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- Espero que não considere a minha pergunta impertinente, Claire, mas sempre
foi cega? - perguntou.
- Oh, sim - disse ela em tom animado. - Sou um daqueles bebés de incubadora a
quem deram oxigénio puro. Culpe a ignorância da época.
A vaga de piedade que sentiu fê-lo desviar os olhos para um grupo de
fotografias emolduradas numa das paredes, algumas das quais tão antigas que eram
apenas daguerreótipos
de tom sépia. Uma forte semelhança familiar era comum a todos os rostos: feições
rectas e duras, sobrancelhas muito marcadas e cabelo escuro e espesso. A única
diferente
era evidentemente a mais recente: uma mulher idosa, cujo rosto recordava muito
mais os de Charles e Claire, desde o cabelo fino aos olhos claros e húmidos e às
feições
longas e lúgubres. A mãe? Se assim fosse, então eles não tinham saído aos
Ponsonby, mas sim a ela.
- A minha mãe - disse Claire com uma capacidade inquietante de perceber o que se
passava no mundo dos que vêem. - Não deixe que a minha presciência o incomode,
tenente.
Em certa medida, é apenas um truque.
- Vejo que é a vossa mãe, e que se parecem ambos mais com ela do que com a
linhagem Ponsonby.
- Ela era uma Sunnington de Cleveland, e é verdade que nós saímos mais aos
Sunnington. A mamã morreu há três anos, uma morte misericordiosa. Sofria de
demência muito
severa. Mas não se pode pôr uma Filha da Revolução Americana num lar de velhotas
senis, portanto fui eu que cuidei dela até ao amargo final. Com alguma ajuda
excelente
das autoridades do condado, tenho de o dizer.
-
"Então é a casa de uma FRA, pensou Carmine. "Ponsonby e a irmã provavelmente não
votam em ninguém à esquerda de Genghis Khan."
Levantou-se, ligeiramente tonto; os Ponsonby serviam o seu xerez em copos de
vinho, não em cálices.
- Obrigado pela hospitalidade, agradeço muito - olhou para a cadela, deitada de
olhos postos nele. - Adeus, Biddy. Foi um prazer conhecer-te.
- O que pensas do bom tenente Delmonico? - perguntou Charles Ponsonby à irmã
quando voltou para a cozinha.
- Que não deixa passar muita coisa - disse ela, misturando claras em castelo no
molho de queijo e espinafres.
- É verdade. Amanhã vão andar a espezinhar a nossa floresta.
- Importas-te?
- Nem um pouco - disse Charles, despejando o souflé na caçarola e colocando-a no
forno quente. - Mas tenho pena dele. As buscas em vão devem ser exasperantes.
⁂
- O Carmine parece em baixo - murmurou Marciano a Patrick.
- Ele e a Desdemona não se falam. O comissário Silvestri pigarreou.
- Então quantos é que se recusaram a deixar-nos dar uma vista de olhos sem
mandato?
- De uma maneira geral, foram bastante cooperativos - disse Carmine, que parecia
de facto em baixo. - Consegui ver tudo o que pedi para ver, embora tenha tido o
cuidado de ter sempre pelo menos um deles comigo. Não pedi autorização a Charles
Ponsonby para inspeccionar a floresta porque achei que não valia a pena. Se o
Corey
e o Abe encontrarem algum rasto recente no meio desta neve toda, ou evidências
de rastos recentes que tenham sido cobertos, então pedirei. Mas aposto que os
oito
hectares estão intactos, porquê aborrecer o Chuck e a Claire antes do tempo?
- Gosta da Claire Ponsonby - disse Silvestri, fazendo uma afirmação.
- Sim, gosto. É uma mulher fantástica, não guarda qualquer ressentimento. -
Afastou-a da mente. - Para responder à sua pergunta original, até agora ouvi
recusas
do Satsuma, do Chandra e do Schiller, os três estrangeiros. Aposto que o Satsuma
enviou o seu peão particular, Eido, para a casa de Cape Cod, dez segundos depois
de eu ter saído do apartamento dele. O Chandra é um filho da mãe arrogante, mas isso é
provavelmente compreensível, sendo o primeiro filho de um marajá. Mesmo que
conseguíssemos
um mandato, ele queixar-se-ia à Embaixada da índia, e essa é uma nação muito
sensível e agressiva. O Schiller é um caso mais patético. Não suspeito que seja
capaz
de nada mais estranho do que ter muitas fotografias de rapazes nus nas paredes,
mas não insisti por causa da tentativa de suicídio. Foi a sério, não apenas uma
encenação.
Carmine sorriu.
- Por falar em fotografias de homens nus, encontrei uma extraordinária no quarto
da Tâmara Vilich, no meio das correntes e do cabedal. Nem mais nem menos do que
o ambicioso neurocirurgião, Keith Kyneton, que, despido, fica melhor do que o
Mr. Universo. Dizem que estes tipos do culturismo o fazem para compensar um
pénis pequeno,
mas não posso dizer que seja o caso dele. Tem um instrumento digno de uma
estrela pornográfica.
- Vejam só, quem diria? - disse Marciano, recostando-se na cadeira para evitar o
fumo do charuto de Silvestri; por que diabo tinha de estar sempre debaixo do
nariz
dele? - Isso elimina os Kyneton? Ou a Tâmara Vilich?
- Não completamente, Danny, apesar de nunca terem estado em lugar de destaque na
minha lista. Ela pinta quadros muito doentios e é uma dominadora.
- Então o Keith gosta de levar porrada.
- É o que parece. No entanto, a Tâmara não lhe pode deixar marcas, senão a
esposa devotada repararia. É da mãe dele que tenho mais pena.
- Mais uma de quem gosta - disse Silvestri.
- Bom, seria preocupante se não gostasse de ninguém.
- Quais são os teus planos agora? - perguntou Marciano.
- Confrontar a Tâmara com a história dos Kyneton.
- Isso não te custará nada. Já percebi que dela não gostas.
Apanhou-a no gabinete dela.
- Vi a fotografia do Keith Kyneton por baixo da da sua mãe - disse, sem rodeios,
admirando o espírito dela; os seus olhos, mais esverdeados sob esta luz,
ergueram-se
para o rosto dele sem sinais de medo.
- O sexo não é um homicídio, tenente - disse ela. - Nem sequer é um crime, entre
adultos responsáveis.
- Não estou interessado no sexo, Miss Vilich. Quero saber onde se encontram para
o fazer.
- Na minha casa, no meu apartamento.
- Com metade da vizinhança a trabalhar algures na Faculdade de Medicina da Chubb
ou na Colina da Ciência? Com certeza que, mais cedo ou mais tarde, alguém que
conhecesse
Kyneton ou o seu carro o veria. Acho que têm um esconderijo noutro sítio
qualquer.
- Está enganado, não temos. Sou solteira, vivo sozinha e o Keith certifica-se de
que não há ninguém à vista se chegar antes de escurecer. Mas nunca chega antes
de
escurecer. É por isso que eu adoro o Inverno.
- E os vizinhos que possam estar a espreitar por trás das cortinas? O seu caso
com o doutor Kyneton dá-lhe uma dupla ligação ao Hug. A mulher e a amante
trabalham
aqui. A mulher dele sabe?
- Vive na ignorância total, mas suponho que você vai dar com a língua nos dentes
- disse Tâmara com ar amuado.
- Eu não dou com a língua nos dentes, Miss Vilich, mas tenho de falar com o
Keith Kyneton para me certificar de que não existe um esconderijo algures. A
vossa relação
cheira-me a violência, e a violência geralmente implica um esconderijo seguro.
- Onde os gritos não possam ser ouvidos. Nunca chegamos tão longe, tenente, é
mais uma questão de representar determinados cenários - disse ela. - A
professora severa
com o aluno mal comportado, a polícia com as suas algemas e bastão... sabe como
é. - A sua expressão alterou-se e Tâmara estremeceu. - Ele vai deixar-me. Oh, meu Deus, que
hei-de fazer? Que hei-de fazer depois de ele me deixar?
"O que só mostra", pensou Carmine depois de sair, "como as ideias feitas podem
estar erradas. Eu pensava que ela não amava ninguém para além de si própria, mas
afinal
é louca por um imbecil como Keith Kyneton, o que talvez explique os seus
quadros. Eles representam como ela se sente em relação ao amor - que tristeza,
odiar o amor!
Porque sabe que o Keith só lá vai pelo sexo. É Hilda quem ele ama - se for capaz
de amar alguém."
Tâmara apanhou-o no elevador.
- Se se apressar, tenente, encontrará o doutor Kyneton entre operações - disse
ela. - Hospital de Holloman, décimo andar. O melhor caminho é pelo túnel.
O túnel era tão sinistro como todos os túneis; depois de explorar o labirinto de
túneis em que os japoneses viviam em algumas ilhas do Pacífico, durante a
Guerra,
Carmine temia-os. Em Londres, tivera de fazer um esforço para descer às
profundezas da terra para atravessar os túneis do metropolitano. Nos túneis
havia uma espécie
de ronco, uma raiva transmitida pela terra ultrajada e invadida. Por mais vazios
ou vivamente iluminados que fossem, os túneis sugeriam sempre terrores
escondidos.
Percorreu os cem metros do túnel do Hug, virou para o corredor da direita e saiu
na cave do hospital, perto da lavandaria.
Todas as salas de operações eram no décimo andar, mas o Dr. Keith Kyneton estava
à espera dele junto dos elevadores, com uma bata verde e um par de máscaras de
algodão
ao pescoço.
- Privado, tenho de insistir para que mantenhamos isto privado - disse o
neurocirurgião num murmúrio. - Aqui, depressa!
"Aqui" era uma sala de armazenamento atafulhada de caixas de material, sem
cadeiras ou qualquer atmosfera que Carmine pudesse utilizar para causar efeito.
- Miss Vilich contou-lhe, não foi? - perguntou o doutor. - Nunca quis que ela
tirasse aquela maldita fotografia!
- Devia tê-la rasgado.
- Oh, céus, será que não compreende, tenente? Ela queria-a! A Tâmara é... é
fantástica.
- Acredito, para quem tenha gostos bizarros. A Enfermeira Cateter e o seu estojo
de clisteres. Quem começou, ela ou o senhor?
- Honestamente, não me lembro. Estávamos ambos bêbados, numa festa do hospital a
que a Hilda não pôde ir.
- Há quanto tempo foi isso?
- Há dois anos. No Natal de mil novecentos e sessenta e três.
- Onde é que se encontram?
- Em casa da Tâmara. Tenho sempre muito cuidado a entrar e a sair.
- Em mais lado nenhum? Não têm nenhum esconderijozinho secreto no campo?
- Não, só em casa dela.
De súbito Kyneton virou-se, segurou nos braços de Carmine,
trémulo, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
- Tenente! Por favor, suplico-lhe, não conte a ninguém! A minha sociedade em
Nova Iorque está quase concretizada mas, se descobrirem uma coisa destas,
perderei a minha oportunidade! - exclamou.
Com a mente repleta de imagens de Ruth e Hilda, dos seus constantes sacrifícios
por este bebé grande e mimado, Carmine libertou-se violentamente.
- Não me toque, seu maldito egoísta! Estou-me borrifando para a sua preciosa
clínica em Nova Iorque, mas por acaso gosto da sua mãe e da sua mulher. Não
merece nenhuma
delas! Eu não falarei nisto a ninguém, mas não pode ser estúpido ao ponto de
pensar que Miss Tâmara Vilich será igualmente caridosa, com certeza! Você
acabará por
deixá-la, por mais fantástico que seja o sexo bizarro, e ela retaliará como
qualquer outra mulher desprezada. Amanhã, todas as pessoas que são importantes
para si
saberão. O seu professor, a sua mãe, a sua mulher e os médicos de Nova Iorque.
Os ombros de Kyneton abateram-se. Procurou em vão uma cadeira e encostou-se a um
caixote de compressas.
- Oh, meu Deus, meu Deus, estou arruinado*.
- Recomponha-se, Kyneton, por amor de Deus! - exclamou Carmine. - Não está
arruinado... ainda. Encontre alguém que o substitua na próxima operação, mande a
sua mulher
para casa e siga-a. Quando estiver sozinho com ela e com a sua mãe, confesse.
Ponha-se de joelhos e implore o perdão delas. Jure nunca mais o fazer. E não
esconda
nada. Tem lábia suficiente para as conquistar. Mas Deus o ajude se não tratar
bem aquelas duas mulheres daqui para a frente, está a ouvir? Para já não vou
acusá-lo
de nada, mas não pense que não consigo encontrar qualquer coisa de que o acusar,
se quiser, e vou estar de olho em si enquanto for polícia. Mais uma coisa. Da
próxima
vez que fizer compras no Borks Brothers, compre qualquer coisa bonita para a sua
mãe e para a sua mulher no Bonwit's.
"Teria o filho da mãe prestado atenção? Sim, mas só àquilo que achou que poderia
servir para o salvar."
- Nada disso me ajuda em relação à sociedade.
- Claro que sim! Desde que a sua mãe e a sua mulher estejam do seu lado. Entre
os três, podem fazer com que a Tâmara Vilich pareça uma mulher frustrada a dizer
uma
carrada de mentiras.
As engrenagens estavam a girar; Kyneton animou-se visivelmente.
- Sim, sim, estou a ver o que quer dizer! É a melhor maneira!
Um instante depois, Carmine estava só. Keith Kyneton desaparecera para tapar os
seus buracos, sem uma palavra de agradecimento.
- O que é que o senhor julga que está aqui a fazer? - inquiriu uma voz feminina
irada.
Carmine mostrou o impressionante distintivo dourado à enfermeira, que parecia
prestes a chamar a segurança do hospital.
- Estou a fazer penitência, minha senhora - disse ele. - Uma penitência
terrível.
O mundo, quando estava coberto de neve fresca, era tão bonito; assim que despiu
os abafos, Carmine virou uma das poltronas para a janela enorme que dava para o
porto
e apagou todas as luzes interiores. O amarelo vivo das luzes da auto-estrada
ofendia-o, mas, quando reflectido pelos mantos de neve, era mais suave, mais
dourado.
O gelo estava a começar a aproximar-se, vindo da costa leste, apesar de os
molhes ainda serem um vazio escuro, salpicado de centelhas; estava demasiado
vento para
reflexos longos e ondulantes. Os ferrys estavam parados até Maio.
O que havia de fazer em relação a Desdemona? Todas as suas tentativas de
abordagem tinham sido rejeitadas, todos os seus bilhetes com pedidos de desculpa
devolvidos
por abrir, enfiados por baixo da sua porta. Até este momento não compreendia
honestamente o porquê de ela ter ficado tão mortalmente ofendida, de estar a ser
tão
inflexível - sim, ele ultrapassara os limites, mas não era natural que todas as
pessoas discutissem de vez em quando, discordassem em alguma coisa? Isto tinha
algo
a ver com o orgulho dela, mas Carmine não conseguia perceber exactamente o quê.
Aquela barreira entre nacionalidades erguera-se, demasiado alta para conseguir
espreitar
por cima. Teria sido a sua observação sobre comprar um vestido de vez em quando,
ou simplesmente o facto de se ter atrevido a questionar o comportamento dela?
Teria
feito com que ela se sentisse menos feminina, ou grotesca, ou... ou...
- Desisto - disse, apoiando o queixo na mão, e tentou pensar no Fantasma. Era o
seu novo nome para o Monstro, que não tinha nada em comum com a concepção
popular
dos monstros. Ele era um fantasma.
⁂
- Vou dar um passeio, querida - disse Maurice Finch a Catherine quando se
levantou da mesa do pequeno-almoço. - Não me apetece muito ir trabalhar hoje,
mas vou pensar
nisso enquanto passeio.
- Claro, fazes bem - disse a mulher, olhando pela janela para o termómetro do
exterior. - Está muito frio, por isso agasalha-te... e, se decidires ir
trabalhar,
põe o carro a aquecer quando voltares. - Catherine achava que ele parecia
consideravelmente mais animado ultimamente, e sabia porquê. Kurt Schiller
voltara ao Hug
e falara com Maurice para lhe garantir que não fora a discussão entre ambos a
causa da tentativa de suicídio. Segundo parecia, o amor da vida dele trocara-o
por
outra pessoa. O imbecil do nazi (a opinião de Catherine sobre Schiller não se
alterara um milímetro) não entrara em pormenores, mas ela calculava que os
homens que
gostavam de homens eram tão vulneráveis como os homens que gostavam de mulheres;
alguma lambisgóia - que importava o sexo da lambisgóia em questão? - fartara-se
de ser adorada e sentira necessidade de alguém com uma abordagem diferente e,
talvez, uma conta bancária mais choruda.
Viu Maurie da janela enquanto ele se afastava pelo caminho gelado que levava ao
pomar de macieiras, o seu local preferido. Eram árvores velhas, nunca tinham
sido
podadas para manter a produção de frutos a um nível relativamente baixo, mas na Primavera isso transformava-as
num mar de flores brancas que deixava uma pessoa de boca aberta, e no Outono
ficavam
carregadas de frutos vermelhos e brilhantes que pareciam decorações de árvore de
Natal. Vários anos antes, Maurie decidira orientar alguns dos ramos de forma a
formar
arcos; a velha madeira rangera em protesto, mas Maurie fizera-o de forma tão
gentil e lenta que agora os carreiros entre as árvores eram como as naves de uma
catedral.
Maurice desapareceu e ela virou-se para lavar a loiça.
Depois ouviu um grito agudo e horripilante. Um dos pratos caiu e desfez-se em
cacos, enquanto Catherine pegava num casaco e saía a correr. Os chinelos
escorregaram
e deslizaram no gelo, mas conseguiu manter o equilíbrio. Outro grito! Sem sentir
sequer a temperatura negativa, correu mais depressa.
Maurie estava de pé junto do maravilhoso muro de pedra que circundava o pomar,
olhando por cima dele para algo que cintilava em cima do monte de neve, dura
como
pedra, que se acumulara junto do muro durante o último nevão.
Catherine olhou também e depois puxou-o com ela, de volta para o calor da
cozinha, para a sanidade. Para onde podia chamar a polícia.
Carmine e Patrick estavam de pé onde Maurice Finch estivera" uma vez que os pés
dele tinham eliminado quaisquer outras pegadas que pudessem ter existido antes -
altamente improvável, de qualquer maneira, na opinião de ambos os homens.
Margaretta Bewlee estava inteira, à excepção da cabeça, que não se via em lado
nenhum. Contra a brancura estonteante, a sua pele cor de chocolate parecia ainda
mais
escura, o cor-de-rosa das palmas das mãos e das solas dos pés condizendo com a
cor do vestido que trazia: uma peça de renda cor-de-rosa, bordado com pedras brilhantes. Era suficientemente curto para deixar ver um par de cuecas de seda
cor-de-rosa, manchadas de forma sinistra.
- Meu Deus, é tudo diferente! - disse Patrick.
- Vemo-nos na morgue - disse Carmine, dando meia volta. - Se ficar aqui, vou
atrasar-te.
Entrou, encontrando os Finch sentados muito juntos à mesa do pequeno-almoço, com
uma garrafa de vinho Manischewitz entre os dois.
- Porquê eu? - perguntou Finch, lívido.
- Beba mais um pouco de vinho, doutor Finch. E, se soubéssemos a resposta a essa
pergunta, talvez tivéssemos uma boa oportunidade de apanhar este filho da mãe.
Posso
sentar-me?
- Sente-se, sente-se! - exclamou Catherine, indicando um copo limpo. - Beba um
pouco, também deve estar a precisar.
Apesar de não gostar muito de vinho doce, o Manischewitz ajudou; Carmine pousou
o copo e olhou para Catherine.
- Ouviu alguma coisa durante a noite, Mrs. Finch? Está tanto frio que tudo faz
barulho.
-Absolutamente nada, tenente. Depois de chegar a casa, o Maurie esteve algum
tempo a pôr turfa e adubo no seu túnel dos cogumelos, mas às dez horas estávamos
na
cama e dormimos até às seis da manhã de hoje.
- Túnel de cogumelos?
- Pensei em ver se conseguia cultivar algumas das variedades de gourmet - disse
Finch, parecendo um pouco melhor. - Os cogumelos são um produto muito fino, mas
não
compreendo porquê, depois de ver como crescem num campo.
- Importa-se que revistemos a sua propriedade, doutor? Receio que a descoberta
de Margaretta aqui o torne necessário.
- Faça o que quiser, faça o que for preciso para apanhar esse monstro! - Finch
levantou-se, como um velho. - No entanto, acho que sei por que razão não ouvimos
nada,
tenente. Quer ver?
- Claro.
Com cuidado para não pisar nenhuma zona de terreno que parecesse ter sido
remexida, Maurice Finch conduziu Carmine através da área das estufas, depois
entre os dois
grandes telheiros aquecidos onde estavam as galinhas de Catherine. Finalmente, a
uns bons quinhentos metros da casa, Finch parou e apontou.
- Está a ver aquele caminho? Vem desde um portão na estrada cento e trinta e
três e termina ao fundo do pomar. Limpamo-lo com
o tractor por causa do regato... quando o regato transborda, corta o acesso da
nossa casa à cento e trinta e três. Se o Monstro soubesse da existência deste
caminho,
podia usá-lo e nós nunca o ouviríamos.
- Muito obrigado, doutor Finch. Volte para junto da sua mulher.
Finch obedeceu sem protestar, enquanto Carmine ia à procura de Abe e Corey para
lhes explicar onde deviam procurar sinais do fantasma. "Ele é um fantasma,
entrou
e saiu como um fantasma, mas é um fantasma muito bem informado, este fantasma. A
propriedade de Maurice Finch está cruzada pelos seus rastos, mas o fantasma sabe
onde está cada um. E fez uma boa pergunta, doutor Finch: "Porquê eu?" De facto,
porquê?"
Carmine fez os possíveis por estar de volta ao edifício dos Serviços Municipais
antes de Patrick trazer o corpo de Margaretta; esta era uma autópsia que queria
ver
do princípio ao fim.
- Ela foi colocada em cima de um monte de neve gelada, gelo sólido, mas
desconfio que já estava congelada quando ele a largou ali - disse Patrick,
enquanto ele e
Paul tiravam cuidadosamente o corpo do saco. - O solo está gelado em todo o
lado, nada mais pequeno do que uma retroescavadora conseguiria escavar para a
enterrar,
mas desta vez ele não estava a tentar escondê-la, nem mesmo por pouco tempo.
Largou-a bem à vista, com um vestido cintilante.
Os três homens olharam para Margaretta e para o seu vestido peculiar.
- Não vi muitas vezes a Sophia com vestidos de festa
- disse Carmine - , mas tu,
com tantas raparigas, Patsy, deves ter visto dezenas de vestidos de festa. Isto
não
é o vestido de uma adolescente, pois não? Ela foi enfiada num vestido de
criança.
- Sim. Quando a levantámos vimos que não estava abotoado nas costas. Os ombros
da Margaretta são demasiado largos, mas os seus braços são finos, por isso, de
frente,
ele conseguiu fazer com que parecesse bem.
O vestido tinha mangas de balão, com punhos estreitos, e cintura própria para um
corpo de criança - larga e um pouco baixa. Numa criança de dez anos chegaria
provavelmente
aos joelhos; nesta jovem mal tapava o cimo das coxas. A renda rosa-coral era
francesa, calculou Carmine; renda cara, bordada numa base de tule fino mas
forte. Depois
alguém cosera o que pareciam ser várias centenas de pedras brilhantes
transparentes em todo o vestido, num padrão semelhante ao da renda; cada pedra
estava perfurada
na ponta para deixar passar a linha. Um trabalho manual minucioso, que devia ter
adicionado muitos dólares ao preço. Teria de mostrar isto a Desdemona para ter
uma
estimativa mais exacta da qualidade e do valor.
Viu Patrick e Paul despirem o estranho vestido a Margaretta, com o cuidado de o
preservarem intacto. Uma das razões pelas quais gostava tanto do primo, era o
respeito
de Patrick pelos mortos. Por mais repugnantes que fossem alguns dos corpos que
encontrava - matéria fecal, vómito, mucos inimagináveis - Patrick lidava com
eles
como se fossem a obra de Deus, e uma obra feita com amor.
Por baixo do vestido, Margaretta vestia apenas um par de cuecas de seda
cor-de-rosa que lhe chegavam à cintura e às coxas: cuecas modestas. Estavam
manchadas de
sangue entre as pernas, mas não excessivamente. Quando as despiram, viram que
ela tinha os órgãos genitais depilados.
- É o nosso homem, não há dúvida - disse Carmine. - Alguma ideia de como morreu,
antes de começares?
- Não foi de perda de sangue, isso é certo. A pele está da cor devida e tem
apenas uma incisão no pescoço, onde foi decapitada. Não tem marcas de cordas nos
tornozelos,
embora eu ache que foi presa com a habitual faixa de lona sobre o peito. Talvez
ele tenha usado outra na parte inferior das pernas, entre as violações, mas
tenho
de ver melhor para o verificar. - Comprimiu os lábios. - Acho que desta vez ele
a violou até a matar. Não há muito sangue externamente, mas tem o abdómen muito
inchado
para alguém que ainda não entrou no processo de decomposição. Depois de morrer,
foi colocada num congelador até ele entender que era altura de se livrar do
corpo.
- Então - disse Carmine, afastando-se da mesa - , espero por ti no teu gabinete,
Patsy. Tencionava assistir a esta autópsia, mas acho que não consigo.
Marciano veio ter com ele no exterior.
- Estás um bocado pálido, Carmine. Já tomaste o pequeno-almoço?
- Não, nem quero.
- Claro que queres. - Cheirou o hálito de Carmine. - O problema é que estiveste
a beber.
- Chamas bebida a um copo de Manischewitz?
- Não. Até o Silvestri o classificaria como sumo de uvas. Anda daí, podes pôr-me
a par das novidades no Malvolio's.
Não conseguira comer muito da torrada com xarope de ácer, mas voltou ao
escritório a sentir-se um pouco melhor por ter tentado comer. Este dia ia trazer
um sofrimento
mental maior do que qualquer outro; tinha um pressentimento de que Mr. Bewlee
insistiria em ver os restos mortais da filha, independentemente do que dissesse
o sacerdote
da sua religião ou de quem se oferecesse para o substituir nesta tarefa
terrível. Não poderiam deixá-lo ver algumas partes, mas ele devia conhecer cada linha nas palmas das mãos dela, talvez alguma pequena
cicatriz num pé, onde lhe tirara em tempos uma farpa, a forma das unhas... as
doces
e encantadoras intimidades da paternidade que Carmine nunca vivera. Como é
estranho, ter um filho que não se conhece verdadeiramente, que sempre viveu
longe de nós
e em cuja companhia nos sentimos como um estranho.
Agora que se habituara a chamar fantasma ao assassino, alguns cantos e recessos
da sua mente tinham-se deslocado, permitindo que fracos raios de luz incidissem
nas
suas profundezas; desde a noite em que olhara para o porto de Holloman, sob a
neve, Carmine dera por si a pensar em novas linhas, e ver Margaretta Bewlee com
o seu
vestido de festa, naquela neve gelada, abrira outra porta que o chamava
sedutoramente, fora do seu alcance, como um fantasma de uma ideia. Um
fantasma...
Depois percebeu. Não era um fantasma. Dois fantasmas.
Como seria mais fácil se fossem dois! A velocidade e o silêncio, a
invisibilidade. Dois: um para lançar o isco, outro para puxar a presa. Tinha de
haver um isco,
algo que uma rapariga de dezasseis anos, tão pura como a neve, engolisse tão
avidamente como um salmão engolia a mosca certa. Um gatinho abandonado, um
cachorrinho
sujo e maltratado?
Éter... éter! Um deles agitava o isco, o outro aproximava-se por trás, como um
relâmpago, e colocava um pano ensopado em éter sobre o rosto da rapariga - não
lhe
dando hipótese de emitir qualquer som, sem correr o risco de levar uma dentada,
sem o perigo de a mão lhe escorregar momentaneamente, permitindo um grito. A
rapariga
ficaria inconsciente em segundos, aspirando o éter para os pulmões enquanto se
debatia. Depois duas pessoas para a transportarem, para lhe darem uma injecção,
para
a enfiarem num veículo ou num esconderijo temporário. Éter... o Hug.
Sônia Liebman estava na sala de operações do Hug, a arrumar as coisas depois de
uma sopa de cérebro de ratos. Quando viu Carmine a sua expressão ensombrou-se -
mas
não por causa dele.
- Oh, tenente, já soube! O pobre Maurie está bem?
- Está. Nem podia não estar, com aquela mulher.
- Então o Hug continua metido nisto, certo?
- Ou alguém quer fazer com que assim pareça, Mrs. Liebman - Fez uma pausa, mas
não viu qualquer interesse em ser dissimulado. - Tem algum éter na sala de
operações?
- perguntou.
- Claro, mas não éter anestésico, apenas éter anídrico vulgar. Aqui está -
disse, conduzindo-o à antecâmara, onde apontou para uma fila de latas numa
prateleira
alta.
- Funcionaria como anestésico? - perguntou ele, tirando uma lata da prateleira
para a examinar. Era mais ou menos do tamanho de uma lata de pêssegos grande,
mas
com um gargalo curto e estreito encimado por uma tampa metálica. Não uma tampa,
mas um selo! O material devia ser tão volátil, pensou, que nem a tampa mais
estanque
o impediria de se evaporar.
- Eu uso-o como anestésico quando estou a descerebrar gatos.
- Quer dizer quando lhes remove o cérebro?
- Está a aprender, tenente. Sim, é isso.
- Como é que os eteriza?
Em resposta, ela pegou num recipiente feito de plexiglass transparente que se
encontrava a um canto; tinha cerca de oitenta centímetros quadrados, setenta e
cinco
de altura, e uma tampa estanque presa por grampos.
- É uma antiga câmara de cromatografia - disse ela. - Ponho uma toalha grossa no
fundo, esvazio uma lata de éter para cima da toalha, enfio o gato lá dentro e
fecho
a tampa. Na verdade, faço-o lá fora, nas escadas de incêndio, onde a ventilação
é melhor. O animal fica inconsciente bastante depressa, mas não se magoa antes
de
adormecer porque as paredes são lisas.
- E tem alguma importância que se magoe, quando está prestes a perder o cérebro
sem sequer voltar a acordar? - perguntou Carmine.
Ela encolheu-se como uma cobra prestes a atacar.
- Sim, seu idiota, claro que tem importância! - disse entre dentes. - Nenhum
animal é sujeito a dor ou sofrimento na minha sala de operações! O que pensa que
isto
é, a indústria de cosméticos? Conheço veterinários que não tratam os animais tão
bem como nós!
- Desculpe, Mrs. Liebman, não quis ofendê-la. Perdoe a minha ignorância - disse
Carmine, em tom humilde. - Como é que abre a lata? - perguntou, para mudar de
assunto.
- Provavelmente há um instrumento próprio - disse ela, mais calma - , mas eu não
o tenho, por isso uso um par de tenazes velhas.
Parecia um alicate grande, excepto que as duas pontas côncavas eram oponíveis e
mordiam o que fosse colocado entre elas. Por exemplo a macia tampa metálica de
uma
lata de éter, como Sônia Liebman demonstrou em seguida. Carmine recuou perante o
cheiro que pareceu saltar da lata mais depressa do que um génio de uma garrafa.
- Não gosta? - perguntou ela, surpreendida. - Eu adoro.
- Sabe que quantidade de éter tem em armazém?
- Não com exactidão... não é um produto valioso nem importante. Quando vejo que
a prateleira está a ficar vazia, simplesmente encomendo mais. Uso-o para
descerebrações,
mas também é usado para limpar os instrumentos de vidro, se um investigador
pretende fazer um teste que exija a ausência completa de qualquer tipo de
resíduos.
- Porquê éter?
- Porque temos muito, mas alguns investigadores preferem clorofórmio. - Franziu
a testa e, subitamente, pareceu compreender. - Oh, estou a ver onde quer chegar!
O éter não dura muito no corpo, tenente, tal como não se agarra ao vidro. Bastam
algumas inalações para o dissipar, eliminando-o dos pulmões e da corrente
sanguínea. Não posso usar pentotal ou nembutal para anestesiar um animal para
descerebração, porque permanecem no cérebro durante horas. O éter desaparece...
puf.
- Não podia usar um gás anestésico?
Sônia Liebman pestanejou, como se estivesse espantada com a estupidez dele.
- Claro que podia, mas porquê? Os humanos colaboram e não têm garras nem presas.
Com os animais, é uma injecção de nembutal parentérico ou a câmara de éter.
- A câmara de éter é comum nos laboratórios de investigação? Foi a gota de água.
Ela virou-se e começou a arrumar uma série
de instrumentos cirúrgicos.
- Não faço ideia - respondeu, numa voz tão fria como o ar lá fora. - Inventei a
técnica sozinha e, para mim, isso é tudo o que interessa.
Sentindo-se como se devesse deixar a presença dela às arrecuas e fazendo vénias,
Carmine deixou Mrs. Liebman em brasa com a perfeita estupidez dos polícias.
-A Mercedes e a Francine foram brutalmente violadas com uma série de
instrumentos, e calculo que ele tenha feito o mesmo com a Margaretta, de início
- disse Patrick
a Carmine, Silvestri, Marciano, Corey e Abe. - Depois passou a um instrumento
novo que deve estar incrustado com farpas e bicos, talvez com uma lâmina na
ponta.
Desfez-lhe tudo por dentro... intestinos, bexiga, rins, chegou mesmo ao fígado.
Lacerações maciças e múltiplas. Ela morreu de choque antes de poder morrer de
hemorragia
interna. Havia um pouco de Demerol no seu sangue, portanto, para onde quer que
ele tenha levado a Margaretta depois de a raptar, era demasiado longe de Groton
para
poder contar apenas com o éter depois dos primeiros minutos. A propósito, não
encontrei quaisquer vestígios de éter na fronha.
- Esperavas encontrar? - perguntou Marciano.
- Não, mas, quando chegámos a casa dos Bewlee, consegui sentir o cheiro a éter
numa pequena prega da fronha.
- Ela perdeu sangue quando foi decapitada? - perguntou Abe.
- Muito pouco. Já estava morta há várias horas quando ele o fez. Uma vez que era
muito alta, parece que ele usou uma faixa em cada perna para a prender, para
além
da faixa do peito.
- Se ela morreu logo, porquê esperar treze dias para se livrar do corpo? O que é
que lhe fez? - perguntou Corey.
- Pô-la num congelador suficientemente grande para ela caber deitada.
- Já foi identificada? - perguntou Carmine. O rosto de Patrick contraiu-se.
- Sim, pelo pai. Ele estava tão calmo! Ela tem uma pequena cicatriz na mão
esquerda... uma dentada de cão. Assim que a viu, ele disse logo que era a filha,
agradeceu-nos
e saiu.
A sala ficou em silêncio. "Como é que eu lidaria com a situação se fosse
Sophia?", pensou Carmine. Sem dúvida que os outros homens prementes o sentiam
ainda mais
intensamente, pois todos eles tinham filhas que não tinham partido para a
Califórnia antes de os laços estarem devidamente forjados. "O Inferno é bom
demais para
este animal."
- Patsy - disse Carmine, quebrando o silêncio - , será possível que sejam dois?
- Dois? - repetiu Patrick, sem compreender. - Queres dizer dois assassinos?
- Sim.
Silvestri mordeu o charuto, fez uma careta e atirou-o para o cesto dos papéis.
- Dois como ele? Está a brincar, com certeza!
- Não, John, não estou. Quanto mais penso nesta série de raptos, mais fico
convencido de que seriam precisas duas pessoas para os levar a cabo. Daí a
pensar em dois
assassinos é um passo lógico.
- Um passo de mil metros, Carmine - disse Silvestri.
- Dois monstros? Como é que
se teriam encontrado um ao outro?
- Não sei, mas talvez através de algo tão comum como um anúncio nos
classificados pessoais do National Enquirer. Discreto, mas claro como água para
alguém com os
mesmos gostos. Ou talvez se conheçam há anos, talvez tenham até crescido juntos.
Ou talvez se tenham conhecido por acaso numa festa.
Abe olhou para Corey e revirou os olhos; estavam a imaginar terem de passar
vários dias nos arquivos do National Enquirer à procura de um anúncio com pelo
menos
dois anos.
- Estás a especular, Carmine - disse Marciano.
- Eu sei, eu sei! Mas esqueçam por um momento como eles se terão conhecido e
concentrem-se no que acontece à vítima. Percebi que tem de haver um isco. Estas
raparigas
não são do género de se deixarem atrair por um convite de um homem qualquer, nem
de cair na oferta de uma audição para o cinema, nenhum dos ardis que
funcionariam
em raparigas educadas com menos cuidado. Mas pensem como seria difícil um homem
só apanhá-las sem um isco!
Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com o seu raciocínio.
- Por exemplo, a Mercedes, que fechou a tampa do piano, despediu-se da Irmã
Theresa e saiu pela porta do anexo de música. E, em algum sítio isolado, sem
ninguém
por perto, a Mercedes vê algo tão irresistível que tem de se aproximar. Algo que
lhe fala ao coração, como um gatinho esfomeado ou um cachorrinho. Mas, como o
isco
tem de estar no sítio exacto, há mais alguém junto do animal. Enquanto a
Mercedes está envolvida, o outro homem ataca. Um para lançar o isco, outro para
a apanhar.
Ou pensem na Francine, algures perto das casas de banho, ou mesmo dentro delas.
Viu o isco, comoveu-se, foi apanhada. Ainda havia demasiadas pessoas dentro da
escola
para correrem o risco de a tirar das instalações, portanto colocaram-na dentro
do armário dos colchões. Seria muito mais fácil fazer uma coisa dessas à pressa
se
fossem dois! Era quarta-feira, os ginásios estavam desertos e a sala de química
é mesmo ao lado das casas de banho. No caso da Margaretta, a irmã estava a
dormir mesmo ao lado. Não usaram isco,
mas acham que o assassino correria o risco de a Linda acordar, quando todos os
seus planos são tão meticulosos? A segunda pessoa tinha um novo papel, vigiar
Linda
e agir se ela desse sinais de acordar. Como isso não aconteceu, dois homens não
teriam dificuldade em retirar uma rapariga tão alta pela janela, um do lado de
dentro,
outro do lado de fora.
- Por que raio estás a complicar tanto as coisas? - perguntou Patrick.
- As coisas são tão complicadas como têm de ser, Patsy. Se um assassino não é
suficiente, então temos de pensar que são dois.
- Concordo - disse Silvestri subitamente - , mas não vamos dizer uma palavra
sobre esta teoria do Carmine a ninguém fora desta sala.
- Mais uma coisa, John. O vestido de festa. Gostava de o mostrar a Desdemona
Dupre.
- Porquê?
- Porque ela faz uns bordados incríveis. O vestido não tem etiqueta, nunca
ninguém viu outro parecido, e quero tentar descobrir onde começar a procurar a
pessoa
que o fez. Isso significa que preciso de saber quanto custaria se fosse comprado
numa loja, ou quanto é que alguém como a Desdemona levaria por o fazer. Ela
aceita
encomendas, saberá dar-me uma ideia.
- Muito bem, assim que o Paul já não precisar dele... e se acha que ela não
falará nisso a ninguém.
- Confio nela.
⁂
O jornal mais lógico para procurar alguém que tivesse colocado um anúncio à
procura de um parceiro fosse para o que fosse, desde negócios a sexo ou
homicídio, era
o National Enquirer, que era lido em todo o país e estava disponível em qualquer
supermercado, junto das caixas, entre as pastilhas elásticas e as revistas.
Depois
de falar com três psiquiatras que se tinham especializado em homicídio, Carmine
pôde fornecer a Corey e Abe algumas palavras-chave, antes de os mandar ler os
classificados
entre Janeiro de 1963 e Junho de 1964. O Fantasma podia ter estabelecido a sua
macabra colaboração antes do desaparecimento da primeira rapariga, ou podia ter
percebido
como a tarefa seria mais fácil com um ajudante depois de dar início à carreira
de assassino.
A natureza do isco utilizado era bastante clara para Carmine: um objecto de
piedade, de apelo irresistível a uma jovem sensível e de bom coração. Assim,
abandonou
essa linha de pensamento para se dedicar a perceber que tipo de instalações
serviriam para prender as raparigas enquanto eram violadas, mortas e
armazenadas. A sensação
generalizada entre a polícia era de que as instalações seriam improvisadas;
apenas Patrick compreendia o que Carmine queria dizer quando afirmava que as
instalações
eram tudo menos improvisadas. Uma pessoa suficientemente obsessiva para alinhar um bilhete à esquadria, havia de querer que o seu "laboratório" fosse
perfeito.
Depois da descoberta do corpo de Margaretta Bewlee na propriedade de um Hugger,
os Huggers atropelaram-se para oferecer permissão à polícia para inspeccionar o
que
quisesse. Até Satsuma, Chandra e Schiller cederam. O túnel de cogumelos de
Maurice Finch era apenas isso; outra busca na casa mortuária de Benjamin Liebman
não resultou
em nada; o "ninho" de Addison Forbes consistia de duas divisões, uma por cima da
outra, atafulhadas de material de leitura profissional em prateleiras ou
empilhado;
a cave dos Smith era apenas o paraíso dos comboios; a cabana de Walter
Polonowski era um ninho de amor, com fotografias de Marian em poses decorosas
por todo o lado,
uma cama grande e uma pequena cozinha. Paola Polonowski aproveitara a
oportunidade e seguira a polícia até à cabana, e, em resultado dessa visita,
Polonowski vivia
agora com Marian e parecia muito mais feliz. O retiro de Hideki Satsuma era
perto da curva de Cape Cod em Orleans, um local desenhado por um arquitecto para
um homem
solteiro, que não continha nada mais censurável do que uma quantidade imensa de
pornografia com tendências violentas, mas não homicidas. O que não surpreendera
muito
Carmine, cuja estada no Japão lhe dera a conhecer a tendência japonesa para
pornografia ilustrada. O Dr. Nur Chandra estava apenas a ser "teimoso", como
diria Desdemona;
a sua actividade secreta na casa de campo era um computador de nova geração que
ele estava a tentar programar sem recorrer a um dos brilhantes estudantes de
Medicina
da Chubb, que financiavam o seu curso criando programas para fins científicos
específicos. Chandra estava tão certo do seu Prémio Nobel que não falaria do seu
trabalho
a ninguém, muito menos a um jovem estudante super-inteligente e ambicioso. A
floresta dos Ponsonbys era uma floresta; sem quaisquer cabanas, barracões,
celeiros
ou abrigos subterrâneos. E o pior segredo de Kurt Schiller era uma fotografia de
si próprio, com o pai e Adolf Hitler. O pai fora um capitão de submarino
condecorado,
convidado a conhecer o Fiihrer e que levara consigo o filho louro; Hitler adorava rapazinhos
louros com pais corajosos. Schiller Sénior fora ao fundo com o seu submarino
quando
encontrara uma carga de profundidade em 1944; Kurt tinha, na altura, dez anos.
Assim, segundo Silvestri, Marciano e os restantes membros da hierarquia superior
da polícia do Connecticut, as instalações do assassino deviam ser improvisadas.
Caso contrário, alguém teria reparado.
"Mas não são improvisadas", disse Carmine a si próprio. "Se eu fosse o fantasma,
o que quereria? Um ambiente imaculado, claro. Superfícies que pudessem ser
lavadas
à mangueirada, escrupulosamente limpas. Isso significava azulejos e não cimento,
metal e não madeira ou pedra. Quereria uma sala de operações. Dois Fantasmas
podiam
construir uma, se fossem hábeis de mãos; até podiam fazer uma instalação
eléctrica. O que provavelmente não conseguiriam fazer era canalizações, mas o
local tinha
de estar canalizado. Precisava de um abastecimento de água de alta pressão, um
escoamento funcional e ligação a um sistema de esgotos ou a uma fossa séptica.
Os
Fantasmas deviam querer também uma casa de banho, para si próprios, se não para
as vítimas. Essas usariam provavelmente arras-tadeiras e seriam lavadas com uma
esponja."
Assim, enquanto Abe e Corey esquadrinhavam os classificados pessoais do National
Enquirer, Carmine verificou as propriedades de todos os Huggers, em busca de
contas
de água ou electricidade acima do que seria de esperar. Infelizmente, os Huggers
mais prósperos viviam em locais onde podiam usar água de um furo e não
canalizada,
e ninguém tinha uma conta de electricidade excessiva. Um gerador? Era possível,
se conseguissem abafar o ruído. Depois dessa busca infrutífera, investigou todas
as empresas de canalizações e canalizadores independentes, de uma ponta à outra
do Connecticut. Procurava um trabalho lucrativo que tivesse envolvido a
instalação
de algo talvez descrito como um ginásio privado, ou uma instalação recreativa
luxuosa, ou mesmo uma piscina. Os que encontrou revelaram-se genuínos, todos nos condados de Fairfield e Litchfield. Sabia que
aquilo que procurava apontava para alguém com dinheiro, mas sempre achara que o
Fantasma
tinha muito dinheiro. Para onde quer que se virasse, o resultado era sempre o
mesmo: nada. Isso queria dizer uma de três coisas: primeira, que os dois
Fantasmas
eram capazes de fazer as suas próprias canalizações; ou, segunda, que tinham
contratado um canalizador, a quem tinham pago generosamente em dinheiro vivo
para ser
discreto e fugir aos impostos; ou, terceira, que os Fantasmas tinham arrendado
ou comprado instalações já adequadas aos seus objectivos, como uma clínica
veterinária
ou um consultório de cirurgia. Fez alguns telefonemas para tentar saber quantas
clínicas veterinárias ou consultórios tinham mudado de mãos em finais de 1963,
mas
as que tinham sido vendidas pertenciam a negócios legítimos. O habitual: nada,
nada, nada.
Como o vestido de renda cor-de-rosa estava adornado com duzentas e sessenta e
cinco pedras brilhantes, e cada uma destas tinha de ser examinada para confirmar
que
ostentava apenas um conjunto de impressões digitais, presumivelmente da
costureira, só seis dias depois Carmine pôde mostrar a peça de vestuário a
Desdemona.
Tocou à campainha, sentindo-se mais desastrado e ansioso do que no liceu, quando
a rapariga dos seus sonhos aceitara o seu convite para a levar ao baile de
finalistas.
Boca seca, coração na garganta - só lhe faltavam as flores.
- Desdemona, é o Carmine. Venho em trabalho. Não abra a porta, eu introduzo a
combinação.
- Como está? - perguntou ele, despindo os abafos e pousando a caixa do vestido
(merda, o que havia ela de pensar?) em cima da mesa.
Desdemona não parecia contente nem aborrecida de o ver.
- Estou bem, mas a morrer de tédio - disse. Depois apontou para a caixa do
vestido. - O que é isso?
- Algo que tive de garantir ao comissário que você não discutiria com ninguém.
Eu sei que não o fará, mas ele não. Talvez não saiba que a última vítima,
Margaretta
Bewlee, foi encontrada com um vestido de festa de criança. Não conseguimos
localizar a sua origem, mas pensei que, com o seu olho para este tipo de
trabalhos, pudesse
dizer-nos qualquer coisa sobre ele.
Em menos de um segundo ela abrira a caixa e retirara o vestido. Ergueu-o,
virou-o e, finalmente, estendeu-o sobre a mesa. - Presumo que esta rapariga não
foi cortada
aos pedaços?
- Não, faltava-lhe apenas a cabeça.
- Os jornais dizem que ela era alta. Isto não lhe devia servir.
" - E não servia, mas enfiaram-na nele, de qualquer maneira. Ela tinha os ombros
demasiado largos para que o assassino conseguisse abotoá-lo nas costas, o que
leva
à minha primeira pergunta... porquê botões? Hoje em dia é tudo com fecho éclair.
Paul tinha abotoado os botões, que cintilavam como jóias verdadeiras sob a luz
do candeeiro de mesa.
- Por isto - disse ela, tocando num dos botões. - Um fecho éclair teria
estragado o efeito. Estes brilham.
- Alguma vez viu um vestido assim?
- Apenas numa peça de teatro, quando era pequena, mas esse foi improvisado
devido ao racionamento de roupa. Este é muito pretensioso.
- É feito à mão?
- Até certo ponto, mas provavelmente não tanto como pensa. As pedras foram
cosidas à mão, sim, mas por um especialista que é capaz de o fazer mais depressa
do que
você almoça. A pessoa deve trabalhar à peça. Enfia a agulha no buraco, dá uma
volta à pedra com a linha, depois passa a agulha pela renda até à próxima
pedra...
está a ver?
Carmine estava a ver.
- Faltam algumas pedras, porque não foram bem cosidas, e as outras saem numa
fiada tão longa como a linha enfiada na agulha... vê?
- Pensei que tivesse sido o Paul, no laboratório, a fazer isso.
- Não, o mais provável é que tenha sido resultado de maus-tratos, e não acredito
que isso tenha acontecido num laboratório de patologia.
- Então o que está a dizer é que este vestido é acessível?
- Para quem tenha mais de cem dólares para dar por um vestido que a criança
provavelmente usará apenas uma ou duas vezes, sim. Tem tudo a ver com lucro,
Carmine.
Quem faz e vende estes vestidos sabe que o vestido será usado poucas vezes, por
isso corta em tudo o que pode para poupar despesas. O forro é sintético, não de
seda,
e o saiote é um tule barato enrijecido com goma espessa.
- E a renda?
- Francesa, mas não de primeira categoria. Feita à máquina.
- Dentro desses preços, acha que devíamos procurar na secção de crianças de
locais como o Saks e o Bloomingdale's em Nova Iorque? Ou talvez o Alexander's no
Connecticut?
- Numa loja ou armazém relativamente caro, com certeza. Eu classificaria este
vestido de vistoso, não elegante.
- Como o cavalo de estimação de Astor - disse ele distraidamente.
- Desculpe?
- É apenas um ditado - inspirou profundamente. - Estou perdoado?
O olhar dela suavizou-se, chegando mesmo a brilhar.
- Suponho que sim, seu idiota mal-educado. Carmine Delmonico a menos é pior do
que Carmine Delmonico a mais.
- Malvolio's?
- Sim, por favor!
- Mudando de assunto - disse ele mais tarde, enquanto bebiam café. - É tarde,
podemos conversar aqui. Perícia de mãos.
- Quem a tem e quem não a tem, no Hug?
- Exacto.
- Começando pelo professor?
- Como está ele, já agora?
- Fechado num manicómio de luxo algures para os lados de Bridgeport, em
Trumbull. Imagino que devem estar a adorá-lo como paciente. A maioria da
clientela consiste
de alcoólicos ou toxicode-pendentes em recuperação, para além de carradas de
neuroses ansiosas. Já o pobre professor teve um grave esgotamento... ilusão,
alucinações,
delírios, perda de contacto com a realidade. Quanto à sua perícia manual, é
considerável.
- Acha que seria capaz de fazer a instalação eléctrica e a canalização de uma
casa?
- Não lhe passaria pela cabeça fazê-lo, Carmine. Qualquer coisa que exija
trabalho manual duro seria considerada abaixo da sua categoria. O professor não
gosta de
sujar as mãos.
- Ponsonby?
- Era incapaz de mudar a anilha de uma torneira.
- Polonowski?
- É bastante dotado para pequenos trabalhos domésticos. Não tem dinheiro para
contratar um carpinteiro sempre que as crianças estragam uma porta, ou um
canalizador
quando os miúdos enfiam um boneco de peluche na sanita.
- Satsuma?
Ela revirou os olhos.
- Tenente, francamente] Para que acha que serve o Eido? E há também a mulher do
Eido, ela mata-se a trabalhar. E o Chandra tem um exército de lacaios de
turbante.
- Forbes?
- Diria que é competente com as mãos. Sei que faz alguns trabalhos em casa.
Tiveram tanta sorte, os Forbes! Quando a compraram, a taxa de juro era de dois
por cento,
e têm trinta anos para a pagar. Agora vale uma fortuna, claro... virada para a
água, oito mil metros quadrados, sem tanques de petróleo por perto.
- A transferência daqueles tanques para o fundo de Oak Street beneficiou todos
os que moram na margem leste. Finch?
- Constrói as suas próprias estufas e viveiros... parece que há uma grande
diferença, segundo ele me disse. Não se esquiva a escavar um túnel para
cogumelos. Mas
eu diria que a Catherine é ainda mais competente. Tem milhares de galinhas.
- Hunter e Ho, os engenheiros?
- Esses eram capazes de construir o Empire State Building com melhoramentos.
- Cecil?
- Isso não é uma acusação terrível? - perguntou ela, franzindo a testa. - Não
sei dizer, Carmine. Ele tem capacidades, mas na nossa mente temos tendência a
encará-lo
não só como um subalterno, mas como um subalterno negro. Não admira que nos
odeiem. Merecemos ser odiados.
- Otis?
- De momento, o Otis não pode levantar pesos. Parece que tem um princípio de
insuficiência cardíaca, por isso estou a tentar conseguir-lhe uma boa pensão
junto dos
Parsons. Pessoalmente, duvido que os seus problemas tenham a ver com o trabalho.
O seu pesadelo é o sobrinho da Celeste, o Wesley. O Otis morre de medo de que o
rapaz cause algum problema à Celeste. O Buraco e a Argyle Avenue são um barril
de pólvora.
- Espere pela Primavera - disse Carmine com expressão sombria. - Conseguimos
ganhar algum tempo, graças às condições meteorológicas, mas quando melhorarem
isto vai
explodir em todas as direcções.
- O marido da Anna Donato é canalizador.
- Anna Donato... refresque-me a memória.
- Cuida de todo o equipamento avariado, é muito boa.
- O lar Kyneton?
- Oh, céus! Nos dias que correm, o terceiro piso é um autêntico circo. A Hilda e
a Tâmara desembainharam as espadas. Essencialmente gritos, mas já houve uma
ocasião
em que se atiraram uma à outra, aos pontapés e às dentadas. Foram precisos os
quatro funcionários administrativos e eu para as separar. Estamos profundamente gratos por o
professor não estar presente para ver as mulheres no seu pior. No entanto, a
Hilda estará
fora do Hug antes do regresso do professor. O seu querido, adorado Keith
conseguiu a sociedade que queria em Nova Iorque.
- E o Schiller?
- Não tem jeito nenhum com as mãos. Nem sequer consegue afiar a lâmina de um
micrótomo. Atenção, também não precisa. Para isso é que servem os técnicos.
- E se fôssemos até minha casa beber um conhaque? Desdemona levantou-se.
- Estava a ver que nunca mais me convidava.
Carmine caminhou ao lado dela, novamente naquela neblina de êxtase que sentira
no liceu, quando o seu par do baile de finalistas lhe dissera que adorara a
noite
e lhe oferecera os lábios. Não que Desdemona estivesse prestes a oferecer-lhe os
lábios. Uma pena. Eram cheios e não estavam pintados. Começou a rir-se ao
recordar
o trabalho que tivera para limpar o batom vermelho vivo dos lábios.
- Qual é a piada?
- Nada, nada.
⁂
Na segunda-feira, dia vinte e quatro de Janeiro, o comissário Silvestri
organizou uma conferência discreta, para a qual convidou os vários líderes das
investigações
sobre o Fantasma em todo o Connecticut.
- Dentro de uma semana terão passado trinta dias - disse, perante uma sala cheia
de homens silenciosos - , e não fazemos a mínima ideia se o Fantasma ou Fantasmas
alteraram o padrão para uma vítima por mês, ou se ainda continuam no padrão de
uma vítima de dois em dois meses, tendo-se limitado a celebrar a entrada no Ano
Novo
com um ataque especial.
Apesar de a imprensa ainda se referir ao assassino como Monstro, a maior parte
dos polícias envolvidos aludia agora a ele como fantasma ou fantasmas. As ideias
de
Carmine tinham pegado, porque homens como o tenente Joe Brown de Norwalk
percebiam que faziam sentido.
- Entre esta quinta-feira, dia vinte e sete, e a quinta-feira seguinte, três de
Fevereiro, todos os departamentos terão uma equipa de vigilância a controlar
qualquer
suspeito que possam ter, vinte e quatro horas por dia. Se não obtivermos
qualquer resultado, pelo menos haverá um processo de eliminação. Se soubermos
que um suspeito foi vigiado e que não teve hipótese de iludir essa vigilância, podemos excluir
esse suspeito se desaparecer alguma rapariga.
- E se não desaparecer nenhuma rapariga? - perguntou um polícia de Stamford.
- Nesse caso, repetiremos o processo no final de Fevereiro. Concordo com o
Carmine quando diz que tudo o que sabemos aponta para muitas alterações... o
intervalo
temporal, um rapto nocturno, o vestido de festa, apenas decapitação... mas não
podemos ter a certeza se ele entrou permanentemente num novo padrão. Seja uma
pessoa
ou duas, o assassino está muito à nossa frente. Temos de continuar a trabalhar,
o melhor que sabemos.
- E se desaparecer uma rapariga e nenhum dos suspeitos estiver envolvido? -
perguntou um polícia de Hartford.
- Voltaremos a rever as nossas opções, mas de forma diferente. Alargamos o cerco
de modo a abranger novos suspeitos, mas não abandonamos os antigos. Passo a
palavra
ao Carmine.
Que tinha pouco mais a dizer, excepto em relação aos suspeitos actuais.
- Holloman encontra-se na posição singular de ter muito mais do que um suspeito
- disse. - Os restantes departamentos vigiarão violadores conhecidos com
historial
de violência, enquanto Holloman tem um grupo de suspeitos sem qualquer historial
conhecido de violação ou violência. Os funcionários do Hug e duas outras
pessoas.
No total, trinta e dois suspeitos. Não conseguimos manter tanta gente sob
vigilância vinte e quatro horas por dia, e é por isso que estou a pedir
voluntários dos
outros departamentos para nos darem uma ajuda. As nossas equipas têm de ser
compostas por homens experientes, que não adormeçam no serviço nem se distraiam
com os
seus pensamentos. Se algum de vocês puder dispensar homens de confiança,
agradeceríamos muito a ajuda.
E assim foi. Vinte e nove Huggers, mais o professor Frank Watson, Wesley le
Clerc e o professor Robert Mordent Smith, seriam vigiados dia e noite por homens
cuja
atenção não vacilaria. Uma tarefa formidável, mesmo em termos logísticos.
Um número surpreendente dos suspeitos de Holloman vivia na estrada 133 ou perto
dela, e a 133 era uma típica estrada estadual: uma faixa em cada sentido,
sinuosa,
com poucos abrigos; nem bermas largas, nem centros comerciais e respectivos
parques de estacionamento, nem áreas de descanso. Tudo o que havia na Boston
Post Road,
enquanto a estrada 133 deambulava de aldeia em aldeia, era uma ou outra rua
lateral de habitações. Tâmara Vilich e Marvin Schilman, ambos em Sycamore, perto
do centro
de Holloman, eram fáceis de vigiar, bem como Cecil e Otis, na Eleventh Street.
Mas os Smiths, os Ponsonbys, os Finches, Mrs. Polonowski, os Watsons, os
Chandras
e os Kynetons estavam todos, de alguma forma, ligados à estrada 133.
O motel duvidoso que ostentava o nome de Major Minor ficava adjacente a Ponsonby
Lane, na 133, e há muitos anos que não tinha tanta actividade nocturna como
prometia
ter na próxima semana.
Carmine, Corey e Abe dividiram a vigilância à residência dos Ponsonby em três
turnos de oito horas; Carmine escolhera os Ponsonby simplesmente por achar que
nenhum
dos suspeitos produziria qualquer resultado e, até aqui, os Ponsonby tinham
recebido menos atenções do que, por exemplo, os Smith ou os Finch. Encontraram
um local
para se esconderem, num maciço de loureiros a cinquenta metros do caminho de
acesso à residência Ponsonby, do lado da estrada 133, depois de estabelecerem
que Ponsonby
Lane era um beco sem saída e que a casa dos Ponsonby não tinha qualquer outro
acesso para veículos à excepção deste caminho.
Ele próprio estudara tudo antecipadamente, tendo chegado à conclusão de que os
Forbes seriam os mais difíceis de observar, devido à fachada voltada para a água
e
à encosta íngreme e com vegetação cerrada que levava de East Circle, a estrada da frente, até à água; a
casa ficava numa espécie de plataforma a meio. Os Smiths também não eram fáceis,
tendo em conta a colina onde ficava a casa, os bosques densos e aquele caminho
de acesso sinuoso. No entanto, o professor estava decididamente encarcerado no
hospício
de Marsh Manor, em Bridgeport, do lado de Trumbull, guardado pela polícia de
Bridgeport. Quanto aos Finches - ainda bem que praticamente os eliminara da sua
lista.
Tinham nada mais, nada menos, do que quatro portões para a estrada 133, e em
nenhum deles um carro podia esconder-se sem ser detectado por olhos atentos.
Norwalk
estava a tratar de Kurt Schiller e Torrington vigiava Walter Polonowski e a sua
amante na cabana a norte do estado.
Então por que razão Carmine achava que este imenso exercício de vigilância seria
infrutífero? Não sabia dizer porquê, honesta-mente, excepto que os Fantasmas
eram
fantasmas, e os fantasmas só se deixavam ver quando queriam ser vistos.
⁂
Tinham caído cinquenta e cinco centímetros de neve na quarta-feira anterior, sem
qualquer degelo em seguida, o que não era invulgar em Janeiro. Em vez disso, a
temperatura
caíra para seis graus negativos, ainda menos à noite. A vigilância tornou-se um
pesadelo, com os homens enrolados em todos os casacos de peles que esposas ou
mães
podiam doar, tapetes de pêlo, peles de urso, cobertores, várias camadas de lã,
roupa interior térmica, cobertores eléctricos que podiam ser ligados a uma
bateria
DC, botijas do século dezanove cheias de carvão de churrasco, tudo o que pudesse
afastar o frio. Pois, naturalmente, assim que o mercúrio caía abaixo dos dois
graus
negativos, nenhum motor podia continuar a trabalhar, porque o espesso vapor
branco que saía do tubo de escape trairia a presença de um carro ocupado. Os
homens com
mais sorte estavam encolhidos dentro de peles de caça do Alasca.
Carmine fazia o turno da meia-noite às oito da manhã, todas as noites, no seu
Buick de interiores de veludo pelos quais agradecia a todos os santos.
A noite de domingo para segunda-feira foi a mais fria de todas, com dezassete
graus negativos. Encolhido dentro de dois cobertores de caxemira, vigiou com as
janelas
abertas apenas o suficiente para impedir que os vidros embaciassem e os dentes a
baterem como castanholas.
Os loureiros escondiam-no bem mas, na quinta-feira, a primeira noite da sua
vigília, estivera preocupado com Biddy - a cadela poderia sentir a sua presença
e ladrar.
Mas tal não acontecera, nem então nem nesta noite. Apenas um homem descerebrado
se aventuraria a sair de casa, pensou; era a estação das lareiras, do calor
maravilhoso
dos aquecedores, de arranjar coisas para fazer em casa. Se os Fantasmas tinham
planeado um rapto, com certeza que este frio terrível os deteria.
A propriedade dos Ponsonby tinha sido uma dor de cabeça. Um bloco de dois
hectares de área, mais comprido do que largo, que descia numa inclinação íngreme
a partir
de uma crista que constituía também os limites na parte de trás; a antiga casa
ficava perto da estrada, rodeada por floresta pouco densa. A crista que se
estendia
por trás de todos os quarteirões desse lado de Ponsonby Lane era, na verdade, o
começo de uma reserva florestal de oito hectares, doada, não ao estado, mas ao
Conselho
do Condado de Holloman, por Isaac Ponsonby, avô de Charles e Claire. Isaac era
um apreciador de veados que odiava a caça; "estes oito hectares", dizia o seu
testamento,
"seriam reservados para um parque de veados dentro do condado, perto da cidade."
Para além de pregar alguns sinais de proibido caçar, o conselho não prestara
qualquer
atenção ao legado. Hoje continuava mais ou menos igual ao que fora no tempo de
Isaac, uma floresta relativamente densa, abundantemente povoada por veados.
Começava
na crista e descia por uma encosta até Deer Lane, uma curta viela com quatro
casas no lado oposto; o parque de veados continuava do outro lado do largo
existente
ao fundo de Deer Lane e impedira que a construção se estendesse mais. Embora
Carmine tivesse a certeza de que Charles Ponsonby não era atlético o suficiente
para
empreender uma caminhada dessas com dezassete graus abaixo de zero, tivera de
posicionar outros carros nas imediações: em Deer Lane, nas suas esquinas e na
estrada
133. Estes observadores informaram-no de que não havia mais nenhum carro
estacionado em Deer Lane.
A noite estava típica de condições tão árcticas: céu não propriamente negro, mas
de um azul profundo, salpicado de estrelas brilhantes, nem uma nuvem à vista.
Lindo!
Não se ouvia qualquer som, para além do bater dos seus dentes, não se viam
movimentos nem lanternas lá fora, não se ouvia o ranger dos pneus de um carro
num caminho
gelado.
E, como a inércia era desconhecida para Carmine, começou a brincar com uma ideia
que lhe viera à cabeça, exactamente no mesmo segundo em que uma estrela cadente
traçara o seu caminho ardente pela abóbada celeste.
"Olha para o lado religioso das coisas, Carmine. Pensa nas treze raparigas,
desde Rosita Esperanza, a primeira a ser raptada... dez delas eram católicas.
Rachel
Simpson era filha de um sacerdote episcopal. Francine Murray e Margaretta Bewlee
eram baptistas. Mas nenhuma das raparigas protestantes era de uma Igreja branca.
Então por que não juntar o catolicismo ao protestantismo negro? O que é que isso
te diz, Carmine? Que estamos a lidar com um fanático protestante branco, é o que
isto me diz. Não demos a devida importância à enorme preponderância de raparigas
católicas, talvez porque os Fantasmas pareceram desviar-se desse caminho com
Francine
e Margaretta. Mais de setenta e cinco por cento de raparigas católicas, a filha
de um sacerdote protestante negro, a filha de um casamento racialmente misto
e...
Margaretta. Margaretta, a única que não encaixa. Haverá algo sobre a família
Bewlee que não saibamos?"
Esquecido do frio, desejou impacientemente que a manhã chegasse, para o libertar
deste trabalho infrutífero e improdutivo e lhe permitir que fosse falar com Mr.Bewlee.
O seu rádio emitiu um som baixo e breve, o sinal de que um polícia estava a
aproximar-se do carro. Carmine olhou para o relógio e viu que eram cinco da
manhã, demasiado
tarde para acontecer qualquer coisa se o plano fosse um rapto nocturno. Uma
coisa era certa, os Ponsonbys não se tinham mexido.
Patrick entrou para o lugar do passageiro e estendeu-lhe uma garrafa-termo, com
um sorriso.
- O melhor do Malvolio's. Obriguei o Luigi a fazer uma cafeteira de café fresco
e os pãezinhos de passas tinham acabado de chegar.
- Patsy, adoro-te.
Beberam e comeram em silêncio durante cinco minutos, e depois Carmine contou ao
primo a sua nova teoria. Para sua desilusão, Patrick não lhe deu muito valor.
- O problema é que já estás envolvido neste caso há tanto tempo que esgotaste
todas as probabilidades e não te resta mais nada senão as improbabilidades.
- Mas há um preconceito religioso, e está relacionado com a raça!
- Concordo, mas não é a religião que interessa aos Fantasmas. O que lhes
interessa é o facto de as famílias tementes a Deus produzirem o tipo de
raparigas que eles
procuram.
- Os Bewlees estão a esconder alguma coisa, têm de estar - murmurou Carmine. - Se
assim não for, a Margaretta não encaixa.
- Ela não encaixa - disse Patrick em tom paciente - , porque a tua hipótese é de
loucos. Volta ao básico! Se pensares nos Fantasmas primeiro como violadores e só
depois como assassinos, então não verás um fanático religioso de qualquer cor ou
denominação, cristã ou não. Verás um ou dois homens que odeiam todas as
mulheres,
umas mais do que outras. Os Fantasmas odeiam a virtude, aliada à cor da pele,
aliada a um rosto, aliado a outras coisas que desconhecemos. Mas conhecemos a
parte
da virtude, da cor da pele, do rosto, da juventude. Nenhuma delas era
completamente branca e nenhuma delas será completamente branca, tenho a certeza
disso. Simplesmente
a melhor fonte de vítimas para eles está entre as latinas e católicas. As
crianças são educadas como se fossem mais novas do que realmente são,
rigorosamente vigiadas
e muito amadas. Tu sabes disso, Carmine! Mas as famílias não são recém-chegadas
à América, e penso que um fanático religioso escolheria imigrantes recentes como alvo...
para reduzir a afluência, espalhar a notícia entre quem quiser imigrar para cá
de que
as suas filhas serão violadas e chacinadas. A resposta está nos aspectos mais
básicos do caso.
- Mesmo assim, vou falar com Mr. Bewlee - disse Carmine obstinadamente.
- Se tens mesmo de ir, vai. Mas ela não vai encaixar porque o padrão que estás a
ver é fruto da tua imaginação. Estás a ser vítima de uma batalha contra o
cansaço.
Ficaram em silêncio; dentro de menos de três horas, o turno terminaria.
Pouco antes das sete da manhã o rádio emitiu um som diferente: aquele que queria
dizer "saiam discretamente de onde estão e vão para o ponto de encontro, porque
foi raptada uma rapariga".
O ponto de encontro de Carmine era o motel Major Minor, onde ele e Patrick
requisitaram o telefone da recepção. Era o próprio major que estava de serviço,
ansioso
por saber o que estava a acontecer. Todos os quartos tinham sido reservados pela
polícia de Holloman por uma soma que eles - e ele - sabiam ser exorbitante,
especialmente
uma vez que ninguém os usava. O letreiro de esgotado era mais uma camuflagem
para os carros estacionados, e o major não o colocaria a menos que fosse
verdade.
Enquanto Carmine falava, Patrick observava o major Minor pensando distraidamente
se, tal como tantas pessoas de nomes sugestivos, o jovem F. Sharp Minor teria
ido
para West Point decidido a alcançar o posto que tornaria o seu nome uma
contradição em termos(1). *1. Trocadilho com a expressão "Major Minor" que, à letra, pode ser traduzido
como "Maior Menor", sendo que "Major" é também um posto militar e "Minor" é o
apelido
da personagem. (N. da T.) Agora na casa dos cinquenta, com o nariz abatatado e vermelho de alguém que gostava demasiado da pinga, tinha a atitude de um
guerreiro de secretária: se os formulários estiverem correctamente preenchidos e
a papelada
estiver certa, façam o que quiserem, seja espancar um soldado ou roubar armas.
Este aspecto da natureza do major Minor ajudava num negócio onde os clientes
vinham
passar uma hora a meio da tarde; o parque de estacionamento principal era nas
traseiras, para que nenhuma esposa que fosse a passar na estrada 133 pudesse ver
o
carro do marido. A dada altura, Carmine estivera suficientemente desesperado
para considerar o major F. Sharp Minor como um suspeito, por nenhuma outra razão
senão
o facto de saber que todos os quartos tinham orifícios para espiar. O velho
vilão livrara-se das câmaras depois de um detective particular o ter apanhado a
filmar
o director de uma empresa com a secretária, mas o major Minor ainda podia olhar.
- Norwich - disse Carmine. - O Corey, o Abe e o Paul estarão aqui dentro de um
minuto - afastou-se mais do major. - Ela é de origem libanesa mas a família está
em
Norwich desde mil novecentos e trinta e sete. Chama-se Faith Khouri.
- São muçulmanos? - perguntou Patrick, incrédulo.
- Não, católicos da facção maronita. Duvido que exista uma Igreja Maronita, por
isso frequentam a Igreja Católica normal.
- Norwich é uma cidade bastante grande.
- Sim, mas eles vivem num local relativamente isolado. Mr. Khouri tem uma loja
de conveniência em Norwich. Mora a norte, a meio caminho de Willimantic.
Abe estacionou o Ford, seguido por Paul na carrinha preta de Patrick.
- Nem sei por que raio nos vamos dar ao trabalho de ir até lá - disse Corey
enquanto o Ford arrancava a uma velocidade normal; não ligariam a sirene nem as
luzes
até estarem bem longe de Ponsonby Lane.
"Esta", pensou Carmine com um suspiro, "é a observação de um homem desesperado.
Não sou o único com um caso sério de fadiga de combate. Estamos a começar a acreditar que nunca apanharemos os Fantasmas.
Esta é a quarta rapariga, desde que sabemos da existência deles, e não estamos
mais
perto de os apanhar. Corey já chegou ao limite das suas forças e eu não sei
quanto tempo me faltará para chegar ao limite das minhas."
- Vamos lá, Cor - disse, como se a observação de Corey fosse normal - , porque
temos de ver com os nossos próprios olhos o local do rapto. Abe, se seguirmos
para
norte pela 1-91 até Hartford, e depois virarmos para leste, a estrada será
melhor do que se formos pela 1-95 até New London.
- Não podemos - disse Abe brevemente. - Cinco camiões despistaram-se.
- Pelo menos - disse Carmine, instalando-se confortavelmente no seu adorado
assento - , o aquecimento está ligado. Vou dormir um bocadinho.
A residência dos Khouri ficava numa rua sinuosa, não muito longe do rio
Shetucket, e era tão encantadora como o cenário que a rodeava. A casa em si
mesma era tradicional,
mas construída em várias fases, o que conferia ângulos engraçados aos três
pisos. Entre a casa e a estrada havia um lago enorme, completamente gelado nesta
altura
do ano, bem como o regato que levava do lago ao rio gelado; fora limpo de neve
para ser usado como ringue de patinagem, mas um pequeno pontão de madeira
sugeria
também canoas no Verão. Alguns juncos chocavam uns contra os outros com um som
oco e, à distância, o Sol lançava um brilho dourado sobre os campos brancos e
lisos.
À volta da casa viam-se os esqueletos de Inverno de bétulas e salgueiros, e
havia um velho carvalho, enorme, no cimo de um pequeno monte do outro lado do
lago. Este
sugeria piqueniques à sombra, no Verão. Que ambiente podia ser melhor para uma
criança do que este perfeito sonho americano?
Carmine ficou a saber que havia sete filhos; apenas um rapaz de dezanove anos,
Anthony, não vivia em casa. O seu irmão Mark tinha dezassete, depois vinha
Faith,
com dezasseis, Nora com catorze, Emily com doze e Matthew, com dez; Philippa, de
oito anos, era a mais nova.
A intensidade do sofrimento da família impossibilitava falar com qualquer um
deles, incluindo o pai. Quase trinta anos de América não tinham eliminado a
reacção
levantina à perda de um filho. Quando Carmine conseguiu encontrar uma fotografia
de Faith, percebeu o que Patrick estivera a tentar fazê-lo ver em Ponsonby Lane.
Faith parecia irmã das outras vítimas, desde os caracóis negros aos olhos
grandes e aos lábios sensuais. Em termos de cor de pele, era a mais clara;
morena como
uma rapariga mediterrânica, do Sul de Itália ou da Sicília.
Patrick parecia derrotado quando encontrou Carmine cá fora, no alpendre frio.
- A neve está tão dura que eles conseguiram estender uma faixa de palha desde a
estrada ao alpendre das traseiras... parece um tapete barato - disse. - Limparam
e salgaram a estrada onde estacionaram, portanto não há marcas de pneus que não
tenham sido destruídas pela polícia local. Abriram a porta das traseiras com uma
chave ou uma gazua, e eu diria que eles sabiam exactamente onde era o quarto de
Faith. Tinha o seu próprio quarto... todos os filhos têm um quarto só para si...
O dela era no primeiro andar, que é onde todos dormem. Devem tê-la encontrado a
dormir. Os únicos sinais de luta são os lençóis ligeiramente agitados aos pés da
cama, talvez ela tenha esperneado um pouco. Depois levaram-na por onde tinham
entrado, por cima da palha, até à estrada e ao veículo deles. Por aquilo que
conseguimos
perceber, ninguém ouviu nada. Deram pela falta dela quando não apareceu para o
pequeno-almoço, que a mãe serve cedo nesta altura do ano. A viagem de carro até Norwich demora uma hora nestas estradas mal limpas. Os
miúdos vão com o pai e ficam na loja até à hora das aulas. A escola fica perto.
- Estás a fazer o meu trabalho, Patsy. Alguma ideia da altura dela? Peso?
- Só quando o padre Hannigan e as suas freiras chegarem. O sofrimento lá dentro
está descontrolado e ninguém me deixa dar um tranquilizante a ninguém. Estão a
arrancar
os cabelos aos punhados.
- E há sangue pelo ar, Mrs. Khouri insiste em arranhar o rosto. É por isso que
estou aqui fora, não lá dentro - disse Carmine com um suspiro. - Não que o
sangue
e os cabelos importem. Os Fantasmas não deixaram qualquer vestígio de uma coisa
ou outra.
- A família já está a dar a Faith como morta.
- E podes culpá-los, Patsy, honestamente? Nós temos sido tão úteis como tetas
num boi, e isto está a começar a afectar o Abe e o Corey. Estão a sofrer muito,
simplesmente
não o demonstram.
Patrick semicerrou os olhos e soltou um suspiro de alívio.
-Ali vem o padre e as freiras. Talvez eles saibam como acalmar estas pessoas.
Se não o conseguissem, pelo menos o padre Hannigan e as três freiras que o
acompanhavam puderam dar a Carmine as informações de que necessitava. Faith
media um metro
e cinquenta e cinco e pesava cerca de quarenta quilos. Esguia, ainda não muito
desenvolvida. Uma rapariga adorável, devota, com média excelente em todas as
disciplinas,
mais voltada para as ciências; a sua ambição era seguir Medicina. Estava
previsto que se juntasse às voluntárias do Hospital St. Stan no Verão, mas até
agora os
pais tinham-na mantido em casa; não queriam que ela se dedicasse às boas obras
demasiado cedo. Anthony, o irmão ausente, estava a estudar Medicina na
Universidade
Brown; parecia que todos os filhos tinham interesse pelas ciências humanas. A
família era muito unida e altamente respeitada. A loja ficava numa parte boa de
Norwich
e nunca fora assaltada, a casa nunca fora roubada, nenhum deles fora alguma vez
atacado ou molestado.
- Voltamos sempre à inocência irrepreensível, ao rosto, à idade, possivelmente à
religião - disse Carmine a Silvestri quando regressou a Holloman. - Ultimamente,
nem a cor da pele nem o tamanho têm preocupado os Fantasmas, mas temos sempre os
três primeiros aspectos e, na maioria dos casos, o quarto. O presente que a mãe
de Margaretta Bewlee lhe deu pelo seu décimo sexto aniversário foi uma ida a um
salão de beleza, para esticar o cabelo e o pentear como a Dionne Warwick... ela
ia
cantar uma das músicas da Dionne num concerto da escola. Essa notícia fez-me
pensar, mas depois de verificar percebi que não evidenciava qualquer... como
dizer?...
qualquer declínio de virtude. Embora a Margaretta seja a que me faz mais
confusão, John. É a única pérola negra numa colecção de pérolas cremes.
Demasiado alta,
demasiado escura, demasiado ina-propriada.
- Talvez os fantasmas se estejam a aproveitar da onda racial. Não resta dúvida
de que as suas actividades não estão a ajudar em nada a situação.
- Então por que não outra vítima igualmente negra, agora? As palavras cruzadas
do Times tinham um problema há pouco tempo, a pista era "voltar atrás". A
solução
era "rejeitar". Quando a vi ri até às lágrimas. Para onde quer que me vire, sou
rejeitado.
Silvestrí não disse o que estava a pensar: "precisas de umas longas férias no
Hawai, Carmine. Mas ainda não. Não posso dar-me ao luxo de o retirar deste caso.
Se
ele não conseguir resolvê-lo, ninguém conseguirá."
- Está na altura de eu dar uma conferência de imprensa - disse, - Não tenho nada
para dizer aos malditos, mas tenho de me penitenciar por isso em público. -
Pigarreou
e roeu a ponta de um charuto muito maltratado. - O governador concorda que eu
devo penitenciar-me em público.
- Como um favor a Hartford?
- Não, ainda não. Como julga que eu passo a maior parte dos dias? Ao telefone
com Hartford.
- Nenhum dos Huggers pôs um pé fora de casa a noite passada. Embora isso não
signifique que eu não tenciono vigiá-los dentro de trinta dias, John. Ainda
tenho a
sensação de que o Hug está muito envolvido nisto, e não apenas como objecto de
vingança - disse Carmine. - Que percentagem da verdade vai dizer à imprensa?
- Um pouco disto, um bocadinho daquilo. Nada sobre o vestido de festa de
Margaretta. E nada sobre a possibilidade de serem dois assassinos.
⁂
O salão da Câmara Municipal de Holloman era famoso pela sua acústica e, desde
que os deveres administrativos do presidente tinham sido transferidos para os
Serviços
Municipais, uma década antes, o salão da Câmara de Holloman fora deixado para
aquilo em que era melhor: receber os maiores virtuosos e orquestras sinfónicas
do mundo.
Por trás do auditório havia uma sala de ensaios concebida para os artistas
gravarem e ensaiarem; os suportes para pautas e cadeiras, dispostos em filas
semicirculares,
não sugeriam o assassinato de nada mais horrível do que a música. John Silvestri
subiu ao pódio do maestro, no seu melhor uniforme, com a Medalha de Honra ao
pescoço.
Isto, mais as condecorações ao peito, dizia que ele não era um homem qualquer.
Apareceram cerca de cinquenta jornalistas, na sua maioria de jornais e revistas,
uma equipa de televisão da estação local de Holloman e um repórter da rádio
whmn.
Os maiores jornais diários nacionais enviaram correspondentes; embora o Monstro
do Connecticut fosse notícia, um editor astuto compreendia que este exercício
policial
não ia resultar em quaisquer desenvolvimentos sensacionais. O resultado da
conferência de imprensa seria apenas uma oportunidade para escrever editoriais
contundentes
sobre a incompetência policial.
Mas Silvestri tinha muito jeito para falar em público, principalmente quando se
estava a penitenciar. Ninguém, pensou Carmine enquanto o ouvia, se penitenciava
de
forma mais graciosa, com maior prazer aparente em fazê-lo.
- Apesar das temperaturas glaciais, vários departamentos policiais em todo o
estado mantiveram um total de noventa e seis suspeitos sob vigilância, vinte e
quatro
horas por dia, desde a passada quinta-feira até ao rapto de Faith Khouri. Trinta
e duas destas pessoas em Holloman ou nos arredores. Nenhuma delas poderia ter
estado
envolvida no rapto, o que significa que não estamos mais perto de conhecer a
identidade do homem a quem vocês chamam o Monstro do Connecticut, mas a quem nós
agora
chamamos o Fantasma.
- Bom nome - disse a jornalista criminal do Holloman Post. - Têm alguma evidência
que implique alguém? Seja quem for?
- Acabei de responder a essa pergunta, Mrs. Longford.
- Este assassino... o Fantasma, gosto do nome... deve ter um local especial para
onde leva as suas vítimas. Não está na altura de começarem a procurá-lo melhor?
Revistando instalações, por exemplo?
- Não podemos revistar qualquer local habitado sem um mandato, minha senhora,
como sabe. E mais, a senhora seria a primeira a cair-nos em cima se o
fizéssemos.
- Sob circunstâncias normais, sim. Mas isto é diferente.
- Diferente como? Por causa da natureza horrível dos crimes? Concordo, enquanto
pessoa, mas como autoridade não posso concordar. Uma força policial pode ser um
braço
vital da lei, mas, numa sociedade livre como a nossa, é também limitada pela
própria lei que existe para servir. O povo americano tem direitos
constitucionais que
nós, a polícia, somos obrigados a respeitar. Uma suspeita sem provas não nos dá
o poder de entrar pela casa de uma pessoa à procura de evidências que não
conseguimos
encontrar noutro lado. As evidências têm de surgir primeiro. Temos de apresentar
um caso comprovativo ao braço judicial da lei, de modo a obtermos permissão para investigar. As meras palavras não podem persuadir nenhum juiz a emitir um
mandato sem factos concretos. E nós não temos factos concretos, Mrs. Longford.
Os restantes jornalistas davam-se por satisfeitos de ser Mrs. Diane Longford a
ter o trabalho todo; as perguntas dela não resultariam em nada, de qualquer
modo,
e todos sentiam o cheiro a café e donuts proveniente da mesa ao fundo do salão.
- E por que razão não têm factos concretos, senhor comissário? Quer dizer, é
difícil perceber como é que tantos homens experientes estão a investigar estes
homicídios
desde princípios de Outubro sem conseguirem encontrar um único facto concreto!
Ou está a dizer que o assassino é um fantasma a sério!
A ironia não afectava Silvestri mais do que a agressividade ou o charme;
prosseguiu, impassível.
- Não, não é um fantasma a sério, minha senhora, mas sim alguém muito mais
perigoso, muito mais mortífero. Pense no nosso - assassino como um felino
selvagem muito
forte... um leopardo, por exemplo. Está confortavelmente instalado numa árvore,
na orla da floresta, perfeitamente camuflado, observando uma manada de veados a
pastar
que se vai aproximando da floresta e da sua árvore. Para um pássaro nessa mesma
árvore, os veados são todos iguais. Mas o leopardo vê cada veado de maneira
diferente
e selecciona um, em particular, como o seu alvo. Para ele, aquele veado é mais
apetitoso, mais suculento do que os outros. Oh, o leopardo é muito paciente! Os
veados
passam por baixo da árvore mas ele não se mexe, e os veados não o conseguem ver
nem cheirar em cima do ramo... e depois o seu veado passa debaixo da árvore. O
ataque
é tão rápido que os restantes veados mal têm tempo de começar a correr antes de
o leopardo voltar a subir à árvore com a sua presa, agora impotente, de pescoço
partido.
Silvestri respirou fundo; qaptara a atenção da audiência. - Admito que a
metáfora não é brilhante, mas uso-a para ilustrar a magnitude daquilo que
enfrentamos com
o Fantasma. De onde nos encontramos, ele é invisível. Tal como os veados não pensam em olhar para cima,
tal como os cheiros que o vento leva até aos veados têm origem apenas ao nível
deles
e não no alto de uma árvore, o mesmo se passa connosco. Ainda não nos ocorreu
procurá-lo no sítio certo porque não fazemos ideia de qual será esse sítio, não
sabemos
que tipo de local ele utiliza. Podemos passar por ele na rua todos os dias... a
senhora pode passar por ele na rua todos os dias, Mrs. Longford. Mas o rosto
dele
é vulgar, o seu passo é normal... tudo nele é normal. À superfície, é apenas um
gato, não um leopardo. Por baixo, é Dorian Gray, Mr. Hyde, os rostos de Eva, a
encarnação
de Satã.
- Nesse caso, que protecção pode a comunidade ter contra ele?
- Eu diria vigilância, mas essa vigilância não o impediu de raptar raparigas de
um tipo específico mesmo depois de termos inundado o Connecticut de boletins e
avisos.
No entanto, parece-me evidente que o assustámos, que o forçámos a pôr de lado os
raptos em plena luz do dia, que o obrigámos a agir agora a coberto da noite. Não
é nada de que possamos vangloriar-nos, porque não conseguimos impedi-lo de agir.
Nem sequer abrandar. Mas é um raio de esperança. Se ele está mais assustado do
que
antes, e se mantivermos a pressão, acabará por cometer erros. E, senhoras e
senhores da imprensa, têm a minha palavra de que não desperdiçaremos esses
erros. Eles
farão de nós o leopardo em cima da árvore, e dele um veado em particular.
- Ele saiu-se bem - disse Carmine a Desdemona nessa noite. - O correspondente da
Associated Press perguntou-lhe se tencionava concorrer ao cargo de governador
nas
próximas eleições. "Não, Mr. Dalby" respondeu ele, com um sorriso de orelha a
orelha. "Em comparação com os cargos governamentais, a sina de um polícia é
muito melhor,
mesmo com fantasmas."
- As pessoas reagem-lhe bem. Quando o vi no noticiário das seis, fez-me lembrar
um ursinho de peluche velho e gasto.
- Mais importante ainda, o governador gosta dele. Não se pode tratar heróis de
guerra como idiotas incompetentes.
- Ele deve ter sido um herói de guerra já de idade avançada.
- É verdade.
- Pareces um pouco fanhoso, Carmine. Estás a ficar constipado?
- perguntou ela, pegando noutra fatia de piza. Oh, era muito bom estar novamente
de boas relações com ele!
- Depois de passarmos horas em carros sem aquecimento, com a temperatura abaixo
de zero, estamos todos a ficar constipados.
- Pelo menos não precisaram de me vigiar a mim.
- Mas vigiámos, Desdemona.
- Oh, a quantidade de homens necessária! - murmurou ela, o seu lado de gestora
assombrado pela magnitude da tarefa, como sempre. - Noventa e seis pessoas?
-Sim.
- Com quem é que ficaste?
- É informação confidencial, não posso responder. O que se tem passado no Hug
desde que a Faith desapareceu?
- O professor continua no manicómio. Quando descobrir que o Nur Chandra aceitou
uma colocação em Harvard, vai ter outro esgotamento. É pior do que perder a sua
estrela
mais brilhante, porque o contrato do Nur diz que os macacos vão com ele. Acho
que o Nur convidou o Cecil para se mudar também para o Massachusetts... o Cecil
está
doido de alegria. Acabou-se a vida no gueto. Os Chandras compraram uma
propriedade luxuosa e o Cecil terá direito a uma casinha encantadora. Estou
contente por ele,
mas tenho muita pena do professor.
- Parece-me estranho. Um contrato que o deixa levar coisas que foram pagas por
outras pessoas? Isso é como um congressista levar a espingarda Remington da
parede
do seu gabinete quando não é reeleito.
- Quando o Nur veio para o Hug, o professor tinha todas as razões do mundo para
ignorar essa estipulação. Sabia que o Nur nunca encontraria outro local tão
perfeito
como o Hug para as suas pesquisas. E isso foi verdade, até este maldito
assassino monstruoso aparecer.
- Sim, quem podia ter previsto uma coisa destas? Estou a ficar tão paranóico que
isso me parece um motivo. Afinal de contas, há um Prémio Nobel em jogo.
- Sabes - disse ela com ar pensativo - , sempre tive o estranho pressentimento de
que o Nur Chandra não ganhará o Prémio Nobel. De alguma maneira, tem sido tudo
demasiado
fácil. O único macaco que mostrou qualquer sinal de um estado epiléptico
condicionado foi o Eustace, e, em ciência, é muito perigoso depositar todas as
esperanças
numa única estrela. E se o Eustace sempre tivesse tido tendências epilépticas, e
tenha sido algo completamente distinto dos estímulos aplicados pelo Nur a trazer
essas tendências ao de cima? Já aconteceram coisas mais estranhas.
- És muito mais inteligente do que eles todos juntos - disse Carmine, em tom
apreciativo.
- Suficientemente inteligente para saber que eu não vou ganhar Prémio Nobel
nenhum!
Mudaram-se para as grandes poltronas. Geralmente Carmine sentava-se ao lado de
Desdemona, mas esta noite sentou-se em frente dela, pensando que olhar para o
seu
rosto razoável e sensato poderia animá-lo um pouco.
No dia anterior fora a Groton falar com Edward Bewlee, um homem tão razoável e
sensato como Desdemona. Mas a conversa não resolvera mistério nenhum.
- A Etta estava decidida a ser uma estrela de rock famosa - dissera Mr. Bewlee.
- Tinha uma voz maravilhosa e dançava bem.
E dançava bem. Teria sido isso que apelara aos Fantasmas? De volta ao presente -
ao rosto razoável e sensato de Desdemona.
- Mais alguma notícia da Frente Hug?
- perguntou.
- O Chuck Ponsonby está a substituir o professor. Não é uma das minhas pessoas
preferidas, mas pelo menos é comigo que vem falar quando tem problemas, não com
a
Tâmara. Segundo parece, ela tentou falar com o Keith Kyneton e ele bateu-lhe com
a porta do gabinete na cara. Portanto é decididamente a Hilda que ostenta a
coroa
de louros do vencedor. A aparência dela melhorou incomensuravelmente... um fato
preto de bom corte, blusa de seda encarnada, sapatos italianos, penteado novo,
maquilhagem
como deve ser... e, acredites ou não, lentes de contacto em vez de óculos!
Parece a esposa perfeita de um proeminente neurocirurgião.
- Pronta para se exibir em Nova Iorque - disse Carmine com um sorriso. - É bom
saber que alguma coisa do que eu disse ao Kyneton penetrou naquela cabeça oca. -
Agitou-se
na poltrona. - Corre um rumor pelo prédio de que o Satsuma não vai renovar o
contrato de arrendamento da cobertura nem do apartamento do Eido.
- Pode muito bem ser verdade. Ele está a hesitar entre as ofertas das
universidades de Stanford, estado de Washington e Georgia. O que provavelmente
quer dizer que
acabará em Columbia.
- Como é que chegas a essa conclusão?
- O Hideki é um homem urbano e, se ficar em Nova Iorque, não precisa de abrir
mão do seu refúgio de fim-de-semana em Cape Cod. É uma viagem longa, sim, mas
praticável.
Teria ido para Boston, se o Nur Chandra não se tivesse antecipado a ele com a
ida para o Massachusetts. Outra universidade que não fosse Harvard seria andar
para
trás. E contudo, para mim, o Hideki é uma melhor aposta para o Prémio Nobel. Os
investigadores que dão nas vistas podem fascinar a imprensa científica, mas
raramente
estão à altura da publicidade - levantou-se agilmente. - Obrigada pela piza,
Carmine.
Sem encontrar uma resposta adequada, ele acompanhou-a até à porta de aço, dois
andares mais abaixo, com a sua fechadura e combinação, certificou-se de que ela
estava
devidamente fechada em casa e voltou aos seus domínios sentindo-se curiosamente
deprimido.
Estivera quase a perguntar-lhe se haveria alguma hipótese de avançarem com a
relação para um nível mais íntimo, mas as palavras tinham sido silenciadas pela
saída
apressada e decidida de Desdemona.
A verdade era que as intenções de Carmine não tinham sido suficientemente óbvias
para que Desdemona sonhasse sequer que existiam, e, uma vez que também ela
nutria
fortes sentimentos por ele, não se atrevia a demorar-se muito na sua presença
depois de terem dito tudo o que havia a dizer sobre o Hug e de terem esgotado os
tópicos
de conversação inocentes. O que ela temia era um silêncio prolongado, pois não
tinha a certeza de o conseguir aguentar.
Além disso, estava muito cansada. Depois de uma série de discussões acaloradas,
conquistara o privilégio de retomar as suas caminhadas de fim-de-semana - na
condição
de ser conduzida até ao ponto de partida, num carro-patrulha cujos polícias se
certificavam de não estarem a ser seguidos, e depois apanhada pelo mesmo carro
num
ponto que ela designasse como a sua meta. Assim, caminhara no canto noroeste do
estado no sábado e no domingo, e estava dorida devido ao que se tornara
entretanto
um exercício pouco habitual. O Trilho Apalache tinha os seus encantos, mesmo no
Inverno, mas houvera alturas em que se arrependera de não ter levado os sapatos
de
neve.
Assim, depois de um longo banho de imersão, limpou-se e vestiu a sua
indumentária habitual para dormir- um pijama de homem de flanela e um par de
meias grossas de
lã. Um termostato a produzir ar quente não era para Desdemona! Nesse aspecto,
embora não o soubesse, era muito parecida com Carmine Delmonico.
Adormeceu assim que se deitou, sonhando sonhos que não recordava quando acordou,
sabendo apenas que algum barulho estranho a despertara quando o despertador
marcava
as quatro da manhã. Um raspar, com um leve guincho.
Sentou-se muito direita e começou a pensar que não fora o barulho que a
acordara, mas sim algum pressentimento primitivo de perigo iminente. A porta do
quarto estava
aberta, deixando ver a sala de estar do pequeno apartamento, mergulhada na
escuridão. Tal como o quarto. O sono de Desdemona não era assombrado por
qualquer terror
que lhe causasse medo do escuro. No entanto, uma faixa de luz proveniente do
corredor exterior tremeluziu brevemente com uma sombra no meio, da altura e do
formato
de uma pessoa, desaparecendo quase de imediato quando a porta da rua se fechou.
Não estou sozinha. Ele está aqui dentro, veio matar-me.
Numa cadeira perto da cama estavam as peças pequenas para lavar - cuecas,
soutien, meias, um par de luvas de lã. Desdemona saiu da cama sem um ruído e
aproximou-se
da cadeira, procurando as luvas. Quando as encontrou, calçou-as e, com cuidado
para se manter fora do alcance de qualquer reflexo de luz, dirigiu-se à porta de
correr
da varanda, fechada e trancada com uma barra de ferro encaixada na calha.
Baixou-se, retirou a barra, abriu o trinco e correu a porta apenas o suficiente
para sair
para a varanda, uma prateleira de betão com um corrimão e barras de ferro com
pouco mais de um metro de altura.
Carmine morava dois andares mais acima, no lado do Edifício Nutmeg Insurance
virado para nordeste, quase exactamente oposto ao local onde Desdemona se
encontrava.
Isso significava que, para chegar até ele, tinha de subir dois andares e
contornar uma dúzia de apartamentos. Devia subir primeiro os dois andares, ou
passar entre
as varandas do seu piso até estar directamente por baixo da dele? "Não, primeiro
para cima, Desdemona! Sai deste piso o mais depressa possível. Mas como?"
Cada piso ocupava três metros de espaço vertical: dois metros e setenta e cinco
da altura dos tectos, mais vinte e cinco centímetros da placa de betão que
formava
o chão do andar de cima, com os respectivos canos de água e esgotos e condutas
eléctricas. Era demasiado alto para lá chegar...
O vento assobiava, mas, depois de fechar a porta de correr, os vidros duplos não
deixariam passar nada para o interior. O frio cortante penetrava-lhe no pijama
como
se este fosse feito de gaze. Só tinha uma coisa a fazer. Pôs-se de pé em cima do
corrimão da varanda, parou por um instante, vacilando dez andares acima do solo
enquanto o vento soprava contra ela, depois esticou os braços para agarrar a
parte inferior da balaustrada do andar de cima. Pronto! Apenas a sua altura e
uma tendência
que possuía desde adolescente para a ginástica faziam com que fosse possível,
mas ela tinha essa altura, essa tendência. Segurando com ambas as mãos a parte
de baixo
da balaustrada superior, tirou os pés do corrimão, contorceu-se no ar até ter o
corpo na perpendicular e girou as pernas de modo a segurar-se ao corrimão com os
joelhos. Mais um impulso e estava na varanda por cima da sua.
Um já estava, faltava mais um. Tinha os dentes a bater e sentia o corpo gelado
por baixo do calor gerado pelo exercício; sem parar para descansar, subiu para o
corrimão
e estendeu as mãos para a parte de baixo da balaustrada no piso de Carmine.
"Força, Desdemona, tens de o fazer enquanto consegues!" Novamente para cima,
para a segurança
da varanda dois pisos acima do seu.
Agora tudo o que tinha de fazer era passar de varanda para varanda no mesmo piso
- o que era mais fácil de dizer do que de fazer, pois o intervalo entre uma e
outra
era de quase três metros. Decidiu ultrapassar a distância equilibrando-se em
cima do corrimão e saltando com impulso para a varanda seguinte. Quantos saltos
seriam
precisos? Doze. E os seus pés estavam a ficar dormentes, as mãos dentro das
luvas de lã começavam a perder a sensibilidade. Mas era possível - tinha de ser,
tendo
em conta o que a esperava lá em baixo se hesitasse. Como podia ter a certeza de
que ele não era pelo menos tão ágil como ela?
Finalmente chegou; estava na varanda de Carmine e começou a dar murros na porta
de correr que dava para o quarto dele.
- Carmine, Carmine, deixa-me entrar! - gritou.
A porta abriu-se de rompante; Carmine, vestido apenas com boxers, apreendeu num
milissegundo a presença dela e puxou-a para dentro.
Num instante tinha tirado o edredão da cama e enrolara-o à volta dela.
- Ele está no meu apartamento - conseguiu ela dizer.
- Fica aqui e concentra-te em aquecer - disse ele, levantando o termostato e
desaparecendo, ainda a puxar as calças para cima.
- Olhem para isto - disse Carmine a Abe e Corey vinte minutos depois, apontando
para a porta aberta do apartamento de Desdemona.
A fechadura de aço temperado fora cortada; uma pequena pilha de aparas de ferro
jazia no chão, por baixo do local onde a fechadura estaria se a porta estivesse
fechada.
- Céus! - murmurou Abe.
- Temos de aprender tudo de novo - disse Carmine com expressão sombria. - Se
isto prova alguma coisa, é que as nossas noções de segurança não prestam para
nada.
Para o manter de fora, teríamos de ter sobreposto o metal no exterior da porta,
mas não o fizemos. Oh, ele desapareceu... desapareceu assim que viu que
Desdemona
não estava, penso eu. Esfumou-se como um fantasma.
- Como diabo é que ela conseguiu passar por ele? - perguntou Corey.
- Saiu para a varanda, escalou dois andares e depois passou de varanda para
varanda até ao meu apartamento. Ouvi-a a bater na minha porta.
- Deve estar maltratada, com este tempo... corrimões de metal, o vento...
- Nem pensar! - disse Carmine, com algum orgulho na voz. - Calçou luvas e tinha
meias de lã.
- Uma mulher e pêras - disse Abe em tom reverente.
- Tenho de voltar para junto dela. Façam o que é preciso fazer, rapazes.
Rebusquem o prédio, desde a cave à cobertura. Mas ele já cá não está.
Desdemona ainda estava enrolada no edredão e Carmine desenrolou-a.
- Sentes-te melhor?
- Como se me tivessem arrancado os braços das articulações, mas... oh, Carmine,
consegui fugir! Ele estava lá, não estava? Não foi apenas a minha imaginação?
- Esteve lá, sim, mas já desapareceu. Cortou a fechadura com algo como uma serra
de relojoeiro com ponta de diamante... fina, estreita, pode cortar tudo, se for
usada por um especialista. Portanto sabemos que ele é especialista. Não se
apressou, para não correr o risco de a partir. O filho da mãe! Riu-se da nossa
segurança.
- Carmine ajoelhou-se para lhe descalçar as meias e examinar a pele dos pés. -
Deste lado sobreviveste. Agora vamos ver as mãos - também tinham sobrevivido. - És uma mulher extraordinária, Desdemona.
Sentindo-se aquecer, ela sorriu.
- Esse é um elogio que vou guardar para sempre, Carmine. - Ddepois estremeceu. -
Oh, mas estava tão aterrorizada! Vi apenas a sombra dele quando abriu a porta da
rua, mas tive a certeza de que viera para me matar. Mas porquê? Porquê eu?
- Talvez para me atingir a mim. Para atingir a polícia. Para provar que se, e
quando, decidir agir, ninguém o pode deter. O problema é que estamos habituados
a criminosos
vulgares, homens que não teriam inteligência nem paciência para tentar uma
proeza como serrar uma fechadura de cinco centímetros. Com dentes de diamante ou
não,
deve ter demorado várias horas.
De súbito, agarrou-a e puxou-a para si num abraço quase desesperado.
- Desdemona, Desdemona, quase te perdi! Tiveste de te salvar a ti própria
enquanto eu ressonava! Oh, meu Deus, morria se te perdesse!
- Não vais perder-me, Carmine - disse ela com um suspiro, aninhando a cabeça no
ombro dele, beijando-o no pescoço. - Estava aterrorizada, sim, mas não me passou
pela cabeça outra coisa senão vir para junto de ti. Sabia que estaria em
segurança contigo.
- Amo-te.
- E eu a ti. Mas sentir-me-ia ainda mais segura se me levasses para a cama -
disse Desdemona, afastando o rosto do pescoço dele. - Há partes de mim que não
descongelam
há anos.
⁂
Em meados de Fevereiro surgiu o primeiro degelo. Começou a chover intensamente
numa sexta-feira e só parou já a noite de domingo ia adiantada. Todas as partes
baixas
do Connecticut estavam submersas em água gelada que tentava, em vão, escoar. A
casa dos Finch ficou isolada da estrada 133 exactamente como Maurice Finch
descrevera
a Carmine; o ribeiro de Ruth Kyneton subira tanto que ela tinha de estender a
roupa de galochas; e o Dr. Charles Ponsonby entrou no Hug a queixar-se
amargamente
de uma adega inundada.
Frustrado pela intensidade do dilúvio e atormentado pelos músculos das pernas
perros, na segunda-feira de madrugada Addison Forbes decidiu dar uma pequena
corrida
pela zona de East Holloman, e depois ir até ao seu pontão à beira de água. Aí
construíra uma casa de barco para o seu pequeno barco, embora fossem poucas as
vezes
em que o seu estado de espírito o levava a lançá-lo para um passeio de lazer no
porto de Holloman. Nos últimos três anos, o lazer tornara-se para Addison Forbes
um pecado, se não mesmo um crime.
Um carro-patrulha suspeito estava estacionado perto do íngreme caminho de acesso
à casa dos Forbes, e os seus ocupantes fizeram-lhe um aceno com expressões
admiradas
quando passou por eles, decidido a concluir a sua corrida. Estava banhado em suor quando começou a
descer a encosta por entre a vegetação; três dias de chuva tinham derretido a
neve congelada,
daí as inundações por todo o estado, e o solo debaixo dos pés de Forbes estava
saturado, escorregadio. Anos antes, plantara uma fileira de forsítias ao fundo
da
encosta - como era maravilhoso quando aquelas percursoras da Primavera
rebentavam em botões amarelos!
Mas em Fevereiro a sebe de forsítias era apenas um conjunto de paus rígidos e
castanhos e, quando Forbes reparou numa mancha lilás no solo por baixo da sebe,
estacou.
Uma fracção de segundo depois viu os braços e pernas que emergiam da mancha
lilás e ouviu o seu coração traiçoeiro a bater-lhe acelerado nos ouvidos.
Agarrou-se
ao peito, abriu a boca seca para gritar, mas não conseguiu. Oh, Deus do céu, o
choque! Ia ter outro ataque, isto tinha de lhe provocar outro ataque! Apoiado às
costas
de um velho banco de jardim que Robin ali colocara para "sonhar", contornou-o
lentamente até conseguir sentar-se à espera que a dor surgisse, com um instinto
antigo
e impossível de erradicar fazendo com que abrisse e fechasse constantemente a
mão esquerda enquanto aguardava que a dor disparasse pelo braço. De olhos
esbugalhados,
boca entreaberta, Addison Forbes esperou. "Vou morrer, vou morrer..."
Dez minutos depois a dor não surgira e já não conseguia ouvir o coração. O pulso
abrandara, precisamente como acontecia sempre depois das suas corridas, e não se
sentia diferente do que se costumava sentir depois de correr. Levantou-se
bruscamente e isso também não lhe causou qualquer dor; virou-se para olhar para
a mancha
lilás, com os seus braços e pernas, depois começou a subir a encosta até casa
com passos longos e ritmados, a alegria a crescer dentro de si. - O corpo dela
está
ao pé da água - disse quando entrou na cozinha. - Chama a polícia, Robin.
Ela guinchou e correu de um lado para o outro como uma barata tonta, mas fez o
telefonema e depois aproximou-se dele, procurando-lhe o pulso.
- Estou bem - disse ele, irritado.
- Larga-me, mulher, estou bem! Acabo de
sofrer um choque terrível, mas o meu coração não falhou. - Uum sorriso sonhador
surgiu-lhe
nos lábios. - Tenho fome, quero um bom pequeno-almoço. Ovos estrelados e bacon,
torradas de pão de passas com muita manteiga, e natas no café. Vá, Robin,
mexe-te!
- Eles enganaram-nos - disse Carmine, de pé à beira da água com Abe e Corey. -
Como pudemos ser tão estúpidos? A observar as estradas, sem sequer pensarmos no
porto.
Ela foi largada aqui por um barco.
- Toda a costa leste esteve congelada até sábado à noite - disse Abe. - Isto
teve de ser uma decisão de última hora, não pode ser onde tinham planeado
deixá-la.
- Uma ova é que não pode - disse Carmine com convicção. - O degelo tornou-o mais
fácil, apenas isso. Se a água tivesse continuado gelada, eles teriam caminhado
sobre
o gelo desde uma rua que nós não estivéssemos a patrulhar. Assim, puderam usar
um barco a remos e aproximá-lo o suficiente para a atirar sobre a borda. Nunca
puseram
os pés em terra.
- Ela está completamente congelada - disse Patrick, juntando-se a eles. - Tem um
vestido de festa lilás com pérolas cosidas em vez de brilhantes, de um tecido
rendado
que nunca vi antes... não é mesmo renda. O vestido serve-lhe melhor do que o da
Margaretta, pelo menos em comprimento. Ainda não a virei para ver se está
abotoado.
Não tem marcas de cordas, nem vergões no pescoço. Para além de algumas folhas
molhadas, está muito limpa.
- Uma vez que eles não chegaram a desembarcar, não vamos encontrar nada aqui.
Deixo o resto contigo, Patsy. Venham, rapazes - disse a Abe e Corey. - Temos de
perguntar
a todas as pessoas com casas viradas para a água se viram ou ouviram alguma
coisa ontem à noite. Mas, Corey, tu vais alargar mais a nossa rede. Leva a lancha da polícia e
contorna os barcos cisterna e de carga ancorados no porto. Talvez alguém tenha
vindo
ao convés apanhar ar, depois de dias enfiado no porão, e tenha visto um barco a
remos. É o tipo de coisa em que um marinheiro repararia.
- É uma repetição da Margaretta - disse Patrick a Silvestri, Marciano, Carmine e
Abe; Corey andava na água, na lancha da polícia. - Os ombros da Faith são mais
estreitos
e os seios mais pequenos, por isso eles conseguiram abotoar o vestido. Não tem
uma única marca, o que significa que ela devia vir em qualquer coisa à prova de
água
durante a viagem de barco. Qualquer coisa mais fina e lisa do que um oleado
vulgar. Os barcos têm sempre alguns centímetros de água no fundo, mas o vestido
estava
seco, sem manchas.
- Como é que morreu? - perguntou Marciano.
- Violada até à morte, como a Margaretta. O que não sei é se esta nova
ferramenta que eles utilizam foi deliberadamente concebida para matar ou se eles
preferiam
que fizesse o seu trabalho mais lentamente... ao longo de vários ataques. Assim
que a Faith morreu foi colocada num congelador, mas não uma arca doméstica. Mais
do género que se pode encontrar num supermercado. Tem de ser suficientemente
comprido para a Margaretta lá caber deitada, e bastante largo, porque ambas as
raparigas
foram colocadas de braços afastados do corpo e pernas ligeiramente abertas.
Foram ambas vestidas depois de estarem duras como pedra. As cuecas da Faith
também eram
modestas, mas lilases em vez de cor-de-rosa. Mãos e pés nus. A Faith tem dois
dedos tortos no pé esquerdo, de uma fractura antiga. Isso facilitará à família a
tarefa
de a identificar, se alguma vez saírem do seu histerismo.
- Acha que foi a mesma pessoa que fez ambos os vestidos? - perguntou Silvestri.
-
Quer dizer, são diferentes, e contudo iguais.
- Não sou especialista em vestidos de festa. Acho que a namorada do Carmine
devia observá-los e dizer-nos o que pensa - disse Patrick, piscando o olho.
Carmine corou. "Então é assim tão óbvio? E se for? Estamos num país livre e só
tenho de rezar para que nunca venhamos a precisar do testemunho de Desdemona
para
apanhar estes filhos da puta. Um advogado da polícia dir-me-ia que Desdemona é o
maior erro que cometi neste caso, mas estou disposto a seguir os instintos que
me
dizem que ela é irrelevante, apesar do atentado contra a sua vida. O amor não me
faria perder os instintos de polícia. Céus, e como a amo! Quando ela me apareceu
na varanda, percebi num segundo que a amava mais do que a mim próprio. É a luz
da minha vida."
- Tiveste alguma sorte com o vestido cor-de-rosa, Carmine? - perguntou Danny
Marciano.
- Não, nada. Mandei alguém verificar todas as lojas que vendem vestidos de
criança, de uma ponta à outra do estado, mas vestidos de festa de mais de cem
dólares
parecem ser demasiado finos para os gostos do Connecticut. O que é estranho,
tendo em conta que no Connecticut existem algumas das zonas mais ricas do país.
- As mães ricas passam a vida a conduzir os seus Cadillacs de um centro
comercial para o outro - disse Silvestri. - Vão ao Filene's em Boston, por amor
de Deus!E a Manhattan.
- Bem visto - disse Carmine com um sorriso. - Estamos a examinar as Páginas
Amarelas, desde o Maine a Washington. Quem quer atacar uma pilha de panquecas
com bacon
e xarope na porta do lado?
"Pelo menos recuperou o apetite", pensou Patrick, acenando em sinal de
assentimento. "Só Deus sabe o que ele vê naquela inglesa, mas não é nada
parecida com a ex-mulher.
Pelo menos não se embeiçou outra vez por uma brasa, embora, quanto mais eu a
vejo, menos a considero propriamente feia. Uma coisa é certa, tem miolos e sabe
usá-los.
Isso deve ser atraente para um homem como Carmine."
- Oh, o Addison foi ao Hug
- disse Robin Forbes a Carmine, em tom animado,
quando ele apareceu em sua casa.
- Parece estar feliz - observou ele.
- Tenente, há três anos que vivo no inferno - disse ela, caminhando com passo
enérgico. - Depois daquele ataque cardíaco, o Addison convenceu-se de que a
morte não
tardaria. Tinha tanto medo! As corridas, não comia nada senão fruta e legumes...
tenho de ir a Rhode Island para encontrar uma posta de peixe que ele não
rejeite.
Estava convencido de que um choque o mataria, por isso esforçava-se ao máximo
para evitar qualquer choque. Depois, esta manhã, encontrou aquela pobre rapariga
e
apanhou um choque... um choque tremendo. Mas nem sequer se sentiu mal, e
obviamente que não morreu. - De olhos a brilhar, deu um passo de dança. -
Voltámos a ter
uma vida normal.
Sem fazer a mínima ideia de que Addison Forbes tinha fantasias homicidas sobre a
mulher, Carmine partiu depois de dar mais uma volta à propriedade, pensando que
realmente havia sempre um lado bom em todas as coisas más. O Dr. Addison Forbes
seria agora um homem muito mais feliz - pelo menos até os advogados de Roger
Parson
Júnior encontrarem uma cláusula no testamento do tio William que pudessem
contestar. Faria parte do esquema do Fantasma destruir o Hug, para além de
acabar com a
vida destas bonitas jovens? E se assim fosse, porquê? Seria possível que, ao
destruírem o Hug, quisessem realmente destruir o professor Robert Mordent Smith?
Se
assim era, estavam no bom caminho para o sucesso. E onde é que Desdemona
encaixava? Passara o pequeno-almoço a interrogá-la, à boa maneira implacável da
polícia:
teria visto alguma coisa que estivesse de alguma forma sepultada sob as suas
memórias conscientes? Estaria a passar por alguma rua quando uma das raparigas
fora
raptada? Alguém no Hug lhe teria dito alguma coisa inapropriada?
Alguma coisa invulgar se intrometera no decorrer normal dos seus dias? A todas
estas perguntas, que ela suportou pacientemente, perdendo mesmo algum tempo a
reflectir
sobre elas, a resposta tinha sido uma negativa convicta.
Depois de uma passagem infrutífera pelo Hug, Carmine entrou de novo no Ford e
conduziu em direcção a Merrit Parkway, a estrada para Nova Iorque que passava
por Trumbull.
Embora não esperasse conseguir autorização para ver o professor, não via razão
para não inspeccionar tanto quanto pudesse das instalações de Marsh Manor, para
confirmar
por si próprio o que a polícia de Bridgeport lhe dissera: era fácil um paciente
escapulir-se das instalações.
Sim, decidiu, passando pelos imponentes portões, a agorafobia manteria mais
pacientes dentro de Marsh Manor do que os seguranças. Não havia seguranças.
Muito bem. E agora? Os Chandras. A sua propriedade ficava perto de Wilbur Cross,
onde o curso aparentemente aleatório da estrada 133 a levava por uma zona de
quintas
e celeiros, no meio de campos agradáveis e pomares de macieiras. Era demasiado
tarde para ter outra conversa com Chandra no Hug - sexta-feira fora o seu último
dia
de trabalho, tanto dele como de Cecil.
A casa não estava à escala do manicómio de Marsh Manor, mas a propriedade
recordava a Carmine um complexo de Cape Cod, com meia dúzia de residências
espalhadas pelos
terrenos; embora esta, com quatro hectares, fosse muito maior. Se Carmine ficou
impressionado, foi ao ver quanta organização era necessária para criar uma vida
de
luxo para duas pessoas e algumas crianças com dinheiro de sobra. Sem dúvida que
os Chandras teriam um gestor, um vice-gestor e um gestor especializado, para além do exército de lacaios de turbante. Estava
tudo estruturado de modo a que os Chandras não tivessem sequer de se aperceber
do
esforço envolvido. Um estalar de dedos, metaforicamente, e o que desejavam
aparecia de imediato.
- É muito inconveniente - disse o doutor Nur Chandra, falando com Carmine na
imponente biblioteca - , mas necessário, tenente. O Hug era perfeito para as
minhas necessidades,
incluindo no que diz respeito ao Cecil.
- Então porquê partir? - perguntou Carmine. Chandra fez uma expressão
desdenhosa.
- Oh, por favor, meu bom homem, certamente que vê que o Hug acabou? O Robert
Smith não voltará, e disseram-me que os directores Parson estão à procura de uma
maneira
para deixarem de financiar o Hug. Portanto prefiro sair já, enquanto as coisas
estão em curso, do que esperar e ter de passar por cima de mais cadáveres.
Preciso
de partir enquanto este monstro ainda está em acção, para poder eliminar
qualquer suspeita a meu respeito. Pois não conseguirão apanhá-lo, tenente.
- Isso parece-me tudo muito bem e lógico, doutor Chandra, mas suspeito que a
verdadeira razão pela qual está tão ansioso por partir tem a ver com os seus
macacos.
As suas hipóteses de os levar consigo, no meio do caos actual, são muito maiores
do que quando os Parsons estiverem a prestar mais atenção à situação do Hug do
que
a um testamento. Na verdade, o senhor está a escapulir-se com perto de um milhão
de dólares em propriedade do Hug, diga o que disser o seu contrato.
- Oh, muito perspicaz, tenente! - disse Chandra em tom apre-ciativo. - É
precisamente por isso que quero partir já. Depois de eu me ter ido embora e
levado os macacos
comigo, será um facto consumado. Resolver a situação, em termos legais e
logísticos, será um pesadelo.
- Os macacos ainda estão no Hug?
- Não, estão aqui, em instalações temporárias. Com o Cecil Potter.
- E quando tenciona partir para o Massachusetts?
- As coisas já estão em andamento. Eu, a minha mulher e os meus filhos
partiremos na sexta-feira. O Cecil e os macacos vão amanhã.
- Ouvi dizer que comprou uma bela casa perto de Boston.
- Sim. Muito parecida com esta, na verdade.
Surina Chandra entrou nesse momento, vestindo um sari escarlate bordado com fio
dourado, os braços, pescoço e cabelo a cintilarem com o brilho das jóias. Atrás
dela
vinham duas meninas com aproximadamente sete anos de idade - gémeas, pensou
Carmine, estupefacto com a sua beleza. Mas a emoção desapareceu num segundo,
assim que
olhou para as roupas delas. Vestidos iguais, de renda coberta de pedras
brilhantes, com saias rodadas e rígidas e mangas de balão. Ambos de um
verde-claro etéreo.
De alguma forma, conseguiu disfarçar os seus sentimentos durante as
apresentações. As meninas, Leela e Nuru, eram de facto gémeas; crianças
recatadas, com enormes
olhos negros e cabelo preto preso em tranças tão grossas como cordas de
amarração, caídas sobre os seus ombros. Tal como a mãe, cheiravam a algum
perfume oriental
de que Carmine não conseguia gostar - almiscarado, pesado, tropical. Tinham
diamantes nas orelhas que faziam as pedras dos vestidos parecerem de plástico.
- Gosto muito dos vossos vestidos - disse às gémeas, agachando-se para ficar ao
nível delas mas sem se aproximar muito.
- Sim, são bonitos - disse a mãe. - É difícil encontrar este tipo de
indumentária para crianças na América. Claro que mandamos vir muitos da índia,
mas quando elas
viram estes ficaram encantadas.
- Se não é indiscrição, Mrs. Chandra, onde é que encontrou os vestidos?
- Num centro comercial, não muito longe de onde vamos viver. Uma loja para
meninas encantadora, melhor do que qualquer uma que vi no Connecticut.
- Pode dizer-me onde fica o centro comercial?
- Oh, céus, receio que não. Parecem-me todos iguais e ainda Dão conheço bem a
zona.
- Suponho que não se lembra do nome da loja, então? Ela riu-se, mostrando os
dentes brancos e brilhantes.
- Uma vez que cresci com as obras de J. M. Barrie e Kenneth Grahame, claro que
sim! Chamava-se Sininho.
E saíram as três, as gémeas acenando-lhe timidamente.
- As minhas filhas gostaram de si - disse Chandra.
Simpático, mas pouco importante.
- Posso usar o seu telefone, doutor?
- Com certeza, tenente. Vou dar-lhe alguma privacidade.
"Pelo menos ninguém os pode acusar de falta de maneiras, mesmo que a ética deles
seja diferente", pensou Carmine enquanto marcava o número de Marciano, com os
dedos
a tremer.
- Sei de onde vieram os vestidos - disse, sem preâmbulos. - Sininho. Sininho,
como na história. Há uma loja num centro comercial nos arredores de Boston, mas
pode
haver outras. Começa a procurar.
- Duas lojas - disse Marciano quando Carmine entrou. - Em Boston e em White
Plains, ambas em centros comerciais finos. Tens a certeza disto?
- Absoluta. Duas das filhas do Chandra traziam vestidos idênticos ao da
Margaretta, excepto na cor. Estes eram verdes. A questão agora é saber qual das
duas Sininhos
colheu a preferência dos nossos Fantasmas.
- A de White Plains. É mais perto, a menos que eles vivam perto da fronteira do
Massachusetts. O que também é possível, claro.
- Nesse caso, o Abe pode ir a Boston amanhã, e eu fico com a de White Plains.
Meu Deus, Danny, finalmente temos uma pista!
⁂
A loja Sininho, em White Plains, ficava num centro comercial de roupas elegantes
e lojas de mobílias, intercaladas com as inevitáveis mercearias de luxo,
restaurantes
de comida rápida, lojas de tapetes e lavandarias. Havia também vários
restaurantes que serviam mais almoços do que jantares. O edifício era novo e
tinha dois pisos,
mas os proprietários da Sininho eram demasiado astutos para a colocarem no piso
de cima. Ficava no piso térreo, junto à entrada.
Era, reparou Carmine enquanto inspeccionava a loja do exterior, um
estabelecimento bastante grande, inteiramente dedicado a roupas para crianças do
sexo feminino.
Estava a decorrer um saldo de sobretudos e roupa de Inverno; aqui não havia
material feito de nylon barato, era tudo de fibras naturais. Havia até, viu, uma
secção
dedicada a peles verdadeiras, do outro lado de um arco que dizia Kiddiminx.
Várias dezenas de clientes vasculhavam as prateleiras, apesar de ser cedo,
algumas com
crianças pela mão, outras sozinhas. Nenhum dos clientes era homem. O polícia que
havia nele perguntou-se se haveria muitos roubos numa loja como esta.
Entrou com tanta confiança quanta conseguiu reunir, parecendo - e sentindo-se -
completamente deslocado. Pelos vistos devia ter um letreiro de néon na testa a
piscar
com a palavra polícia, pois as mulheres afastavam-se rapidamente dele e as empregadas da loja começaram a
juntar-se.
- Posso falar com a gerente, por favor? - pediu a uma pobre rapariga que não
conseguira integrar-se no grupinho a tempo.
Oh, óptimo, podiam tirá-lo dali! A rapariga conduziu-o imediatamente para a
parte de trás da loja e bateu a uma porta.
Mrs. Giselle Dobchik mandou-o entrar para um cubículo minúsculo, atafulhado de
caixas de cartão e armários de arquivo; de um lado da mesa, que servia de
secretária
a Mrs. Dobchik, havia um cofre, mas não sobrava espaço para uma segunda cadeira.
A reacção dela ao ver o distintivo de Carmine foi de interesse imperturbável;
mas,
por outro lado, Mrs. Dobchik parecia o tipo de pessoa a quem pouca coisa
conseguia perturbar. Quarenta e poucos anos, muito bem vestida, cabelo louro,
unhas pintadas
de vermelho e não demasiado compridas, para não se prenderem na mercadoria.
- Reconhece isto, minha senhora? - perguntou, tirando da pasta o vestido de
renda que Margaretta vestira e, de seguida, o vestido lilás de Faith. - Ou isto?
- São quase de certeza da Sininho - disse ela, começando a apalpar as costuras,
de testa franzida. - As nossas etiquetas foram removidas, mas sim, posso
garantir-lhe
que são genuínos vestidos Sininho. Temos truques especiais com as pedras.
- Suponho que não se lembra de quem os comprou?
- Podem ter sido várias pessoas, tenente. Os vestidos são ambos tamanho dez...
ou seja, para crianças entre os dez e os doze anos. Depois dos doze, as
raparigas
têm tendência a parecerem-se mais com mulherzinhas do que com fadas. Temos
sempre em armazém um vestido de cada modelo e cor para cada tamanho, mas dois
era complicado.
Venha comigo.
Carmine seguiu-a para fora do gabinete, até uma grande área repleta de vestidos
brilhantes e pregueados, arrumados em dezenas de cabides compridos, e
compreendeu
o que ela quisera dizer com "dois era complicado"; devia haver para cima de dois
mil vestidos, em tons que iam do branco ao vermelho escuro, todos cobertos de pedras
brilhantes, pérolas ou contas opalescentes.
- Seis tamanhos, dos três aos doze anos, vinte modelos diferentes e vinte cores
diferentes - disse ela. - Somos famosos por estes vestidos, compreende...
vendem-se
assim que chegam às prateleiras. - Soltou uma risada. - Afinal de contas, não
pode haver duas meninas com o mesmo modelo e a mesma cor na mesma festa! Vestir
um
vestido Sininho é um sinal de posição social. Pergunte a qualquer mãe ou criança
no condado de Westchester. A marca estende-se ao Connecticut... muitos dos
nossos
clientes vêm dos condados de Fairfield e Litchfield.
- Depois de ir buscar os meus vestidos e a minha pasta, posso convidá-la para
almoçar, Mrs. Dobchik? Ou talvez para um café? Sinto-me como um touro numa loja
de
porcelana, e de certeza que a minha presença não é boa para o negócio.
- Obrigada, um intervalo vai saber-me bem - disse Mrs. Dobchik.
- Aquilo que disse, sobre duas raparigas não poderem aparecer com vestidos
Sininho iguais na mesma festa, leva-me a crer que a loja deve ter registos
bastante detalhados - disse ele pouco tempo depois, bebendo um leite com chocolate por uma palhinha;
influências de estar no meio de tanta coisa infantil.
- Oh, sim, tem de ser. Simplesmente os dois modelos que me mostrou existem há já
alguns anos, pelo que vendemos muitos exemplares. A renda cor-de-rosa já existe
há cinco anos, a lilás há quatro. Os seus exemplares estão tão maltratados que
não é possível dizer exactamente quando foram feitos.
- Onde é que são fabricados?
Ela mordiscou um biscoito, apreciando claramente o seu papel de especialista.
- Temos uma pequena fábrica em Worcester, Massachusetts. A minha irmã gere a
loja de Boston, eu a de White Plains, o nosso irmão gere a fábrica. É um negócio
de
família... somos os únicos proprietários.
- Costumam aparecer homens a fazer compras?
- Às vezes, tenente, mas regra geral os clientes da Sininho são mulheres. Os
homens podem comprar lingerie para as esposas, mas geralmente evitam comprar
vestidos
de festa para as filhas.
- Alguma vez vendeu dois vestidos do mesmo tamanho e cor ao mesmo comprador, no
mesmo dia? Para gémeas, por exemplo?
- Sim, acontece, mas envolve uma espera de um dia para mandarmos vir o segundo
vestido. As senhoras com gémeas encomendam antecipadamente.
- E se alguém comprasse, por exemplo, o meu de renda cor-de-rosa e o lilás de
seja lá o que for...
- Bordado inglês - interrompeu ela.
- Obrigado, vou tomar nota. Alguém compraria dois modelos de cores diferentes e
do mesmo tamanho no mesmo dia?
- Só aconteceu uma vez - disse, e suspirou de prazer com a recordação. - Oh, que
venda! Doze vestidos de tamanho dez-doze, todos de cores e modelos diferentes.
Carmine sentiu os cabelos da nuca arrepiarem-se.
- Quando?
- Perto de finais de mil novecentos e sessenta e três, julgo eu. Posso
verificar.
- Antes de voltarmos e de me fazer esse favor, Mrs. Dobchik, lembra-se de quem
era essa compradora? Como é que ela era?
- Lembro-me muito bem - disse a testemunha perfeita. - Não sei o nome dela...
pagou em dinheiro. Mas estava na faixa etária das avós. Cerca de cinquenta e
cinco
anos. Vestia um casaco de pele de marta e um elegante chapéu do mesmo material,
tinha cabelo pintado, estava bem maquilhada, mas sem exageros, tinha nariz
grande,
olhos azuis, óculos bifocais muito elegantes e uma voz agradável. A mala e os
sapatos eram Charles Jourdan, a condizer, e calçava luvas de pelica castanhas,
como
os sapatos e a mala. Um motorista uniformizado levou as caixas para a limusina.
A viatura era um Lincoln preto.
- Não parece ser uma pessoa que precisasse de descontos.
- Valha-me Deus, claro que não! Até hoje, é a maior venda de vestidos de festa
que alguma vez fizemos. Cento e cinquenta dólares cada, mil e oitocentos
dólares.
Ela pagou com notas de cem que tirou de um maço com cinco centímetros de altura.
- Por acaso perguntou-lhe por que razão estava a comprar tantos vestidos de
festa do mesmo tamanho?
- Claro que sim... quem não perguntaria? Ela sorriu e disse-me que era a
representante local de uma organização de caridade que ia mandar os vestidos
para um orfanato
em Buffalo, como prendas de Natal.
- E acreditou? Giselle Dobchik sorriu.
- É tão credível como comprar doze vestidos do mesmo tamanho, não é?
- Suponho que sim.
Voltaram à loja, onde Mrs. Dobchik procurou o registo da venda. Não tinha o
nome.
- Tirou os números de série das notas - observou Carmine. - Porquê?
- Na altura andava a circular dinheiro falso, por isso liguei para o banco
enquanto as empregadas embalavam os vestidos.
- E as notas não eram falsas?
- Não, eram genuínas, mas o banco ficou interessado nelas porque tinham sido
emitidas em mil novecentos e trinta e três, pouco depois de termos abandonado o
padrão
ouro, e estavam como novas - Mrs. Dobchik encolheu os ombros. - Como se eu me
importasse. Eram moeda legal. O gerente do meu banco pensou que tivessem estado
amealhadas
em casa.
Carmine estudou a lista de dezoito números.
- Concordo. Os números são consecutivos. Muito invulgar, mas não me ajuda em
nada.
- Isto está relacionado com algum caso grande e excitante? - perguntou Mrs.
Dobchik enquanto o acompanhava à porta.
- Receio que não, minha senhora. Apenas mais um caso de falsificação.
- Sabemos que os Fantasmas planearam a segunda série de homicídios antes de
começarem a primeira - disse Carmine a uma assistência fascinada. - A venda foi
feita
em Dezembro de mil novecentos e sessenta e três, muito antes de a primeira
vítima, Rosita Esperanza, ter sido raptada. Eles assassinaram doze raparigas,
uma de dois
em dois meses, ao longo de dois anos, com doze vestidos Sininho empacotados em
naftalina para o dia em que seriam usados. Quem quer que eles sejam, não estão a
seguir
o ciclo da Lua, que é o que os psiquiatras querem pensar, agora que reduziram o
intervalo para trinta dias. A Lua não tem nada a ver com os Fantasmas. Eles
estão
a seguir o ciclo do Sol... doze, doze, doze.
- A descoberta da origem dos vestidos ajuda? - perguntou Silvestri.
- Não, enquanto não houver um julgamento.
- Mas primeiro, temos de encontrar os Fantasmas - disse Marciano. - Quem achas
que será essa avozinha, Carmine?
- Um dos Fantasmas.
- Mas disseste que não eram crimes de mulheres.
- E continuo a pensar o mesmo, Danny. No entanto, é muito mais fácil um homem
disfarçar-se de uma senhora de idade do que de uma mulher jovem. A pele áspera e
as
rugas não chamam tanto a atenção.
- Adoro os adereços - disse Silvestri secamente. - Casacos de pele de marta,
motorista e limusina. Podemos seguir a pista da limusina?
- Vou pôr o Corey a tratar disso amanhã, John, mas não tenho muita esperança. O
motorista era o outro Fantasma, calculo. É engraçado, Mrs. Dobchik lembrava-se
de
todos os detalhes sobre a compradora, até ao pormenor dos óculos bifocais, mas não se recorda de
absolutamente nada sobre o motorista, para além do fato preto, boné e luvas de
cabedal.
- Não, isso é lógico - disse Patrick. - A tua Mrs. Dobchik está no negócio do
vestuário. As suas clientes são mulheres ricas, não homens trabalhadores. Ela
arquiva
as mulheres na memória e conhece todo o tipo de peles, todas as marcas de malas
e sapatos franceses. Aposto que a avozinha não tirou as luvas de pelica nem por
um
segundo, mesmo quando tirou as notas do maço.
- Tens razão, Patsy. Esteve sempre de luvas. Silvestri gemeu.
- Então não estamos mais perto dos Fantasmas.
- De certa forma não, John, mas fizemos progressos. Uma vez que eles não deixam
quaisquer evidências e ninguém conseguiu dar-nos uma descrição, estamos à
procura
de uma agulha num palheiro. Quantas pessoas há no Connecticut, três milhões? E é
um estado bastante pequeno... não tem grandes metrópoles, apenas uma dúzia de
cidades
maiores, cem mais pequenas. Bom, esse é o nosso palheiro. Mas pouco tempo depois
de estar metido neste caso, percebi que procurar a agulha não é o melhor caminho
a seguir. Os vestidos da Sini-nho podem parecer mais um beco sem saída, mas não
acredito que seja bem assim. Temos mais um prego no caixão, um novo fragmento de
evidência. Tudo o que nos dê a conhecer um facto novo sobre os Fantasmas
deixa-nos mais próximo deles. O que temos aqui é um puzzle só com peças de céu
azul, mas
os vestidos da Sininho preencheram um espaço vazio. A quantidade de céu
preenchido está a aumentar.
Carmine inclinou-se para a frente, entusiasmado com a ideia.
- Primeiro, um Fantasma transformou-se em dois Fantasmas. Segundo, os dois
Fantasmas são muito chegados, como irmãos. Não sei de que cor é a pele deles,
mas o que
vêm na sua mente é um rosto. Mais do que qualquer outra coisa, um rosto. O tipo
de rosto que não se encontra em raparigas brancas, nem muito frequentemente em
raparigas
negras. Os Fantasmas trabalham como uma equipa no verdadeiro sentido da palavra... cada um tem tarefas específicas,
áreas de especialização. Isso provavelmente alarga-se ao que fazem com as
vítimas depois
de elas serem capturadas. A violação excita-os, mas a vítima tem de ser virgem
em todos os sentidos... não estão interessados em namoradeiras com o hímen
intacto.
Um dos Fantasmas dá à vítima o seu primeiro beijo, portanto talvez seja o outro
a desflorá-la. Vejo uma continuação do trabalho de equipa... tu fazes isto, eu
faço
aquilo. Quanto à morte propriamente dita, não tenho a certeza, mas suspeito que
será o Fantasma subserviente a tratar disso. É ele que trata da limpeza. A única
razão pela qual guardam as cabeças, é o rosto, o que significa que, quando os
encontrarmos, vamos encontrar todas as cabeças, desde a Rosita Esperanza.
Enquanto
as suas actividades não eram conhecidas pela polícia, divertiam-se com os raptos
em plena luz do dia, mas, depois da Francine Murray, começaram a ficar
apertados.
Estou a começar a pensar que mudaram para a noite devido à maior atenção
policial, e não como parte de um novo método conscientemente concebido. Os
raptos nocturnos
são menos arriscados, pura e simplesmente.
Patrick semicerrou os olhos como se estivesse a focar uma coisa muito pequena.
- O rosto - disse. - É a primeira vez que te oiço pôr de lado os outros
critérios, Carmine. O que te faz pensar que seja apenas o rosto? Por que razão
puseste de
lado a cor da pele, o credo, a raça, o tamanho, a inocência?
- Oh, Patsy, sabes muito bem quantas vezes estive fixado em todos e em cada um
desses aspectos, mas finalmente decidi-me pelo rosto. Ocorreu-me no caminho...
bam!
- Deu um murro na palma da mão. - Foi a Margaretta Bewlee que mo disse. A minha
pérola negra, depois de uma dúzia de pérolas claras. O que é que ela tinha em
comum
com as outras raparigas? E a resposta é, o rosto. Nada excepto o rosto. Feição a
feição, o rosto dela é igual ao das outras todas. Distraí-me com as diferenças,
ao ponto de não me aperceber da única semelhança... o rosto.
- E a inocência?
- perguntou Marciano. - Ela também tinha esse ponto em comum
com as outras.
- Sim, é um facto. Mas a inocência não é o que leva os nossos dois Fantasmas a
raptarem estas raparigas. É o rosto. Se uma rapariga não tivesse o rosto, mesmo
que
fosse a menina mais inocente do mundo, isso não levaria os Fantasmas a
interessarem-se nela. - Fez uma pausa, de testa franzida.
- Continue, Carmine - disse Silvestri.
- Os Fantasmas... ou talvez um deles... conheceram alguém com aquele rosto.
Alguém a quem odeiam mais do que ao resto da humanidade toda junta.
Escondeu o rosto nas mãos e enfiou os dedos no cabelo.
- Um deles, ou ambos? O dominante, com certeza, enquanto o submisso pode estar
metido nisto apenas para participar de uma viagem fantástica... é o servo, odeia
quem
o dominante odeia. Quando me disseste que os Fantasmas não estavam interessados
em seios, Patsy, preencheste mais algumas peças de céu. O peito liso, os órgãos
genitais
depilados. Isso sugere que a possuidora desse rosto que eles odeiam era
pré-adolescente, e contudo... se assim é, por que raio não raptam raparigas
pré-adolescentes?
Não lhes falta a coragem nem a inteligência para isso. Então, será a possuidora
desse rosto alguém que pelo menos um dos Fantasmas conheceu desde a infância à
adolescência?
Que odiou mais enquanto mulher do que enquanto criança? É para este enigma que
não tenho resposta.
Silvestri tirou o charuto da boca, excitado.
- Mas eles estão a ir mais longe com o aspecto de criança nesta segunda fase,
Carmine. Vestidos de festa de criança.
- Se soubéssemos quem possuía originalmente o rosto que eles odeiam, saberíamos
quem são os Fantasmas. Passei toda a viagem, desde White Plains, a rever
mentalmente
as casas de cada Hugger, à procura daquele rosto na parede de alguém, mas não
está nas paredes de nenhum dos Huggers.
- Ainda acreditas que tem a ver com o Hug?
- perguntou Marciano.
- Um dos Fantasmas é, decididamente, um Hugger. O outro não. Este último é o que
faz as perseguições, talvez alguns dos raptos sozinho. Sempre soubemos que tinha
de ser um Hugger, Danny. Sim, podemos argumentar que os corpos podiam ter sido
postos em qualquer um dos frigoríficos para animais mortos da Faculdade de
Medicina,
mas onde, para além do Hug, é possível levar dois a dez sacos volumosos de um
carro para o frigorífico sem ser visto? Isso implica várias viagens. Há pessoas
a entrar
e a sair dos parques de estacionamento vinte e quatro horas por dia, enquanto o
parque do Hug tem um portão fechado e está completamente deserto, por exemplo,
às
cinco da manhã. Reparei que há um grande carrinho de compras acorrentado à
parede das traseiras do Hug, para ajudar os investigadores a levarem os seus
livros e
papéis para dentro. Não estou a dizer que os Fantasmas não podiam ter utilizado
outros frigoríficos, estou simplesmente a dizer que usar o do Hug é mais fácil e
mais simples.
- Fácil e simples é sempre melhor - disse Silvestri. - Estamos de acordo em
relação ao Hug, então.
- Bem podes rezar para que não seja a Desdemona, Carmine - disse Patrick.
- Oh, tenho a certeza de que não é a Desdemona.
- Ah! - exclamou Patrick, ficando tenso. - Suspeitas de alguém! Carmine respirou
fundo.
- Não suspeito de ninguém, e é isso que mais me preocupa. Devia suspeitar de
alguém, então por que não suspeito? O que tenho é a sensação de que estou a
deixar passar
qualquer coisa que está mesmo debaixo do meu nariz. Nos meus sonhos é claro como
água, mas quando acordo desapareceu. Só me resta continuar a pensar.
- Fala com a Eliza Smith
- disse Desdemona, com a cabeça apoiada no ombro de
Carmine; ele transferira-a para o seu apartamento no dia após o seu visitante
nocturno.
- Sei que não me dizes nada de verdadeiramente importante, mas estou convencida
de que tu acreditas que o Fantasma é um Hugger. A Eliza faz parte do Hug desde o
início e, apesar de ela nunca meter o nariz onde não é chamada, sabe muita coisa
que as outras pessoas não sabem. O professor fala com ela, às vezes, como quando
está aborrecido por causa do pessoal... a Tâmara é bastante difícil, o Walt
Polonowski tem os seus momentos, bem como o Kurt Schiller. A Eliza licenciou-se
em psicologia
na Smith e fez o mestrado na Chubb. Não sou grande fã de psicólogos, mas o
professor respeita muito as opiniões dela. Vai falar com ela.
- O professor alguma vez precisou de falar com a Eliza sobre ti?
- Com certeza que não! Em certa medida, eu movo-me numa órbita exterior,
dessincronizada com todas as outras órbitas... um pouco como música desafinada.
Sou encarada
como uma contabilista, não uma cientista, e isso faz com que não tenha qualquer
importância para o professor - aconchegou-se mais a ele. - Estou a falar a
sério,
Carmine. Fala com a Eliza Smith. Sabes perfeitamente que será a falar que este
caso se resolverá.
⁂
Fevereiro e Março de 1966
No seguimento do degelo, Carmine andou demasiado ocupado para ir visitar Mrs.
Eliza Smith, até quase uma semana depois da conversa com Desdemona. Além disso,
não
estava a ver o que Mrs. Smith poderia trazer de novo à sua investigação.
Principalmente agora, que já se sabia que o professor não ia regressar ao Hug.
As temperaturas subiram e o vento decidiu abrandar; de um gelo terrível, o tempo
tornou-se quase ideal para manifestações, suficientemente fresco para usar
roupas
quentes, mas não desagradável. A tampa gelada sobre a agitação racial a nível
estadual derreteu; a violência rebentou por todo o lado.
Em Holloman, Mohammed el Nesr proibiu severamente os motins, pois não fazia
parte dos seus planos, nesta fase, arriscar uma detenção ou mandatos de busca.
De todos
os grupos de pessoas negras descontentes que estavam a causar distúrbios, apenas
a Brigada Negra possuía um arsenal formidável, muito além das pistolas que
podiam
ser roubadas de lojas de armamento ou casas particulares. E ainda não era altura
de revelar a presença desse arsenal. Apesar disso, Mohammed organizava
manifestações
implacavelmente. E, apesar de ele esperar uma maior afluência, o número de
pessoas que se tinham reunido era suficiente para colocar grupos de gente aos
gritos e
a agitar os punhos em frente da Câmara, do edifício dos Serviços Municipais, da Administração da Chubb, da estação de caminhos de
ferro, da estação de autocarros, da residência oficial de M. M., e, claro, do
Hug.
Todos os cartazes tinham a ver com a brancura, inviolabilidade e vítimas
racialmente seleccionadas do Monstro do Connecticut.
- Afinal de contas - disse Wesley Ali ansiosamente a Mohammed - , o que queremos
é sublinhar a discriminação racial. As adolescentes brancas estão em segurança,
mas
são as únicas... e esse é um facto que nem o governador, na sua torre de marfim,
pode negar. Cada cidade industrial do Connecticut tem uma população pelo menos
oitenta
por cento negra, o que nos coloca numa posição vantajosa.
Mohammed el Nesr parecia a águia em homenagem à qual fora baptizado, um homem
magnífico, orgulhoso, de nariz adunco, altura e constituição imponentes, com o
cabelo
escondido dentro de um gorro que ele próprio desenhara, uma espécie de turbante
com o topo mais achatado. Ao princípio usara barba, mas depois decidira que a
barba
escondia demasiado um rosto que câmara nenhuma conseguia fazer parecer bestial,
cruel ou feio. O punho branco no seu blusão da Brigada Negra era bordado e não
estampado,
e usava-o por cima de calças de combate, movendo-se como o ex-militar que era.
Com o nome de Peter Scheinberg, alcançara o posto de coronel no Exército dos
EUA,
portanto era de facto uma águia. Uma águia com dois cursos de Direito.
Por trás do forro de colchões, o quartel-general no número dezoito de Fifteenth
Street estava cheio de livros, pois ele lia insaciavelmente sobre lei, política
e
história, estudava o Corão com fervor e sabia que era um líder de homens. No
entanto, ainda estava à procura da melhor forma para fazer a sua revolução; as
cidades
industriais talvez gozassem das suas grandes maiorias negras, mas o homem branco
possuía toda a nação, e esta, de uma maneira geral, não era maioritariamente
urbana.
A sua primeira inspiração fora recrutar membros para a Brigada Negra entre a
abundância de homens negros nas forças armadas, apenas para descobrir que muito poucos
soldados negros, independentemente do que sentiam a título particular pelo homem
branco,
estavam dispostos a alistar-se. Assim, após a passagem à disponibilidade - com
louvores - migrara para Holloman, pensando que uma cidade pequena era o melhor
local
para começar a cortejar as massas inquietas dos guetos. Acreditara que a
ondulação causada pela pedra que ia atirar para o lago de Holloman se espalharia
até abarcar
sítios muito maiores. Sendo um excelente orador, chegara a receber convites para
falar em comícios em Nova Iorque, Chicago, Los Angeles. Mas os líderes locais em
todo o lado invejavam o seu poder e não davam a importância devida a Mohammed el
Nesr. Com cinquenta e dois anos de idade, ele sabia que lhe faltava o dinheiro e
a organização a nível nacional para unir o seu povo como este precisava de ser
unido. Tal como acontecia com outros autocratas, as pessoas diziam-lhe que se
recusavam
a ser conduzidas para onde ele as queria conduzir. Preferiam claramente seguir
Martin Luther King, um pacifista e um cristão.
E agora aqui estava este sanscullote magricela do Luisiana a dar-lhe conselhos.
Como é que deixara as coisas chegarem a este ponto?
- Tenho andado também a pensar - disse Wesley Ali - , sobre o que me disseste há
alguns meses... lembras-te? Disseste que o nosso movimento precisava de um
mártir.
Pois bem, estou a tratar disso.
- Óptimo, Ali, trata disso. Entretanto, volta à tua ideia original, o Hug. E à
Eleventh Street.
- Como está a andar o comício de domingo?
- Muito bem. Parece que conseguiremos ter cinquenta mil negros no parque ao
meio-dia. Agora desaparece, Ali, deixa-me continuar a escrever o meu discurso.
Obedecendo às suas ordens, Wesley Ali desapareceu em direcção a Eleventh Street,
onde ia espalhar a palavra de que Mohammed el Nesr falaria no próximo domingo no
parque de Holloman. Não só todos eles tinham de estar presentes, como tinham
também de persuadir os amigos e vizinhos a irem. Mohammed era um orador brilhante e carismático,
elogiou o seu discípulo, e valia muito a pena ouvi-lo. "Venham e fiquem a
perceber como
é que os brancos estão a lixar os negros." Nenhuma criança negra estava segura,
mas Mohammed el Nesr tinha as respostas.
Era uma pena, pensou Wesley Ali com uma parte da mente perpetuamente ocupada,
que nenhum branco pensasse em alvejar Mohammed el Nesr. Que grande mártir ele
daria!
Mas estavam no velho e sereno Connecticut, não no Sul ou no Oeste: não havia
neo-nazis, membros do Ku Klux Klan, nem sequer provincianos típicos. Este era um
dos
treze estados originais, um paraíso da liberdade de expressão.
Apesar do que Wesley Ali pensava, Carmine sabia que o Connecticut tinha a sua
quota-parte de neo-nazis, membros do Ku Klux Klan e provincianos; sabia também
que,
na sua maioria, só tinham conversa, e falar era fácil. Apesar disso, todos os
fanáticos racistas estavam a ser vigiados, pois Carmine estava decidido a que
ninguém
intentasse nada contra Mohammed el Nesr no domingo à tarde. Enquanto Mohammed
planeava o seu comício, Carmine planeava a melhor forma de o proteger: onde
ficariam
os atiradores da polícia, quantos polícias à civil colocaria a patrulhar a
periferia da multidão anti-brancos. Nem por sombras permitiria que Mohammed el
Nesr levasse
um tiro e se transformasse num mártir.
Depois, no sábado à noite, a neve voltou, um nevão de Fevereiro que deixou
quarenta e cinco centímetros no chão, da noite para o dia; um vento cortante,
abaixo de
zero, garantiu que não haveria qualquer comício no parque de Holloman. Mais uma
vez, salvo pelo Inverno.
Assim, hoje, Carmine tinha tempo para se meter à estrada 133 e ver se Mrs. Eliza
Smith estava em casa. E estava.
- Os rapazes foram para a escola, muito desiludidos. Se o nevão tivesse esperado
pela noite de ontem, hoje não haveria aulas.
- Lamento por eles, mas estou muito contente por mim, Mrs. Smith.
- Por causa do comício negro no parque de Holloman?
- Exactamente.
- Deus ama a paz - foi a única resposta dela.
- Nesse caso, por que é que não a utiliza mais? - perguntou o veterano da guerra
militar e civil.
- Porque, depois de nos ter criado, Ele avançou para outro lugar qualquer num
universo muito grande. Talvez, quando nos criou, tenha colocado uma engrenagem
especial
no nosso maquinismo para nos fazer amar a paz. Depois a engrenagem gastou-se e
pronto! Tarde demais para Deus voltar.
- É uma teoria interessante - disse ele.
- Estive a fazer bolinhos borboleta - disse Eliza, conduzindo-o para a cozinha
artificialmente antiga. - E se eu fizesse um café e os provássemos?
Os bolinhos borboleta, descobriu Carmine, eram pequenos bolos amarelos aos quais
Eliza retirara a parte de cima e recheara com natas batidas, cortando depois a
parte
de cima ao meio e voltando a colocá-la sobre o creme, virada ao contrário;
pareciam de facto asas de borboleta. E eram deliciosos.
- Por favor, tire-mos da frente - pediu ele depois de devorar quatro. - Caso
contrário, sou capaz de os comer todos.
- Está bem - disse ela, levando-os para cima do balcão e voltando a sentar-se. -
Então o que o traz por cá, tenente?
- A Desdemona Dupre. Ela diz que é consigo que eu devo falar sobre as pessoas do
Hug, porque é a senhora quem melhor as conhece. Está disposta a isso, ou quer
mandar-me
dar uma volta?
- Há três meses, ter-lhe-ia dito que fosse dar uma volta, mas agora as coisas
são diferentes. - Brincou com a colher de café. - Sabe que o Bob não vai voltar
ao
Hug?
- Sim. Parece que toda a gente no Hug sabe disso.
- É uma tragédia, tenente. Ele é um homem destroçado. Sempre houve nele um lado
mais sombrio e, uma vez que o conheço desde sempre, conheço também essa sua
faceta.
- O que quer dizer com isso, Mrs. Smith?
- Depressão, um vazio dentro dele, um nada. É como ele lhe chama, uma coisa ou
outra, conforme. O primeiro ataque a sério aconteceu depois da morte da nossa
filha,
Nancy. Leucemia.
- Lamento muito.
- Foi um grande sofrimento para nós - disse ela, pestanejando para afastar as
lágrimas. - A Nancy era a mais velha, morreu aos sete anos. Teria hoje
dezasseis.
- Tem algum retrato dela?
- Centenas, mas escondo-os por causa da tendência do Bob para a depressão.
Espere um minuto. - Saiu e regressou pouco depois com uma fotografia a cores de
uma criança
adorável, obviamente tirada antes de a doença a destruir. Cabelo louro
encaracolado. Grandes olhos azuis, os lábios finos da mãe.
- Obrigado - disse ele, pousando a fotografia na mesa, voltada para baixo. -
Presumo que ele recuperou da depressão?
- Sim, graças ao Hug. Ter de cuidar do Hug salvou-o. Mas desta vez não. Vai
refugiar-se nos comboios para sempre.
- Como é que conseguirão viver, em termos financeiros? - perguntou, sem se
aperceber da cobiça com que estava a olhar para os bolos borboleta.
Ela levantou-se para servir mais café e colocou-lhe dois bolos
no prato.
- Aqui tem, coma-os. É uma ordem. - Parecia ter os lábios secos; humedeceu-os
com a língua. - Financeiramente, não temos motivo para preocupações. Ambas as
nossas
famílias nos deixaram dinheiro, o que significa que não precisamos de trabalhar para viver. Que perspectiva
horrível para um par de ianques! A ética de trabalho é impossível de erradicar.
. - E
os seus filhos?
- Os nossos fundos passam para eles. São bons rapazes.
- Por que é que o professor lhes bate? Ela não tentou negar.
- O tal lado sombrio. Mas não acontece com muita frequência, honestamente.
Apenas quando eles o aborrecem, como é natural nos rapazes... quando insistem
num tema
sensível, ou quando não aceitam um não como resposta. São rapazes normais.
- Estava a pensar se os rapazes se juntariam ao pai para brincar com os
comboios.
- Acho - disse Eliza com firmeza - , que ambos os meus filhos preferiam morrer a
entrar naquela cave. O Bob é... egoísta.
- Já tinha reparado - disse Carmine em tom gentil.
- Detesta partilhar os seus comboios. Na verdade, foi por isso que os rapazes
tentaram destruí-los... ele disse-lhe que os danos foram desastrosos?
- Sim, e que tinha demorado quatro anos a reconstruí-los.
- Isso não é verdade. Um rapazinho de sete anos e outro de cinco? Uma tempestade
num copo de água, tenente! Foi mais o trabalho de apanhar as coisas do chão do
que
outra coisa. Depois espancou-os impiedosamente... tive de lhe tirar a chibata da
mão à força. E disse-lhe que, se ele alguma vez voltasse a magoar os rapazes
daquela
maneira, iria à polícia. E ele sabia que eu estava a falar a sério. Apesar de
ainda lhes bater, de tempos a tempos. Mas nunca fora de si de fúria, como estava
por
causa dos comboios. Não houve mais castigos sádicos. Ele gosta de os criticar
por não estarem à altura da santa da irmã. - Sorriu, um sorriso que não mostrava
qualquer
divertimento. - Mas posso garantir-lhe, tenente, que a Nancy não era mais santa
do que o Bobby ou o Sam.
- A sua vida não tem sido fácil, Mrs. Smith.
- Talvez não, mas não é nada que eu não aguente. Desde que consiga aguentar,
está tudo bem.
Ele comeu os bolos.
- Soberbos - disse com um suspiro. - Fale-me sobre Walter Polonowski e a mulher.
- Estão irremediavelmente enredados numa teia religiosa - disse Eliza, abanando a
cabeça como se isso fosse uma estupidez incrível. - Ela achava que ele
desaprovaria
o uso de métodos anticoncepcionais, ele pensava que ela nunca consentiria em
usá-los. Assim, tiveram quatro filhos quando nenhum deles queria tê-los, pelo
menos
antes de estarem casados há tempo suficiente para se conhecerem um ao outro. A
adaptação à vida com uma pessoa estranha é difícil, mas muito mais difícil
quando
essa pessoa muda perante os nossos próprios olhos no espaço de poucos meses...
vómitos, inchaço, queixas, enfim, o habitual. A Paola é muitos anos mais nova do
que
o Walt... oh, ela era uma rapariga tão bonita! Muito parecida com a Marian, a
nova. Quando a Paola descobriu sobre a Marian, devia ter fechado a boca e
conservado
o Walt como meio de subsistência. Assim, vai ter de criar quatro filhos com meia
dúzia de tostões, porque com certeza que não pode trabalhar. O Walt não lhe vai
dar um cêntimo a mais do que é obrigado. Vão vender a casa, mas, uma vez que
está hipotecada, a parte da Paola será pouco ou nada. Para piorar os problemas
do Walt,
a Marian está grávida. Isso significa que terá de sustentar duas famílias. Terá
de passar para a clínica geral, o que é verdadeiramente uma pena. Ele é um
investigador
muito bom.
- A senhora é muito pragmática, Mrs. Smith.
- Alguém nesta família tem de o ser.
- Ouvi um rumor da boca de várias pessoas - disse ele lentamente, sem olhar para
ela - , de que o Hug terá chegado ao fim, pelo menos na sua forma actual.
- Tenho a certeza de que os rumores são verdadeiros, o que tornará as decisões
mais fáceis para alguns dos Huggers. O Walt Polonowski, por exemplo. Ou o Maurie Finch. Entre a tentativa de suicídio do Kurt Schiller e
a descoberta do corpo daquela pobre rapariga, o Maurie Finch é outro homem
destroçado.
Não da mesma forma que o Bob, mas destroçado, ainda assim. - Suspirou. - No
entanto, de quem tenho mais pena é do Chuck Ponsonby.
- Porquê? - perguntou ele, surpreendido com esta nova visão de Ponsonby, o homem
que ele simplesmente presumira que seria o herdeiro do professor. Por mais que o
Hug mudasse, Ponsonby certamente que sobreviveria aos melhores.
- O Chuck não é um investigador brilhante - disse Eliza Smith numa voz
cuidadosamente neutra. - O Bob tem-no trazido ao colo desde que o Hug abriu. É a
mente do
Bob que orienta o trabalho do Chuck, e ambos sabem disso. É uma conspiração
entre eles. Para além de mim, acho que mais ninguém tem a mínima ideia.
- Por que razão o professor faria uma coisa dessas, Mrs. Smith?
- Velhos laços, tenente... extremamente antigos. Somos da mesma linhagem ianque,
os Ponsonby, os Smith e os Courtenay, a minha família. As amizades remontam a
várias
gerações, e eu e o Bob vimos os caprichos do destino destruírem os Ponsonby.
- Caprichos do destino?
- O Len Ponsonby, o pai do Chuck e da Claire, era tremendamente rico, tal como
os seus antepassados. A Ida, a mãe deles, vinha de uma família endinheirada do
Ohio.
Depois o Len Ponsonby foi assassinado. Deve ter sido em mil novecentos e trinta,
pouco depois da queda da Bolsa. Foi espancado até à morte, em frente da estação
ferroviária de Holloman, por um bando de trabalhadores itinerantes
descontrolados. Mataram também duas outras pessoas. Oh, pôs-se as culpas na
Depressão, no álcool
de contrabando, esse tipo de coisas! Nunca apanharam ninguém. Mas o dinheiro do
Len tinha desaparecido na queda da Bolsa, o que deixou a pobre Ida praticamente
na
miséria. Sobreviveu com a venda das terras dos Ponsonby. Uma mulher corajosa!
- Como é que conheceu o Chuck e a Claire?
- perguntou Carmine, fascinado com o
que se podia esconder por trás das fachadas públicas.
- Andámos todos juntos na Escola Dormer Day. O Chuck e o Bob estavam quatro anos
à frente de mim e da Claire.
- Da Claire? Mas ela é cega!
- Isso aconteceu quando ela tinha catorze anos. Em mil novecentos e trinta e
nove, pouco depois de a guerra rebentar na Europa. A visão dela sempre fora má,
mas
nessa altura sofreu um descolamento de retina em ambos os olhos ao mesmo tempo,
devido a retinite pigmentosa. Ficou completamente cega de um dia para o outro,
literalmente.
Oh, foi terrível. Como se aquela pobre mulher e os seus três filhos não tivessem
já sofrido o suficiente!
- Três filhos?
- Sim, os dois rapazes e a Claire. O Chuck é o mais velho, depois havia o Morton
e finalmente a Claire. O Morton era louco, não falava nem parecia perceber que
havia
mais pessoas no mundo. A luz dele não se apagou, tenente. Simplesmente nunca
chegou a estar acesa. E tinha ataques de violência. O Bob diz que hoje em dia
ele seria
diagnosticado como autista. Por isso o Morton nunca foi à escola.
- Chegou a vê-lo?
- De vez em quando, embora a Ida Ponsonby, com medo de que ele tivesse um dos
seus ataques de fúria, costumasse fechá-lo quando nós íamos brincar lá para
casa. Mas
não íamos muitas vezes. O Chuck e a Claire vinham para minha casa ou íamos para
casa do Bob.
Com a mente num turbilhão, Carmine tentou manter a calma, manter os fios desta
história incrível separados como deviam estar - um irmão louco! Por que é que
não
se tinha apercebido de que havia alguma coisa errada no lar dos Ponsonby? Porque
à superfície não havia nada errado, absolutamente nada! E contudo, assim que
Eliza
Smith falou em três crianças, ele soube. Tudo começou a fazer sentido.
O Chuck no Hug e o irmão louco noutro lado qualquer... Consciente de que Eliza
Smith o olhava fixamente, Carmine forçou-se a fazer uma pergunta razoável.
- Como é o Morton? Onde é que ele está agora?
- Como era, tenente, no passado. Parece que aconteceu tudo de uma vez, embora eu
suponha que passou algum tempo entre uma coisa e outra. Dias, uma semana. A
Claire
cegou e a Ida Ponsonby mandou-a para uma escola para cegos em Cleveland, onde
ainda tinham família. Havia uma ligação qualquer à escola para cegos... uma
doação,
julgo eu. Nesse tempo, era difícil conseguir lugar numa escola dessas. Seja como
for, a Claire tinha acabado de partir para Cleveland quando o Morton morreu,
creio
que com uma hemorragia cerebral. Fomos ao funeral, claro. As coisas por que
obrigavam as crianças a passar nesse tempo! Tivemos de nos aproximar do caixão
aberto
e dar um beijo no rosto do Morton. Estava frio e oleoso. - Estremeceu. - Foi a
primeira vez na vida que senti o cheiro da morte. Pobrezinho, finalmente estava
em
paz. Como era? Era parecido com o Chuck e a Claire. Está sepultado no talhão da
família, no velho cemitério do Valley.
A hipótese de Carmine caiu por terra. Era impossível que Eliza Smith estivesse a
inventar tudo isto. A história dos Ponsonby era verdadeira e resumia-se a um
facto
bem comprovado: algumas famílias, por nenhuma razão lógica, sofriam uma sucessão
de desastres. Não tinham tendência para acidentes, tinham tendência para a
tragédia.
- Parece que há uma fraqueza na família - disse.
- Oh, sim. O Bob percebeu isso na Faculdade de Medicina, assim que estudou
Genética. Havia loucura e cegueira no lado da família da Ida, mas não nos
Ponsonby. A
Ida também enlouqueceu, pouco tempo depois. Acho que a última vez que a vi foi
no funeral do Morton. Com a Claire em Cleveland, deixei de visitar a casa dos
Ponsonbys.
- Quando é que a Claire voltou?
- Depois de a Ida enlouquecer completamente... pouco depois de Pearl Harbor. O
Chuck e o Bob nunca foram recrutados, passaram os anos da guerra na faculdade. A
Claire
esteve dois anos no Ohio, o tempo suficiente para aprender Braille e a
deslocar-se com uma bengala branca, como as pessoas cegas fazem. Ela foi uma das
primeiras
a ter um cão-guia. A Biddy já é a quarta.
Carmine levantou-se, devastado pela magnitude da sua desilusão. Por um momento,
acreditara de facto que terminara tudo; que fizera o impossível e descobrira os
Fantasmas.
Mas, afinal, estava tão longe da resposta como sempre.
- Muito obrigado por me ter informado tão bem, Mrs. Smith. Há mais alguma coisa
sobre outro Hugger que pense que eu devo saber? A Tâmara? - Respirou fundo. - A
Desdemona?
- Não são assassinas, tenente, tal como o Chuck e o Walt não o são. A Tâmara é
uma daquelas mulheres infelizes que não consegue escolher um bom homem e a
Desdemona...
- riu-se - ... é inglesa.
- Isso diz tudo sobre ela, é?
- Para mim, sim. Quando ela era pequena, mergulharam-na em goma.
Carmine deixou Eliza à porta e dirigiu-se ao seu Ford.
No entanto, havia uma coisa que ele podia e devia fazer: falar com Claire
Ponsonby e perceber por que razão ela lhe mentira em relação à data da sua
cegueira. E
talvez quisesse apenas vê-la - ver uma tragédia em carne e osso. Ela perdera o
pai e a fortuna da família aos cinco anos, a visão aos catorze, toda a liberdade
quando,
aos dezasseis, voltara para casa para cuidar de uma mãe louca. Um trabalho que
durara cerca de vinte e um anos. E contudo nunca sentira emanar dela a mínima
vibração
de auto-comiseração. Que mulher, Claire Ponsonby! Mas por que lhe mentira?
Biddy começou a ladrar assim que o Ford entrou no caminho de acesso ao número
seis de Ponsonby Lane; sinal de que Claire estava em casa.
- Tenente Delmonico - disse ela quando abriu a porta, segurando na coleira da
cadela.
- Como sabia que era eu? - perguntou ele, entrando.
- Pelo som do seu carro. Deve ter um motor muito potente, porque ronca mesmo em
ponto morto. Venha para a cozinha.
Ela atravessou a casa sem sequer roçar numa peça de mobiliário, até à cozinha
demasiado quente.
Biddy deitou-se ao canto, de olhos postos em Carmine.
- Ela não gosta de mim - disse ele.
- Há poucas pessoas de quem goste. O que posso fazer por si?
- Pode dizer-me a verdade. Acabo de estar com Mrs. Eliza Smith, que me informou
de que não é cega de nascença. Por que me mentiu?
Claire suspirou e bateu com as mãos nas coxas.
- Bom, dizem que os nossos pecados nos encontram sempre. Menti porque odeio com
todas as minhas forças as perguntas que se seguem inevitavelmente quando digo a
verdade.
Por exemplo, como se sentiu depois de deixar de ver? Foi um sofrimento muito
grande? Foi a coisa mais terrível que alguma vez lhe aconteceu? É mais difícil
ser cega
depois de saber o que é ver? E por aí fora. Bom, posso dizer-lhe que me pareceu
uma sentença de morte, que foi um grande sofrimento, que é de facto a coisa mais
terrível que me aconteceu. Acaba de reabrir as minhas feridas, tenente, e estou
a sangrar. Espero que esteja satisfeito. - Virou-lhe costas.
- Lamento, mas tinha de perguntar.
- Sim, eu vejo isso! - De súbito virou-se e sorriu-lhe. - É a minha vez de pedir
desculpa. Vamos recomeçar.
- Mrs. Smith disse-me também que vocês tinham um irmão, Morton, que morreu
subitamente mais ou menos na altura em que ficou cega.
- Meu Deus, a Eliza hoje estava muito tagarela! O senhor deve ser muito
atraente... ela sempre gostou de um homem bonito. Perdoe se pareço maldosa, mas
a Eliza conseguiu
tudo aquilo que queria. Eu não.
- Posso perdoar essa maldade, Miss Ponsonby.
- Já não sou Claire?
- Acho que a magoei demasiado para a tratar por Claire.
- Perguntou-me pelo Morton. Ele morreu pouco depois de eu ser enviada para
Cleveland. Não se deram ao trabalho de me mandar vir para o funeral, apesar de
eu ter
gostado de poder despedir-me. Ele morreu tão de repente que teve de ser
autopsiado, portanto havia tempo para eu regressar antes do enterro. Apesar da
loucura, ele
era um rapazinho muito querido. Triste, triste, triste...
Sai daqui, Carmine! Já ultrapassaste as tuas boas vindas.
- Obrigado, Miss Ponsonby. Muito obrigado, e lamento tê-la perturbado.
Teve de ser autopsiado... Isso significava que o relatório da morte de Morton
Ponsonby estaria arquivado em Caterby Street; mandaria um polícia procurá-lo.
No regresso a Holloman, passou pelo antigo cemitério do Valley, um cemitério que
ficara sem lugares para recém-chegados noventa anos antes. Continha sepulturas
de
Ponsonbys às dezenas, algumas muito mais antigas do que a fotografia mais antiga
na parede da cozinha dos Ponsonby. A lápide mais recente pertencia a Ida
Ponsonby,
morta em Novembro de 1963. Antes dela, Morton Ponsonby, morto em Outubro de
1939. E antes dele, Leonard Ponsonby, morto em Janeiro de 1930. Um trio de
tragédias
que um arqueólogo de túmulos nunca conheceria pelos epitáfios secos e pouco
informativos. Os Ponsonby não ostentavam as suas desgraças. Nem os Smith,
pensou, quando
encontrou a sepultura de Nancy. Seco e curto, sem mencionar qualquer causa de
morte.
O que faria Chuck Ponsonby sem o Hug? pensou, ao regressar ao carro. E sem as
orientações de pesquisa do professor? Virar-se-ia para a clínica geral? Não,
Charles
Ponsonby não tinha jeito para isso. Demasiado distante, demasiado austero,
demasiado elitista. Era mesmo possível que Chuck não conseguisse encontrar outro
emprego
na profissão médica, e, se assim fosse, não tinha qualquer interesse em destruir
o Hug.
Entrou no gabinete de Patrick com um gemido e atirou-se para a poltrona ao
canto.
- Como vai isso? - perguntou Patrick.
- Nem perguntes. Sabes o que me apetecia agora, Patsy?
- Não, o quê?
- Um belo tiroteio no parque de estacionamento do Chubb Bowl, de preferência com
metralhadoras. Ou um passeio no meio de dez bandidos que estivessem a assaltar o
Banco de Holloman. Qualquer coisa refrescante.
- Essa é a observação de um polícia inactivo e com o rabo dorido.
- Podes ter a certeza! Este caso é só conversa, conversa interminável. Nem
tiros, nem roubos.
- Presumo que o esboço que a Jill Menzies fez a partir da descrição feita pela
dona da loja não deu em nada?
- Absolutamente nada - Carmine endireitou-se, parecendo mais alerta. - Patsy, tu
que andas há mais dez anos do que eu neste mundo complicado, recordas-te de um
homicídio
na estação ferroviária em mil novecentos e trinta? Três pessoas espancadas até à
morte por um bando de vagabundos, ou coisa do género. Pergunto apenas porque um
deles era o pai do Charles e da Claire Ponsonby. E, como se isso não bastasse,
ele tinha perdido o dinheiro todo da família na queda da Bolsa. Patrick pensou e depois abanou a cabeça. "*
- Não, não me lembro... a minha mãe censurava tudo o que me chegava aos ouvidos,
quando eu era miúdo. Mas deve haver um relatório do caso enterrado nos arquivos.
Sabes como é o Silvestri... não deitaria fora nem um lenço de papel usado, e os
seus antecessores eram iguais.
- Ia mandar alguém a Caterby Street para procurar outro caso, mas, já que não
tenho nada melhor para fazer, acho que posso ir eu mesmo até lá e dar uma vista
de
olhos. Estou curioso em relação às tragédias dos Ponsonby. Será que também são
vítimas dos Fantasmas?
Faltava pouco mais de uma semana para o ataque seguinte dos Fantasmas; Fevereiro
era um mês curto, portanto talvez a data marcada para o próximo rapto fosse
princípios
de Março. Possuído por um temor crescente, Carmine teria ido ao Maine, mesmo
nesta altura do ano, se achasse que lá encontraria alguma coisa prometedora nos
arquivos,
mas Caterby Street era muito mais perto do que o Maine. O armazenamento de papel
era o pesadelo de qualquer funcionário público, quer se tratasse de relatórios
policiais,
fichas médicas, registos de pensões, valores e impostos sobre terras, taxas de
água, qualquer uma da centena de diferentes categorias. Quando o Hospital de
Holloman
fora reconstruído, em 1950, tinham reservado toda uma sub-cave para arquivos,
portanto não tinham problemas de espaço. Ao assumir o cargo de comissário, em
1960,
John Silvestri lutara ferozmente para manter cada folha de papel que a polícia
tinha guardado, até aos tempos em que Holloman tinha apenas um guarda e o roubo
de
um cavalo era um crime punido com enforcamento. Depois, uma empresa de cimento
local abrira falência e Silvestri atormentara todas as autoridades oficiais para
obter
o dinheiro e a autoridade necessários para comprar as instalações, mais de um
hectare em Caterby Street, uma área de indústrias conhecidas pelo pó e pelo barulho, logo
não propriamente propriedade muito valiosa. Os terrenos e todo o seu conteúdo
tinham
sido vendidos em leilão por doze mil dólares, e fora a polícia de Holloman o
licitador bem sucedido.
Nos terrenos havia um grande armazém, onde a empresa de cimento costumava
guardar os camiões e todo o tipo de equipamentos. E, depois de o pó ser limpo e
o resto
do lote arrumado, todos os arquivos da polícia tinham sido colocados no armazém,
em prateleiras metálicas. O tecto não deixava passar água - uma consideração
essencial - e duas grandes ventoinhas, uma em cada ponta, garantiam a circulação de ar
necessária para impedir que o bolor se instalasse no Verão.
Os dois arquivistas tinham uma vida confortável, numa caravana separada,
estacionada junto da entrada do armazém; o subalterno passava uma vassoura pelo
chão do
armazém de vez em quando e ia ao café mais próximo buscar café e comida,
enquanto o membro qualificado da parelha trabalhava na sua tese de doutoramento
sobre o
desenvolvimento das tendências criminosas em Holloman desde 1650. Nenhum deles
estava minimamente interessado neste tenente estranho o suficiente para vir a
Caterby
Street em pessoa. A arquivista qualificada limitou-se a dizer-lhe onde procurar
e voltou à sua tese, e o subalterno desapareceu numa carrinha da polícia.
Os registos de 1930 ocupavam dezanove caixas grandes, e os relatórios do
médico-legista de 1939 ocupavam quase o mesmo espaço: o crime aumentara muito
nesse intervalo
de nove anos. Carmine encontrou o caso de Morton Ponsonby em Outubro de 1939,
depois procurou Leonard Ponsonby na primeira caixa de 1930. O formato dos
relatórios
não mudara muito desde então. Apenas folhas de tamanho oficial dentro de uma
capa de cartolina, algumas agrafadas, outras soltas. Em 1930 ainda não tinham um
sistema
que prendesse as folhas à capa - nem, provavelmente, pessoal administrativo para
tratar dos ficheiros dos casos encerrados depois de serem removidos das gavetas
"em curso".
Mas ali estava, onde devia estar: ponsonby, Leonard Sinclair, empresário, 6
Ponsonby Lane, Holloman, Connecticut, idade 35, casado, três filhos.
Alguém colocara uma mesa e uma cadeira por baixo de uma clarabóia de plástico
transparente; Carmine levou as duas pastas dos Ponsonby para lá, bem como outra
pasta
mais fina que continha os detalhes dos dois outros homicídios na estação de
caminhos-de-ferro.
Abriu primeiro a pasta de Morton Ponsonby. Uma vez que a morte fora tão súbita e
inesperada, o médico dos Ponsonby recusara-se a assinar a certidão de óbito.
Isto
não sugeria que ele suspeitasse de algum crime; simplesmente queria uma
autópsia, para ver se lhe escapara alguma coisa durante os anos em que fora
quase impossível
abordar Morton Ponsonby, muito menos tratá-lo. O relatório de patologia era
típico e começava com a frase batida pelo tempo: "Este é o corpo de um
adolescente do
sexo masculino, bem nutrido e aparentemente saudável." Mas a causa da morte não
fora uma hemorragia cerebral, como Eliza Smith dissera. A autópsia não revelara
a
causa da morte, o que significava que o patologista a atribuíra a falha
cardíaca, possivelmente em consequência de inibição vagal. O médico estava muito
longe da
categoria de Patsy, mas fizera a gama de testes habituais em busca de venenos,
sem encontrar nada, e reparara na presença de psicose no historial médico. Não
havia
alterações no cérebro que indicassem a causa da psicose. O pénis do rapaz,
observara ele, não estava circuncidado e era muito grande, enquanto os
testículos tinham
descido apenas parcialmente. Para 1939, era um trabalho minucioso. Carmine ficou
sem quaisquer dúvidas de que Morton Ponsonby fora apenas mais uma infeliz vítima
da tendência para a tragédia da sua família. Ou talvez isso indicasse apenas que
a contribuição genética de Ida Ponsonby aos filhos fora insatisfatória.
Muito bem, passemos a Leonard Ponsonby. O crime acontecera em meados de Janeiro
de 1930, no meio de sessenta centímetros de neve um dos Invernos mais frios, causando nevões em Janeiro. O comboio, que partira
de Washington, chegara da Penn Station em Nova Iorque, duas horas atrasado
devido
a agulhas congeladas e a um deslizamento de neve para a linha. Em vez de ficarem
sentados à espera, os passageiros tinham decidido limpar eles próprios a linha.
Uma das carruagens trazia cerca de vinte bêbados que viajavam juntos, homens
desempregados com esperança de encontrar trabalho em Boston, o destino final do
comboio;
tinham sido eles os mais relutantes a pegar nas pás, embriagados, zangados,
agressivos, trabalhando apenas para se manterem quentes. Quando o comboio chegou
a Holloman,
parou durante um quarto de hora, permitindo aos passageiros comprarem algo para
comer no café da estação, uma alternativa mais barata do que a
carruagem-restaurante
quase vazia do comboio.
Ah, aqui estava a parte mais interessante! Leonard Ponsonby não ia a
desembarcar! Ia embarcar para viajar até Boston, pois era o que dizia o seu
bilhete. Preferira
esperar cá fora ao frio e, segundo um passageiro observador, parecia furtivo.
Furtivo! Ponsonby não exibira qualquer vontade de se mostrar no calor da sala de
espera
da estação, nem subira a bordo assim que o comboio chegara. Não, ficara lá fora,
na neve.
Eram nove horas da noite e este comboio para Boston era o último do dia. A
composição partiu na sua viagem enquanto os funcionários da estação davam a
volta à mesma,
trancando as salas de espera e as casas de banho ao exército de vagabundos que
percorriam a nação em busca de trabalho ou de esmolas, apesar de os vinte
bêbados
não terem deixado o comboio em Holloman. Algures entre Hartford e a fronteira do
Massachusetts, eles saltaram do comboio a coberto da escuridão, e foi por esse
motivo
que se tornaram suspeitos e foi por esse motivo que, depois de investigações
infrutíferas, acabaram por arcar com as culpas.
Leonard Ponsonby fora encontrado deitado na neve, com a cabeça praticamente
destruída à pancada; ao seu lado estavam uma mulher e uma menina, também com as cabeças esmagadas. O conteúdo da carteira de
Ponsonby identificava-o, mas a mulher e a criança não traziam nada que dissesse
quem
eram. A carteira velha e barata da mulher continha apenas um dólar e noventa
cêntimos em moedas, um lenço amarrotado e duas bolachas. Um saco de pano
continha roupa
interior lavada mas muito barata, de mulher e de criança, meias, dois cachecóis
e um vestido de menina. A mulher era bastante jovem, a criança tinha cerca de
seis
anos. Ponsonby era descrito como bem vestido e próspero, com dois mil dólares em
notas na carteira, um alfinete de diamante na gravata e quatro valiosos
diamantes
em cada um dos botões de punho de platina. A mulher e a criança, por outro lado,
tinham sido resumidas numa única frase, fortemente sugestiva: "sopa dos pobres".
Para o nariz sensível de Carmine, eram três homicídios suspeitos. Um homem
próspero, sozinho, mais uma mulher e uma criança pobres, não relacionadas com
ele. O roubo
não fora o motivo. Os três lá fora, à neve, quando deviam estar no interior da
estação a aquecerem as mãos no radiador a vapor. De uma coisa ele tinha a
certeza:
o bando do comboio não tivera nada a ver com os homicídios.
A verdadeira questão era, qual dos três seria a vítima desejada? Os outros dois
eram meras testemunhas, mortos porque tinham visto quem empunhava o instrumento
contundente
que os matara aos três, com um grau de selvajaria posteriormente comentado num
relatório policial que, tirando isso, era seco e incompleto. Cara, a vítima
original
era Leonard Ponsonby. Coroa, era a mulher. Se a moeda ficasse de pé, era a
criança.
Não havia quaisquer fotografias. A informação sobre a mulher e a presumida
filha, ou outro grau de parentesco, estava numa pasta fina, ao lado da relativa
a Ponsonby,
na segunda caixa dos arquivos de Janeiro. Tinham morrido os três por meio de um
instrumento contundente aplicado apenas contra os crânios, esmagados, mas o
detective
não fora suficientemente inteligente para perceber que Ponsonby teria de ter sido a primeira vítima; a mulher e a criança tinham assistido,
paralisadas de medo, até chegar a vez da mulher e depois da criança. Se Ponsonby
não
tivesse sido o primeiro, teria resistido. Assim, quem quer que brandira o
instrumento contundente - Carmine apostava num bastão de basebol - aproximara-se
sorrateiramente
sobre a neve e atacara Ponsonby antes que este se apercebesse da presença de
alguém. Outro fantasma, que extraordinário.
Quando saiu à procura dos arquivistas, eles já tinham fechado a caravana e ido
para casa - meia hora mais cedo. Estava na altura de John Silvestri virar o foco
intenso
dos seus supervisores para os arquivos da polícia em Caterby Street. Com as três
pastas na mão esquerda, Carmine partiu também: estes desleixados nem dariam pela
falta das pastas enquanto ele não as devolvesse. Um par de bandidos
burocráticos, seguros no conhecimento de que, desde que os arquivos não
ardessem, ninguém estaria
suficientemente interessado na sua existência para se preocupar com eles.
Errado, errado, errado.
No regresso ao edifício dos Serviços Municipais, passou pelos arquivos do
Holloman Post, onde descobriu que a morte estranha e horrível de Leonard
Ponsonby aparecera
na primeira página. A violência sem sentido, para além dos crimes domésticos,
era quase inédita em 1930; era o tipo de coisa que punha os jornais aos gritos
sobre
loucos fugidos do manicómio. Assassinatos por gangs houvera muitos, durante os
longos anos da Lei Seca, mas não caíam na categoria de violência sem sentido. Na
verdade,
mesmo depois de se ter verificado que nenhum louco fugira de um asilo, o
Holloman Post mantivera-se firme e continuara a insistir que o assassino era um
louco fugido
de alguma instituição fora do estado.
Com uma coisa e outra, chegou atrasado ao seu encontro com Desdemona no
Malvolio's.
- Desculpa - disse, sentando-se em frente dela. - Tens agora uma ideia de como é
a vida quando namoras com um polícia. Montes de compromissos falhados, muitos
jantares
frios. Ainda bem que não és muito de cozinhar. Comer fora é a melhor
alternativa, e não há melhor do que o Malvolio's, um restaurante de polícias.
Embalam tudo para
levar, desde uma refeição inteira a uma colher de tarte de maçã, assim que
alguém bate na montra.
- Gosto de ter um namorado polícia - disse ela com um sorriso. - Já pedi, mas
disse ao Luigi que esperasse um pouco. És demasiado generoso, devias deixar-me
pagar
pelo menos a minha parte da conta.
- Na minha família, um homem que deixasse a mulher pagar seria linchado.
- Pela tua cara, parece que tiveste um dia bom, para variar.
- Sim, descobri montes de coisas. O problema é que acho que são todas
irrelevantes. Mesmo assim, é divertido descobrir. - Estendeu o braço por cima da
mesa e pegou-lhe
na mão. - Também é bom descobrir coisas sobre ti.
Ela apertou-lhe a mão.
- Digo o mesmo, Carmine.
- Apesar deste caso terrível, Desdemona, a minha vida melhorou muito nos últimos
dias. E em grande parte graças a ti, linda.
Nunca ninguém lhe chamara linda antes; Desdemona sentiu uma onda de gratificação
e confusão, ficou vermelha como um tomate e sem saber para onde olhar.
Seis anos antes, em Lincoln, julgara-se apaixonada por um homem maravilhoso, um
médico; até que, ao passar pela porta do gabinete dele, ouvira a sua voz:
- Quem, a Desdemona Desesperada? Meu caro amigo, as feias ficam sempre tão
agradecidas que vale bem a pena cortejá-las. Dão boas mães e nunca precisamos de
nos preocupar
com o leiteiro, pois não? Afinal de contas, ninguém olha para a lareira quando
está a atiçar o fogo, por isso vou casar com a Desdemona. Ainda por cima,
teremos
filhos inteligentes.
No dia seguinte, começara a fazer planos para emigrar, jurando a si própria que
nunca mais se abriria a este tipo de crueldade pragmática.
Agora, graças a um monstro sem rosto, aqui estava ela, a viver com Carmine no
apartamento dele, talvez tomando como garantido que ele a amava tanto como ela o
amava.
Falar era fácil - não o provara o médico de Lincoln? Até que ponto as coisas que
ele lhe dissera não derivavam do seu profissionalismo, do seu instinto
protector,
do seu choque perante o que quase lhe acontecera? "Oh, Carmine, por favor, não
me desiludas!"
⁂
Faltava uma semana para o trigésimo dia após o rapto de Faith Khouri e ninguém,
incluindo Carmine, tinha razões para acreditar que as hipóteses de prevenir
outro
crime fossem agora melhores do que quatro meses antes. Quando é que algum caso
demorara tanto tempo a ser resolvido, com tantos homens, tantas precauções e
avisos,
tanta publicidade a nível estadual?
Tinham acordado que o procedimento geral devia ser o mesmo: todos os suspeitos
do estado seriam vigiados, vinte e quatro horas por dia, entre segunda-feira,
dia
vinte e oito de Fevereiro, e sexta-feira, dia quatro de Março. Isso incluía os
trinta e dois suspeitos de Holloman. O método de actuação da polícia tornara-se
mais
seguro, mais coerente; no caso do professor Bob Smith, por exemplo, a segurança
deplorável de Marsh Manor seria compensada por quatro equipas de vigilantes da
polícia
de Bridgeport. A menos que o seu alvo fosse uma vítima em Bridgeport, o
professor teria de atravessar a nado o rio Housatonic, se quisesse dirigir-se a
leste, ou
passar por seis bloqueios nas estradas se se dirigisse a oeste. Essa era a maior
diferença entre o plano do mês anterior e o novo: havia carros-patrulha e
polícias
uniformizados, bem como carros não identificados e polícias à civil, e bloqueios
nas estradas em todo o lado. Tinham concordado, numa reunião a nível estadual,
que
se os Fantasmas fossem apanhados num desses bloqueios antes de terem oportunidade de raptar
alguém, paciência. Qualquer suspeito conhecido apanhado numa situação dessas
ficaria
com uma enorme marca vermelha no cadastro e seria alvo de vigilância
concentrada. Se isso significasse que Fevereiro/Março seria um fiasco em relação
aos Fantasmas,
então em Março/Abril haveria novos métodos policiais e novos possíveis
suspeitos.
Carmine decidira não participar na vigilância; era pouco provável que no
princípio de Março ainda houvesse temperaturas negativas, portanto estaria
melhor noutro
lado, em contacto por rádio com toda a gente, e com um mapa gigante do
Connecticut numa parede ao seu lado. Dois ataques consecutivos dos Fantasmas a
leste sugeriam
que desta vez eles se dirigiriam a norte, oeste ou sudoeste. As polícias
estaduais de Massachusetts, Nova Iorque e Rhode Island tinham concordado em
patrulhar as
fronteiras com o Connecticut, com mais homens do que moscas numa carcaça. Era
guerra aberta.
Pensando mais na noite com Desdemona do que num caso tão parado que se tornara
enfadonho, nessa tarde Carmine foi devolver os ficheiros dos casos Ponsonby a
Caterby
Street.
- Ainda têm alguns bens pessoais não reclamados de mil novecentos e trinta? -
perguntou à metade mais educada do duo de arquivistas; o outro não estava em
lado nenhum
que ele visse. Nem a carrinha da polícia. E, raios, esquecera-se de dizer a
Silvestri o que se passava por aqui.
- Devemos ter bens pessoais desde o chapéu de Paul Revere - disse ela em tom
sarcástico, nada satisfeita por ele ter surripiado os seus ficheiros, mas pouco
preocupada
por ter estado ausente na segunda-feira anterior.
- Estas duas vítimas de homicídio - disse, acenando a pasta mais fina debaixo do
nariz dela. - Quero ver os seus bens pessoais.
Ela bocejou, examinou as unhas e olhou para o relógio.
- Receio que tenha deixado isso para muito tarde, tenente. São cinco horas e já
fechámos. Volte amanhã.
Amanhã Silvestri ia ter um relatório completo, mas por que não dar a esta cabra
arrogante uma noite sem dormir antes da machadada final?
- Nesse caso sugiro - disse ele em tom agradável - , que logo de manhã mande o
seu colega usar a carrinha da polícia de forma legal, para variar, entregando a
caixa
que estou a pedir-lhe ao tenente Carmine Delmonico no edifício dos Serviços
Municipais. Se a caixa em questão não for entregue, a minha sobrinha Gina
acabará sentada
na sua secretária. Ela está morta por arranjar um emprego público num canto
escondido, porque precisa de estudar. Quer entrar para o fbi, mas o exame de
entrada
é muito difícil para as mulheres.
⁂
Às onze da manhã, no domingo antes do início da vigilância, Carmine entrou na
parte do edifício dos Serviços Municipais reservada à polícia sentindo-se
sozinho,
irrequieto e tenso.
Sozinho, porque na sexta-feira à noite Desdemona anunciara que, se o tempo no
fim-de-semana estivesse minimamente tolerável, tencionava percorrer o Trilho
Apalache
até à fronteira do Massachusetts. Uma vez que adorava a presença dela na sua
cama, isto apanhara-o de surpresa; e ela recusara-se a dar ouvidos aos seus
protestos
por ter de desperdiçar um carro-patrulha para a levar e trazer. Carmine estava
preocupado porque as suas expectativas quanto a esta relação eram muito
diferentes
do que sentira com Sandra. Apesar de deslocada em ambos os papéis, Sandra fora
mulher e mãe, vivendo aninhada num compartimento especial da sua mente que ele
nunca
abria enquanto estava no trabalho. Desdemona, por outro lado, estava sempre
presente na sua mente, e isso não tinha nada a ver com o papel que ela
desempenhava no
caso. Simplesmente ansiava pelo tempo que passava com ela. Talvez tivesse a ver
com a idade: estava ainda na casa dos vinte quando conhecera Sandra, tinha
quarenta
e poucos quando conhecera Desdemona. Como pai, não se saíra muito bem, mas como
marido fora muito pior. E contudo sabia que esta relação de amantes com
Desdemona
não tinha futuro. Casamento, tinha de ser casamento. Mas estaria ela interessada em casar? Pura e
simplesmente não sabia. Percorrer o Trilho Apalache parecia indicar que ela não
precisava tanto
dele como ele dela. No entanto, era tão carinhosa quando estavam juntos, e nem
por uma vez o repreendera por a negligenciar por causa do trabalho. "Oh,
Desdemona,
não me deixes ficar mal! Fica comigo, une-te a mim!"
Irrequieto, porque a deserção de Desdemona o deixara com dois dias para
preencher e sem ninguém com quem os preencher; Silvestri proibira-o de meter o
nariz noutro
caso que não fosse o dos Fantasmas, exceptuando unicamente a situação racial,
caso esta rebentasse. E neste momento, com um domingo razoavelmente agradável,
com
temperaturas acima de zero, estaria Mohammed el Nesr ocupado? Não em
manifestações ou comícios, pelo menos. A sua imobilidade não era nenhum
mistério. Tal como Carmine,
Mohammed estava à espera que os Fantasmas raptassem outra vítima esta semana,
para renovar a dor e a indignação. O grande comício seria sem dúvida no domingo
seguinte.
Obrigando a polícia a afastar do caso dos Fantasmas homens desesperadamente
necessários. Uma chatice, mas boa estratégia da parte de Mohammed.
Tenso, porque o Trigésimo Dia estava quase a chegar.
- Tenente Delmonico? - perguntou o sargento de serviço.
- Era eu, a última vez que me vi ao espelho - disse Carmine com um sorriso.
- Encontrei uma caixa de evidências antiga atrás daqueles pacotes quando cheguei
esta manhã. Não tem qualquer nome, provavelmente foi por isso que não chegou a
recebê-la.
Depois encontrei uma etiqueta com o seu nome a metros da caixa. - Baixou-se,
remexeu debaixo do balcão e reapareceu com uma grande caixa quadrada, muito
parecida
com as que se encontravam actualmente em uso.
Os pertences da mulher e da criança espancadas até à morte em 1930! Tinha-se
esquecido completamente disso, tão absorvido estivera no planeamento da operação
de
vigilância. No entanto, não se esquecera de pedir a Silvestri que desse um
apertão à idiota dos arquivos e ao seu lacaio.
- Obrigado, Larry, fico a dever-te uma - disse, pegando na caixa e levando-a
para o seu gabinete.
Aqui estava algo para fazer num domingo de manhã, enquanto a sua amada caminhava
pelo meio das folhas molhadas.
Não foram relíquias fétidas de um crime com trinta e seis anos que se ergueram
da caixa quando tirou a tampa; a polícia da altura não se dera ao trabalho de
guardar
as roupas que as duas vítimas vestiam, o que significava que deviam estar todas
ensanguentadas, incluindo o calçado. Uma vez que ninguém pensara em registar a
distância
exacta que "perto" de Leonard Ponsonby significava, parte do sangue podia até
ser dele, tanto quanto Carmine sabia. Ninguém fizera sequer um esboço das
posições
dos corpos em relação uns aos outros. "Perto" era tudo o que tinha para se
basear.
A mala estava lá, contudo. Por uma questão de hábito, Carmine calçou luvas antes
de a retirar cuidadosamente da caixa para a examinar com os seus olhos modernos
e mais sofisticados. Feita à mão. Tricotada, como faziam as mulheres naquele
tempo de pouco dinheiro, com duas pegas de cana e um forro de algodão grosseiro.
Sem
fecho. Esta mulher não podia pagar nem sequer o mais barato couro de vaca, muito
menos cabedal. A mala continha uma pequena carteira na qual havia um dólar de
prata,
três moedas de vinte e cinco cêntimos, uma de dez cêntimos e outra de cinco
cêntimos. Carmine pousou a carteira na secretária. Um lenço de homem, limpo mas
não engomado;
de algodão, não de linho. E, no fundo, fragmentos e migalhas do que presumiu que
fossem as duas bolachas. A mãe provavelmente roubara-as do café da estação para
a criança ter qualquer coisa que comer no comboio, e talvez fosse por essa razão
que ambas estavam escondidas lá fora, ao frio. As autópsias tinham revelado que os estômagos de ambas estavam vazios. Sim, ela roubara as bolachas.
O saco não era grande, apesar de ser suficientemente antigo para poder ser um
daqueles que os predadores do Norte tinham trazido para o Sul depois da Guerra
Civil.
Desbotado, puído em certos sítios, nunca fora elegante, nem mesmo em novo.
Abriu-o com reverência; aqui residira quase tudo o que a pobre mulher possuíra,
e nada
era mais comovente do que evidências de vidas há muito perdidas.
Por cima estavam dois cachecóis de lã compridos, tricotados à mão, com riscas de
várias cores, como se quem os fizera estivesse a aproveitar restos. Mas por que
estavam os cachecóis no saco se o tempo estava tão horrível? Reservas? Por baixo
havia dois pares de cuecas de mulher, lavadas, feitas de pano-cru, e dois pares
muito mais pequenos, obviamente pertencentes à criança. Um par de meias pelo
joelho e um par de meias de senhora, ambos tricotados. No fundo, cuidadosamente
dobrado
e enrolado em papel, um vestido de criança.
Carmine susteve a respiração. Um vestido de menina. Feito de renda francesa
azul-clara, requintadamente bordado com pequenas pérolas. Mangas de balão com
punhos
delicados, botões de madrepérola nas costas, forro de seda, e por baixo disso um
saiote de entretela para erguer a saia como o tutu de uma bailarina. O percursor
em 1930 dos vestidos da Sininho, excepto que este fora completamente feito à
mão, cada pérola cosida separadamente e com pontos firmes, todas as costuras
feitas
à mão. Oh, as coisas que os polícias de 1930 tinham deixado passar! No bolso
esquerdo viu a palavra emma desenhada com pérolas escuras de tom púrpura.
Com a cabeça a rodopiar, Carmine estendeu o vestido sobre a secretária e depois
limitou-se a olhar para ele durante um período que podia ter sido cinco minutos
ou
uma hora; não sabia, não olhara para o relógio.
Por fim sentou-se e pôs o saco no colo, abrindo-o tanto quanto as dobradiças
enferrujadas permitiam. O forro estava gasto, descosido de um dos lados; enfiou ambas as mãos dentro do saco e apalpou-o, de
olhos fechados. Ali! Qualquer coisa!
Uma fotografia, e não tirada por uma Brownie. Era um retrato feito em estúdio,
ainda montado numa capa de cartolina creme com o nome do fotógrafo. Mayhew
Studios,
Windsor Locks. Alguém escrevera o que parecia ser "1928" por baixo da
fotografia, mas a lápis, e os números estavam tão desvanecidos que era apenas um
palpite.
A mulher estava sentada numa cadeira, com a criança - com cerca de quatro anos -
sobre os joelhos. Nesta fotografia a mulher estava muito mais bem vestida, com
um
colar de pérolas verdadeiras ao pescoço e brincos também de pérolas nas orelhas.
A menina usava um vestido semelhante ao que se encontrava no saco, e via-se
claramente
a palavra emma. E ambas tinham rosto. Mesmo a preto e branco, a pele de ambas
tinha uma sugestão de café com leite; o cabelo era fortemente encaracolado e
preto,
os olhos muito escuros, os lábios cheios. Para Carmine, que as observava através
de um véu de lágrimas, elas eram perfeitas. Destruídas em toda a sua juventude e
beleza, ambas reduzidas a uma massa sanguinolenta.
Um crime de ódio. Por que raio ninguém se apercebera disso? Nenhum assassino
desperdiçaria a sua essência numa catadupa de golpes violentos se o motivo não
fosse
o ódio. Principalmente quando o crânio por baixo da arma pertencia a uma
criança. Um crime de ódio, e nem pensar que estas duas criaturas não estavam
ligadas a Leonard
Ponsonby. Elas estavam ali por causa dele, ele estava ali por causa delas.
Então, afinal de contas, sempre é Charles Ponsonby, apesar de não ter idade
suficiente para ter sido ele a cometer este primeiro crime. Nem Morton, nem
Claire. Isto
fora obra de Ida, a louca, mais de uma década antes de enlouquecer. O que
significa que Leonard e a mãe de Emma eram... amantes? Familiares? Uma coisa era tão provável como a
outra; Ida era ultra-conservadora, qualquer contacto com os mais escuros estaria
fora
de questão para ela! Tantas perguntas por fazer! Por que razão seriam Emma e a
mãe tão miseráveis em Janeiro de 1930, quando Leonard estava ao lado delas com
dois
mil dólares no bolso e ostentando jóias com diamantes? O que acontecera a Emma e
à mãe entre a prosperidade da fotografia de 1928 e a sua miséria em Janeiro de
1930?
"Basta, Carmine, basta! 1930 pode esperar, 1966 não. Chuc Ponsonby é um dos
Fantasmas - ou será o único Fantasma, fazendo tudo isto sozinho? Até que ponto
Claire
o ajudará? Até que ponto pode ajudá-lo? Poderá um dos Ponsonbys ser um Fantasma
e o outro não? Sim, por causa da cegueira de Claire. Eu sei que ela é cega!
Chuck
podia fazer o que tinha a fazer numa cave secreta, à prova de som, e ela nunca o
saberia. Tenho a certeza de que é à prova de som. Os gritos têm de ser contidos,
e os gritos fazem muito barulho.
Charles Ponsonby... Um solteirão caseiro, incapaz de fazer qualquer pesquisa
original. Sempre à sombra de outra pessoa - a mãe louca, o irmão louco, a irmã
cega,
amigos mais bem sucedidos. Não se dá ao trabalho de usar meias a combinar, de
pentear o cabelo, de comprar um casaco novo. O típico professor distraído,
demasiado
tímido para pegar num rato sem usar luvas grossas, indefinido de uma forma que
sugere um fracasso radical do ego, apesar do verniz da arrogância intelectual.
Mas poderá este Charles Ponsonby ser o retrato de um assassino/violador em
série, tão brilhante que nos tem atirado areia para os olhos desde que
descobrimos a sua
existência? Parece impossível de acreditar. O problema é que ninguém tem um
retrato de um assassino em série, excepto no aspecto de que o sexo parece estar
sempre
envolvido. Assim, sempre que desenterramos um espécime, temos de o dissecar
minuciosamente. A idade, a raça, o credo, a aparência, o tipo de vítima que
escolhe,
a personalidade que apresenta ao mundo, e a infância, antecedentes, gostos e
antipatias - um milhar de factores. Sobre Charles Ponsonby, podemos sem dúvida dizer que, do lado da mãe, a família
tem um historial de loucura e de cegueira."
Carmine voltou a arrumar o conteúdo da caixa exactamente como o encontrara e
levou-a para a recepção.
- Larry, põe isto no armazém de segurança imediatamente - disse, quando a
entregou ao sargento de serviço. - Ninguém pode aproximar-se dela.
Depois, antes que Larry conseguisse responder, Carmine saiu porta fora. Estava
na altura de dar mais uma vista de olhos ao número seis de Ponsonby Lane.
As questões rodopiavam na sua cabeça, como enxames de vespas em busca de um
ninho chamado respostas: por exemplo, como é que Charles Ponsonby conseguira ir
do Hug
ao Liceu Travis, e voltar, deixando toda a gente convencida de que estivera
presente na conferência no telhado? Desdemona tinha demorado trinta preciosos
minutos
a encontrá-los, e contudo os seis tinham jurado que ninguém se ausentara sequer
o tempo necessário para ir à casa de banho. Até que ponto seria fiável a atenção
de um investigador distraído? E como é que Ponsonby saíra de casa na noite do
rapto de Faith Khouri, quando esta estivera sempre tão vigiada? O conteúdo da
caixa
de evidências de 1930 seria suficiente para arrancar um mandato de busca ao juiz
Douglas Thwaites? As questões não tinham fim.
Desceu a estrada 133 vindo de nordeste, o que o levou a passar primeiro por Deer
Lane. Do ponto de vista do concelho, as quatro casas existentes de um dos lados
da rua não eram suficientes para justificar o alcatroamento; os quinhentos
metros de Deer Lane estavam cobertos por gravilha. Ao fundo, a rua alargava num
largo
circular com espaço suficiente para estacionar seis ou sete carros. A floresta
chegava mesmo até à estrada de todos os lados - vegetação secundária, claro. Duzentos anos atrás, esta terra teria sido limpa e cultivada,
mas, à medida que os solos mais férteis do Ohio e do Oeste chamavam, a
agricultura
deixara de ser tão lucrativa para os ianques do Connecticut como as indústrias
de precisão com linha de montagem fundadas por Eli Whitney. Assim os bosques
tinham
crescido profusamente - carvalhos, bordos, faias, bétulas, sicómoros, alguns
pinheiros. Cornizos e loureiros que se cobriam de flores na Primavera. Macieiras
silvestres.
E os veados também tinham voltado.
Os seus pneus rangeram audivelmente sobre a gravilha, o que reforçou a sua
opinião de que os carros que vigiavam Deer Lane, na junção com a estrada 133, na
noite
em que Faith Khouri desaparecera, teriam ouvido qualquer veículo, bem como
teriam visto o fumo branco do escape. E os únicos carros estacionados em Deer
Lane nessa
noite eram carros da polícia não identificados. Assim, embora fosse possível que
Chuck Ponsonby tivesse subido a ladeira por trás da sua casa sem uma lanterna,
para
onde teria ido depois? Não podia ter deixado um carro mais perto do que na
estrada 133, a uma boa distância dali, e mesmo que a viatura pertencesse a um
parceiro,
ele não podia tê-lo apanhado mais perto do que isso. Uma caminhada tão longa com
temperaturas abaixo de zero? Pouco provável. Um congelador era quente, em
comparação
com essa noite. Então como é que o fizera?
Carmine tinha uma máxima: se fosse forçado a dar um passeio num dia bonito, o
melhor era fazê-lo perto de um suspeito; e se o passeio envolvesse uma floresta,
valia
a pena levar um par de binóculos para observar os passarinhos. De binóculos ao
pescoço, Carmine subiu a ladeira, entre as árvores, em direcção à crista que se
erguia
sobre o número seis de Ponsonby Lane. O chão estava coberto por uma espessa
camada de folhas molhadas. A neve derretera, excepto por baixo de um ou outro
pedregulho
e em fendas onde o calor não penetrara. Vários veados fugiram do seu caminho,
mas não assustados; os animais sabiam sempre quando estavam numa reserva. Era um sítio bonito, reflectiu Carmine, muito tranquilo nesta época do
ano. No Verão, o zumbido agudo dos cortadores de relva e as gargalhadas dos
churrascos
ao ar livre estragariam esta paz. Sabia, pelas investigações anteriores da
polícia, que ninguém se aventurava mais além do parque de estacionamento, nem
mesmo para
encontros sexuais ilícitos; nos oito hectares da reserva não havia latas de
cerveja, caricas, garrafas, detritos plásticos ou preservativos usados.
Quando se chegava ao cimo da crista, era surpreendentemente fácil ver a casa dos
Ponsonby. As árvores nesta parte da encosta tinham sido drasticamente reduzidas,
para criar uma aparência de ordenação florestal: um maciço de bétulas americanas
de troncos bifurcados, um bonito ulmeiro com ar saudável, dez bordos plantados
de
maneira a que as folhas de Outono proporcionassem um espectáculo maravilhoso, e
cornizos de estufa que transformariam o terreno num sonho de branco e
cor-de-rosa
na Primavera. O desbaste devia ter sido feito há muito tempo, pois os cotos das
árvores cortadas já tinham desaparecido.
Levantando os binóculos, inspeccionou a casa como se estivesse a quinze metros
dela. Ali estava Chuck em cima de um escadote, com um escopro e um maçarico,
removendo
a tinta antiga da maneira correcta. Claire estava recostada numa cadeira de
madeira perto do alpendre da lavandaria, com Biddy aos seus pés; a leve brisa
beijava-lhe
o rosto, por isso a cadela não farejara a presença dele. Depois Chuck chamou-a.
Claire levantou-se e contornou a esquina da casa com tanta segurança que Carmine
ficou espantado. E contudo ele sabia que Claire era cega.
Como é que o sabia com tanta certeza? Porque Carmine não deixava pedra sobre
pedra, e a cegueira de Claire era uma pedra no seu caminho. Por vezes utilizava
os serviços
de uma carcereira de uma prisão de mulheres, chamada Carrie Tallboys, uma mulher
que lutava para sustentar um filho prometedor e portanto estava disponível para
trabalhos fora do seu horário normal. Carrie tinha um talento curioso, que
envolvia representar um papel de forma tão convincente que as pessoas lhe diziam sempre muito mais do que deviam. Assim, Carmine
mandara Carrie falar com o oftalmologista de Claire, o eminente Cárter Holt. A
história
que Carrie lhe contou foi que estava a pensar doar algum dinheiro para a
investigação da retinite pigmentosa, uma vez que a sua querida amiga Claire
Ponsonby sofrera
dessa doença antes de ficar completamente cega. Ah, que bem que o doutor se
lembrava do dia em que Claire lhe aparecera com um descolamento de retina
bilateral -
era tão raro acontecer nos dois olhos ao mesmo tempo! O seu primeiro grande
caso, e logo um caso que estava para além das suas capacidades de cura. Mas,
protestou
Carrie, certamente que hoje em dia já tinha cura? De forma alguma, dissera o Dr.
Holt. Claire Ponsonby estava irremediavelmente cega, para o resto da vida. Ele
próprio
lhe observara os olhos e vira os danos. Muito triste!
Carmine viu a cega Claire falar animadamente com Chuck, que desceu do escadote,
deu o braço à irmã e a levou para dentro pelo alpendre da lavandaria. A cadela
seguiu-os;
depois ouviram-se os acordes distantes de uma sinfonia de Brahms. E pronto, os
Ponsonbys pelos vistos já tinham apanhado ar suficiente. Mas - espera, espera!
Oh,
sim, claro. Chuck voltou a aparecer, pegou nas ferramentas e no escadote e levou
tudo para a garagem antes de voltar a entrar em casa. Ele tinha um lado da sua
personalidade
que exigia cada coisa no seu lugar, mas seria uma pessoa obsessiva?
Baixando os binóculos, Carmine deu meia volta para regressar a Deer Lane. Era
mais difícil o caminho descendente, no meio de montes de folhas viscosas e
apodrecidas;
nem mesmo os veados tinham feito ainda os seus trilhos, embora no Verão eles
cruzassem o bosque. Imerso em pensamentos sobre Charles Ponsonby e as suas
contradições,
Carmine começou a caminhar mais depressa, agora ansioso por voltar ao escritório onde poderia mastigar tranquilamente o
enigma. E também mastigar qualquer coisa no Malvo-lio's.
De repente, os seus pés escorregaram nas folhas e deu por si a cair para a
frente, com ambas as mãos estendidas para amparar a queda. As folhas mortas
voaram em
montes ensopados quando aterrou sobre as palmas das mãos com um baque surdo e
oco. Deslizou pela encosta, procurando um apoio, até que por fim o impulso da
queda
abrandou e conseguiu parar. Dois sulcos profundamente escavados no solo
assinalavam o movimento das suas mãos. Praguejando entre dentes, virou-se e
levantou-se,
sentindo a pele raspada a arder mas aliviado por não se ter magoado seriamente.
"Estúpido, Carmine, estúpido! Ias demasiado distraído com os teus pensamentos
para
veres onde punhas os pés, seu palerma."
Mas, porquê um som oco? Curioso, porque era essa a sua natureza, agachou-se e
escavou num dos canais feitos pelas suas mãos; a uma profundidade de quinze
centímetros
encontrou uma tábua. Escavando agora freneticamente, afastou as folhas até
conseguir ver parte do que ali se encontrava: a superfície do que podia ser o
alçapão
de uma antiga cave.
Oh, meu Deus, meu Deus! Subitamente galvanizado, voltou a puxar as folhas para
onde estavam, espalhando-as, compactando-as, com a testa banhada em suor, a
respiração
ofegante. Quando achou que conseguira eliminar todas as evidências da queda,
levantou-se para examinar o seu trabalho. Não, não estava suficientemente bom.
Se alguém
examinasse a área com atenção, perceberia. Tirou o casaco e usou-o para recolher
mais folhas a cerca de cem metros. Transportou-as para o local da queda e
distribuiu-as,
depois pegou no casaco e usou-o como uma vassoura para eliminar todos os traços
da sua intrusão. Finalmente, quase sem fôlego, achou que ninguém desconfiaria do
que acontecera. "Agora sai daqui, Carmine!" E fê-lo de gatas, às arrecuas,
espalhando as folhas no seu rasto; estava quase no parque de estacionamento
quando se
levantou. Com um pouco de sorte, os veados fariam desaparecer o seu rasto enquanto procurassem forragem de
Inverno.
Depois de entrar no Ford, rezou para que a audição apurada de Claire não fosse
boa ao ponto de ouvir um motor potente em Deer Lane. Pisou suavemente o
acelerador
e deslizou até à esquina em primeira. Parte dele mal podia esperar por
transmitir as novidades a Silvestri, Marciano e Patrick, mas decidiu não lhes
telefonar do
ninho de amor do motel, que estava a ter um bom domingo de negócios. Era melhor
virar para nordeste e voltar por onde tinha vindo. Não morreria por esperar mais
um pouco.
Afinal de contas, o nosso Chuckie não tivera de fazer uma caminhada assim tão
longa em temperaturas negativas! E não precisara de usar uma lanterna, porque
tinha
um túnel que só vinha à superfície já bem na encosta da reserva. Alguém - ele,
ou muito antes dele? - escavara profundamente sob a crista, encurtando a
distância.
No Connecti-cut, a centenas de quilómetros da linha Mason-Dixon, certamente que
o túnel não fora aberto para os escravos fugitivos. "Aposto que foste tu que o
escavaste,
Chuckie. Na noite em que raptaste Faith Khouri, tudo o que tiveste de fazer foi
sair; quando voltaste com ela, nós já tínhamos abandonado a zona. Esse foi um
dos
nossos erros. Devíamos ter mantido a vigilância. Embora, para ser justo, nunca o
teríamos apanhado a regressar: estávamos a vigiar Ponsonby Lane e a casa, não
sabíamos
da existência do túnel. Portanto dessa vez a sorte esteve do teu lado, Chuckie.
Mas agora está do nosso. Já sabemos onde está o túnel."
Uma vez que estava esfomeado e queria mais algum tempo para pensar, Carmine
almoçou no Malvolio's antes de convocar os outros para uma reunião.
- Compreendo agora o significado de uma velha expressão - disse quando Patrick, o
último a chegar, abriu a porta do gabinete de Silvestri.
- Que expressão? - perguntou Patrick, sentando-se.
- Prenhe com novidades.
- Aqui tens três parteiras especialistas, portanto dá à luz.
Com palavras claras, numa sequência de eventos lógica e correcta, Carmine
conduziu a sua assistência, passo a passo, ao longo de tudo o que acontecera
depois de
falar com Eliza Smith.
- Partiu tudo dela... do que ela disse, da forma como o disse. Foi o meu
catalizador. Que culminou numa queda pela colina... Isso é que foi sorte! Tenho
tido tanta
sorte neste caso - disse, quando acabou de contar a sua história e os seus
ouvintes conseguiram fechar a boca.
- Não, sorte não - objectou Patrick, de olhos a brilhar. - Determinação,
teimosia e casmurrice, Carmine. Quem mais se lembraria de voltar a investigar a
morte de
Leonard Ponsonby? E quem mais se daria ao trabalho de abrir uma caixa de
evidências com trinta e seis anos? Reabriste um crime considerado encerrado,
apenas porque
és uma das poucas pessoas que eu conheço que, quando um raio cai duas vezes no
mesmo sítio, sabem que é porque algo o está a atrair.
- Tudo isso é muito bonito, Patsy, mas não era o suficiente para levar ao juiz
Thwaites. As verdadeiras evidências, encontrei-as por acaso... uma queda numa
encosta
escorregadia.
- Não, Carmine. A queda pode ter sido um acidente, mas o que encontraste não foi
nenhum acaso. Outra pessoa ter-se-ia levantado, sacudido a roupa - Patrick tirou
folhas secas do casaco arruinado de Carmine - e saído dali a coxear. Tu
encontraste a porta porque o teu cérebro registou um ruído estranho, não porque
a queda a
tenha deixado à vista. Seja como for, nem sequer estarias na encosta se não
tivesses encontrado uma fotografia tirada em mil novecentos e vinte e oito.
Vamos, aceita
algum crédito!
- Está bem, está bem - exclamou Carmine, erguendo as mãos. - O mais importante é
decidir o que fazemos a partir daqui.
A atmosfera no gabinete de Silvestri vibrava quase visivelmente com exaltação,
alívio, a alegria maravilhosa e inimitável que surge quando um caso é resolvido.
Em
especial o caso dos Fantasmas, tão sombrio, tão perturbador, tão penosamente
longo e demorado a resolver. Fossem quais fossem as dificuldades que ainda
viriam a
surgir - todos eles eram experientes o suficiente para saberem que isso
aconteceria - tinham respostas bastantes para avançarem, para sentirem que o fim
estava próximo.
- Primeiro, não podemos partir do princípio de que o sistema jurídico está do
nosso lado - disse Silvestri por trás do charuto. - Não quero que isto vá por
água abaixo
por causa de um aspecto técnico errado qualquer... principalmente se a defesa
dele puder imputar esse erro à polícia. Admitamos, geralmente somos nós os bodes
expiatórios.
Este será um grande julgamento, com cobertura nacional. Isso significa que a
defesa do Ponsonby não estará nas mãos de advogadozinhos de meia tigela, mesmo
que ele
não tenha muito dinheiro. Todos os vermes que conheçam as leis do Connecticut e
as leis federais vão andar à bulha para entrar na equipa de defesa do Ponsonby.
E
para fazer de nós os bodes expiatórios. Não podemos dar-nos ao luxo de cometer
um único erro.
- O que está a dizer, John, é que, se arranjarmos um mandato agora e invadirmos
o túnel do Ponsonby, a única coisa concreta que teremos é algo parecido com uma
sala
de operações, montada na casa de um médico - disse Patrick. - Tal como o
Carmine, eu sempre achei que este assassino não tem um matadouro imundo e sujo
de sangue...
tem uma sala de operações. E, se for tão cuidadoso com os vestígios que deixa na
sua sala de operações como tem sido com os que deixa nas vítimas, somos bem
capazes
de sair de lá de mãos a abanar. É nisso que está a pensar?
- Exacto - confirmou Silvestri.
- Nada de erros - disse Marciano. - Nem um.
- E já cometemos carradas deles - acrescentou Carmine.
O silêncio instalou-se; a exaltação desaparecera completamente. Por fim,
Marciano soltou uma exclamação exasperada e começou a falar:
- Já que ninguém quer dizê-lo, digo-o eu. Temos de apanhar o Ponsonby em
flagrante. E se é isso que temos de fazer, então é isso que temos de fazer.
- Oh, Danny, por amor de Deus! - gritou Carmine. - Pôr a vida de outra rapariga
em perigo? Fazê-la passar pelos horrores de ser raptada por aquele homem? Não o
farei!
Recuso-me a fazê-lo!
- Ela apanhará um susto, sim, mas nada que não possa superar. Sabemos quem ele
é, certo? Por isso podemos segui-lo... não precisamos de seguir mais ninguém...
- Não podemos fazer isso, Danny - interveio Silvestri. - Temos de vigiar toda a
gente, tal como fizemos o mês passado. Caso contrário ele reparará. Não podemos
fazer
nada sem uma operação completa.
- Está bem, compreendo. Mas sabemos que é ele, portanto podemos dar-lhe uma
atenção especial. Quando ele se mover, nós estaremos lá. Seguimo-lo até casa da
vítima
e deixamo-lo agarrá-la antes de o agarrarmos a ele. Com o rapto em flagrante, o
túnel e a sala de operações, é impossível que ele saia do tribunal em liberdade
- disse Marciano.
- O problema é que é tudo circunstancial - resmungou Silvestri.
- O Ponsonby cometeu pelo menos catorze homicídios, mas temos apenas quatro
cadáveres. Sabemos que as primeiras dez vítimas foram incineradas, mas como
havemos de
o provar? Acham que o Ponsonby tem cara de quem vai confessar? Eu não acredito
nisso. Uma vez que há raparigas de dezasseis anos a fugirem de casa todos os
dias,
temos dez homicídios pelos quais nunca conseguiremos condená-lo. Está tudo
dependente da Mercedes, da Francine, da Margaretta e da Faith, mas não há nada
que o ligue
a nenhuma delas para além de uma suspeita frágil como cristal. O Danny tem
razão.
A nossa única esperança é apanhá-lo com a mão na massa. Se invadirmos o covil
agora, ele não será condenado. Os advogados dele serão suficientemente bons para
persuadirem
um júri a declarar a inocência de Hitler ou Estaline.
Olharam uns para os outros, com expressões perplexas e furiosas.
- Temos outro problema - disse Carmine. - A Claire Ponsonby. O comissário
Silvestri não era um homem profano, mas neste
dia - ainda por cima um domingo! - quebrou as suas próprias regras.
- Merda! Porra! - exclamou entre dentes. E depois cuspiu: - Foda-se!
- Até que ponto achas que ela está a par, Carmine? - perguntou Patrick.
- Não tenho a mínima ideia, Patsy, para dizer a verdade. Sei que a cegueira dela
é genuína, o oftalmologista garante-o. E trata-se do doutor Cárter Holt,
actualmente
professor de Oftalmologia na Chubb. No entanto, nunca vi uma pessoa cega tão
apta como ela. Se é ela o isco que eles usam para atrair adolescentes inocentes,
cheias
de vontade de fazer o bem, nesse caso ela é cúmplice de violação e homicídio,
mesmo que nunca tenha entrado na sala de operações do irmão. Que melhor isco do
que
uma mulher cega? No entanto, uma mulher cega dá muito nas vistas, e é por isso
que estou tentado a pôr essa teoria de lado. Ela estaria a agir em locais que
não
conhece tão bem como a casa de Ponsonby Lane, portanto não conseguiria mover-se
muito depressa. E como reconheceria o alvo, a menos que o Chuck estivesse ao seu
lado? Oh, passei muito tempo esta manhã a pensar na Claire! Estou constantemente
a imaginá-la em frente da escola de St. Martha em Norwalk... sabiam que esse
passeio
está em mau estado há mais de um ano, devido a reparações nos canos? Com duas
raparigas desaparecidas no mesmo sítio, alguém teria reparado nela. Para mim, a
Claire
teria precisado de passar muitas vezes naquele passeio esburacado, para treinar.
Acabei por chegar à conclusão de que ela seria mais um entrave do que um trunfo
para o Chuck. Suponho que poderia ter alguma utilidade no carro que transporta as vítimas até à sala de operações, mas parece-me um argumento um
pouco rebuscado. No entanto, ele tem de ter um cúmplice.
- Então excluímos a Claire como cúmplice? - perguntou Silvestri.
- Não completamente, John. Apenas como improvável.
- Talvez ela não seja a cúmplice, mas saberá o que o irmão anda a fazer? -
perguntou Patrick.
- Tudo o que posso dizer-vos é que existe uma ligação extremamente forte entre
ambos. Agora que sabemos como foi a infância deles, essa ligação faz mais
sentido.
Foi a mãe deles que assassinou o pai, apostaria a minha vida nisso. O que
significa que a Ida Ponsonby já era mentalmente instável muito antes de piorar
ao ponto
de a Claire ter de voltar para casa para tomar conta dela. Segundo parece,
aconteceu tão subitamente como tudo o resto.
- Os filhos saberiam do homicídio, Carmine?
- Mais uma vez, não faço ideia, Patsy. Como é que a Ida teria voltado para casa
no meio daquele nevão em mil novecentos e trinta? Presumo que no carro de
Leonard,
mas será que as estradas já eram limpas nessa altura? Não me lembro.
- As principais sim, claro - disse Silvestri.
- Ela devia estar suja de sangue. Talvez os filhos tenham visto.
- Especulações! - exclamou Marciano. - Vamos limitar-nos aos factos.
- O Danny tem razão, como sempre - disse Silvestri, recompensando-o com o
charuto debaixo do nariz. - Começamos a vigilância amanhã à noite, portanto
temos de definir
as alterações agora.
- A alteração mais importante - disse Carmine - , é que o Corey, o Abe e eu vamos
vigiar a entrada do túnel na reserva.
- E o cão? - perguntou Patrick.
-A cadela, sim... isso é uma complicação. Duvido que aceitasse carne com drogas,
os cães-guia são treinados a não aceitar comida de estranhos e a não comer nada
que encontrem no chão. E, uma vez que é uma cadela esterilizada, não se afastará
em busca de companhia canina. Se nos ouvir, ladrará. E não tenho a certeza se o Chuck não levará a Biddy com
ele, para ficar de guarda à entrada do túnel na sua ausência. Se assim for, o
animal
com certeza que nos farejará. Patrick riu-se.
- Não se estiverem a usar eau de doninha! Os restantes olharam para ele,
horrorizados.
- Credo, Patsy, não!
- Bom, pelo menos o Abe e o Corey - cedeu Patrick com expressão maliciosa. -
Bastaria até um de vós.
- Um de nós de certeza que não usará eau de doninha, e esse sou eu - disse
Carmine de testa franzida. - Tem de haver outra maneira.
- Não há, pelo menos sem nos denunciarmos ao Ponsonby. Não podemos raptar a
cadela, naturalmente. Não estamos a falar de um simplório qualquer com um plano
mal alinhavado,
estamos a falar de um médico que tem estado sempre à nossa frente, desde o
princípio. Se a cadela desaparecer, ele saberá que o descobrimos e será o fim
dos raptos - disse Patrick. - O trunfo que ele tem na manga é a porta do túnel na reserva,
e temos de o fazer acreditar que essa continua a ser um segredo só dele. Talvez
a
proteja, com arames, sinetas ou campainhas que vocês possam pisar como uma mina,
ou uma luz numa árvore... antes de se aproximarem, por amor de Deus procurem
bem.
Da mesma forma, de certeza que ele usará a cadela. Não sei como, mas tenho a
certeza disso. Se eu fosse a ele, deitaria um comprimido para dormir na última
bebida
da Claire nessa noite.
- Patsy, que mente tortuosa! - disse Silvestri com um sorriso.
- Não tanto como a do Carmine, John. Admitam, tudo o que eu disse é lógico.
- Sim, eu sei. Mas onde é que havemos de encontrar perfume de doninha?
- Eu tenho uma garrafa dele - disse Patrick docemente. Carmine olhou para
Silvestri com ar ameaçador.
- Nesse caso, o orçamento da polícia de Holloman tem de incluir literalmente
litros de sumo de tomate. Não posso pedir ao Abe e ao Corey que ponham perfume de doninha atrás das orelhas sem lhes oferecer um banho de
sumo de tomate pela manhã. - Franziu a testa, frustrado. - Temos alguma banheira
nas
celas, ou apenas duches?
- Há uma grande banheira de ferro numa sala das traseiras, na parte velha do
edifício. Mais ou menos na mesma época em que o Leonard Ponsonby foi morto à
pancada,
era usada para acalmar os malucos antes de os mandar para o manicómio - disse
Marciano.
- Muito bem, mandem alguém lavá-la e desinfectá-la. Depois quero essa banheira
cheia até acima com sumo de tomate, porque acho melhor que tanto o Abe como o
Corey
usem o perfume. Assim, se formos obrigados a separar-nos, a cadela não farejará
ninguém.
- De acordo - disse Silvestri, com uma expressão que indicava o final da
reunião.
- Alto aí! Ainda não acabámos - disse Carmine. - Ainda temos de discutir
possibilidades. Por exemplo, o Ponsonby está a trabalhar sozinho, ou tem um
cúmplice que
desconhecemos? Partindo do princípio de que a Claire não está envolvida, por que
raio pusemos de lado a probabilidade de haver dois Fantasmas? O Ponsonby tem uma
vida fora do Hug e de sua casa. Sabemos que costuma frequentar exposições de
arte, mesmo quando isso implica faltar um ou dois dias ao trabalho. A partir de
agora,
seguimo-lo para onde quer que ele vá. As nossas melhores pessoas, Danny, as
melhores. Os mais discretos, sejam homens ou mulheres... e nada de comunicação
por rádio!
Usem os novos microfones de lapela para a mudança de turnos, o que significa que
nenhum destacamento de rendição pode sair do alcance do rádio... aqueles
aparelhos
são muito fracos. As nossas engenhocas estão a melhorar, mas ainda precisávamos
de um Billy Ho e de um Don Hunter. Se o Hug acabar mesmo, John, talvez seja boa
ideia
trazê-los para o nosso lado. Ponham-nos no departamento do Patsy, que talvez
deva incorporar a palavra "forense" no nome. E nem diga o que está a pensar,
John! Arranje
o dinheiro, raios!
- Se o Morton Ponsonby fosse vivo, saberíamos a identidade do segundo Fantasma -
disse Marciano.
- Danny, o Morton Ponsonby não está vivo - disse Carmine pacientemente.
- Vi a
campa dele e vi também o relatório da autópsia. Não, ele não foi assassinado,
simplesmente
morreu de repente. Não foram detectados venenos, embora não tenha sido
encontrada uma causa concreta para a morte.
- A Ida podia ter atacado de novo.
- Duvido, Danny. Parece que ela era uma mulher franzina e o Morton Ponsonby era
um adolescente saudável. Seria difícil sufocá-lo com uma almofada. Além disso,
não
tinha nada nas vias respiratórias.
- Talvez haja um quarto filho - insistiu Marciano. - A Ida podia não o ter
registado.
- Oh, não vamos deixar-nos levar pela imaginação - exclamou Carmine, erguendo as
mãos. - Primeiro, com o Leonard morto, quem teria gerado essa misteriosa quarta
criança? O Chuck? Põe os pés na terra, Danny! A presença de uma criança
sabe-se... não estamos a falar de recém-chegados a Ponsonby Lane, estas pessoas
eram donas
de Ponsonby Lane! Estavam na zona praticamente desde a chegada do Mayflower.
Olha o caso do Morton. Vivia noutro mundo, mas as pessoas sabiam da existência
dele.
Houve gente no seu funeral.
- Então, se houver um segundo Fantasma, é um desconhecido.
- Por enquanto, sim - disse Carmine.
⁂
As noites de segunda e terça-feira passaram sem incidentes, à excepção das
queixas ininterruptas de Abe e Corey. Existir num miasma de doninha era um
tormento equivalente
a tortura, pois nenhum cérebro em toda a criação alguma vez conseguira fazer com
este cheiro o que os cérebros faziam com os cheiros, horríveis ou não:
eliminá-los
após algum tempo. As doninhas tresandavam, eram o ponto mais baixo em termos
olfactivos. Apenas o afecto que sentiam por Carmine os persuadira a consentir,
mas, depois de o aroma ser aplicado, arrependeram-se amargamente. Felizmente a velha
banheira na parte antiga do edifício dos Serviços Municipais era suficientemente
grande para acomodar dois homens ao mesmo tempo, caso contrário uma amizade
muito antiga podia ter azedado.
O tempo continuava bom, com temperaturas amenas; perfeito para raptos. Sem chuva
e sem vento.
Carmine tentara pensar em todas as contingências. Para além de Abe, Corey e ele
próprio, escondidos num local onde tinham uma visão desimpedida da entrada do
túnel, havia carros não identificados em cada esquina de Deer Lane, em cada esquina de
Ponsonby Lane, um em frente da recepção do motel Major Minor, outro no local
onde
Carmine se escondera no mês anterior e mais alguns na estrada 133. Estes
veículos eram apenas para as aparências; Ponsonby estaria à espera deles, pois devia tê-los visto em Deer Lane no mês anterior. Os
verdadeiros vigilantes estavam escondidos nos caminhos de acesso às quatro casas
de Deer
Lane. Não havia nenhum carro estacionado em frente às casas; Carmine presumia
que a viatura usada por Ponsonby estaria certamente na estrada 133, num ponto
bastante
mais à frente. Não era no entanto nenhum dos carros estacionados na sua garagem,
nem a carrinha nem o Mustang descapotável; esses tinham permanecido na garagem
no
mês anterior e era onde se encontravam agora. Talvez fosse o cúmplice a fornecer
o meio de transporte? Nesse caso, Ponsonby iria a pé até ao ponto de encontro.
- Pelo menos vocês podem usar tampões no nariz - consolou-os Carmine enquanto os
três homens subiam a encosta, sabendo que Ponsonby saíra há pouco do Hug e ainda
vinha no caminho. - Eu posso não usar o mesmo perfume, mas tenho de suportar o
vosso cheiro. Bolas, que fedor!
- Respirar pela boca não ajuda muito - queixou-se Corey. - Consigo sentir o sabor
desta porcaria! E finalmente percebi por que é que os cães ficam malucos com o
cheiro.
Recorrendo aos talentos de Pete Evans, o observador de pássaros do departamento,
tinham construído um bom esconderijo a seis metros da porta, sem uma única
árvore
entre eles e a entrada do túnel. Estavam os três deitados de barriga para baixo,
embora de vez em quando se virassem de lado, à vez, para impedir que os músculos
ficassem rígidos; um homem era suficiente para manter a vigilância desde que os
outros dois estivessem alerta.
Não tinham encontrado quaisquer armadilhas ou dispositivos de alerta, nem mesmo
um arame esticado; mas Carmine sempre achara que era improvável que os houvesse.
Ponsonby estava convencido de que o seu túnel era secreto. A sua presunção neste
aspecto era interessante, como se residisse numa parte diferente da psique do
Dr.
Charles Ponsonby, investigador e bon vivant. Na verdade, Ponsonby era um poço de
contradições - tinha medo de pegar num rato, mas não de ser apanhado pela
polícia.
Enquanto as horas intermináveis iam passando, Carmine reflectia sobre o túnel.
Quem o construíra? Quantos anos tinha? Apesar de eliminar parte da distância
para
quem quisesse subir e descer a colina, tinha de ter pelo menos trezentos metros
de comprimento, talvez mais. Mesmo que tivesse apenas o diâmetro necessário para
um homem a rastejar, o que acontecera à terra e às pedras retiradas? O
Connecticut era uma zona de muros de pedra, porque os agricultores tinham
removido as pedras
dos seus campos à medida que os aravam. Quantas toneladas de terra e pedras?
Cem? Duzentas? Como seria ventilado, pois tinha de o ser? Teriam aqueles dois
velhos
celeiros a norte de Nova Iorque fornecido a madeira para o escorar?
Às duas da madrugada dessa noite nublada ouviu-se um leve ruído, um ranger que
aumentou gradualmente de intensidade, até se transformar no suave chiar de
dobradiças
bem oleadas obstruídas por partículas de terra. A cobertura de folhas mortas,
agora mais secas do que quando Carmine caíra, deslizou para trás quando a porta
se
abriu de frente para os três homens no seu esconderijo. A silhueta que se ergueu
da cavidade negra era igualmente negra; parou, agachada, e soltou um leve gemido
de repugnância quando o odor a doninha lhe chegou às narinas. A cadela pôs a
cabeça de fora e desapareceu imediatamente. Biddy não ia ficar de guarda esta
noite.
Ouviram Ponsonby a tentar persuadir o animal a sair, mas sem sucesso. Doninha.
O combinado era que Carmine seguiria Ponsonby enquanto Corey e Abe permaneciam
junto da entrada do túnel; esperou com a respiração suspensa enquanto a silhueta
se
endireitava, até ficar da altura de um homem, tão negra que era praticamente
invisível na escuridão quase total desta noite sem Lua e sem estrelas. "O que é
que
ele tem vestido?", pensou Carmine. Até o rosto era invisível.
E quando a silhueta começou a mover-se, fê-lo silenciosamente, sem que os seus
pés causassem praticamente o mínimo sussurro no chão da floresta. Carmine também
estava
vestido de preto, escurecera o rosto e calçava ténis, mas não se atreveu a
aproximar-se demasiado - seis metros no mínimo, rezando para que o capuz que
cobria a
cabeça de Ponsonby lhe dificultasse um pouco a audição.
Ponsonby desceu ligeiramente a encosta em direcção ao largo circular no fim de
Deer Lane. Pouco antes da área de estacionamento, virou em direcção à estrada
133,
ainda oculto pelos bosques que, deste lado, se estendiam até à estrada. Agora
que o terreno era mais nivelado, Carmine sentia grandes dificuldades em ver a
sua presa;
sentiu-se tentado em percorrer a curta distância até à estrada, na qual
conseguiria progredir melhor, mas a avareza do concelho de Holloman negava-lhe
essa possibilidade.
Gravilha.
O suor escorria-lhe pelo rosto, cegando-o; limpou rapidamente os olhos, mas,
quando olhou para o local onde a silhueta se encontrava antes desse gesto, já
não a
viu. Não porque Ponsonby se tivesse apercebido de que estava a ser seguido,
Carmine tinha a certeza disso. Um capricho do acaso. Deixara a porta do túnel
aberta;
assim que tivesse a mais pequena suspeita de que estava a ser seguido, voltaria
nessa direcção e Carmine tinha a certeza de que isso não acontecera. Ele ainda
estava
a dirigir-se para a estrada 133, perdido no meio da escuridão.
Carmine escolheu a opção mais sensata, passou para a gravilha e correu o mais
silenciosamente que conseguiu em direcção ao Chrysler de aparência vulgar
estacionado
na esquina de Deer Lane.
- Ele saiu, mas perdi-o - disse a Marciano, depois de entrar e fechar
silenciosamente a porta. - Fantasma é a palavra certa para ele. Está vestido de
preto dos pés
à cabeça, não faz qualquer ruído e deve ter uma visão melhor do que uma ave
nocturna. Também deve conhecer cada centímetro desta floresta. Não há mais nada
a fazer,
por enquanto, temos de esperar que ele regresse com alguma pobre rapariguinha aterrorizada. Céus, não queria nada que as coisas tivessem chegado
a este ponto!
- Passamos a palavra pelo rádio? - perguntou Marciano.
- Não, uma vez que não fazemos a mínima ideia do tipo de veículo que ele vai
Usar. Pode ter um receptor suficientemente potente para sintonizar todas as
nossas bandas.
Esperem aqui até eu vos avisar de que ele está de volta ao túnel, dêem-me dez
minutos e depois cerquem a casa. Ainda é a melhor solução.
Carmine saiu do carro e penetrou de novo na floresta, regressando à zona de
estacionamento e depois subindo até ao esconderijo.
- Perdi-o, portanto temos de esperar.
- Ele não pode ter ido longe - disse Corey em voz baixa. - A estas horas, não
tem tempo de sair do condado de Holloman.
Quando Ponsonby regressou, por volta das cinco da manhã, era um pouco mais fácil
de ver, apesar de o corpo que trazia aos ombros estar também envolvido em algo
negro;
no entanto, dava-lhe mais corpulência, adicionava mais peso aos seus passos. Em
vez de subir vindo de Deer Lane, aproximou-se da porta aberta pelo lado, largou
a
sua carga no solo em frente do buraco e entrou primeiro antes de puxar o fardo
atrás de si. A porta fechou-se, aparentemente operada por uma alavanca, e a
noite
voltou aos seus habituais sons florestais. Carmine já tinha o dedo no botão do
emissor, para enviar o sinal a Marciano, quando ouviu qualquer coisa; ficou
imóvel
e fez sinal aos companheiros para continuarem silenciosos e imóveis. Uma figura
surgiu na crista acima deles e começou a descer em direcção à porta, conduzida
pela
cadela que gania, ofegante e relutante, dividida entre os seus deveres de guia e
o fedor insuportável de uma doninha. Claire Ponsonby. Trazia um grande balde e
um
ancinho. Desesperada por se afastar, Biddy não parava de ganir e de puxar a
trela segurada por Claire, obrigando-a a trabalhar apenas com uma mão, enquanto tentava persuadir a cadela a sossegar. Primeiro usou o ancinho para
cobrir a porta com as folhas empilhadas ao seu lado, depois despejou o balde de
folhas
que trouxera por cima das outras e espalhou-as de novo. Finalmente desistiu de
se debater com a cadela, encolheu os ombros e deixou Biddy conduzi-la pela
subida.
- O que fazemos agora? - perguntou Abe quando o som dos seus passos desapareceu
completamente.
- Damos-lhe tempo de chegar a casa, depois chamamos as tropas, conforme
planeado.
- Como é que ela sabia onde tinha de tapar? - perguntou Corey.
- Vamos ver se descobrimos - disse Carmine, levantando-se e aproximando-se da
porta camuflada. - Por isto, suponho. - Tocou com o pé num pedaço de cano,
aparentemente
pintado de castanho, embora fosse difícil perceber ao certo na fraca claridade.
- A cadela sabe o caminho até à porta mas não pode dizer-lhe quando a alcançam.
Quando
ela sente o cano, sabe que está na orla superior da porta. Depois disso é fácil.
Ou seria, noutras circunstâncias. Esta noite tinha de se debater com uma cadela
assustada e viu-se que isso a desorientou.
- Então é ela o segundo Fantasma - disse Abe.
- É o que parece - Carmine enviou o sinal a Marciano. - Muito bem, estamos
prontos para uma viagem ao Inferno? Temos nove minutos antes de Marciano
avançar.
- Detesto ter de estragar o trabalhinho todo da Claire - disse Corey com um
sorriso, afastando as folhas.
O túnel era suficientemente largo para ser percorrido de gatas, e era quadrado;
Carmine calculou que este feitio tornaria mais fácil escorá-lo com as tábuas que
cobriam paredes e tecto. Aproximadamente de cinco em cinco metros havia um
pequeno poço de ventilação que parecia ser feito com tubos de dez centímetros.
Sem dúvida
que o tubo subia até à superfície, onde era tapado por uma rede, e destapado
apenas quando fosse altura de usar o túnel. Quem pisasse uma das saídas do tubo
nem
se aperceberia de que o tinha feito. Oh, o tempo investido! O esforço! Este era um trabalho de muitos anos. Escavado à
mão, escorado à mão, as pedras e a terra transportadas à mão. Na sua vida
relativamente
ocupada, Charles Ponsonby não teria tido tempo suficiente para esta obra. Outra
pessoa o fizera.
O túnel parecia estender-se interminavelmente; pelo menos ao longo de trezentos
metros, era o palpite de Carmine. Um percurso de cinco minutos, a boa
velocidade.
Depois terminava numa porta, não uma coisa frágil de madeira, mas de aço maciço,
com um disco de combinação e uma fechadura de roda, como a porta estanque de um
submarino.
- Credo, é um cofre! - exclamou Abe.
- Cala-te e deixa-me pensar! - Carmine olhou para o foco de luz da sua lanterna,
onde dançavam partículas de pó, pensando que devia ter calculado que seria
necessário
este tipo de porta para impedir a contaminação. - Muito bem, o mais lógico é
presumir que ele está lá dentro e não sabe o que se passa cá fora. Merda, merda,
merda.
Se a Claire é o segundo Fantasma e não usou o túnel, tem de haver outra entrada
para o matadouro. É dentro da casa e temos de a encontrar. Mexe-te, Corey!
Mexe-te!
Voltaram para trás tão depressa quanto conseguiram e Carmine desceu a correr a
encosta até à casa dos Ponsonbys. As luzes estavam a acender-se à medida que as
pessoas
acordavam com o uivo das sirenes; a rua estava entupida de carros, com uma
ambulância de prontidão. Biddy debatia-se, rosnando, numa rede do canil,
enquanto Claire
bloqueava o caminho de Marciano.
- Algema-a e lê-lhe os seus direitos, Danny - disse Carmine, ofegante,
apoiando-se num pilar. - Ela tapou a entrada secreta com folhas, o que faz dela
cúmplice.
Mas não conseguimos entrar pelo túnel, ele tem uma porta de cofre a bloquear a
entrada. Deixei o Abe e o Corey de guarda ao túnel... manda alguns homens lá
para
cima para os renderem, para os desgraçados poderem ir tomar o seu banho de sumo de
tomate. - aproximou-se de Claire, que parecia fascinada pelas algemas,
apalpando-as
tanto quanto conseguia com os dedos finos. - Miss Ponsonby, por favor não seja
mais do que cúmplice de homicídio. Diga-nos onde é a entrada para a câmara de
horrores
do seu irmão. Temos provas incontestáveis de que é ele o Monstro do Connecticut.
Ela soltou um soluço e abanou a cabeça.
- Não, não, isso é impossível! Não acredito, recuso-me a acreditar!
- Levem-na para a esquadra - disse Marciano aos dois detectives - , mas deixem-na
ficar com a cadela. É melhor deixar que seja ela a libertá-la da rede, o raio da
cadela está furiosa connosco. E certifiquem-se de que ela é bem tratada.
- Danny, tu e o Patrick venham comigo - disse Carmine, recuperando finalmente o
fôlego. - Mais ninguém. Não queremos a casa cheia de polícias antes que o Paul e
o Luke possam examiná-la, mas temos de encontrar a outra porta antes que o Chuck
possa fazer alguma coisa à pobre rapariga. Quem é ela?
- Ainda não sabemos - disse Marciano com ar infeliz enquanto seguia Carmine para
dentro da casa. - Provavelmente ainda ninguém acordou na casa dela, não são
sequer
seis horas. - Tentou parecer animado. - Quem sabe, talvez consigamos levá-la de
volta aos pais antes de darem pela sua falta.
Por que é que achava que a entrada seria na cozinha? Porque era essa a divisão
onde os Ponsonbys pareciam viver, o eixo do seu universo. A antiga casa era como
um
museu, e a sala de jantar não passava de um local para colocar as colunas da
aparelhagem, o sistema de som e a colecção de discos.
- Muito bem - disse, conduzindo Marciano e Patrick até à antiga cozinha - , vamos
começar por aqui. Foi construída em mil setecentos e vinte e cinco, portanto as
paredes devem ter um som frágil. Excepto onde houver aço por trás.
Nada, nada, nada. A não ser o facto de a cozinha estar gelada, pois o fogão Aga
estava apagado. Porquê? A descoberta de um fogão a gás e de um cilindro de água
quente,
por trás de uma porta apaine-lada, mostravam que os Ponsonbys não precisavam de
morrer assados no Verão, mas ainda faltava muito para o Verão. Então por que
estava
o Aga apagado?
- A resposta tem qualquer coisa a ver com o Aga - disse Carmine. - Vamos
concentrar-nos nele.
Por trás havia um reservatório de água, ainda quente. Patrick apalpou e
descobriu uma alavanca.
- É aqui! Encontrei!
De olhos fechados, murmurando uma oração, Patrick puxou. O fogão deslizou
silenciosamente para o lado sobre o seu eixo. E ali, na alcova da chaminé,
estava uma porta
de aço. Quando Carmine, de .38 na mão, girou a maçaneta, a porta abriu-se
silenciosamente, com facilidade. De súbito, hesitou e voltou a guardar a pistola
no coldre.
- Patsy, dá-me a tua máquina fotográfica - disse. - Esta não é uma situação para
tiroteio, mas o Danny pode cobrir-me. Espera aqui.
- Carmine, esse é um risco desnecessário! - gritou Patrick.
- Dá-me a tua máquina, é a melhor arma nestas circunstâncias. Ao fundo de um
lance de escadas de pedra encontraram uma
porta de madeira vulgar. Sem fechadura, apenas uma maçaneta.
Carmine abriu-a e entrou na sala de operações. Os seus olhos não viram mais nada
senão Charles Ponsonby, debruçado sobre uma cama, na qual jazia uma rapariga
semi-inconsciente,
a gemer, já completamente nua e presa por uma larga faixa de lona que lhe
segurava os braços desde os ombros aos pulsos. Ponsonby despira o que quer que
utilizava
para as suas incursões nocturnas em casas adormecidas e estava também nu, com a
pele ainda húmida de um duche rápido. Cantarolava entre dentes enquanto as suas
mãos
experientes avaliavam o nível de consciência da sua presa. Morto por que ela
despertasse.
A câmara disparou.
-Apanhado! - disse Carmine.
Charles Ponsonby rodopiou sobre si próprio, de boca aberta, encandeado pelo
clarão do flash, sem esboçar qualquer reacção de defesa.
- Charles Ponsonby, está preso por suspeita de homicídio. De acordo com as
práticas da polícia da cidade de Holloman, condado de Holloman, tem direito a
manter o
silêncio e a requisitar um advogado. Compreendeu? - perguntou Carmine.
Enquanto Carmine falava, Danny Marciano abriu outra porta e reapareceu com uma
gabardina preta e brilhante na mão.
- Ele está sozinho - disse, guardando a arma - , e isto é tudo o que encontrei.
Estica os braços, meu monte de merda.
Depois de terem enfiado a gabardina a Ponsonby, Marciano pegou nas algemas e
fechou-as sobre os seus pulsos, tão apertadas quanto conseguiu.
- Podes descer, Patsy! - chamou Carmine.
- Meu Deus! - foi tudo o que Patrick conseguiu dizer quando os seus olhos
abarcaram a cena; depois foi ajudar Carmine a enrolar a rapariga no lençol e a
levá-la
para cima, seguidos por Marciano e Ponsonby.
Quando o puseram na parte de trás de um carro da polícia, Ponsonby pareceu
regressar ao mundo real por um momento. Arregalou os olhos azuis, atirou a
cabeça para
trás e começou a rir, uma gargalhada aguda de júbilo monumental. Os polícias na
parte da frente do carro continuaram a olhar em frente, de rostos inexpressivos.
A vítima, de identidade ainda desconhecida, foi colocada na ambulância; enquanto
esta se afastava, chegou a carrinha de Luke e Paul, dispersando os residentes de
Ponsonby Lane que se tinham reunido em grupos, estupefactos, trocando murmúrios
e observando
o circo no número seis. Até o major Minor lá estava, falando avidamente.
- Podes devolver-me a máquina fotográfica?
- pediu Patrick a Carmine quando
entraram na câmara da morte, seguidos por Paul e Luke.
Tudo o que viam era branco ou de aço inoxidável prateado. As paredes eram
cobertas de aço, o chão parecia de mosaicos cinzentos, a uniformidade do tecto
metálico
era interrompida apenas por várias lâmpadas fluorescentes. Nenhum pó do túnel
podia penetrar neste local desinfectado e brilhante, pois a porta era estanque,
para
além de ter trinta centímetros de espessura. As entradas de ar e um leve zumbido
revelavam a existência de um bom ar condicionado e a sala tinha um cheiro
clínico
e limpo. A cama estava apoiada em quatro pernas metálicas redondas e era uma
plataforma de aço inoxidável, com um colchão de espuma enfiado numa cobertura de
borracha,
sobre o qual estava aberto um lençol branco, não apenas limpo, mas engomado. As
extremidades das correias estavam enfiadas em sulcos ao longo da plataforma e
presas
por varas ligeiramente mais estreitas do que as ranhuras. Havia também uma mesa
de operações metálica, fria e vazia. E, mais horrivelmente explícito, um gancho
de
talhante e um guincho suspensos do tecto, por cima de um declive no chão ao
fundo do qual havia uma grande grelha de escoamento. Havia armários de portas de
vidro
com instrumentos cirúrgicos, drogas, material para injecções, latas de éter,
compressas, fita adesiva, ligaduras. Num armário havia uma série de pénis ocos,
incluindo
o pesadelo que matara Margaretta e Faith. Em cima de um armário havia uma
máquina de jactos de água e outra de limpeza a vapor, noutro capas de borracha
para o colchão,
lençóis e cobertores de algodão. Encostada a uma das paredes estava uma grande
arca frigorífica industrial; Carmine abriu-a, revelando um interior imaculado.
- Ele livrou-se dos lençóis e das capas depois de cada vítima - disse Patrick, de
lábios comprimidos.
- Olha para isto, Patsy - disse Carmine, abrindo uma cortina.
Alguém gritou lá de cima:
- Tenente, já sabemos quem é a vítima! Delice Martin, aluna interna em Stella
Maris.
- Então ele não precisou de um carro - disse Carmine a Patrick. - Stella Maris
fica a menos de um quilómetro. Trouxe a rapariga às costas até aqui.
- Sujeitou-se a atrair as atenções sobre si próprio, ao raptar uma rapariga tão
perto de Ponsonby Lane. - Foi o comentário de Patrick.
- De certa forma, sim, mas por outro lado, não. Ele sabia que tínhamos todos os
Huggers sob vigilância, por que havia de ser ele? Até ao fim, esteve convencido
de
que o seu túnel era secreto. Agora queres vir ver isto, Patsy? Olha!
Carmine afastou uma cortina de seda branca, revelando uma alcova forrada a
mármore branco cintilante. Numa mesa, como se fosse um altar, havia dois
candelabros de
prata com velas brancas por acender, como se aguardassem que algo fosse
depositado numa bandeja de prata em cima de um pano delicadamente bordado. Um
sacrifício.
Na parede por cima da mesa havia quatro prateleiras. Nas duas de cima viram seis
cabeças em cada uma; na terceira havia mais duas cabeças e a quarta estava
vazia.
As cabeças não estavam congeladas. Não estavam em frascos de formalina. Tinham
sido mergulhadas em plástico transparente, como as lojas de recordações faziam
às
borboletas.
- Ele teve problemas com o cabelo - disse Patrick, cerrando os punhos para parar
o tremor das mãos. - Percebe-se que melhorou muito com a prática. Penosamente
lentas,
aquelas primeiras seis cabeças! Um gancho de ferro para segurar a cabeça virada
ao contrário dentro do molde, enquanto ele despejava um pouco de plástico, o
deixava
assentar, depois despejava mais um pouco. Fez um grande avanço na sétima
cabeça... provavelmente arranjou maneira de fixar o cabelo. Assim já podia
encher o molde
uma só vez. Gostava de saber como é que resolveu o problema da decomposição
anaeróbia, mas aposto que retirou os cérebros e encheu a cavidade craniana com um gel de
formalina, talvez. Por baixo daquele delicado folho de papel de alumínio, os
pescoços
estão selados. - Patrick combateu os vómitos que o acometeram subitamente. -
Estou agoniado.
- Sei que o plástico líquido é terrivelmente caro, mas pensava que não
resultaria em espécimes tão grandes - disse Carmine. - Mas a cabeça da Rosita
Esperanza parece
estar em boas condições.
- Não importa muito o que os manuais ou os fabricantes dizem. Estas catorze
contradições dizem-nos que o Charles Ponsonby era um mestre da técnica. Além
disso, o
molde é justo, pouco maior do que a cabeça. Um litro de plástico seria mais do
que suficiente.
- Transformou os seus talismãs em borboletas.
Os dois técnicos tinham vindo ver, mas não se demoraram muito; seria trabalho
deles retirar cada cabeça e embalá-la como evidência. Mas apenas depois de cada
centímetro
da divisão ser fotografado, desenhado e catalogado.
- Vamos ver a casa de banho - sugeriu Patrick.
- Ele trouxe a Delice Martin - disse Carmine depois de olhar - , atirou-a para a
cama e veio tomar um duche. Isto era o que vestia quando a raptou.
Era um fato de mergulho de borracha preta, do tipo usado pelos mergulhadores de
pouca profundidade - fino e leve. Ponsonby retirara as faixas e fitas coloridas
e
eliminara o brilho. Ao lado do fato, no chão, estava um par de botas de borracha
de sola lisa, muito bem arrumadas, e um par de finas luvas de borracha preta
dobradas
em cima de um banco.
- Flexíveis - disse Carmine, flectindo uma das botas entre as mãos enluvadas. -
Este tipo pode ser um investigador falhado, mas como assassino é fenomenal. -
Voltou
a colocar a bota exactamente no mesmo sítio.
Regressaram à divisão principal, onde Paul e Luke já tinham começado a sessão
fotográfica; estariam dias e dias ocupados com as muitas tarefas de que Patrick
os
incumbiria.
- As cabeças são toda a evidência de que precisamos para o acusar de catorze
homicídios - disse Carmine, fechando a cortina. - De certa forma é engraçado,
como ele
as manteve expostas com este destaque, parece não lhe ter sequer ocorrido que
alguém podia descobrir este local. Se neste estado houvesse pena de morte, o
Ponsonby
não se safava. Assim, apanhará catorze sentenças perpétuas consecutivas. O nosso
fantasma morrerá na prisão, agredido todos os dias pelos outros reclusos. Como o
vão odiar!
- É uma boa imagem, mas sabes tão bem como eu que o director o manterá isolado.
- Sim, é pena mas é verdade. Só quero que ele sofra, Patsy. O que é a morte,
senão um sono eterno? E o que é o isolamento numa prisão, senão uma oportunidade
de
ler muitos livros?
⁂
Por razões que não queria explorar, Wesley le Clerc nunca conseguia pensar em si
próprio como Ali el Kadi quando estava em casa da tia. Assim, foi Wesley le
Clerc
que se arrastou para fora da cama às seis da manhã; a tia Celeste insistia
nisso. Depois de abrir o tapete para as suas orações matinais, dirigiu-se à casa
de banho
para aquilo a que chamava os quatro Cs - champô, chuveiro, cortar a barba e
cagar.
O comício de Mohammed estava organizado e, além disso, Mohammed dizia que ele
devia continuar a ser um empregado modelo na Parson Surgical Supplies, para além
de
seu espião no Hug. No seu local de trabalho, Wesley fora transferido dos
pinças-mosquito Halstead para instrumentos de microcirurgia, e o seu supervisor
andava a
falar em dar-lhe uma formação especial que lhe permitiria melhorar ou mesmo
inventar instrumentos. Com o governo federal a pressionar as empresas por
igualdade de
oportunidades na atribuição de emprego, um trabalhador negro dotado era
precioso, por outras razões para além da sua qualidade; ele ou ela contribuíam
para as estatísticas
que mantinham o Congresso satisfeito. Nada disso importava para o frustrado
Wesley, que ardia por desferir um golpe pelo seu povo agora, não num futuro
remoto quando
tivesse a merda do canudo da Ordem dos Advogados do Connecticut.
Otis estava a sair para o Hug quando Wesley entrou na cozinha. A tia Celeste
estava a arranjar as unhas, que usava compridas, pintadas de encarnado e
bastante bicudas
para realçar os dedos longos e afunilados. O rádio estava ligado; ela desligou-o
e levantou-se para servir a Wesley o seu pequeno-almoço de sumo de laranja,
cereais
e torradas de pão integral.
- Apanharam o Monstro do Connecticut - comentou, enquanto punha margarina na
torrada.
Wesley deixou cair a colher na tigela de cereais, salpicando a mesa.
- O quê? - perguntou, limpando o leite antes que ela visse o que tinha feito.
- Apanharam o Monstro do Connecticut há cerca de quinze minutos. As notícias não
falam de outra coisa, ainda não passaram uma única música.
- Quem é ele, um Hugger?
- Não disseram. Wesley ligou o rádio.
- Então devem estar a falar nisso agora, não?
- Suponho que sim - disse Celeste, voltando à sua manicura. Wesley ouviu o
boletim noticioso com a respiração suspensa,
mal podendo acreditar nos seus ouvidos. Apesar de a identidade do Monstro não
ser revelada, a whmn estava em condições de poder informar que era um
profissional
bastante importante da área da medicina e que havia uma cúmplice do sexo
feminino. Os dois compareceriam às nove da manhã perante o juiz Douglas
Thwaites, no tribunal
do distrito de Holloman, para formalizar a acusação e fixar a fiança. - Wes?Wes?
Wes!
- Hã? Sim, tia?
- Sentes-te bem? Não vais desmaiar, pois não? Já basta uma pessoa de coração
fraco na família.
- Não, não, tia, eu estou bem, a sério. - Beijou-a na face e voltou ao quarto
para vestir o seu casaco mais largo, luvas e um gorro de lã. Apesar de estar um dia de sol, a temperatura ainda estava bastante baixa.
Quando chegou ao número dezoito de Fifteenth Street, encontrou Mohammed e os
seus seis amigos mais íntimos reunidos num grupinho assustado; tinham apenas
três dias
para reorganizar o tema do comício, para tentar capitalizar de alguma forma este
desenvolvimento inesperado. Quem poderia sonhar que aqueles porcos incompetentes
fariam uma detenção?
Com um sorriso tímido e apologético, Wesley passou por eles e entrou naquilo a
que Mohammed se referia como a sua "sala de meditação". Para Wesley, parecia-se
mais
com um arsenal, com as paredes cobertas de prateleiras com caçadeiras,
metralhadoras e espingardas automáticas; os revólveres estavam guardados em
vários armários
metálicos, que em tempos tinham pertencido a uma loja de armamento, com gavetas
especificamente desenhadas para esse tipo de material. Em pilhas no chão, onde
quer
que houvesse espaço livre, havia caixas de munições.
Apesar dos armamentos, ou talvez por causa deles, este era sempre o local mais
sossegado da casa, e tinha aquilo de que Wesley precisava neste momento: uma
mesa
e uma cadeira, cartolina branca, tintas, pincéis, canetas, réguas, tesouras e
uma guilhotina. Wesley pegou numa folha de cartolina de quarenta e cinco por
setenta
e cinco centímetros e marcou uma secção com vinte centímetros de largura, que
depois cortou com um x-acto encostado a uma régua. Não ficava com muito espaço
para
uma mensagem, mas a que ele tinha em mente não era longa. Letras pretas, fundo
branco. E onde é que estava o equipamento de hóquei do filho de Mohammed, aquele
fedelho
mimado? Vira-o caído num lado qualquer, agora que o miúdo chegara à conclusão
que afinal Alá não queria que ele fosse uma estrela do hóquei. A sua mania mais
recente
era o salto em altura, por causa de um campeão qualquer do Liceu Travis.
- Olá, Ali! Estás ocupado? - perguntou Mohammed, entrando.
- Sim. Estou ocupado a arranjar-te um mártir, Mohammed.
- A transformar-me num mártir, é isso que queres dizer?
- Não, a fabricar-te um mártir a partir de alguém menos importante.
- Estás a brincar?
- Não. Onde é que está o equipamento de hóquei do Abdullah?
- Duas salas mais para dentro. Conta-me mais, Ali.
- Agora não tenho tempo, tenho muito que fazer. Vê se tens a televisão ligada no
Channel Six às nove da manhã. - Wesley pegou num pincel mas não o mergulhou na
tinta
preta. - Preciso de privacidade, Mohammed. Assim nunca poderão provar que tu
estavas a par dos meus planos.
- Claro, claro! - Com um sorriso, Mohammed fingiu uma vénia e saiu da sala de
meditação, deixando Wesley sozinho.
Quando Carmine entrou na esquadra, parecia que estavam cem polícias à sua espera
para lhe apertar a mão, lhe dar palmadas nas costas, lhe sorrir com expressão
idiota.
Para a imprensa, Charles Ponsonby ainda era o Monstro do Connecticut, mas para
todos os polícias ele era um Fantasma.
Silvestri estava tão feliz que apareceu à porta e deu um beijo repenicado na
bochecha de Carmine, abraçando-o.
- O meu rapaz, o meu rapaz! - Trauteou, com os olhos brilhantes das lágrimas. -
Salvou-nos a todos.
- Oh, vá lá, John! Deixe-se de dramatismos, este caso já durava há tanto tempo
que morreu de velhice - disse Carmine, embaraçado.
- Vou recomendá-lo para uma medalha, nem que o governador tenha de inventar uma.
- Onde estão o Ponsonby e a Claire?
- Ele está numa cela com dois polícias a fazerem-lhe companhia... este palhaço
que nem sonhe em enforcar-se! Também não tem nenhuma cápsula de cianeto enfiada
no
recto, já nos certificámos disso. A irmã está num gabinete vago neste piso, com duas agentes. E a cadela.
Na pior das hipóteses, é cúmplice. Não temos qualquer evidência que sugira que
ela
é o segundo Fantasma, pelo menos evidências capazes de impressionar o céptico do
Thwaites, aquele velho pedante. As nossas celas são limpas, Carmine, mas não
foram
concebidas para acomodar uma senhora, muito menos uma senhora cega. Achei que
seria boa política tratá-la de uma forma que os seus advogados não possam
criticar
quando ela for a julgamento... se for a julgamento. Neste momento, é duvidoso.
- Ele falou?
- Nem uma palavra. De tempos a tempos dá uma grande gargalhada, mas não disse
nada. Olha para o vazio, cantarola entre dentes, ri-se.
- Vai alegar insanidade.
- Não tenho a menor dúvida. Mas os loucos, segundo as regras M'Naghten, não
conseguem planear a construção de uma câmara de horrores como aquela até ao mais
ínfimo
pormenor.
- E a Claire?
- Continua a dizer que se recusa a acreditar que o irmão seja um assassino em
série e que ela não fez nada errado.
- A menos que o Patsy e a sua equipa consigam encontrar algum vestígio dela na
sala de morte ou no túnel, de certeza que ela se safa. Quer dizer, uma cega e a
sua
cadela guia esvaziam um balde de folhas mortas na reserva dos veados e
espalham-nas? Um advogado minimamente competente seria capaz de provar que ela
estava a levar
comida aos veados e despejara o balde no local onde o irmão Chuck lhes
construíra um comedouro. Claro que podemos sempre ter a esperança de obter uma
confissão.
- Vá sonhando! - disse Silvestri com uma fungadela desdenhosa. - Nenhum destes
dois me parece muito dado a confissões. - Fechou um olho e fixou Carmine com o
outro.
-Acredita que ela é o segundo Fantasma?
- Honestamente não sei, John. Não conseguiremos prová-lo.
- Bom, seja como for, eles vão ser formalmente acusados no tribunal do juiz
Thwaites, às nove horas. Eu queria que fosse num local menos público e de forma
mais
discreta, mas o Doug Thwaites não cedeu. Que confusão. O Ponsonby tem apenas uma
gabardina vestida e recusa-se a vestir seja o que for. Se o obrigarmos e lhe
fizermos
a mais pequena nódoa negra ou cortezinho, vão acusar-nos de brutalidade
policial, portanto vai comparecer no tribunal de gabardina. O Danny apertou-lhe
demasiado
as algemas, já nos basta isso. O maldito tem os pulsos em carne viva.
- Suponho que todos os jornalistas que conseguirem chegar a Holloman a tempo vão
estar em frente do tribunal, incluindo os apresentadores das notícias do Channel
Six - disse Carmine com um suspiro.
- Naturalmente. Isto é uma grande notícia para uma cidade tão pequena.
- Não podemos acusar a Claire separadamente?
- Podíamos, se o Thwaites fosse nisso, mas não vai. Quer ter os dois à sua
frente ao mesmo tempo. Por curiosidade, acho eu.
- Não, ele quer uma antevisão que o ajude a decidir-se sobre a cumplicidade da
Claire.
- Já comeu alguma coisa, Carmine? - Não.
- Então vamos ver se apanhamos uma mesa no Malvolio's antes da hora de ponta.
- Como estão o Abe e o Corey? Já se livraram do fedor a doninha?
- Sim, e estão muito mal-humorados. Queriam ter estado consigo naquela cave.
- Tenho muita pena, mas eles tinham de se lavar. Sugiro que aperte com o
governador para arranjar mais duas medalhas, John. E uma grande cerimónia.
O tribunal de Holloman ficava em Cedar Street, no parque, a uma curta caminhada
do edifício dos Serviços Municipais. Contudo era uma caminhada que os Ponsonbys
não
podiam fazer. Alguns jornalistas mais empreendedores, com os respectivos
fotógrafos, estavam à porta da esquadra quando Ponsonby foi retirado da mesma,
com uma toalha
por cima da cabeça e a gabardina abotoada do pescoço aos joelhos, onde alguém a
prendera com um alfinete-de-ama para ter a certeza de que não se abriria de
repente.
Assim que Ponsonby pisou o passeio, começou a lutar com os polícias que o
escoltavam, não para fugir, mas para se livrar da toalha. Por fim foi enfiado no
carro-patrulha
de rosto à mostra, no meio de um clarão azul de flashes; ninguém estava disposto
a correr riscos com a luz. O carro já tinha arrancado quando Biddy saiu do
edifício,
conduzindo Claire. Tal como o irmão, não permitiu que ninguém lhe cobrisse a
cabeça. Os guardas que a escoltavam foram manifestamente gentis com ela e a
viatura
que a transportou ao longo do quarteirão, até ao tribunal, foi o carro oficial
de Silvestri, um grande Lincoln.
A multidão em frente ao tribunal era tão grande que Cedar Street tivera de ser
completamente cortada ao tráfego; uma fila de polícias, de braços dados,
avançava
e recuava ao ritmo dos empurrões da multidão que estavam a tentar controlar.
Talvez apenas metade das pessoas fossem negras, mas ambas as metades estavam
muito zangadas.
A imprensa estava por trás do cordão policial: operadores de câmara com as
câmaras ao ombro, repórteres fotográficos com as máquinas em automático,
locutores de
rádio a falarem para os microfones, o apresentador das notícias do Channel Six a
fazer o mesmo. Um dos jornalistas era um negro baixo e magro com um casaco
volumoso;
foi abrindo caminho aos poucos, sorrindo e pedindo licença em voz baixa, com as
mãos enfiadas nos bolsos para as aquecer.
Quando Charles Ponsonby foi retirado do carro-patrulha, os jornalistas
precipitaram-se para ele, com o homenzinho magro na linha da frente. Este retirou uma mão negra e magra de dentro do casaco e levou-a à
cabeça, na qual enfiou um chapéu estranho, um chapéu com uma tira de cartolina
branca
que dizia em letras pretas e bem desenhadas nós sofremos. Todos os olhares se
tinham voltado para o chapéu, incluindo o de Charles Ponsonby; ninguém viu a
outra
mão de Wesley le Clerc sair do bolso com uma pistola preta. Antes que os
polícias conseguissem sacar das armas, ele já colocara quatro balas no peito e
no abdómen
de Ponsonby. Mas não foi liquidado por nenhuma descarga de artilharia. Carmine
saltara para a sua frente para o proteger, berrando a plenos pulmões:
- Não disparem!
E estava tudo na televisão, cada milissegundo dos eventos, desde o chapéu nós
sofremos, à expressão espantada de Charles Ponsonby, ao salto suicida de
Carmine. Mohammed
el Nesr e os seus amigos assistiram ao desenrolar da acção, tensos com o choque.
Depois Mohammed afundou-se na sua cadeira e ergueu os braços, exultante.
- Wesley, conseguiste, deste-nos o nosso mártir! E aquele estúpido do Pelmonico
salvou-te para o julgamento. Raios, e que julgamento vai ser!
- Ali, queres tu dizer - corrigiu Hassan, sem compreender.
- Não, a partir de agora ele é o Wesley le Clerc. Tem de parecer que agiu em
nome de todo o povo negro, não apenas da Brigada Negra. É assim que vamos
trabalhar
isto.
Aconteceu tudo dois minutos antes da chegada do carro de Claire Ponsonby, pelo
que ela não chegou a testemunhar o destino do irmão. Primeiro, o carro ficou
preso
numa massa de corpos em movimento. Por fim a polícia conseguiu abrir espaço
suficiente para o Lincoln inverter a marcha e voltar a descer Cedar Street até
ao edifício
dos Serviços Municipais.
- Meu Deus, Carmine, estás louco? - inquiriu Danny Marciano, branco como a cal,
com o corpo a tremer. - Os meus homens estavam em piloto automático, teriam
abatido
o próprio Papa!
- Bom, felizmente não dispararam contra mim. Mais importante ainda, Danny, não
houve balas perdidas que pudessem acertar num operador de câmara ou matar a Di
Jones...
como é que Holloman poderia sobreviver sem a coluna de mexericos dela ao
domingo?
- Sim, eu sei por que razão o fizeste... e eles também, há que lhes dar esse
crédito. Tenho de dispersar esta multidão.
Patrick estava ajoelhado junto da cabeça de Charles Ponsonby, inclinada para
trás, com uma expressão ultrajada no rosto magro e fino; um lago de sangue
espalhava-se
sob o corpo, cada vez mais lentamente à medida que se expandia.
- Morto? - perguntou Carmine, curvando-se.
- E bem morto. - Patrick passou a mão sobre os olhos fixos e incrédulos de
Ponsonby, para os fechar. - Pelo menos não falará e, na minha opinião, tem um
inferno
à espera dele.
Wesley le Clerc estava de pé no meio de dois polícias uniformizados, parecendo
inofensivo e insignificante; todas as câmaras continuavam apontadas a ele, ao
homem
que executara o Monstro do Connecticut. Justiça violenta, mas justiça, de certa
forma. Não ocorreu a ninguém que Ponsonby ainda não fora julgado e poderia,
eventualmente,
ser inocente.
Silvestri desceu as escadas do tribunal, limpando a testa.
- O juiz não achou graça nenhuma - disse a Carmine. - Meu Deus, que grande
fiasco! Tirem-no daqui! - gritou aos homens que seguravam Wesley. - Vá, levem-no
e prendam-no!
Carmine seguiu Wesley até ao carro-patrulha e sentou-se ao lado dele, no banco
manchado e mal cheiroso, com a cabeça virada para o lado. Wesley ainda tinha
aquele
chapéu idiota com a sua mensagem dilacerante: nós sofremos. Mas a primeira coisa
que Carmine fez foi informar Wesley da sua situação, em voz suficientemente alta
para que os polícias no banco da frente o pudessem ouvir.
Depois tirou-lhe o chapéu e revirou-o entre as mãos. Um capacete de hóquei de
plástico, que fora atacado com um alicate de forma a encaixar por cima das
orelhas.
Depois de colocado, ficaria no sítio o tempo suficiente para ser visto.
- Suponho que pensaste que cairia, no meio da chuva de balas que esperavas que
te acertassem, e contudo aqui está ele, na tua cabeça até ao fim. Mesmo depois
de
teres sido enfiado neste carro. És melhor artífice do que pensas, Wesley.
- Fiz uma coisa grandiosa - disse Wesley em tom vibrante - , e farei outras ainda
mais grandiosas!
- Não te esqueças de que tudo o que disseres pode ser usado como evidência
contra ti.
- O que é que isso me interessa, tenente Delmonico? Sou o vingador do meu povo,
matei o homem que violou e matou as nossas raparigas. Sou um herói e é assim que
serei encarado.
- Oh, Wes, estragaste a tua vida, não vês? O que te deu esta ideia, o Jack Ruby?
Não pensaste que eu te deixaria morrer como ele, pois não? Tens uma mente tão
boa!
E é uma pena, porque, se tivesses feito o que eu te disse, podias ter feito uma
diferença importante para o teu povo. Mas não, não quiseste esperar. Matar é
fácil,
Wes. Qualquer pessoa pode matar. Para mim, isso indica um Q.I. para aí quatro
pontos acima de um vegetal. O Charles Ponsonby teria passado o resto dos seus
dias
na prisão. Tudo o que tu fizeste foi libertá-lo.
- Era ele? O doutor Chuck Ponsonby? Ora vejam! Sempre era um Hugger, então. O
senhor não consegue compreender, tenente. Ele foi apenas um meio para eu atingir
o
meu fim. Deu-me a oportunidade de me tornar um mártir. Acha que me interessa se
ele está morto ou vivo? Estou-me borrifando! Eu é que tenho de sofrer, e
sofrerei.
Enquanto Wesley le Clerc era conduzido para as celas, Silvestri apareceu como um
furacão, mastigando violentamente o seu charuto.
- Lá vai outro que teremos de vigiar a cada segundo - resmungou. - Se o
deixarmos cometer suicídio, estamos metidos em grandes sarilhos.
- Ele também é um tipo muito inteligente e com grande perícia manual, portanto
tirar-lhe o cinto e tudo o que ele possa rasgar em tiras não o impedirá de
tentar,
se for essa a sua intenção. Pessoalmente, não acredito que seja. O Wesley quer
ver tudo exibido em público.
Entraram no elevador.
- O que fazemos com Miss Claire Ponsonby? - perguntou Carmine.
- Desistimos das acusações e libertamo-la imediatamente. É o que o procurador
público diz. Um balde de folhas secas não chega para a deter, quanto mais para a
condenar.
A única coisa que podemos fazer é proibi-la de sair do condado de Holloman...
por enquanto. - O rosto papudo franziu-se como o de um bebé com cólicas. - Oh,
que
caso filho da mãe que este tem sido, do princípio ao fim! Todas aquelas
raparigas bonitas e virtuosas mortas, e ninguém que lhes faça justiça a sério. E
como diabo
hei-de lidar com as famílias em relação às cabeças?
- Pelo menos as cabeças representam o fechar de uma porta para as famílias,
John. Não saber é pior do que saber - disse Carmine enquanto saíam do elevador.
- Onde
está a Claire?
- No mesmo gabinete.
- Importa-se que seja eu a tratar do assunto?
- Se me importo! Esteja à vontade. Não quero sequer ver aquela cabra!
Ela estava sentada numa cadeira confortável, com Biddy deitada aos seus pés,
ignorando as duas jovens polícias de ar pouco à vontade que tinham recebido
ordens para
não tirar os olhos dela. Uma vez que Claire não via, isso parecia, de alguma
forma, uma invasão imperdoável da sua privacidade.
- Ora, tenente Delmonico! - exclamou ela, endireitando-se quando ele entrou.
- Desta vez não foi o motor V8 do meu carro que me denunciou. Como é que o faz,
Miss Ponsonby?
Ela abriu um sorriso afectado que a fez parecer velha, manhosa, azeda,
desprezível; algo na sua expressão causou em Carmine um daqueles clarões de
compreensão fugazes,
tão vitais na carreira policial. Algo que lhe disse que ela era, decididamente,
o segundo Fantasma. "Oh, Patsy, Patsy, arranja-me algo que a coloque na câmara
da
morte! Encontra-me uma fotografia ou um filme dela e de Chuck no meio de um
homicídio ou violação. Cresce, Carmine! Não vais encontrar nada. As únicas
recordações
que eles guardaram foram as cabeças. De que serve uma imagem, instantâneo ou
filme, a uma pessoa cega? Na verdade, de que serve uma cabeça?" - Tenente - disse ela num sussurro
- , o senhor leva o seu V8 para onde quer que
vai. O motor não está no seu carro, está em si.
- Já a informaram de que o seu irmão, o Charles, está morto?
- Sim, já. Sei também que ele não fez nenhuma das coisas que dizem que ele fez.
O meu irmão era um homem intelectual, exigente e terrivelmente bondoso. Esse
pacóvio
do Marciano acusou-me de ser amante dele... bah! Ainda bem que eu não tenho uma
mente tão suja.
- Temos de levar todas as possibilidades em conta. Mas é livre de partir, Miss
Ponsonby. Todas as acusações foram retiradas.
- Bem me parecia - disse ela, puxando a pega da trela de Biddy.
- Onde vai ficar? A sua casa ainda é uma cena de crime sob investigação e assim
continuará durante algum tempo. Quer que telefone a Mrs. Eliza Smith?
- Com certeza que não! - exclamou ela. - Se não fosse a língua comprida daquela
mulher, nada disto teria acontecido. Espero que ela morra com um cancro na
língua!
- Nesse caso, para onde vai?
- Ficarei no motel até poder voltar para minha casa, mas aviso desde já que
tenciono contratar advogados para cuidarem dos meus interesses no número seis de
Ponsonby
Lane, portanto sugiro que não danifiquem nada. A casa não cometeu qualquer
crime.
E com isto saiu. "O vencedor leva tudo, Carmine. Fantasma ou não, ali vai uma
mulher formidável."
Carmine voltou para a casa que não cometera qualquer crime, apesar de não se ter
oferecido para levar Claire ao motel Major Minor's. Silvestri doara o seu
Lincoln
para isso. Estavam agora a entrar na fase mais triste de qualquer caso - o
monótono e pouco ins-pirador rescaldo.
Quando chegaram todos ao Hug, as notícias de que o Monstro do Connecticut já
fora apanhado eram, em termos noticiosos, bastante antigas. Todos os rostos
pareciam
mais lisos, mais jovens, e cada par de olhos brilhava. Oh, o alívio! Talvez
agora o Hug pudesse voltar ao normal, pois evidentemente o Monstro não era um
Hugger.
Desdemona não vira Carmine desde que regressara da sua caminhada, nem estava à
espera disso, já que sabia que ele estava ocupado com a vigilância do Fantasma.
Mas,
quando estava prestes a sair para o carro-patrulha para se dirigir ao Hug, nesta
quarta-feira de manhã, o telefone tocou: era Carmine, e parecia curiosamente
pouco
emotivo.
- Há uma televisão na sala de reuniões do Hug, se bem me lembro - disse. -
Acende-a no Channel Six, está bem? - E desligou.
Arrastando os pés, esmagada pelo tom impessoal dele, Desdemona abriu a sala de
reuniões e acendeu a televisão precisamente quando o relógio de parede marcava
as
nove horas da manhã. Oh, como não queria ver isto! Mal passara a porta do Hug,
ouvira toda a gente aos gritos de que o Monstro fora apanhado. Como se os
polícias
no carro que a trouxera conseguissem falar de outra coisa! Agora teria de ver o
que Carmine andara a fazer nas suas incursões nocturnas, e temia-o. Ele estava
bem,
em princípio, mas durante três noites ela estivera consumida pela preocupação,
até mesmo pelo terror. O que faria se ele nunca mais voltasse para casa? Oh, que
diabo lhe passara pela cabeça para decidir declarar a sua independência com uma
caminhada no fím-de-semana anterior à vigilância do Fantasma? Por que diabo não
percebera
que ele não viria para casa no domingo à noite? Todas as suas esperanças estavam
centradas nisso enquanto percorria a magia dos bosques: como o abraçaria e lhe
diria
que não podia viver sem ele. Mas... nada de Carmine. Apenas os ecos do seu
apartamento vermelho.
A televisão tremeluziu e ganhou vida. Sim, ali estava o tribunal, rodeado por
uma multidão de centenas de pessoas, jornalistas por todo o lado, polícia por
todo
o lado. Um operador de câmara do Channel Six conseguira, pelos vistos,
empoleirar-se no tejadilho de uma carrinha para abarcar toda a cena; outro
estava entre a
multidão e um terceiro no passeio, perto de um carro-patrulha que se aproximava.
Viu Carmine de pé ao lado de um grande capitão de uniforme que reconheceu como
sendo
Danny Marciano. O comissário Silvestri estava no alto da escadaria do tribunal,
muito elegante num uniforme com cordões prateados cintilantes. Depois, da porta
de
trás do carro-patrulha, surgiu o Dr. Charles Ponsonby. Com um aperto no coração,
Desdemona abriu a boca. Deus do céu, Charles Ponsonby! Um Hugger. O melhor e
mais
antigo amigo de Bob Smith. "Estou a testemunhar", pensou ela, "a extinção do
Hug. Estarão os directores Parson a assistir a isto em Nova Iorque? Sim, claro
que estão!
O canal é afiliado da rede. Terão os directores Parson encontrado já aquela
cláusula de fuga? Se não encontraram, redobrarão os seus esforços depois desta
bomba."
O que aconteceu a seguir foi tão rápido que parecia ter acabado antes mesmo de
começar: o homenzinho negro, o chapéu a dizer nós sofremos, o som dos quatro
tiros,
Charles Ponsonby a cair, e Carmine a colocar-se deliberadamente em frente do
homenzinho negro ainda com a feia pistola na mão. Quando Carmine fez aquilo e
todos
os polícias levaram a mão aos coldres, Desdemona sentiu-se morrer, aguardando
paralisada no tempo que o som de uma dezena de armas o cortasse ao meio. O seu
rugido
de "Não disparem!" ecoou claramente nas ondas sonoras. Carmine estava incólume, miraculosamente, os
polícias estavam a guardar as armas e a avançar para agarrar o homenzinho negro,
que não fez qualquer tentativa de fugir. Desdemona sentou-se, trémula, com as
mãos sobre a boca, os olhos quase a saltarem das órbitas. Carmine, seu louco!
Seu idiota!
Seu soldado imbecil! Não morreste - desta vez. Mas estou condenada ao destino de
uma mulher de soldado, para sempre.
A quem dizer primeiro? Não, era melhor dizer-lhes a todos ao mesmo tempo,
imediatamente. O Hug tinha um sistema de altifalantes: Desdemona usou-o para
chamar todos
os Huggers ao anfiteatro.
Depois dirigiu-se ao gabinete de Tâmara; alguém teria de ficar a cuidar dos
telefones. Pobre Tâmara! Era uma sombra do que fora, desde que Keith Kyneton lhe
batera
com a porta na cara. Até o cabelo parecia estar mais fino, mais baço e
desleixado. Ela nem sequer reagiu, limitou-se a acenar e continuou sentada a
fitar o vazio.
*
A notícia das actividades secretas de Charles Ponsonby caiu como uma bomba
sobre as pessoas reunidas no anfiteatro, causando exclamações, arquejos e
incredulidade.
Para Addison Forbes, era uma graça divina: sem Ponsonby nem Smith no caminho, o
Hug seria seu. Por que havia o conselho directivo de procurar noutro lado quando
ele era tão adequado? Tinha a experiência clínica que levava os investigadores a
produzir e a sua reputação era internacional. O conselho directivo gostava dele.
Sem Smith nem Ponsonby, o Hug sob a liderança do professor Addison Forbes
avançaria para coisas maiores e melhores! E quem precisava do arrogante Grande
Marajá da
índia? O mundo estava cheio de potenciais vencedores do Prémio Nobel.
Walter Polonowski mal ouviu o sucinto resumo dos eventos feito por Desdemona;
estava demasiado deprimido. Quatro filhos com Paola e um quinto a caminho, com
Marian.
Ao ver a aliança de casamento no horizonte, Marian começara a livrar-se da pele de amante para revelar uma
nova epiderme tingida de cores matrimoniais. Elas são serpentes, e nós somos as
suas
vítimas.
Para Maurice Finch, a notícia trouxe pesar, mas um pesar tranquilo. Sempre
pensara que desistir da medicina seria equivalente a uma sentença de morte, mas
os eventos
dos passados meses tinham-lhe mostrado que não era bem assim. As suas plantas
também eram pacientes; as suas mãos carinhosas e hábeis podiam tratar delas,
curá-las,
ajudá-las a multiplicarem-se. Sim, a perspectiva de uma vida com Cathy numa
quinta com galinhas soava-lhe muito bem. E ainda ia conseguir dominar aqueles
malditos
cogumelos.
Kurt Schiller não ficou surpreendido. Nunca gostara de Charles Ponsonby, de quem
sempre suspeitara ser um homossexual encapotado; a atitude de Chuck era cúmplice
de forma demasiado subtil, e a sua arte falava em segredo de um mundo de
pesadelo por trás daquele exterior anónimo. Não era o tema, antes algo que
emanava de Chuck.
Na opinião de Kurt, ele era um dos rapazes cabedal-e-correntes, com preferência
pela dor, embora Schiller sempre tivesse presumido que seria Chuck o objecto da
dor.
Um homem do tipo passivo, servindo algum mestre aterrorizador. Bom, era evidente
que se enganara. Charles era um verdadeiro sádico - tinha de ser, para ter feito
o que fizera àquelas pobres crianças. Quanto a si próprio, Kurt não esperava
nada. As suas credenciais garantiam-lhe um lugar, acontecesse o que acontecesse
ao Hug,
e tinha a semente de uma ideia sobre a transmissão de doenças entre a barreira
das espécies, que sabia que seria excitante para o chefe de qualquer unidade de
investigação.
Agora que a fotografia do papá com Adolf Hitler não passava de cinzas na lareira
e a sua homossexualidade era pública, sentia-se pronto para a nova vida que
tencionava
levar. Não em Holloman. Em Nova Iorque, entre os seus pares.
- Otis - gritou Tâmara da porta - , precisam de ti em casa, despacha-te! Não
consegui perceber nada do que a Celeste disse, mas é uma emergência.
Don Hunter e Billy Ho colocaram-se ao lado de Otis, ajudando-o a sair.
- Nós levamo-lo, Desdemona - disse Don. - Não podemos correr o risco de ele ter
outro ataque de coração quando a mulher precisa dele.
Cecil Potter viu a reportagem do Channel Six na CBS em Massachusetts, com Jimmy
sentado no joelho.
- Ora vejam só, já viste isto? - perguntou ao macaco. - Eh! Uh-! Estou mesmo
contente por me ter pirado de lá!
Quando Carmine abriu a porta, nessa tarde, Desdemona precipitou-se para ele,
soluçando ruidosamente enquanto lhe dava murros furiosos no peito. Tinha o nariz
a pingar
e os olhos cheios de lágrimas.
Imensamente gratificado, ele conduziu-a ternamente ao novo sofá que adquirira,
porque as poltronas estavam muito bem para conversar, mas não havia nada melhor
do
que um sofá para duas pessoas se aninharem juntas. Deixou acalmar a tempestade
de lágrimas e de fúria, embalando-a e murmurando palavras tranquilizadoras, e
depois
usou o seu lenço para lhe limpar o rosto.
- O que foi isso? - perguntou, sabendo de antemão a resposta.
- Tu! - disse, soluçando. - Maldito heró-ó-ó-iii!
- Nem maldito nem herói.
- Maldito herói! E pores-te à frente dele para levares com as ba-a-a-laaas! Oh,
estava capaz de te matar!
- Também estou contente por te ver - disse ele, rindo. - Agora põe os pés para
cima que eu vou buscar dois balões de conhaque.
- Eu sabia que te amava - disse ela mais tarde, já calma
- , mas que raio de
maneira de perceber o quanto te amo! Carmine, não quero viver num mundo onde tu
não estejas.
- Isso quer dizer que preferias ser Mrs. Carmine Delmonico do que viver em
Londres?
- Sim, quer.
Ele beijou-a com amor, gratidão, humildade.
- Vou tentar ser um bom marido, Desdemona, mas já tiveste uma previsão
televisiva de como é a vida de um polícia. O futuro não será diferente...
horários complicados,
ausências, balas perdidas. No entanto, suponho que tenho alguém lá em cima do
meu lado. Até agora, estou inteiro.
- Desde que estejas consciente de que, sempre que fizeres coisas disparatadas,
tens de me aturar.
- Tenho fome - foi a resposta dele. - Que tal comida chinesa? Ela deu um enorme
suspiro de satisfação.
- Acabo de me aperceber de que já não corro qualquer perigo - uma nota de
ansiedade surgiu-lhe na voz. - Pois não?
- O perigo acabou, apostaria a minha carreira nisso. Mas não vale a pena
procurares outro apartamento. Não te vou deixar sair daqui. O pecado está na
moda.
- O problema - disse-lhe ele mais tarde, na cama - , é que ainda há tanto
mistério... Duvido que o Ponsonby falasse, mas, quando morreu, toda a esperança
de que isso
acontecesse morreu também. Wesley le Clerc! O nosso problema para amanhã.
- Referes-te ao homicídio do Leonard Ponsonby? À identidade da mulher e da
criança? - Ele contara-lhe tudo o que sabia.
- Sim. E quem escavou o túnel, e como é que o Ponsonby conseguiu pôr todo aquele
material na câmara da morte, desde um gerador a uma porta de cofre. Quem fez as
canalizações? Um trabalho
em grande! O chão da cave está dez metros abaixo da superfície. A maior parte
das caves a três, cinco metros, já são húmidas, mas esta está seca como um osso
velho.
Os engenheiros da câmara estão fascinados, ansiosos por seguirem as condutas.
- E achas que a Claire era o segundo fantasma?
- "Achar" não é a palavra certa. O meu instinto diz-me que sim, a minha cabeça
diz-me que não pode ser. - Suspirou. - Se ela é o segundo Fantasma, conseguiu
safar-se
sem sujar as mãos.
- Não te preocupes - disse ela, acariciando-lhe o cabelo. - Pelo menos os
homicídios chegaram ao fim. Não vai haver mais raparigas raptadas. A Claire não
poderia
fazê-lo sozinha, é uma mulher e altamente incapacitada. Portanto podes dar
graças, Carmine.
- Pela minha estupidez, queres tu dizer. Confundi este caso do princípio ao fim.
- Apenas porque é um tipo de crime novo, cometido por uma espécie nova de
criminoso, meu amor. És um polícia extremamente competente e muito inteligente.
Considera
o caso Ponsonby como uma nova experiência de aprendizagem. Da próxima vez, as
coisas correrão melhor.
Ele estremeceu.
- Se depender de mim, Desdemona, não haverá próxima vez. Os Fantasmas são algo
que só acontece uma vez.
Ela não disse nada, mas ficou a pensar.
⁂
Patrick, Paul e Luke demoraram pouco mais de uma semana a esquadrinhar tudo o
que a câmara da morte dos Ponsonbys tinha para oferecer, desde a mesa de
operações
à casa de banho. O relatório final de Patrick e da sua equipa forense deixava
bem claro que fora uma sorte Charles Ponsonby ter sido apanhado em flagrante,
nu, debruçado
sobre uma rapariga raptada, também nua e presa a uma cama artilhada com
instrumentos de tortura.
- O local estava mais limpo do que a Lady Macbeth. As impressões digitais dele
estão por todo o lado, sim, mas é a cave dele, por baixo da casa dele, portanto
é
natural. Mas de sangue, fluidos corporais, fragmentos de pele ou cabelos
humanos... nem uma partícula, nem um vestígio, nem qualquer outra coisa
microscopicamente
pequena. Quanto à Claire, nem uma impressão digital, nem mesmo na alavanca por
trás do fogão.
Tinham reconstruído as técnicas de limpeza de Ponsonby, assombrados com a
quantidade de trabalho envolvida, a obsessividade. Sendo um homem da profissão
médica,
ele sabia que o calor fixava o sangue e os tecidos, e assim, tanto a mangueira
que usava primeiro como a pistola de água que usava a seguir eram alimentadas
por
água fria; a alcova dos talismãs estava selada por uma porta corrediça de aço.
Quando todas as superfícies estavam secas, ele limpava-as de novo com um jacto de vapor. Finalmente, limpava tudo com éter.
Os instrumentos cirúrgicos, o gancho de talhante, o seu guincho e os pénis ocos
eram mergulhados numa solução que dissolvia o sangue, antes de serem sujeitos ao
mesmo tratamento. Eram também esterilizados.
Depois de convencidos de que a sala de operações não lhes daria nada, começaram
a trabalhar nos canos, com um aspirador de compressão, que sugou apenas água sem
qualquer matéria orgânica. O refluxo não funcionou, deixando os engenheiros
municipais a pensar que os efluentes não eram depositados numa fossa séptica. As
canalizações
de Ponsonby descarregavam para uma corrente de água subterrânea, como havia
muitas na zona. A única esperança que restava aos investigadores era desenterrar
os canos
e segui-los.
Assim que os engenheiros começaram a escavar o jardim, numa tentativa com poucas
probabilidades de sucesso de obter alguma evidência, Claire Ponsonby impôs um
embargo
contra a destruição premeditada da sua propriedade e pediu respeitosamente ao
tribunal que concedesse a uma mulher cega permissão para viver na dita
propriedade
sem a perseguição perpétua e extremamente perturbadora da polícia de Holloman e
dos seus aliados. Uma vez que Charles Ponsonby fora positivamente identificado
como
o Monstro do Connecticut, e nada do que estava a acontecer no número seis de
Ponsonby Lane era necessário para obter mais evidências desse facto, Miss
Ponsonby achava
que já bastava.
- O poço não tem fundo e a bomba funciona a três cavalos - disse o engenheiro
chefe, frustrado e irritado. - Uma vez que há um parque de veados de oito
hectares,
bem como dois hectares de lotes residenciais, o nível de água é elevado e o
consumo local reduzido: Não conseguimos obter qualquer matéria orgânica porque o
filho
da mãe devia despejar milhares e milhares de litros depois de cada homicídio. Os
resíduos estão no fundo do estreito de Long Island. E, merda, que importância
tem?
Ele está morto. Encerre o caso, tenente, antes que aquela cabra horrorosa comece a instaurar processos contra si
pessoalmente.
- É um mistério total, Patsy - disse Carmine ao seu primo.
- Diz-me qualquer coisa que eu ainda não saiba.
- Obviamente que o Chuck era resistente e forte, mas nunca me pareceu um atleta,
e os seus colegas do Hug estavam convencidos de que ele não sabia mudar a anilha
de uma torneira. E contudo aquilo que encontrámos está maravilhosamente bem
construído, com materiais caros. Quem diabo pôs um chão de mosaicos e não o
admite, agora
que o segredo veio a público? E o mesmo em relação às canalizações. Desde a
Guerra que ninguém participa o desaparecimento de nenhum canalizador ou
assentador de
mosaicos! - Carmine rangeu os dentes. - A família não tem dinheiro, sabemos
disso. A Claire e o Chuck viviam tão bem que deviam gastar cada cêntimo do
salário dele.
E no entanto há duzentos mil dólares em materiais e mão-de-obra debaixo do chão
da casa deles. Raios, ninguém admite sequer ter-lhes vendido os lençóis ou o
plástico
líquido para as cabeças!
- Citando o engenheiro, que importância tem, Carmine? O Ponsonby está morto e é
altura de encerrar o caso - disse Patrick, dando uma palmada no ombro de
Carmine.
- Porquê arriscar um ataque de coração por causa de um morto? Pensa na
Desdemona. Quando é o casamento?
- Não gostas dela, Patsy, pois não?
O brilho dos olhos azuis diminuiu mas Patrick não os desviou.
- Talvez o tempo verbal no passado seja mais correcto. Não gostava dela, ao
princípio... demasiado estranha, demasiado estrangeira, demasiado distante. Mas
actualmente
ela está diferente. Espero conseguir vir a amá-la, mais do que gostar dela.
- Não és o único. A tua mãe e a minha estão a tremer como varas verdes. Oh,
parecem entusiasmadas, mas não é em vão que eu sou detective. É apenas uma
fachada para
disfarçar a apreensão.
- Intensificada pelo facto de ela ser bem mais alta do que tu - disse Patrick,
com uma gargalhada. - Mães, tias e irmãs odeiam isso.
Estavam à espera que a segunda Mrs. Delmonico fosse uma boa rapariga italiana de
East Holloman. Mas tu não te sentes atraído por boas raparigas, italianas ou
não.
E sem dúvida que prefiro a Desdemona à Sandra. A Desdemona pelo menos tem
miolos.
- Sempre duram mais do que uma cara ou um corpo bonito.
O caso foi oficialmente encerrado nessa tarde. Depois de o relatório do
médico-legista ser arquivado, o Departamento da Polícia de Holloman foi obrigado
a admitir
que não conseguia encontrar qualquer evidência que implicasse Claire Ponsonby
nos homicídios. Se Carmine tivesse tempo, talvez tivesse procurado Silvestri e
lhe
tivesse pedido para reabrir o caso do homicídio de Leonard Ponsonby e da mulher
e criança desconhecidas, em 1930, mas o crime não espera por ninguém, muito
menos
por um detective. Duas semanas depois da morte de Charles Ponsonby, um caso
relacionado com droga ocupava toda a atenção de Carmine. Novamente em terreno
familiar!
Criminosos que ele sabia serem culpados, o cérebro ocupado em reunir as
evidências necessárias para os levar perante a justiça.
⁂
O machado caiu sobre o Centro de Investigação Neurológica Hughlings Jackson no
final de Março.
Quando o conselho directivo se reuniu na sala de reuniões do Hug, às dez da
manhã, todos os directores estavam presentes excepto o professor Robert Mordent
Smith,
que tivera alta de Marsh Manor duas semanas antes mas que se recusava a deixar a
sua cave e os seus comboios. Um embaraço para Roger Parson Júnior, que odiava
pensar
que se pudera enganar tanto no juízo que fizera de Bob Smith.
- Como gestora de operações, Miss Dupre, por favor sente-se - disse Parson com
vivacidade, e depois olhou para Tâmara com expressão interrogativa. - Miss
Vilich,
está em condições de fazer as actas?
Uma pergunta legítima, uma vez que esta Miss Vilich não se parecia nada com a
mulher que os directores Parson tinham conhecido antes. A sua luz extinguira-se,
pensou
Richard Spaight.
- Sim, Mr. Parson - respondeu Tâmara em tom inexpressivo.
O presidente Mawson Macintosh já sabia aquilo de que o reitor Wilbur Downing
apenas suspeitava; no entanto, a certeza de um e a forte suspeita do outro
deixavam-nos
com rostos satisfeitos e corpos relaxados. A Universidade Chubb ia herdar o Hug,
isso era garantido, juntamente com uma soma enorme, que não seria dedicada à investigação
neurológica.
Com os óculos em meia-lua empoleirados no nariz fino, Roger Parson Júnior
começou a ler o parecer jurídico que declarava completamente nulo o testamento
do seu falecido
e saudoso tio, no que dizia respeito ao fundo monetário que financiava o Hug.
Demorou quarenta e cinco minutos a ler um documento mais árido do que o deserto
do
Saara, mas as pessoas forçadas a ouvi-lo fizeram-no com expressões alerta e
interessadas, excepto Richard Spaight, sobre quem recairiam os aspectos mais
aborrecidos
da questão. Virou a cadeira para a janela e viu dois rebocadores escoltarem um
grande petroleiro até ao seu ancoradouro no novo complexo de reservatórios de
hidrocarbonetos
ao fundo de Oak Street.
- Podíamos, claro, absorver simplesmente os cento e cinquenta milhões de capital
do fundo, mais os juros vencidos, nas nossas hol-dings - disse Parson, em
conclusão
do seu discurso - , mas esse não seria o desejo de William Parson... todos nós,
seus sobrinhos e sobrinhos-netos, temos a certeza disso.
"Ha-ha-ha", pensou M. M., "uma ova é que não gostariam de absorver a massa! Mas
desistiram da ideia depois de eu vos ter dito que a Chubb os levaria para
tribunal.
O melhor que podem fazer é deitar a mão aos juros vencidos, que só por si darão
uma bela e rechonchuda adição à Parson Products."
-Assim, propomos que metade do capital seja transferido para a Faculdade de
Medicina da Chubb, de forma a financiar a carreira em curso do Centro Hughlings
Jackson,
seja qual for a forma que esta venha a assumir. O edifício e os terrenos serão
transferidos para a Universidade Chubb. E a outra metade do capital irá para a
Universidade
Chubb, para financiar grandes infra-estruturas ou qualquer outro tipo de
construção que o conselho directivo da universidade decidir. Desde que cada
infra-estrutura
ostente o nome de William Parson.
A expressão do reitor Dowling era gulosa, enquanto M. M. manteve um ar
complacente e impassível. O reitor Dowling estava a pensar transformar o Hug num centro de investigação de psicoses orgânicas.
Tentara persuadir Miss Claire Ponsonby a doar o cérebro do seu falecido irmão
para investigação,
pedido que ela recusara educadamente. Esse, sim, era um cérebro psicótico! Não
que esperasse ver qualquer alteração anatómica evidente, mas tivera esperança de
conseguir
identificar atrofia localizada no córtex pré-frontal, ou alguma aberração no
corpo estriado. Até mesmo um pequeno astrocitoma.
Os pensamentos de Mawson Macintosh giravam em torno da natureza dos edifícios
que ostentariam o nome de William Parson. Um deles tinha de ser uma galeria de
arte,
mesmo que ficasse vazia até o último dos Parsons morrer. Que esse dia chegasse
em breve!
- Miss Dupre - estava Roger Parson a dizer - , o seu dever será fazer circular
esta carta oficial - empurrou-a sobre a mesa - entre todos os membros do Centro
Hughlings
Jackson, pessoal e clínicos. A data de encerramento é o dia vinte e nove de
Abril, sexta-feira. Todo o equipamento e mobiliário será distribuído de acordo
com os
desejos do reitor de Medicina. Excepto, claro está, alguns artigos seleccionados
que serão doados aos laboratórios do Médico Legista do Condado de Holloman, em
sinal
do nosso agradecimento. Um desses artigos será o novo microscópio electrónico.
Tive uma conversa com o governador do Connecticut, que me falou sobre a
crescente
importância da ciência da Medicina Forense, e sobre os seus problemas de
financiamento.
"Não, não, não!", pensou o reitor Dowling. "Esse microscópio é meu!"
- O presidente Macintosh garantiu-me - continuou Roger Parson Júnior em tom
monótono - , que todos os membros que desejarem ficar podem fazê-lo. No entanto,
salários
e vencimentos serão reavaliados, de acordo com a política fiscal da Faculdade de
Medicina. Os clínicos e investigadores que desejarem ficar serão colocados sob a
direcção do professor Frank Watson. Para aqueles que não desejem ficar, Miss
Dupre, serão preparados pacotes de compensação com um ano de salários, mais todas as contribuições para pensões. Pigarreou e
ajeitou os óculos.
- Há duas excepções a esta regra. Uma é o professor Bob Smith que, infelizmente,
não se encontra suficientemente bem para retomar qualquer tipo de actividade
médica.
Uma vez que a sua contribuição ao longo dos dezasseis anos da sua administração
foi formidável, decidimos que a sua indemnização será a discriminada aqui. -
Estendeu
outra folha de papel a Desdemona. - A segunda excepção é a senhora, Miss Dupre.
Infelizmente, o cargo de gestora de operações deixará de existir. E o professor
Macintosh
informou-me de que será impossível encontrar-lhe uma posição equivalente dentro
da universidade. Assim, concordámos que o seu pacote de compensação consistirá
do
que se encontra discriminado aqui.- Uma terceira folha de papel.
Desdemona espreitou. Dois anos de salários mais todas as contribuições para
pensões. Se casasse, deixasse completamente de trabalhar e investisse o
dinheiro, ficaria
bastante bem.
- Tâmara, desligue as máquinas de café - disse ela.
- Dou-te dois anos para o Dowling dar cabo daquilo - disse ela a Carmine nessa
noite. - Ele é demasiado psiquiatra e muito pouco neurologista para conseguir
tirar
o melhor partido de uma unidade de investigação bem gerida. Todas as espécies de
investigadores alucinados o enganarão. Diz ao Patrick que não tenha vergonha em
relação à oferta de equipamento, Carmine. Ele que lhe deite a mão enquanto pode.
- Ele vai beijar-te as mãos e os pés, Desdemona.
- Não sei porquê, eu não fiz nada - suspirou com satisfação. - Seja como for, a
tua noiva traz um dote. Se puderes sustentar-me, a mim e aos filhos que
considerares
suficientes, então o meu dote deve dar para nos comprar uma casa bastante boa. Adoro este apartamento, mas não é
indicado para criar uma família.
- Não - disse ele, pegando-lhe nas mãos. - Guarda o teu dinheiro. Se mudares de
ideias, terás o suficiente para voltar para Londres. Não tenho falta de
dinheiro,
a sério.
- Bom - disse ela - , então pensa nisto, Carmine. O Addison Forbes, quando leu a
circular do Roger Parson Júnior, perdeu a cabeça. Trabalhar sob a direcção do
Frank
Watson? Preferia morrer de sífilis terciária! Anunciou que vai trabalhar com o
Nur Chandra em Harvard, mas eu acho que Harvard já tem a sua quota-parte de
neurologistas
clínicos, portanto o Addison bem pode esperar sentado. A questão é que eu adoro
a casa dele. Se os Forbes se mudarem, suponho que a porão à venda por uma pipa
de
massa, mas achas que temos alguma hipótese de a comprar? Este apartamento é
arrendado ou comprado?
- É um condomínio, comprado. Acho que talvez consigamos ficar com a casa do
Forbes, se gostas tanto dela. A localização é ideal... East Holloman, a zona
onde mora
a minha família. Tenta gostar da minha família, Desdemona - implorou. - A minha
primeira mulher achava que eles a espiavam porque a minha mãe, a mãe do Patsy ou
uma das nossas irmãs estavam sempre a aparecer. Mas não era por isso. As
famílias italianas são muito chegadas.
Apesar de a aparência dela não ter realmente mudado, de alguma forma, para
Carmine, Desdemona já não parecia tão vulgar como antes. Não era o amor a
cegá-lo; o amor
a abrir-lhe os olhos seria uma melhor maneira de o explicar.
- Eu sou bastante tímida - confessou ela, apertando-lhe a mão - , e isso faz com
que pareça snobe. Acho que não vou ter problemas em gostar da tua família,
Carmine.
E uma das razões por que estou tão interessada na casa dos Forbes é a torre. Se
a Sophia alguma vez quiser voltar para casa, talvez para acabar o liceu na
Dormer
Day e depois na prometida Chubb mista, a torre daria um quarto fantástico para
ela. Por aquilo que me disseste, acho que a Sophia precisa de uma casa a sério, não de um Palácio de Hampton Court. Se não lhe deitares a mão
agora, daqui a um ano ela acabará por ir para Haight-Ashbury.
Carmine sentiu os olhos húmidos.
- Não te mereço - disse.
- Que disparate! As pessoas têm sempre aquilo que merecem.
⁂
Primavera e Verão de 1966
Na semana que se seguiu à acusação de Wesley le Clerc pelo homicídio de Charles
Ponsonby, houve uma alteração no estado de espírito a nível estadual,
ardentemente
alimentada pela televisão. A indignação pública pela existência do Monstro do
Connecticut aumentou, em vez de diminuir; ele era visto como uma prova da
impiedade,
da decadência moral, da ausência de ética, num mundo enlouquecido sob a pressão
da modernidade, sob a avalanche da tecnologia. A comunidade tolerava estes
desportos
genéricos, permitindo-lhes que amadurecessem e criassem um novo tipo de
assassino; no entanto, ninguém parecia compreender o facto de eles se
apresentarem como cidadãos
normais e cumpridores da lei. Ou de, na verdade, eles estarem a multiplicar-se.
Wesley conseguiu o que queria: tornara-se um herói. Apesar de uma grande
percentagem dos seus admiradores ser negra, muitos não eram, e todos estavam
convencidos
de que Wesley le Clerc fizera justiça, uma justiça que estava para além da
capacidade da Lei. Se a tendência pró-brancos da Lei já estava morta em alguns
estados
e moribunda noutros, isso era por vezes difícil de ver. Era muito mais fácil ver
as famílias de algumas das vítimas do Monstro aparecerem num programa de
televisão
e responderem a perguntas desprovidas de moral, ética ou simples boas maneiras:
qual foi a sensação de ver a cabeça da sua filha envolvida em plástico transparente?
Choraram? Desmaiaram? O que pensam de Wesley le Clerc?
Wesley fora acusado de homicídio em primeiro grau, aquele que era premeditado, e
a única dúvida legal podia incidir apenas sobre essa premeditação. Depois de
estar
sob as luzes da ribalta, Wesley sabia muito bem que, para aí permanecer, tinha
de ir a julgamento. Se se declarasse culpado, isso significava que compareceria
em
tribunal apenas para ouvir a sentença. Assim, declarou-se inocente e foi
reencarcerado a aguardar julgamento, sem que lhe fosse concedida fiança. À porta
do tribunal,
depois desta audição, Wesley fora abordado por um advogado branco de grande
visibilidade que se apresentou como o líder da nova equipa de defensores de
Wesley. Era
seguido por um grupo de outros advogados brancos e gordos que constituía o resto
da equipa. Para seu horror, Wesley rejeitou-os.
- Vão à merda e digam a Mohammed el Nesr que eu vi a verdadeira luz - disse
Wesley. - Passarei por isto como todos os negros pobres, com um advogado
oficioso nomeado
pelo gabinete do ministério público. - Apontou para um jovem negro com uma pasta
na mão. Uma breve sombra passou-lhe pelo rosto, e suspirou. - Este podia ser eu,
daqui a dez anos, mas escolhi outro caminho.
Depois de acalmada a exaltação da viagem até às celas na companhia de Carmine
Delmonico, Wesley passara por uma mudança que talvez tivesse um pouco a ver com
o que
Carmine lhe dissera, mas que tinha muito mais a ver com o facto de ter visto, de
uma distância de um metro, a vida a extinguir-se de um par de olhos. Tudo o que
restava de Charles Ponsonby era uma casca, e o que aterrorizava Wesley era o
facto de ter libertado aquele espírito indizivelmente perverso para procurar
abrigo
nalgum outro corpo. Alá lutava dentro dele com Cristo e Buda, e Wesley começou a
rezar aos três.
No entanto, a força também o invadiu, uma espécie diferente de força. De alguma
forma, conseguiria transformar este erro cardinal numa vitória.
Os primeiros sinais de vitória surgiram quando foi enviado para a Prisão do
Condado de Holloman para passar os meses entre o seu crime e o seu julgamento.
Quando
chegou, os outros reclusos aplaudiram-no entusiasticamente. A sua tarimba, numa
cela para quatro, estava coberta de presentes: cigarros e charutos, isqueiros,
revistas,
doces, acessórios de moda, um relógio Rolex de ouro, sete pulseiras de ouro,
nove fios de ouro, um anel para o dedo mindinho com um grande diamante. Não
precisava
de ter medo de ser violado nos duches! Também não foi atormentado pelos guardas;
todos o cumprimentavam com acenos respeitosos, sorriam, levantavam-lhe os
polegares.
Quando pediu um tapete de orações, apareceu um belo Shiraz, e sempre que entrava
no refeitório ou no pátio era novamente aplaudido. Negros ou brancos, os
prisioneiros
e os guardas adoravam-no.
Uma quantidade imensa de pessoas de todas as raças e cores achava que Wesley le
Clerc não devia ser condenado. Houve uma inundação de cartas ao editor nos
jornais
de toda a nação. As linhas telefónicas dos programas de rádio estavam entupidas.
Os telegramas empilhavam-se na secretária do governador. O procurador público de
Holloman tentou convencer Wesley a declarar-se culpado de homicídio involuntário
para obter uma sentença muito mais reduzida, mas o novo herói não queria ter
nada
a ver com essas desculpas. Iria a julgamento, e assim foi.
Um julgamento que começou no início de Junho, meses antes do que seria normal;
os poderes judiciais estabelecidos decidiram que adiá-lo mais só tornaria as
coisas
ainda piores. Isto não era um prodígio de nove dias que as pessoas esqueceriam.
Vamos julgá-lo já, despachar isto de uma vez por todas!
Nunca um júri fora seleccionado com maior cuidado. Oito dos jurados eram negros
e quatro brancos, seis mulheres e seis homens, alguns abastados, outros simples
trabalhadores,
dois desempregados, embora não por culpa própria.
A história de Wesley, em tribunal, era que não planeara nada para além do chapéu
- que tinham sido os empurrões da multidão que o tinham colocado onde estava, e
que não se lembrava de disparar qualquer arma, nem sequer se lembrava de ter uma
arma consigo. O facto de a sua acção estar imortalizada em vídeo era
irrelevante;
tudo o que ele tencionara fazer era um protesto contra a forma como o seu povo
era tratado.
O júri optou por homicídio não premeditado e acrescentou uma forte recomendação
de clemência. O juiz Douglas Thwaites, que não era um homem clemente, proferiu
uma
sentença de vinte anos de prisão, doze dos quais sem possibilidade de liberdade
condicional. Mais ou menos o veredicto esperado.
O julgamento demorou cinco dias e terminou numa sexta-feira, assinalando o
clímax de uma Primavera que o governador, pelo menos, nunca mais queria ver
repetida.
As manifestações tinham-se transformado em motins, havia casas incendiadas,
lojas saqueadas, trocas de tiros. Apesar de o seu discípulo Ali el Kadi se ter
voltado
contra ele, Mohammed el Nesr aproveitou a oportunidade e conduziu a Brigada
Negra numa pequena guerra, que terminou quando uma rusga ao número dezoito de
Fifteenth
Street encontrou mais de mil armas de fogo. O que nenhum polícia conseguia
perceber era o porquê de Mohammed não ter transferido o seu arsenal para outro
local muito
antes da rusga. Excepto Carmine, que achava que Mohammed estava a perder o pé e
sabia-o; até os seus próprios homens estavam a começar a admirar cada vez mais
Wesley
le Clerc.
Independentemente do destino da Brigada Negra, tornou-se bem claro, uma semana
antes do início do julgamento de Wesley, que este se ia transformar numa
manifestação
de massas gigantesca de apoio ao exterminador do Monstro, e que nem todos os que
planeavam marchar sobre Holloman tinham intenções pacíficas. Espiões e informadores
relataram que cem mil manifestantes negros e setenta e cinco mil manifestantes
brancos
pretendiam invadir o parque de Holloman, ao nascer do dia, na segunda-feira
marcada para o início do julgamento de Wesley. Vinham de tão longe como Los
•Angeles,
Chicago, Baton Rouge (a cidade natal de Wesley) e Atlanta, apesar de a maioria
viver em Nova Iorque, Connecticut ou Massachusetts. O ponto de encontro
destinado
era Maltravers Park, um jardim botânico a quinze quilómetros de Holloman. E aí,
a partir de sábado, as pessoas foram-se reunindo aos milhares. A marcha até ao
parque
de Holloman estava marcada para as cinco da manhã de segunda-feira e era uma
marcha muito bem organizada. Os habitantes de Holloman, aterrorizados, pregaram
tábuas
nas montras das lojas, nas portas e nas janelas baixas, temendo a guerra urbana
que certamente se aproximava.
No domingo de manhã o governador chamou a Guarda Nacional, que entrou
ostensivamente em Holloman na madrugada de segunda-feira para ocupar o parque
antes dos manifestantes;
transportes de tropas, veículos blindados e camiões enormes abalaram as
fundações dos edifícios, enquanto toda a cidade de Holloman os via passar, de
olhos arregalados
e corpos trémulos.
Mas os manifestantes não apareceram. Ninguém sabia bem porquê. Talvez tivesse
sido a perspectiva de um confronto com tropas experientes a detê-los, ou talvez
Maltravers
Park fosse o único destino que a maioria deles tinha em mente desde o início. Ao
meio-dia de segunda-feira Maltravers Park estava vazio, e foi tudo. O julgamento
de Wesley le Clerc prosseguiu com menos de quinhentos manifestantes no parque de
Holloman, rodeados por um mar de guardas nacionais, e quando o veredicto foi
anunciado,
na sexta-feira à tarde, esses quinhentos foram para casa, dóceis como cordeiros.
Teria sido a exibição oficial de força? Ou o mero acto de se reunirem
satisfizera
aqueles que tinham ido a Maltravers Park?
Wesley le Clerc não perdeu tempo a preocupar-se ou a pensar nos seus apoiantes.
Transferido na sexta-feira à noite para uma prisão de segurança máxima no norte
do
estado, na segunda-feira seguinte Wesley pediu ao director da prisão autorização
para estudar para os exames de admissão no curso de Direito; este inteligente
funcionário
público ficou contente por poder satisfazer o seu pedido. Afinal de contas,
Wesley le Clerc tinha apenas vinte e cinco anos. Se conseguisse a liberdade
condicional
na primeira tentativa, teria trinta e sete e provavelmente estaria na posse de
um doutoramento em jurisprudência. O seu cadastro criminal impedi-lo-ia de ser
admitido
na Ordem, mas os conhecimentos adquiridos seriam muito mais importantes. A sua
especialidade seria o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Afinal de contas, ele
era
o Exterminador do Monstro, o Homem Santo de Holloman. "Rói-te de inveja,
Mohammed el Nesr, os teus dias acabaram. Eu é que sou o maior."
⁂
Carmine e Desdemona casaram no princípio de Maio e decidiram passar a lua-de-mel
em Los Angeles, como hóspedes de Myron Mendel Mandelbaum; a reprodução do
Palácio
de Hampton Court era tão enorme que a sua presença não causava qualquer embaraço
a Myron ou a Sandra. Myron estava sempre à disposição deles, enquanto Sandra
flutuava
nas nuvens do esquecimento. Com alguma surpresa por parte de Carmine e Myron,
Sophia decidiu gostar de Desdemona, cuja teoria era a de que a sua nova enteada
aprovava
a forma pouco efusiva e prática como a nova madrasta a tratava. Desdemona
tratava-a como se ela fosse uma adulta sensata e responsável. Os augúrios eram
auspiciosos.
Em Holloman, nem tudo corria tão bem. Como se o Hug não tivesse já sofrido
comoções e escândalos suficientes nos últimos meses, nos estertores da morte
ainda produziu
mais um, quando Mrs. Robin Forbes se queixou à polícia de Holloman de que o
marido a estava a envenenar. Interrogado pelos recentemente condecorados
sargentos-detectives
Abe Goldberg e Corey Marshall, o Dr. Addison Forbes rejeitara essa acusação com
escárnio e desdém, convidara-os a retirar amostras de todos os alimentos e
bebidas
da casa e retirara-se para o seu ninho na torre. Depois de os resultados das
análises (incluindo de vómito, fezes e urina) darem negativo,
Forbes embalara os seus livros e papéis, fizera duas malas e partira para Fort
Lauderdale. Aí entrara para uma clínica muito lucrativa de neurologia
geriátrica;
coisas como avcs e demência senil nunca lhe tinham interessado, mas eram
infinitamente preferíveis ao professor Frank Watson e a Mrs. Robin Forbes, de
quem pediu
o divórcio. Quando os advogados de Carmine o contactaram para propor a compra da
casa em East Circle, vendeu-a por menos do que ela valia para se vingar de
Robin,
que estava a exigir metade. Depois de um debate lancinante consigo própria para
decidir qual das duas filhas precisava mais dela, Robin mudou-se para Boston,
para
junto de Roberta, a prometedora ginecologista. Robina mandou um cartão à irmã a
solidarizar-se com a sorte dela, mas na verdade Roberta estava encantada por ter
arranjado uma governanta.
Tudo isto significava que Desdemona podia oferecer a torre a Sophia.
- É divina - disse em tom casual, sem querer parecer demasiado entusiasmada. - A
sala de cima tem uma varanda... podias usá-la como sala de estar... e a de baixo
daria um pequeno quarto, se a dividíssemos para fazer uma casa de banho e uma
kitchnette. O Carmine e eu pensámos que talvez quisesses ir acabar o liceu na
Dormer,
depois pensar numa boa universidade. Quem sabe, talvez a Chubb se torne mista
antes de teres idade para entrar. Estarias interessada?
A sofisticada adolescente guinchou de alegria; Sophia pôs os braços à volta do
pescoço de Desdemona e abraçou-a.
- Oh, sim, por favor!
Julho estava prestes a dar lugar a Agosto quando Claire Ponsonby mandou uma
mensagem a Carmine, dizendo que gostaria de o ver. O seu pedido foi uma
surpresa, mas
nem mesmo ela tinha a capacidade de arruinar a boa disposição de Carmine, neste
lindo dia de flores em botão e pássaros a cantar. Sophia chegara de Los Angeles duas semanas antes e ainda estava a tentar decidir se queria pintar ou usar
papel de parede no interior da sua torre. Carmine ficava espantado com a
quantidade de
coisas que ela e Desdemona encontravam para conversar, tal como o espantava a
sua em tempos empertigada esposa. Como ela se devia ter sentido sozinha,
poupando cada
tostão para comprar uma vida que, a julgar pela forma como se adaptara ao
casamento, nunca a teria satisfeito. Embora, em parte, talvez isso se devesse à
gravidez,
um pouco anterior ao dia do casamento; o bebé nasceria em Novembro e Sophia mal
podia esperar. Não admirava, portanto, que nem mesmo Claire Ponsonby tivesse o
poder
de arruinar a sua sensação de bem-estar, de uma realização bastante tardia.
Claire e a cadela estavam à sua espera no alpendre. Ela tinha colocado duas
cadeiras de ambos os lados de uma pequena mesa de verga branca, em cima da qual
havia
um jarro de limonada, dois copos e um prato de bolachas.
- Tenente - disse ela, enquanto ele subia os degraus.
- Capitão, hoje em dia - corrigiu ele.
- Meu Deus! Capitão Delmonico. Soa bem. Sente-se e beba um copo de limonada. É
uma antiga receita de família.
- Obrigado, posso sentar-me mas não quero limonada.
- Seria incapaz de comer ou beber qualquer coisa preparada pelas minhas mãos, é
isso, capitão? - perguntou ela docemente.
- Francamente, é isso mesmo.
- Eu perdoo-lhe. Vamos apenas sentar-nos, então.
- Por que pediu para me ver, Miss Ponsonby?
- Por duas razões. A primeira é que me vou embora e, apesar de os meus advogados
me terem dito que ninguém me pode impedir de o fazer, achei que seria prudente
informá-lo
desse facto. A carrinha do Charles está carregada com as coisas que quero levar
comigo e contratei um estudante da Chubb para me levar a Nova Iorque, a mim e à Biddy,
ainda hoje. Vendi o Mustang.
- Pensava que o número seis de Ponsonby Lane seria o seu lar até à morte.
- Descobri que não terei um lar em lado nenhum sem o meu querido Charles. Depois
recebi uma oferta por esta propriedade que simplesmente não podia recusar. Seria
compreensível pensar que ninguém a quereria comprar, mas não é esse o caso. O
major F. Sharp Minor pagou-me uma soma muito generosa por aquilo que, segundo
creio,
tenciona transformar num museu de horrores. Várias agências de viagens de Nova
Iorque concordaram em organizar excursões de dois dias. Primeiro dia: viagem de
autocarro
pelos campos encantadores do Connecticut, jantar e estada no motel Major
Minor's... ele vai redecorá-lo em grande estilo. Segundo dia: uma visita guiada
à casa do
Monstro do Connecticut, incluindo rastejar pelo famoso túnel. Alimentar os
veados que garantidamente estarão à espera junto da entrada do túnel. Voltar ao
covil
do Monstro para ver catorze cabeças de imitação colocadas no seu local original.
Naturalmente, ao som de uma banda sonora de gritos e uivos. O major vai esvaziar
a velha sala de estar e transformá-la numa sala de jantar para trinta pessoas, e
tenciona transformar a nossa velha sala de jantar numa cozinha. Afinal de
contas,
não pode pôr um cozinheiro a fazer o almoço no fogão Aga enquanto as pessoas o
vêem rodar sobre si próprio para revelar a entrada. Depois, regresso a Nova
Iorque
de autocarro - disse Claire sem expressão.
Céus, o sarcasmo! Carmine escutou-a, fascinado, feliz por ela não poder ver que
ele estava de boca aberta.
- Pensei que não acreditava em nada disso.
- E não acredito. No entanto, garantiram-me que estas coisas existem de facto.
Se assim é, então eu mereço ganhar alguma coisa com elas. Vão proporcionar-me a
oportunidade
de começar de novo noutro lugar, longe do Connecticut. Estou a pensar no Arizona
ou no Novo México.
- Desejo-lhe sorte. Qual é a segunda razão?
- Uma explicação - disse ela, parecendo mais suave, mais parecida com a Claire
com quem ele simpatizara, de quem gostara. - Não o tenho na conta do estereótipo
do
polícia abrutalhado, capitão. Sempre me pareceu um homem dedicado ao seu
trabalho... sincero, até mesmo altruísta. Compreendo o porquê de eu ter estado
sob suspeita
desses crimes horrorosos, uma vez que continuam a insistir que o assassino era o
meu irmão. A minha teoria é que eu e o Charles fomos enganados, que foi outra
pessoa
qualquer que fez todas as... ah... renovações nas nossas caves. - Suspirou. -
Seja como for, decidi que o senhor é suficientemente cavalheiro para me fazer
algumas
perguntas como um cavalheiro faria... com cortesia e discrição.
Vitória, por fim! Carmine inclinou-se para a frente, de mãos cruzadas.
- Obrigado, Miss Ponsonby. Gostava de começar por lhe perguntar o que sabe sobre
a morte do seu pai?
- Calculei que me fizesse essa pergunta. - Ela esticou as pernas compridas e
fortes e cruzou os tornozelos, um dos pés brincando com o pêlo de Biddy. - Antes
da
Depressão, éramos muito ricos e vivíamos bem. Os Ponsonby sempre gostaram de
viver bem... boa música, boa comida, bom vinho, rodeados por coisas boas. A
minha mãe
vinha de um ambiente semelhante... Shaker Heights, sabe. Mas o casamento não foi
por amor. Os meus pais foram obrigados a casar porque o Charles vinha a caminho.
A mamã estava disposta a tudo para caçar o meu pai que, na realidade, não a
desejava. Mas, na hora da verdade, ele cumpriu o seu dever. O Charles nasceu
três meses
depois. Dois anos depois disso nasceu o Morton, e dois anos depois, eu.
O pé parou; Biddy ganiu até as carícias recomeçarem, depois deitou-se e apoiou o
focinho nas patas da frente. Claire continuou.
- Sempre tivemos uma governanta, bem como uma empregada de limpeza. A governanta
era uma criada que vivia connosco e fazia todos os trabalhos domésticos mais
leves,
excepto cozinhar. A mamã gostava de cozinhar, mas detestava lavar a loiça ou
descascar as batatas.
Não acho que ela fosse particularmente tirânica, mas um dia a governanta
despediu-se. E o papá trouxe para casa Mrs. Catone... Louisa Catone. A mamã
ficou lívida.
Lívida! Como se atrevia ele a usurpar as prerrogativas dela, e por aí fora. Mas
o papá gostava de ter a última palavra, tanto como a mamã, e portanto Mrs.
Catone
ficou. Ela era uma pérola, o que acabou por acalmar a mamã. Imagino que ela
devia saber desde o princípio que Mrs. Catone era amante do meu pai, mas as
coisas correram
bem durante muito tempo. Depois houve uma discussão terrível... oh, terrível! A
mamã insistiu que Mrs. Catone tinha de partir, o papá insistiu para que ela
ficasse.
- Mrs. Catone tinha filhos? - perguntou Carmine.
- Sim, uma menina chamada Emma, poucos meses mais velha do que eu - disse Claire
com ar sonhador, sorrindo. - Costumávamos brincar juntas, comíamos juntas. A
minha
visão não era muito boa, já na altura, e a Emma era um pouco como um cão-guia
para mim. O Charles e o Morton odiavam-na. Compreende, a discussão aconteceu
porque
a mamã descobriu que a Emma era filha do meu pai... nossa meia-irmã. O Charles
encontrou a certidão de nascimento.
Calou-se, ainda acariciando o pêlo de Biddy com o pé.
- Qual foi o resultado da discussão? - perguntou Carmine.
- Surpreendente, e ao mesmo tempo não. O papá teve de se ausentar por causa de
um negócio urgente no dia seguinte e Mrs. Catone partiu, com a Emma.
- Quando foi isso, em relação à morte do seu pai?
- Deixe-me ver... eu tinha quase seis anos quando ele morreu... um ano antes. No
Inverno anterior.
- Há quanto tempo estava Mrs. Catone convosco quando partiu?
- Dezoito meses. Ela era uma mulher extraordinariamente bela... a Emma era a
cara dela. Morena. Sangue mestiço, embora maioritariamente branco. A sua voz era
encantadora...
melodiosa, doce como mel. Era uma pena que as suas palavras fossem sempre tão
banais.
- Então a sua mãe despediu-a enquanto o seu pai estava fora.
- Sim, mas acho que houve mais do que isso. Se nós fôssemos um pouco mais
velhos, talvez pudesse contar-lhe mais, ou se fosse eu a mais velha, a
rapariga... os rapazes
não são muito observadores quando se trata de emoções. A mamã conseguia assustar
as pessoas. Tinha um certo poder. Conversei muitas vezes com o Charles sobre
isso
e chegámos à conclusão de que a mamã ameaçara matar a Emma, a menos que elas
desaparecessem as duas para sempre. E Mrs. Catone acreditou nela.
- Como é que o seu pai reagiu quando voltou para casa?
- Houve uma grande discussão, muitos gritos. O papá bateu na mamã, depois saiu
de casa a correr. Não voltou durante dias... talvez semanas. Muito tempo.
Lembro-me
que a minha mãe passava o tempo a caminhar de um lado para o outro dentro de
casa. Depois ele voltou. Lívido, não falava com a minha mãe e, se ela tentava
tocar-lhe,
batia-lhe ou empurrava-a. O ódio! E... e ele chorava. Constante-mente, ou pelo
menos era o que nos parecia. Acho que voltou por nossa causa, mas arrastava-se
pela
casa como um morto-vivo.
- Acha que o seu pai foi à procura de Mrs. Catone mas não conseguiu encontrá-la?
Os olhos azuis-claros fitaram o infinito da sua cegueira.
- Bom, é a explicação mais lógica, não é? O divórcio era relativamente
aceitável, mesmo na altura, e contudo o papá preferiu ter Mrs. Catone como
criada em sua casa.
A mamã para manter as aparências, Mrs. Catone para o prazer carnal. Se tivesse
casado com uma mulata das Caraíbas isso tê-lo-ia arruinado socialmente, e o papá
preocupava-se
muito com a sua posição social. Afinal de contas, era um Ponsonby de Holloman.
Como ela é fria, pensou Carmine.
- A sua mãe sabia que o dinheiro tinha desaparecido na queda de Wall Street?
- Só soube depois de o papá morrer.
- Foi ela que o matou?
- Oh, sim. Tiveram a pior discussão de todas nessa tarde... nós conseguíamos
ouvi-los no andar de cima. Não conseguimos perceber tudo o que gritaram um ao
outro,
mas ouvimos o bastante para perceber que o papá encontrara Mrs. Catone e a
filha. Que tencionava deixar a mamã. Ele vestiu o seu melhor fato e saiu de casa
no seu
carro. A mamã trancou-nos aos três no quarto do Charles e saiu no outro carro.
Estava a começar a nevar. - A voz dela parecia infantil, como se a pura força
das
recordações a estivesse a fazer recuar no tempo. - Os flocos de neve rodopiavam
pelo ar, como dentro de um globo de cristal. Esperámos tanto tempo! Depois
ouvimos
o carro da mamã e começámos a bater na porta. A mamã abriu-a, nós
precipitámo-nos para fora... oh, estávamos tão aflitos para ir à casa de banho!
Os rapazes deixaram-me
ir primeiro. Quando saí, a minha mãe estava de pé no corredor, com um bastão de
basebol na mão direita. O bastão estava coberto de sangue e ela também. Depois o
Charles e o Morton saíram da casa de banho, viram-na e levaram-na. Despiram-na e
deram-lhe banho, mas eu tinha tanta fome que desci para a cozinha. O Charles e o
Morton acenderam o fogo na velha lareira, onde está agora o Aga, e queimaram o
bastão de basebol e as roupas dela. Tão triste! O Morton nunca mais foi o mesmo.
- Quer dizer que até aí ele era... bom, normal?
- Perfeitamente normal, capitão, apesar de ainda não ter começado a escola. A
minha mãe só nos deixou ir para a escola aos oito anos. Mas, depois desse dia, o
Morton
nunca mais disse uma palavra. Deixou de reconhecer a existência do mundo à sua
volta. Oh, os ataques de fúria! A mamã não tinha medo de nada nem de ninguém,
excepto
do Morton quando tinha um dos seus ataques de fúria. Violentos, incontroláveis.
- A polícia apareceu?
- Claro. Nós dissemos que a mamã tinha estado em casa connosco, na cama, com uma
enxaqueca. Quando lhe disseram que o papá estava morto, ela ficou histérica. A
mãe
do Bob Smith veio a nossa casa, deu-nos de comer e ficou a fazer companhia à
mamã.
Alguns dias depois, descobrimos que o nosso dinheiro tinha desaparecido na queda
da Bolsa.
Carmine sentia os joelhos doridos; a cadeira era demasiado baixa. Levantou-se e
deu uma volta pelo alpendre, vendo pelo canto do olho que Claire Ponsonby estava
de facto pronta para partir. A caixa da carrinha, estacionada em frente à casa,
estava cheia com malas, caixas, e um par de pequenas arcas iguais, que
remontavam
a uma época de viagens mais demoradas e com mais estilo. Sem querer voltar a
sentar-se, encostou-se ao corrimão.
- Sabia que Mrs. Catone e a Emma também morreram nessa noite? - perguntou. - A
sua mãe usou o bastão de basebol nos três.
Claire fez uma expressão de absoluto e genuíno choque; o pé com que estava a
acariciar a cadela deu um solavanco involuntário, como um movimento reflexo.
Carmine
serviu-lhe de um copo de limonada, pensando se não devia tentar encontrar
qualquer coisa mais forte. Mas ela esvaziou avidamente o copo e recuperou a
compostura.
- Então foi isso que lhes aconteceu - disse lentamente - , e durante este tempo
todo eu e o Charles sempre nos questionámos. Nunca ninguém nos disse quem eram
as
outras duas vítimas, falou-se apenas de um bando de vagabundos que matara várias
pessoas. Presumimos que a mamã aproveitara isso para ocultar a sua acção, que os
outros dois seriam membros do bando.
De súbito inclinou-se para a frente e estendeu a mão a Carmine, num gesto
suplicante.
- Conte-me tudo, capitão! Como?
- Penso que estava certa ao pensar que o seu pai disse à sua mãe que a ia deixar
para começar uma vida nova. Com certeza que tinha localizado Mrs. Catone e a
filha,
mas, quando se foi encontrar com elas na estação de comboios, foi pela primeira
vez, porque mãe e filha estavam na miséria. Sem dinheiro, sem comida. Os dois
mil
dólares que ele levava consigo eram provavelmente tudo o que conseguira reunir
para esse novo começo - disse Carmine. - Estavam os três escondidos no exterior, à neve, o que me faz pensar que a sua mãe tinha de facto
a capacidade de assustar muito as pessoas. Pobre homem. Disse demasiado à sua
mãe
e três pessoas morreram.
- Todos estes anos e eu nunca, nunca soube... Nunca suspeitei sequer... - Virou
os olhos húmidos de emoção para Carmine, como se o conseguisse ver. - A vida não
é irónica?
- Quer que eu lhe vá buscar alguma coisa mais forte para beber?
- Não, obrigada, eu estou bem. - Dobrou as pernas e enfiou-as debaixo da
cadeira.
- Pode falar-me um pouco sobre a sua vida depois disso? Claire encolheu um ombro
e franziu os lábios.
- O que quer saber? A minha mãe também nunca mais foi a mesma.
- Não houve ninguém de fora que vos tentasse ajudar?
- Refere-se a pessoas como os Smith e os Courtenay? A mamã dizia que eles só
queriam meter o nariz onde não eram chamados. Algumas doses da rudeza da minha
mãe resultavam
melhor do que óleo de rícino. Desistiram de tentar, deixaram-nos em paz. Nós
sobrevivemos, capitão. Sim, sobrevivemos. Tínhamos um pequeno rendimento, que a
mamã
complementou com a venda das terras. A família dela ajudou, penso eu. O Charles
foi para a Escola Dormer Day, eu também, e ela pagava regularmente as
mensalidades.
- E o Morton?
- Um assistente social veio visitar-nos, olhou para ele e nunca mais voltou.
Mais tarde, o Charles disse a toda a gente que ele era autista, mas'isso foi
apenas
por causa dos bisbilhoteiros. O autismo não aparece de repente, no dia em que a
nossa mãe assassina o nosso pai. Aquele era um problema psicológico
profundamente
diferente. Mas nós gostávamos dele, sabe. As suas fúrias nunca se voltavam
contra mim ou contra o Charles, apenas contra a mamã e os desconhecidos que nos
visitassem.
- Ficou surpreendida quando ele morreu de forma tão inesperada?
- Diga antes que fiquei absolutamente chocada. Até ao corrente ano, mil
novecentos e trinta e nove tinha sido o pior ano da minha vida. Eu estava
sentada com os
meus livros, a estudar, e apareceu-me à frente uma parede cinzenta... bam! Cega
para toda a vida. Uma visita ao oftalmologista e meteram-me num comboio para
Cleveland.
Mal tinha chegado à escola para cegos quando o Charles me telefonou a dizer que
o Morton morrera. Simplesmente... caíra morto! - Estremeceu.
- Parece estar a implicar que a sua mãe já não era completamente estável, a
nível mental, antes de mil novecentos e trinta, mas é evidente que o escondia
bem. Então
o que aconteceu em finais de mil novecentos e quarenta e um para desencadear uma
autêntica demência?
O rosto de Claire contorceu-se.
- O que aconteceu logo depois de Pearl Harbor? O Charles anunciou que ia
casar-se. Tinha vinte anos, estava a aproximar-se da maioridade. Entrara para
Medicina,
para a Chubb. Conheceu uma rapariga qualquer da Universidade Smith, num baile, e
foi amor à primeira vista. A única forma que a minha mãe tinha de os separar era
usar todos os seus recursos. Ficou louca, com uma loucura total e furiosa. A
rapariga fugiu. Eu ofereci-me para voltar para casa e
tomar conta da mamã... o que acabou por durar quase vinte e dois anos. Não que
eu não estivesse disposta a fazer muito mais do que isso pelo Charles. Não pense
que
eu era escrava da minha mãe... aprendi a controlá-la. Mas, enquanto ela foi
viva, o Charles e eu não podíamos apreciar completamente o nosso amor por
comida, vinho
e música. Entre os dois, capitão, o senhor e a minha mãe arruinaram-me a vida.
Três preciosos anos em que tive o Charles só para mim, essa é a soma total das
minhas
memórias. Três preciosos anos...
Fascinado, Carmine deu por si a pensar se Danny Marciano não teria razão, afinal
de contas. Seriam irmão e irmã também amantes?
- Não gostava muito da sua mãe, pelo que vejo - disse.
- Odiava-a! Odiava-a! Sabia
- continuou, com súbita ferocidade - , que entre os
treze e os dezoito anos o Charles viveu no armário debaixo das escadas? - A
raiva
evaporou-se; uma faísca de medo iluminou-lhe os olhos e desapareceu enquanto
levava as mãos à boca. - Oh, não queria dizer isto. Não, isto era algo que eu
não tinha
intenções de dizer. Escapou-me. Escapou-me!
- Mais vale deitar tudo cá para fora - disse Carmine em tom descontraído. -
Agora que já começou, mais vale ir até ao fim.
- Anos mais tarde, o Charles contou-me que ela o apanhara a masturbar-se. Ficou
doida. Guinchou e berrou e cuspiu e mordeu-o e bateu-lhe... ele nunca sonharia
em
lutar contra a mamã. Eu lutava com ela o tempo todo, mas o Charles era como um
coelho sob o feitiço de uma cobra. Ela nunca mais falou com ele, o que partiu o
coração
do meu pobre irmão. Quando voltava para casa, depois de vir da escola ou de casa
do Bob Smith, lá ia ele para o armário. Era um armário grande, com uma lâmpada.
Oh, a mamã era muito atenciosa! Ele tinha um colchão no chão e uma cadeira
dura... e uma prateleira que usava como mesa. Mandava-lhe um tabuleiro com as
refeições
e vinha buscá-lo depois de ele acabar. Ele fazia as suas necessidades num balde,
que tinha de esvaziar e lavar todas as manhãs. Até eu partir para Cleveland,
cabia-me
a mim levar-lhe as refeições, mas não tinha autorização para falar com ele.
Carmine estava a ouvi-la de boca aberta.
- Mas isso é ridículo! - exclamou. - Ele frequentava uma escola muito boa...
tinha conselheiros, um director, tudo o que tinha de fazer era contar a alguém!
As pessoas
teriam agido imediatamente.
- Não estava na natureza do Charles - disse Claire, erguendo o queixo. - Ele
adorava a mamã e culpava o nosso pai por tudo. Bastava-lhe tê-la desafiado, mas
seria
incapaz de o fazer. O armário era o seu castigo por ter cometido um pecado
terrível, e ele decidiu suportar o seu castigo. No dia em que fez dezoito anos
ela deixou-o
sair. Mas nunca mais falou com ele. - Encolheu os ombros. - O Charles era assim.
Talvez isso o ajude a compreender por que razão continuo a recusar-me a acreditar que ele tenha feito essas coisas terríveis. O
Charles seria incapaz de violar ou torturar, era demasiado passivo.
Carmine endireitou-se, flectiu os dedos, um pouco entorpecidos devido à força
com que estivera a apertar o corrimão.
- Deus sabe que não tenho qualquer desejo de aumentar o seu sofrimento, Miss
Ponsonby, mas posso garantir-lhe que o Charles era o Monstro do Connecticut. Se
assim
não fosse, o major F. Sharp Minor não estaria a patrocinar o seu novo começo de
vida no Arizona. - Dirigiu-se aos degraus. - Tenho de ir. Não, não se levante.
Agradeço-lhe
muito por tudo isto, era um enigma por resolver que me andava a atormentar há
meses. Os nomes delas eram Louisa e Emma Catone? Óptimo. Sei onde estão
sepultadas.
Agora posso dar-lhes uma lápide. Sabe se Mrs. Catone tinha alguma crença
religiosa?
- Falou como um verdadeiro polícia, capitão. Sim, ela era católica. Suponho que
devia contribuir para a lápide, já que a Emma era minha meia-irmã, mas estou
certa
de que compreenderá se não o fizer. Arrividerci.
⁂
Claire Ponsonby ficou sentada no alpendre durante muito tempo depois de o
capitão Carmine Delmonico partir.
Os seus olhos vaguearam pelas árvores que rodeavam a casa, recordando como
Morton passara as horas e horas intermináveis dos seus dias desocupados.
Escavara um túnel
porque sabia que, um dia, um túnel seria útil. Enquanto trabalhava ia pensando,
e o seu corpo desenvolveu a resistência e a magreza de alguém que trabalhava
mais
duramente do que comia bem. Oh, Charles adorava-o! Amava-o ainda mais do que
amava a mãe. Ensinara-o a ler e a escrever, dera-lhe uma genuína erudição.
Charles,
um irmão que compreendia a plenitude inelutável dos laços fraternais.
Partilhando os livros, tentando corajosamente partilhar o trabalho. Mas Charles
tinha tanto
medo do túnel que não conseguia passar muito tempo nele. Morton, por outro lado,
nunca se sentia mais vivo do que enquanto trabalhava no túnel, escavando,
arrancando,
furando, arrastando para o exterior a terra e as pedras, que Charles espalhava
depois entre as árvores.
E assim começara a partilha. Charles pensava na Sala Catone como o paraíso de um
cirurgião, muitos metros acima da terra. Morton, por outro lado, sabia que a
Sala
Catone era o florescer orgásmico do túnel, sob o peso silencioso da terra.
Morton, Morton, ligar,
desligar. Minhoca cega, toupeira cega na escuridão, escavando com um botão
mágico na mão com o qual podia ligar e desligar os seus olhos. Ligar, desligar,
acender,
apagar, ligar, desligar. Escavar e escavar, ligar, desligar.
"Ora vejamos... Aquele carvalho foi onde ele enterrou o italiano de Chicago
depois de ele assentar o chão de mosaicos. E as raízes daquele ácer produzem
xarope a
partir dos restos mortais do canalizador; contratámo-lo em São Francisco. O
carpinteiro de Duluth está a apodrecer perto daquele que deve ser o último
ulmeiro saudável
do Connecticut. Não me lembro onde enterrámos os outros, mas não são
importantes. Que servo maravilhoso é a ganância! Um trabalho secreto, pago com
dinheiro vivo,
e toda a gente fica feliz. Ninguém mais feliz do que Charles, quando distribuía
o dinheiro. Ninguém mais feliz do que eu, enquanto brandia a marreta para
recuperar
o dinheiro. Ninguém mais feliz do que nós os dois, enquanto remexíamos e
esquadrinhávamos nos orifícios, canais, tubos, cavidades. Não que precisássemos
de recuperar
o dinheiro. O que gastámos na Sala Catone ao longo de anos sem fim, enquanto
esperávamos que a mamã morresse, foi uma insignificância, em comparação com a
quantidade
de dinheiro que a mamã trouxe da estação de comboios em duas pequenas arcas
elegantes, naquele mês de Janeiro de 1930. Alguma vez o papá seria
suficientemente idiota
para perder todo o seu dinheiro na bolsa? Nem por sombras. Tinha convertido os
seus investimentos em dinheiro muito antes disso. Instalara um pequeno cofre
(cuja
porta dera muito jeito mais tarde) na adega, e nele guardara o dinheiro até o
detective que contratara ter encontrado Mrs. Catone. Obrigado, caro capitão
Delmonico,
por ter preenchido as lacunas! Agora sei por que razão ele esvaziou o cofre, pôs
o seu conteúdo naquelas duas arcas e as colocou no carro antes de partir para a
estação.
Depois de o matar, a mamã transferira as arcas para o seu carro; nós abrimo-las,
espreitámos lá para dentro e roubámo-las enquanto as roupas dela e o bastão de
basebol
ardiam alegremente. Enquanto eu as escondia no meu pequeno túnel, Charles
começou a fazer um túnel mais do seu agrado, perfurando a mente da mamã. Uma e
outra vez
lhe murmurou aos ouvidos que a história de Catone não passava de um fragmento da
sua imaginação, que ela não matara o papá, que imaginara Catone para se
justificar
e que Emma era apenas um livro de Jane Austen. Quando ela precisava de dinheiro,
nós dávamos-lhe algum, mas nunca lhe dissemos onde estavam as arcas. Depois,
após
esse traidor do Roosevelt ter abolido o padrão ouro em 1933, levámos a mamã e as
arcas até ao Banco Sunnington, em Cleveland, onde, uma vez que o banco era
propriedade
da família dela, não tivemos dificuldades em trocar as notas velhas por novas.
Naqueles dias da Depressão, muitas pessoas preferiam guardar as suas economias
em
dinheiro vivo. E, nessa altura, ela não passava de uma marioneta impotente nas
mãos de dois rapazes recatados, mal acabados de entrar na adolescência.
Trazer o dinheiro de novo para casa não fora fácil, ligar, desligar. Alguém no
banco dera com a língua nos dentes. Mas Charles organizou a nossa estratégia,
com
a sua inteligência extraordinária. Quando se tratava de logística e concepção,
Charles era um génio. Como é que hei-de substituí-lo? Quem poderá compreender,
excepto
um irmão?
Novamente em casa, o túnel de Charles na mente da mamã concentrara-se no
dinheiro, dizendo-lhe que Roosevelt o roubara para financiar a sua trama contra
tudo o que
a América representava, a liberdade, em vez de deixar a Europa ter aquilo que
merecia. Sim, ambos os nossos túneis cresceram, e quem pode dizer qual deles era
mais
belo? Um túnel para a loucura, um túnel para a Sala Catone, ligar, desligar.
Espero que o capitão Delmonico tenha ficado satisfeito com a minha história de
amor e paranóia descontrolada com um final triste. É uma pena que aquela mulher
dele
se tenha revelado tão desembaraçada. Estava tão ansiosa por uma sessão especial
com ela, esfolando-a nas suas alturas olímpicas, enquanto ela o via acontecer
num
espelho. Não podes ter sempre os olhos fechados, Desdemona, abrir, fechar. E no
entanto, quem sabe? Talvez um dia, outro dia, possa acontecer. Nunca me teria
virado
para ela se não fosse o meu fascínio por Carmine, o Curioso. Mas uma vez que,
apesar de toda a sua curiosidade, ele não é adivinho, ligar, desligar, nunca fez
as
perguntas que poderiam ter feito girar a chave no seu cérebro obstinado.
Perguntas como, por que razão elas tinham todas dezasseis anos? A resposta é
simples aritmética, ligar, desligar. Mrs. Catone tinha vinte e seis anos e a
Emma tinha
seis, o que perfaz trinta e dois, mas nós só queríamos uma Catone, portando
divide-se por dois e o resultado é... dezasseis! Perguntas como, o que poderia
atrair
uma jovem de bom coração ao seu delicioso destino? A resposta a essa pergunta
está na qualidade da misericórdia. Uma mulher cega a chorar sobre a pata partida
do
seu cão-guia. Biddy é maravilhosa a fingir uma pata partida. Perguntas como,
qual o significado de uma dúzia? Ciclos solares, ciclos lunares, ciclos
motores... a
resposta é estúpida. Mrs. Catone costumava dizer "À dúzia é mais barato!", como
se isso fosse uma luz pelo menos tão cegante como a de Deus. Perguntas como, por
que esperámos tanto tempo para começar? Uma resposta presa nas teias de Édipo,
de Orestes. Matar Catones pode ser mais barato à dúzia, mas ninguém consegue
matar
a própria mãe. Perguntas como, como podia Claire fazer parte disto? E contudo
não havia mais ninguém senão Claire... A resposta está nas aparências. As
aparências
são tudo; está tudo nos olhos do espectador, abrir, fechar.
A mamã nunca teve uma menina. Apenas três rapazes. Ligar, desligar, acender,
apagar. Mas ela desejava uma menina e, o que a mamã queria, a mamã tinha. Assim, vestiu o mais novo de nós como uma menina desde o dia do
nascimento. As pessoas acreditam no que os seus olhos lhes dizem, abrir, fechar.
Até
você, capitão Delmonico, incluindo você. Nós, os rapazes Ponsonby, somos todos
parecidos com a mamã: passamos bem por mulheres, mas somos homens desenxabidos.
Não
temos nada da masculinidade dinâmica do nosso pai. Oh, como ele costumava dá-la
a Mrs. Catone! O Charles e eu víamo-los por um buraco da parede, ligar,
desligar,
acender, apagar. Querido Charles, sempre a pensar em formas de satisfazer as
minhas necessidades. Teria sido tudo tão mais difícil depois de a Claire ficar
cega,
se ele não tivesse tido a inspiração de me vestir com as roupas de Claire e de
me mandar para Cleveland, ligar, desligar. Assim que lá cheguei, ele pôs uma
almofada
sobre o rosto de Claire e Morton, a Toupeira, transformou-se em Claire, a Cega.
Ligar, desligar, acender, apagar, abrir, fechar."
Escuridão, por fim. O meu verdadeiro meio ambiente, ligar, desligar. Está na
altura de Morton, a Toupeira, encontrar novos terrenos para os seus túneis.
FIM
ϟ
excerto de
UM PASSO À FRENTE
COLLEN McCULLOUGH
Título original: On, Off
(c) 2006, por Colleen McCullough
Tradução de Elsa T. S. Vieira
Editorial DIFEL,
2.ª Edição
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