Visita à Escola das
Raparigas cegas - gravura do séc. XIX
Violência sexual contra a criança é crime e sua
punição é prevista no Código Penal Brasileiro. Contudo, a maioria dos casos
ocorre em ambientes familiares à vítima e, por isso mesmo, deixam de ser percebidos ou, quando o são, não são
denunciados e julgados. Dessa forma, a vítima pode ficar anos à mercê do adulto-agressor e, como veremos
neste artigo, desenvolver inúmeros problemas que prejudicarão sua vida social, escolar, de
relacionamentos os quais, em muitos casos, constituirão a raiz da deficiência, segundo a literatura. Entre as
vítimas de abuso sexual estão as pessoas com deficiência.
O abuso sexual é um tema extremamente
delicado porque envolve abordar assuntos íntimos sobre a vida sexual das pessoas, situação que
gera vergonha, indignação e muita dor aos familiares quando eles assumem expor os agressore(a)s que,
na maioria dos casos, são membros de suas famílias. O abuso sexual é um crime que acontece em
qualquer camada social, envolve pessoas com nível educacional distinto e sempre resulta em
prejuízos significativos para a vítima.
Neste artigo abordaremos como a pessoa
com deficiência é um alvo de agressores e constitui uma vítima fácil porque pode ser incapaz de se
expressar, como no caso das pessoas surdas ou de pessoas com deficiência mental; pode estar
imobilizada, como no caso de pessoas com deficiências físicas ou pode até mesmo não reconhecer o
agressor, como no caso de cegos. Aqui, portanto, dirijo o foco de nossa atenção especificamente ao grupo
social constituído pelas pessoas com deficiência por causa de sua vulnerabilidade ao abuso sexual,
tema ainda pouco explorado e debatido na América Latina.
O argumento aqui defendido é o de que a
vulnerabilidade das pessoas com deficiência à violência sexual tem como raiz dois fortes
fatores: primeiro sua invisibilidade na malha social e, segundo, o fato de que a condição ‘deficiência’
oferece segurança ao perpetrador do abuso sexual porque ele tem consciência de que o risco de
desvelamento do crime e de denúncia é insignificante: quem vai acreditar em uma pessoa com
deficiência? Como ela vai explicar o que aconteceu?...
Para tratar deste tema de fundamental
relevância no contexto atual da educação inclusiva, neste artigo, primeiro clarifico o abuso sexual
enquanto conceito. A seguir, apresento os sinais que indicam que o abuso sexual pode ter ocorrido (ou
está ocorrendo). Na seção seguinte, faço uma análise acerca da invisibilidade social das pessoas com
deficiência da malha social, a partir da qual sua vulnerabilidade à violência sexual se configura
e, finalmente elaboro uma reflexão sobre o papel da escola no engajamento com o tema, na promoção da
prevenção, identificação e denúncia de abuso sexual.
Com esta reflexão viso inserir o fenômeno
do abuso sexual contra as pessoas com deficiência no debate sobre o desenvolvimento de sistemas
educacionais inclusivos, pois a função da escola e dos educadores é também promover e defender
os direitos de seus estudantes dentro e fora dos espaços escolares, assegurando dessa forma as condições
necessárias para o combate dos fatores que geram barreiras à escolarização e à aprendizagem.
O Centro de Estudos de Atendimento
Relativo ao Abuso Sexual (CEARAS) e do Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD (CRAMI),
esclarece que o abuso sexual não é definido por um toque, violência física ou a
falta de consentimento, mas pela expressão ou realização da:
-
"sexualidade vinculada ao desrespeito ao
indivíduo e aos seus limites, a troca de sua postura de sujeito a uma de objeto dos desejos do outro. (...) Assim,
o abuso sexual de crianças, o incesto e o assédio denunciam um jogo de poder onde a sexualidade é
utilizada de forma destrutiva, constituindo-se num desrespeito ao ser humano. Nestes três casos,
pode não existir a violência física, mas são relações que implicam outro tipo de violência, como a
social e a psicológica. O abuso sexual afeta, ao mesmo tempo, a saúde física e
mental e o direito individual de se dispor da própria sexualidade e
privacidade." (2000, sem pág.)
No artigo ‘Horror e Covardia’ de Claudia Gisele
(2004), abuso sexual é definido como:
-
‘um crime caracterizado por uma relação de poder
[que] ocorre mediante um jogo, ou ato sexual, em que o agressor visa obter satisfação sexual e
usa o poder que tem para impor seu desejo. O convencimento pode ser através de violência,
chantagem ou indução.’ (p.38)
Nesse sentido, o abuso sexual pode
ocorrer em qualquer contexto onde há crianças, jovens e adultos, seja na família, na escola, no
consultório médico. O abuso sexual pode ocorrer com pessoas que pertencem a diferentes camadas sociais, do
rico ao muito pobre e os agressores, em geral, são pessoas com níveis de escolaridade distintos, na
maioria dos casos próximos à vítima. Isto quer dizer, que é um sério erro acreditar que o abuso tem
maior prevalência nas camadas populares. A violência sexual não é uma característica da
estratificação sócio-econômica e a desmistificação desta crença é fundamental para se assegurar que todas as
vítimas sejam igualmente protegidas.
É interessante aqui destacar que as
camadas populares são as que mais protegem as vítimas de abuso, conforme elucida a professora Lúcia
Cavalcante Williams, coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência da Universidade
Federal de São Carlos -
UFSCar:
-
‘existe um predomínio de casos registrados entre
as classes menos favorecidas. No entanto, essas famílias são as que mais denunciam. É mais raro
famílias ricas enfrentarem o problema.’ (Giselle:38)
As famílias ricas têm status social,
privilégios econômicos e poder político que certamente estão na base da omissão de ocorrências de abuso
sexual por meio de denúncia pública. Colocado de forma simples, as famílias economicamente
privilegiadas têm mais a perder do que as pobres, mas isso, de forma alguma, significa que os ricos
não sejam agressores sexuais (!). Muito pelo contrário, como vimos, o abuso sexual implica uma relação
de poder sobre pessoas mais vulneráveis (crianças, jovens, empregado(a)s, subalternos, etc.) a fim
de obter a satisfação de desejos sexuais. Com base nisso, podemos depreender que o sentimento e a
convicção do próprio empoderamento constituem elementos inerentes às camadas sociais em
situação de vantagem sócio-econômica, as quais provavelmente fazem uso mais freqüente de seu
poder do que o pobre e, além disso:
-
‘famílias das classes média e alta podem ter
melhores condições para encobrir o abuso e manter o muro do silêncio.’ (Cartilha sobre Abuso e
Violência Sexual:56)
Há diferentes formas de abuso sexual e
o ato, mesmo em diferentes graus de proximidade física, caracteriza-se como abuso...
O abuso sexual pode se configurar por
meio de diversas ações, todas violentas em sua essência, contudo não são necessariamente ações
fisicamente violentas. Assim, o abuso pode se caracterizar como:
-
Abuso Verbal: envolve conversas sexualmente
estimulantes que despertam interesse ou que chocam;
-
Exploração sexual: a vítima é levada manter
relações sexuais em troca de pagamento ou outros ganhos (alimento, vestimenta, brinquedo,
etc.);
-
Estupro: violência física com penetração
(vaginal);
-
Atentado violento ao pudor: ocorre a violência
física sem a penetração; a vítima é obrigada a fazer sexo oral, anal ou outros atos
libidinosos;
-
Exibicionismo: exposição da genitália para
provocar reações adversas, de choque na vítima.
-
Voyerismo: ‘Voyeur’ é uma palavra francesa e
significa observador oculto, escondido que sente prazer em observar ações, objetos ou
atos sexuais.
-
Assédio sexual: somente ocorre nas relações de
trabalho e educacionais, nas quais existe uma relação hierárquica entre o molestador e a
vítima; o agressor para obter vantagens sexuais exerce poder sobre o sujeito de seu
desejo; ameaçando-o(a) para conseguir o que quer. (Giselle, 2004:38)
Todas estas experiências de abuso
sexual, na maioria das vezes, ocorrem dentro de casa, imediações da residência, escola e, em alguns
casos, no ambiente de trabalho. Entre 85 a 90% dos casos registrados de abuso sexual, a violência é
perpetrada por pessoas conhecidas, como pai, mãe, parente, vizinho, amigos da família, colegas de
escola, babá, professor, médico, etc. (Cartilha Abuso e Violência Sexual, s/d:55). Esses dados iluminam
que a crença de que ‘um estranho’ representa um perigo maior para as crianças é falsa e,
portanto, perigosa.
Drezett e colegas estudaram, entre 1994
a 1999, 617 vítimas de abuso sexual do sexo feminino, das quais 71 eram crianças menores de
10 anos e 546 adolescentes entre 11 e 20 anos de idade. O foco da pesquisa foi colocado sobre os
mecanismos e fatores relacionados ao abuso sexual em meninas e adolescentes (Drezett et al.
2001:4-6). Os dados revelam que:
No
caso de crianças
com idade até 10 anos
|
No caso de adolescentes entre 11 e 20 anos de idade
|
-
46,5% foram vítimas de atentado violento ao
pudor
-
84.5% foram abusadas por agressores
identificáveis, geralmente do núcleo familiar
-
em 42.3% dos casos o abuso ocorreu nas residências
das crianças
|
-
90.8% sofreram estupro
-
72.3% foram violentadas por desconhecidos
-
foram vitimadas durante atividades cotidianas: -> 34.8% no trabalho -> 28.4% na escola e em -> 28% na do agressor.
|
Crenças vigentes sobre o abuso sexual
são perigosas porque levam as pessoas que deveriam proteger a vítima a protegerem o agressor, o
qual se sente confortável e seguro para continuar a violência por muito tempo, às vezes anos.
Crenças infundadas, portanto, devem ser combatidas e substituídas por conhecimentos consistentes
sobre a realidade acerca deste crime e, a escola pode assumir esta tarefa sem dificuldade, pois é o
espaço social próprio da formação humana. Atualmente há inúmeras diretrizes internacionais (ONU 1989,
ONU 2008) e nacionais (Brasil 1988; Mas 1990) que promovem e defendem os direitos da criança e do
jovem contra toda forma de discriminação e violência.
No caso do abuso sexual, crenças dizem
respeito às histórias e idéias (concepções, conceitos) que as pessoas (grupos, sociedade) acreditam ser
verdadeiras, sem que as mesmas, de fato, o sejam. As crenças (Cartilha Abuso e Violência Sexual,
s/d:55-57) mais comuns acerca do abuso sexual e que constituem sério risco de proteção do agressor
em detrimento da vítima são:
2.2.1.Crenças sobre o agressor
-
o ‘estranho(a)’ representa maior perigo, do que
o ‘conhecido(a)’ (um familiar, um vizinho) ― como vimos com os dados da pesquisa
acima, constitui uma crença falsa (!);
-
o agressor é um ‘psicopata tarado/depravado
sexual que todos reconhecem nas ruas’ e assim fica fácil proteger os mais vulneráveis;
-
o autor da violência é um homem mais velho ou um
alcoólatra ou um drogado;
-
o agressor é ‘homossexual ou retardado mental’;
-
o agressor é um ‘pedófilo’ ― adulto que sente
apelo sexual por crianças ― que tem características próprias que o identificam;
Tal estereótipo do abusador é um
problema porque cria as bases para a sua impunidade. Na maioria das vezes, os agressores são pessoas
normais e queridas pelas crianças e adolescentes, sendo que a maioria também é heterosexual e mantém
relações sexuais com adultos, ‘normalidade’ sexual que obviamente ajuda a mantê-lo(a) seguro pois
qual mãe (pai) desconfiará de um marido/pai (esposa/mãe) com quem mantém relações sexuais
regulares? Os outros ‘tipos’ (pedófilo, tarado, alcoólatra, drogado) podem ser ―fisicamente―
qualquer pessoa, assim não há como identificá-los.
2.2.2. Crenças sobre a criança
-
a criança mente e inventa que está sendo abusada
sexualmente;
-
as crianças com deficiência fantasiam
experiências sexuais que não devem ser levadas a sério pelo adulto;
-
a criança ‘consente’ o abuso porque gostou,
somente quando a criança diz ‘não’ é que se caracteriza o abuso sexual;
-
a criança com deficiência que foi abusada
sexualmente esquecerá e superará a experiência;
-
a criança, jovem ou adulto com deficiência não
tem uma vida sexual ativa, portanto, não precisam receber orientações sobre este assunto;
-
as crianças com deficiência são pouco atraentes
e, desta forma, não correm risco de abuso sexual.
-
crianças e adolescentes somente revelam o
‘segredo’ se forem ameaçadas com violência.
É fundamental enfatizar que a criança
raramente mente: apenas 6% dos casos são fictícios (Cartilha Violência e Abuso Sexual, s/d:55).
Quando se verifica que houve de fato uma invenção sobre um possível abuso, com freqüência, os
depoimentos são oferecidos por crianças maiores que querem tirar alguma vantagem da situação, mas isso não
é comum!
Quando a criança compartilha uma
experiência de abuso sexual e o adulto quer detalhes sobre a mesma, a fim de verificar sua veracidade, a
interação entre adulto e criança/jovem não deve se dar através de ameaça, pois isto vitimiza ainda mais
a criança, que somente compartilhará ‘o segredo’ quando se sentir confiante, segura e apoiada.
O autor da violência sexual tem total
responsabilidade pela agressão, qualquer que seja a mesma e, sempre que uma criança falar sobre
alguma atividade sexual ocorrida entre ela e pessoas conhecidas, sua fala não deve ser
desconsiderada. Muito pelo contrário, é fundamental compreender que qualquer indício de violência sexual deve
ser cuidadosamente investigado, e uma vez constatado o crime, denunciar em todos os casos, mesmo e
principalmente quando envolver alguém próximo seja ele homem ou mulher, tenha o abuso acontecido
com uma menina ou um menino.
A orientação sexual de pessoas com
deficiência deve ser a mesma oferecida à qualquer outro grupo social e ter a função de desenvolver a
compreensão e a conscientização sobre os riscos de se tornarem vítimas de abuso. Constitui sério erro
acreditar que por terem deficiências, essas pessoas sejam assexuadas, não sintam interesse por atividade sexual e, pior ainda, não têm direito à vida sexual. Da mesma forma, constitui grave engano
considerar que por terem deficiências, essas pessoas terão obsessão por sexo, apresentarão
comportamentos sexuais desviados ou não serão suficientemente atraentes. A sexualidade humana se desenvolve e
amadurece em qualquer ser humano nas várias etapas da vida, ou seja, as pessoas com
deficiência apresentam desenvolvimento sexual como qualquer outro ser humano (SCS 2002:28).
Aqui, considero apropriado destacar que,
entre os desvios sexuais existentes, há indivíduos que se estimulam apenas com a visão de pessoas
com deficiência e, portanto, é um erro acreditar que essas pessoas não são objeto de interesse sexual
ou erótico de pessoas sem deficiência. Lia Crespo (Bengala Legal, 2000), em sua palestra sobre
Devotee: descoberta e informação, esclarece a partir de suas pesquisas que:
-
“além de não se tratar de ‘casos isolados’, [há]
toda uma terminologia que [define] o fenômeno e suas características. Existem os
devotees [Em português: devotos] que são
pessoas (homens ou mulheres, hetero ou homossexuais) que se sentem sexualmente
atraídas por pessoas com deficiência. Há
também os pretenders [Em português: aqueles que fingem (to pretend = fingir),
passam por algo que não são.], que além de serem devotees, sentem-se sexualmente
estimuladas quando fingem ser deficientes, utilizando, em público ou privadamente, equipamentos como
cadeiras de rodas, muletas, bengalas, aparelhos ortopédicos. Além disso, existem os wannabes [Em português: querer ser. Wannabes é uma
palavra composta constituída por dois verbos: To want = querer, e to be = ser.],
que são devotees que desejam tornar-se, de fato, deficientes.”
2.2.3. Crenças sobre o ato violento - o abuso
-
o abuso sexual pode ser identificado com
facilidade porque a vítima apresentará lesões corporais;
-
abuso sexual é o mesmo que estupro;
Nem sempre o abuso é fisicamente
violento ou desagradável à vítima, mas nem por isso deixa de ser uma ação criminosa, porque o que o define
é o poder que o agressor exerce sobre a vítima a fim de satisfazer seus desejos sexuais. Por exemplo,
funcionários de uma organização que atende pessoas com deficiência, em um estado no Nordeste
brasileiro, recebeu uma adolescente com deficiência mental de 12 anos.
-
‘Desde o inicio observou-se que a Juliana (nome
fictício) tinha um comportamento extremamente reservado e sua capacidade de comunicação
parecia muito comprometida: ela praticamente não falava. Nas sessões de terapia, Juliana chorava
e se recusava a interagir. No entanto, quando chegava no horário em que o padrasto vinha lhe buscar,
ela demonstrava uma certa ansiedade e dizia repetidas vezes: ele está chegando... Quando finalmente o
padrasto chegava, Juliana imediatamente dava sua mão a ele e ia embora feliz, mas calada. Em
atividades que envolviam higiene pessoal, Juliana não queria participar, não permitia que a ajudassem.
Um dia, uma outra cliente da organização informou à coordenação de que se surpreendeu ao ver Juliana
‘conversando sem parar com o padrasto no ônibus’. Todos se surpreenderam porque estavam certos de
que ela tinha um sério comprometimento de linguagem e fala! O tempo passava e a suspeita
permanecia, mas nada foi feito. Em outra oportunidade, o padrasto de Juliana se atrasou e
uma funcionária disse à Juliana que ela teria que ficar na instituição caso ele não viesse, ao que
a menina respondeu com uma crise de choro e gritos. Todos ficaram perplexo ao observar a imediata
interrupção do choro, a limpeza dos olhos e a calma de Juliana ao ver seu padrasto chegando... Após
alguns anos, Juliana foi encaminhada para o setor de atividades profissionalizantes onde encontrou-se
com colegas de sua faixa etária e, aos poucos, contou em detalhes as experiências sexuais com seu
padrasto... um abuso que não gerava marcas físicas por não ser violento, mas que com certeza provocou
sérios danos à Juliana. Sua mãe então foi chamada, informada, negou o fato e retirou a Juliana da
instituição.’
Qualquer ação para o enfrentamento do
abuso sexual contra as crianças e jovens com deficiência devem, portanto, levar em conta as
crenças, a fim de romper com percepções incorretas e infundadas. Pessoas com deficiência, exatamente
como qualquer outro ser humano devem ser ouvidas, acreditadas e protegidas contra qualquer tipo de
violência, mesmo quando como no caso da Juliana, a violência seja ‘sexualmente prazerosa’ para a
vítima. O fato de o abuso não se caracterizar como violência e não provocar lesões corporais não
significa que o crime seja mais brando ou menos importante!
Como já ficou claro abuso sexual sempre provoca
‘lesões’, sejam estas visíveis ou invisíveis e, por isso, qualquer vítima de abuso sexual emite
sinais que precisam ser conhecidos, percebidos, identificados e analisados com cuidado, a fim de
que medidas cabíveis sejam tomadas.
Como já podemos depreender através da
literatura, em qualquer circunstância, a pessoa com deficiência está vulnerável à ‘sedução’ e ao
assalto sexual onde quer que esteja, mesmo (e principalmente!) quando parece estar protegida
em casa. Constitui um alvo fácil para o agressor: a pessoa com deficiência com freqüência estará
isolada; pode não ter desenvolvido habilidades lingüísticas, não enxergar ou andar; pode não
entender o que se passa e participar ingenuamente de atividade sexual induzida. Dessa forma, é
fundamental que os familiares, os cuidadore(a)s, os educadore(a)s e a sociedade civil organizada (ONGs,
etc), cada vez mais estejam conscientes dos riscos de violência sexual contra essa população e
aprendam a reconhecer sinais que indiquem a ocorrência do abuso, assim como os procedimentos legais
para proteger a vítima, mesmo quando isso implica denunciar alguém próximo...
Pelo contato diário com a criança, a comunidade
escolar, em particular, os docentes, estão em posição de observar comportamentos diferenciados
que um de seus alunos manifeste e buscar apoios para protegê-los. Por exemplo, a história abaixo
foi narrada por uma professora:
-
‘João (nome fictício) era um aluno comum, de 8
anos. Um pouco quieto talvez, João participava das aulas e raramente faltava. Subitamente, João
começou a faltar nas aulas. A professora procurou informações e a mãe informou que João não esteve
bem, estava adoentado. João retorna às aulas mais quieto e com uma expressão triste. Além disso,
com freqüência, pede para ir ao banheiro. A professora então tenta obter informações do aluno que não
as fornece. A professora então conversa discretamente com os coleguinhas de João e descobre que
‘parece que ele tem um sangramento’ no órgão genital... A partir daí a professora, sem saber direito quais
os procedimentos, procura descobrir uma forma de ajudar o aluno.’ (narrado por uma professora de
2ª série de uma escola municipal de São Paulo)
Os sinais estão ‘lá’ para serem vistos,
mas precisamos aprender como vê-los, dando significado a eles... A relação de sinais abaixo
apresentada foi construída a partir de inúmeras fontes (Burke, Bedard y Ludwig 1998; Cartilha Crianças
com Deficiência s/d; Cartilha Mitos e Realidade sobre o Abuso Sexual contra Crianças com
Deficiência s/d) e revelam a ampla gama de indicações acerca da ocorrência de violência sexual (que
está ocorrendo ou que já ocorreu):
-
alteração no comportamento/sentimentos: timidez,
tristeza, medo e agitação, isolamento;
-
manisfestar muito interesse em sexo ou
apresentar comportamento sexualizado não condizente com a idade;
-
tocar o próprio corpo ou de outros de forma
regular;
-
apresentar rejeição ou temor quanto ao próprio
corpo, por exemplo ao realizar as atividades de higiêne;
-
brincadeiras sexuais agressivas;
-
dificuldade de ligação afetiva e amorosa;
-
sono agitado com pesadelos recorrentes;
-
tentativa de suicídio;
-
auto-agressão;
-
depressão ou baixa auto-estima;
-
lesões corporais ou hematomas;
-
presença de DSTs ou sintomas de baixa imunidade
(a criança começa a ficar doente sem uma causa clara) talvez causada pelo vírus HIV/AIDs;
-
gravidez súbita;
-
engajamento em trabalho sexual (prostituição);
-
vício em substancias ilícitas ou lícitas;
-
dificuldade de manter uma relação sexual
saudável;
Os mesmos sinais devem ser procurados
para pessoas com deficiência e não atribuir tais sinais à deficiência, como é comum! O estudo
exploratório realizado no Peru e Paraguai pela Save the Children-Suécia (2002) Crianças com
Deficiência e o Abuso Sexual ilumina que
-
‘meninas e meninos com deficiência estão
expostos a maiores condições de risco, tanto na sua integridade física como
mental, tanto no âmbito familiar como no seu meio social cotidiano. As
testemunhas no estudo mostram uma diversidade de casos de maus tratos físico,
exploração, abandono, etc.´
De acordo com o Centre for Developmental
Disability Health Victoria (s/d), não há diferenças significativas entre o desenvolvimento sexual de
pessoas com & sem deficiências. As necessidades e desejos sexuais são os mesmos entre aqueles que
têm deficiência de desenvolvimento ou intelectual e o resto da comunidade. No entanto, como as
oportunidades de experiências desse grupo social são, em geral, extremamente limitadas, as pessoas com
deficiência irão ‘necessitar de assistência e apoio para compreender a complexidade das relações humanas e
os direitos e responsabilidades da sexualidade, assim como isso pode ser incorporado em suas
vidas.’ (p.01).
A maioria dos assuntos relevantes
relativos à sexualidade deve, portanto, ser discutido naturalmente, incluindo, menstruação,
masturbação, homossexualidade, comportamento sexual impróprio, supressão da menstruação,
esterilização, abuso sexual, e outros que sejam necessários abordar para assegurar sua compreensão e
proteção. Contudo, apesar de assegurado possíveis cuidados, as condições de vida e falta de
oportunidades de aprendizagens para as pessoas com deficiência tornam-nas um grupo extremamente
vulnerável à violência sexual, na raiz da qual encontra-se sua invisibilidade social.
2.4. Invisibilidade social da pessoa com
deficiência e vulnerabilidade à violência sexual
O termo ‘invisibilidade’ começa a ser
objeto de atenção no Brasil apenas em 2004, após a publicação dos resultados da pesquisa de
dissertação de mestrado sobre a "invisibilidade pública" do psicólogo social Fernando Braga da Costa que,
como gari, varreu as ruas da Universidade de São Paulo por oito anos. Em seu estudo, o
pesquisador argumenta que as relações trabalhistas influenciam relações onde a alteridade inexiste e a
‘invisibilidade pública’ resulta de percepção prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho. Isto
quer dizer que ao enxergar-se somente a função de gari não se enxerga a pessoa. Nesse sentido, a
condição de ‘invisibilidade’ ocorre quando um individuo (ou grupo social) é, inadvertida ou
intencionalmente, ‘cortado fisicamente’ da rede social, que o vincula à sociedade, tornando-o um subgrupo ilhado (Wikipédia
a, 2008), como os dados do referido estudo indicam que ocorre com os garis da USP.
De alguma forma, a função de gari ‘obscurece’ a
pessoa física de Braga e, por analogia, podemos inferir que a deficiência obscurece a
pessoa-sujeito de direito que possui uma deficiência, independentemente de suas características. A
condição imposta pela deficiência, então, destitui da pessoa sua essência como ser humano, pois suas
outras dimensões humanas passam a não importar mais, uma vez que quando se constata (ou se
pressupõe) a deficiência, esta condição generaliza-se rapidamente sobre a pessoa e toma seu lugar...
Assim, a história e o currículo da pessoa com deficiência são descartados e, com eles, são
ignorados e negligenciados seus direitos à voz, a participação e ao desenvolvimento pleno
tornando-a cada vez mais vulnerável a toda a sorte de violência e discriminação, mesmo na vida adulta.
Segundo a Save the Children da Suécia
(2002) o grau de vulnerabilidade das crianças com deficiência ao abuso sexual é proporcional ...
-
à existência de carência afetiva e emocional
causada por contínua segregação social e isolamento, que podem favorecer a ação de um
possível abusador;
-
à falta de capacidade física para defender-se: a
criança, jovem ou adulto com deficiência, em geral, estará em posição de desvantagem
física com relação ao adulto;
-
à falta de habilidades comunicativas para
relatar o que aconteceu: o não desenvolvimento de habilidades lingüísticas,
obviamente, constituem um problema no compartilhamento da experiência e principalmente
em corte quando o caso é denunciado;
-
à falta de estímulos favoráveis ao
desenvolvimento de suas habilidades, auto-proteção, independência e autonomia;
-
à falta de informações básicas e orientações
sobre a sua própria sexualidade: em geral, a sexualidade da pessoa com deficiência é
considerada inexistente por parte dos adultos com os quais convivem. As crianças não têm
oportunidades para aprender limites ou modelos sobre como agir frente ao assédio sexual;
-
à falta de estrutura familiar e acompanhamento
sistemático: isto é, a criança é tratada com indiferença ou é super-protegida, acaba sendo
envolvida em conflitos ou relações de dependência complexas que acabam camuflando a
violência sexual;
-
à falta de recursos físicos e emocionais para
enfrentar o abuso em geral: a sociedade civil e as instituições ainda estão pouco preparadas
para lidar com este assunto sensível e não dispõe de meios efetivos para identificá-lo,
denunciá-lo e combatê-los através de dispositivos legais eficientes.
A invisibilidade das pessoas com
deficiências é tão sólida que por falta de dados estatísticos oficiais produzidos a partir de levantamentos
nacionais, desde os anos 70 as estimativas oferecidas pela UNESCO (1993) têm sido sistemáticamente
adotadas nos documentos de governos dos países do Sul as quais estabelecem que:
-
‘em torno de 10% da população possui
deficiência e, destas, menos de 1% têm acesso a qualquer tipo de tratamento ou educação.’
Esse dado por si só confirma a
‘invisibilidade’ desses indivíduos nos múltiplos contextos da vida humana. No Brasil, estudos iluminam que as
pessoas com deficiência ainda permanecem literalmente ausentes da malha de relações
humanas e sociais, seja em casa, na escola, na comunidade (SCS 2003; Ferreira, 2002) e no trabalho. Por
exemplo, o dados do estudo comissionado pelo Banco Mundial, que conduzi em 2003,
sobre a situação educacional das crianças e jovens com deficiências dentro e fora das escolas no estado de
Pernambuco, revela que:
-
‘do total de 123.597 alunos(as) matriculados nas
[150] escolas visitadas [no estado de Pernambuco, apenas 1.584 - 1.28% da população - são pessoas
com deficiências que estudam em classes especiais ou integradas em salas de aula regular.
Considerando-se os objetivos do presente diagnóstico, é importante ressaltar, que selecionamos
principalmente escolas que oferecessem serviço de educação especial, portanto, se todas as escolas da rede
pública de Pernambuco fossem visitadas, este percentual provavelmente seria menor do que o que
encontramos. (p. 38. Grifo meu)
Nosso argumento aqui é o de que a
invisibilidade das pessoas com deficiência está na raiz de sua vulnerabilidade à violências, argumento
confirmado pelo Relatório It is our world too! [É nosso mundo também!] da Assembléia Geral das Nações Unidas Sessão
Especial sobre Crianças (ONU 2001), que trata das vidas de crianças com deficiências e denuncia que
mundialmente milhões de crianças são submetidas a diferentes formas de violência, punição, abuso e
outros que se tornam as causas de suas deficiências.
O relatório afirma que os:
-
‘maus tratos dentro e fora da família constituem
uma causa extremamente séria da deficiência tanto em países desenvolvidos como os em desenvolvimento
[e podem causar] doenças mentais, desajustes sociais, dificuldades na escola ou no trabalho,
comprometimentos sexuais, etc.’ (p. 09, Parecerista Especial Despuoy, 1991)
Inevitavelmente chegamos à triste
conclusão de que o abuso sexual e os maus tratos sofridos por crianças com deficiência caracterizam, ao
mesmo tempo, uma violação de seus direitos fundamentais e a possível causa ou
comprometimento de sua deficiência. Por isso, a invisibilidade que fomenta a vulnerabilidade de crianças com
deficiência é um assunto de extrema gravidade e tema que deve urgentemente constituir foco de atenção
mundial para políticos, educadore(a)s, gestore(a)s, pesquisadore(a)s, terapeutas e sociedade civil
organizada. E, sobretudo, promover a reflexão sobre o papel da escola na conscientização da comunidade
com vistas à promoção da prevenção de violência sexual é fundamental no contexto atual, porque,
segundo o documento norteador do Projeto Escolas que Protegem (MEC/SECAD 2005:05), ‘a marcante
incidência da violência sexual contra crianças e adolescentes provocou, a partir da última década
do século passado, uma série de reações’
A invisibilidade da pessoa com
deficiência na rede de relações, caracteriza-se principalmente pela sua ausência física real, a qual, conseqüentemente, impede o estabelecimento dos laços e interações que levam qualquer indivíduo a se
tornar parte de um dado grupo. Pessoas com deficiência, portanto, não vivem entre nós, não ‘con-vivem’ e
literalmente não há como se tornar parte de qualquer outro grupo social.
Para as pessoas sem deficiências é
impossível enxergá-las nos espaços públicos e privados, pois elas não estão lá... A ausência física das
pessoas com deficiência não permite que nos familiarizemos com elas ou com suas
experiências, sejam estas de sucesso ou fracasso. Não permite que pessoas sem deficiência aprendam sobre as
experiências discriminatórias vividas cotidianamente por pessoas com deficiências porque desconhecem
sua ocorrência e, assim, permanecem na zona de conforto do alheamento social não se tornando
parte da construção de redes de proteção aos mais vulneráveis que sejam mais efetivas.
De acordo com o estudo da Save the
Children–Aliança Direitos da Criança com Deficiência (SCS:21), um instrumento de defesa, a
invisibilidade das crianças com deficiência se dá porque:
-
a segregação (isolamento) e
institucionalização de pessoas com deficiência são práticas muito tradicionais [e, portanto, consolidadas];
-
as crenças e superstições tradicionais levam as
famílias a sentirem vergonhas de seus filhos com deficiências [e os mantem escondidos,
invisíveis para as suas redes sociais];
-
há a falta de serviços de apoio às famílias, as
quais não têm acesso a informações ou oportunidades para adquirir habilidades e melhor
compreensão sobre a deficiência, [o que com muita freqüência as leva a acreditar que
estão sendo castigadas por Deus];
-
prioriza-se o tratamento ou terapias
especializadas, ao invés de oportunidades de convivência e escolarização [fundamentais ao
desenvolvimento de qualquer individuo].
Essas razões estão subjacentes às
práticas de segregação, isolamento e exclusão nos vários países do mundo, pobres e ricos. Dependendo das
condições sócio-econômica, cultural e educacional de cada país, uma criança com deficiência pode
ter assegurado tratamento e cuidados necessários ou, pode, por outro lado, estar escondida no seio da
família trancada em um quarto; pode ter sido matriculada em uma instituição especializada
onde raramente recebe visita e da qual nunca sai ou pode estar matriculada em uma instituição segregada
(como as escolas especiais) convivendo com outras crianças que possuem o mesmo tipo de
deficiência, sem encontrar oportunidades para entrar em contato com uma ampla variedade de experiências
e estímulos que a vida em comunidade possibilita.
Bieler [Rosangela Berman Bueler é brasileira. Aos
19 anos sofreu um acidente de carro e ficou tetraplégica. É jornalista e mestre
pela Universidade de Salamanca.] (2004:11), jornalista consultora
do Banco Mundial na área de deficiência, em entrevista na qual aborda a questão da inclusão
de pessoas com deficiência na região das Américas, afirmando que:
-
‘é claro que não podemos comparar o atendimento
que o deficiente recebe nos EUA [assim como em outros paises ricos] e no Brasil [ou na América
Latina]. A distância ainda é muito grande. Até porque os níveis de capacidade para resolver problemas
por meio de recursos financeiros é maior nos paises desenvolvidos’.
Mesmo assegurando-se o cuidado à saúde e
tratamentos necessários ao desenvolvimento da criança com deficiência, direitos garantido pelo
Artigo 23 da Convenção dos Direitos da Criança (ONU 1989), o isolamento social e educacional de
crianças, jovens e adultos com deficiência é uma violação do direito humano de conviver com os pares e ter
oportunidades igualitárias para seu desenvolvimento pleno. A ausência física na vida regular reduz
as possibilidades de aprendizagens e desenvolvimento necessários à vida adulta independente e
produtiva. Embora em muitos países, tenha havido progressos significativos com relação aos
direitos das pessoas com deficiência e sua inserção nos vários espaços sociais, infelizmente, ainda há
muito a ser feito para que elas, de fato, em condições de igualdade e sejam reconhecidas como sujeitos de
direito.
O ponto chave aqui é que se não há
formas de participação nos vários contextos e segmentos da sociedade não haverá acesso a oportunidades
de experiências social, afetiva, lúdica, escolar, amorosa, sexual, etc. Não há, então, como a
pessoa com deficiência se desenvolver em direção à sua potencialidade latente, assim como acontece para
qualquer ser humano sem deficiências. A invisibilidade social das pessoas com
deficiência, portanto, constitui uma barreira à luta pelos seus direitos, pois conduz inevitavelmente ao não
reconhecimento da violação, condição que, por sua vez, não oferece as bases a procedimentos de denúncia
com vistas à proteção desta pessoa contra qualquer tipo de abuso sexual.
A Declaração de Salamanca (UNESCO 1994)
define escolas inclusivas como organizações que acomodam todas as crianças, independentemente de
suas características individuais. Essas organizações educacionais assumem compromisso
particular com a garantia de acesso, participação e aquisição (CSIE, 2000) de conhecimentos e
experiências aos estudantes em risco de serem empurrados para as margens da educação, ou seja, os
estudantes com necessidades educacionais especiais. Entre estes podemos citar no Brasil, os meninos e
meninas de rua, os afro-descententes, os jovens em situação de conflito com a lei. Na América
Latina, podemos identificar as crianças com deficiência, crianças de grupos étnicos distintos, os
migrantes, e os pobres entre outros.
O conceito de inclusão se fundamenta no
princípio de que ‘educação é um direito humano’ e, defende que ‘a diversidade humana e as
diferenças individuais são reconhecidas como recursos valiosos para promover a aprendizagem
significativa de todos’ (Ferreira y Martins, 2007:27). Ou seja, todos têm valor e são acolhidos igualmente na
escola, portanto, a comunidade escolar (gestores, docentes, estudantes, famílias) coletivamente se
responsabiliza por assegurar oportunidades igualitárias para todos no processo de
escolarização, considerando-se as diferenças individuais.
A escolarização e a experiência
cotidiana escolar constituem etapas fundamentais no processo de formação humana porque é durante este período
que são plantadas as bases para oportunidades e chances que um adulto encontrará em sua vida.
Assim, participar plenamente da vida na escola e se sentir parte da comunidade escolar ―sentimento
de pertencimento― constituem elementos chave do processo de inclusão: um estudante que é vítima
de qualquer forma de violência é uma criança com necessidades educacionais especiais e, portanto,
em risco de exclusão do processo educacional porque não está em condições de participar plenamente
da escolarização e da vida escolar...
Uma criança que é vítima de abuso
sexual, como vimos, apresentará graves seqüelas psicológicas, emocionais, físicas e outras que
diretamente afetarão sua vida escolar. Assim, é fácil defender no contexto do movimento pela inclusão
em educação que:
-
Toda criança que sofre abuso sexual deve ser
também foco de atenção da escola e
-
É da responsabilidade da equipe gestora
identificar meios e recursos necessários para assegurar a proteção da criança, assim como o
encaminhamento de denuncia aos órgãos competentes.
Respondendo às diretrizes internacionais
e, ao mesmo tempo, reconhecendo a gravidade do fenômeno violência sexual no território
nacional, o governo federal lançou em 2002 o Programa de Enfrentamento da Violência Sexual
Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR) que tem caráter transversal e envolve diversos ministérios. No
âmbito do programa, em 2006, lançou o Projeto Turismo Sustentável na Infância do Ministério do
Turismo e o Projeto "Escola que Protege" da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação. (MEC/SECAD:05).
O Projeto Escola que Protege possui
abrangência no que diz respeito ao seu foco porque visa à defesa dos direitos de crianças e adolescentes
em situação de violência física, psicológica, negligência e abandono, abuso sexual, exploração do trabalho
infantil, exploração sexual comercial e tráfico, por meio da prevenção. Para tanto, o projeto:
-
‘qualifica profissionais de educação [dos
municípios que aderiram ao projeto] por meio de formação nas modalidades à distância e presencial, para
uma atuação adequada, eficaz e responsável, no âmbito escolar, diante de situações de evidencias ou
constatações de violência sofrida pelos educandos.’(p.06)
O projeto, portanto, já assume a
relevância do papel da escola no combate a toda forma de crime e violência sexual contra as crianças e
adolescentes. Contextualizando tal ação no contexto da inclusão em educação, imediatamente podemos
destacar a importância das escolas com orientação inclusiva neste movimento de proteção às
crianças, nas quais a comunidade escolar coletivamente está comprometida com:
-
‘melhorar a escola para todos e combater
qualquer forma de exclusão, segregação e discriminação no contexto escolar. Ao mesmo tempo, a inclusão diz
respeito à promoção de oportunidades igualitárias de participação. Numa escola inclusiva todos são
considerados iguais e têm o mesmo valor. Assim, a escola que é inclusiva está em contínuo processo
de mudança para assegurar o acolhimento de cada um dos alunos ou dos membros da comunidade
escolar, bem como a sua aprendizagem.’ (Ferreira y Martins, 2007:22)
Então, faz sentido educacional,
político e social incorporar o tema transversal violência sexual como componente do conteúdo curricular abordado
tanto na sala de aula, quanto nas feiras de ciência ou outras atividades e, nesse processo, garantir
que seja dado um enfoque especial à proteção de pessoas com deficiência contra qualquer forma de
violência, uma vez que como vimos sua invisibilidade e vulnerabilidade são
significativas se comparadas a outros grupos sociais.
O argumento colocado neste artigo é o de
que a vulnerabilidade das pessoas com deficiência à violência sexual tem dois fortes fatores como
raiz: primeiro sua invisibilidade na malha social e, segundo, o fato de que a condição ‘deficiência’
oferece segurança ao perpetrador do abuso sexual porque ele tem consciência de que o risco de
desvelamento do crime e de denúncia é praticamente inexistente. Se a criança e o jovem com
deficiência não estiver matriculado na escola ―como é o caso na maioria das vezes!― sua chance de
compartilhar a experiência, de obter ajuda e proteção são também praticamente inexistentes. Nesse caso,
portanto, a escola e a convivência com os pares tem papel crucial na identificação dos sinais
indicadores do abuso, como aconteceu no caso de Juliana ou de João. Se a criança e o jovem com deficiência
forem aluno(a)s regularmente matriculados na escola, então, a escola deve inserir em suas componentes
curriculares orientações sobre a questão da sexualidade e também sobre os riscos do abuso
sexual.
As ações de prevenção e proteção
desenvolvidas nas escolas devem ser orientadas pela Convenção dos Direitos da Criança (ONU 1989) e
documentos nacionais que legislam a ocorrência de crime de violência contra a criança:
-
"Os estados-partes tomarão todas as medidas
legislativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de
violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive
abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra
pessoa responsável por ela.
-
Essas medidas de proteção deverão incluir,
quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que
proporcionem a assistência adequada à criança e a pessoa encarregada de seu cuidado, assim como outras
formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação,
tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças acima mencionadas e,
quando apropriado, intervenção judiciária." (ONU 1989:20)
Temos consciência de que há escassez de
recursos humanos especializados, materiais, institucionais, educacionais, de saúde, etc. são
imensos em países do Sul. Contudo, não podemos mais em nome de ‘outras prioridades’ negligenciar o
fenômeno da violência contra crianças e jovens que, por suas características perversas, são
essencialmente hediondos como é o caso do abuso sexual. Esses crimes requerem ações imediatas por parte
daqueles que, por princípio, devem proteger a criança: pais, mães, educadores. Tais ações podem ser tímidas
ou restritas ao que ‘se pode fazer agora’, mas devem ser tomadas, pois muito se aprende no processo.
Para assegurar que os direitos das
pessoas com deficiência sejam, de fato, garantidos em todas as esferas sociais, em 13 de
Dezembro de 2006,
foi aprovada por unanimidade a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.
Como convenção, este documento é orientador de políticas públicos nos países-membros que o
ratificaram. Isso significa que uma vez assinada a convenção por um Chefe de Estado, o mesmo está
implicitamente assumindo o compromisso com o que a mesma estabelece em seus artigos. A
Convenção, então, terá papel chave na inserção do tema abuso sexual contra as pessoas com deficiência
na pauta das políticas públicas e nas várias instâncias sociais e institucionais, porque destina um
artigo inteiro ―ART 16― à abordagem deste tema, conformr pode ser verificado a seguir:
-
Os Estados Partes tomarão todas as medidas
apropriadas de natureza legislativa, administrativa, social, educacional e outras,
para proteger as pessoas com deficiência, tanto dentro como fora do lar, contra todas
as formas de exploração, violência e abuso, incluindo aspectos relacionados a gênero.
-
Os Estados Partes também tomarão todas as
medidas apropriadas para prevenir todas as formas de exploração, violência e abuso,
assegurando, entre outras coisas, formas apropriadas de atendimento e apoio que levem
em conta o gênero e a idade das pessoas com deficiência e de seus familiares e atendentes, inclusive mediante a provisão de informação e educação sobre a maneira de
evitar, reconhecer e denunciar casos de exploração, violência e abuso. Os Estados
Partes assegurarão que os serviços de proteção levem em conta a idade, o gênero e a
deficiência das pessoas.
-
A fim de prevenir a ocorrência de quaisquer
formas de exploração, violência e abuso, os Estados Partes assegurarão que todos os
programas e instalações destinados a atender pessoas com deficiência sejam efetivamente
monitorados por autoridades independentes.
-
Os Estados Partes tomarão todas as medidas
apropriadas para promover a recuperação física, cognitiva e psicológica, inclusive
mediante a provisão de serviços de proteção, a reabilitação e a reinserção social de pessoas
com deficiência que forem vítimas de qualquer forma de exploração, violência ou
abuso. Tal recuperação e reinserção ocorrerá em ambientes que promovam a saúde, o
bem-estar, o auto-respeito, a dignidade e a autonomia da pessoa e levem em consideração
as necessidades de gênero e idade.
-
Os Estados Partes adotarão leis e
políticas efetivas, inclusive legislação e políticas voltadas para mulheres e crianças, a fim de
assegurar que os casos de exploração, violência e abuso contra pessoas com deficiência
sejam identificados, investigados e, caso necessário, levados à justiça. (grifo meu.)
O texto da Convenção claramente ilumina
a necessidade urgente de a sociedade assumir a responsabilidade de desenvolver meios eficazes
para combater a exploração, violência, abuso das pessoas com deficiência, vitimizando ainda mais
suas vidas já tão expoliadas de direitos humanos. Por sua importante função social na infância e na
adolescência, a escola que se pretende inclusiva deve, portanto, sensibilizar-se e sintonizar-se com a
Convenção que trata dos direitos das pessoas com deficiência e, a partir de seus artigos
orientadores, comprometer-se (urgentemente) com as questões emergentes que afetam esta população e requerem
iniciativas sócio-política e educacional imediatas.
Pessoas com deficiência têm sido
mantidas por séculos à margem dos sistemas educacionais em nome do fato de que a prioridade é a
universalização da educação primária para as camadas populares. Pessoas com deficiência têm sido
mantidas invisíveis na malha social porque são consideradas ‘problema’ para os que não possuem
deficiências. Pessoas com deficiência têm sido impedidas de terem acesso a oportunidades de
aprendizagens em nome da crença infundada de que são ‘incapazes de aprender’... A lista de
impossibilidades para as pessoas com deficiência é extensa e, em todos os itens, explicita-se o triste fato de
que essas pessoas não são consideradas sujeitos de direito justificando-se, assim, sua exclusão na família,
nas escolas, na comunidade, no lazer, no trabalho, nas várias esferas sociais.
No contexto da desigualdade social e da
falta de oportunidades para o florescimento harmonioso do ser humano, violações de todas as
naturezas se manifestam na rede social, se proliferam e se perpetuam com base na
ignorância, no preconceito e no medo de entender e aceitar a diferença natural aos seres humanos como uma
riqueza a ser cultivada e celebrada. A violação dos direitos das pessoas com deficiência reflete as
características de uma sociedade injusta que não respeita e protege os direitos de grupos sociais
que vivem em situação de desvantagem. Embora existam instrumentos legais nacionais e
internacionais que defendem e protegem os direitos de pessoas com deficiência, o século XXI ainda testemunha
violências contra essas pessoas desde o dia em que nascem... abandono ao nascer, violência
psicológica, abuso sexual, maus tratos, preconceito e discriminação durante a vida. A escola,
portanto, como a instituição social cuja função é formar para o exercício da cidadania deve incorporar em sua
política o compromisso tanto de abordar o tema como de assegurar a proteção de seus estudantes mais
vulneráveis.
Como afirmei, com este artigo sobre o
tema do abuso sexual contra as pessoas com deficiência no contexto da inclusão viso provocar o leitor,
os estudiosos e todos aqueles comprometidos com o movimento pela inclusão educacional. Com esta
provocação explícita, espero ver frutos no debate sobre o desenvolvimento de sistemas educacionais
inclusivos, pois a função da escola e dos educadore(a)s é também a de promover e defender
os direitos de seus estudante dentro e fora dos espaços escolares, assegurando dessa forma as
condições necessárias para o combate dos fatores que geram barreiras à escolarização e à
aprendizagem. Incluir implica combater barreiras à participação, assim toda escola que adota o princípio da
inclusão como orientador de suas cultura, política e prática, deve assumir o compromisso de criar estratégias
de prevenção e combate ao abuso sexual a fim de proteger as crianças e os jovens contra qualquer
ato de violência.
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Cartilha ‘Violência e Abuso Sexual’
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Wikipedia (a) - Social Invisibility
-
Wikipedia (b) – Social Network
Windyz B. Ferreira
desenvolve há dez anos estudos
sobre processos de exclusão e inclusão nas escolas. É consultora da
Unesco (Paris e América Latina) para assuntos de educação inclusiva
desde 1997, tendo participado da elaboração de importantes documentos.
Implantou e coordenou o projeto nacional Educar na Diversidade, do
Ministério da Educação. Docente de universidades brasileiras há mais de
25 anos, atualmente é professora doutora na Universidade Federal da
Paraíba. Publicou inúmeros artigos e capítulos de livros, tanto no
Brasil como no exterior, e em 2003 elaborou, para a organização Save the
Children, a cartilha Aprendendo sobre os direitos das crianças com
deficiência: guia de orientação à família, escola e comunidade.
ϟ
Revista Electrónica Iberoamericana sobre
Calidad, Eficacia y Cambio en Educación [REICE], Vol. 6, N.º 2
(Red de Revistas Científicas de América Latina y
el Caribe, España y Portugal)
2008
Δ
2-Out-2009
publicado
por
MJA
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