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Um conto de Tommy e Tuppence

O Cego - quadro de Werner Heuser, 1954
– Certo... – disse Tommy e colocou o telefone de volta no gancho.
Então, ele se virou para Tuppence.
– Era o chefe. Parece estar muito preocupado conosco. Há indícios de
que os grupos que queremos pegar ficaram sabendo que eu não sou o
verdadeiro sr. Theodore Blunt. Devemos esperar emoções a qualquer
momento. O chefe pede-lhe o favor de ir para casa, ficar por lá e não se
meter mais nisso. Tenho a impressão de que o ninho de marimbondos em
que mexemos é maior do que qualquer um poderia ter imaginado.
– Esse negócio de eu ir para casa é tolice – afirmou Tuppence, decidida.
– Quem vai cuidar de você se eu for para casa? Além disso, gosto de
emoções fortes. O movimento tem sido tão fraco ultimamente.
– Bem, não se pode ter assassinatos e roubos todos os dias – concluiu
Tommy. – Seja razoável. Olhe, minha ideia é a seguinte: como os negócios
estão parados, deveríamos fazer um mínimo de exercícios diariamente.
– Deitar de costas e balançar as pernas no ar? Esse tipo de coisa?
– Não me tome de maneira tão literal. Quando digo exercícios, quero
dizer exercícios na arte da investigação. Reproduzir os grandes mestres. Por
exemplo...
De dentro da gaveta ao lado, Tommy apanhou uma enorme venda verde-escura
e cobriu os próprios olhos. Ele ajustou-a com muito cuidado. Depois,
tirou um relógio do bolso.
– Quebrei o vidro hoje de manhã – observou ele. – Isso preparou o
caminho para que ele se tornasse o relógio sem vidro que meus dedos
sensíveis tocam bem de leve.
– Tenha cuidado – alertou Tuppence. – Você quase arrancou o ponteiro
dos segundos.
– Dê-me sua mão – pediu Tommy. Ele a segurou, um dos dedos
tomando-lhe o pulso. – Ah! O teclado do silêncio. Esta mulher não sofre do
coração.
– Suponho – sugeriu Tuppence – que você seja Thornley Colton? 1
– Isso mesmo – disse Tommy. – O problemista cego. E você é aquele
outro, o secretário de cabelos negros e maçãs do rosto rosadas...
– A trouxa de roupas de bebê recolhida às margens do rio – completou
Tuppence.
– E Albert é Fee, codinome Camarão.
– Temos que ensiná-lo a dizer “Puxa!” – lembrou Tuppence. – E a voz
dele não é estridente. É rouca até demais.
– Contra a parede, junto à porta – informou Tommy –, você encontrará a
bengala oca e fina que, quando seguro em minha mão sensível, me revela
tantas coisas.
Ele ficou em pé e deu uma violenta topada contra uma cadeira.
– Droga! – exclamou Tommy. – Esqueci que essa cadeira estava aqui.
– Deve ser horrível ser cego – concluiu Tuppence, sinceramente
comovida.
– Deveras – concordou plenamente Tommy. – Sinto mais pena de todos
aqueles pobres coitados que perderam a visão na guerra do que de quaisquer
outros. Mas dizem que, quando se vive às escuras, realmente se
desenvolvem habilidades especiais. É isso o que quero tentar descobrir se é
possível ou não. Seria muitíssimo útil treinar para ter alguma utilidade
quando se está no escuro. Agora, Tuppence, seja um bom Sydney Thames.
Quantos passos daqui até a bengala?
Tuppence fez uma estimativa sem pensar muito:
– Três para frente e cinco para a esquerda – arriscou.
Tommy mediu os passos de modo hesitante, e Tuppence o interrompeu
com um grito de alerta quando percebeu que o quarto passo à esquerda o
levaria direto contra a parede.
– É uma arte complicada – disse Tuppence. – Você não tem ideia de
como é difícil estimar quantos passos são necessários.
– É realmente muito interessante. Chame Albert. Vou apertar a mão de
vocês dois e ver se eu sei dizer quem é quem.
– Certo – concordou Tuppence –, mas antes Albert precisa lavar as mãos.
Com certeza estão pegajosas daquelas pastilhas ácidas horríveis que ele
vive chupando.
Albert, depois de apresentado ao jogo, ficou todo interessado.
Tommy, tendo apertado ambas as mãos, sorriu, complacente.
– O teclado do silêncio não pode mentir – murmurou. – O primeiro foi
Albert, e a segunda, você, Tuppence.
– Errado! – Tuppence deu um grito estridente. – Belo teclado do
silêncio! Você foi atrás do meu anel. Mas eu o coloquei no dedo de Albert.
Fizeram várias outras experiências, com pouco sucesso.
– Mas está melhorando – Tommy declarou. – Não se pode esperar que se
seja infalível desde o começo. Quer saber de uma coisa? Está bem na hora
do almoço. Você e eu vamos ao Blitz, Tuppence. O cego e sua guia. Há
umas dicas imperdíveis que posso aprender por lá.
– Minha opinião, Tommy, é que vamos nos meter em encrenca.
– Não, que nada. Eu me comportarei como um perfeito cavalheiro. Mas
aposto que até o final do almoço eu deixarei você boquiaberta.
Com todos os protestos devidamente reprimidos desse jeito, quinze
minutos mais tarde Tommy e Tuppence se refestelavam confortavelmente
numa mesa de canto do Salão de Ouro do Blitz.
Tommy correu os dedos levemente por sobre o menu.
– Pilaff de homard 2 e frango grelhado para mim – murmurou ele.
Tuppence também escolheu e o garçom se afastou.
– Até aqui, tudo bem – resumiu Tommy. – Agora, vamos tentar uma
jogada mais ambiciosa. Que pernas lindas as dessa moça de saia curta, essa
que acabou de entrar.
– Como é que você conseguiu acertar essa, Thorn?
– Pernas bonitas emitem uma vibração específica que vai até o chão e
minha bengala oca consegue captá-la. Ou, para ser honesto, em um
restaurante grande quase sempre há uma moça de pernas bonitas de pé junto
à porta, procurando por amigos e, com a popularidade das saias curtas, ela
não ia deixar de tirar o máximo proveito delas.
A refeição continuou.
– Aquele homem que está duas mesas depois da nossa é um especulador
muito rico, imagino – afirmou Tommy em tom despreocupado. – Ele é
judeu, não é?
– Muito bom – elogiou Tuppence. – Mas não consegui entender como.
– Não vou lhe contar como se faz a cada vez. Estraga o meu número. O
maître está servindo champanha a três mesas da nossa, à direita. Uma
senhora gorda de preto está prestes a passar por nossa mesa.
– Tommy, como você consegue...
– A-ha! Você está começando a ver o que sou capaz de fazer. Uma moça
bonita vestida de marrom está se levantando da mesa bem atrás de você.
– Não, não! É um rapaz de cinza.
– Oh! – exclamou Tommy, momentaneamente desconcertado.
E, naquele instante, dois homens de uma mesa próxima, que estiveram
observando o casal com vivo interesse, levantaram-se e aproximaram-se da
mesa de canto.
– Com licença – disse o mais velho deles, um homem alto, bem-vestido,
de monóculo e com um pequeno bigode grisalho. – Acabaram de me
apontar o senhor como sendo o sr. Theodore Blunt. Posso lhe perguntar se
isso é mesmo verdade?
Tommy hesitou um pouco, sentindo-se em posição um tanto quanto
desvantajosa. Após um instante, ele inclinou a cabeça.
– É isso mesmo. Eu sou o sr. Blunt.
– Que sorte mais inesperada! Sr. Blunt, eu ia procurá-lo em seu escritório
logo após o almoço. Estou com problemas, problemas muito sérios. Mas,
perdoe-me por perguntar: aconteceu algum acidente com seus olhos?
– Meu caro senhor – esclareceu Tommy em tom melancólico –, eu sou
cego, totalmente cego.
– O quê?
– Está surpreso. Mas com certeza o senhor já ouviu falar em detetives
cegos?
– Na ficção. Na vida real, nunca. E com certeza jamais ouvi falar que o
senhor era cego.
– Muitas pessoas não estão cientes do fato – murmurou Tommy. – Estou
usando uma viseira hoje para proteger meus globos oculares da luz forte.
Porém, sem ela, um número considerável de pessoas jamais suspeitou de
minha enfermidade, se decidir chamá-la assim. Veja só, meus olhos não
podem me iludir. Mas chega desta conversa. Gostaria de ir imediatamente
até meu escritório ou prefere me contar os fatos de seu caso aqui mesmo?
Acho que a última ideia seria melhor.
Um garçom trouxe mais duas cadeiras e os dois homens se sentaram. O
segundo, que ainda não falara, era mais baixo, moreno, e tinha compleição
robusta.
– É um assunto muito delicado – explicou o mais velho baixando a voz e
assumindo um tom confidencial. Ele encarou Tuppence sem muita certeza.
O sr. Blunt pareceu sentir o olhar dele.
– Deixe-me apresentar minha secretária particular – anunciou ele. – A
srta. Ganges. Encontrada às margens do rio da Índia. Uma mera trouxa de
roupas de bebê. Uma história muito triste. A srta. Ganges é minha vista. Ela
me acompanha em todos os lugares.
O estranho retribuiu à apresentação com um mero inclinar de cabeça.
– Então posso falar abertamente. Sr. Blunt, minha filha, uma menina de
dezesseis anos, foi sequestrada sob circunstâncias um tanto quanto
peculiares. Descobri o ocorrido há meia hora. As circunstâncias do caso
eram tais que não ousei chamar a polícia. Em vez disso, liguei para seu
escritório. Me informaram que o senhor saíra para almoçar, mas que estaria
de voltaria às duas e meia. Vim até aqui com meu amigo, o capitão Harker...
O baixinho sacudiu a cabeça de forma abrupta e resmungou alguma
coisa.
– Minha grande sorte é que, por acaso, o senhor também estava
almoçando aqui. Não devemos perder tempo. O senhor precisa retornar
comigo até a minha casa imediatamente.
Tommy objetou, cheio de cautela.
– Posso encontrá-lo dentro de meia hora. Antes disso, preciso passar no
meu escritório.
O capitão Harker, virando-se para dar uma olhada em Tuppence, talvez
tenha se surpreendido ao ver se formar, por um breve momento, um meio
sorriso nos cantos da boca da jovem.
– Não, não, isso não serve. O senhor tem que voltar comigo.
O homem grisalho tirou um cartão do bolso e o entregou por sobre a
mesa.
– Este é o meu nome.
Tommy passou os dedos por sobre o cartão.
– Meus dedos não são sensíveis o suficiente para isso – comentou ele
com um sorriso antes de passar o cartão para Tuppence, que o leu em voz
baixa:
– “Duque de Blairgowrie”.
Ela olhou com grande interesse para seu cliente. O duque de Blairgowrie
era bastante conhecido por ser um nobre muitíssimo arrogante e inacessível
que tomara como esposa a filha de um açougueiro de porcos de Chicago
muitos anos mais nova do que ele e dotada de um temperamento forte, o
que prenunciava um futuro funesto para o casal. Nos últimos tempos, havia
rumores de divergências.
– O senhor virá agora, sr. Blunt? – perguntou o duque com um toque de
acidez na voz.
Tommy rendeu-se ao inevitável.
– A srta. Ganges e eu iremos com o senhor – ele respondeu, tranquilo. –
O senhor me permite, apenas, eu aguardar e beber uma xícara grande de
café preto? Eles já vão servir. Tenho terríveis dores de cabeça como
resultado de meu problema nos olhos e o café me acalma os nervos.
Ele chamou o garçom e fez o pedido. Então, falou com Tuppence:
– Srta. Ganges, vou almoçar aqui amanhã com o chefe de polícia de
Paris. Simplesmente anote o almoço e entregue ao maître com a
recomendação de reservar minha mesa de sempre. Estou ajudando a polícia
francesa num caso importante. Os honorários – ele fez uma pausa – são
consideráveis. Está pronta, srta. Ganges?
– Estou, sim – confirmou Tuppence, de caneta-tinteiro na mão.
– Começaremos com aquela salada de camarão especial que servem
aqui. Então, na sequência, deixe-me ver, na sequência, uma omelete Blitz e
talvez... Um par de tournedos à l’Étranger. 3
Tommy parou por um momento e murmurou em tom de desculpa:
– Espero que me perdoem. Ah! Sim, soufflé en surprise. Para concluir a
refeição. Um homem interessantíssimo, o chefe de polícia. Talvez o senhor
o conheça, não?
O outro respondeu negativamente enquanto Tuppence se levantava e ia
falar com o maître. Logo em seguida, ela retornou bem no momento em que
era servido o café.
Tommy tomou uma xícara grande, sorvendo os goles lentamente e
depois levantou.
– Minha bengala, srta. Ganges? Obrigado. Direções, por favor!
Foi um momento de agonia para Tuppence.
– Um para a direita, dezoito em frente. Por volta do quinto passo, há um
garçom servindo uma mesa à sua esquerda.
Balançando sua bengala lepidamente, Tommy começou a sair. Tuppence
manteve-se bem ao lado dele e empenhou-se em guiá-lo da maneira mais
comedida possível. Tudo foi muito bem até o momento em que estavam
cruzando a porta de entrada. Um homem entrou meio apressado e, antes que
Tuppence pudesse alertar o cego sr. Blunt, este já tinha dado um encontrão
no recém-chegado. Seguiram-se várias explicações e pedidos de desculpa.
À porta do Blitz, um elegante carro de capota traseira conversível os
aguardava. O próprio duque ajudou o sr. Blunt a subir.
– Seu carro está aqui, Harker? – o duque perguntou por sobre o ombro.
– Sim. É só virar a esquina.
– Leve a srta. Ganges com você, está bem?
Antes que se pronunciasse qualquer outra palavra, o duque já havia
pulado para dentro do carro e sentado ao lado de Tommy e o carro tinha
saído rodando macio.
– Um assunto muito delicado – murmurou o duque. – Em seguida posso
lhe dar todos os detalhes.
Tommy levou a mão até a cabeça.
– Agora já posso tirar minha viseira – observou, satisfeito. – Era apenas
o brilho forte das luzes artificiais do restaurante que me obrigava a usá-la.
Mas seu braço foi puxado para baixo com toda a força. Ao mesmo
tempo, Tommy sentiu algo duro e redondo cutucar-lhe as costelas.
– Não, meu caro sr. Blunt – disse a voz do duque, mas era uma voz que
parecia ter mudado de repente. – O senhor não vai tirar essa viseira. Vai
ficar sentado bem quietinho e sem se mexer. Compreende? Eu não quero
que esta minha pistola dispare. Acontece que eu não sou o duque de
Blairgowrie. Tomei o nome dele emprestado para esta ocasião, pois sabia
que o senhor não se recusaria a acompanhar um cliente tão renomado. Sou
algo bem mais prosaico: um comerciante de presuntos que perdeu a esposa.
Ele sentiu que o outro estremeceu.
– Isso faz algum sentido para você – ele riu. – Meu caro jovem, você foi
incrivelmente idiota. Lamento... Lamento muitíssimo... Suas atividades
serão bastante limitadas daqui para frente.
O homem proferiu essas últimas palavras com um prazer sinistro.
Tommy permaneceu sentado e sem se mexer. Nem respondeu aos
insultos do outro.
Em seguida, o carro diminuiu a velocidade e parou.
– Só um minuto – pediu o duque de araque. Com habilidade, ele torceu
um lenço, enfiou-o na boca de Tommy e o cobriu com seu próprio lenço de
pescoço. – Na hipótese de você ser o suficientemente tolo e pensar em gritar
por socorro – ele explicou num tom delicado.
A porta do carro se abriu e o motorista ficou a postos. Juntos, ele e seu
chefe levaram Tommy e o forçaram a subir rapidamente alguns degraus e a
entrar em uma casa.
A porta se fechou atrás deles. Havia no ar um forte aroma oriental. Os
pés de Tommy se afundaram nos pelos aveludados de um tapete. Como
fizeram anteriormente, eles o forçaram a subir um lance de escadas e a
entrar numa peça que lhe pareceu ser nos fundos da casa. Lá dentro, os dois
homens lhe amarraram as mãos. O motorista saiu de novo e o outro lhe
tirou a mordaça.
– Pode falar livremente, agora – anunciou o outro com satisfação. – O
que você tem a dizer em seu próprio favor, meu jovem?
Tommy limpou a garganta e massageou os cantos doloridos da boca.
– Espero que não tenham perdido minha bengala oca – afirmou em tom
conciliatório. – Foi bem caro mandar fazê-la.
– Você tem coragem – comentou o outro após uma pausa curta. – Ou
então é muito cabeça oca. Você ainda não percebe que você é meu... Que
tenho você bem na palma de minha mão? Que você está completamente sob
meu controle? Que ninguém que o conhece provavelmente jamais tornará a
vê-lo?
– Não pode cortar o melodrama? – pediu Tommy, queixoso. – Será que
eu tenho que dizer: “Seu patife, ainda hei de derrotá-lo”? Esse tipo de coisa
está muito fora de moda.
– E a garota? – quis saber o outro, de olho nele. – Nem mesmo isso o
toca?
– Enquanto colocava minhas ideias no lugar durante meu silêncio
forçado de agora há pouco – disse Tommy –, cheguei à inevitável conclusão
de que aquele rapaz falador, Harker, é outro dos autores de ações alucinadas
e que, portanto, minha infeliz secretária em breve se juntará a nós para esse
chazinho festivo.
– Certo em um ponto, errado no outro. A sra. Beresford... Sabe, sei tudo
a seu respeito... A sra. Beresford não será trazida para cá. Foi uma pequena
precaução que tomei. Me ocorreu que, muito provavelmente, seus amigos
influentes poderiam estar vigiando-os de perto. Sendo assim, ao dividirmos
a missão, vocês não poderiam ser ambos seguidos. Estou esperando agora...
Ele parou de falar enquanto a porta se abria. O motorista anunciou:
– Não fomos seguidos, senhor. Está tudo limpo.
– Muito bom. Pode ir agora, Gregory.
A porta tornou a fechar.
– Até agora, tudo bem – comentou o “duque”. – E agora, o que devemos
fazer com você, sr. Beresford Blunt?
– Eu gostaria que me tirasse esta maldita viseira – pediu Tommy.
– Acho que não. Com ela, você fica realmente cego; sem ela, você veria
tão bem quanto eu... E isso não conviria a meu pequeno plano. Porque eu
tenho um plano. Você adora ficção exagerada, sr. Blunt. Esse joguinho que
você e sua mulher estavam jogando hoje é prova disso. Agora, eu também
preparei um joguinho... Algo bastante engenhoso, como, tenho certeza,
você há de concordar comigo quando eu o explicar.
“Veja só: este piso onde você se encontra é feito de metal e há pequenas
saliências espalhadas aqui e ali por toda sua superfície. Se eu toco um
interruptor... Assim. – Ouviu-se um clique agudo. – Agora a corrente
elétrica fica ligada. Pisar numa dessas pequenas protuberâncias agora quer
dizer... Morte! Compreende? Se você pudesse ver... Mas não pode. Você
está às escuras. Esse é o jogo: cabra-cega com a morte. Se conseguir chegar
até a porta em segurança... Liberdade! Mas acho que, muito antes de
alcançá-la, você já terá pisado num desses pontos perigosos. E isso será
muito divertido... Para mim!”
Ele chegou perto de Tommy e desamarrou-lhe as mãos. Então, entregoulhe
sua bengala com um irônico gesto de reverência.
– O problemista cego. Vamos ver se resolverá este problema. Ficarei
parado aqui com minha pistola preparada. Se você levar as mãos à cabeça
para remover essa venda, eu atiro. Está claro?
– Perfeitamente claro – respondeu Tommy. Ele estava meio pálido, mas
determinado. – Não tenho a menor chance, não é mesmo?
– Ah! Isso... – o outro deu de ombros.
– Você é mesmo um danado muito do engenhoso, não é? – disse Tommy.
– Mas se esqueceu de uma coisa. Posso acender um cigarro, por falar nisso?
Estou com palpitações no meu pobre coraçãozinho.
– Você pode acender um cigarro... Mas... nada de truques. Estou de olho
em você, não se esqueça, com a pistola preparada.
– Não sou um cão amestrado – retrucou Tommy. – Não faço truques. –
Ele apanhou um cigarro da cigarreira e depois apalpou os bolsos atrás de
uma caixa de fósforos. – Tudo bem. Não estou procurando um revólver.
Mas você sabe muito bem que eu não estou armado. Mesmo assim, como já
disse antes, você se esqueceu de uma coisa.
– Do quê?
Tommy apanhou um palito de fósforo da caixa e o segurou, pronto para
riscá-lo.
– Eu sou cego e você pode ver. Admita-se isso. A vantagem é toda sua.
Mas suponhamos que ambos estivéssemos no escuro... Hein? Onde ficaria
sua vantagem?
Ele riscou o fósforo.
O “duque” riu, desdenhoso.
– Está pensando em atirar o fósforo no interruptor de luz? Mergulhar a
sala na escuridão? Não dá para fazer isso.
– Isso mesmo – anuiu Tommy. – Não posso lhe dar a escuridão. Mas os
extremos se tocam, você sabe. Que tal a luz?
Enquanto falava, Tommy encostou o fósforo em alguma coisa que tinha
na mão e a jogou em cima da mesa.
Um brilho ofuscante tomou conta da sala.
Só por um minuto, cego pela luz branca intensa, o “duque” piscou e caiu
para trás com a mão que segurava a pistola abaixada.
Quando abriu os olhos de novo, sentiu alguma coisa pontuda que lhe
espetava o peito.
– Largue essa pistola – ordenou Tommy. – Largue-a de uma vez.
Concordo com você que uma bengala oca é um negócio bem ordinário. Por
isso não arranjei uma dessas. Porém, uma boa bengala de estoque é uma
arma muito útil. Você não acha? Quase tão útil quanto um fio de magnésio.
Largue essa pistola.
Forçado a obedecer por aquela ponta afiada, o homem largou a arma.
Então, com uma risada, ele deu um salto para trás.
– Mas eu ainda levo uma vantagem – zombou ele. – Eu posso ver, e
você, não.
– Aí é que você se engana – discordou Tommy. – Eu posso ver
perfeitamente. Esta viseira é falsa. Eu ia pregar uma peça em Tuppence.
Cometeria alguns erros crassos logo no início e então faria coisas
sensacionais mais para o final do almoço. Porque, meu caro, eu poderia ter
ido até essa porta e desviado de todas as protuberâncias tranquilamente.
Mas não confiei que você jogaria limpo. Nunca me deixaria sair dessa vivo.
Calminha, aí...
Com o rosto transfigurado pela raiva, o “duque” deu um salto para
frente, esquecendo-se, em sua fúria, de ver onde pisava.
Houve um faiscar repentino de uma chama azul, o “duque” balançou por
um minuto e depois caiu como uma pedra. Um leve odor de carne
chamuscada encheu a sala, misturando-se a um cheiro mais forte, de ozônio.
– Fiu! – assobiou Tommy.
Ele enxugou o rosto.
Então, andando com muita cautela e tomando todas as precauções,
Tommy alcançou a parede e tocou no interruptor que vira o outro acionar.
Ele atravessou a sala até chegar à porta, abriu-a com cuidado e espiou.
Não havia ninguém por ali. Tommy desceu as escadas e saiu pela porta da
frente.
A salvo na rua, olhou bem para a casa com um arrepio e tomou nota do
número. Em seguida, correu para a cabine telefônica mais próxima.
Houve um momento de tortura ansiosa e ele então ouviu uma voz
familiar.
– Tuppence, graças a Deus!
– Sim, estou bem. Entendi todos os pormenores. Os honorários 4,
Camarão, venha ao Blitz e siga os dois estranhos. Albert chegou lá a tempo
e, quando nos colocaram em carros separados, ele me seguiu num táxi, viu
para onde me levaram e chamou a polícia.
– Albert é um bom rapaz – disse Tommy. – E cavalheiro. Tinha quase
que certeza de que ele decidiria seguir você. Mas fiquei preocupado, mesmo
assim. Tenho um montão de coisas para lhe contar. Estou voltando direto
para casa. E a primeira coisa que vou fazer quando chegar aí é preencher
um cheque bem gordo para St. Dunstan’s. 5 Meu Deus, deve ser horrível não
conseguir enxergar...
FIM
notas:
-
Thornley Colton é um detetive cego de nascença criado pelo autor
americano Clinton H. Stagg (1890-1916). Sempre acompanhado de seu
secretário Sydney Thames, Colton é um homem de sociedade famoso por seu
talento musical, ouvidos extremamente aguçados e pontas dos dedos
ultrassensíveis. Thames recebeu esse nome porque foi encontrado, ainda bebê,
às margens do rio Tâmisa (Thames, em inglês). (N.T.)
-
Pilau de lagosta. Pilau é um prato do Oriente Médio ou da Índia
de arroz ou trigo, legumes e temperos refogados em gordura ou óleo a que se
acrescentam, tipicamente, carne ou peixe. (N.T.)
-
Um tournedos é um corte pequeno, redondo e alto de filé de carne
bovina. (N.T.)
-
Em inglês, fee, que é também o nome do ajudante de Thornley Colton, de
codinome “Camarão”. (N.T.)
-
St. Dunstan’s - entidade beneficente inglesa de apoio a ex-combatentes e outros
militares reformados deficientes visuais e suas famílias. (N.T.)
ϟ
RESUMO | Durante uma refeição num restaurante chique, Tommy disfarça-se de cego. É então que
Tommy e Tuppence Beresford são abordados pelo elegante duque de Blairgowrie,
que procura ajuda para localizar
a sua filha desaparecida. Um conto clássico de Agatha Christie, a Rainha do Crime.
Publicado pela primeira vez como “Blind Man’s Buff” na revista 'The Sketch', em 26 de
novembro de 1924, fez depois parte da coletânea de contos 'Partners in Crime'
| 'Sócios no crime', de 1929, em cujas histórias Agatha Christie parodiou
conhecidos detetives da literatura, como Thornley Colton.

CABRA-CEGA: Um conto de Tommy e Tuppence
conto | texto integral
Autora:
Agatha Christie [1890-1976]
Título original: Blindman’s Buff (1924)
Tradução: José Carlos Volcato
Porto Alegre, RS
L&PM Pocket (2020)
23.Fev.2021
Maria José Alegre
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