela melhorou incomensuravelmente... um fato preto de bom corte, blusa de seda encarnada, sapatos italianos, penteado novo, maquilhagem como deve ser... e, acredites ou não, lentes de contacto em vez de óculos! Parece a esposa perfeita de um proeminente neurocirurgião.

- Pronta para se exibir em Nova Iorque - disse Carmine com um sorriso. - É bom saber que alguma coisa do que eu disse ao Kyneton penetrou naquela cabeça oca. - Agitou-se na poltrona. - Corre um rumor pelo prédio de que o Satsuma não vai renovar o contrato de arrendamento da cobertura nem do apartamento do Eido.

- Pode muito bem ser verdade. Ele está a hesitar entre as ofertas das universidades de Stanford, estado de Washington e Georgia. O que provavelmente quer dizer que acabará em Columbia.

- Como é que chegas a essa conclusão?

- O Hideki é um homem urbano e, se ficar em Nova Iorque, não precisa de abrir mão do seu refúgio de fim-de-semana em Cape Cod. É uma viagem longa, sim, mas praticável.

Teria ido para Boston, se o Nur Chandra não se tivesse antecipado a ele com a ida para o Massachusetts. Outra universidade que não fosse Harvard seria andar para trás. E contudo, para mim, o Hideki é uma melhor aposta para o Prémio Nobel. Os investigadores que dão nas vistas podem fascinar a imprensa científica, mas raramente estão à altura da publicidade - levantou-se agilmente. - Obrigada pela piza, Carmine.

Sem encontrar uma resposta adequada, ele acompanhou-a até à porta de aço, dois andares mais abaixo, com a sua fechadura e combinação, certificou-se de que ela estava devidamente fechada em casa e voltou aos seus domínios sentindo-se curiosamente deprimido.

Estivera quase a perguntar-lhe se haveria alguma hipótese de avançarem com a relação para um nível mais íntimo, mas as palavras tinham sido silenciadas pela saída apressada e decidida de Desdemona.

A verdade era que as intenções de Carmine não tinham sido suficientemente óbvias para que Desdemona sonhasse sequer que existiam, e, uma vez que também ela nutria fortes sentimentos por ele, não se atrevia a demorar-se muito na sua presença depois de terem dito tudo o que havia a dizer sobre o Hug e de terem esgotado os tópicos de conversação inocentes. O que ela temia era um silêncio prolongado, pois não tinha a certeza de o conseguir aguentar.

Além disso, estava muito cansada. Depois de uma série de discussões acaloradas, conquistara o privilégio de retomar as suas caminhadas de fim-de-semana - na condição de ser conduzida até ao ponto de partida, num carro-patrulha cujos polícias se certificavam de não estarem a ser seguidos, e depois apanhada pelo mesmo carro num ponto que ela designasse como a sua meta. Assim, caminhara no canto noroeste do estado no sábado e no domingo, e estava dorida devido ao que se tornara entretanto um exercício pouco habitual. O Trilho Apalache tinha os seus encantos, mesmo no Inverno, mas houvera alturas em que se arrependera de não ter levado os sapatos de neve.

Assim, depois de um longo banho de imersão, limpou-se e vestiu a sua indumentária habitual para dormir- um pijama de homem de flanela e um par de meias grossas de lã. Um termostato a produzir ar quente não era para Desdemona! Nesse aspecto, embora não o soubesse, era muito parecida com Carmine Delmonico.

Adormeceu assim que se deitou, sonhando sonhos que não recordava quando acordou, sabendo apenas que algum barulho estranho a despertara quando o despertador marcava as quatro da manhã. Um raspar, com um leve guincho.

Sentou-se muito direita e começou a pensar que não fora o barulho que a acordara, mas sim algum pressentimento primitivo de perigo iminente. A porta do quarto estava aberta, deixando ver a sala de estar do pequeno apartamento, mergulhada na escuridão. Tal como o quarto. O sono de Desdemona não era assombrado por qualquer terror que lhe causasse medo do escuro. No entanto, uma faixa de luz proveniente do corredor exterior tremeluziu brevemente com uma sombra no meio, da altura e do formato de uma pessoa, desaparecendo quase de imediato quando a porta da rua se fechou. Não estou sozinha. Ele está aqui dentro, veio matar-me.

Numa cadeira perto da cama estavam as peças pequenas para lavar - cuecas, soutien, meias, um par de luvas de lã. Desdemona saiu da cama sem um ruído e aproximou-se da cadeira, procurando as luvas. Quando as encontrou, calçou-as e, com cuidado para se manter fora do alcance de qualquer reflexo de luz, dirigiu-se à porta de correr da varanda, fechada e trancada com uma barra de ferro encaixada na calha. Baixou-se, retirou a barra, abriu o trinco e correu a porta apenas o suficiente para sair para a varanda, uma prateleira de betão com um corrimão e barras de ferro com pouco mais de um metro de altura.

Carmine morava dois andares mais acima, no lado do Edifício Nutmeg Insurance virado para nordeste, quase exactamente oposto ao local onde Desdemona se encontrava.

Isso significava que, para chegar até ele, tinha de subir dois andares e contornar uma dúzia de apartamentos. Devia subir primeiro os dois andares, ou passar entre as varandas do seu piso até estar directamente por baixo da dele? "Não, primeiro para cima, Desdemona! Sai deste piso o mais depressa possível. Mas como?" Cada piso ocupava três metros de espaço vertical: dois metros e setenta e cinco da altura dos tectos, mais vinte e cinco centímetros da placa de betão que formava o chão do andar de cima, com os respectivos canos de água e esgotos e condutas eléctricas. Era demasiado alto para lá chegar...

O vento assobiava, mas, depois de fechar a porta de correr, os vidros duplos não deixariam passar nada para o interior. O frio cortante penetrava-lhe no pijama como se este fosse feito de gaze. Só tinha uma coisa a fazer. Pôs-se de pé em cima do corrimão da varanda, parou por um instante, vacilando dez andares acima do solo enquanto o vento soprava contra ela, depois esticou os braços para agarrar a parte inferior da balaustrada do andar de cima. Pronto! Apenas a sua altura e uma tendência que possuía desde adolescente para a ginástica faziam com que fosse possível, mas ela tinha essa altura, essa tendência. Segurando com ambas as mãos a parte de baixo da balaustrada superior, tirou os pés do corrimão, contorceu-se no ar até ter o corpo na perpendicular e girou as pernas de modo a segurar-se ao corrimão com os joelhos. Mais um impulso e estava na varanda por cima da sua.

Um já estava, faltava mais um. Tinha os dentes a bater e sentia o corpo gelado por baixo do calor gerado pelo exercício; sem parar para descansar, subiu para o corrimão e estendeu as mãos para a parte de baixo da balaustrada no piso de Carmine. "Força, Desdemona, tens de o fazer enquanto consegues!" Novamente para cima, para a segurança da varanda dois pisos acima do seu.

Agora tudo o que tinha de fazer era passar de varanda para varanda no mesmo piso - o que era mais fácil de dizer do que de fazer, pois o intervalo entre uma e outra era de quase três metros. Decidiu ultrapassar a distância equilibrando-se em cima do corrimão e saltando com impulso para a varanda seguinte. Quantos saltos seriam precisos? Doze. E os seus pés estavam a ficar dormentes, as mãos dentro das luvas de lã começavam a perder a sensibilidade. Mas era possível - tinha de ser, tendo em conta o que a esperava lá em baixo se hesitasse. Como podia ter a certeza de que ele não era pelo menos tão ágil como ela?

Finalmente chegou; estava na varanda de Carmine e começou a dar murros na porta de correr que dava para o quarto dele.

- Carmine, Carmine, deixa-me entrar! - gritou.

A porta abriu-se de rompante; Carmine, vestido apenas com boxers, apreendeu num milissegundo a presença dela e puxou-a para dentro.

Num instante tinha tirado o edredão da cama e enrolara-o à volta dela.

- Ele está no meu apartamento - conseguiu ela dizer.

- Fica aqui e concentra-te em aquecer - disse ele, levantando o termostato e desaparecendo, ainda a puxar as calças para cima.

- Olhem para isto - disse Carmine a Abe e Corey vinte minutos depois, apontando para a porta aberta do apartamento de Desdemona.

A fechadura de aço temperado fora cortada; uma pequena pilha de aparas de ferro jazia no chão, por baixo do local onde a fechadura estaria se a porta estivesse fechada.

- Céus! - murmurou Abe.

- Temos de aprender tudo de novo - disse Carmine com expressão sombria. - Se isto prova alguma coisa, é que as nossas noções de segurança não prestam para nada.

Para o manter de fora, teríamos de ter sobreposto o metal no exterior da porta, mas não o fizemos. Oh, ele desapareceu... desapareceu assim que viu que Desdemona não estava, penso eu. Esfumou-se como um fantasma.

- Como diabo é que ela conseguiu passar por ele? - perguntou Corey.

- Saiu para a varanda, escalou dois andares e depois passou de varanda para varanda até ao meu apartamento. Ouvi-a a bater na minha porta.

- Deve estar maltratada, com este tempo... corrimões de metal, o vento...

- Nem pensar! - disse Carmine, com algum orgulho na voz. - Calçou luvas e tinha meias de lã.

- Uma mulher e pêras - disse Abe em tom reverente.

- Tenho de voltar para junto dela. Façam o que é preciso fazer, rapazes. Rebusquem o prédio, desde a cave à cobertura. Mas ele já cá não está.

Desdemona ainda estava enrolada no edredão e Carmine desenrolou-a.

- Sentes-te melhor?

- Como se me tivessem arrancado os braços das articulações, mas... oh, Carmine, consegui fugir! Ele estava lá, não estava? Não foi apenas a minha imaginação?

- Esteve lá, sim, mas já desapareceu. Cortou a fechadura com algo como uma serra de relojoeiro com ponta de diamante... fina, estreita, pode cortar tudo, se for usada por um especialista. Portanto sabemos que ele é especialista. Não se apressou, para não correr o risco de a partir. O filho da mãe! Riu-se da nossa segurança.

- Carmine ajoelhou-se para lhe descalçar as meias e examinar a pele dos pés. - Deste lado sobreviveste. Agora vamos ver as mãos - também tinham sobrevivido. - És uma mulher extraordinária, Desdemona.

Sentindo-se aquecer, ela sorriu.

- Esse é um elogio que vou guardar para sempre, Carmine. - Ddepois estremeceu. - Oh, mas estava tão aterrorizada! Vi apenas a sombra dele quando abriu a porta da rua, mas tive a certeza de que viera para me matar. Mas porquê? Porquê eu?

- Talvez para me atingir a mim. Para atingir a polícia. Para provar que se, e quando, decidir agir, ninguém o pode deter. O problema é que estamos habituados a criminosos vulgares, homens que não teriam inteligência nem paciência para tentar uma proeza como serrar uma fechadura de cinco centímetros. Com dentes de diamante ou não, deve ter demorado várias horas.

De súbito, agarrou-a e puxou-a para si num abraço quase desesperado.

- Desdemona, Desdemona, quase te perdi! Tiveste de te salvar a ti própria enquanto eu ressonava! Oh, meu Deus, morria se te perdesse!

- Não vais perder-me, Carmine - disse ela com um suspiro, aninhando a cabeça no ombro dele, beijando-o no pescoço. - Estava aterrorizada, sim, mas não me passou pela cabeça outra coisa senão vir para junto de ti. Sabia que estaria em segurança contigo.

- Amo-te.

- E eu a ti. Mas sentir-me-ia ainda mais segura se me levasses para a cama - disse Desdemona, afastando o rosto do pescoço dele. - Há partes de mim que não descongelam há anos.


Em meados de Fevereiro surgiu o primeiro degelo. Começou a chover intensamente numa sexta-feira e só parou já a noite de domingo ia adiantada. Todas as partes baixas do Connecticut estavam submersas em água gelada que tentava, em vão, escoar. A casa dos Finch ficou isolada da estrada 133 exactamente como Maurice Finch descrevera a Carmine; o ribeiro de Ruth Kyneton subira tanto que ela tinha de estender a roupa de galochas; e o Dr. Charles Ponsonby entrou no Hug a queixar-se amargamente de uma adega inundada.

Frustrado pela intensidade do dilúvio e atormentado pelos músculos das pernas perros, na segunda-feira de madrugada Addison Forbes decidiu dar uma pequena corrida pela zona de East Holloman, e depois ir até ao seu pontão à beira de água. Aí construíra uma casa de barco para o seu pequeno barco, embora fossem poucas as vezes em que o seu estado de espírito o levava a lançá-lo para um passeio de lazer no porto de Holloman. Nos últimos três anos, o lazer tornara-se para Addison Forbes um pecado, se não mesmo um crime.

Um carro-patrulha suspeito estava estacionado perto do íngreme caminho de acesso à casa dos Forbes, e os seus ocupantes fizeram-lhe um aceno com expressões admiradas quando passou por eles, decidido a concluir a sua corrida. Estava banhado em suor quando começou a descer a encosta por entre a vegetação; três dias de chuva tinham derretido a neve congelada, daí as inundações por todo o estado, e o solo debaixo dos pés de Forbes estava saturado, escorregadio. Anos antes, plantara uma fileira de forsítias ao fundo da encosta - como era maravilhoso quando aquelas percursoras da Primavera rebentavam em botões amarelos!

Mas em Fevereiro a sebe de forsítias era apenas um conjunto de paus rígidos e castanhos e, quando Forbes reparou numa mancha lilás no solo por baixo da sebe, estacou.

Uma fracção de segundo depois viu os braços e pernas que emergiam da mancha lilás e ouviu o seu coração traiçoeiro a bater-lhe acelerado nos ouvidos. Agarrou-se ao peito, abriu a boca seca para gritar, mas não conseguiu. Oh, Deus do céu, o choque! Ia ter outro ataque, isto tinha de lhe provocar outro ataque! Apoiado às costas de um velho banco de jardim que Robin ali colocara para "sonhar", contornou-o lentamente até conseguir sentar-se à espera que a dor surgisse, com um instinto antigo e impossível de erradicar fazendo com que abrisse e fechasse constantemente a mão esquerda enquanto aguardava que a dor disparasse pelo braço. De olhos esbugalhados, boca entreaberta, Addison Forbes esperou. "Vou morrer, vou morrer..."

Dez minutos depois a dor não surgira e já não conseguia ouvir o coração. O pulso abrandara, precisamente como acontecia sempre depois das suas corridas, e não se sentia diferente do que se costumava sentir depois de correr. Levantou-se bruscamente e isso também não lhe causou qualquer dor; virou-se para olhar para a mancha lilás, com os seus braços e pernas, depois começou a subir a encosta até casa com passos longos e ritmados, a alegria a crescer dentro de si. - O corpo dela está ao pé da água - disse quando entrou na cozinha. - Chama a polícia, Robin.

Ela guinchou e correu de um lado para o outro como uma barata tonta, mas fez o telefonema e depois aproximou-se dele, procurando-lhe o pulso.

- Estou bem - disse ele, irritado. - Larga-me, mulher, estou bem! Acabo de sofrer um choque terrível, mas o meu coração não falhou. - Uum sorriso sonhador surgiu-lhe nos lábios. - Tenho fome, quero um bom pequeno-almoço. Ovos estrelados e bacon, torradas de pão de passas com muita manteiga, e natas no café. Vá, Robin, mexe-te!

- Eles enganaram-nos - disse Carmine, de pé à beira da água com Abe e Corey. - Como pudemos ser tão estúpidos? A observar as estradas, sem sequer pensarmos no porto.

Ela foi largada aqui por um barco.

- Toda a costa leste esteve congelada até sábado à noite - disse Abe. - Isto teve de ser uma decisão de última hora, não pode ser onde tinham planeado deixá-la.

- Uma ova é que não pode - disse Carmine com convicção. - O degelo tornou-o mais fácil, apenas isso. Se a água tivesse continuado gelada, eles teriam caminhado sobre o gelo desde uma rua que nós não estivéssemos a patrulhar. Assim, puderam usar um barco a remos e aproximá-lo o suficiente para a atirar sobre a borda. Nunca puseram os pés em terra.

- Ela está completamente congelada - disse Patrick, juntando-se a eles. - Tem um vestido de festa lilás com pérolas cosidas em vez de brilhantes, de um tecido rendado que nunca vi antes... não é mesmo renda. O vestido serve-lhe melhor do que o da Margaretta, pelo menos em comprimento. Ainda não a virei para ver se está abotoado.

Não tem marcas de cordas, nem vergões no pescoço. Para além de algumas folhas molhadas, está muito limpa.

- Uma vez que eles não chegaram a desembarcar, não vamos encontrar nada aqui. Deixo o resto contigo, Patsy. Venham, rapazes - disse a Abe e Corey. - Temos de perguntar a todas as pessoas com casas viradas para a água se viram ou ouviram alguma coisa ontem à noite. Mas, Corey, tu vais alargar mais a nossa rede. Leva a lancha da polícia e contorna os barcos cisterna e de carga ancorados no porto. Talvez alguém tenha vindo ao convés apanhar ar, depois de dias enfiado no porão, e tenha visto um barco a remos. É o tipo de coisa em que um marinheiro repararia.

- É uma repetição da Margaretta - disse Patrick a Silvestri, Marciano, Carmine e Abe; Corey andava na água, na lancha da polícia. - Os ombros da Faith são mais estreitos e os seios mais pequenos, por isso eles conseguiram abotoar o vestido. Não tem uma única marca, o que significa que ela devia vir em qualquer coisa à prova de água durante a viagem de barco. Qualquer coisa mais fina e lisa do que um oleado vulgar. Os barcos têm sempre alguns centímetros de água no fundo, mas o vestido estava seco, sem manchas.

- Como é que morreu? - perguntou Marciano.

- Violada até à morte, como a Margaretta. O que não sei é se esta nova ferramenta que eles utilizam foi deliberadamente concebida para matar ou se eles preferiam que fizesse o seu trabalho mais lentamente... ao longo de vários ataques. Assim que a Faith morreu foi colocada num congelador, mas não uma arca doméstica. Mais do género que se pode encontrar num supermercado. Tem de ser suficientemente comprido para a Margaretta lá caber deitada, e bastante largo, porque ambas as raparigas foram colocadas de braços afastados do corpo e pernas ligeiramente abertas. Foram ambas vestidas depois de estarem duras como pedra. As cuecas da Faith também eram modestas, mas lilases em vez de cor-de-rosa. Mãos e pés nus. A Faith tem dois dedos tortos no pé esquerdo, de uma fractura antiga. Isso facilitará à família a tarefa de a identificar, se alguma vez saírem do seu histerismo.

- Acha que foi a mesma pessoa que fez ambos os vestidos? - perguntou Silvestri. - Quer dizer, são diferentes, e contudo iguais.

- Não sou especialista em vestidos de festa. Acho que a namorada do Carmine devia observá-los e dizer-nos o que pensa - disse Patrick, piscando o olho.

Carmine corou. "Então é assim tão óbvio? E se for? Estamos num país livre e só tenho de rezar para que nunca venhamos a precisar do testemunho de Desdemona para apanhar estes filhos da puta. Um advogado da polícia dir-me-ia que Desdemona é o maior erro que cometi neste caso, mas estou disposto a seguir os instintos que me dizem que ela é irrelevante, apesar do atentado contra a sua vida. O amor não me faria perder os instintos de polícia. Céus, e como a amo! Quando ela me apareceu na varanda, percebi num segundo que a amava mais do que a mim próprio. É a luz da minha vida."

- Tiveste alguma sorte com o vestido cor-de-rosa, Carmine? - perguntou Danny Marciano.

- Não, nada. Mandei alguém verificar todas as lojas que vendem vestidos de criança, de uma ponta à outra do estado, mas vestidos de festa de mais de cem dólares parecem ser demasiado finos para os gostos do Connecticut. O que é estranho, tendo em conta que no Connecticut existem algumas das zonas mais ricas do país.

- As mães ricas passam a vida a conduzir os seus Cadillacs de um centro comercial para o outro - disse Silvestri. - Vão ao Filene's em Boston, por amor de Deus!E a  Manhattan.

- Bem visto - disse Carmine com um sorriso. - Estamos a examinar as Páginas Amarelas, desde o Maine a Washington. Quem quer atacar uma pilha de panquecas com bacon e xarope na porta do lado?

"Pelo menos recuperou o apetite", pensou Patrick, acenando em sinal de assentimento. "Só Deus sabe o que ele vê naquela inglesa, mas não é nada parecida com a ex-mulher.

Pelo menos não se embeiçou outra vez por uma brasa, embora, quanto mais eu a vejo, menos a considero propriamente feia. Uma coisa é certa, tem miolos e sabe usá-los. Isso deve ser atraente para um homem como Carmine."

- Oh, o Addison foi ao Hug - disse Robin Forbes a Carmine, em tom animado, quando ele apareceu em sua casa.

- Parece estar feliz - observou ele.

- Tenente, há três anos que vivo no inferno - disse ela, caminhando com passo enérgico. - Depois daquele ataque cardíaco, o Addison convenceu-se de que a morte não tardaria. Tinha tanto medo! As corridas, não comia nada senão fruta e legumes... tenho de ir a Rhode Island para encontrar uma posta de peixe que ele não rejeite.

Estava convencido de que um choque o mataria, por isso esforçava-se ao máximo para evitar qualquer choque. Depois, esta manhã, encontrou aquela pobre rapariga e apanhou um choque... um choque tremendo. Mas nem sequer se sentiu mal, e obviamente que não morreu. - De olhos a brilhar, deu um passo de dança. - Voltámos a ter uma vida normal.

Sem fazer a mínima ideia de que Addison Forbes tinha fantasias homicidas sobre a mulher, Carmine partiu depois de dar mais uma volta à propriedade, pensando que realmente havia sempre um lado bom em todas as coisas más. O Dr. Addison Forbes seria agora um homem muito mais feliz - pelo menos até os advogados de Roger Parson Júnior encontrarem uma cláusula no testamento do tio William que pudessem contestar. Faria parte do esquema do Fantasma destruir o Hug, para além de acabar com a vida destas bonitas jovens? E se assim fosse, porquê? Seria possível que, ao destruírem o Hug, quisessem realmente destruir o professor Robert Mordent Smith? Se assim era, estavam no bom caminho para o sucesso. E onde é que Desdemona encaixava? Passara o pequeno-almoço a interrogá-la, à boa maneira implacável da polícia:

teria visto alguma coisa que estivesse de alguma forma sepultada sob as suas memórias conscientes? Estaria a passar por alguma rua quando uma das raparigas fora raptada? Alguém no Hug lhe teria dito alguma coisa inapropriada?

Alguma coisa invulgar se intrometera no decorrer normal dos seus dias? A todas estas perguntas, que ela suportou pacientemente, perdendo mesmo algum tempo a reflectir sobre elas, a resposta tinha sido uma negativa convicta.

Depois de uma passagem infrutífera pelo Hug, Carmine entrou de novo no Ford e conduziu em direcção a Merrit Parkway, a estrada para Nova Iorque que passava por Trumbull.

Embora não esperasse conseguir autorização para ver o professor, não via razão para não inspeccionar tanto quanto pudesse das instalações de Marsh Manor, para confirmar por si próprio o que a polícia de Bridgeport lhe dissera: era fácil um paciente escapulir-se das instalações.

Sim, decidiu, passando pelos imponentes portões, a agorafobia manteria mais pacientes dentro de Marsh Manor do que os seguranças. Não havia seguranças.

Muito bem. E agora? Os Chandras. A sua propriedade ficava perto de Wilbur Cross, onde o curso aparentemente aleatório da estrada 133 a levava por uma zona de quintas e celeiros, no meio de campos agradáveis e pomares de macieiras. Era demasiado tarde para ter outra conversa com Chandra no Hug - sexta-feira fora o seu último dia de trabalho, tanto dele como de Cecil.

A casa não estava à escala do manicómio de Marsh Manor, mas a propriedade recordava a Carmine um complexo de Cape Cod, com meia dúzia de residências espalhadas pelos terrenos; embora esta, com quatro hectares, fosse muito maior. Se Carmine ficou impressionado, foi ao ver quanta organização era necessária para criar uma vida de luxo para duas pessoas e algumas crianças com dinheiro de sobra. Sem dúvida que os Chandras teriam um gestor, um vice-gestor e um gestor especializado, para além do exército de lacaios de turbante. Estava tudo estruturado de modo a que os Chandras não tivessem sequer de se aperceber do esforço envolvido. Um estalar de dedos, metaforicamente, e o que desejavam aparecia de imediato.

- É muito inconveniente - disse o doutor Nur Chandra, falando com Carmine na imponente biblioteca - , mas necessário, tenente. O Hug era perfeito para as minhas necessidades, incluindo no que diz respeito ao Cecil.

- Então porquê partir? - perguntou Carmine. Chandra fez uma expressão desdenhosa.

- Oh, por favor, meu bom homem, certamente que vê que o Hug acabou? O Robert Smith não voltará, e disseram-me que os directores Parson estão à procura de uma maneira para deixarem de financiar o Hug. Portanto prefiro sair já, enquanto as coisas estão em curso, do que esperar e ter de passar por cima de mais cadáveres. Preciso de partir enquanto este monstro ainda está em acção, para poder eliminar qualquer suspeita a meu respeito. Pois não conseguirão apanhá-lo, tenente.

- Isso parece-me tudo muito bem e lógico, doutor Chandra, mas suspeito que a verdadeira razão pela qual está tão ansioso por partir tem a ver com os seus macacos.

As suas hipóteses de os levar consigo, no meio do caos actual, são muito maiores do que quando os Parsons estiverem a prestar mais atenção à situação do Hug do que a um testamento. Na verdade, o senhor está a escapulir-se com perto de um milhão de dólares em propriedade do Hug, diga o que disser o seu contrato.

- Oh, muito perspicaz, tenente! - disse Chandra em tom apre-ciativo. - É precisamente por isso que quero partir já. Depois de eu me ter ido embora e levado os macacos comigo, será um facto consumado. Resolver a situação, em termos legais e logísticos, será um pesadelo.

- Os macacos ainda estão no Hug?

- Não, estão aqui, em instalações temporárias. Com o Cecil Potter.

- E quando tenciona partir para o Massachusetts?

- As coisas já estão em andamento. Eu, a minha mulher e os meus filhos partiremos na sexta-feira. O Cecil e os macacos vão amanhã.

- Ouvi dizer que comprou uma bela casa perto de Boston.

- Sim. Muito parecida com esta, na verdade.

Surina Chandra entrou nesse momento, vestindo um sari escarlate bordado com fio dourado, os braços, pescoço e cabelo a cintilarem com o brilho das jóias. Atrás dela vinham duas meninas com aproximadamente sete anos de idade - gémeas, pensou Carmine, estupefacto com a sua beleza. Mas a emoção desapareceu num segundo, assim que olhou para as roupas delas. Vestidos iguais, de renda coberta de pedras brilhantes, com saias rodadas e rígidas e mangas de balão. Ambos de um verde-claro etéreo.

De alguma forma, conseguiu disfarçar os seus sentimentos durante as apresentações. As meninas, Leela e Nuru, eram de facto gémeas; crianças recatadas, com enormes olhos negros e cabelo preto preso em tranças tão grossas como cordas de amarração, caídas sobre os seus ombros. Tal como a mãe, cheiravam a algum perfume oriental de que Carmine não conseguia gostar - almiscarado, pesado, tropical. Tinham diamantes nas orelhas que faziam as pedras dos vestidos parecerem de plástico.

- Gosto muito dos vossos vestidos - disse às gémeas, agachando-se para ficar ao nível delas mas sem se aproximar muito.

- Sim, são bonitos - disse a mãe. - É difícil encontrar este tipo de indumentária para crianças na América. Claro que mandamos vir muitos da índia, mas quando elas viram estes ficaram encantadas.

- Se não é indiscrição, Mrs. Chandra, onde é que encontrou os vestidos?

- Num centro comercial, não muito longe de onde vamos viver. Uma loja para meninas encantadora, melhor do que qualquer uma que vi no Connecticut.

- Pode dizer-me onde fica o centro comercial?

- Oh, céus, receio que não. Parecem-me todos iguais e ainda Dão conheço bem a zona.

- Suponho que não se lembra do nome da loja, então? Ela riu-se, mostrando os dentes brancos e brilhantes.

- Uma vez que cresci com as obras de J. M. Barrie e Kenneth Grahame, claro que sim! Chamava-se Sininho.

E saíram as três, as gémeas acenando-lhe timidamente.

- As minhas filhas gostaram de si - disse Chandra.

Simpático, mas pouco importante.

- Posso usar o seu telefone, doutor?

- Com certeza, tenente. Vou dar-lhe alguma privacidade.

"Pelo menos ninguém os pode acusar de falta de maneiras, mesmo que a ética deles seja diferente", pensou Carmine enquanto marcava o número de Marciano, com os dedos a tremer.

- Sei de onde vieram os vestidos - disse, sem preâmbulos. - Sininho. Sininho, como na história. Há uma loja num centro comercial nos arredores de Boston, mas pode haver outras. Começa a procurar.

- Duas lojas - disse Marciano quando Carmine entrou. - Em Boston e em White Plains, ambas em centros comerciais finos. Tens a certeza disto?

- Absoluta. Duas das filhas do Chandra traziam vestidos idênticos ao da Margaretta, excepto na cor. Estes eram verdes. A questão agora é saber qual das duas Sininhos colheu a preferência dos nossos Fantasmas.

- A de White Plains. É mais perto, a menos que eles vivam perto da fronteira do Massachusetts. O que também é possível, claro.

- Nesse caso, o Abe pode ir a Boston amanhã, e eu fico com a de White Plains. Meu Deus, Danny, finalmente temos uma pista!


A loja Sininho, em White Plains, ficava num centro comercial de roupas elegantes e lojas de mobílias, intercaladas com as inevitáveis mercearias de luxo, restaurantes de comida rápida, lojas de tapetes e lavandarias. Havia também vários restaurantes que serviam mais almoços do que jantares. O edifício era novo e tinha dois pisos, mas os proprietários da Sininho eram demasiado astutos para a colocarem no piso de cima. Ficava no piso térreo, junto à entrada.

Era, reparou Carmine enquanto inspeccionava a loja do exterior, um estabelecimento bastante grande, inteiramente dedicado a roupas para crianças do sexo feminino.

Estava a decorrer um saldo de sobretudos e roupa de Inverno; aqui não havia material feito de nylon barato, era tudo de fibras naturais. Havia até, viu, uma secção dedicada a peles verdadeiras, do outro lado de um arco que dizia Kiddiminx. Várias dezenas de clientes vasculhavam as prateleiras, apesar de ser cedo, algumas com crianças pela mão, outras sozinhas. Nenhum dos clientes era homem. O polícia que havia nele perguntou-se se haveria muitos roubos numa loja como esta.

Entrou com tanta confiança quanta conseguiu reunir, parecendo - e sentindo-se - completamente deslocado. Pelos vistos devia ter um letreiro de néon na testa a piscar com a palavra polícia, pois as mulheres afastavam-se rapidamente dele e as empregadas da loja começaram a juntar-se.

- Posso falar com a gerente, por favor? - pediu a uma pobre rapariga que não conseguira integrar-se no grupinho a tempo.

Oh, óptimo, podiam tirá-lo dali! A rapariga conduziu-o imediatamente para a parte de trás da loja e bateu a uma porta.

Mrs. Giselle Dobchik mandou-o entrar para um cubículo minúsculo, atafulhado de caixas de cartão e armários de arquivo; de um lado da mesa, que servia de secretária a Mrs. Dobchik, havia um cofre, mas não sobrava espaço para uma segunda cadeira. A reacção dela ao ver o distintivo de Carmine foi de interesse imperturbável; mas, por outro lado, Mrs. Dobchik parecia o tipo de pessoa a quem pouca coisa conseguia perturbar. Quarenta e poucos anos, muito bem vestida, cabelo louro, unhas pintadas de vermelho e não demasiado compridas, para não se prenderem na mercadoria.

- Reconhece isto, minha senhora? - perguntou, tirando da pasta o vestido de renda que Margaretta vestira e, de seguida, o vestido lilás de Faith. - Ou isto?

- São quase de certeza da Sininho - disse ela, começando a apalpar as costuras, de testa franzida. - As nossas etiquetas foram removidas, mas sim, posso garantir-lhe que são genuínos vestidos Sininho. Temos truques especiais com as pedras.

- Suponho que não se lembra de quem os comprou?

- Podem ter sido várias pessoas, tenente. Os vestidos são ambos tamanho dez... ou seja, para crianças entre os dez e os doze anos. Depois dos doze, as raparigas têm tendência a parecerem-se mais com mulherzinhas do que com fadas. Temos sempre em armazém um vestido de cada modelo e cor para cada tamanho, mas dois era complicado.

Venha comigo.

Carmine seguiu-a para fora do gabinete, até uma grande área repleta de vestidos brilhantes e pregueados, arrumados em dezenas de cabides compridos, e compreendeu o que ela quisera dizer com "dois era complicado"; devia haver para cima de dois mil vestidos, em tons que iam do branco ao vermelho escuro, todos cobertos de pedras brilhantes, pérolas ou contas opalescentes.

- Seis tamanhos, dos três aos doze anos, vinte modelos diferentes e vinte cores diferentes - disse ela. - Somos famosos por estes vestidos, compreende... vendem-se assim que chegam às prateleiras. - Soltou uma risada. - Afinal de contas, não pode haver duas meninas com o mesmo modelo e a mesma cor na mesma festa! Vestir um vestido Sininho é um sinal de posição social. Pergunte a qualquer mãe ou criança no condado de Westchester. A marca estende-se ao Connecticut... muitos dos nossos clientes vêm dos condados de Fairfield e Litchfield.

- Depois de ir buscar os meus vestidos e a minha pasta, posso convidá-la para almoçar, Mrs. Dobchik? Ou talvez para um café? Sinto-me como um touro numa loja de porcelana, e de certeza que a minha presença não é boa para o negócio.

- Obrigada, um intervalo vai saber-me bem - disse Mrs. Dobchik.

- Aquilo que disse, sobre duas raparigas não poderem aparecer com vestidos Sininho iguais na mesma festa, leva-me a crer que a loja deve ter registos bastante detalhados - disse ele pouco tempo depois, bebendo um leite com chocolate por uma palhinha; influências de estar no meio de tanta coisa infantil.

- Oh, sim, tem de ser. Simplesmente os dois modelos que me mostrou existem há já alguns anos, pelo que vendemos muitos exemplares. A renda cor-de-rosa já existe há cinco anos, a lilás há quatro. Os seus exemplares estão tão maltratados que não é possível dizer exactamente quando foram feitos.

- Onde é que são fabricados?

Ela mordiscou um biscoito, apreciando claramente o seu papel de especialista.

- Temos uma pequena fábrica em Worcester, Massachusetts. A minha irmã gere a loja de Boston, eu a de White Plains, o nosso irmão gere a fábrica. É um negócio de família... somos os únicos proprietários.

- Costumam aparecer homens a fazer compras?

- Às vezes, tenente, mas regra geral os clientes da Sininho são mulheres. Os homens podem comprar lingerie para as esposas, mas geralmente evitam comprar vestidos de festa para as filhas.

- Alguma vez vendeu dois vestidos do mesmo tamanho e cor ao mesmo comprador, no mesmo dia? Para gémeas, por exemplo?

- Sim, acontece, mas envolve uma espera de um dia para mandarmos vir o segundo vestido. As senhoras com gémeas encomendam antecipadamente.

- E se alguém comprasse, por exemplo, o meu de renda cor-de-rosa e o lilás de seja lá o que for...

- Bordado inglês - interrompeu ela.

- Obrigado, vou tomar nota. Alguém compraria dois modelos de cores diferentes e do mesmo tamanho no mesmo dia?

- Só aconteceu uma vez - disse, e suspirou de prazer com a recordação. - Oh, que venda! Doze vestidos de tamanho dez-doze, todos de cores e modelos diferentes.

Carmine sentiu os cabelos da nuca arrepiarem-se.

- Quando?

 - Perto de finais de mil novecentos e sessenta e três, julgo eu. Posso verificar.

- Antes de voltarmos e de me fazer esse favor, Mrs. Dobchik, lembra-se de quem era essa compradora? Como é que ela era?

- Lembro-me muito bem - disse a testemunha perfeita. - Não sei o nome dela... pagou em dinheiro. Mas estava na faixa etária das avós. Cerca de cinquenta e cinco anos. Vestia um casaco de pele de marta e um elegante chapéu do mesmo material, tinha cabelo pintado, estava bem maquilhada, mas sem exageros, tinha nariz grande, olhos azuis, óculos bifocais muito elegantes e uma voz agradável. A mala e os sapatos eram Charles Jourdan, a condizer, e calçava luvas de pelica castanhas, como os sapatos e a mala. Um motorista uniformizado levou as caixas para a limusina. A viatura era um Lincoln preto.

- Não parece ser uma pessoa que precisasse de descontos.

- Valha-me Deus, claro que não! Até hoje, é a maior venda de vestidos de festa que alguma vez fizemos. Cento e cinquenta dólares cada, mil e oitocentos dólares.

Ela pagou com notas de cem que tirou de um maço com cinco centímetros de altura.

- Por acaso perguntou-lhe por que razão estava a comprar tantos vestidos de festa do mesmo tamanho?

- Claro que sim... quem não perguntaria? Ela sorriu e disse-me que era a representante local de uma organização de caridade que ia mandar os vestidos para um orfanato em Buffalo, como prendas de Natal.

- E acreditou? Giselle Dobchik sorriu.

- É tão credível como comprar doze vestidos do mesmo tamanho, não é?

- Suponho que sim.

Voltaram à loja, onde Mrs. Dobchik procurou o registo da venda. Não tinha o nome.

- Tirou os números de série das notas - observou Carmine. - Porquê?

- Na altura andava a circular dinheiro falso, por isso liguei para o banco enquanto as empregadas embalavam os vestidos.

- E as notas não eram falsas?

- Não, eram genuínas, mas o banco ficou interessado nelas porque tinham sido emitidas em mil novecentos e trinta e três, pouco depois de termos abandonado o padrão ouro, e estavam como novas - Mrs. Dobchik encolheu os ombros. - Como se eu me importasse. Eram moeda legal. O gerente do meu banco pensou que tivessem estado amealhadas em casa.

Carmine estudou a lista de dezoito números.

- Concordo. Os números são consecutivos. Muito invulgar, mas não me ajuda em nada.

- Isto está relacionado com algum caso grande e excitante? - perguntou Mrs. Dobchik enquanto o acompanhava à porta.

- Receio que não, minha senhora. Apenas mais um caso de falsificação.

- Sabemos que os Fantasmas planearam a segunda série de homicídios antes de começarem a primeira - disse Carmine a uma assistência fascinada. - A venda foi feita em Dezembro de mil novecentos e sessenta e três, muito antes de a primeira vítima, Rosita Esperanza, ter sido raptada. Eles assassinaram doze raparigas, uma de dois em dois meses, ao longo de dois anos, com doze vestidos Sininho empacotados em naftalina para o dia em que seriam usados. Quem quer que eles sejam, não estão a seguir o ciclo da Lua, que é o que os psiquiatras querem pensar, agora que reduziram o intervalo para trinta dias. A Lua não tem nada a ver com os Fantasmas. Eles estão a seguir o ciclo do Sol... doze, doze, doze.

- A descoberta da origem dos vestidos ajuda? - perguntou Silvestri.

- Não, enquanto não houver um julgamento.

- Mas primeiro, temos de encontrar os Fantasmas - disse Marciano. - Quem achas que será essa avozinha, Carmine?

- Um dos Fantasmas.

- Mas disseste que não eram crimes de mulheres.

- E continuo a pensar o mesmo, Danny. No entanto, é muito mais fácil um homem disfarçar-se de uma senhora de idade do que de uma mulher jovem. A pele áspera e as rugas não chamam tanto a atenção.

- Adoro os adereços - disse Silvestri secamente. - Casacos de pele de marta, motorista e limusina. Podemos seguir a pista da limusina?

- Vou pôr o Corey a tratar disso amanhã, John, mas não tenho muita esperança. O motorista era o outro Fantasma, calculo. É engraçado, Mrs. Dobchik lembrava-se de todos os detalhes sobre a compradora, até ao pormenor dos óculos bifocais, mas não se recorda de absolutamente nada sobre o motorista, para além do fato preto, boné e luvas de cabedal.

- Não, isso é lógico - disse Patrick. - A tua Mrs. Dobchik está no negócio do vestuário. As suas clientes são mulheres ricas, não homens trabalhadores. Ela arquiva as mulheres na memória e conhece todo o tipo de peles, todas as marcas de malas e sapatos franceses. Aposto que a avozinha não tirou as luvas de pelica nem por um segundo, mesmo quando tirou as notas do maço.

- Tens razão, Patsy. Esteve sempre de luvas. Silvestri gemeu.

- Então não estamos mais perto dos Fantasmas.

- De certa forma não, John, mas fizemos progressos. Uma vez que eles não deixam quaisquer evidências e ninguém conseguiu dar-nos uma descrição, estamos à procura de uma agulha num palheiro. Quantas pessoas há no Connecticut, três milhões? E é um estado bastante pequeno... não tem grandes metrópoles, apenas uma dúzia de cidades maiores, cem mais pequenas. Bom, esse é o nosso palheiro. Mas pouco tempo depois de estar metido neste caso, percebi que procurar a agulha não é o melhor caminho a seguir. Os vestidos da Sini-nho podem parecer mais um beco sem saída, mas não acredito que seja bem assim. Temos mais um prego no caixão, um novo fragmento de evidência. Tudo o que nos dê a conhecer um facto novo sobre os Fantasmas deixa-nos mais próximo deles. O que temos aqui é um puzzle só com peças de céu azul, mas os vestidos da Sininho preencheram um espaço vazio. A quantidade de céu preenchido está a aumentar.

Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com a ideia.

- Primeiro, um Fantasma transformou-se em dois Fantasmas. Segundo, os dois Fantasmas são muito chegados, como irmãos. Não sei de que cor é a pele deles, mas o que vêm na sua mente é um rosto. Mais do que qualquer outra coisa, um rosto. O tipo de rosto que não se encontra em raparigas brancas, nem muito frequentemente em raparigas negras. Os Fantasmas trabalham como uma equipa no verdadeiro sentido da palavra... cada um tem tarefas específicas, áreas de especialização. Isso provavelmente alarga-se ao que fazem com as vítimas depois de elas serem capturadas. A violação excita-os, mas a vítima tem de ser virgem em todos os sentidos... não estão interessados em namoradeiras com o hímen intacto.

Um dos Fantasmas dá à vítima o seu primeiro beijo, portanto talvez seja o outro a desflorá-la. Vejo uma continuação do trabalho de equipa... tu fazes isto, eu faço aquilo. Quanto à morte propriamente dita, não tenho a certeza, mas suspeito que será o Fantasma subserviente a tratar disso. É ele que trata da limpeza. A única razão pela qual guardam as cabeças, é o rosto, o que significa que, quando os encontrarmos, vamos encontrar todas as cabeças, desde a Rosita Esperanza. Enquanto as suas actividades não eram conhecidas pela polícia, divertiam-se com os raptos em plena luz do dia, mas, depois da Francine Murray, começaram a ficar apertados.

Estou a começar a pensar que mudaram para a noite devido à maior atenção policial, e não como parte de um novo método conscientemente concebido. Os raptos nocturnos são menos arriscados, pura e simplesmente.

Patrick semicerrou os olhos como se estivesse a focar uma coisa muito pequena.

- O rosto - disse. - É a primeira vez que te oiço pôr de lado os outros critérios, Carmine. O que te faz pensar que seja apenas o rosto? Por que razão puseste de lado a cor da pele, o credo, a raça, o tamanho, a inocência?

- Oh, Patsy, sabes muito bem quantas vezes estive fixado em todos e em cada um desses aspectos, mas finalmente decidi-me pelo rosto. Ocorreu-me no caminho... bam!

- Deu um murro na palma da mão. - Foi a Margaretta Bewlee que mo disse. A minha pérola negra, depois de uma dúzia de pérolas claras. O que é que ela tinha em comum com as outras raparigas? E a resposta é, o rosto. Nada excepto o rosto. Feição a feição, o rosto dela é igual ao das outras todas. Distraí-me com as diferenças, ao ponto de não me aperceber da única semelhança... o rosto.

- E a inocência? - perguntou Marciano. - Ela também tinha esse ponto em comum com as outras.

- Sim, é um facto. Mas a inocência não é o que leva os nossos dois Fantasmas a raptarem estas raparigas. É o rosto. Se uma rapariga não tivesse o rosto, mesmo que fosse a menina mais inocente do mundo, isso não levaria os Fantasmas a interessarem-se nela. - Fez uma pausa, de testa franzida.

- Continue, Carmine - disse Silvestri.

- Os Fantasmas... ou talvez um deles... conheceram alguém com aquele rosto. Alguém a quem odeiam mais do que ao resto da humanidade toda junta.

Escondeu o rosto nas mãos e enfiou os dedos no cabelo.

- Um deles, ou ambos? O dominante, com certeza, enquanto o submisso pode estar metido nisto apenas para participar de uma viagem fantástica... é o servo, odeia quem o dominante odeia. Quando me disseste que os Fantasmas não estavam interessados em seios, Patsy, preencheste mais algumas peças de céu. O peito liso, os órgãos genitais depilados. Isso sugere que a possuidora desse rosto que eles odeiam era pré-adolescente, e contudo... se assim é, por que raio não raptam raparigas pré-adolescentes?

Não lhes falta a coragem nem a inteligência para isso. Então, será a possuidora desse rosto alguém que pelo menos um dos Fantasmas conheceu desde a infância à adolescência?

Que odiou mais enquanto mulher do que enquanto criança? É para este enigma que não tenho resposta.

Silvestri tirou o charuto da boca, excitado.

- Mas eles estão a ir mais longe com o aspecto de criança nesta segunda fase, Carmine. Vestidos de festa de criança.

- Se soubéssemos quem possuía originalmente o rosto que eles odeiam, saberíamos quem são os Fantasmas. Passei toda a viagem, desde White Plains, a rever mentalmente as casas de cada Hugger, à procura daquele rosto na parede de alguém, mas não está nas paredes de nenhum dos Huggers.

- Ainda acreditas que tem a ver com o Hug? - perguntou Marciano.

- Um dos Fantasmas é, decididamente, um Hugger. O outro não. Este último é o que faz as perseguições, talvez alguns dos raptos sozinho. Sempre soubemos que tinha de ser um Hugger, Danny. Sim, podemos argumentar que os corpos podiam ter sido postos em qualquer um dos frigoríficos para animais mortos da Faculdade de Medicina, mas onde, para além do Hug, é possível levar dois a dez sacos volumosos de um carro para o frigorífico sem ser visto? Isso implica várias viagens. Há pessoas a entrar e a sair dos parques de estacionamento vinte e quatro horas por dia, enquanto o parque do Hug tem um portão fechado e está completamente deserto, por exemplo, às cinco da manhã. Reparei que há um grande carrinho de compras acorrentado à parede das traseiras do Hug, para ajudar os investigadores a levarem os seus livros e papéis para dentro. Não estou a dizer que os Fantasmas não podiam ter utilizado outros frigoríficos, estou simplesmente a dizer que usar o do Hug é mais fácil e mais simples.

- Fácil e simples é sempre melhor - disse Silvestri. - Estamos de acordo em relação ao Hug, então.

- Bem podes rezar para que não seja a Desdemona, Carmine - disse Patrick.

- Oh, tenho a certeza de que não é a Desdemona.

- Ah! - exclamou Patrick, ficando tenso. - Suspeitas de alguém! Carmine respirou fundo.

- Não suspeito de ninguém, e é isso que mais me preocupa. Devia suspeitar de alguém, então por que não suspeito? O que tenho é a sensação de que estou a deixar passar qualquer coisa que está mesmo debaixo do meu nariz. Nos meus sonhos é claro como água, mas quando acordo desapareceu. Só me resta continuar a pensar.

- Fala com a Eliza Smith - disse Desdemona, com a cabeça apoiada no ombro de Carmine; ele transferira-a para o seu apartamento no dia após o seu visitante nocturno.

- Sei que não me dizes nada de verdadeiramente importante, mas estou convencida de que tu acreditas que o Fantasma é um Hugger. A Eliza faz parte do Hug desde o início e, apesar de ela nunca meter o nariz onde não é chamada, sabe muita coisa que as outras pessoas não sabem. O professor fala com ela, às vezes, como quando está aborrecido por causa do pessoal... a Tâmara é bastante difícil, o Walt Polonowski tem os seus momentos, bem como o Kurt Schiller. A Eliza licenciou-se em psicologia na Smith e fez o mestrado na Chubb. Não sou grande fã de psicólogos, mas o professor respeita muito as opiniões dela. Vai falar com ela.

- O professor alguma vez precisou de falar com a Eliza sobre ti?

- Com certeza que não! Em certa medida, eu movo-me numa órbita exterior, dessincronizada com todas as outras órbitas... um pouco como música desafinada. Sou encarada como uma contabilista, não uma cientista, e isso faz com que não tenha qualquer importância para o professor - aconchegou-se mais a ele. - Estou a falar a sério, Carmine. Fala com a Eliza Smith. Sabes perfeitamente que será a falar que este caso se resolverá.

 


Fevereiro e Março de 1966

No seguimento do degelo, Carmine andou demasiado ocupado para ir visitar Mrs. Eliza Smith, até quase uma semana depois da conversa com Desdemona. Além disso, não estava a ver o que Mrs. Smith poderia trazer de novo à sua investigação. Principalmente agora, que já se sabia que o professor não ia regressar ao Hug.

As temperaturas subiram e o vento decidiu abrandar; de um gelo terrível, o tempo tornou-se quase ideal para manifestações, suficientemente fresco para usar roupas quentes, mas não desagradável. A tampa gelada sobre a agitação racial a nível estadual derreteu; a violência rebentou por todo o lado.

Em Holloman, Mohammed el Nesr proibiu severamente os motins, pois não fazia parte dos seus planos, nesta fase, arriscar uma detenção ou mandatos de busca. De todos os grupos de pessoas negras descontentes que estavam a causar distúrbios, apenas a Brigada Negra possuía um arsenal formidável, muito além das pistolas que podiam ser roubadas de lojas de armamento ou casas particulares. E ainda não era altura de revelar a presença desse arsenal. Apesar disso, Mohammed organizava manifestações implacavelmente. E, apesar de ele esperar uma maior afluência, o número de pessoas que se tinham reunido era suficiente para colocar grupos de gente aos gritos e a agitar os punhos em frente da Câmara, do edifício dos Serviços Municipais, da Administração da Chubb, da estação de caminhos de ferro, da estação de autocarros, da residência oficial de M. M., e, claro, do Hug.

Todos os cartazes tinham a ver com a brancura, inviolabilidade e vítimas racialmente seleccionadas do Monstro do Connecticut.

- Afinal de contas - disse Wesley Ali ansiosamente a Mohammed - , o que queremos é sublinhar a discriminação racial. As adolescentes brancas estão em segurança, mas são as únicas... e esse é um facto que nem o governador, na sua torre de marfim, pode negar. Cada cidade industrial do Connecticut tem uma população pelo menos oitenta por cento negra, o que nos coloca numa posição vantajosa.

Mohammed el Nesr parecia a águia em homenagem à qual fora baptizado, um homem magnífico, orgulhoso, de nariz adunco, altura e constituição imponentes, com o cabelo escondido dentro de um gorro que ele próprio desenhara, uma espécie de turbante com o topo mais achatado. Ao princípio usara barba, mas depois decidira que a barba escondia demasiado um rosto que câmara nenhuma conseguia fazer parecer bestial, cruel ou feio. O punho branco no seu blusão da Brigada Negra era bordado e não estampado, e usava-o por cima de calças de combate, movendo-se como o ex-militar que era. Com o nome de Peter Scheinberg, alcançara o posto de coronel no Exército dos EUA, portanto era de facto uma águia. Uma águia com dois cursos de Direito.

Por trás do forro de colchões, o quartel-general no número dezoito de Fifteenth Street estava cheio de livros, pois ele lia insaciavelmente sobre lei, política e história, estudava o Corão com fervor e sabia que era um líder de homens. No entanto, ainda estava à procura da melhor forma para fazer a sua revolução; as cidades industriais talvez gozassem das suas grandes maiorias negras, mas o homem branco possuía toda a nação, e esta, de uma maneira geral, não era maioritariamente urbana.

A sua primeira inspiração fora recrutar membros para a Brigada Negra entre a abundância de homens negros nas forças armadas, apenas para descobrir que muito poucos soldados negros, independentemente do que sentiam a título particular pelo homem branco, estavam dispostos a alistar-se. Assim, após a passagem à disponibilidade - com louvores - migrara para Holloman, pensando que uma cidade pequena era o melhor local para começar a cortejar as massas inquietas dos guetos. Acreditara que a ondulação causada pela pedra que ia atirar para o lago de Holloman se espalharia até abarcar sítios muito maiores. Sendo um excelente orador, chegara a receber convites para falar em comícios em Nova Iorque, Chicago, Los Angeles. Mas os líderes locais em todo o lado invejavam o seu poder e não davam a importância devida a Mohammed el Nesr. Com cinquenta e dois anos de idade, ele sabia que lhe faltava o dinheiro e a organização a nível nacional para unir o seu povo como este precisava de ser unido. Tal como acontecia com outros autocratas, as pessoas diziam-lhe que se recusavam a ser conduzidas para onde ele as queria conduzir. Preferiam claramente seguir Martin Luther King, um pacifista e um cristão.

E agora aqui estava este sanscullote magricela do Luisiana a dar-lhe conselhos. Como é que deixara as coisas chegarem a este ponto?

- Tenho andado também a pensar - disse Wesley Ali - , sobre o que me disseste há alguns meses... lembras-te? Disseste que o nosso movimento precisava de um mártir.

Pois bem, estou a tratar disso.

- Óptimo, Ali, trata disso. Entretanto, volta à tua ideia original, o Hug. E à Eleventh Street.

- Como está a andar o comício de domingo?

- Muito bem. Parece que conseguiremos ter cinquenta mil negros no parque ao meio-dia. Agora desaparece, Ali, deixa-me continuar a escrever o meu discurso.

Obedecendo às suas ordens, Wesley Ali desapareceu em direcção a Eleventh Street, onde ia espalhar a palavra de que Mohammed el Nesr falaria no próximo domingo no parque de Holloman. Não só todos eles tinham de estar presentes, como tinham também de persuadir os amigos e vizinhos a irem. Mohammed era um orador brilhante e carismático, elogiou o seu discípulo, e valia muito a pena ouvi-lo. "Venham e fiquem a perceber como é que os brancos estão a lixar os negros." Nenhuma criança negra estava segura, mas Mohammed el Nesr tinha as respostas.

Era uma pena, pensou Wesley Ali com uma parte da mente perpetuamente ocupada, que nenhum branco pensasse em alvejar Mohammed el Nesr. Que grande mártir ele daria!

Mas estavam no velho e sereno Connecticut, não no Sul ou no Oeste: não havia neo-nazis, membros do Ku Klux Klan, nem sequer provincianos típicos. Este era um dos treze estados originais, um paraíso da liberdade de expressão.

Apesar do que Wesley Ali pensava, Carmine sabia que o Connecticut tinha a sua quota-parte de neo-nazis, membros do Ku Klux Klan e provincianos; sabia também que, na sua maioria, só tinham conversa, e falar era fácil. Apesar disso, todos os fanáticos racistas estavam a ser vigiados, pois Carmine estava decidido a que ninguém intentasse nada contra Mohammed el Nesr no domingo à tarde. Enquanto Mohammed planeava o seu comício, Carmine planeava a melhor forma de o proteger: onde ficariam os atiradores da polícia, quantos polícias à civil colocaria a patrulhar a periferia da multidão anti-brancos. Nem por sombras permitiria que Mohammed el Nesr levasse um tiro e se transformasse num mártir.

Depois, no sábado à noite, a neve voltou, um nevão de Fevereiro que deixou quarenta e cinco centímetros no chão, da noite para o dia; um vento cortante, abaixo de zero, garantiu que não haveria qualquer comício no parque de Holloman. Mais uma vez, salvo pelo Inverno.

Assim, hoje, Carmine tinha tempo para se meter à estrada 133 e ver se Mrs. Eliza Smith estava em casa. E estava.

- Os rapazes foram para a escola, muito desiludidos. Se o nevão tivesse esperado pela noite de ontem, hoje não haveria aulas.

- Lamento por eles, mas estou muito contente por mim, Mrs. Smith.

- Por causa do comício negro no parque de Holloman?

- Exactamente.

- Deus ama a paz - foi a única resposta dela.

- Nesse caso, por que é que não a utiliza mais? - perguntou o veterano da guerra militar e civil.

- Porque, depois de nos ter criado, Ele avançou para outro lugar qualquer num universo muito grande. Talvez, quando nos criou, tenha colocado uma engrenagem especial no nosso maquinismo para nos fazer amar a paz. Depois a engrenagem gastou-se e pronto! Tarde demais para Deus voltar.

- É uma teoria interessante - disse ele.

- Estive a fazer bolinhos borboleta - disse Eliza, conduzindo-o para a cozinha artificialmente antiga. - E se eu fizesse um café e os provássemos?

Os bolinhos borboleta, descobriu Carmine, eram pequenos bolos amarelos aos quais Eliza retirara a parte de cima e recheara com natas batidas, cortando depois a parte de cima ao meio e voltando a colocá-la sobre o creme, virada ao contrário; pareciam de facto asas de borboleta. E eram deliciosos.

- Por favor, tire-mos da frente - pediu ele depois de devorar quatro. - Caso contrário, sou capaz de os comer todos.

- Está bem - disse ela, levando-os para cima do balcão e voltando a sentar-se. - Então o que o traz por cá, tenente?

- A Desdemona Dupre. Ela diz que é consigo que eu devo falar sobre as pessoas do Hug, porque é a senhora quem melhor as conhece. Está disposta a isso, ou quer mandar-me dar uma volta?

- Há três meses, ter-lhe-ia dito que fosse dar uma volta, mas agora as coisas são diferentes. - Brincou com a colher de café. - Sabe que o Bob não vai voltar ao Hug?

- Sim. Parece que toda a gente no Hug sabe disso.

- É uma tragédia, tenente. Ele é um homem destroçado. Sempre houve nele um lado mais sombrio e, uma vez que o conheço desde sempre, conheço também essa sua faceta.

- O que quer dizer com isso, Mrs. Smith?

- Depressão, um vazio dentro dele, um nada. É como ele lhe chama, uma coisa ou outra, conforme. O primeiro ataque a sério aconteceu depois da morte da nossa filha, Nancy. Leucemia.

- Lamento muito.

- Foi um grande sofrimento para nós - disse ela, pestanejando para afastar as lágrimas. - A Nancy era a mais velha, morreu aos sete anos. Teria hoje dezasseis.

- Tem algum retrato dela?

- Centenas, mas escondo-os por causa da tendência do Bob para a depressão. Espere um minuto. - Saiu e regressou pouco depois com uma fotografia a cores de uma criança adorável, obviamente tirada antes de a doença a destruir. Cabelo louro encaracolado. Grandes olhos azuis, os lábios finos da mãe.

- Obrigado - disse ele, pousando a fotografia na mesa, voltada para baixo. - Presumo que ele recuperou da depressão?

- Sim, graças ao Hug. Ter de cuidar do Hug salvou-o. Mas desta vez não. Vai refugiar-se nos comboios para sempre.

- Como é que conseguirão viver, em termos financeiros? - perguntou, sem se aperceber da cobiça com que estava a olhar para os bolos borboleta.

Ela levantou-se para servir mais café e colocou-lhe dois bolos no prato.

- Aqui tem, coma-os. É uma ordem. - Parecia ter os lábios secos; humedeceu-os com a língua. - Financeiramente, não temos motivo para preocupações. Ambas as nossas famílias nos deixaram dinheiro, o que significa que não precisamos de trabalhar para viver. Que perspectiva horrível para um par de ianques! A ética de trabalho é impossível de erradicar. . - E os seus filhos?

- Os nossos fundos passam para eles. São bons rapazes.

- Por que é que o professor lhes bate? Ela não tentou negar.

- O tal lado sombrio. Mas não acontece com muita frequência, honestamente. Apenas quando eles o aborrecem, como é natural nos rapazes... quando insistem num tema sensível, ou quando não aceitam um não como resposta. São rapazes normais.

- Estava a pensar se os rapazes se juntariam ao pai para brincar com os comboios.

- Acho - disse Eliza com firmeza - , que ambos os meus filhos preferiam morrer a entrar naquela cave. O Bob é... egoísta.

- Já tinha reparado - disse Carmine em tom gentil.

- Detesta partilhar os seus comboios. Na verdade, foi por isso que os rapazes tentaram destruí-los... ele disse-lhe que os danos foram desastrosos?

- Sim, e que tinha demorado quatro anos a reconstruí-los.

- Isso não é verdade. Um rapazinho de sete anos e outro de cinco? Uma tempestade num copo de água, tenente! Foi mais o trabalho de apanhar as coisas do chão do que outra coisa. Depois espancou-os impiedosamente... tive de lhe tirar a chibata da mão à força. E disse-lhe que, se ele alguma vez voltasse a magoar os rapazes daquela maneira, iria à polícia. E ele sabia que eu estava a falar a sério. Apesar de ainda lhes bater, de tempos a tempos. Mas nunca fora de si de fúria, como estava por causa dos comboios. Não houve mais castigos sádicos. Ele gosta de os criticar por não estarem à altura da santa da irmã. - Sorriu, um sorriso que não mostrava qualquer divertimento. - Mas posso garantir-lhe, tenente, que a Nancy não era mais santa do que o Bobby ou o Sam.

- A sua vida não tem sido fácil, Mrs. Smith.

- Talvez não, mas não é nada que eu não aguente. Desde que consiga aguentar, está tudo bem.

Ele comeu os bolos.

- Soberbos - disse com um suspiro. - Fale-me sobre Walter Polonowski e a mulher.

- Estão irremediavelmente enredados numa teia religiosa - disse Eliza, abanando a cabeça como se isso fosse uma estupidez incrível. - Ela achava que ele desaprovaria o uso de métodos anticoncepcionais, ele pensava que ela nunca consentiria em usá-los. Assim, tiveram quatro filhos quando nenhum deles queria tê-los, pelo menos antes de estarem casados há tempo suficiente para se conhecerem um ao outro. A adaptação à vida com uma pessoa estranha é difícil, mas muito mais difícil quando essa pessoa muda perante os nossos próprios olhos no espaço de poucos meses... vómitos, inchaço, queixas, enfim, o habitual. A Paola é muitos anos mais nova do que o Walt... oh, ela era uma rapariga tão bonita! Muito parecida com a Marian, a nova. Quando a Paola descobriu sobre a Marian, devia ter fechado a boca e conservado o Walt como meio de subsistência. Assim, vai ter de criar quatro filhos com meia dúzia de tostões, porque com certeza que não pode trabalhar. O Walt não lhe vai dar um cêntimo a mais do que é obrigado. Vão vender a casa, mas, uma vez que está hipotecada, a parte da Paola será pouco ou nada. Para piorar os problemas do Walt, a Marian está grávida. Isso significa que terá de sustentar duas famílias. Terá de passar para a clínica geral, o que é verdadeiramente uma pena. Ele é um investigador muito bom.

- A senhora é muito pragmática, Mrs. Smith.

- Alguém nesta família tem de o ser.

- Ouvi um rumor da boca de várias pessoas - disse ele lentamente, sem olhar para ela - , de que o Hug terá chegado ao fim, pelo menos na sua forma actual.

- Tenho a certeza de que os rumores são verdadeiros, o que tornará as decisões mais fáceis para alguns dos Huggers. O Walt Polonowski, por exemplo. Ou o Maurie Finch. Entre a tentativa de suicídio do Kurt Schiller e a descoberta do corpo daquela pobre rapariga, o Maurie Finch é outro homem destroçado.

Não da mesma forma que o Bob, mas destroçado, ainda assim. - Suspirou. - No entanto, de quem tenho mais pena é do Chuck Ponsonby.

- Porquê? - perguntou ele, surpreendido com esta nova visão de Ponsonby, o homem que ele simplesmente presumira que seria o herdeiro do professor. Por mais que o Hug mudasse, Ponsonby certamente que sobreviveria aos melhores.

- O Chuck não é um investigador brilhante - disse Eliza Smith numa voz cuidadosamente neutra. - O Bob tem-no trazido ao colo desde que o Hug abriu. É a mente do Bob que orienta o trabalho do Chuck, e ambos sabem disso. É uma conspiração entre eles. Para além de mim, acho que mais ninguém tem a mínima ideia.

- Por que razão o professor faria uma coisa dessas, Mrs. Smith?

- Velhos laços, tenente... extremamente antigos. Somos da mesma linhagem ianque, os Ponsonby, os Smith e os Courtenay, a minha família. As amizades remontam a várias gerações, e eu e o Bob vimos os caprichos do destino destruírem os Ponsonby.

- Caprichos do destino?

- O Len Ponsonby, o pai do Chuck e da Claire, era tremendamente rico, tal como os seus antepassados. A Ida, a mãe deles, vinha de uma família endinheirada do Ohio.

Depois o Len Ponsonby foi assassinado. Deve ter sido em mil novecentos e trinta, pouco depois da queda da Bolsa. Foi espancado até à morte, em frente da estação ferroviária de Holloman, por um bando de trabalhadores itinerantes descontrolados. Mataram também duas outras pessoas. Oh, pôs-se as culpas na Depressão, no álcool de contrabando, esse tipo de coisas! Nunca apanharam ninguém. Mas o dinheiro do Len tinha desaparecido na queda da Bolsa, o que deixou a pobre Ida praticamente na miséria. Sobreviveu com a venda das terras dos Ponsonby. Uma mulher corajosa!

- Como é que conheceu o Chuck e a Claire? - perguntou Carmine, fascinado com o que se podia esconder por trás das fachadas públicas.

- Andámos todos juntos na Escola Dormer Day. O Chuck e o Bob estavam quatro anos à frente de mim e da Claire.

- Da Claire? Mas ela é cega!

- Isso aconteceu quando ela tinha catorze anos. Em mil novecentos e trinta e nove, pouco depois de a guerra rebentar na Europa. A visão dela sempre fora má, mas nessa altura sofreu um descolamento de retina em ambos os olhos ao mesmo tempo, devido a retinite pigmentosa. Ficou completamente cega de um dia para o outro, literalmente.

Oh, foi terrível. Como se aquela pobre mulher e os seus três filhos não tivessem já sofrido o suficiente!

- Três filhos?

- Sim, os dois rapazes e a Claire. O Chuck é o mais velho, depois havia o Morton e finalmente a Claire. O Morton era louco, não falava nem parecia perceber que havia mais pessoas no mundo. A luz dele não se apagou, tenente. Simplesmente nunca chegou a estar acesa. E tinha ataques de violência. O Bob diz que hoje em dia ele seria diagnosticado como autista. Por isso o Morton nunca foi à escola.

- Chegou a vê-lo?

- De vez em quando, embora a Ida Ponsonby, com medo de que ele tivesse um dos seus ataques de fúria, costumasse fechá-lo quando nós íamos brincar lá para casa. Mas não íamos muitas vezes. O Chuck e a Claire vinham para minha casa ou íamos para casa do Bob.

Com a mente num turbilhão, Carmine tentou manter a calma, manter os fios desta história incrível separados como deviam estar - um irmão louco! Por que é que não se tinha apercebido de que havia alguma coisa errada no lar dos Ponsonby? Porque à superfície não havia nada errado, absolutamente nada! E contudo, assim que Eliza Smith falou em três crianças, ele soube. Tudo começou a fazer sentido.

O Chuck no Hug e o irmão louco noutro lado qualquer... Consciente de que Eliza Smith o olhava fixamente, Carmine forçou-se a fazer uma pergunta razoável.

- Como é o Morton? Onde é que ele está agora?

- Como era, tenente, no passado. Parece que aconteceu tudo de uma vez, embora eu suponha que passou algum tempo entre uma coisa e outra. Dias, uma semana. A Claire cegou e a Ida Ponsonby mandou-a para uma escola para cegos em Cleveland, onde ainda tinham família. Havia uma ligação qualquer à escola para cegos... uma doação, julgo eu. Nesse tempo, era difícil conseguir lugar numa escola dessas. Seja como for, a Claire tinha acabado de partir para Cleveland quando o Morton morreu, creio que com uma hemorragia cerebral. Fomos ao funeral, claro. As coisas por que obrigavam as crianças a passar nesse tempo! Tivemos de nos aproximar do caixão aberto e dar um beijo no rosto do Morton. Estava frio e oleoso. - Estremeceu. - Foi a primeira vez na vida que senti o cheiro da morte. Pobrezinho, finalmente estava em paz. Como era? Era parecido com o Chuck e a Claire. Está sepultado no talhão da família, no velho cemitério do Valley.

A hipótese de Carmine caiu por terra. Era impossível que Eliza Smith estivesse a inventar tudo isto. A história dos Ponsonby era verdadeira e resumia-se a um facto bem comprovado: algumas famílias, por nenhuma razão lógica, sofriam uma sucessão de desastres. Não tinham tendência para acidentes, tinham tendência para a tragédia.

- Parece que há uma fraqueza na família - disse.

- Oh, sim. O Bob percebeu isso na Faculdade de Medicina, assim que estudou Genética. Havia loucura e cegueira no lado da família da Ida, mas não nos Ponsonby. A Ida também enlouqueceu, pouco tempo depois. Acho que a última vez que a vi foi no funeral do Morton. Com a Claire em Cleveland, deixei de visitar a casa dos Ponsonbys.

- Quando é que a Claire voltou?

- Depois de a Ida enlouquecer completamente... pouco depois de Pearl Harbor. O Chuck e o Bob nunca foram recrutados, passaram os anos da guerra na faculdade. A Claire esteve dois anos no Ohio, o tempo suficiente para aprender Braille e a deslocar-se com uma bengala branca, como as pessoas cegas fazem. Ela foi uma das primeiras a ter um cão-guia. A Biddy já é a quarta.

Carmine levantou-se, devastado pela magnitude da sua desilusão. Por um momento, acreditara de facto que terminara tudo; que fizera o impossível e descobrira os Fantasmas.

Mas, afinal, estava tão longe da resposta como sempre.

- Muito obrigado por me ter informado tão bem, Mrs. Smith. Há mais alguma coisa sobre outro Hugger que pense que eu devo saber? A Tâmara? - Respirou fundo. - A Desdemona?

- Não são assassinas, tenente, tal como o Chuck e o Walt não o são. A Tâmara é uma daquelas mulheres infelizes que não consegue escolher um bom homem e a Desdemona...

- riu-se - ... é inglesa.

- Isso diz tudo sobre ela, é?

- Para mim, sim. Quando ela era pequena, mergulharam-na em goma.

Carmine deixou Eliza à porta e dirigiu-se ao seu Ford.

No entanto, havia uma coisa que ele podia e devia fazer: falar com Claire Ponsonby e perceber por que razão ela lhe mentira em relação à data da sua cegueira. E talvez quisesse apenas vê-la - ver uma tragédia em carne e osso. Ela perdera o pai e a fortuna da família aos cinco anos, a visão aos catorze, toda a liberdade quando, aos dezasseis, voltara para casa para cuidar de uma mãe louca. Um trabalho que durara cerca de vinte e um anos. E contudo nunca sentira emanar dela a mínima vibração de auto-comiseração. Que mulher, Claire Ponsonby! Mas por que lhe mentira?

Biddy começou a ladrar assim que o Ford entrou no caminho de acesso ao número seis de Ponsonby Lane; sinal de que Claire estava em casa.

- Tenente Delmonico - disse ela quando abriu a porta, segurando na coleira da cadela.

- Como sabia que era eu? - perguntou ele, entrando.

- Pelo som do seu carro. Deve ter um motor muito potente, porque ronca mesmo em ponto morto. Venha para a cozinha.

Ela atravessou a casa sem sequer roçar numa peça de mobiliário, até à cozinha demasiado quente.

Biddy deitou-se ao canto, de olhos postos em Carmine.

- Ela não gosta de mim - disse ele.

- Há poucas pessoas de quem goste. O que posso fazer por si?

- Pode dizer-me a verdade. Acabo de estar com Mrs. Eliza Smith, que me informou de que não é cega de nascença. Por que me mentiu?

Claire suspirou e bateu com as mãos nas coxas.

- Bom, dizem que os nossos pecados nos encontram sempre. Menti porque odeio com todas as minhas forças as perguntas que se seguem inevitavelmente quando digo a verdade.

Por exemplo, como se sentiu depois de deixar de ver? Foi um sofrimento muito grande? Foi a coisa mais terrível que alguma vez lhe aconteceu? É mais difícil ser cega depois de saber o que é ver? E por aí fora. Bom, posso dizer-lhe que me pareceu uma sentença de morte, que foi um grande sofrimento, que é de facto a coisa mais terrível que me aconteceu. Acaba de reabrir as minhas feridas, tenente, e estou a sangrar. Espero que esteja satisfeito. - Virou-lhe costas.

- Lamento, mas tinha de perguntar.

- Sim, eu vejo isso! - De súbito virou-se e sorriu-lhe. - É a minha vez de pedir desculpa. Vamos recomeçar.

- Mrs. Smith disse-me também que vocês tinham um irmão, Morton, que morreu subitamente mais ou menos na altura em que ficou cega.

- Meu Deus, a Eliza hoje estava muito tagarela! O senhor deve ser muito atraente... ela sempre gostou de um homem bonito. Perdoe se pareço maldosa, mas a Eliza conseguiu tudo aquilo que queria. Eu não.

- Posso perdoar essa maldade, Miss Ponsonby.

- Já não sou Claire?

- Acho que a magoei demasiado para a tratar por Claire.

- Perguntou-me pelo Morton. Ele morreu pouco depois de eu ser enviada para Cleveland. Não se deram ao trabalho de me mandar vir para o funeral, apesar de eu ter gostado de poder despedir-me. Ele morreu tão de repente que teve de ser autopsiado, portanto havia tempo para eu regressar antes do enterro. Apesar da loucura, ele era um rapazinho muito querido. Triste, triste, triste...

Sai daqui, Carmine! Já ultrapassaste as tuas boas vindas.

- Obrigado, Miss Ponsonby. Muito obrigado, e lamento tê-la perturbado.

Teve de ser autopsiado... Isso significava que o relatório da morte de Morton Ponsonby estaria arquivado em Caterby Street; mandaria um polícia procurá-lo.

No regresso a Holloman, passou pelo antigo cemitério do Valley, um cemitério que ficara sem lugares para recém-chegados noventa anos antes. Continha sepulturas de Ponsonbys às dezenas, algumas muito mais antigas do que a fotografia mais antiga na parede da cozinha dos Ponsonby. A lápide mais recente pertencia a Ida Ponsonby, morta em Novembro de 1963. Antes dela, Morton Ponsonby, morto em Outubro de 1939. E antes dele, Leonard Ponsonby, morto em Janeiro de 1930. Um trio de tragédias que um arqueólogo de túmulos nunca conheceria pelos epitáfios secos e pouco informativos. Os Ponsonby não ostentavam as suas desgraças. Nem os Smith, pensou, quando encontrou a sepultura de Nancy. Seco e curto, sem mencionar qualquer causa de morte.

O que faria Chuck Ponsonby sem o Hug? pensou, ao regressar ao carro. E sem as orientações de pesquisa do professor? Virar-se-ia para a clínica geral? Não, Charles Ponsonby não tinha jeito para isso. Demasiado distante, demasiado austero, demasiado elitista. Era mesmo possível que Chuck não conseguisse encontrar outro emprego na profissão médica, e, se assim fosse, não tinha qualquer interesse em destruir o Hug.

Entrou no gabinete de Patrick com um gemido e atirou-se para a poltrona ao canto.

- Como vai isso? - perguntou Patrick.

- Nem perguntes. Sabes o que me apetecia agora, Patsy?

- Não, o quê?

- Um belo tiroteio no parque de estacionamento do Chubb Bowl, de preferência com metralhadoras. Ou um passeio no meio de dez bandidos que estivessem a assaltar o Banco de Holloman. Qualquer coisa refrescante.

- Essa é a observação de um polícia inactivo e com o rabo dorido.

- Podes ter a certeza! Este caso é só conversa, conversa interminável. Nem tiros, nem roubos.

- Presumo que o esboço que a Jill Menzies fez a partir da descrição feita pela dona da loja não deu em nada?

- Absolutamente nada - Carmine endireitou-se, parecendo mais alerta. - Patsy, tu que andas há mais dez anos do que eu neste mundo complicado, recordas-te de um homicídio na estação ferroviária em mil novecentos e trinta? Três pessoas espancadas até à morte por um bando de vagabundos, ou coisa do género. Pergunto apenas porque um deles era o pai do Charles e da Claire Ponsonby. E, como se isso não bastasse, ele tinha perdido o dinheiro todo da família na queda da Bolsa. Patrick pensou e depois abanou a cabeça. "* - Não, não me lembro... a minha mãe censurava tudo o que me chegava aos ouvidos, quando eu era miúdo. Mas deve haver um relatório do caso enterrado nos arquivos.

Sabes como é o Silvestri... não deitaria fora nem um lenço de papel usado, e os seus antecessores eram iguais.

- Ia mandar alguém a Caterby Street para procurar outro caso, mas, já que não tenho nada melhor para fazer, acho que posso ir eu mesmo até lá e dar uma vista de olhos. Estou curioso em relação às tragédias dos Ponsonby. Será que também são vítimas dos Fantasmas?

Faltava pouco mais de uma semana para o ataque seguinte dos Fantasmas; Fevereiro era um mês curto, portanto talvez a data marcada para o próximo rapto fosse princípios de Março. Possuído por um temor crescente, Carmine teria ido ao Maine, mesmo nesta altura do ano, se achasse que lá encontraria alguma coisa prometedora nos arquivos, mas Caterby Street era muito mais perto do que o Maine. O armazenamento de papel era o pesadelo de qualquer funcionário público, quer se tratasse de relatórios policiais, fichas médicas, registos de pensões, valores e impostos sobre terras, taxas de água, qualquer uma da centena de diferentes categorias. Quando o Hospital de Holloman fora reconstruído, em 1950, tinham reservado toda uma sub-cave para arquivos, portanto não tinham problemas de espaço. Ao assumir o cargo de comissário, em 1960, John Silvestri lutara ferozmente para manter cada folha de papel que a polícia tinha guardado, até aos tempos em que Holloman tinha apenas um guarda e o roubo de um cavalo era um crime punido com enforcamento. Depois, uma empresa de cimento local abrira falência e Silvestri atormentara todas as autoridades oficiais para obter o dinheiro e a autoridade necessários para comprar as instalações, mais de um hectare em Caterby Street, uma área de indústrias conhecidas pelo pó e pelo barulho, logo não propriamente propriedade muito valiosa. Os terrenos e todo o seu conteúdo tinham sido vendidos em leilão por doze mil dólares, e fora a polícia de Holloman o licitador bem sucedido.

Nos terrenos havia um grande armazém, onde a empresa de cimento costumava guardar os camiões e todo o tipo de equipamentos. E, depois de o pó ser limpo e o resto do lote arrumado, todos os arquivos da polícia tinham sido colocados no armazém, em prateleiras metálicas. O tecto não deixava passar água - uma consideração essencial - e duas grandes ventoinhas, uma em cada ponta, garantiam a circulação de ar necessária para impedir que o bolor se instalasse no Verão.

Os dois arquivistas tinham uma vida confortável, numa caravana separada, estacionada junto da entrada do armazém; o subalterno passava uma vassoura pelo chão do armazém de vez em quando e ia ao café mais próximo buscar café e comida, enquanto o membro qualificado da parelha trabalhava na sua tese de doutoramento sobre o desenvolvimento das tendências criminosas em Holloman desde 1650. Nenhum deles estava minimamente interessado neste tenente estranho o suficiente para vir a Caterby Street em pessoa. A arquivista qualificada limitou-se a dizer-lhe onde procurar e voltou à sua tese, e o subalterno desapareceu numa carrinha da polícia.

Os registos de 1930 ocupavam dezanove caixas grandes, e os relatórios do médico-legista de 1939 ocupavam quase o mesmo espaço: o crime aumentara muito nesse intervalo de nove anos. Carmine encontrou o caso de Morton Ponsonby em Outubro de 1939, depois procurou Leonard Ponsonby na primeira caixa de 1930. O formato dos relatórios não mudara muito desde então. Apenas folhas de tamanho oficial dentro de uma capa de cartolina, algumas agrafadas, outras soltas. Em 1930 ainda não tinham um sistema que prendesse as folhas à capa - nem, provavelmente, pessoal administrativo para tratar dos ficheiros dos casos encerrados depois de serem removidos das gavetas "em curso".

Mas ali estava, onde devia estar: ponsonby, Leonard Sinclair, empresário, 6 Ponsonby Lane, Holloman, Connecticut, idade 35, casado, três filhos.

Alguém colocara uma mesa e uma cadeira por baixo de uma clarabóia de plástico transparente; Carmine levou as duas pastas dos Ponsonby para lá, bem como outra pasta mais fina que continha os detalhes dos dois outros homicídios na estação de caminhos-de-ferro.

Abriu primeiro a pasta de Morton Ponsonby. Uma vez que a morte fora tão súbita e inesperada, o médico dos Ponsonby recusara-se a assinar a certidão de óbito. Isto não sugeria que ele suspeitasse de algum crime; simplesmente queria uma autópsia, para ver se lhe escapara alguma coisa durante os anos em que fora quase impossível abordar Morton Ponsonby, muito menos tratá-lo. O relatório de patologia era típico e começava com a frase batida pelo tempo: "Este é o corpo de um adolescente do sexo masculino, bem nutrido e aparentemente saudável." Mas a causa da morte não fora uma hemorragia cerebral, como Eliza Smith dissera. A autópsia não revelara a causa da morte, o que significava que o patologista a atribuíra a falha cardíaca, possivelmente em consequência de inibição vagal. O médico estava muito longe da categoria de Patsy, mas fizera a gama de testes habituais em busca de venenos, sem encontrar nada, e reparara na presença de psicose no historial médico. Não havia alterações no cérebro que indicassem a causa da psicose. O pénis do rapaz, observara ele, não estava circuncidado e era muito grande, enquanto os testículos tinham descido apenas parcialmente. Para 1939, era um trabalho minucioso. Carmine ficou sem quaisquer dúvidas de que Morton Ponsonby fora apenas mais uma infeliz vítima da tendência para a tragédia da sua família. Ou talvez isso indicasse apenas que a contribuição genética de Ida Ponsonby aos filhos fora insatisfatória.

Muito bem, passemos a Leonard Ponsonby. O crime acontecera em meados de Janeiro de 1930, no meio de sessenta centímetros de neve um dos Invernos mais frios, causando nevões em Janeiro. O comboio, que partira de Washington, chegara da Penn Station em Nova Iorque, duas horas atrasado devido a agulhas congeladas e a um deslizamento de neve para a linha. Em vez de ficarem sentados à espera, os passageiros tinham decidido limpar eles próprios a linha.

Uma das carruagens trazia cerca de vinte bêbados que viajavam juntos, homens desempregados com esperança de encontrar trabalho em Boston, o destino final do comboio; tinham sido eles os mais relutantes a pegar nas pás, embriagados, zangados, agressivos, trabalhando apenas para se manterem quentes. Quando o comboio chegou a Holloman, parou durante um quarto de hora, permitindo aos passageiros comprarem algo para comer no café da estação, uma alternativa mais barata do que a carruagem-restaurante quase vazia do comboio.

Ah, aqui estava a parte mais interessante! Leonard Ponsonby não ia a desembarcar! Ia embarcar para viajar até Boston, pois era o que dizia o seu bilhete. Preferira esperar cá fora ao frio e, segundo um passageiro observador, parecia furtivo. Furtivo! Ponsonby não exibira qualquer vontade de se mostrar no calor da sala de espera da estação, nem subira a bordo assim que o comboio chegara. Não, ficara lá fora, na neve.

Eram nove horas da noite e este comboio para Boston era o último do dia. A composição partiu na sua viagem enquanto os funcionários da estação davam a volta à mesma, trancando as salas de espera e as casas de banho ao exército de vagabundos que percorriam a nação em busca de trabalho ou de esmolas, apesar de os vinte bêbados não terem deixado o comboio em Holloman. Algures entre Hartford e a fronteira do Massachusetts, eles saltaram do comboio a coberto da escuridão, e foi por esse motivo que se tornaram suspeitos e foi por esse motivo que, depois de investigações infrutíferas, acabaram por arcar com as culpas.

Leonard Ponsonby fora encontrado deitado na neve, com a cabeça praticamente destruída à pancada; ao seu lado estavam uma mulher e uma menina, também com as cabeças esmagadas. O conteúdo da carteira de Ponsonby identificava-o, mas a mulher e a criança não traziam nada que dissesse quem eram. A carteira velha e barata da mulher continha apenas um dólar e noventa cêntimos em moedas, um lenço amarrotado e duas bolachas. Um saco de pano continha roupa interior lavada mas muito barata, de mulher e de criança, meias, dois cachecóis e um vestido de menina. A mulher era bastante jovem, a criança tinha cerca de seis anos. Ponsonby era descrito como bem vestido e próspero, com dois mil dólares em notas na carteira, um alfinete de diamante na gravata e quatro valiosos diamantes em cada um dos botões de punho de platina. A mulher e a criança, por outro lado, tinham sido resumidas numa única frase, fortemente sugestiva: "sopa dos pobres".

Para o nariz sensível de Carmine, eram três homicídios suspeitos. Um homem próspero, sozinho, mais uma mulher e uma criança pobres, não relacionadas com ele. O roubo não fora o motivo. Os três lá fora, à neve, quando deviam estar no interior da estação a aquecerem as mãos no radiador a vapor. De uma coisa ele tinha a certeza: o bando do comboio não tivera nada a ver com os homicídios.

A verdadeira questão era, qual dos três seria a vítima desejada? Os outros dois eram meras testemunhas, mortos porque tinham visto quem empunhava o instrumento contundente que os matara aos três, com um grau de selvajaria posteriormente comentado num relatório policial que, tirando isso, era seco e incompleto. Cara, a vítima original era Leonard Ponsonby. Coroa, era a mulher. Se a moeda ficasse de pé, era a criança.

Não havia quaisquer fotografias. A informação sobre a mulher e a presumida filha, ou outro grau de parentesco, estava numa pasta fina, ao lado da relativa a Ponsonby, na segunda caixa dos arquivos de Janeiro. Tinham morrido os três por meio de um instrumento contundente aplicado apenas contra os crânios, esmagados, mas o detective não fora suficientemente inteligente para perceber que Ponsonby teria de ter sido a primeira vítima; a mulher e a criança tinham assistido, paralisadas de medo, até chegar a vez da mulher e depois da criança. Se Ponsonby não tivesse sido o primeiro, teria resistido. Assim, quem quer que brandira o instrumento contundente - Carmine apostava num bastão de basebol - aproximara-se sorrateiramente sobre a neve e atacara Ponsonby antes que este se apercebesse da presença de alguém. Outro fantasma, que extraordinário.

Quando saiu à procura dos arquivistas, eles já tinham fechado a caravana e ido para casa - meia hora mais cedo. Estava na altura de John Silvestri virar o foco intenso dos seus supervisores para os arquivos da polícia em Caterby Street. Com as três pastas na mão esquerda, Carmine partiu também: estes desleixados nem dariam pela falta das pastas enquanto ele não as devolvesse. Um par de bandidos burocráticos, seguros no conhecimento de que, desde que os arquivos não ardessem, ninguém estaria suficientemente interessado na sua existência para se preocupar com eles. Errado, errado, errado.

No regresso ao edifício dos Serviços Municipais, passou pelos arquivos do Holloman Post, onde descobriu que a morte estranha e horrível de Leonard Ponsonby aparecera na primeira página. A violência sem sentido, para além dos crimes domésticos, era quase inédita em 1930; era o tipo de coisa que punha os jornais aos gritos sobre loucos fugidos do manicómio. Assassinatos por gangs houvera muitos, durante os longos anos da Lei Seca, mas não caíam na categoria de violência sem sentido. Na verdade, mesmo depois de se ter verificado que nenhum louco fugira de um asilo, o Holloman Post mantivera-se firme e continuara a insistir que o assassino era um louco fugido de alguma instituição fora do estado.

Com uma coisa e outra, chegou atrasado ao seu encontro com Desdemona no Malvolio's.

- Desculpa - disse, sentando-se em frente dela. - Tens agora uma ideia de como é a vida quando namoras com um polícia. Montes de compromissos falhados, muitos jantares frios. Ainda bem que não és muito de cozinhar. Comer fora é a melhor alternativa, e não há melhor do que o Malvolio's, um restaurante de polícias. Embalam tudo para levar, desde uma refeição inteira a uma colher de tarte de maçã, assim que alguém bate na montra.

- Gosto de ter um namorado polícia - disse ela com um sorriso. - Já pedi, mas disse ao Luigi que esperasse um pouco. És demasiado generoso, devias deixar-me pagar pelo menos a minha parte da conta.

- Na minha família, um homem que deixasse a mulher pagar seria linchado.

- Pela tua cara, parece que tiveste um dia bom, para variar.

- Sim, descobri montes de coisas. O problema é que acho que são todas irrelevantes. Mesmo assim, é divertido descobrir. - Estendeu o braço por cima da mesa e pegou-lhe na mão. - Também é bom descobrir coisas sobre ti.

Ela apertou-lhe a mão.

- Digo o mesmo, Carmine.

- Apesar deste caso terrível, Desdemona, a minha vida melhorou muito nos últimos dias. E em grande parte graças a ti, linda.

Nunca ninguém lhe chamara linda antes; Desdemona sentiu uma onda de gratificação e confusão, ficou vermelha como um tomate e sem saber para onde olhar.

Seis anos antes, em Lincoln, julgara-se apaixonada por um homem maravilhoso, um médico; até que, ao passar pela porta do gabinete dele, ouvira a sua voz:

- Quem, a Desdemona Desesperada? Meu caro amigo, as feias ficam sempre tão agradecidas que vale bem a pena cortejá-las. Dão boas mães e nunca precisamos de nos preocupar com o leiteiro, pois não? Afinal de contas, ninguém olha para a lareira quando está a atiçar o fogo, por isso vou casar com a Desdemona. Ainda por cima, teremos filhos inteligentes.

No dia seguinte, começara a fazer planos para emigrar, jurando a si própria que nunca mais se abriria a este tipo de crueldade pragmática.

Agora, graças a um monstro sem rosto, aqui estava ela, a viver com Carmine no apartamento dele, talvez tomando como garantido que ele a amava tanto como ela o amava.

Falar era fácil - não o provara o médico de Lincoln? Até que ponto as coisas que ele lhe dissera não derivavam do seu profissionalismo, do seu instinto protector, do seu choque perante o que quase lhe acontecera? "Oh, Carmine, por favor, não me desiludas!"

 

Faltava uma semana para o trigésimo dia após o rapto de Faith Khouri e ninguém, incluindo Carmine, tinha razões para acreditar que as hipóteses de prevenir outro crime fossem agora melhores do que quatro meses antes. Quando é que algum caso demorara tanto tempo a ser resolvido, com tantos homens, tantas precauções e avisos, tanta publicidade a nível estadual?

Tinham acordado que o procedimento geral devia ser o mesmo: todos os suspeitos do estado seriam vigiados, vinte e quatro horas por dia, entre segunda-feira, dia vinte e oito de Fevereiro, e sexta-feira, dia quatro de Março. Isso incluía os trinta e dois suspeitos de Holloman. O método de actuação da polícia tornara-se mais seguro, mais coerente; no caso do professor Bob Smith, por exemplo, a segurança deplorável de Marsh Manor seria compensada por quatro equipas de vigilantes da polícia de Bridgeport. A menos que o seu alvo fosse uma vítima em Bridgeport, o professor teria de atravessar a nado o rio Housatonic, se quisesse dirigir-se a leste, ou passar por seis bloqueios nas estradas se se dirigisse a oeste. Essa era a maior diferença entre o plano do mês anterior e o novo: havia carros-patrulha e polícias uniformizados, bem como carros não identificados e polícias à civil, e bloqueios nas estradas em todo o lado. Tinham concordado, numa reunião a nível estadual, que se os Fantasmas fossem apanhados num desses bloqueios antes de terem oportunidade de raptar alguém, paciência. Qualquer suspeito conhecido apanhado numa situação dessas ficaria com uma enorme marca vermelha no cadastro e seria alvo de vigilância concentrada. Se isso significasse que Fevereiro/Março seria um fiasco em relação aos Fantasmas, então em Março/Abril haveria novos métodos policiais e novos possíveis suspeitos.

Carmine decidira não participar na vigilância; era pouco provável que no princípio de Março ainda houvesse temperaturas negativas, portanto estaria melhor noutro lado, em contacto por rádio com toda a gente, e com um mapa gigante do Connecticut numa parede ao seu lado. Dois ataques consecutivos dos Fantasmas a leste sugeriam que desta vez eles se dirigiriam a norte, oeste ou sudoeste. As polícias estaduais de Massachusetts, Nova Iorque e Rhode Island tinham concordado em patrulhar as fronteiras com o Connecticut, com mais homens do que moscas numa carcaça. Era guerra aberta.

Pensando mais na noite com Desdemona do que num caso tão parado que se tornara enfadonho, nessa tarde Carmine foi devolver os ficheiros dos casos Ponsonby a Caterby Street.

- Ainda têm alguns bens pessoais não reclamados de mil novecentos e trinta? - perguntou à metade mais educada do duo de arquivistas; o outro não estava em lado nenhum que ele visse. Nem a carrinha da polícia. E, raios, esquecera-se de dizer a Silvestri o que se passava por aqui.

- Devemos ter bens pessoais desde o chapéu de Paul Revere - disse ela em tom sarcástico, nada satisfeita por ele ter surripiado os seus ficheiros, mas pouco preocupada por ter estado ausente na segunda-feira anterior.

- Estas duas vítimas de homicídio - disse, acenando a pasta mais fina debaixo do nariz dela. - Quero ver os seus bens pessoais.

Ela bocejou, examinou as unhas e olhou para o relógio.

- Receio que tenha deixado isso para muito tarde, tenente. São cinco horas e já fechámos. Volte amanhã.

Amanhã Silvestri ia ter um relatório completo, mas por que não dar a esta cabra arrogante uma noite sem dormir antes da machadada final?

- Nesse caso sugiro - disse ele em tom agradável - , que logo de manhã mande o seu colega usar a carrinha da polícia de forma legal, para variar, entregando a caixa que estou a pedir-lhe ao tenente Carmine Delmonico no edifício dos Serviços Municipais. Se a caixa em questão não for entregue, a minha sobrinha Gina acabará sentada na sua secretária. Ela está morta por arranjar um emprego público num canto escondido, porque precisa de estudar. Quer entrar para o fbi, mas o exame de entrada é muito difícil para as mulheres.


Às onze da manhã, no domingo antes do início da vigilância, Carmine entrou na parte do edifício dos Serviços Municipais reservada à polícia sentindo-se sozinho, irrequieto e tenso.

Sozinho, porque na sexta-feira à noite Desdemona anunciara que, se o tempo no fim-de-semana estivesse minimamente tolerável, tencionava percorrer o Trilho Apalache até à fronteira do Massachusetts. Uma vez que adorava a presença dela na sua cama, isto apanhara-o de surpresa; e ela recusara-se a dar ouvidos aos seus protestos por ter de desperdiçar um carro-patrulha para a levar e trazer. Carmine estava preocupado porque as suas expectativas quanto a esta relação eram muito diferentes do que sentira com Sandra. Apesar de deslocada em ambos os papéis, Sandra fora mulher e mãe, vivendo aninhada num compartimento especial da sua mente que ele nunca abria enquanto estava no trabalho. Desdemona, por outro lado, estava sempre presente na sua mente, e isso não tinha nada a ver com o papel que ela desempenhava no caso. Simplesmente ansiava pelo tempo que passava com ela. Talvez tivesse a ver com a idade: estava ainda na casa dos vinte quando conhecera Sandra, tinha quarenta e poucos quando conhecera Desdemona. Como pai, não se saíra muito bem, mas como marido fora muito pior. E contudo sabia que esta relação de amantes com Desdemona não tinha futuro. Casamento, tinha de ser casamento. Mas estaria ela interessada em casar? Pura e simplesmente não sabia. Percorrer o Trilho Apalache parecia indicar que ela não precisava tanto dele como ele dela. No entanto, era tão carinhosa quando estavam juntos, e nem por uma vez o repreendera por a negligenciar por causa do trabalho. "Oh, Desdemona, não me deixes ficar mal! Fica comigo, une-te a mim!" Irrequieto, porque a deserção de Desdemona o deixara com dois dias para preencher e sem ninguém com quem os preencher; Silvestri proibira-o de meter o nariz noutro caso que não fosse o dos Fantasmas, exceptuando unicamente a situação racial, caso esta rebentasse. E neste momento, com um domingo razoavelmente agradável, com temperaturas acima de zero, estaria Mohammed el Nesr ocupado? Não em manifestações ou comícios, pelo menos. A sua imobilidade não era nenhum mistério. Tal como Carmine, Mohammed estava à espera que os Fantasmas raptassem outra vítima esta semana, para renovar a dor e a indignação. O grande comício seria sem dúvida no domingo seguinte.

Obrigando a polícia a afastar do caso dos Fantasmas homens desesperadamente necessários. Uma chatice, mas boa estratégia da parte de Mohammed.

Tenso, porque o Trigésimo Dia estava quase a chegar.

- Tenente Delmonico? - perguntou o sargento de serviço.

- Era eu, a última vez que me vi ao espelho - disse Carmine com um sorriso.

- Encontrei uma caixa de evidências antiga atrás daqueles pacotes quando cheguei esta manhã. Não tem qualquer nome, provavelmente foi por isso que não chegou a recebê-la.

Depois encontrei uma etiqueta com o seu nome a metros da caixa. - Baixou-se, remexeu debaixo do balcão e reapareceu com uma grande caixa quadrada, muito parecida com as que se encontravam actualmente em uso.

Os pertences da mulher e da criança espancadas até à morte em 1930! Tinha-se esquecido completamente disso, tão absorvido estivera no planeamento da operação de vigilância. No entanto, não se esquecera de pedir a Silvestri que desse um apertão à idiota dos arquivos e ao seu lacaio.

- Obrigado, Larry, fico a dever-te uma - disse, pegando na caixa e levando-a para o seu gabinete.

Aqui estava algo para fazer num domingo de manhã, enquanto a sua amada caminhava pelo meio das folhas molhadas.

Não foram relíquias fétidas de um crime com trinta e seis anos que se ergueram da caixa quando tirou a tampa; a polícia da altura não se dera ao trabalho de guardar as roupas que as duas vítimas vestiam, o que significava que deviam estar todas ensanguentadas, incluindo o calçado. Uma vez que ninguém pensara em registar a distância exacta que "perto" de Leonard Ponsonby significava, parte do sangue podia até ser dele, tanto quanto Carmine sabia. Ninguém fizera sequer um esboço das posições dos corpos em relação uns aos outros. "Perto" era tudo o que tinha para se basear.

A mala estava lá, contudo. Por uma questão de hábito, Carmine calçou luvas antes de a retirar cuidadosamente da caixa para a examinar com os seus olhos modernos e mais sofisticados. Feita à mão. Tricotada, como faziam as mulheres naquele tempo de pouco dinheiro, com duas pegas de cana e um forro de algodão grosseiro. Sem fecho. Esta mulher não podia pagar nem sequer o mais barato couro de vaca, muito menos cabedal. A mala continha uma pequena carteira na qual havia um dólar de prata, três moedas de vinte e cinco cêntimos, uma de dez cêntimos e outra de cinco cêntimos. Carmine pousou a carteira na secretária. Um lenço de homem, limpo mas não engomado; de algodão, não de linho. E, no fundo, fragmentos e migalhas do que presumiu que fossem as duas bolachas. A mãe provavelmente roubara-as do café da estação para a criança ter qualquer coisa que comer no comboio, e talvez fosse por essa razão que ambas estavam escondidas lá fora, ao frio. As autópsias tinham revelado que os estômagos de ambas estavam vazios. Sim, ela roubara as bolachas.

O saco não era grande, apesar de ser suficientemente antigo para poder ser um daqueles que os predadores do Norte tinham trazido para o Sul depois da Guerra Civil.

Desbotado, puído em certos sítios, nunca fora elegante, nem mesmo em novo. Abriu-o com reverência; aqui residira quase tudo o que a pobre mulher possuíra, e nada era mais comovente do que evidências de vidas há muito perdidas.

Por cima estavam dois cachecóis de lã compridos, tricotados à mão, com riscas de várias cores, como se quem os fizera estivesse a aproveitar restos. Mas por que estavam os cachecóis no saco se o tempo estava tão horrível? Reservas? Por baixo havia dois pares de cuecas de mulher, lavadas, feitas de pano-cru, e dois pares muito mais pequenos, obviamente pertencentes à criança. Um par de meias pelo joelho e um par de meias de senhora, ambos tricotados. No fundo, cuidadosamente dobrado e enrolado em papel, um vestido de criança.

Carmine susteve a respiração. Um vestido de menina. Feito de renda francesa azul-clara, requintadamente bordado com pequenas pérolas. Mangas de balão com punhos delicados, botões de madrepérola nas costas, forro de seda, e por baixo disso um saiote de entretela para erguer a saia como o tutu de uma bailarina. O percursor em 1930 dos vestidos da Sininho, excepto que este fora completamente feito à mão, cada pérola cosida separadamente e com pontos firmes, todas as costuras feitas à mão. Oh, as coisas que os polícias de 1930 tinham deixado passar! No bolso esquerdo viu a palavra emma desenhada com pérolas escuras de tom púrpura.

Com a cabeça a rodopiar, Carmine estendeu o vestido sobre a secretária e depois limitou-se a olhar para ele durante um período que podia ter sido cinco minutos ou uma hora; não sabia, não olhara para o relógio.

Por fim sentou-se e pôs o saco no colo, abrindo-o tanto quanto as dobradiças enferrujadas permitiam. O forro estava gasto, descosido de um dos lados; enfiou ambas as mãos dentro do saco e apalpou-o, de olhos fechados. Ali! Qualquer coisa!

Uma fotografia, e não tirada por uma Brownie. Era um retrato feito em estúdio, ainda montado numa capa de cartolina creme com o nome do fotógrafo. Mayhew Studios, Windsor Locks. Alguém escrevera o que parecia ser "1928" por baixo da fotografia, mas a lápis, e os números estavam tão desvanecidos que era apenas um palpite.

A mulher estava sentada numa cadeira, com a criança - com cerca de quatro anos - sobre os joelhos. Nesta fotografia a mulher estava muito mais bem vestida, com um colar de pérolas verdadeiras ao pescoço e brincos também de pérolas nas orelhas. A menina usava um vestido semelhante ao que se encontrava no saco, e via-se claramente a palavra emma. E ambas tinham rosto. Mesmo a preto e branco, a pele de ambas tinha uma sugestão de café com leite; o cabelo era fortemente encaracolado e preto, os olhos muito escuros, os lábios cheios. Para Carmine, que as observava através de um véu de lágrimas, elas eram perfeitas. Destruídas em toda a sua juventude e beleza, ambas reduzidas a uma massa sanguinolenta.

Um crime de ódio. Por que raio ninguém se apercebera disso? Nenhum assassino desperdiçaria a sua essência numa catadupa de golpes violentos se o motivo não fosse o ódio. Principalmente quando o crânio por baixo da arma pertencia a uma criança. Um crime de ódio, e nem pensar que estas duas criaturas não estavam ligadas a Leonard Ponsonby. Elas estavam ali por causa dele, ele estava ali por causa delas.

Então, afinal de contas, sempre é Charles Ponsonby, apesar de não ter idade suficiente para ter sido ele a cometer este primeiro crime. Nem Morton, nem Claire. Isto fora obra de Ida, a louca, mais de uma década antes de enlouquecer. O que significa que Leonard e a mãe de Emma eram... amantes? Familiares? Uma coisa era tão provável como a outra; Ida era ultra-conservadora, qualquer contacto com os mais escuros estaria fora de questão para ela! Tantas perguntas por fazer! Por que razão seriam Emma e a mãe tão miseráveis em Janeiro de 1930, quando Leonard estava ao lado delas com dois mil dólares no bolso e ostentando jóias com diamantes? O que acontecera a Emma e à mãe entre a prosperidade da fotografia de 1928 e a sua miséria em Janeiro de 1930?

"Basta, Carmine, basta! 1930 pode esperar, 1966 não. Chuc Ponsonby é um dos Fantasmas - ou será o único Fantasma, fazendo tudo isto sozinho? Até que ponto Claire o ajudará? Até que ponto pode ajudá-lo? Poderá um dos Ponsonbys ser um Fantasma e o outro não? Sim, por causa da cegueira de Claire. Eu sei que ela é cega! Chuck podia fazer o que tinha a fazer numa cave secreta, à prova de som, e ela nunca o saberia. Tenho a certeza de que é à prova de som. Os gritos têm de ser contidos, e os gritos fazem muito barulho.

Charles Ponsonby... Um solteirão caseiro, incapaz de fazer qualquer pesquisa original. Sempre à sombra de outra pessoa - a mãe louca, o irmão louco, a irmã cega, amigos mais bem sucedidos. Não se dá ao trabalho de usar meias a combinar, de pentear o cabelo, de comprar um casaco novo. O típico professor distraído, demasiado tímido para pegar num rato sem usar luvas grossas, indefinido de uma forma que sugere um fracasso radical do ego, apesar do verniz da arrogância intelectual.

Mas poderá este Charles Ponsonby ser o retrato de um assassino/violador em série, tão brilhante que nos tem atirado areia para os olhos desde que descobrimos a sua existência? Parece impossível de acreditar. O problema é que ninguém tem um retrato de um assassino em série, excepto no aspecto de que o sexo parece estar sempre envolvido. Assim, sempre que desenterramos um espécime, temos de o dissecar minuciosamente. A idade, a raça, o credo, a aparência, o tipo de vítima que escolhe, a personalidade que apresenta ao mundo, e a infância, antecedentes, gostos e antipatias - um milhar de factores. Sobre Charles Ponsonby, podemos sem dúvida dizer que, do lado da mãe, a família tem um historial de loucura e de cegueira."

Carmine voltou a arrumar o conteúdo da caixa exactamente como o encontrara e levou-a para a recepção.

- Larry, põe isto no armazém de segurança imediatamente - disse, quando a entregou ao sargento de serviço. - Ninguém pode aproximar-se dela.

Depois, antes que Larry conseguisse responder, Carmine saiu porta fora. Estava na altura de dar mais uma vista de olhos ao número seis de Ponsonby Lane.

As questões rodopiavam na sua cabeça, como enxames de vespas em busca de um ninho chamado respostas: por exemplo, como é que Charles Ponsonby conseguira ir do Hug ao Liceu Travis, e voltar, deixando toda a gente convencida de que estivera presente na conferência no telhado? Desdemona tinha demorado trinta preciosos minutos a encontrá-los, e contudo os seis tinham jurado que ninguém se ausentara sequer o tempo necessário para ir à casa de banho. Até que ponto seria fiável a atenção de um investigador distraído? E como é que Ponsonby saíra de casa na noite do rapto de Faith Khouri, quando esta estivera sempre tão vigiada? O conteúdo da caixa de evidências de 1930 seria suficiente para arrancar um mandato de busca ao juiz Douglas Thwaites? As questões não tinham fim.

Desceu a estrada 133 vindo de nordeste, o que o levou a passar primeiro por Deer Lane. Do ponto de vista do concelho, as quatro casas existentes de um dos lados da rua não eram suficientes para justificar o alcatroamento; os quinhentos metros de Deer Lane estavam cobertos por gravilha. Ao fundo, a rua alargava num largo circular com espaço suficiente para estacionar seis ou sete carros. A floresta chegava mesmo até à estrada de todos os lados - vegetação secundária, claro. Duzentos anos atrás, esta terra teria sido limpa e cultivada, mas, à medida que os solos mais férteis do Ohio e do Oeste chamavam, a agricultura deixara de ser tão lucrativa para os ianques do Connecticut como as indústrias de precisão com linha de montagem fundadas por Eli Whitney. Assim os bosques tinham crescido profusamente - carvalhos, bordos, faias, bétulas, sicómoros, alguns pinheiros. Cornizos e loureiros que se cobriam de flores na Primavera. Macieiras silvestres.

E os veados também tinham voltado.

Os seus pneus rangeram audivelmente sobre a gravilha, o que reforçou a sua opinião de que os carros que vigiavam Deer Lane, na junção com a estrada 133, na noite em que Faith Khouri desaparecera, teriam ouvido qualquer veículo, bem como teriam visto o fumo branco do escape. E os únicos carros estacionados em Deer Lane nessa noite eram carros da polícia não identificados. Assim, embora fosse possível que Chuck Ponsonby tivesse subido a ladeira por trás da sua casa sem uma lanterna, para onde teria ido depois? Não podia ter deixado um carro mais perto do que na estrada 133, a uma boa distância dali, e mesmo que a viatura pertencesse a um parceiro, ele não podia tê-lo apanhado mais perto do que isso. Uma caminhada tão longa com temperaturas abaixo de zero? Pouco provável. Um congelador era quente, em comparação com essa noite. Então como é que o fizera?

Carmine tinha uma máxima: se fosse forçado a dar um passeio num dia bonito, o melhor era fazê-lo perto de um suspeito; e se o passeio envolvesse uma floresta, valia a pena levar um par de binóculos para observar os passarinhos. De binóculos ao pescoço, Carmine subiu a ladeira, entre as árvores, em direcção à crista que se erguia sobre o número seis de Ponsonby Lane. O chão estava coberto por uma espessa camada de folhas molhadas. A neve derretera, excepto por baixo de um ou outro pedregulho e em fendas onde o calor não penetrara. Vários veados fugiram do seu caminho, mas não assustados; os animais sabiam sempre quando estavam numa reserva. Era um sítio bonito, reflectiu Carmine, muito tranquilo nesta época do ano. No Verão, o zumbido agudo dos cortadores de relva e as gargalhadas dos churrascos ao ar livre estragariam esta paz. Sabia, pelas investigações anteriores da polícia, que ninguém se aventurava mais além do parque de estacionamento, nem mesmo para encontros sexuais ilícitos; nos oito hectares da reserva não havia latas de cerveja, caricas, garrafas, detritos plásticos ou preservativos usados.

Quando se chegava ao cimo da crista, era surpreendentemente fácil ver a casa dos Ponsonby. As árvores nesta parte da encosta tinham sido drasticamente reduzidas, para criar uma aparência de ordenação florestal: um maciço de bétulas americanas de troncos bifurcados, um bonito ulmeiro com ar saudável, dez bordos plantados de maneira a que as folhas de Outono proporcionassem um espectáculo maravilhoso, e cornizos de estufa que transformariam o terreno num sonho de branco e cor-de-rosa na Primavera. O desbaste devia ter sido feito há muito tempo, pois os cotos das árvores cortadas já tinham desaparecido.

Levantando os binóculos, inspeccionou a casa como se estivesse a quinze metros dela. Ali estava Chuck em cima de um escadote, com um escopro e um maçarico, removendo a tinta antiga da maneira correcta. Claire estava recostada numa cadeira de madeira perto do alpendre da lavandaria, com Biddy aos seus pés; a leve brisa beijava-lhe o rosto, por isso a cadela não farejara a presença dele. Depois Chuck chamou-a. Claire levantou-se e contornou a esquina da casa com tanta segurança que Carmine ficou espantado. E contudo ele sabia que Claire era cega.

Como é que o sabia com tanta certeza? Porque Carmine não deixava pedra sobre pedra, e a cegueira de Claire era uma pedra no seu caminho. Por vezes utilizava os serviços de uma carcereira de uma prisão de mulheres, chamada Carrie Tallboys, uma mulher que lutava para sustentar um filho prometedor e portanto estava disponível para trabalhos fora do seu horário normal. Carrie tinha um talento curioso, que envolvia representar um papel de forma tão convincente que as pessoas lhe diziam sempre muito mais do que deviam. Assim, Carmine mandara Carrie falar com o oftalmologista de Claire, o eminente Cárter Holt. A história que Carrie lhe contou foi que estava a pensar doar algum dinheiro para a investigação da retinite pigmentosa, uma vez que a sua querida amiga Claire Ponsonby sofrera dessa doença antes de ficar completamente cega. Ah, que bem que o doutor se lembrava do dia em que Claire lhe aparecera com um descolamento de retina bilateral - era tão raro acontecer nos dois olhos ao mesmo tempo! O seu primeiro grande caso, e logo um caso que estava para além das suas capacidades de cura. Mas, protestou Carrie, certamente que hoje em dia já tinha cura? De forma alguma, dissera o Dr. Holt. Claire Ponsonby estava irremediavelmente cega, para o resto da vida. Ele próprio lhe observara os olhos e vira os danos. Muito triste!

Carmine viu a cega Claire falar animadamente com Chuck, que desceu do escadote, deu o braço à irmã e a levou para dentro pelo alpendre da lavandaria. A cadela seguiu-os; depois ouviram-se os acordes distantes de uma sinfonia de Brahms. E pronto, os Ponsonbys pelos vistos já tinham apanhado ar suficiente. Mas - espera, espera! Oh, sim, claro. Chuck voltou a aparecer, pegou nas ferramentas e no escadote e levou tudo para a garagem antes de voltar a entrar em casa. Ele tinha um lado da sua personalidade que exigia cada coisa no seu lugar, mas seria uma pessoa obsessiva?

Baixando os binóculos, Carmine deu meia volta para regressar a Deer Lane. Era mais difícil o caminho descendente, no meio de montes de folhas viscosas e apodrecidas; nem mesmo os veados tinham feito ainda os seus trilhos, embora no Verão eles cruzassem o bosque. Imerso em pensamentos sobre Charles Ponsonby e as suas contradições, Carmine começou a caminhar mais depressa, agora ansioso por voltar ao escritório onde poderia mastigar tranquilamente o enigma. E também mastigar qualquer coisa no Malvo-lio's.

De repente, os seus pés escorregaram nas folhas e deu por si a cair para a frente, com ambas as mãos estendidas para amparar a queda. As folhas mortas voaram em montes ensopados quando aterrou sobre as palmas das mãos com um baque surdo e oco. Deslizou pela encosta, procurando um apoio, até que por fim o impulso da queda abrandou e conseguiu parar. Dois sulcos profundamente escavados no solo assinalavam o movimento das suas mãos. Praguejando entre dentes, virou-se e levantou-se, sentindo a pele raspada a arder mas aliviado por não se ter magoado seriamente. "Estúpido, Carmine, estúpido! Ias demasiado distraído com os teus pensamentos para veres onde punhas os pés, seu palerma."

Mas, porquê um som oco? Curioso, porque era essa a sua natureza, agachou-se e escavou num dos canais feitos pelas suas mãos; a uma profundidade de quinze centímetros encontrou uma tábua. Escavando agora freneticamente, afastou as folhas até conseguir ver parte do que ali se encontrava: a superfície do que podia ser o alçapão de uma antiga cave.

Oh, meu Deus, meu Deus! Subitamente galvanizado, voltou a puxar as folhas para onde estavam, espalhando-as, compactando-as, com a testa banhada em suor, a respiração ofegante. Quando achou que conseguira eliminar todas as evidências da queda, levantou-se para examinar o seu trabalho. Não, não estava suficientemente bom. Se alguém examinasse a área com atenção, perceberia. Tirou o casaco e usou-o para recolher mais folhas a cerca de cem metros. Transportou-as para o local da queda e distribuiu-as, depois pegou no casaco e usou-o como uma vassoura para eliminar todos os traços da sua intrusão. Finalmente, quase sem fôlego, achou que ninguém desconfiaria do que acontecera. "Agora sai daqui, Carmine!" E fê-lo de gatas, às arrecuas, espalhando as folhas no seu rasto; estava quase no parque de estacionamento quando se levantou. Com um pouco de sorte, os veados fariam desaparecer o seu rasto enquanto procurassem forragem de Inverno.

Depois de entrar no Ford, rezou para que a audição apurada de Claire não fosse boa ao ponto de ouvir um motor potente em Deer Lane. Pisou suavemente o acelerador e deslizou até à esquina em primeira. Parte dele mal podia esperar por transmitir as novidades a Silvestri, Marciano e Patrick, mas decidiu não lhes telefonar do ninho de amor do motel, que estava a ter um bom domingo de negócios. Era melhor virar para nordeste e voltar por onde tinha vindo. Não morreria por esperar mais um pouco.

Afinal de contas, o nosso Chuckie não tivera de fazer uma caminhada assim tão longa em temperaturas negativas! E não precisara de usar uma lanterna, porque tinha um túnel que só vinha à superfície já bem na encosta da reserva. Alguém - ele, ou muito antes dele? - escavara profundamente sob a crista, encurtando a distância.

No Connecti-cut, a centenas de quilómetros da linha Mason-Dixon, certamente que o túnel não fora aberto para os escravos fugitivos. "Aposto que foste tu que o escavaste, Chuckie. Na noite em que raptaste Faith Khouri, tudo o que tiveste de fazer foi sair; quando voltaste com ela, nós já tínhamos abandonado a zona. Esse foi um dos nossos erros. Devíamos ter mantido a vigilância. Embora, para ser justo, nunca o teríamos apanhado a regressar: estávamos a vigiar Ponsonby Lane e a casa, não sabíamos da existência do túnel. Portanto dessa vez a sorte esteve do teu lado, Chuckie. Mas agora está do nosso. Já sabemos onde está o túnel."

Uma vez que estava esfomeado e queria mais algum tempo para pensar, Carmine almoçou no Malvolio's antes de convocar os outros para uma reunião.

- Compreendo agora o significado de uma velha expressão - disse quando Patrick, o último a chegar, abriu a porta do gabinete de Silvestri.

- Que expressão? - perguntou Patrick, sentando-se.

- Prenhe com novidades.

- Aqui tens três parteiras especialistas, portanto dá à luz.

Com palavras claras, numa sequência de eventos lógica e correcta, Carmine conduziu a sua assistência, passo a passo, ao longo de tudo o que acontecera depois de falar com Eliza Smith.

- Partiu tudo dela... do que ela disse, da forma como o disse. Foi o meu catalizador. Que culminou numa queda pela colina... Isso é que foi sorte! Tenho tido tanta sorte neste caso - disse, quando acabou de contar a sua história e os seus ouvintes conseguiram fechar a boca.

- Não, sorte não - objectou Patrick, de olhos a brilhar. - Determinação, teimosia e casmurrice, Carmine. Quem mais se lembraria de voltar a investigar a morte de Leonard Ponsonby? E quem mais se daria ao trabalho de abrir uma caixa de evidências com trinta e seis anos? Reabriste um crime considerado encerrado, apenas porque és uma das poucas pessoas que eu conheço que, quando um raio cai duas vezes no mesmo sítio, sabem que é porque algo o está a atrair.

- Tudo isso é muito bonito, Patsy, mas não era o suficiente para levar ao juiz Thwaites. As verdadeiras evidências, encontrei-as por acaso... uma queda numa encosta escorregadia.

- Não, Carmine. A queda pode ter sido um acidente, mas o que encontraste não foi nenhum acaso. Outra pessoa ter-se-ia levantado, sacudido a roupa - Patrick tirou folhas secas do casaco arruinado de Carmine - e saído dali a coxear. Tu encontraste a porta porque o teu cérebro registou um ruído estranho, não porque a queda a tenha deixado à vista. Seja como for, nem sequer estarias na encosta se não tivesses encontrado uma fotografia tirada em mil novecentos e vinte e oito. Vamos, aceita algum crédito!

- Está bem, está bem - exclamou Carmine, erguendo as mãos. - O mais importante é decidir o que fazemos a partir daqui.

A atmosfera no gabinete de Silvestri vibrava quase visivelmente com exaltação, alívio, a alegria maravilhosa e inimitável que surge quando um caso é resolvido. Em especial o caso dos Fantasmas, tão sombrio, tão perturbador, tão penosamente longo e demorado a resolver. Fossem quais fossem as dificuldades que ainda viriam a surgir - todos eles eram experientes o suficiente para saberem que isso aconteceria - tinham respostas bastantes para avançarem, para sentirem que o fim estava próximo.

- Primeiro, não podemos partir do princípio de que o sistema jurídico está do nosso lado - disse Silvestri por trás do charuto. - Não quero que isto vá por água abaixo por causa de um aspecto técnico errado qualquer... principalmente se a defesa dele puder imputar esse erro à polícia. Admitamos, geralmente somos nós os bodes expiatórios.

Este será um grande julgamento, com cobertura nacional. Isso significa que a defesa do Ponsonby não estará nas mãos de advogadozinhos de meia tigela, mesmo que ele não tenha muito dinheiro. Todos os vermes que conheçam as leis do Connecticut e as leis federais vão andar à bulha para entrar na equipa de defesa do Ponsonby. E para fazer de nós os bodes expiatórios. Não podemos dar-nos ao luxo de cometer um único erro.

- O que está a dizer, John, é que, se arranjarmos um mandato agora e invadirmos o túnel do Ponsonby, a única coisa concreta que teremos é algo parecido com uma sala de operações, montada na casa de um médico - disse Patrick. - Tal como o Carmine, eu sempre achei que este assassino não tem um matadouro imundo e sujo de sangue...

tem uma sala de operações. E, se for tão cuidadoso com os vestígios que deixa na sua sala de operações como tem sido com os que deixa nas vítimas, somos bem capazes de sair de lá de mãos a abanar. É nisso que está a pensar?

- Exacto - confirmou Silvestri.

- Nada de erros - disse Marciano. - Nem um.

- E já cometemos carradas deles - acrescentou Carmine.

O silêncio instalou-se; a exaltação desaparecera completamente. Por fim, Marciano soltou uma exclamação exasperada e começou a falar:

- Já que ninguém quer dizê-lo, digo-o eu. Temos de apanhar o Ponsonby em flagrante. E se é isso que temos de fazer, então é isso que temos de fazer.

- Oh, Danny, por amor de Deus! - gritou Carmine. - Pôr a vida de outra rapariga em perigo? Fazê-la passar pelos horrores de ser raptada por aquele homem? Não o farei!

Recuso-me a fazê-lo!

- Ela apanhará um susto, sim, mas nada que não possa superar. Sabemos quem ele é, certo? Por isso podemos segui-lo... não precisamos de seguir mais ninguém...

- Não podemos fazer isso, Danny - interveio Silvestri. - Temos de vigiar toda a gente, tal como fizemos o mês passado. Caso contrário ele reparará. Não podemos fazer nada sem uma operação completa.

- Está bem, compreendo. Mas sabemos que é ele, portanto podemos dar-lhe uma atenção especial. Quando ele se mover, nós estaremos lá. Seguimo-lo até casa da vítima e deixamo-lo agarrá-la antes de o agarrarmos a ele. Com o rapto em flagrante, o túnel e a sala de operações, é impossível que ele saia do tribunal em liberdade - disse Marciano.

- O problema é que é tudo circunstancial - resmungou Silvestri.

- O Ponsonby cometeu pelo menos catorze homicídios, mas temos apenas quatro cadáveres. Sabemos que as primeiras dez vítimas foram incineradas, mas como havemos de o provar? Acham que o Ponsonby tem cara de quem vai confessar? Eu não acredito nisso. Uma vez que há raparigas de dezasseis anos a fugirem de casa todos os dias, temos dez homicídios pelos quais nunca conseguiremos condená-lo. Está tudo dependente da Mercedes, da Francine, da Margaretta e da Faith, mas não há nada que o ligue a nenhuma delas para além de uma suspeita frágil como cristal. O Danny tem razão.

A nossa única esperança é apanhá-lo com a mão na massa. Se invadirmos o covil agora, ele não será condenado. Os advogados dele serão suficientemente bons para persuadirem um júri a declarar a inocência de Hitler ou Estaline.

Olharam uns para os outros, com expressões perplexas e furiosas.

- Temos outro problema - disse Carmine. - A Claire Ponsonby. O comissário Silvestri não era um homem profano, mas neste dia - ainda por cima um domingo! - quebrou as suas próprias regras.

- Merda! Porra! - exclamou entre dentes. E depois cuspiu: - Foda-se!

- Até que ponto achas que ela está a par, Carmine? - perguntou Patrick.

- Não tenho a mínima ideia, Patsy, para dizer a verdade. Sei que a cegueira dela é genuína, o oftalmologista garante-o. E trata-se do doutor Cárter Holt, actualmente professor de Oftalmologia na Chubb. No entanto, nunca vi uma pessoa cega tão apta como ela. Se é ela o isco que eles usam para atrair adolescentes inocentes, cheias de vontade de fazer o bem, nesse caso ela é cúmplice de violação e homicídio, mesmo que nunca tenha entrado na sala de operações do irmão. Que melhor isco do que uma mulher cega? No entanto, uma mulher cega dá muito nas vistas, e é por isso que estou tentado a pôr essa teoria de lado. Ela estaria a agir em locais que não conhece tão bem como a casa de Ponsonby Lane, portanto não conseguiria mover-se muito depressa. E como reconheceria o alvo, a menos que o Chuck estivesse ao seu lado? Oh, passei muito tempo esta manhã a pensar na Claire! Estou constantemente a imaginá-la em frente da escola de St. Martha em Norwalk... sabiam que esse passeio está em mau estado há mais de um ano, devido a reparações nos canos? Com duas raparigas desaparecidas no mesmo sítio, alguém teria reparado nela. Para mim, a Claire teria precisado de passar muitas vezes naquele passeio esburacado, para treinar. Acabei por chegar à conclusão de que ela seria mais um entrave do que um trunfo para o Chuck. Suponho que poderia ter alguma utilidade no carro que transporta as vítimas até à sala de operações, mas parece-me um argumento um pouco rebuscado. No entanto, ele tem de ter um cúmplice.

- Então excluímos a Claire como cúmplice? - perguntou Silvestri.

- Não completamente, John. Apenas como improvável.

- Talvez ela não seja a cúmplice, mas saberá o que o irmão anda a fazer? - perguntou Patrick.

- Tudo o que posso dizer-vos é que existe uma ligação extremamente forte entre ambos. Agora que sabemos como foi a infância deles, essa ligação faz mais sentido.

Foi a mãe deles que assassinou o pai, apostaria a minha vida nisso. O que significa que a Ida Ponsonby já era mentalmente instável muito antes de piorar ao ponto de a Claire ter de voltar para casa para tomar conta dela. Segundo parece, aconteceu tão subitamente como tudo o resto.

- Os filhos saberiam do homicídio, Carmine?

- Mais uma vez, não faço ideia, Patsy. Como é que a Ida teria voltado para casa no meio daquele nevão em mil novecentos e trinta? Presumo que no carro de Leonard, mas será que as estradas já eram limpas nessa altura? Não me lembro.

- As principais sim, claro - disse Silvestri.

- Ela devia estar suja de sangue. Talvez os filhos tenham visto.

- Especulações! - exclamou Marciano. - Vamos limitar-nos aos factos.

- O Danny tem razão, como sempre - disse Silvestri, recompensando-o com o charuto debaixo do nariz. - Começamos a vigilância amanhã à noite, portanto temos de definir as alterações agora.

- A alteração mais importante - disse Carmine - , é que o Corey, o Abe e eu vamos vigiar a entrada do túnel na reserva.

- E o cão? - perguntou Patrick.

-A cadela, sim... isso é uma complicação. Duvido que aceitasse carne com drogas, os cães-guia são treinados a não aceitar comida de estranhos e a não comer nada que encontrem no chão. E, uma vez que é uma cadela esterilizada, não se afastará em busca de companhia canina. Se nos ouvir, ladrará. E não tenho a certeza se o Chuck não levará a Biddy com ele, para ficar de guarda à entrada do túnel na sua ausência. Se assim for, o animal com certeza que nos farejará. Patrick riu-se.

- Não se estiverem a usar eau de doninha! Os restantes olharam para ele, horrorizados.

- Credo, Patsy, não!

- Bom, pelo menos o Abe e o Corey - cedeu Patrick com expressão maliciosa. - Bastaria até um de vós.

- Um de nós de certeza que não usará eau de doninha, e esse sou eu - disse Carmine de testa franzida. - Tem de haver outra maneira.

- Não há, pelo menos sem nos denunciarmos ao Ponsonby. Não podemos raptar a cadela, naturalmente. Não estamos a falar de um simplório qualquer com um plano mal alinhavado, estamos a falar de um médico que tem estado sempre à nossa frente, desde o princípio. Se a cadela desaparecer, ele saberá que o descobrimos e será o fim dos raptos - disse Patrick. - O trunfo que ele tem na manga é a porta do túnel na reserva, e temos de o fazer acreditar que essa continua a ser um segredo só dele. Talvez a proteja, com arames, sinetas ou campainhas que vocês possam pisar como uma mina, ou uma luz numa árvore... antes de se aproximarem, por amor de Deus procurem bem.

Da mesma forma, de certeza que ele usará a cadela. Não sei como, mas tenho a certeza disso. Se eu fosse a ele, deitaria um comprimido para dormir na última bebida da Claire nessa noite.

- Patsy, que mente tortuosa! - disse Silvestri com um sorriso.

- Não tanto como a do Carmine, John. Admitam, tudo o que eu disse é lógico.

- Sim, eu sei. Mas onde é que havemos de encontrar perfume de doninha?

- Eu tenho uma garrafa dele - disse Patrick docemente. Carmine olhou para Silvestri com ar ameaçador.

- Nesse caso, o orçamento da polícia de Holloman tem de incluir literalmente litros de sumo de tomate. Não posso pedir ao Abe e ao Corey que ponham perfume de doninha atrás das orelhas sem lhes oferecer um banho de sumo de tomate pela manhã. - Franziu a testa, frustrado. - Temos alguma banheira nas celas, ou apenas duches?

- Há uma grande banheira de ferro numa sala das traseiras, na parte velha do edifício. Mais ou menos na mesma época em que o Leonard Ponsonby foi morto à pancada, era usada para acalmar os malucos antes de os mandar para o manicómio - disse Marciano.

- Muito bem, mandem alguém lavá-la e desinfectá-la. Depois quero essa banheira cheia até acima com sumo de tomate, porque acho melhor que tanto o Abe como o Corey usem o perfume. Assim, se formos obrigados a separar-nos, a cadela não farejará ninguém.

- De acordo - disse Silvestri, com uma expressão que indicava o final da reunião.

- Alto aí! Ainda não acabámos - disse Carmine. - Ainda temos de discutir possibilidades. Por exemplo, o Ponsonby está a trabalhar sozinho, ou tem um cúmplice que desconhecemos? Partindo do princípio de que a Claire não está envolvida, por que raio pusemos de lado a probabilidade de haver dois Fantasmas? O Ponsonby tem uma vida fora do Hug e de sua casa. Sabemos que costuma frequentar exposições de arte, mesmo quando isso implica faltar um ou dois dias ao trabalho. A partir de agora, seguimo-lo para onde quer que ele vá. As nossas melhores pessoas, Danny, as melhores. Os mais discretos, sejam homens ou mulheres... e nada de comunicação por rádio!

Usem os novos microfones de lapela para a mudança de turnos, o que significa que nenhum destacamento de rendição pode sair do alcance do rádio... aqueles aparelhos são muito fracos. As nossas engenhocas estão a melhorar, mas ainda precisávamos de um Billy Ho e de um Don Hunter. Se o Hug acabar mesmo, John, talvez seja boa ideia trazê-los para o nosso lado. Ponham-nos no departamento do Patsy, que talvez deva incorporar a palavra "forense" no nome. E nem diga o que está a pensar, John! Arranje o dinheiro, raios!

- Se o Morton Ponsonby fosse vivo, saberíamos a identidade do segundo Fantasma - disse Marciano.

- Danny, o Morton Ponsonby não está vivo - disse Carmine pacientemente. - Vi a campa dele e vi também o relatório da autópsia. Não, ele não foi assassinado, simplesmente morreu de repente. Não foram detectados venenos, embora não tenha sido encontrada uma causa concreta para a morte.

- A Ida podia ter atacado de novo.

- Duvido, Danny. Parece que ela era uma mulher franzina e o Morton Ponsonby era um adolescente saudável. Seria difícil sufocá-lo com uma almofada. Além disso, não tinha nada nas vias respiratórias.

- Talvez haja um quarto filho - insistiu Marciano. - A Ida podia não o ter registado.

- Oh, não vamos deixar-nos levar pela imaginação - exclamou Carmine, erguendo as mãos. - Primeiro, com o Leonard morto, quem teria gerado essa misteriosa quarta criança? O Chuck? Põe os pés na terra, Danny! A presença de uma criança sabe-se... não estamos a falar de recém-chegados a Ponsonby Lane, estas pessoas eram donas de Ponsonby Lane! Estavam na zona praticamente desde a chegada do Mayflower. Olha o caso do Morton. Vivia noutro mundo, mas as pessoas sabiam da existência dele.

Houve gente no seu funeral.

- Então, se houver um segundo Fantasma, é um desconhecido.

- Por enquanto, sim - disse Carmine.


As noites de segunda e terça-feira passaram sem incidentes, à excepção das queixas ininterruptas de Abe e Corey. Existir num miasma de doninha era um tormento equivalente a tortura, pois nenhum cérebro em toda a criação alguma vez conseguira fazer com este cheiro o que os cérebros faziam com os cheiros, horríveis ou não: eliminá-los após algum tempo. As doninhas tresandavam, eram o ponto mais baixo em termos olfactivos. Apenas o afecto que sentiam por Carmine os persuadira a consentir, mas, depois de o aroma ser aplicado, arrependeram-se amargamente. Felizmente a velha banheira na parte antiga do edifício dos Serviços Municipais era suficientemente grande para acomodar dois homens ao mesmo tempo, caso contrário uma amizade muito antiga podia ter azedado.

O tempo continuava bom, com temperaturas amenas; perfeito para raptos. Sem chuva e sem vento.

Carmine tentara pensar em todas as contingências. Para além de Abe, Corey e ele próprio, escondidos num local onde tinham uma visão desimpedida da entrada do túnel, havia carros não identificados em cada esquina de Deer Lane, em cada esquina de Ponsonby Lane, um em frente da recepção do motel Major Minor, outro no local onde Carmine se escondera no mês anterior e mais alguns na estrada 133. Estes veículos eram apenas para as aparências; Ponsonby estaria à espera deles, pois devia tê-los visto em Deer Lane no mês anterior. Os verdadeiros vigilantes estavam escondidos nos caminhos de acesso às quatro casas de Deer Lane. Não havia nenhum carro estacionado em frente às casas; Carmine presumia que a viatura usada por Ponsonby estaria certamente na estrada 133, num ponto bastante mais à frente. Não era no entanto nenhum dos carros estacionados na sua garagem, nem a carrinha nem o Mustang descapotável; esses tinham permanecido na garagem no mês anterior e era onde se encontravam agora. Talvez fosse o cúmplice a fornecer o meio de transporte? Nesse caso, Ponsonby iria a pé até ao ponto de encontro.

- Pelo menos vocês podem usar tampões no nariz - consolou-os Carmine enquanto os três homens subiam a encosta, sabendo que Ponsonby saíra há pouco do Hug e ainda vinha no caminho. - Eu posso não usar o mesmo perfume, mas tenho de suportar o vosso cheiro. Bolas, que fedor!

- Respirar pela boca não ajuda muito - queixou-se Corey. - Consigo sentir o sabor desta porcaria! E finalmente percebi por que é que os cães ficam malucos com o cheiro.

Recorrendo aos talentos de Pete Evans, o observador de pássaros do departamento, tinham construído um bom esconderijo a seis metros da porta, sem uma única árvore entre eles e a entrada do túnel. Estavam os três deitados de barriga para baixo, embora de vez em quando se virassem de lado, à vez, para impedir que os músculos ficassem rígidos; um homem era suficiente para manter a vigilância desde que os outros dois estivessem alerta.

Não tinham encontrado quaisquer armadilhas ou dispositivos de alerta, nem mesmo um arame esticado; mas Carmine sempre achara que era improvável que os houvesse.

Ponsonby estava convencido de que o seu túnel era secreto. A sua presunção neste aspecto era interessante, como se residisse numa parte diferente da psique do Dr.

Charles Ponsonby, investigador e bon vivant. Na verdade, Ponsonby era um poço de contradições - tinha medo de pegar num rato, mas não de ser apanhado pela polícia.

Enquanto as horas intermináveis iam passando, Carmine reflectia sobre o túnel. Quem o construíra? Quantos anos tinha? Apesar de eliminar parte da distância para quem quisesse subir e descer a colina, tinha de ter pelo menos trezentos metros de comprimento, talvez mais. Mesmo que tivesse apenas o diâmetro necessário para um homem a rastejar, o que acontecera à terra e às pedras retiradas? O Connecticut era uma zona de muros de pedra, porque os agricultores tinham removido as pedras dos seus campos à medida que os aravam. Quantas toneladas de terra e pedras? Cem? Duzentas? Como seria ventilado, pois tinha de o ser? Teriam aqueles dois velhos celeiros a norte de Nova Iorque fornecido a madeira para o escorar?

Às duas da madrugada dessa noite nublada ouviu-se um leve ruído, um ranger que aumentou gradualmente de intensidade, até se transformar no suave chiar de dobradiças bem oleadas obstruídas por partículas de terra. A cobertura de folhas mortas, agora mais secas do que quando Carmine caíra, deslizou para trás quando a porta se abriu de frente para os três homens no seu esconderijo. A silhueta que se ergueu da cavidade negra era igualmente negra; parou, agachada, e soltou um leve gemido de repugnância quando o odor a doninha lhe chegou às narinas. A cadela pôs a cabeça de fora e desapareceu imediatamente. Biddy não ia ficar de guarda esta noite.

Ouviram Ponsonby a tentar persuadir o animal a sair, mas sem sucesso. Doninha.

O combinado era que Carmine seguiria Ponsonby enquanto Corey e Abe permaneciam junto da entrada do túnel; esperou com a respiração suspensa enquanto a silhueta se endireitava, até ficar da altura de um homem, tão negra que era praticamente invisível na escuridão quase total desta noite sem Lua e sem estrelas. "O que é que ele tem vestido?", pensou Carmine. Até o rosto era invisível.

E quando a silhueta começou a mover-se, fê-lo silenciosamente, sem que os seus pés causassem praticamente o mínimo sussurro no chão da floresta. Carmine também estava vestido de preto, escurecera o rosto e calçava ténis, mas não se atreveu a aproximar-se demasiado - seis metros no mínimo, rezando para que o capuz que cobria a cabeça de Ponsonby lhe dificultasse um pouco a audição.

Ponsonby desceu ligeiramente a encosta em direcção ao largo circular no fim de Deer Lane. Pouco antes da área de estacionamento, virou em direcção à estrada 133, ainda oculto pelos bosques que, deste lado, se estendiam até à estrada. Agora que o terreno era mais nivelado, Carmine sentia grandes dificuldades em ver a sua presa; sentiu-se tentado em percorrer a curta distância até à estrada, na qual conseguiria progredir melhor, mas a avareza do concelho de Holloman negava-lhe essa possibilidade.

Gravilha.

O suor escorria-lhe pelo rosto, cegando-o; limpou rapidamente os olhos, mas, quando olhou para o local onde a silhueta se encontrava antes desse gesto, já não a viu. Não porque Ponsonby se tivesse apercebido de que estava a ser seguido, Carmine tinha a certeza disso. Um capricho do acaso. Deixara a porta do túnel aberta; assim que tivesse a mais pequena suspeita de que estava a ser seguido, voltaria nessa direcção e Carmine tinha a certeza de que isso não acontecera. Ele ainda estava a dirigir-se para a estrada 133, perdido no meio da escuridão.

Carmine escolheu a opção mais sensata, passou para a gravilha e correu o mais silenciosamente que conseguiu em direcção ao Chrysler de aparência vulgar estacionado na esquina de Deer Lane.

- Ele saiu, mas perdi-o - disse a Marciano, depois de entrar e fechar silenciosamente a porta. - Fantasma é a palavra certa para ele. Está vestido de preto dos pés à cabeça, não faz qualquer ruído e deve ter uma visão melhor do que uma ave nocturna. Também deve conhecer cada centímetro desta floresta. Não há mais nada a fazer, por enquanto, temos de esperar que ele regresse com alguma pobre rapariguinha aterrorizada. Céus, não queria nada que as coisas tivessem chegado a este ponto!

- Passamos a palavra pelo rádio? - perguntou Marciano.

- Não, uma vez que não fazemos a mínima ideia do tipo de veículo que ele vai Usar. Pode ter um receptor suficientemente potente para sintonizar todas as nossas bandas.

Esperem aqui até eu vos avisar de que ele está de volta ao túnel, dêem-me dez minutos e depois cerquem a casa. Ainda é a melhor solução.

Carmine saiu do carro e penetrou de novo na floresta, regressando à zona de estacionamento e depois subindo até ao esconderijo.

- Perdi-o, portanto temos de esperar.

- Ele não pode ter ido longe - disse Corey em voz baixa. - A estas horas, não tem tempo de sair do condado de Holloman.

Quando Ponsonby regressou, por volta das cinco da manhã, era um pouco mais fácil de ver, apesar de o corpo que trazia aos ombros estar também envolvido em algo negro; no entanto, dava-lhe mais corpulência, adicionava mais peso aos seus passos. Em vez de subir vindo de Deer Lane, aproximou-se da porta aberta pelo lado, largou a sua carga no solo em frente do buraco e entrou primeiro antes de puxar o fardo atrás de si. A porta fechou-se, aparentemente operada por uma alavanca, e a noite voltou aos seus habituais sons florestais. Carmine já tinha o dedo no botão do emissor, para enviar o sinal a Marciano, quando ouviu qualquer coisa; ficou imóvel e fez sinal aos companheiros para continuarem silenciosos e imóveis. Uma figura surgiu na crista acima deles e começou a descer em direcção à porta, conduzida pela cadela que gania, ofegante e relutante, dividida entre os seus deveres de guia e o fedor insuportável de uma doninha. Claire Ponsonby. Trazia um grande balde e um ancinho. Desesperada por se afastar, Biddy não parava de ganir e de puxar a trela segurada por Claire, obrigando-a a trabalhar apenas com uma mão, enquanto tentava persuadir a cadela a sossegar. Primeiro usou o ancinho para cobrir a porta com as folhas empilhadas ao seu lado, depois despejou o balde de folhas que trouxera por cima das outras e espalhou-as de novo. Finalmente desistiu de se debater com a cadela, encolheu os ombros e deixou Biddy conduzi-la pela subida.

- O que fazemos agora? - perguntou Abe quando o som dos seus passos desapareceu completamente.

- Damos-lhe tempo de chegar a casa, depois chamamos as tropas, conforme planeado.

- Como é que ela sabia onde tinha de tapar? - perguntou Corey.

- Vamos ver se descobrimos - disse Carmine, levantando-se e aproximando-se da porta camuflada. - Por isto, suponho. - Tocou com o pé num pedaço de cano, aparentemente pintado de castanho, embora fosse difícil perceber ao certo na fraca claridade. - A cadela sabe o caminho até à porta mas não pode dizer-lhe quando a alcançam. Quando ela sente o cano, sabe que está na orla superior da porta. Depois disso é fácil. Ou seria, noutras circunstâncias. Esta noite tinha de se debater com uma cadela assustada e viu-se que isso a desorientou.

- Então é ela o segundo Fantasma - disse Abe.

- É o que parece - Carmine enviou o sinal a Marciano. - Muito bem, estamos prontos para uma viagem ao Inferno? Temos nove minutos antes de Marciano avançar.

- Detesto ter de estragar o trabalhinho todo da Claire - disse Corey com um sorriso, afastando as folhas.

O túnel era suficientemente largo para ser percorrido de gatas, e era quadrado; Carmine calculou que este feitio tornaria mais fácil escorá-lo com as tábuas que cobriam paredes e tecto. Aproximadamente de cinco em cinco metros havia um pequeno poço de ventilação que parecia ser feito com tubos de dez centímetros. Sem dúvida que o tubo subia até à superfície, onde era tapado por uma rede, e destapado apenas quando fosse altura de usar o túnel. Quem pisasse uma das saídas do tubo nem se aperceberia de que o tinha feito. Oh, o tempo investido! O esforço! Este era um trabalho de muitos anos. Escavado à mão, escorado à mão, as pedras e a terra transportadas à mão. Na sua vida relativamente ocupada, Charles Ponsonby não teria tido tempo suficiente para esta obra. Outra pessoa o fizera.

O túnel parecia estender-se interminavelmente; pelo menos ao longo de trezentos metros, era o palpite de Carmine. Um percurso de cinco minutos, a boa velocidade.

Depois terminava numa porta, não uma coisa frágil de madeira, mas de aço maciço, com um disco de combinação e uma fechadura de roda, como a porta estanque de um submarino.

- Credo, é um cofre! - exclamou Abe.

- Cala-te e deixa-me pensar! - Carmine olhou para o foco de luz da sua lanterna, onde dançavam partículas de pó, pensando que devia ter calculado que seria necessário este tipo de porta para impedir a contaminação. - Muito bem, o mais lógico é presumir que ele está lá dentro e não sabe o que se passa cá fora. Merda, merda, merda.

Se a Claire é o segundo Fantasma e não usou o túnel, tem de haver outra entrada para o matadouro. É dentro da casa e temos de a encontrar. Mexe-te, Corey! Mexe-te!

Voltaram para trás tão depressa quanto conseguiram e Carmine desceu a correr a encosta até à casa dos Ponsonbys. As luzes estavam a acender-se à medida que as pessoas acordavam com o uivo das sirenes; a rua estava entupida de carros, com uma ambulância de prontidão. Biddy debatia-se, rosnando, numa rede do canil, enquanto Claire bloqueava o caminho de Marciano.

- Algema-a e lê-lhe os seus direitos, Danny - disse Carmine, ofegante, apoiando-se num pilar. - Ela tapou a entrada secreta com folhas, o que faz dela cúmplice.

Mas não conseguimos entrar pelo túnel, ele tem uma porta de cofre a bloquear a entrada. Deixei o Abe e o Corey de guarda ao túnel... manda alguns homens lá para cima para os renderem, para os desgraçados poderem ir tomar o seu banho de sumo de tomate. - aproximou-se de Claire, que parecia fascinada pelas algemas, apalpando-as tanto quanto conseguia com os dedos finos. - Miss Ponsonby, por favor não seja mais do que cúmplice de homicídio. Diga-nos onde é a entrada para a câmara de horrores do seu irmão. Temos provas incontestáveis de que é ele o Monstro do Connecticut.

Ela soltou um soluço e abanou a cabeça.

- Não, não, isso é impossível! Não acredito, recuso-me a acreditar!

- Levem-na para a esquadra - disse Marciano aos dois detectives - , mas deixem-na ficar com a cadela. É melhor deixar que seja ela a libertá-la da rede, o raio da cadela está furiosa connosco. E certifiquem-se de que ela é bem tratada.

- Danny, tu e o Patrick venham comigo - disse Carmine, recuperando finalmente o fôlego. - Mais ninguém. Não queremos a casa cheia de polícias antes que o Paul e o Luke possam examiná-la, mas temos de encontrar a outra porta antes que o Chuck possa fazer alguma coisa à pobre rapariga. Quem é ela?

- Ainda não sabemos - disse Marciano com ar infeliz enquanto seguia Carmine para dentro da casa. - Provavelmente ainda ninguém acordou na casa dela, não são sequer seis horas. - Tentou parecer animado. - Quem sabe, talvez consigamos levá-la de volta aos pais antes de darem pela sua falta.

Por que é que achava que a entrada seria na cozinha? Porque era essa a divisão onde os Ponsonbys pareciam viver, o eixo do seu universo. A antiga casa era como um museu, e a sala de jantar não passava de um local para colocar as colunas da aparelhagem, o sistema de som e a colecção de discos.

- Muito bem - disse, conduzindo Marciano e Patrick até à antiga cozinha - , vamos começar por aqui. Foi construída em mil setecentos e vinte e cinco, portanto as paredes devem ter um som frágil. Excepto onde houver aço por trás.

Nada, nada, nada. A não ser o facto de a cozinha estar gelada, pois o fogão Aga estava apagado. Porquê? A descoberta de um fogão a gás e de um cilindro de água quente, por trás de uma porta apaine-lada, mostravam que os Ponsonbys não precisavam de morrer assados no Verão, mas ainda faltava muito para o Verão. Então por que estava o Aga apagado?

- A resposta tem qualquer coisa a ver com o Aga - disse Carmine. - Vamos concentrar-nos nele.

Por trás havia um reservatório de água, ainda quente. Patrick apalpou e descobriu uma alavanca.

- É aqui! Encontrei!

De olhos fechados, murmurando uma oração, Patrick puxou. O fogão deslizou silenciosamente para o lado sobre o seu eixo. E ali, na alcova da chaminé, estava uma porta de aço. Quando Carmine, de .38 na mão, girou a maçaneta, a porta abriu-se silenciosamente, com facilidade. De súbito, hesitou e voltou a guardar a pistola no coldre.

- Patsy, dá-me a tua máquina fotográfica - disse. - Esta não é uma situação para tiroteio, mas o Danny pode cobrir-me. Espera aqui.

- Carmine, esse é um risco desnecessário! - gritou Patrick.

- Dá-me a tua máquina, é a melhor arma nestas circunstâncias. Ao fundo de um lance de escadas de pedra encontraram uma porta de madeira vulgar. Sem fechadura, apenas uma maçaneta.

Carmine abriu-a e entrou na sala de operações. Os seus olhos não viram mais nada senão Charles Ponsonby, debruçado sobre uma cama, na qual jazia uma rapariga semi-inconsciente, a gemer, já completamente nua e presa por uma larga faixa de lona que lhe segurava os braços desde os ombros aos pulsos. Ponsonby despira o que quer que utilizava para as suas incursões nocturnas em casas adormecidas e estava também nu, com a pele ainda húmida de um duche rápido. Cantarolava entre dentes enquanto as suas mãos experientes avaliavam o nível de consciência da sua presa. Morto por que ela despertasse.

A câmara disparou.

-Apanhado! - disse Carmine.

Charles Ponsonby rodopiou sobre si próprio, de boca aberta, encandeado pelo clarão do flash, sem esboçar qualquer reacção de defesa.

- Charles Ponsonby, está preso por suspeita de homicídio. De acordo com as práticas da polícia da cidade de Holloman, condado de Holloman, tem direito a manter o silêncio e a requisitar um advogado. Compreendeu? - perguntou Carmine.

Enquanto Carmine falava, Danny Marciano abriu outra porta e reapareceu com uma gabardina preta e brilhante na mão.

- Ele está sozinho - disse, guardando a arma - , e isto é tudo o que encontrei. Estica os braços, meu monte de merda.

Depois de terem enfiado a gabardina a Ponsonby, Marciano pegou nas algemas e fechou-as sobre os seus pulsos, tão apertadas quanto conseguiu.

- Podes descer, Patsy! - chamou Carmine.

- Meu Deus! - foi tudo o que Patrick conseguiu dizer quando os seus olhos abarcaram a cena; depois foi ajudar Carmine a enrolar a rapariga no lençol e a levá-la para cima, seguidos por Marciano e Ponsonby.

Quando o puseram na parte de trás de um carro da polícia, Ponsonby pareceu regressar ao mundo real por um momento. Arregalou os olhos azuis, atirou a cabeça para trás e começou a rir, uma gargalhada aguda de júbilo monumental. Os polícias na parte da frente do carro continuaram a olhar em frente, de rostos inexpressivos.

A vítima, de identidade ainda desconhecida, foi colocada na ambulância; enquanto esta se afastava, chegou a carrinha de Luke e Paul, dispersando os residentes de Ponsonby Lane que se tinham reunido em grupos, estupefactos, trocando murmúrios e observando o circo no número seis. Até o major Minor lá estava, falando avidamente.

- Podes devolver-me a máquina fotográfica? - pediu Patrick a Carmine quando entraram na câmara da morte, seguidos por Paul e Luke.

Tudo o que viam era branco ou de aço inoxidável prateado. As paredes eram cobertas de aço, o chão parecia de mosaicos cinzentos, a uniformidade do tecto metálico era interrompida apenas por várias lâmpadas fluorescentes. Nenhum pó do túnel podia penetrar neste local desinfectado e brilhante, pois a porta era estanque, para além de ter trinta centímetros de espessura. As entradas de ar e um leve zumbido revelavam a existência de um bom ar condicionado e a sala tinha um cheiro clínico e limpo. A cama estava apoiada em quatro pernas metálicas redondas e era uma plataforma de aço inoxidável, com um colchão de espuma enfiado numa cobertura de borracha, sobre o qual estava aberto um lençol branco, não apenas limpo, mas engomado. As extremidades das correias estavam enfiadas em sulcos ao longo da plataforma e presas por varas ligeiramente mais estreitas do que as ranhuras. Havia também uma mesa de operações metálica, fria e vazia. E, mais horrivelmente explícito, um gancho de talhante e um guincho suspensos do tecto, por cima de um declive no chão ao fundo do qual havia uma grande grelha de escoamento. Havia armários de portas de vidro com instrumentos cirúrgicos, drogas, material para injecções, latas de éter, compressas, fita adesiva, ligaduras. Num armário havia uma série de pénis ocos, incluindo o pesadelo que matara Margaretta e Faith. Em cima de um armário havia uma máquina de jactos de água e outra de limpeza a vapor, noutro capas de borracha para o colchão, lençóis e cobertores de algodão. Encostada a uma das paredes estava uma grande arca frigorífica industrial; Carmine abriu-a, revelando um interior imaculado.

- Ele livrou-se dos lençóis e das capas depois de cada vítima - disse Patrick, de lábios comprimidos.

- Olha para isto, Patsy - disse Carmine, abrindo uma cortina.

Alguém gritou lá de cima:

- Tenente, já sabemos quem é a vítima! Delice Martin, aluna interna em Stella Maris.

- Então ele não precisou de um carro - disse Carmine a Patrick. - Stella Maris fica a menos de um quilómetro. Trouxe a rapariga às costas até aqui.

- Sujeitou-se a atrair as atenções sobre si próprio, ao raptar uma rapariga tão perto de Ponsonby Lane. - Foi o comentário de Patrick.

- De certa forma, sim, mas por outro lado, não. Ele sabia que tínhamos todos os Huggers sob vigilância, por que havia de ser ele? Até ao fim, esteve convencido de que o seu túnel era secreto. Agora queres vir ver isto, Patsy? Olha!

Carmine afastou uma cortina de seda branca, revelando uma alcova forrada a mármore branco cintilante. Numa mesa, como se fosse um altar, havia dois candelabros de prata com velas brancas por acender, como se aguardassem que algo fosse depositado numa bandeja de prata em cima de um pano delicadamente bordado. Um sacrifício.

Na parede por cima da mesa havia quatro prateleiras. Nas duas de cima viram seis cabeças em cada uma; na terceira havia mais duas cabeças e a quarta estava vazia.

As cabeças não estavam congeladas. Não estavam em frascos de formalina. Tinham sido mergulhadas em plástico transparente, como as lojas de recordações faziam às borboletas.

- Ele teve problemas com o cabelo - disse Patrick, cerrando os punhos para parar o tremor das mãos. - Percebe-se que melhorou muito com a prática. Penosamente lentas, aquelas primeiras seis cabeças! Um gancho de ferro para segurar a cabeça virada ao contrário dentro do molde, enquanto ele despejava um pouco de plástico, o deixava assentar, depois despejava mais um pouco. Fez um grande avanço na sétima cabeça... provavelmente arranjou maneira de fixar o cabelo. Assim já podia encher o molde uma só vez. Gostava de saber como é que resolveu o problema da decomposição anaeróbia, mas aposto que retirou os cérebros e encheu a cavidade craniana com um gel de formalina, talvez. Por baixo daquele delicado folho de papel de alumínio, os pescoços estão selados. - Patrick combateu os vómitos que o acometeram subitamente. - Estou agoniado.

- Sei que o plástico líquido é terrivelmente caro, mas pensava que não resultaria em espécimes tão grandes - disse Carmine. - Mas a cabeça da Rosita Esperanza parece estar em boas condições.

- Não importa muito o que os manuais ou os fabricantes dizem. Estas catorze contradições dizem-nos que o Charles Ponsonby era um mestre da técnica. Além disso, o molde é justo, pouco maior do que a cabeça. Um litro de plástico seria mais do que suficiente.

- Transformou os seus talismãs em borboletas.

Os dois técnicos tinham vindo ver, mas não se demoraram muito; seria trabalho deles retirar cada cabeça e embalá-la como evidência. Mas apenas depois de cada centímetro da divisão ser fotografado, desenhado e catalogado.

- Vamos ver a casa de banho - sugeriu Patrick.

- Ele trouxe a Delice Martin - disse Carmine depois de olhar - , atirou-a para a cama e veio tomar um duche. Isto era o que vestia quando a raptou.

Era um fato de mergulho de borracha preta, do tipo usado pelos mergulhadores de pouca profundidade - fino e leve. Ponsonby retirara as faixas e fitas coloridas e eliminara o brilho. Ao lado do fato, no chão, estava um par de botas de borracha de sola lisa, muito bem arrumadas, e um par de finas luvas de borracha preta dobradas em cima de um banco.

- Flexíveis - disse Carmine, flectindo uma das botas entre as mãos enluvadas. - Este tipo pode ser um investigador falhado, mas como assassino é fenomenal. - Voltou a colocar a bota exactamente no mesmo sítio.

Regressaram à divisão principal, onde Paul e Luke já tinham começado a sessão fotográfica; estariam dias e dias ocupados com as muitas tarefas de que Patrick os incumbiria.

- As cabeças são toda a evidência de que precisamos para o acusar de catorze homicídios - disse Carmine, fechando a cortina. - De certa forma é engraçado, como ele as manteve expostas com este destaque, parece não lhe ter sequer ocorrido que alguém podia descobrir este local. Se neste estado houvesse pena de morte, o Ponsonby não se safava. Assim, apanhará catorze sentenças perpétuas consecutivas. O nosso fantasma morrerá na prisão, agredido todos os dias pelos outros reclusos. Como o vão odiar!

- É uma boa imagem, mas sabes tão bem como eu que o director o manterá isolado.

- Sim, é pena mas é verdade. Só quero que ele sofra, Patsy. O que é a morte, senão um sono eterno? E o que é o isolamento numa prisão, senão uma oportunidade de ler muitos livros?


Por razões que não queria explorar, Wesley le Clerc nunca conseguia pensar em si próprio como Ali el Kadi quando estava em casa da tia. Assim, foi Wesley le Clerc que se arrastou para fora da cama às seis da manhã; a tia Celeste insistia nisso. Depois de abrir o tapete para as suas orações matinais, dirigiu-se à casa de banho para aquilo a que chamava os quatro Cs - champô, chuveiro, cortar a barba e cagar.

O comício de Mohammed estava organizado e, além disso, Mohammed dizia que ele devia continuar a ser um empregado modelo na Parson Surgical Supplies, para além de seu espião no Hug. No seu local de trabalho, Wesley fora transferido dos pinças-mosquito Halstead para instrumentos de microcirurgia, e o seu supervisor andava a falar em dar-lhe uma formação especial que lhe permitiria melhorar ou mesmo inventar instrumentos. Com o governo federal a pressionar as empresas por igualdade de oportunidades na atribuição de emprego, um trabalhador negro dotado era precioso, por outras razões para além da sua qualidade; ele ou ela contribuíam para as estatísticas que mantinham o Congresso satisfeito. Nada disso importava para o frustrado Wesley, que ardia por desferir um golpe pelo seu povo agora, não num futuro remoto quando tivesse a merda do canudo da Ordem dos Advogados do Connecticut.

Otis estava a sair para o Hug quando Wesley entrou na cozinha. A tia Celeste estava a arranjar as unhas, que usava compridas, pintadas de encarnado e bastante bicudas para realçar os dedos longos e afunilados. O rádio estava ligado; ela desligou-o e levantou-se para servir a Wesley o seu pequeno-almoço de sumo de laranja, cereais e torradas de pão integral.

- Apanharam o Monstro do Connecticut - comentou, enquanto punha margarina na torrada.

Wesley deixou cair a colher na tigela de cereais, salpicando a mesa.

- O quê? - perguntou, limpando o leite antes que ela visse o que tinha feito.

- Apanharam o Monstro do Connecticut há cerca de quinze minutos. As notícias não falam de outra coisa, ainda não passaram uma única música.

- Quem é ele, um Hugger?

- Não disseram. Wesley ligou o rádio.

- Então devem estar a falar nisso agora, não?

- Suponho que sim - disse Celeste, voltando à sua manicura. Wesley ouviu o boletim noticioso com a respiração suspensa, mal podendo acreditar nos seus ouvidos. Apesar de a identidade do Monstro não ser revelada, a whmn estava em condições de poder informar que era um profissional bastante importante da área da medicina e que havia uma cúmplice do sexo feminino. Os dois compareceriam às nove da manhã perante o juiz Douglas Thwaites, no tribunal do distrito de Holloman, para formalizar a acusação e fixar a fiança. - Wes?Wes? Wes!

- Hã? Sim, tia?

- Sentes-te bem? Não vais desmaiar, pois não? Já basta uma pessoa de coração fraco na família.

- Não, não, tia, eu estou bem, a sério. - Beijou-a na face e voltou ao quarto para vestir o seu casaco mais largo, luvas e um gorro de lã. Apesar de estar um dia de sol, a temperatura ainda estava bastante baixa.

Quando chegou ao número dezoito de Fifteenth Street, encontrou Mohammed e os seus seis amigos mais íntimos reunidos num grupinho assustado; tinham apenas três dias para reorganizar o tema do comício, para tentar capitalizar de alguma forma este desenvolvimento inesperado. Quem poderia sonhar que aqueles porcos incompetentes fariam uma detenção?

Com um sorriso tímido e apologético, Wesley passou por eles e entrou naquilo a que Mohammed se referia como a sua "sala de meditação". Para Wesley, parecia-se mais com um arsenal, com as paredes cobertas de prateleiras com caçadeiras, metralhadoras e espingardas automáticas; os revólveres estavam guardados em vários armários metálicos, que em tempos tinham pertencido a uma loja de armamento, com gavetas especificamente desenhadas para esse tipo de material. Em pilhas no chão, onde quer que houvesse espaço livre, havia caixas de munições.

Apesar dos armamentos, ou talvez por causa deles, este era sempre o local mais sossegado da casa, e tinha aquilo de que Wesley precisava neste momento: uma mesa e uma cadeira, cartolina branca, tintas, pincéis, canetas, réguas, tesouras e uma guilhotina. Wesley pegou numa folha de cartolina de quarenta e cinco por setenta e cinco centímetros e marcou uma secção com vinte centímetros de largura, que depois cortou com um x-acto encostado a uma régua. Não ficava com muito espaço para uma mensagem, mas a que ele tinha em mente não era longa. Letras pretas, fundo branco. E onde é que estava o equipamento de hóquei do filho de Mohammed, aquele fedelho mimado? Vira-o caído num lado qualquer, agora que o miúdo chegara à conclusão que afinal Alá não queria que ele fosse uma estrela do hóquei. A sua mania mais recente era o salto em altura, por causa de um campeão qualquer do Liceu Travis.

- Olá, Ali! Estás ocupado? - perguntou Mohammed, entrando.

- Sim. Estou ocupado a arranjar-te um mártir, Mohammed.

- A transformar-me num mártir, é isso que queres dizer?

- Não, a fabricar-te um mártir a partir de alguém menos importante.

- Estás a brincar?

- Não. Onde é que está o equipamento de hóquei do Abdullah?

- Duas salas mais para dentro. Conta-me mais, Ali.

- Agora não tenho tempo, tenho muito que fazer. Vê se tens a televisão ligada no Channel Six às nove da manhã. - Wesley pegou num pincel mas não o mergulhou na tinta preta. - Preciso de privacidade, Mohammed. Assim nunca poderão provar que tu estavas a par dos meus planos.

- Claro, claro! - Com um sorriso, Mohammed fingiu uma vénia e saiu da sala de meditação, deixando Wesley sozinho.

Quando Carmine entrou na esquadra, parecia que estavam cem polícias à sua espera para lhe apertar a mão, lhe dar palmadas nas costas, lhe sorrir com expressão idiota.

Para a imprensa, Charles Ponsonby ainda era o Monstro do Connecticut, mas para todos os polícias ele era um Fantasma.

Silvestri estava tão feliz que apareceu à porta e deu um beijo repenicado na bochecha de Carmine, abraçando-o.

- O meu rapaz, o meu rapaz! - Trauteou, com os olhos brilhantes das lágrimas. - Salvou-nos a todos.

- Oh, vá lá, John! Deixe-se de dramatismos, este caso já durava há tanto tempo que morreu de velhice - disse Carmine, embaraçado.

- Vou recomendá-lo para uma medalha, nem que o governador tenha de inventar uma.

- Onde estão o Ponsonby e a Claire?

- Ele está numa cela com dois polícias a fazerem-lhe companhia... este palhaço que nem sonhe em enforcar-se! Também não tem nenhuma cápsula de cianeto enfiada no recto, já nos certificámos disso. A irmã está num gabinete vago neste piso, com duas agentes. E a cadela. Na pior das hipóteses, é cúmplice. Não temos qualquer evidência que sugira que ela é o segundo Fantasma, pelo menos evidências capazes de impressionar o céptico do Thwaites, aquele velho pedante. As nossas celas são limpas, Carmine, mas não foram concebidas para acomodar uma senhora, muito menos uma senhora cega. Achei que seria boa política tratá-la de uma forma que os seus advogados não possam criticar quando ela for a julgamento... se for a julgamento. Neste momento, é duvidoso.

- Ele falou?

- Nem uma palavra. De tempos a tempos dá uma grande gargalhada, mas não disse nada. Olha para o vazio, cantarola entre dentes, ri-se.

- Vai alegar insanidade.

- Não tenho a menor dúvida. Mas os loucos, segundo as regras M'Naghten, não conseguem planear a construção de uma câmara de horrores como aquela até ao mais ínfimo pormenor.

- E a Claire?

- Continua a dizer que se recusa a acreditar que o irmão seja um assassino em série e que ela não fez nada errado.

- A menos que o Patsy e a sua equipa consigam encontrar algum vestígio dela na sala de morte ou no túnel, de certeza que ela se safa. Quer dizer, uma cega e a sua cadela guia esvaziam um balde de folhas mortas na reserva dos veados e espalham-nas? Um advogado minimamente competente seria capaz de provar que ela estava a levar comida aos veados e despejara o balde no local onde o irmão Chuck lhes construíra um comedouro. Claro que podemos sempre ter a esperança de obter uma confissão.

- Vá sonhando! - disse Silvestri com uma fungadela desdenhosa. - Nenhum destes dois me parece muito dado a confissões. - Fechou um olho e fixou Carmine com o outro.

-Acredita que ela é o segundo Fantasma?

- Honestamente não sei, John. Não conseguiremos prová-lo.

- Bom, seja como for, eles vão ser formalmente acusados no tribunal do juiz Thwaites, às nove horas. Eu queria que fosse num local menos público e de forma mais discreta, mas o Doug Thwaites não cedeu. Que confusão. O Ponsonby tem apenas uma gabardina vestida e recusa-se a vestir seja o que for. Se o obrigarmos e lhe fizermos a mais pequena nódoa negra ou cortezinho, vão acusar-nos de brutalidade policial, portanto vai comparecer no tribunal de gabardina. O Danny apertou-lhe demasiado as algemas, já nos basta isso. O maldito tem os pulsos em carne viva.

- Suponho que todos os jornalistas que conseguirem chegar a Holloman a tempo vão estar em frente do tribunal, incluindo os apresentadores das notícias do Channel Six - disse Carmine com um suspiro.

- Naturalmente. Isto é uma grande notícia para uma cidade tão pequena.

- Não podemos acusar a Claire separadamente?

- Podíamos, se o Thwaites fosse nisso, mas não vai. Quer ter os dois à sua frente ao mesmo tempo. Por curiosidade, acho eu.

- Não, ele quer uma antevisão que o ajude a decidir-se sobre a cumplicidade da Claire.

- Já comeu alguma coisa, Carmine? - Não.

- Então vamos ver se apanhamos uma mesa no Malvolio's antes da hora de ponta.

- Como estão o Abe e o Corey? Já se livraram do fedor a doninha?

- Sim, e estão muito mal-humorados. Queriam ter estado consigo naquela cave.

- Tenho muita pena, mas eles tinham de se lavar. Sugiro que aperte com o governador para arranjar mais duas medalhas, John. E uma grande cerimónia.

O tribunal de Holloman ficava em Cedar Street, no parque, a uma curta caminhada do edifício dos Serviços Municipais. Contudo era uma caminhada que os Ponsonbys não podiam fazer. Alguns jornalistas mais empreendedores, com os respectivos fotógrafos, estavam à porta da esquadra quando Ponsonby foi retirado da mesma, com uma toalha por cima da cabeça e a gabardina abotoada do pescoço aos joelhos, onde alguém a prendera com um alfinete-de-ama para ter a certeza de que não se abriria de repente.

Assim que Ponsonby pisou o passeio, começou a lutar com os polícias que o escoltavam, não para fugir, mas para se livrar da toalha. Por fim foi enfiado no carro-patrulha de rosto à mostra, no meio de um clarão azul de flashes; ninguém estava disposto a correr riscos com a luz. O carro já tinha arrancado quando Biddy saiu do edifício, conduzindo Claire. Tal como o irmão, não permitiu que ninguém lhe cobrisse a cabeça. Os guardas que a escoltavam foram manifestamente gentis com ela e a viatura que a transportou ao longo do quarteirão, até ao tribunal, foi o carro oficial de Silvestri, um grande Lincoln.

A multidão em frente ao tribunal era tão grande que Cedar Street tivera de ser completamente cortada ao tráfego; uma fila de polícias, de braços dados, avançava e recuava ao ritmo dos empurrões da multidão que estavam a tentar controlar. Talvez apenas metade das pessoas fossem negras, mas ambas as metades estavam muito zangadas.

A imprensa estava por trás do cordão policial: operadores de câmara com as câmaras ao ombro, repórteres fotográficos com as máquinas em automático, locutores de rádio a falarem para os microfones, o apresentador das notícias do Channel Six a fazer o mesmo. Um dos jornalistas era um negro baixo e magro com um casaco volumoso; foi abrindo caminho aos poucos, sorrindo e pedindo licença em voz baixa, com as mãos enfiadas nos bolsos para as aquecer.

Quando Charles Ponsonby foi retirado do carro-patrulha, os jornalistas precipitaram-se para ele, com o homenzinho magro na linha da frente. Este retirou uma mão negra e magra de dentro do casaco e levou-a à cabeça, na qual enfiou um chapéu estranho, um chapéu com uma tira de cartolina branca que dizia em letras pretas e bem desenhadas nós sofremos. Todos os olhares se tinham voltado para o chapéu, incluindo o de Charles Ponsonby; ninguém viu a outra mão de Wesley le Clerc sair do bolso com uma pistola preta. Antes que os polícias conseguissem sacar das armas, ele já colocara quatro balas no peito e no abdómen de Ponsonby. Mas não foi liquidado por nenhuma descarga de artilharia. Carmine saltara para a sua frente para o proteger, berrando a plenos pulmões:

- Não disparem!

E estava tudo na televisão, cada milissegundo dos eventos, desde o chapéu nós sofremos, à expressão espantada de Charles Ponsonby, ao salto suicida de Carmine. Mohammed el Nesr e os seus amigos assistiram ao desenrolar da acção, tensos com o choque. Depois Mohammed afundou-se na sua cadeira e ergueu os braços, exultante.

- Wesley, conseguiste, deste-nos o nosso mártir! E aquele estúpido do Pelmonico salvou-te para o julgamento. Raios, e que julgamento vai ser!

- Ali, queres tu dizer - corrigiu Hassan, sem compreender.

- Não, a partir de agora ele é o Wesley le Clerc. Tem de parecer que agiu em nome de todo o povo negro, não apenas da Brigada Negra. É assim que vamos trabalhar isto.

Aconteceu tudo dois minutos antes da chegada do carro de Claire Ponsonby, pelo que ela não chegou a testemunhar o destino do irmão. Primeiro, o carro ficou preso numa massa de corpos em movimento. Por fim a polícia conseguiu abrir espaço suficiente para o Lincoln inverter a marcha e voltar a descer Cedar Street até ao edifício dos Serviços Municipais.

- Meu Deus, Carmine, estás louco? - inquiriu Danny Marciano, branco como a cal, com o corpo a tremer. - Os meus homens estavam em piloto automático, teriam abatido o próprio Papa!

- Bom, felizmente não dispararam contra mim. Mais importante ainda, Danny, não houve balas perdidas que pudessem acertar num operador de câmara ou matar a Di Jones...

como é que Holloman poderia sobreviver sem a coluna de mexericos dela ao domingo?

- Sim, eu sei por que razão o fizeste... e eles também, há que lhes dar esse crédito. Tenho de dispersar esta multidão.

Patrick estava ajoelhado junto da cabeça de Charles Ponsonby, inclinada para trás, com uma expressão ultrajada no rosto magro e fino; um lago de sangue espalhava-se sob o corpo, cada vez mais lentamente à medida que se expandia.

- Morto? - perguntou Carmine, curvando-se.

- E bem morto. - Patrick passou a mão sobre os olhos fixos e incrédulos de Ponsonby, para os fechar. - Pelo menos não falará e, na minha opinião, tem um inferno à espera dele.

Wesley le Clerc estava de pé no meio de dois polícias uniformizados, parecendo inofensivo e insignificante; todas as câmaras continuavam apontadas a ele, ao homem que executara o Monstro do Connecticut. Justiça violenta, mas justiça, de certa forma. Não ocorreu a ninguém que Ponsonby ainda não fora julgado e poderia, eventualmente, ser inocente.

Silvestri desceu as escadas do tribunal, limpando a testa.

- O juiz não achou graça nenhuma - disse a Carmine. - Meu Deus, que grande fiasco! Tirem-no daqui! - gritou aos homens que seguravam Wesley. - Vá, levem-no e prendam-no!

Carmine seguiu Wesley até ao carro-patrulha e sentou-se ao lado dele, no banco manchado e mal cheiroso, com a cabeça virada para o lado. Wesley ainda tinha aquele chapéu idiota com a sua mensagem dilacerante: nós sofremos. Mas a primeira coisa que Carmine fez foi informar Wesley da sua situação, em voz suficientemente alta para que os polícias no banco da frente o pudessem ouvir.

Depois tirou-lhe o chapéu e revirou-o entre as mãos. Um capacete de hóquei de plástico, que fora atacado com um alicate de forma a encaixar por cima das orelhas.

Depois de colocado, ficaria no sítio o tempo suficiente para ser visto.

- Suponho que pensaste que cairia, no meio da chuva de balas que esperavas que te acertassem, e contudo aqui está ele, na tua cabeça até ao fim. Mesmo depois de teres sido enfiado neste carro. És melhor artífice do que pensas, Wesley.

- Fiz uma coisa grandiosa - disse Wesley em tom vibrante - , e farei outras ainda mais grandiosas!

- Não te esqueças de que tudo o que disseres pode ser usado como evidência contra ti.

- O que é que isso me interessa, tenente Delmonico? Sou o vingador do meu povo, matei o homem que violou e matou as nossas raparigas. Sou um herói e é assim que serei encarado.

- Oh, Wes, estragaste a tua vida, não vês? O que te deu esta ideia, o Jack Ruby? Não pensaste que eu te deixaria morrer como ele, pois não? Tens uma mente tão boa!

E é uma pena, porque, se tivesses feito o que eu te disse, podias ter feito uma diferença importante para o teu povo. Mas não, não quiseste esperar. Matar é fácil, Wes. Qualquer pessoa pode matar. Para mim, isso indica um Q.I. para aí quatro pontos acima de um vegetal. O Charles Ponsonby teria passado o resto dos seus dias na prisão. Tudo o que tu fizeste foi libertá-lo.

- Era ele? O doutor Chuck Ponsonby? Ora vejam! Sempre era um Hugger, então. O senhor não consegue compreender, tenente. Ele foi apenas um meio para eu atingir o meu fim. Deu-me a oportunidade de me tornar um mártir. Acha que me interessa se ele está morto ou vivo? Estou-me borrifando! Eu é que tenho de sofrer, e sofrerei.

Enquanto Wesley le Clerc era conduzido para as celas, Silvestri apareceu como um furacão, mastigando violentamente o seu charuto.

- Lá vai outro que teremos de vigiar a cada segundo - resmungou. - Se o deixarmos cometer suicídio, estamos metidos em grandes sarilhos.

- Ele também é um tipo muito inteligente e com grande perícia manual, portanto tirar-lhe o cinto e tudo o que ele possa rasgar em tiras não o impedirá de tentar, se for essa a sua intenção. Pessoalmente, não acredito que seja. O Wesley quer ver tudo exibido em público.

Entraram no elevador.

- O que fazemos com Miss Claire Ponsonby? - perguntou Carmine.

- Desistimos das acusações e libertamo-la imediatamente. É o que o procurador público diz. Um balde de folhas secas não chega para a deter, quanto mais para a condenar.

A única coisa que podemos fazer é proibi-la de sair do condado de Holloman... por enquanto. - O rosto papudo franziu-se como o de um bebé com cólicas. - Oh, que caso filho da mãe que este tem sido, do princípio ao fim! Todas aquelas raparigas bonitas e virtuosas mortas, e ninguém que lhes faça justiça a sério. E como diabo hei-de lidar com as famílias em relação às cabeças?

- Pelo menos as cabeças representam o fechar de uma porta para as famílias, John. Não saber é pior do que saber - disse Carmine enquanto saíam do elevador. - Onde está a Claire?

- No mesmo gabinete.

- Importa-se que seja eu a tratar do assunto?

- Se me importo! Esteja à vontade. Não quero sequer ver aquela cabra!

Ela estava sentada numa cadeira confortável, com Biddy deitada aos seus pés, ignorando as duas jovens polícias de ar pouco à vontade que tinham recebido ordens para não tirar os olhos dela. Uma vez que Claire não via, isso parecia, de alguma forma, uma invasão imperdoável da sua privacidade.

- Ora, tenente Delmonico! - exclamou ela, endireitando-se quando ele entrou.

- Desta vez não foi o motor V8 do meu carro que me denunciou. Como é que o faz, Miss Ponsonby?

Ela abriu um sorriso afectado que a fez parecer velha, manhosa, azeda, desprezível; algo na sua expressão causou em Carmine um daqueles clarões de compreensão fugazes, tão vitais na carreira policial. Algo que lhe disse que ela era, decididamente, o segundo Fantasma. "Oh, Patsy, Patsy, arranja-me algo que a coloque na câmara da morte! Encontra-me uma fotografia ou um filme dela e de Chuck no meio de um homicídio ou violação. Cresce, Carmine! Não vais encontrar nada. As únicas recordações que eles guardaram foram as cabeças. De que serve uma imagem, instantâneo ou filme, a uma pessoa cega? Na verdade, de que serve uma cabeça?" - Tenente - disse ela num sussurro - , o senhor leva o seu V8 para onde quer que vai. O motor não está no seu carro, está em si.

- Já a informaram de que o seu irmão, o Charles, está morto?

- Sim, já. Sei também que ele não fez nenhuma das coisas que dizem que ele fez. O meu irmão era um homem intelectual, exigente e terrivelmente bondoso. Esse pacóvio do Marciano acusou-me de ser amante dele... bah! Ainda bem que eu não tenho uma mente tão suja.

- Temos de levar todas as possibilidades em conta. Mas é livre de partir, Miss Ponsonby. Todas as acusações foram retiradas.

- Bem me parecia - disse ela, puxando a pega da trela de Biddy.

- Onde vai ficar? A sua casa ainda é uma cena de crime sob investigação e assim continuará durante algum tempo. Quer que telefone a Mrs. Eliza Smith?

- Com certeza que não! - exclamou ela. - Se não fosse a língua comprida daquela mulher, nada disto teria acontecido. Espero que ela morra com um cancro na língua!

- Nesse caso, para onde vai?

- Ficarei no motel até poder voltar para minha casa, mas aviso desde já que tenciono contratar advogados para cuidarem dos meus interesses no número seis de Ponsonby Lane, portanto sugiro que não danifiquem nada. A casa não cometeu qualquer crime.

E com isto saiu. "O vencedor leva tudo, Carmine. Fantasma ou não, ali vai uma mulher formidável."

Carmine voltou para a casa que não cometera qualquer crime, apesar de não se ter oferecido para levar Claire ao motel Major Minor's. Silvestri doara o seu Lincoln para isso. Estavam agora a entrar na fase mais triste de qualquer caso - o monótono e pouco ins-pirador rescaldo.

Quando chegaram todos ao Hug, as notícias de que o Monstro do Connecticut já fora apanhado eram, em termos noticiosos, bastante antigas. Todos os rostos pareciam mais lisos, mais jovens, e cada par de olhos brilhava. Oh, o alívio! Talvez agora o Hug pudesse voltar ao normal, pois evidentemente o Monstro não era um Hugger.

Desdemona não vira Carmine desde que regressara da sua caminhada, nem estava à espera disso, já que sabia que ele estava ocupado com a vigilância do Fantasma. Mas, quando estava prestes a sair para o carro-patrulha para se dirigir ao Hug, nesta quarta-feira de manhã, o telefone tocou: era Carmine, e parecia curiosamente pouco emotivo.

- Há uma televisão na sala de reuniões do Hug, se bem me lembro - disse. - Acende-a no Channel Six, está bem? - E desligou.

Arrastando os pés, esmagada pelo tom impessoal dele, Desdemona abriu a sala de reuniões e acendeu a televisão precisamente quando o relógio de parede marcava as nove horas da manhã. Oh, como não queria ver isto! Mal passara a porta do Hug, ouvira toda a gente aos gritos de que o Monstro fora apanhado. Como se os polícias no carro que a trouxera conseguissem falar de outra coisa! Agora teria de ver o que Carmine andara a fazer nas suas incursões nocturnas, e temia-o. Ele estava bem, em princípio, mas durante três noites ela estivera consumida pela preocupação, até mesmo pelo terror. O que faria se ele nunca mais voltasse para casa? Oh, que diabo lhe passara pela cabeça para decidir declarar a sua independência com uma caminhada no fím-de-semana anterior à vigilância do Fantasma? Por que diabo não percebera que ele não viria para casa no domingo à noite? Todas as suas esperanças estavam centradas nisso enquanto percorria a magia dos bosques: como o abraçaria e lhe diria que não podia viver sem ele. Mas... nada de Carmine. Apenas os ecos do seu apartamento vermelho.

A televisão tremeluziu e ganhou vida. Sim, ali estava o tribunal, rodeado por uma multidão de centenas de pessoas, jornalistas por todo o lado, polícia por todo o lado. Um operador de câmara do Channel Six conseguira, pelos vistos, empoleirar-se no tejadilho de uma carrinha para abarcar toda a cena; outro estava entre a multidão e um terceiro no passeio, perto de um carro-patrulha que se aproximava. Viu Carmine de pé ao lado de um grande capitão de uniforme que reconheceu como sendo Danny Marciano. O comissário Silvestri estava no alto da escadaria do tribunal, muito elegante num uniforme com cordões prateados cintilantes. Depois, da porta de trás do carro-patrulha, surgiu o Dr. Charles Ponsonby. Com um aperto no coração, Desdemona abriu a boca. Deus do céu, Charles Ponsonby! Um Hugger. O melhor e mais antigo amigo de Bob Smith. "Estou a testemunhar", pensou ela, "a extinção do Hug. Estarão os directores Parson a assistir a isto em Nova Iorque? Sim, claro que estão!

O canal é afiliado da rede. Terão os directores Parson encontrado já aquela cláusula de fuga? Se não encontraram, redobrarão os seus esforços depois desta bomba."

O que aconteceu a seguir foi tão rápido que parecia ter acabado antes mesmo de começar: o homenzinho negro, o chapéu a dizer nós sofremos, o som dos quatro tiros, Charles Ponsonby a cair, e Carmine a colocar-se deliberadamente em frente do homenzinho negro ainda com a feia pistola na mão. Quando Carmine fez aquilo e todos os polícias levaram a mão aos coldres, Desdemona sentiu-se morrer, aguardando paralisada no tempo que o som de uma dezena de armas o cortasse ao meio. O seu rugido de "Não disparem!" ecoou claramente nas ondas sonoras. Carmine estava incólume, miraculosamente, os polícias estavam a guardar as armas e a avançar para agarrar o homenzinho negro, que não fez qualquer tentativa de fugir. Desdemona sentou-se, trémula, com as mãos sobre a boca, os olhos quase a saltarem das órbitas. Carmine, seu louco! Seu idiota!

Seu soldado imbecil! Não morreste - desta vez. Mas estou condenada ao destino de uma mulher de soldado, para sempre.

A quem dizer primeiro? Não, era melhor dizer-lhes a todos ao mesmo tempo, imediatamente. O Hug tinha um sistema de altifalantes: Desdemona usou-o para chamar todos os Huggers ao anfiteatro.

Depois dirigiu-se ao gabinete de Tâmara; alguém teria de ficar a cuidar dos telefones. Pobre Tâmara! Era uma sombra do que fora, desde que Keith Kyneton lhe batera com a porta na cara. Até o cabelo parecia estar mais fino, mais baço e desleixado. Ela nem sequer reagiu, limitou-se a acenar e continuou sentada a fitar o vazio.

*

A notícia das actividades secretas de Charles Ponsonby caiu como uma bomba sobre as pessoas reunidas no anfiteatro, causando exclamações, arquejos e incredulidade.

Para Addison Forbes, era uma graça divina: sem Ponsonby nem Smith no caminho, o Hug seria seu. Por que havia o conselho directivo de procurar noutro lado quando ele era tão adequado? Tinha a experiência clínica que levava os investigadores a produzir e a sua reputação era internacional. O conselho directivo gostava dele.

Sem Smith nem Ponsonby, o Hug sob a liderança do professor Addison Forbes avançaria para coisas maiores e melhores! E quem precisava do arrogante Grande Marajá da índia? O mundo estava cheio de potenciais vencedores do Prémio Nobel.

Walter Polonowski mal ouviu o sucinto resumo dos eventos feito por Desdemona; estava demasiado deprimido. Quatro filhos com Paola e um quinto a caminho, com Marian.

Ao ver a aliança de casamento no horizonte, Marian começara a livrar-se da pele de amante para revelar uma nova epiderme tingida de cores matrimoniais. Elas são serpentes, e nós somos as suas vítimas.

Para Maurice Finch, a notícia trouxe pesar, mas um pesar tranquilo. Sempre pensara que desistir da medicina seria equivalente a uma sentença de morte, mas os eventos dos passados meses tinham-lhe mostrado que não era bem assim. As suas plantas também eram pacientes; as suas mãos carinhosas e hábeis podiam tratar delas, curá-las, ajudá-las a multiplicarem-se. Sim, a perspectiva de uma vida com Cathy numa quinta com galinhas soava-lhe muito bem. E ainda ia conseguir dominar aqueles malditos cogumelos.

Kurt Schiller não ficou surpreendido. Nunca gostara de Charles Ponsonby, de quem sempre suspeitara ser um homossexual encapotado; a atitude de Chuck era cúmplice de forma demasiado subtil, e a sua arte falava em segredo de um mundo de pesadelo por trás daquele exterior anónimo. Não era o tema, antes algo que emanava de Chuck.

Na opinião de Kurt, ele era um dos rapazes cabedal-e-correntes, com preferência pela dor, embora Schiller sempre tivesse presumido que seria Chuck o objecto da dor.

Um homem do tipo passivo, servindo algum mestre aterrorizador. Bom, era evidente que se enganara. Charles era um verdadeiro sádico - tinha de ser, para ter feito o que fizera àquelas pobres crianças. Quanto a si próprio, Kurt não esperava nada. As suas credenciais garantiam-lhe um lugar, acontecesse o que acontecesse ao Hug, e tinha a semente de uma ideia sobre a transmissão de doenças entre a barreira das espécies, que sabia que seria excitante para o chefe de qualquer unidade de investigação.

Agora que a fotografia do papá com Adolf Hitler não passava de cinzas na lareira e a sua homossexualidade era pública, sentia-se pronto para a nova vida que tencionava levar. Não em Holloman. Em Nova Iorque, entre os seus pares.

- Otis - gritou Tâmara da porta - , precisam de ti em casa, despacha-te! Não consegui perceber nada do que a Celeste disse, mas é uma emergência.

Don Hunter e Billy Ho colocaram-se ao lado de Otis, ajudando-o a sair.

- Nós levamo-lo, Desdemona - disse Don. - Não podemos correr o risco de ele ter outro ataque de coração quando a mulher precisa dele.

Cecil Potter viu a reportagem do Channel Six na CBS em Massachusetts, com Jimmy sentado no joelho.

- Ora vejam só, já viste isto? - perguntou ao macaco. - Eh! Uh-! Estou mesmo contente por me ter pirado de lá!

Quando Carmine abriu a porta, nessa tarde, Desdemona precipitou-se para ele, soluçando ruidosamente enquanto lhe dava murros furiosos no peito. Tinha o nariz a pingar e os olhos cheios de lágrimas.

Imensamente gratificado, ele conduziu-a ternamente ao novo sofá que adquirira, porque as poltronas estavam muito bem para conversar, mas não havia nada melhor do que um sofá para duas pessoas se aninharem juntas. Deixou acalmar a tempestade de lágrimas e de fúria, embalando-a e murmurando palavras tranquilizadoras, e depois usou o seu lenço para lhe limpar o rosto.

- O que foi isso? - perguntou, sabendo de antemão a resposta.

- Tu! - disse, soluçando. - Maldito heró-ó-ó-iii!

- Nem maldito nem herói.

- Maldito herói! E pores-te à frente dele para levares com as ba-a-a-laaas! Oh, estava capaz de te matar!

- Também estou contente por te ver - disse ele, rindo. - Agora põe os pés para cima que eu vou buscar dois balões de conhaque.

- Eu sabia que te amava - disse ela mais tarde, já calma - , mas que raio de maneira de perceber o quanto te amo! Carmine, não quero viver num mundo onde tu não estejas.

- Isso quer dizer que preferias ser Mrs. Carmine Delmonico do que viver em Londres?

- Sim, quer.

Ele beijou-a com amor, gratidão, humildade.

- Vou tentar ser um bom marido, Desdemona, mas já tiveste uma previsão televisiva de como é a vida de um polícia. O futuro não será diferente... horários complicados, ausências, balas perdidas. No entanto, suponho que tenho alguém lá em cima do meu lado. Até agora, estou inteiro.

- Desde que estejas consciente de que, sempre que fizeres coisas disparatadas, tens de me aturar.

- Tenho fome - foi a resposta dele. - Que tal comida chinesa? Ela deu um enorme suspiro de satisfação.

- Acabo de me aperceber de que já não corro qualquer perigo - uma nota de ansiedade surgiu-lhe na voz. - Pois não?

- O perigo acabou, apostaria a minha carreira nisso. Mas não vale a pena procurares outro apartamento. Não te vou deixar sair daqui. O pecado está na moda.

- O problema - disse-lhe ele mais tarde, na cama - , é que ainda há tanto mistério... Duvido que o Ponsonby falasse, mas, quando morreu, toda a esperança de que isso acontecesse morreu também. Wesley le Clerc! O nosso problema para amanhã.

- Referes-te ao homicídio do Leonard Ponsonby? À identidade da mulher e da criança? - Ele contara-lhe tudo o que sabia.

- Sim. E quem escavou o túnel, e como é que o Ponsonby conseguiu pôr todo aquele material na câmara da morte, desde um gerador a uma porta de cofre. Quem fez as canalizações? Um trabalho em grande! O chão da cave está dez metros abaixo da superfície. A maior parte das caves a três, cinco metros, já são húmidas, mas esta está seca como um osso velho.

Os engenheiros da câmara estão fascinados, ansiosos por seguirem as condutas.

- E achas que a Claire era o segundo fantasma?

- "Achar" não é a palavra certa. O meu instinto diz-me que sim, a minha cabeça diz-me que não pode ser. - Suspirou. - Se ela é o segundo Fantasma, conseguiu safar-se sem sujar as mãos.

- Não te preocupes - disse ela, acariciando-lhe o cabelo. - Pelo menos os homicídios chegaram ao fim. Não vai haver mais raparigas raptadas. A Claire não poderia fazê-lo sozinha, é uma mulher e altamente incapacitada. Portanto podes dar graças, Carmine.

- Pela minha estupidez, queres tu dizer. Confundi este caso do princípio ao fim.

- Apenas porque é um tipo de crime novo, cometido por uma espécie nova de criminoso, meu amor. És um polícia extremamente competente e muito inteligente. Considera o caso Ponsonby como uma nova experiência de aprendizagem. Da próxima vez, as coisas correrão melhor.

Ele estremeceu.

- Se depender de mim, Desdemona, não haverá próxima vez. Os Fantasmas são algo que só acontece uma vez.

Ela não disse nada, mas ficou a pensar.


Patrick, Paul e Luke demoraram pouco mais de uma semana a esquadrinhar tudo o que a câmara da morte dos Ponsonbys tinha para oferecer, desde a mesa de operações à casa de banho. O relatório final de Patrick e da sua equipa forense deixava bem claro que fora uma sorte Charles Ponsonby ter sido apanhado em flagrante, nu, debruçado sobre uma rapariga raptada, também nua e presa a uma cama artilhada com instrumentos de tortura.

- O local estava mais limpo do que a Lady Macbeth. As impressões digitais dele estão por todo o lado, sim, mas é a cave dele, por baixo da casa dele, portanto é natural. Mas de sangue, fluidos corporais, fragmentos de pele ou cabelos humanos... nem uma partícula, nem um vestígio, nem qualquer outra coisa microscopicamente pequena. Quanto à Claire, nem uma impressão digital, nem mesmo na alavanca por trás do fogão.

Tinham reconstruído as técnicas de limpeza de Ponsonby, assombrados com a quantidade de trabalho envolvida, a obsessividade. Sendo um homem da profissão médica, ele sabia que o calor fixava o sangue e os tecidos, e assim, tanto a mangueira que usava primeiro como a pistola de água que usava a seguir eram alimentadas por água fria; a alcova dos talismãs estava selada por uma porta corrediça de aço. Quando todas as superfícies estavam secas, ele limpava-as de novo com um jacto de vapor. Finalmente, limpava tudo com éter. Os instrumentos cirúrgicos, o gancho de talhante, o seu guincho e os pénis ocos eram mergulhados numa solução que dissolvia o sangue, antes de serem sujeitos ao mesmo tratamento. Eram também esterilizados.

Depois de convencidos de que a sala de operações não lhes daria nada, começaram a trabalhar nos canos, com um aspirador de compressão, que sugou apenas água sem qualquer matéria orgânica. O refluxo não funcionou, deixando os engenheiros municipais a pensar que os efluentes não eram depositados numa fossa séptica. As canalizações de Ponsonby descarregavam para uma corrente de água subterrânea, como havia muitas na zona. A única esperança que restava aos investigadores era desenterrar os canos e segui-los.

Assim que os engenheiros começaram a escavar o jardim, numa tentativa com poucas probabilidades de sucesso de obter alguma evidência, Claire Ponsonby impôs um embargo contra a destruição premeditada da sua propriedade e pediu respeitosamente ao tribunal que concedesse a uma mulher cega permissão para viver na dita propriedade sem a perseguição perpétua e extremamente perturbadora da polícia de Holloman e dos seus aliados. Uma vez que Charles Ponsonby fora positivamente identificado como o Monstro do Connecticut, e nada do que estava a acontecer no número seis de Ponsonby Lane era necessário para obter mais evidências desse facto, Miss Ponsonby achava que já bastava.

- O poço não tem fundo e a bomba funciona a três cavalos - disse o engenheiro chefe, frustrado e irritado. - Uma vez que há um parque de veados de oito hectares, bem como dois hectares de lotes residenciais, o nível de água é elevado e o consumo local reduzido: Não conseguimos obter qualquer matéria orgânica porque o filho da mãe devia despejar milhares e milhares de litros depois de cada homicídio. Os resíduos estão no fundo do estreito de Long Island. E, merda, que importância tem?

Ele está morto. Encerre o caso, tenente, antes que aquela cabra horrorosa comece a instaurar processos contra si pessoalmente.

- É um mistério total, Patsy - disse Carmine ao seu primo.

- Diz-me qualquer coisa que eu ainda não saiba.

- Obviamente que o Chuck era resistente e forte, mas nunca me pareceu um atleta, e os seus colegas do Hug estavam convencidos de que ele não sabia mudar a anilha de uma torneira. E contudo aquilo que encontrámos está maravilhosamente bem construído, com materiais caros. Quem diabo pôs um chão de mosaicos e não o admite, agora que o segredo veio a público? E o mesmo em relação às canalizações. Desde a Guerra que ninguém participa o desaparecimento de nenhum canalizador ou assentador de mosaicos! - Carmine rangeu os dentes. - A família não tem dinheiro, sabemos disso. A Claire e o Chuck viviam tão bem que deviam gastar cada cêntimo do salário dele.

E no entanto há duzentos mil dólares em materiais e mão-de-obra debaixo do chão da casa deles. Raios, ninguém admite sequer ter-lhes vendido os lençóis ou o plástico líquido para as cabeças!

- Citando o engenheiro, que importância tem, Carmine? O Ponsonby está morto e é altura de encerrar o caso - disse Patrick, dando uma palmada no ombro de Carmine.

- Porquê arriscar um ataque de coração por causa de um morto? Pensa na Desdemona. Quando é o casamento?

- Não gostas dela, Patsy, pois não?

O brilho dos olhos azuis diminuiu mas Patrick não os desviou.

- Talvez o tempo verbal no passado seja mais correcto. Não gostava dela, ao princípio... demasiado estranha, demasiado estrangeira, demasiado distante. Mas actualmente ela está diferente. Espero conseguir vir a amá-la, mais do que gostar dela.

- Não és o único. A tua mãe e a minha estão a tremer como varas verdes. Oh, parecem entusiasmadas, mas não é em vão que eu sou detective. É apenas uma fachada para disfarçar a apreensão.

- Intensificada pelo facto de ela ser bem mais alta do que tu - disse Patrick, com uma gargalhada. - Mães, tias e irmãs odeiam isso.

Estavam à espera que a segunda Mrs. Delmonico fosse uma boa rapariga italiana de East Holloman. Mas tu não te sentes atraído por boas raparigas, italianas ou não.

E sem dúvida que prefiro a Desdemona à Sandra. A Desdemona pelo menos tem miolos.

- Sempre duram mais do que uma cara ou um corpo bonito.

O caso foi oficialmente encerrado nessa tarde. Depois de o relatório do médico-legista ser arquivado, o Departamento da Polícia de Holloman foi obrigado a admitir que não conseguia encontrar qualquer evidência que implicasse Claire Ponsonby nos homicídios. Se Carmine tivesse tempo, talvez tivesse procurado Silvestri e lhe tivesse pedido para reabrir o caso do homicídio de Leonard Ponsonby e da mulher e criança desconhecidas, em 1930, mas o crime não espera por ninguém, muito menos por um detective. Duas semanas depois da morte de Charles Ponsonby, um caso relacionado com droga ocupava toda a atenção de Carmine. Novamente em terreno familiar!

Criminosos que ele sabia serem culpados, o cérebro ocupado em reunir as evidências necessárias para os levar perante a justiça.


O machado caiu sobre o Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson no final de Março.

Quando o conselho directivo se reuniu na sala de reuniões do Hug, às dez da manhã, todos os directores estavam presentes excepto o professor Robert Mordent Smith, que tivera alta de Marsh Manor duas semanas antes mas que se recusava a deixar a sua cave e os seus comboios. Um embaraço para Roger Parson Júnior, que odiava pensar que se pudera enganar tanto no juízo que fizera de Bob Smith.

- Como gestora de operações, Miss Dupre, por favor sente-se - disse Parson com vivacidade, e depois olhou para Tâmara com expressão interrogativa. - Miss Vilich, está em condições de fazer as actas?

Uma pergunta legítima, uma vez que esta Miss Vilich não se parecia nada com a mulher que os directores Parson tinham conhecido antes. A sua luz extinguira-se, pensou Richard Spaight.

- Sim, Mr. Parson - respondeu Tâmara em tom inexpressivo.

O presidente Mawson Macintosh já sabia aquilo de que o reitor Wilbur Downing apenas suspeitava; no entanto, a certeza de um e a forte suspeita do outro deixavam-nos com rostos satisfeitos e corpos relaxados. A Universidade Chubb ia herdar o Hug, isso era garantido, juntamente com uma soma enorme, que não seria dedicada à investigação neurológica.

Com os óculos em meia-lua empoleirados no nariz fino, Roger Parson Júnior começou a ler o parecer jurídico que declarava completamente nulo o testamento do seu falecido e saudoso tio, no que dizia respeito ao fundo monetário que financiava o Hug. Demorou quarenta e cinco minutos a ler um documento mais árido do que o deserto do Saara, mas as pessoas forçadas a ouvi-lo fizeram-no com expressões alerta e interessadas, excepto Richard Spaight, sobre quem recairiam os aspectos mais aborrecidos da questão. Virou a cadeira para a janela e viu dois rebocadores escoltarem um grande petroleiro até ao seu ancoradouro no novo complexo de reservatórios de hidrocarbonetos ao fundo de Oak Street.

- Podíamos, claro, absorver simplesmente os cento e cinquenta milhões de capital do fundo, mais os juros vencidos, nas nossas hol-dings - disse Parson, em conclusão do seu discurso - , mas esse não seria o desejo de William Parson... todos nós, seus sobrinhos e sobrinhos-netos, temos a certeza disso.

"Ha-ha-ha", pensou M. M., "uma ova é que não gostariam de absorver a massa! Mas desistiram da ideia depois de eu vos ter dito que a Chubb os levaria para tribunal.

O melhor que podem fazer é deitar a mão aos juros vencidos, que só por si darão uma bela e rechonchuda adição à Parson Products."

-Assim, propomos que metade do capital seja transferido para a Faculdade de Medicina da Chubb, de forma a financiar a carreira em curso do Centro Hughlings Jackson, seja qual for a forma que esta venha a assumir. O edifício e os terrenos serão transferidos para a Universidade Chubb. E a outra metade do capital irá para a Universidade Chubb, para financiar grandes infra-estruturas ou qualquer outro tipo de construção que o conselho directivo da universidade decidir. Desde que cada infra-estrutura ostente o nome de William Parson.

A expressão do reitor Dowling era gulosa, enquanto M. M. manteve um ar complacente e impassível. O reitor Dowling estava a pensar transformar o Hug num centro de investigação de psicoses orgânicas. Tentara persuadir Miss Claire Ponsonby a doar o cérebro do seu falecido irmão para investigação, pedido que ela recusara educadamente. Esse, sim, era um cérebro psicótico! Não que esperasse ver qualquer alteração anatómica evidente, mas tivera esperança de conseguir identificar atrofia localizada no córtex pré-frontal, ou alguma aberração no corpo estriado. Até mesmo um pequeno astrocitoma.

Os pensamentos de Mawson Macintosh giravam em torno da natureza dos edifícios que ostentariam o nome de William Parson. Um deles tinha de ser uma galeria de arte, mesmo que ficasse vazia até o último dos Parsons morrer. Que esse dia chegasse em breve!

- Miss Dupre - estava Roger Parson a dizer - , o seu dever será fazer circular esta carta oficial - empurrou-a sobre a mesa - entre todos os membros do Centro Hughlings Jackson, pessoal e clínicos. A data de encerramento é o dia vinte e nove de Abril, sexta-feira. Todo o equipamento e mobiliário será distribuído de acordo com os desejos do reitor de Medicina. Excepto, claro está, alguns artigos seleccionados que serão doados aos laboratórios do Médico Legista do Condado de Holloman, em sinal do nosso agradecimento. Um desses artigos será o novo microscópio electrónico. Tive uma conversa com o governador do Connecticut, que me falou sobre a crescente importância da ciência da Medicina Forense, e sobre os seus problemas de financiamento.

"Não, não, não!", pensou o reitor Dowling. "Esse microscópio é meu!" - O presidente Macintosh garantiu-me - continuou Roger Parson Júnior em tom monótono - , que todos os membros que desejarem ficar podem fazê-lo. No entanto, salários e vencimentos serão reavaliados, de acordo com a política fiscal da Faculdade de Medicina. Os clínicos e investigadores que desejarem ficar serão colocados sob a direcção do professor Frank Watson. Para aqueles que não desejem ficar, Miss Dupre, serão preparados pacotes de compensação com um ano de salários, mais todas as contribuições para pensões. Pigarreou e ajeitou os óculos.

- Há duas excepções a esta regra. Uma é o professor Bob Smith que, infelizmente, não se encontra suficientemente bem para retomar qualquer tipo de actividade médica.

Uma vez que a sua contribuição ao longo dos dezasseis anos da sua administração foi formidável, decidimos que a sua indemnização será a discriminada aqui. - Estendeu outra folha de papel a Desdemona. - A segunda excepção é a senhora, Miss Dupre. Infelizmente, o cargo de gestora de operações deixará de existir. E o professor Macintosh informou-me de que será impossível encontrar-lhe uma posição equivalente dentro da universidade. Assim, concordámos que o seu pacote de compensação consistirá do que se encontra discriminado aqui.- Uma terceira folha de papel.

Desdemona espreitou. Dois anos de salários mais todas as contribuições para pensões. Se casasse, deixasse completamente de trabalhar e investisse o dinheiro, ficaria bastante bem.

- Tâmara, desligue as máquinas de café - disse ela.

- Dou-te dois anos para o Dowling dar cabo daquilo - disse ela a Carmine nessa noite. - Ele é demasiado psiquiatra e muito pouco neurologista para conseguir tirar o melhor partido de uma unidade de investigação bem gerida. Todas as espécies de investigadores alucinados o enganarão. Diz ao Patrick que não tenha vergonha em relação à oferta de equipamento, Carmine. Ele que lhe deite a mão enquanto pode.

- Ele vai beijar-te as mãos e os pés, Desdemona.

- Não sei porquê, eu não fiz nada - suspirou com satisfação. - Seja como for, a tua noiva traz um dote. Se puderes sustentar-me, a mim e aos filhos que considerares suficientes, então o meu dote deve dar para nos comprar uma casa bastante boa. Adoro este apartamento, mas não é indicado para criar uma família.

- Não - disse ele, pegando-lhe nas mãos. - Guarda o teu dinheiro. Se mudares de ideias, terás o suficiente para voltar para Londres. Não tenho falta de dinheiro, a sério.

- Bom - disse ela - , então pensa nisto, Carmine. O Addison Forbes, quando leu a circular do Roger Parson Júnior, perdeu a cabeça. Trabalhar sob a direcção do Frank Watson? Preferia morrer de sífilis terciária! Anunciou que vai trabalhar com o Nur Chandra em Harvard, mas eu acho que Harvard já tem a sua quota-parte de neurologistas clínicos, portanto o Addison bem pode esperar sentado. A questão é que eu adoro a casa dele. Se os Forbes se mudarem, suponho que a porão à venda por uma pipa de massa, mas achas que temos alguma hipótese de a comprar? Este apartamento é arrendado ou comprado?

- É um condomínio, comprado. Acho que talvez consigamos ficar com a casa do Forbes, se gostas tanto dela. A localização é ideal... East Holloman, a zona onde mora a minha família. Tenta gostar da minha família, Desdemona - implorou. - A minha primeira mulher achava que eles a espiavam porque a minha mãe, a mãe do Patsy ou uma das nossas irmãs estavam sempre a aparecer. Mas não era por isso. As famílias italianas são muito chegadas.

Apesar de a aparência dela não ter realmente mudado, de alguma forma, para Carmine, Desdemona já não parecia tão vulgar como antes. Não era o amor a cegá-lo; o amor a abrir-lhe os olhos seria uma melhor maneira de o explicar.

- Eu sou bastante tímida - confessou ela, apertando-lhe a mão - , e isso faz com que pareça snobe. Acho que não vou ter problemas em gostar da tua família, Carmine.

E uma das razões por que estou tão interessada na casa dos Forbes é a torre. Se a Sophia alguma vez quiser voltar para casa, talvez para acabar o liceu na Dormer Day e depois na prometida Chubb mista, a torre daria um quarto fantástico para ela. Por aquilo que me disseste, acho que a Sophia precisa de uma casa a sério, não de um Palácio de Hampton Court. Se não lhe deitares a mão agora, daqui a um ano ela acabará por ir para Haight-Ashbury.

Carmine sentiu os olhos húmidos.

- Não te mereço - disse.

- Que disparate! As pessoas têm sempre aquilo que merecem.

 

 

Primavera e Verão de 1966

Na semana que se seguiu à acusação de Wesley le Clerc pelo homicídio de Charles Ponsonby, houve uma alteração no estado de espírito a nível estadual, ardentemente alimentada pela televisão. A indignação pública pela existência do Monstro do Connecticut aumentou, em vez de diminuir; ele era visto como uma prova da impiedade, da decadência moral, da ausência de ética, num mundo enlouquecido sob a pressão da modernidade, sob a avalanche da tecnologia. A comunidade tolerava estes desportos genéricos, permitindo-lhes que amadurecessem e criassem um novo tipo de assassino; no entanto, ninguém parecia compreender o facto de eles se apresentarem como cidadãos normais e cumpridores da lei. Ou de, na verdade, eles estarem a multiplicar-se.

Wesley conseguiu o que queria: tornara-se um herói. Apesar de uma grande percentagem dos seus admiradores ser negra, muitos não eram, e todos estavam convencidos de que Wesley le Clerc fizera justiça, uma justiça que estava para além da capacidade da Lei. Se a tendência pró-brancos da Lei já estava morta em alguns estados e moribunda noutros, isso era por vezes difícil de ver. Era muito mais fácil ver as famílias de algumas das vítimas do Monstro aparecerem num programa de televisão e responderem a perguntas desprovidas de moral, ética ou simples boas maneiras: qual foi a sensação de ver a cabeça da sua filha envolvida em plástico transparente? Choraram? Desmaiaram? O que pensam de Wesley le Clerc?

Wesley fora acusado de homicídio em primeiro grau, aquele que era premeditado, e a única dúvida legal podia incidir apenas sobre essa premeditação. Depois de estar sob as luzes da ribalta, Wesley sabia muito bem que, para aí permanecer, tinha de ir a julgamento. Se se declarasse culpado, isso significava que compareceria em tribunal apenas para ouvir a sentença. Assim, declarou-se inocente e foi reencarcerado a aguardar julgamento, sem que lhe fosse concedida fiança. À porta do tribunal, depois desta audição, Wesley fora abordado por um advogado branco de grande visibilidade que se apresentou como o líder da nova equipa de defensores de Wesley. Era seguido por um grupo de outros advogados brancos e gordos que constituía o resto da equipa. Para seu horror, Wesley rejeitou-os.

- Vão à merda e digam a Mohammed el Nesr que eu vi a verdadeira luz - disse Wesley. - Passarei por isto como todos os negros pobres, com um advogado oficioso nomeado pelo gabinete do ministério público. - Apontou para um jovem negro com uma pasta na mão. Uma breve sombra passou-lhe pelo rosto, e suspirou. - Este podia ser eu, daqui a dez anos, mas escolhi outro caminho.

Depois de acalmada a exaltação da viagem até às celas na companhia de Carmine Delmonico, Wesley passara por uma mudança que talvez tivesse um pouco a ver com o que Carmine lhe dissera, mas que tinha muito mais a ver com o facto de ter visto, de uma distância de um metro, a vida a extinguir-se de um par de olhos. Tudo o que restava de Charles Ponsonby era uma casca, e o que aterrorizava Wesley era o facto de ter libertado aquele espírito indizivelmente perverso para procurar abrigo nalgum outro corpo. Alá lutava dentro dele com Cristo e Buda, e Wesley começou a rezar aos três.

No entanto, a força também o invadiu, uma espécie diferente de força. De alguma forma, conseguiria transformar este erro cardinal numa vitória.

Os primeiros sinais de vitória surgiram quando foi enviado para a Prisão do Condado de Holloman para passar os meses entre o seu crime e o seu julgamento. Quando chegou, os outros reclusos aplaudiram-no entusiasticamente. A sua tarimba, numa cela para quatro, estava coberta de presentes: cigarros e charutos, isqueiros, revistas, doces, acessórios de moda, um relógio Rolex de ouro, sete pulseiras de ouro, nove fios de ouro, um anel para o dedo mindinho com um grande diamante. Não precisava de ter medo de ser violado nos duches! Também não foi atormentado pelos guardas; todos o cumprimentavam com acenos respeitosos, sorriam, levantavam-lhe os polegares.

Quando pediu um tapete de orações, apareceu um belo Shiraz, e sempre que entrava no refeitório ou no pátio era novamente aplaudido. Negros ou brancos, os prisioneiros e os guardas adoravam-no.

Uma quantidade imensa de pessoas de todas as raças e cores achava que Wesley le Clerc não devia ser condenado. Houve uma inundação de cartas ao editor nos jornais de toda a nação. As linhas telefónicas dos programas de rádio estavam entupidas. Os telegramas empilhavam-se na secretária do governador. O procurador público de Holloman tentou convencer Wesley a declarar-se culpado de homicídio involuntário para obter uma sentença muito mais reduzida, mas o novo herói não queria ter nada a ver com essas desculpas. Iria a julgamento, e assim foi.

Um julgamento que começou no início de Junho, meses antes do que seria normal; os poderes judiciais estabelecidos decidiram que adiá-lo mais só tornaria as coisas ainda piores. Isto não era um prodígio de nove dias que as pessoas esqueceriam. Vamos julgá-lo já, despachar isto de uma vez por todas!

Nunca um júri fora seleccionado com maior cuidado. Oito dos jurados eram negros e quatro brancos, seis mulheres e seis homens, alguns abastados, outros simples trabalhadores, dois desempregados, embora não por culpa própria.

A história de Wesley, em tribunal, era que não planeara nada para além do chapéu - que tinham sido os empurrões da multidão que o tinham colocado onde estava, e que não se lembrava de disparar qualquer arma, nem sequer se lembrava de ter uma arma consigo. O facto de a sua acção estar imortalizada em vídeo era irrelevante; tudo o que ele tencionara fazer era um protesto contra a forma como o seu povo era tratado.

O júri optou por homicídio não premeditado e acrescentou uma forte recomendação de clemência. O juiz Douglas Thwaites, que não era um homem clemente, proferiu uma sentença de vinte anos de prisão, doze dos quais sem possibilidade de liberdade condicional. Mais ou menos o veredicto esperado.

O julgamento demorou cinco dias e terminou numa sexta-feira, assinalando o clímax de uma Primavera que o governador, pelo menos, nunca mais queria ver repetida.

As manifestações tinham-se transformado em motins, havia casas incendiadas, lojas saqueadas, trocas de tiros. Apesar de o seu discípulo Ali el Kadi se ter voltado contra ele, Mohammed el Nesr aproveitou a oportunidade e conduziu a Brigada Negra numa pequena guerra, que terminou quando uma rusga ao número dezoito de Fifteenth Street encontrou mais de mil armas de fogo. O que nenhum polícia conseguia perceber era o porquê de Mohammed não ter transferido o seu arsenal para outro local muito antes da rusga. Excepto Carmine, que achava que Mohammed estava a perder o pé e sabia-o; até os seus próprios homens estavam a começar a admirar cada vez mais Wesley le Clerc.

Independentemente do destino da Brigada Negra, tornou-se bem claro, uma semana antes do início do julgamento de Wesley, que este se ia transformar numa manifestação de massas gigantesca de apoio ao exterminador do Monstro, e que nem todos os que planeavam marchar sobre Holloman tinham intenções pacíficas. Espiões e informadores relataram que cem mil manifestantes negros e setenta e cinco mil manifestantes brancos pretendiam invadir o parque de Holloman, ao nascer do dia, na segunda-feira marcada para o início do julgamento de Wesley. Vinham de tão longe como Los •Angeles, Chicago, Baton Rouge (a cidade natal de Wesley) e Atlanta, apesar de a maioria viver em Nova Iorque, Connecticut ou Massachusetts. O ponto de encontro destinado era Maltravers Park, um jardim botânico a quinze quilómetros de Holloman. E aí, a partir de sábado, as pessoas foram-se reunindo aos milhares. A marcha até ao parque de Holloman estava marcada para as cinco da manhã de segunda-feira e era uma marcha muito bem organizada. Os habitantes de Holloman, aterrorizados, pregaram tábuas nas montras das lojas, nas portas e nas janelas baixas, temendo a guerra urbana que certamente se aproximava.

No domingo de manhã o governador chamou a Guarda Nacional, que entrou ostensivamente em Holloman na madrugada de segunda-feira para ocupar o parque antes dos manifestantes; transportes de tropas, veículos blindados e camiões enormes abalaram as fundações dos edifícios, enquanto toda a cidade de Holloman os via passar, de olhos arregalados e corpos trémulos.

Mas os manifestantes não apareceram. Ninguém sabia bem porquê. Talvez tivesse sido a perspectiva de um confronto com tropas experientes a detê-los, ou talvez Maltravers Park fosse o único destino que a maioria deles tinha em mente desde o início. Ao meio-dia de segunda-feira Maltravers Park estava vazio, e foi tudo. O julgamento de Wesley le Clerc prosseguiu com menos de quinhentos manifestantes no parque de Holloman, rodeados por um mar de guardas nacionais, e quando o veredicto foi anunciado, na sexta-feira à tarde, esses quinhentos foram para casa, dóceis como cordeiros. Teria sido a exibição oficial de força? Ou o mero acto de se reunirem satisfizera aqueles que tinham ido a Maltravers Park?

Wesley le Clerc não perdeu tempo a preocupar-se ou a pensar nos seus apoiantes. Transferido na sexta-feira à noite para uma prisão de segurança máxima no norte do estado, na segunda-feira seguinte Wesley pediu ao director da prisão autorização para estudar para os exames de admissão no curso de Direito; este inteligente funcionário público ficou contente por poder satisfazer o seu pedido. Afinal de contas, Wesley le Clerc tinha apenas vinte e cinco anos. Se conseguisse a liberdade condicional na primeira tentativa, teria trinta e sete e provavelmente estaria na posse de um doutoramento em jurisprudência. O seu cadastro criminal impedi-lo-ia de ser admitido na Ordem, mas os conhecimentos adquiridos seriam muito mais importantes. A sua especialidade seria o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Afinal de contas, ele era o Exterminador do Monstro, o Homem Santo de Holloman. "Rói-te de inveja, Mohammed el Nesr, os teus dias acabaram. Eu é que sou o maior."


Carmine e Desdemona casaram no princípio de Maio e decidiram passar a lua-de-mel em Los Angeles, como hóspedes de Myron Mendel Mandelbaum; a reprodução do Palácio de Hampton Court era tão enorme que a sua presença não causava qualquer embaraço a Myron ou a Sandra. Myron estava sempre à disposição deles, enquanto Sandra flutuava nas nuvens do esquecimento. Com alguma surpresa por parte de Carmine e Myron, Sophia decidiu gostar de Desdemona, cuja teoria era a de que a sua nova enteada aprovava a forma pouco efusiva e prática como a nova madrasta a tratava. Desdemona tratava-a como se ela fosse uma adulta sensata e responsável. Os augúrios eram auspiciosos.

Em Holloman, nem tudo corria tão bem. Como se o Hug não tivesse já sofrido comoções e escândalos suficientes nos últimos meses, nos estertores da morte ainda produziu mais um, quando Mrs. Robin Forbes se queixou à polícia de Holloman de que o marido a estava a envenenar. Interrogado pelos recentemente condecorados sargentos-detectives Abe Goldberg e Corey Marshall, o Dr. Addison Forbes rejeitara essa acusação com escárnio e desdém, convidara-os a retirar amostras de todos os alimentos e bebidas da casa e retirara-se para o seu ninho na torre. Depois de os resultados das análises (incluindo de vómito, fezes e urina) darem negativo,

Forbes embalara os seus livros e papéis, fizera duas malas e partira para Fort Lauderdale. Aí entrara para uma clínica muito lucrativa de neurologia geriátrica; coisas como avcs e demência senil nunca lhe tinham interessado, mas eram infinitamente preferíveis ao professor Frank Watson e a Mrs. Robin Forbes, de quem pediu o divórcio. Quando os advogados de Carmine o contactaram para propor a compra da casa em East Circle, vendeu-a por menos do que ela valia para se vingar de Robin, que estava a exigir metade. Depois de um debate lancinante consigo própria para decidir qual das duas filhas precisava mais dela, Robin mudou-se para Boston, para junto de Roberta, a prometedora ginecologista. Robina mandou um cartão à irmã a solidarizar-se com a sorte dela, mas na verdade Roberta estava encantada por ter arranjado uma governanta.

Tudo isto significava que Desdemona podia oferecer a torre a Sophia.

- É divina - disse em tom casual, sem querer parecer demasiado entusiasmada. - A sala de cima tem uma varanda... podias usá-la como sala de estar... e a de baixo daria um pequeno quarto, se a dividíssemos para fazer uma casa de banho e uma kitchnette. O Carmine e eu pensámos que talvez quisesses ir acabar o liceu na Dormer, depois pensar numa boa universidade. Quem sabe, talvez a Chubb se torne mista antes de teres idade para entrar. Estarias interessada?

A sofisticada adolescente guinchou de alegria; Sophia pôs os braços à volta do pescoço de Desdemona e abraçou-a.

- Oh, sim, por favor!

Julho estava prestes a dar lugar a Agosto quando Claire Ponsonby mandou uma mensagem a Carmine, dizendo que gostaria de o ver. O seu pedido foi uma surpresa, mas nem mesmo ela tinha a capacidade de arruinar a boa disposição de Carmine, neste lindo dia de flores em botão e pássaros a cantar. Sophia chegara de Los Angeles duas semanas antes e ainda estava a tentar decidir se queria pintar ou usar papel de parede no interior da sua torre. Carmine ficava espantado com a quantidade de coisas que ela e Desdemona encontravam para conversar, tal como o espantava a sua em tempos empertigada esposa. Como ela se devia ter sentido sozinha, poupando cada tostão para comprar uma vida que, a julgar pela forma como se adaptara ao casamento, nunca a teria satisfeito. Embora, em parte, talvez isso se devesse à gravidez, um pouco anterior ao dia do casamento; o bebé nasceria em Novembro e Sophia mal podia esperar. Não admirava, portanto, que nem mesmo Claire Ponsonby tivesse o poder de arruinar a sua sensação de bem-estar, de uma realização bastante tardia.

Claire e a cadela estavam à sua espera no alpendre. Ela tinha colocado duas cadeiras de ambos os lados de uma pequena mesa de verga branca, em cima da qual havia um jarro de limonada, dois copos e um prato de bolachas.

- Tenente - disse ela, enquanto ele subia os degraus.

- Capitão, hoje em dia - corrigiu ele.

- Meu Deus! Capitão Delmonico. Soa bem. Sente-se e beba um copo de limonada. É uma antiga receita de família.

- Obrigado, posso sentar-me mas não quero limonada.

- Seria incapaz de comer ou beber qualquer coisa preparada pelas minhas mãos, é isso, capitão? - perguntou ela docemente.

- Francamente, é isso mesmo.

- Eu perdoo-lhe. Vamos apenas sentar-nos, então.

- Por que pediu para me ver, Miss Ponsonby?

- Por duas razões. A primeira é que me vou embora e, apesar de os meus advogados me terem dito que ninguém me pode impedir de o fazer, achei que seria prudente informá-lo desse facto. A carrinha do Charles está carregada com as coisas que quero levar comigo e contratei um estudante da Chubb para me levar a Nova Iorque, a mim e à Biddy, ainda hoje. Vendi o Mustang.

- Pensava que o número seis de Ponsonby Lane seria o seu lar até à morte.

- Descobri que não terei um lar em lado nenhum sem o meu querido Charles. Depois recebi uma oferta por esta propriedade que simplesmente não podia recusar. Seria compreensível pensar que ninguém a quereria comprar, mas não é esse o caso. O major F. Sharp Minor pagou-me uma soma muito generosa por aquilo que, segundo creio, tenciona transformar num museu de horrores. Várias agências de viagens de Nova Iorque concordaram em organizar excursões de dois dias. Primeiro dia: viagem de autocarro pelos campos encantadores do Connecticut, jantar e estada no motel Major Minor's... ele vai redecorá-lo em grande estilo. Segundo dia: uma visita guiada à casa do Monstro do Connecticut, incluindo rastejar pelo famoso túnel. Alimentar os veados que garantidamente estarão à espera junto da entrada do túnel. Voltar ao covil do Monstro para ver catorze cabeças de imitação colocadas no seu local original. Naturalmente, ao som de uma banda sonora de gritos e uivos. O major vai esvaziar a velha sala de estar e transformá-la numa sala de jantar para trinta pessoas, e tenciona transformar a nossa velha sala de jantar numa cozinha. Afinal de contas, não pode pôr um cozinheiro a fazer o almoço no fogão Aga enquanto as pessoas o vêem rodar sobre si próprio para revelar a entrada. Depois, regresso a Nova Iorque de autocarro - disse Claire sem expressão.

Céus, o sarcasmo! Carmine escutou-a, fascinado, feliz por ela não poder ver que ele estava de boca aberta.

- Pensei que não acreditava em nada disso.

- E não acredito. No entanto, garantiram-me que estas coisas existem de facto. Se assim é, então eu mereço ganhar alguma coisa com elas. Vão proporcionar-me a oportunidade de começar de novo noutro lugar, longe do Connecticut. Estou a pensar no Arizona ou no Novo México.

- Desejo-lhe sorte. Qual é a segunda razão?

- Uma explicação - disse ela, parecendo mais suave, mais parecida com a Claire com quem ele simpatizara, de quem gostara. - Não o tenho na conta do estereótipo do polícia abrutalhado, capitão. Sempre me pareceu um homem dedicado ao seu trabalho... sincero, até mesmo altruísta. Compreendo o porquê de eu ter estado sob suspeita desses crimes horrorosos, uma vez que continuam a insistir que o assassino era o meu irmão. A minha teoria é que eu e o Charles fomos enganados, que foi outra pessoa qualquer que fez todas as... ah... renovações nas nossas caves. - Suspirou. - Seja como for, decidi que o senhor é suficientemente cavalheiro para me fazer algumas perguntas como um cavalheiro faria... com cortesia e discrição.

Vitória, por fim! Carmine inclinou-se para a frente, de mãos cruzadas.

- Obrigado, Miss Ponsonby. Gostava de começar por lhe perguntar o que sabe sobre a morte do seu pai?

- Calculei que me fizesse essa pergunta. - Ela esticou as pernas compridas e fortes e cruzou os tornozelos, um dos pés brincando com o pêlo de Biddy. - Antes da Depressão, éramos muito ricos e vivíamos bem. Os Ponsonby sempre gostaram de viver bem... boa música, boa comida, bom vinho, rodeados por coisas boas. A minha mãe vinha de um ambiente semelhante... Shaker Heights, sabe. Mas o casamento não foi por amor. Os meus pais foram obrigados a casar porque o Charles vinha a caminho.

A mamã estava disposta a tudo para caçar o meu pai que, na realidade, não a desejava. Mas, na hora da verdade, ele cumpriu o seu dever. O Charles nasceu três meses depois. Dois anos depois disso nasceu o Morton, e dois anos depois, eu.

O pé parou; Biddy ganiu até as carícias recomeçarem, depois deitou-se e apoiou o focinho nas patas da frente. Claire continuou.

- Sempre tivemos uma governanta, bem como uma empregada de limpeza. A governanta era uma criada que vivia connosco e fazia todos os trabalhos domésticos mais leves, excepto cozinhar. A mamã gostava de cozinhar, mas detestava lavar a loiça ou descascar as batatas.

Não acho que ela fosse particularmente tirânica, mas um dia a governanta despediu-se. E o papá trouxe para casa Mrs. Catone... Louisa Catone. A mamã ficou lívida.

Lívida! Como se atrevia ele a usurpar as prerrogativas dela, e por aí fora. Mas o papá gostava de ter a última palavra, tanto como a mamã, e portanto Mrs. Catone ficou. Ela era uma pérola, o que acabou por acalmar a mamã. Imagino que ela devia saber desde o princípio que Mrs. Catone era amante do meu pai, mas as coisas correram bem durante muito tempo. Depois houve uma discussão terrível... oh, terrível! A mamã insistiu que Mrs. Catone tinha de partir, o papá insistiu para que ela ficasse.

- Mrs. Catone tinha filhos? - perguntou Carmine.

- Sim, uma menina chamada Emma, poucos meses mais velha do que eu - disse Claire com ar sonhador, sorrindo. - Costumávamos brincar juntas, comíamos juntas. A minha visão não era muito boa, já na altura, e a Emma era um pouco como um cão-guia para mim. O Charles e o Morton odiavam-na. Compreende, a discussão aconteceu porque a mamã descobriu que a Emma era filha do meu pai... nossa meia-irmã. O Charles encontrou a certidão de nascimento.

Calou-se, ainda acariciando o pêlo de Biddy com o pé.

- Qual foi o resultado da discussão? - perguntou Carmine.

- Surpreendente, e ao mesmo tempo não. O papá teve de se ausentar por causa de um negócio urgente no dia seguinte e Mrs. Catone partiu, com a Emma.

- Quando foi isso, em relação à morte do seu pai?

- Deixe-me ver... eu tinha quase seis anos quando ele morreu... um ano antes. No Inverno anterior.

- Há quanto tempo estava Mrs. Catone convosco quando partiu?

- Dezoito meses. Ela era uma mulher extraordinariamente bela... a Emma era a cara dela. Morena. Sangue mestiço, embora maioritariamente branco. A sua voz era encantadora... melodiosa, doce como mel. Era uma pena que as suas palavras fossem sempre tão banais.

- Então a sua mãe despediu-a enquanto o seu pai estava fora.

- Sim, mas acho que houve mais do que isso. Se nós fôssemos um pouco mais velhos, talvez pudesse contar-lhe mais, ou se fosse eu a mais velha, a rapariga... os rapazes não são muito observadores quando se trata de emoções. A mamã conseguia assustar as pessoas. Tinha um certo poder. Conversei muitas vezes com o Charles sobre isso e chegámos à conclusão de que a mamã ameaçara matar a Emma, a menos que elas desaparecessem as duas para sempre. E Mrs. Catone acreditou nela.

- Como é que o seu pai reagiu quando voltou para casa?

- Houve uma grande discussão, muitos gritos. O papá bateu na mamã, depois saiu de casa a correr. Não voltou durante dias... talvez semanas. Muito tempo. Lembro-me que a minha mãe passava o tempo a caminhar de um lado para o outro dentro de casa. Depois ele voltou. Lívido, não falava com a minha mãe e, se ela tentava tocar-lhe, batia-lhe ou empurrava-a. O ódio! E... e ele chorava. Constante-mente, ou pelo menos era o que nos parecia. Acho que voltou por nossa causa, mas arrastava-se pela casa como um morto-vivo.

- Acha que o seu pai foi à procura de Mrs. Catone mas não conseguiu encontrá-la?

Os olhos azuis-claros fitaram o infinito da sua cegueira.

- Bom, é a explicação mais lógica, não é? O divórcio era relativamente aceitável, mesmo na altura, e contudo o papá preferiu ter Mrs. Catone como criada em sua casa.

A mamã para manter as aparências, Mrs. Catone para o prazer carnal. Se tivesse casado com uma mulata das Caraíbas isso tê-lo-ia arruinado socialmente, e o papá preocupava-se muito com a sua posição social. Afinal de contas, era um Ponsonby de Holloman.

Como ela é fria, pensou Carmine.

- A sua mãe sabia que o dinheiro tinha desaparecido na queda de Wall Street?

- Só soube depois de o papá morrer.

- Foi ela que o matou?

- Oh, sim. Tiveram a pior discussão de todas nessa tarde... nós conseguíamos ouvi-los no andar de cima. Não conseguimos perceber tudo o que gritaram um ao outro, mas ouvimos o bastante para perceber que o papá encontrara Mrs. Catone e a filha. Que tencionava deixar a mamã. Ele vestiu o seu melhor fato e saiu de casa no seu carro. A mamã trancou-nos aos três no quarto do Charles e saiu no outro carro. Estava a começar a nevar. - A voz dela parecia infantil, como se a pura força das recordações a estivesse a fazer recuar no tempo. - Os flocos de neve rodopiavam pelo ar, como dentro de um globo de cristal. Esperámos tanto tempo! Depois ouvimos o carro da mamã e começámos a bater na porta. A mamã abriu-a, nós precipitámo-nos para fora... oh, estávamos tão aflitos para ir à casa de banho! Os rapazes deixaram-me ir primeiro. Quando saí, a minha mãe estava de pé no corredor, com um bastão de basebol na mão direita. O bastão estava coberto de sangue e ela também. Depois o Charles e o Morton saíram da casa de banho, viram-na e levaram-na. Despiram-na e deram-lhe banho, mas eu tinha tanta fome que desci para a cozinha. O Charles e o Morton acenderam o fogo na velha lareira, onde está agora o Aga, e queimaram o bastão de basebol e as roupas dela. Tão triste! O Morton nunca mais foi o mesmo.

- Quer dizer que até aí ele era... bom, normal?

- Perfeitamente normal, capitão, apesar de ainda não ter começado a escola. A minha mãe só nos deixou ir para a escola aos oito anos. Mas, depois desse dia, o Morton nunca mais disse uma palavra. Deixou de reconhecer a existência do mundo à sua volta. Oh, os ataques de fúria! A mamã não tinha medo de nada nem de ninguém, excepto do Morton quando tinha um dos seus ataques de fúria. Violentos, incontroláveis.

- A polícia apareceu?

- Claro. Nós dissemos que a mamã tinha estado em casa connosco, na cama, com uma enxaqueca. Quando lhe disseram que o papá estava morto, ela ficou histérica. A mãe do Bob Smith veio a nossa casa, deu-nos de comer e ficou a fazer companhia à mamã.

Alguns dias depois, descobrimos que o nosso dinheiro tinha desaparecido na queda da Bolsa.

Carmine sentia os joelhos doridos; a cadeira era demasiado baixa. Levantou-se e deu uma volta pelo alpendre, vendo pelo canto do olho que Claire Ponsonby estava de facto pronta para partir. A caixa da carrinha, estacionada em frente à casa, estava cheia com malas, caixas, e um par de pequenas arcas iguais, que remontavam a uma época de viagens mais demoradas e com mais estilo. Sem querer voltar a sentar-se, encostou-se ao corrimão.

- Sabia que Mrs. Catone e a Emma também morreram nessa noite? - perguntou. - A sua mãe usou o bastão de basebol nos três.

Claire fez uma expressão de absoluto e genuíno choque; o pé com que estava a acariciar a cadela deu um solavanco involuntário, como um movimento reflexo. Carmine serviu-lhe de um copo de limonada, pensando se não devia tentar encontrar qualquer coisa mais forte. Mas ela esvaziou avidamente o copo e recuperou a compostura.

- Então foi isso que lhes aconteceu - disse lentamente - , e durante este tempo todo eu e o Charles sempre nos questionámos. Nunca ninguém nos disse quem eram as outras duas vítimas, falou-se apenas de um bando de vagabundos que matara várias pessoas. Presumimos que a mamã aproveitara isso para ocultar a sua acção, que os outros dois seriam membros do bando.

De súbito inclinou-se para a frente e estendeu a mão a Carmine, num gesto suplicante.

- Conte-me tudo, capitão! Como?

- Penso que estava certa ao pensar que o seu pai disse à sua mãe que a ia deixar para começar uma vida nova. Com certeza que tinha localizado Mrs. Catone e a filha, mas, quando se foi encontrar com elas na estação de comboios, foi pela primeira vez, porque mãe e filha estavam na miséria. Sem dinheiro, sem comida. Os dois mil dólares que ele levava consigo eram provavelmente tudo o que conseguira reunir para esse novo começo - disse Carmine. - Estavam os três escondidos no exterior, à neve, o que me faz pensar que a sua mãe tinha de facto a capacidade de assustar muito as pessoas. Pobre homem. Disse demasiado à sua mãe e três pessoas morreram.

- Todos estes anos e eu nunca, nunca soube... Nunca suspeitei sequer... - Virou os olhos húmidos de emoção para Carmine, como se o conseguisse ver. - A vida não é irónica?

- Quer que eu lhe vá buscar alguma coisa mais forte para beber?

- Não, obrigada, eu estou bem. - Dobrou as pernas e enfiou-as debaixo da cadeira.

- Pode falar-me um pouco sobre a sua vida depois disso? Claire encolheu um ombro e franziu os lábios.

- O que quer saber? A minha mãe também nunca mais foi a mesma.

- Não houve ninguém de fora que vos tentasse ajudar?

- Refere-se a pessoas como os Smith e os Courtenay? A mamã dizia que eles só queriam meter o nariz onde não eram chamados. Algumas doses da rudeza da minha mãe resultavam melhor do que óleo de rícino. Desistiram de tentar, deixaram-nos em paz. Nós sobrevivemos, capitão. Sim, sobrevivemos. Tínhamos um pequeno rendimento, que a mamã complementou com a venda das terras. A família dela ajudou, penso eu. O Charles foi para a Escola Dormer Day, eu também, e ela pagava regularmente as mensalidades.

- E o Morton?

- Um assistente social veio visitar-nos, olhou para ele e nunca mais voltou. Mais tarde, o Charles disse a toda a gente que ele era autista, mas'isso foi apenas por causa dos bisbilhoteiros. O autismo não aparece de repente, no dia em que a nossa mãe assassina o nosso pai. Aquele era um problema psicológico profundamente diferente. Mas nós gostávamos dele, sabe. As suas fúrias nunca se voltavam contra mim ou contra o Charles, apenas contra a mamã e os desconhecidos que nos visitassem.

- Ficou surpreendida quando ele morreu de forma tão inesperada?

- Diga antes que fiquei absolutamente chocada. Até ao corrente ano, mil novecentos e trinta e nove tinha sido o pior ano da minha vida. Eu estava sentada com os meus livros, a estudar, e apareceu-me à frente uma parede cinzenta... bam! Cega para toda a vida. Uma visita ao oftalmologista e meteram-me num comboio para Cleveland.

Mal tinha chegado à escola para cegos quando o Charles me telefonou a dizer que o Morton morrera. Simplesmente... caíra morto! - Estremeceu.

- Parece estar a implicar que a sua mãe já não era completamente estável, a nível mental, antes de mil novecentos e trinta, mas é evidente que o escondia bem. Então o que aconteceu em finais de mil novecentos e quarenta e um para desencadear uma autêntica demência?

O rosto de Claire contorceu-se.

- O que aconteceu logo depois de Pearl Harbor? O Charles anunciou que ia casar-se. Tinha vinte anos, estava a aproximar-se da maioridade. Entrara para Medicina, para a Chubb. Conheceu uma rapariga qualquer da Universidade Smith, num baile, e foi amor à primeira vista. A única forma que a minha mãe tinha de os separar era usar todos os seus recursos. Ficou louca, com uma loucura total e furiosa. A rapariga fugiu. Eu ofereci-me para voltar para casa e tomar conta da mamã... o que acabou por durar quase vinte e dois anos. Não que eu não estivesse disposta a fazer muito mais do que isso pelo Charles. Não pense que eu era escrava da minha mãe... aprendi a controlá-la. Mas, enquanto ela foi viva, o Charles e eu não podíamos apreciar completamente o nosso amor por comida, vinho e música. Entre os dois, capitão, o senhor e a minha mãe arruinaram-me a vida. Três preciosos anos em que tive o Charles só para mim, essa é a soma total das minhas memórias. Três preciosos anos...

Fascinado, Carmine deu por si a pensar se Danny Marciano não teria razão, afinal de contas. Seriam irmão e irmã também amantes?

- Não gostava muito da sua mãe, pelo que vejo - disse.

- Odiava-a! Odiava-a! Sabia - continuou, com súbita ferocidade - , que entre os treze e os dezoito anos o Charles viveu no armário debaixo das escadas? - A raiva evaporou-se; uma faísca de medo iluminou-lhe os olhos e desapareceu enquanto levava as mãos à boca. - Oh, não queria dizer isto. Não, isto era algo que eu não tinha intenções de dizer. Escapou-me. Escapou-me!

- Mais vale deitar tudo cá para fora - disse Carmine em tom descontraído. - Agora que já começou, mais vale ir até ao fim.

- Anos mais tarde, o Charles contou-me que ela o apanhara a masturbar-se. Ficou doida. Guinchou e berrou e cuspiu e mordeu-o e bateu-lhe... ele nunca sonharia em lutar contra a mamã. Eu lutava com ela o tempo todo, mas o Charles era como um coelho sob o feitiço de uma cobra. Ela nunca mais falou com ele, o que partiu o coração do meu pobre irmão. Quando voltava para casa, depois de vir da escola ou de casa do Bob Smith, lá ia ele para o armário. Era um armário grande, com uma lâmpada.

Oh, a mamã era muito atenciosa! Ele tinha um colchão no chão e uma cadeira dura... e uma prateleira que usava como mesa. Mandava-lhe um tabuleiro com as refeições e vinha buscá-lo depois de ele acabar. Ele fazia as suas necessidades num balde, que tinha de esvaziar e lavar todas as manhãs. Até eu partir para Cleveland, cabia-me a mim levar-lhe as refeições, mas não tinha autorização para falar com ele.

Carmine estava a ouvi-la de boca aberta.

- Mas isso é ridículo! - exclamou. - Ele frequentava uma escola muito boa... tinha conselheiros, um director, tudo o que tinha de fazer era contar a alguém! As pessoas teriam agido imediatamente.

- Não estava na natureza do Charles - disse Claire, erguendo o queixo. - Ele adorava a mamã e culpava o nosso pai por tudo. Bastava-lhe tê-la desafiado, mas seria incapaz de o fazer. O armário era o seu castigo por ter cometido um pecado terrível, e ele decidiu suportar o seu castigo. No dia em que fez dezoito anos ela deixou-o sair. Mas nunca mais falou com ele. - Encolheu os ombros. - O Charles era assim. Talvez isso o ajude a compreender por que razão continuo a recusar-me a acreditar que ele tenha feito essas coisas terríveis. O Charles seria incapaz de violar ou torturar, era demasiado passivo.

Carmine endireitou-se, flectiu os dedos, um pouco entorpecidos devido à força com que estivera a apertar o corrimão.

- Deus sabe que não tenho qualquer desejo de aumentar o seu sofrimento, Miss Ponsonby, mas posso garantir-lhe que o Charles era o Monstro do Connecticut. Se assim não fosse, o major F. Sharp Minor não estaria a patrocinar o seu novo começo de vida no Arizona. - Dirigiu-se aos degraus. - Tenho de ir. Não, não se levante. Agradeço-lhe muito por tudo isto, era um enigma por resolver que me andava a atormentar há meses. Os nomes delas eram Louisa e Emma Catone? Óptimo. Sei onde estão sepultadas.

Agora posso dar-lhes uma lápide. Sabe se Mrs. Catone tinha alguma crença religiosa?

- Falou como um verdadeiro polícia, capitão. Sim, ela era católica. Suponho que devia contribuir para a lápide, já que a Emma era minha meia-irmã, mas estou certa de que compreenderá se não o fizer. Arrividerci.


Claire Ponsonby ficou sentada no alpendre durante muito tempo depois de o capitão Carmine Delmonico partir. Os seus olhos vaguearam pelas árvores que rodeavam a casa, recordando como Morton passara as horas e horas intermináveis dos seus dias desocupados. Escavara um túnel porque sabia que, um dia, um túnel seria útil. Enquanto trabalhava ia pensando, e o seu corpo desenvolveu a resistência e a magreza de alguém que trabalhava mais duramente do que comia bem. Oh, Charles adorava-o! Amava-o ainda mais do que amava a mãe. Ensinara-o a ler e a escrever, dera-lhe uma genuína erudição. Charles, um irmão que compreendia a plenitude inelutável dos laços fraternais. Partilhando os livros, tentando corajosamente partilhar o trabalho. Mas Charles tinha tanto medo do túnel que não conseguia passar muito tempo nele. Morton, por outro lado, nunca se sentia mais vivo do que enquanto trabalhava no túnel, escavando, arrancando, furando, arrastando para o exterior a terra e as pedras, que Charles espalhava depois entre as árvores.

E assim começara a partilha. Charles pensava na Sala Catone como o paraíso de um cirurgião, muitos metros acima da terra. Morton, por outro lado, sabia que a Sala Catone era o florescer orgásmico do túnel, sob o peso silencioso da terra. Morton, Morton, ligar, desligar. Minhoca cega, toupeira cega na escuridão, escavando com um botão mágico na mão com o qual podia ligar e desligar os seus olhos. Ligar, desligar, acender, apagar, ligar, desligar. Escavar e escavar, ligar, desligar.

"Ora vejamos... Aquele carvalho foi onde ele enterrou o italiano de Chicago depois de ele assentar o chão de mosaicos. E as raízes daquele ácer produzem xarope a partir dos restos mortais do canalizador; contratámo-lo em São Francisco. O carpinteiro de Duluth está a apodrecer perto daquele que deve ser o último ulmeiro saudável do Connecticut. Não me lembro onde enterrámos os outros, mas não são importantes. Que servo maravilhoso é a ganância! Um trabalho secreto, pago com dinheiro vivo, e toda a gente fica feliz. Ninguém mais feliz do que Charles, quando distribuía o dinheiro. Ninguém mais feliz do que eu, enquanto brandia a marreta para recuperar o dinheiro. Ninguém mais feliz do que nós os dois, enquanto remexíamos e esquadrinhávamos nos orifícios, canais, tubos, cavidades. Não que precisássemos de recuperar o dinheiro. O que gastámos na Sala Catone ao longo de anos sem fim, enquanto esperávamos que a mamã morresse, foi uma insignificância, em comparação com a quantidade de dinheiro que a mamã trouxe da estação de comboios em duas pequenas arcas elegantes, naquele mês de Janeiro de 1930. Alguma vez o papá seria suficientemente idiota para perder todo o seu dinheiro na bolsa? Nem por sombras. Tinha convertido os seus investimentos em dinheiro muito antes disso. Instalara um pequeno cofre (cuja porta dera muito jeito mais tarde) na adega, e nele guardara o dinheiro até o detective que contratara ter encontrado Mrs. Catone. Obrigado, caro capitão Delmonico, por ter preenchido as lacunas! Agora sei por que razão ele esvaziou o cofre, pôs o seu conteúdo naquelas duas arcas e as colocou no carro antes de partir para a estação.

Depois de o matar, a mamã transferira as arcas para o seu carro; nós abrimo-las, espreitámos lá para dentro e roubámo-las enquanto as roupas dela e o bastão de basebol ardiam alegremente. Enquanto eu as escondia no meu pequeno túnel, Charles começou a fazer um túnel mais do seu agrado, perfurando a mente da mamã. Uma e outra vez lhe murmurou aos ouvidos que a história de Catone não passava de um fragmento da sua imaginação, que ela não matara o papá, que imaginara Catone para se justificar e que Emma era apenas um livro de Jane Austen. Quando ela precisava de dinheiro, nós dávamos-lhe algum, mas nunca lhe dissemos onde estavam as arcas. Depois, após esse traidor do Roosevelt ter abolido o padrão ouro em 1933, levámos a mamã e as arcas até ao Banco Sunnington, em Cleveland, onde, uma vez que o banco era propriedade da família dela, não tivemos dificuldades em trocar as notas velhas por novas. Naqueles dias da Depressão, muitas pessoas preferiam guardar as suas economias em dinheiro vivo. E, nessa altura, ela não passava de uma marioneta impotente nas mãos de dois rapazes recatados, mal acabados de entrar na adolescência.

Trazer o dinheiro de novo para casa não fora fácil, ligar, desligar. Alguém no banco dera com a língua nos dentes. Mas Charles organizou a nossa estratégia, com a sua inteligência extraordinária. Quando se tratava de logística e concepção, Charles era um génio. Como é que hei-de substituí-lo? Quem poderá compreender, excepto um irmão?

Novamente em casa, o túnel de Charles na mente da mamã concentrara-se no dinheiro, dizendo-lhe que Roosevelt o roubara para financiar a sua trama contra tudo o que a América representava, a liberdade, em vez de deixar a Europa ter aquilo que merecia. Sim, ambos os nossos túneis cresceram, e quem pode dizer qual deles era mais belo? Um túnel para a loucura, um túnel para a Sala Catone, ligar, desligar.

Espero que o capitão Delmonico tenha ficado satisfeito com a minha história de amor e paranóia descontrolada com um final triste. É uma pena que aquela mulher dele se tenha revelado tão desembaraçada. Estava tão ansiosa por uma sessão especial com ela, esfolando-a nas suas alturas olímpicas, enquanto ela o via acontecer num espelho. Não podes ter sempre os olhos fechados, Desdemona, abrir, fechar. E no entanto, quem sabe? Talvez um dia, outro dia, possa acontecer. Nunca me teria virado para ela se não fosse o meu fascínio por Carmine, o Curioso. Mas uma vez que, apesar de toda a sua curiosidade, ele não é adivinho, ligar, desligar, nunca fez as perguntas que poderiam ter feito girar a chave no seu cérebro obstinado.

Perguntas como, por que razão elas tinham todas dezasseis anos? A resposta é simples aritmética, ligar, desligar. Mrs. Catone tinha vinte e seis anos e a Emma tinha seis, o que perfaz trinta e dois, mas nós só queríamos uma Catone, portando divide-se por dois e o resultado é... dezasseis! Perguntas como, o que poderia atrair uma jovem de bom coração ao seu delicioso destino? A resposta a essa pergunta está na qualidade da misericórdia. Uma mulher cega a chorar sobre a pata partida do seu cão-guia. Biddy é maravilhosa a fingir uma pata partida. Perguntas como, qual o significado de uma dúzia? Ciclos solares, ciclos lunares, ciclos motores... a resposta é estúpida. Mrs. Catone costumava dizer "À dúzia é mais barato!", como se isso fosse uma luz pelo menos tão cegante como a de Deus. Perguntas como, por que esperámos tanto tempo para começar? Uma resposta presa nas teias de Édipo, de Orestes. Matar Catones pode ser mais barato à dúzia, mas ninguém consegue matar a própria mãe. Perguntas como, como podia Claire fazer parte disto? E contudo não havia mais ninguém senão Claire... A resposta está nas aparências. As aparências são tudo; está tudo nos olhos do espectador, abrir, fechar.

A mamã nunca teve uma menina. Apenas três rapazes. Ligar, desligar, acender, apagar. Mas ela desejava uma menina e, o que a mamã queria, a mamã tinha. Assim, vestiu o mais novo de nós como uma menina desde o dia do nascimento. As pessoas acreditam no que os seus olhos lhes dizem, abrir, fechar. Até você, capitão Delmonico, incluindo você. Nós, os rapazes Ponsonby, somos todos parecidos com a mamã: passamos bem por mulheres, mas somos homens desenxabidos. Não temos nada da masculinidade dinâmica do nosso pai. Oh, como ele costumava dá-la a Mrs. Catone! O Charles e eu víamo-los por um buraco da parede, ligar, desligar, acender, apagar. Querido Charles, sempre a pensar em formas de satisfazer as minhas necessidades. Teria sido tudo tão mais difícil depois de a Claire ficar cega, se ele não tivesse tido a inspiração de me vestir com as roupas de Claire e de me mandar para Cleveland, ligar, desligar. Assim que lá cheguei, ele pôs uma almofada sobre o rosto de Claire e Morton, a Toupeira, transformou-se em Claire, a Cega. Ligar, desligar, acender, apagar, abrir, fechar."

Escuridão, por fim. O meu verdadeiro meio ambiente, ligar, desligar. Está na altura de Morton, a Toupeira, encontrar novos terrenos para os seus túneis.

FIM

 

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excerto de
UM PASSO À FRENTE
COLLEN McCULLOUGH
Título original: On, Off
(c) 2006, por Colleen McCullough
Tradução de Elsa T. S. Vieira
Editorial DIFEL, 2.ª Edição
 

 

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23.Jan.2020
Maria José Alegre