Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

O Marido Cego - Vasili Maksimovich Maksimov, 1884
Segundo o "Dicionário da Língua Portuguesa" de Aurélio Buarque de Hollanda,
cego é aquele que está privado momentânea ou permanentemente da visão. Esta é,
no entanto, uma definição simplória. Quando entramos num túnel ou num cinema ou
em qualquer outro ambiente onde o nível de iluminação seja insuficiente para o
ponto de ajuste em que se encontram os nossos olhos, ficamos privados
momentaneamente da visão, mesmo que os nossos olhos sejam perfeitos. O mesmo
acontece quando alguém dirige um facho luminoso de grande intensidade contra
nós, deixando-nos ofuscados. Na verdade, há uma enorme diferença entre ser ou
estar cego.
Quando se está cego, o corpo e a mente não assumem essa condição e o nível de
adaptação é ínfimo. Quando se está cego, tanto o corpo como a psique do ser
humano aguardam a volta da visão. Suponhamos que o vidro de um automóvel que vai
à nossa frente passe a reflectir o sol. No primeiro instante, deixamos de
enxergar e todas as nossas reacções tornam-se típicas de quem está aguardando a
volta da capacidade de ver: tampam-se os olhos, estaciona-se o carro no
acostamento etc. Em outros casos, quando há uma breve lesão como quando nos
queimamos ou temos algum trauma de córnea ou retina, a sensação de desprotecção
e insegurança torna-se ainda maior. Continua-se, entretanto, a estar em um
estado de espera de que as coisas voltem ao normal e que a vida retome o seu
curso.
Mesmo que a lesão seja permanente e que a probabilidade de se voltar a enxergar
seja irrisória, logo que se perde a visão o estado de espera se configura. Isso
decorre do facto de que não ver é uma situação anormal para quem sempre viu.
Esse estado de espera permanece por mais ou menos tempo em função da
flexibilidade de cada um em aceitar novas situações. Essa flexibilidade não tem
absolutamente nada a ver com conformismo ou mesmo com fatalismo. Tem, sim, a ver
com a forma com que a psique de cada um impele a pessoa a enfrentar novos
desafios.
Uma nova invenção, por exemplo, pode tornar-nos deficientes em termos
culturais. Os empregados em selarias tornaram-se socialmente deficientes com a
invenção do automóvel. Alguns permaneceram nessa condição momentaneamente, até
que o aprendizado de um novo ofício os reabilitou. Outros, pelo contrário,
ficaram socialmente deficientes pelo resto de suas vidas. Em outras palavras, se
o indivíduo não for apto a enfrentar novas situações, o estado de espera poderá
prolongar-se indefinidamente, até à sua morte, em alguns casos.
Quando se é cego, o corpo e a mente já se adaptaram à nova condição e passou-se
a criar meios para que a deficiência seja suprida de alguma forma. Se não se
pode continuar a exercer a mesma profissão, já se encontrou outra para se
desenvolver. Por outro lado, se ainda se pode exercê-la, os métodos já estarão
adaptados ao facto de que o indivíduo não exerça. Houve casos em que pilotos
internacionais de aviões perderam a visão em acidentes, o que os impediu de
continuar voando. Assim, alguns deles resolveram aproveitar suas capacidades
anteriores, tornando-se professores de Geografia ou mesmo passaram a trabalhar
em empresas de turismo, planejando escalas de voo. Em outros casos, quando
exercer a profissão é uma simples questão de adaptar os instrumentos, temos como
exemplo os dos mecânicos de automóveis que transformaram paquímetros,
micrómetros e manómetros para a leitura em braille. Resumindo, há pessoas que,
pelo facto de serem cegas, são menos deficientes que outras que, por continuarem
a esperar a
cura, estão cegas.
Em alguns países há uma preocupação dos legisladores quanto aos benefícios que a
sociedade concederá aos deficientes em geral e aos portadores de deficiências
visuais em particular. É bom que se entenda que nem só os cegos são portadores
de deficiências visuais. Nesse grupo enquadram-se todos os que, para possuir uma
visão normal, dependem de equipamentos ou mesmo de sinalização adequada. Assim,
pertencem ao grupo todos os que precisam de usar óculos, lentes de contacto, tele-lupas etc. Há ainda outros deficientes que não podem contar com esse tipo
de auxílio, precisando de condições especiais de tráfego ou mesmo de trabalho,
como os daltónicos que, por não poderem ver cores necessitam de que todos os
sinais de trânsito de sua cidade tenham as luzes coloridas sempre na mesma
posição para que, dessa forma, ele se oriente. Por causa dessa preocupação,
países como os Estados Unidos, Japão e, principalmente a Inglaterra, contam com
definições legais para a terminologia empregada. No caso dos Estados Unidos que
conhecemos bem, há os totalmente cegos e os legalmente cegos. No primeiro caso,
enquadram-se todos os incapazes de distinguir a presença de luz, enquanto que,
no segundo grupo, encontram-se os que não possuem visão suficiente para
desenvolver visualmente actividades básicas como ler ou caminhar.
No Brasil não existem definições legais para o problema, mas há uma terminologia
aceite pelos mais diversos institutos. Assim, cegos são os incapazes de ver
qualquer coisa, enquanto àqueles cuja visão é tão reduzida que impossibilite a
leitura com letras de tamanho normal, ou mesmo que não possam caminhar sem o
auxílio de aparelhos especiais, chamamos de amblíopes ou, como é moda dizer,
portadores de visão subnormal.
O leitor deve estar se perguntando: "Por que tanta conversa? Por que não
entramos logo no assunto?" Ocorre que um treinador de cão-guia é, antes de tudo,
um profissional de reabilitação. Se ele não entender como os cegos agem e
pensam, como é que ele poderá desempenhar suas funções condignamente? Peço pois
um pouco de paciência e que o leitor preste muita atenção nos quatro próximos
capítulos porque deles dependem o entendimento do tema como um conjunto.
A cegueira nunca é escuridão
A maior parte das pessoas pensa que a cegueira se manifesta como uma escuridão
eterna. Ocorre que há os que nasceram cegos, os que perderam a visão muito cedo
e os que deixaram de ver numa idade em que o cérebro já estava
condicionado à ideia visual da realidade.
No primeiro caso - muito raro, por sinal - a cegueira não poderia jamais constituir escuridão pelo simples facto de que o escuro é a ausência da luz.
Se o indivíduo é cego de nascença, ele nunca viu a luz, portanto, não possui
ideia do que seja o escuro.
O mesmo acontece quando se perde a visão antes dos
cinco anos de idade, quando o cérebro ainda não está adaptado ao mundo das
imagens e das cores. Quando o problema é esse, após algumas semanas da perda da
visão, a criança já se comporta como se nunca tivesse enxergado. Pouco a pouco,
a realidade torna-se auditiva, táctil e aromática e a noção da luz e das cores apaga-se da memória.
No terceiro caso, há o que passou a chamar-se "cegueira branca". O cérebro
está tão habituado a criar imagens que nunca mais deixa de fazê-las. A falta de
visão, nesses casos, pode ser substituída psicologicamente por manchas ou mesmo
imagens que os acompanham pelo resto da vida. Trata-se de imagens permanentes
[...]. Trata-se tão somente de uma tentativa da mente de suprir a
falta do montante de informações que costumava entrar no cérebro através dos olhos.
Compreendemos que seja muito difícil para um vidente entender semelhante
experiência. Assim, vamo-nos alongar um pouco nessa explicação.
Oitenta por cento do que conhecemos chegou à nossa memória pelos olhos. É
justamente por isso que os analfabetos tendem a só entender o que são capazes de
enxergar. A visão para eles tem apenas a conotação física e não simbólica que
adquirimos com a leitura. Assim, quando lemos dinamicamente, as ideias que
retemos têm, muitas vezes, uma materialização psicológica que lembra as páginas
de um livro. Isso ocorre com muito mais gravidade quando o que aprendemos vem
através de audiovisuais e por simples interpretação visual da realidade. Ora,
quando a visão cessa, passa a existir, na mente, uma grande falta de informações
que dão uma sensação de vazio que faz com que as manchas e imagens pré
fabricadas venham a suprir.
Essas imagens são relativamente independentes da realidade. Elas são presas à
segunda pelas situações porque tendemos a formá-las a partir do que nos
acontece. Em outras palavras, quando entramos em uma sala, imaginamo-la como uma
sala, muito embora a sala que imaginemos não seja sequer próxima daquelq em que
entramos. Mesmo assim, há um quê de muito real nas imagens, posto que elas são
fruto da memória visual que nos acompanha. A "cegueira branca" dá ao deficiente
base para gostar ou não das formas de um automóvel, mesmo que ele seja grande
demais para que o sintamos todo de uma só vez pelo tacto. Além disso, ela faculta-nos
construir mentalmente um todo a partir de pequenas áreas e esse todo no
visual em termos de raciocínio.
Recentemente, estive treinando um rapaz de aproximadamente vinte e oito anos no
uso de sintetizadores de voz em computadores. Fazia dois anos que ele tinha
perdido a visão. Em um dado momento notei que ele estava muito calado.
Perguntei-lhe então: "São as manchas que o estão incomodando?" Espantado ele me
respondeu: "Como é que você sabe?" Retruquei: "É que elas quase me deixaram
louco quando perdi a visão. Eram como letras de jornal que se embaralhavam o
tempo todo, sem formar uma só palavra. Em outros momentos eram rostos,
geralmente azuis, que se transmudavam numa velocidade incrível. "Elas desapareceram?" Perguntou ele.
"Não, mas eu me acostumei com elas e sei perfeitamente que são associadas a meu
estado psicológico" respondi. "Quando estou calmo elas assumem cores
agradáveis e pouco contrastantes. Se estou ansioso, tornam-se muito mais
mutáveis e de cores berrantes."
Todos nós temos o hábito de pensar que somos os únicos a passar pelas
experiências mais corriqueiras: o primeiro beijo, o primeiro contacto com a morte
e outras. Assim agimos quando um dos nossos sentidos se vai. Pensamos por algum
tempo que somos os únicos cegos ou surdos do mundo e que essa prova é inédita. O
simples facto de sermos obrigados a perceber que outras pessoas já conhecem
aquilo
pelo que passamos é um choque quase tão grande quanto a perda em si. Tenho
a certeza de que, passado o choque, nosso diálogo ajudou-o a compreender melhor a
si mesmo e a sua nova situação. Esse pseudo egocentrismo ficou ainda mais
evidente em outra ocasião.
Estava mostrando a um outro cego recente um ábaco adaptado onde, além de fazer
contas, marco pequenos números para depois os transferir para o banco de dados.
Bati com o instrumento no tampo da mesa para que ele pudesse se guiar pelo som e
tomá-lo de minha mão. Ele, porém, ficou de mão estendida e resmungou: "Ponha
aqui na minha mão!" Com o consciente intuito de chocá-lo respondi: "Meu amigo,
será que você não percebeu que eu sou tão cego quanto você?" Até àquele momento
seu cérebro estava fazendo uma imagem na qual ele estendia a mão e eu lhe entregava
o objecto imediatamente. Esse quadro, porém, não condizia com a realidade e ele
sequer pensou em interpretar o código sonoro que eu fazia, batendo com o ábaco na
mesa.
Não conheço nenhum estudo científico que comprove o que vou relatar neste e no
próximo parágrafo. Tenho, porém, uma convicção, pelo menos uma crença
baseada numa relativamente grande sucessão de factos. Nos últimos três anos
tenho lidado com um número crescente de portadores de retinose pigmentar. Não é
que haja uma maior incidência dessa doença, mas é que seu entendimento é
relativamente recente, vindo mesmo a constituir uma nova especialidade médica
dentro da oftalmologia: a retinologia. Percebi que seu comportamento, perante a
falta de visão, é radicalmente diferente dos demais cegos.
Nossos olhos não enviam imagens para o cérebro. O que eles transmitem não passa
de um conjunto de pontos coloridos ou preto-e-branco. A imagem em si é
construída pelo cérebro que, por analogia, reconhece as formas e as interpreta.
Eis por que as crianças tendem a ter muito mais ilusões de óptica do que os
adultos. Ocorre que, por falta de experiência, elas interpretam o seu mosaico de
luzes de acordo com sua imaginação, errando frequentemente.
Não sou médico. Assim, não posso descrever a fundo o que é essa doença. Sei, no
entanto, que o seu efeito sobre a visão corresponde à queda de algumas pastilhas
do mosaico, levando o cérebro a um trabalho ainda maior de interpretação. Os
portadores de retinose pigmentar geralmente não percebem a evolução de seu mal.
Em geral, são as pessoas que os cercam que notam que algo está errado e as
induzem a procurar um médico. Ocorre que a compensação intelectual falseia
as imagens de tal sorte, que eles não percebam com clareza a sua deficiência. A
capacidade do cérebro tem limites e um belo dia o indivíduo está cego sem se
preparar para isso. É como se o número de pastilhas do mosaico se tornasse tão
pequeno que excedesse a condição de deduzir a que o cérebro está acostumado.
Alguns chegam a negar que estão cegos, tamanho é o grau de cegueira branca que
possuem.
Repito que não há nada de científico no que descrevi. Penso que as premissas são
tão verosímeis que se justificaria um trabalho multidisciplinar nas áreas de medicina,
bio-engenharia e principalmente psicologia. O facto é que eles costumam ser
muito mais refractários às técnicas de reabilitação.
Não se imagine, em hipótese alguma, que os portadores de "cegueira branca"
tenham uma inteligência espacial mais desenvolvida do que os que nunca
enxergaram. Apenas eles mantêm imagens em suas mentes, enquanto os demais contam
com ideias tácteis sobre o mesmo objecto. Desde que se seja habilidoso o
bastante com as palavras, é perfeitamente possível explicar-se a um cego de
qualquer tipo como funciona uma máquina ou qualquer outro tipo de abstracção.
Repetimos: desde que se seja habilidoso com as palavras.
Os outros sentidos não compensam a falta de visão.
Criou-se na sociedade a idéia de que os cegos escutam mais que as outras pessoas, que os surdos enxergam melhor que os demais etc. Oxalá isso fosse verdade. Há,
evidentemente, surdos que são míopes, assim como muitos cegos são total ou parcialmente surdos.
Não haveria o menor motivo para se pensar que exista uma lei biológica de compensação. O que existe é uma interpretação mais aguçada dos
sentidos que restam aos deficientes sensoriais. Em outras palavras, um surdo depende muito mais de sua visão do que uma pessoa normal. Assim, é preciso que ele preste muito mais atenção às informações visuais que lhe chegam ao cérebro. É
muito comum os surdos terem extrema dificuldade para dormir em lugares claros, bastando-lhes o nascer do Sol para substituir o despertador. Também parece que seu campo visual é maior que o nosso, muito embora isso se deva ao simples fato de
que eles fazem uso intensivo de sua visão periférica. Mesmo assim, tudo o que dissermos a respeito dos surdos só terá valor se sua deficiência visual não for comprometedora. Caso contrário, seu comportamento será ainda mais diferenciado.
Da mesma forma, os cegos tendem a prestar uma atenção redobrada aos ruídos que os cercam, interpretado-os a um nível muito mais profundo que os videntes. Qualquer um pode notar isso. Quando há faltas de energia ou mesmo quando as luzes se
apagam, todos nós tendemos a ouvir coisas que, no claro não nos chamam a atenção. Todos os barulhos parecem mais fortes e surgem outros de que não tomávamos conhecimento. Eis porque as crianças costumam ter medo do escuro. Quando se é cego,
o que é distante é interpretado exclusivamente pelos sons.
O olfato também é de grande auxílio, quando se precisa compreender o que se passa à volta, sem que as coisas possam ser tocadas. Assim, um cego pode se orientar perfeitamente
pelos odores que se emanam à sua volta, reconhecendo lugares e situações sem que se usem as mãos.
O tato é importantíssimo para qualquer pessoa e imprescindível para os cegos. Há muito mais do que sentirem-se as formas na
interpretação tátil da realidade. Esse sentido se divide em dois grupos: as sensações mecânicas e as térmicas. As primeiras se referem ao analisar das formas e das texturas e mesmo dos movimentos como o do vento, por exemplo. Uma coisa que
poucos videntes imaginam é que os cegos passam o tempo todo sentindo coisas absolutamente corriqueiras aos que enxergam. Um bom exemplo disso é que eles passam a vida sentindo o contato das roupas, dos móveis onde estão sentados ou deitados
etc. As sensações térmicas, como o nome diz, referem-se à noção de frio e quente. Ocorre que se trata de uma medida relativa para os terminais nervosos, de sorte que se passarmos alguns minutos segurando um objeto retirado de um freeser,
sentiremos morna a água gelada. Assim, trata-se de uma noção relativa ao estado geral do meio ambiente. Os cegos a usam para distinguir caminhos, através do diferencial de temperatura do vento, se se está ao ar livre e outras situações.
O sentido mecânico do tato também ajuda a distinguir o local onde se está. Um cego dificilmente tropeça em uma sarjeta porque, em as ruas sendo ligeiramente abauladas, a inclinação do piso dá a perfeita sensação de se estar chegando a uma
calçada. Outro uso é o de reconhecer o local pela textura do piso. Em outras palavras, o deficiente percebe que está chegando em determinada área porque conhece a rugosidade do solo. Assim, usar sapatos novos ou de sola muito grossa pode
confundir um deficiente visual. Naturalmente, o uso do tato mais difundido em termos de locomoção é o uso de uma bengala, onde ela faz as vezes de uma longa extensão do braço e é como se o cego tateasse o seu caminho. Mais tarde estudaremos
o seu uso.Ao contrário do que se imagina, quanto mais levemente tatearmos um objeto, melhor será o resultado da observação. Isso decorre do fato de que o emprego de força pode deformar o objeto se ele for flexível, ou mesmo
ultrapassar o gradiente de sensibilidade do terminal nervoso, prejudicando seu funcionamento. Aqui incluo dois casos em que essa questão foi mal interpretada. Ambos ocorreram nos Estados Unidos, o que ajuda a mostrar a universalidade do
comportamento coletivo perante os cegos.
O primeiro ocorreu em Savanah (GA), numa visita que fizemos a um museu colonial. Tratava-se de uma casa, onde o que se mostrava eram peças de época como vestuário e mobília. Minha esposa
mostrou-me os entalhes da carcaça de um cravo. Quando eu estava observando, ouvi: "Por favor, não toque!". Expliquei à guia que eu era cego e que tinha pago para "ver o que todos viam. Não fui atendido, o que provocou indignação no grupo de
estudantes a que pertencia. O segundo ocorreu no museu de arte medieval "the Cloisters" em New York. Para evitar confusão, dirigi-me à administração para pedir permissão para tatear os objetos. Concederam, porém, com a condição de que eu me
limitasse aos de pedra. O primeiro que fui observar era um misto de quadro com escultura, onde o relevo de alabastro era mais fino que uma casca de ovo. Era tão delicado que eu mesmo optei por não tocar. Por outro lado havia trabalhos de
algumas centenas de quilos em que não podia pôr a mão por serem de madeira.
Outra curiosidade é que o melhor órgão do ser humano para observações táteis é a língua. Os cegos tendem a colocar sobre ela os objetos pequenos ou de difícil
análise, pois isso os faz parecer muito maiores e detalahados. O leitor poderá fazer a experiência tateando seus próprios dentes e notará que à lingua, eles parecem muito maiores do que na realidade são.
Um fenômeno que precisa ser
entendido com precisão é o que se chama de visão de sombra. Os morcegos, como todos devem saber, têm os olhos atrofiados. Orientam-se assobiando e analisando auditivamente os reflexos das ondas que eles emitem. Foi daí que os cientistas
desenvolveram os radares. Aproximadamente vinte porcento dos cegos possuem essa capacidade. Obviamente, eles não assobiam o tempo todo para se orientar mas usam os ruídos do meio para analisar os reflexos. Assim, podem detectar objetos
volumosos que sejam de altura maior ou igual à sua. Eles, portanto, são privilegiados em termos de locomoção porque não esbarram em portas fechadas, postes, placas etc. Na verdade, eles podem tocar tais objetos, porém, sem grandes danos
porque sabem que algo está lá. Isso, no entanto, não é infalível porque qualquer queda da capacidade auditiva (resfriados, mudanças bruscas de altitude e outras causas) torna-os totalmente incapazes de tal persepção. O problema piora quando
a queda de eficiência ocorre em um só ouvido, pois o cego passa a se comportar como se houvesse uma parede daquele lado e tende a se desviar para o lado oposto, prejudicando sua locomoção. É, também, por isso que, quando a idade avança, os
deficientes visuais precisam usar um aparelho auditivo de cada lado e não um só como fazem os videntes. Isso nem sempre é compreendido pelos médicos, principalmente os especialistas.
Em 1983, a empresa em que eu estava trabalhando
adquiriu um equipamento extremamente barulhento para imprimir as faturas e notas-fiscais. Ocorre que aquele arremedo de computador foi instalado na mesma sala em que eu e minha equipe ficávamos. Três meses depois comecei a sentir os efeitos
da exposição contínua a tamanho ruído. Deixei de escutar os freios a disco dos automóveis e outros sons de extrema utilidade para mim. Procurei o especialista indicado pelo convênio médico a que a empresa estava filiada. Ele me pediu uma
audiometria que revelou o que se chama de uma gota de audição em 6000Hz. Isso significa que, para se proteger, meus ouvidos anulavam aquela freqüência porque deveria ser a de maior emissão pela maldita máquina. Era mais acentuada do lado
esquerdo porque era naquela direção que ela estava instalada. Questionei: "Não é o caso de se transferir o equipamento para outro local?" Não sei se para evitar confrontos, talvez por não compreender a importância da audição para um cego,
ele respondeu: "Nós interpretamos como deficiência a falta de audiçao nas frequências usadas para conversação, o que não é o seu caso." Minha sorte foi que meu chefe entendia de acústica e, ao ver os resultados dos exames, transferiu
imediatamente a máquina.Assim, podemos ficar certos de que a falta de visão é apenas mais uma deficiência a que estamos expostos e que, ao contrário do que se pensa, não podemos contar com ajuda dos outros sentidos. Pelo contrário,
com a idade, eles só contribuem para agravar o quadro.
Mobilidade x Locomoção.
Existe em New York uma instituição mundialmente conhecida entre os cegos, denominada "Light House". Lá, tive a oportunidade de fazer um treinamento para me adaptar ao uso da bengala longa naquela cidade.
Ao voltar, conversando com a Sra. Dorina de Gouvea Nowill, Presidente da Fundação Dorina Nowill para Cegos, contei-lhe sobre os resultados do meu novo treinamento de locomoção. Ela discordou da terminologia, afirmando que a palavra correta seria "mobilidade". Respondi,
então: "Todas as manhãs, ao acordar, faço cerca de mil e duzentos exercícios físicos diferentes, pratiquei volteio e sou adepto do hipismo rural, o que prova que tenho uma boa mobilidade. O meu problema está relacionado com a dificuldade
que tenho de ir de um lugar para outro, o que implica que a minha capacidade de locomoção está comprometida pela minha deficiência visual." Isso posto, fica estabelecido que usaremos o termo”mobilidade” para definir a capacidade que cada um
tem em se mexer, e “locomoção” ao que se referir a ir de um lugar para outro.
É fato que a cegueira traz inúmeros problemas ao indivíduo; porém, o pior deles é, sem dúvida, a dificuldade de locomoção. Aqui vai uma outra premissa. Muitos deficientes dos mais diversos tipos reclamam do fato de as cidades e mesmo as
construções residenciais não serem projetadas para seu uso. Pessoalmente, sou totalmente contrário a essa assertiva porque eles têm esse título por serem incapazes de fazer coisas que os seres humanos ditos “normais” fazem. Tentemos, então,
entender o que é um ser humano normal. Se o definirmos como aquele que não possui deficiências físicas ou mentais, estaremos excluindo dessa relação aproximadamente 99,99% da população mundial. Por outro lado, se os seres normais forem os
portadores de deficiências suplantáveis, estaremos chegando muito mais perto de incluir nessa categoria 80% da mesma população. Tomemos, pois, como válida essa segunda definição. Uma terceira premissa precisará ser entendida: ninguém é
totalmente deficiente, porque é capaz de suplantar seus próprios problemas em maior ou menor proporção. Em outras palavras, quando conseguimos "nos ver", estamos deixando de ser deficientes. As reclamações deles a cerca das dificuldades que
enfrentam para conviver em uma cidade projetada para atletas é infundada, posto que seria impossível criarem-se meios para suprir todas as dificuldades. Cito um exemplo: muitas ruas contam com calçadas rebaixadas, para que as cadeiras de
rodas possam subir e descer com facilidade. Isso, para os cegos, representa um perigo porque, usando bengalas, eles não percebem que o quarteirão acabou e podem ser atropelados por esse motivo . Resumindo, os deficientes desse ou daquele
tipo são sempre minoria, visto que são deficientes e precisam viver em um mundo projetado para suprir as necessidades da maioria. Não se podem exigir rampas em todos os prédios, porque isso geraria um enorme custo social. Da mesma forma,
não se pode querer que todas as residências tenham elevadores para uso dos cardíacos, pelo simples fato de que há problemas muito mais urgentes para serem resolvidos pela sociedade, como a miséria, que causa grande parte das deficiências
físicas e mentais.Isso não quer dizer que as normas e as leis não considerem medidas viáveis para facilitar a vida de quem se locomove com dificuldade, como portas de elevadores largas o suficiente para que cadeiras de rodas passem, autorização permanente
para o ingresso de cães guias em quaisquer ambientes, e outras. O que digo não ser possível é resolver os problemas de todos os tipos para todos os tipos de deficiência que possam acometer o ser humano. Recentemente fui convidado a falar
sobre bolsas e bolsistas no Rotary Club S. Paulo Mooca. Coincidentemente, havia uma menina cega recém-chegada de um programa de intercâmbio de curta duração na Noruega. O presidente do clube deu-lhe a palavra antes de que eu fizesse minha
palestra. Ela citou o respeito com que os noruegueses tratam os problemas físicos e sensoriais. Contou que, na cidade onde ficou hospedada, por causa de um só cego, todos os jardins eram cercados para evitar acidente. A platéia entrou em
êxtase. Fiquei com uma tremenda vontade de alterar o meu tema e, ao contrário do que costumo fazer, falaria sobre questões ligadas aos deficientes. Não o fiz, por disciplina. Ocorre que a Noruega possui somente cinco milhões de habitantes e
sua maior cidade, apenas quinhentos mil, o que torna viáveis medidas paternalistas como essa.
Por tudo o que discutimos, cabe aos cegos aprender a caminhar pelas cidades e, daí, adquirir sua independência. A locomoção é, portanto, crucial para o desenvolvimento dos deficientes visuais como seres humanos.
Devido à dificuldade de locomoção, muitos cegos acabam por possuir problemas
— até mesmo sérios — de mobilidade. Isso decorre do fato de que eles caminham pouco e, quando o fazem, é sempre lentamente. O resultado é que existe uma tremenda
baixa no nível de condicionamento físico desses indivíduos, chegando a provocar-lhes atrofia muscular, problemas cardiovasculares, osteoporose, etc. Isso se transforma em uma limitação a mais para sua locomoção. Assim, todos os deficientes
físicos devem ser incentivados à prática de um esporte.
Por tudo o que descrevemos nos capítulos anteriores, pode-se concluir que a capacidade de locomoção de um cego precisa ser avaliada antes de qualquer treinamento que se venha a fazer. Para que se tenha uma breve idéia da extensão da
variação, descreverei como funciona o uso de uma bengala.
O primeiro passo é o de definir o seu comprimento. Teoricamente, o ideal é que o instrumento seja da altura do início do esterno do usuário. Isso é teórico, porque depende do comprimento do braço, do tamanho do passo médio e do
condicionamento físico do indivíduo. É, no entanto, o tamanho de bengala padrão que é utilizado durante o treinamento, para que os demais fatores possam ser avaliados e encontrada a bengala definitiva.
Muitos videntes pensam que a bengala precisa acompanhar os pés do usuário. É justamente o oposto. Se a bengala acompanhasse os passos, ela transmitiria informações caducas ao usuário porque ele já teria posto o pé no lugar onde a bengala
está. Assim, se o usuário der um passo com o pé direito, a bengala deverá tocar o lado esquerdo, formando um triângulo isósceles com os pés. Isso informará ao cego se ele pode ou não dar o próximo passo. Ela será capaz de informar a altura
de degraus ou de quaisquer outras irregularidades do solo. Pelo escorregamento, pode-se notar a presença de óleo, gelo, terra etc. Uma curiosidade é que, durante o inverno em países frios, os cegos levam vantagem porque sabem, pelo toque da
bengala, se a calçada está ou não coberta de gelo, evitando tombos. Nesses casos, os videntes não percebem a presença do gelo, porque ele não brilha se a temperatura estiver abaixo do ponto de congelamento.
Assim, podemos concluir que, se o cego prefere andar mais rápido com passos longos, precisará de uma bengala mais longa. Por outro lado, se o condicionamento físico for ruim, ele precisará de uma bengala ainda mais longa, para lhe dar mais
tempo de reação. Já no caso de a musculatura do braço ser demasiadamente fraca, a bengala precisará ser mais curta, para evitar que seu peso transtorne a caminhada. Resumindo, cada caso deve ser encarado de uma maneira diferente, e o cego
acaba escolhendo sua bengala após um certo tempo de condicionamento.
Pessoas que não possuem "visão de sombra", quando entram em lojas ou ambientes baixos, precisam colocar a mão à frente do rosto para evitar acidentes. Pessoas que possuem deficiência auditiva, como ocorre com os que perdem a visão por
diabete, precisam de bengalas mais curtas. Aquelas cuja audição é melhor em um ouvido que em outro, tendem a desviar para o lado oposto. É justamente por isso que, antes de se começar um treinamento, as instituições pedem minuciosos exames
médicos aos futuros alunos.Conheci um rapaz que, além de possuir visão tubular (total ausência de visão periférica), era cego do outro olho e tinha somente cinco por cento de audição, o que prejudicava enormemente sua fala. O leitor pode imaginar o quão especial
tinha que ser seu treinamento, posto que todo seu processo cognitivo ficava prejudicado, afetando gravemente sua personalidade.
Convivendo com Cegos
Há uns quinze anos, minha esposa decidiu-se por tomar aulas de leitura dinâmica. Como se sabe, esses cursos tentam aliar uma leitura rapidíssima a um elevado nível de compreensão do texto e a um alto grau de retenção de informações. Um dos
exercícios de técnicas de memorização a que os alunos se submeteram consistia em desempenhar atividades das mais triviais, porém simulando uma deficiência física qualquer. Minha esposa participou do jogo por uma hora, até que ela se lembrou
de que eu não enxergava. Veio, portanto, a compreensão clara de que um deficiente só se enquadra nessa condição quando não pode fazer algo; caso contrário, estará apenas aplicando métodos pouco usuais.
Em outras palavras, se eu resolver me candidatar a um cargo de controlador de tráfego aéreo, serei reprovado por causa de minha deficiência e não reclamarei de preconceito. Na frente de um computador ou diante dos mais complexos cálculos
matemáticos, não possuo deficiência alguma.
Conviver com cegos é, portanto, normal, desde que nos habituemos com o jeito com que eles resolvem seus problemas. Um exemplo disso é que, para quem não enxerga, não existe o menor sentido em se segurarem as cartas em um jogo, em forma de
leque. O método usual prevê o fato de que o vidente queira ter uma visão do conjunto das cartas que possui, o que é impossível a um cego. Assim, ele tenderá a colocar um naipe entre cada um dos quatro vãos de sua mão esquerda, se for
destro, ou de sua mão direita, se for canhoto. Outra coisa que os videntes estranham muito é o fato de que os cegos muitas vezes põem a pasta de dentes diretamente sobre a língua, ao invés de a colocarem na escova. Uma vez, ouvi de um
empregado meu: "Por que você está soprando o tubo de pasta?". Ao que respondi: "Você já tentou por a pasta na escova sem olhar?". É por isso que carrego sempre um tubo de pasta comigo. Tantos são os exemplos nesse sentido que o assunto em
si já seria tema para um livro. Por enquanto, cabe descrever os pontos em que os cegos são de fato deficientes.
Geralmente, quando não se está acostumado com cegos, os videntes tentam segurar-lhes o braço para indicar-lhes a direção a seguir. Isso é totalmente errado. É infinitamente mais fácil oferecer-lhes o braço ou o ombro para que eles os sigam.
Em outras palavras, se o vidente segurar o braço do cego, este ficará à sua frente, o que obrigará o condutor a descrever todos os obstáculos. Caso o cego o estiver seguindo, isso não será necessário porque, se o condutor subir, ele sentirá
e o acompanhará, assim como a qualquer movimento que o outro fizer. O mesmo se aplica aos cães-guia. Seus arreios colocam o deficiente na altura de suas patas traseiras, de sorte que ele possa perceber o movimento do cão a partir de suas
patas dianteiras, dando-lhe tempo de reação.
Palavras como: “cuidado” “cá”, “lá” e outras são totalmente inócuas. Suponhamos que um cego esteja caminhando por uma rua e haja um obstáculo à frente que ele não possa perceber com sua bengala. Um transeunte bem intencionado pode gritar:
"Cuidado!!!" e isso não servirá de nada ao outro, porque não ficou sabendo de que perigo se tratava. Assim, como já disse no capítulo II, tudo pode ser explicado a um cego, desde que se tenha habilidade com as palavras. Na verdade, é melhor
que o transeunte grite: "Poste!!!" ou "Degrau para baixo!!!" e assim por diante. Da mesma forma, de nada adianta dizer a um cego: "Vá mais para lá!!!" É preferível que se diga: "Dois passos para a direita." Resumindo, ao contrário do que se
pode imaginar, cegos abstraem o tempo todo. Daí as palavras corretas serem tão importantes. Essa constante abstração advém do fato de que os não videntes usam a memória o tempo todo. Eles não vêem que as coisas estão lá, apenas se lembram
disso. Após conviver um pouco com cegos, percebe-se que eles não gostam de separar-se de seus objetos pessoais, para não terem que se lembrar de onde os deixaram. Procurar, aliás, é um trabalho muito árduo para um cego. Dessa forma, é
desejável que nada seja mudado de lugar. Não há nada mais cansativo para um cego do que um dia de faxina. Isso se deve ao fato de que, nesses dias, tudo é removido de seus lugares normais, impedindo uma caminhada segura, mesmo que o
ambiente seja o mais conhecido possível.
Oitenta por cento dos acidentes ocorrem em ambiente doméstico, e os cegos não são exceção. A visão de sombra é um exemplo disso. Como já vimos, vinte por cento dos cegos contam com isso super desenvolvido, mas todos os que têm audição
normal o possuem, quando dentro de casa ou outros ambientes, cuja acústica lhes seja familiar. É exatamente aí que os descuidos são cometidos e os acidentes mais graves acontecem. Na rua, por exemplo, o deficiente usa sua bengala, pede
auxílio às pessoas e mesmo conta com seu cão-guia. Em casa, isso já não acontece. Anda-se com rapidez e de uma forma totalmente baseada na memória e na acústica do ambiente. Assim, é preciso que não se deixem portas, armários e outros
móveis meio abertos. Nessa posição, os objetos não contam com área suficiente para que o cego detecte sua presença e fatalmente irá abalroá-los, podendo machucar-se. Assim, sempre que precisar, procure abrir ou fechar totalmente portas ou
quaisquer outros utensílios basculantes.
Antes de tirar uma conclusão a respeito da atitude de um cego, bem como sobre seu nível de entendimento acerca do que se passa a seu redor, pergunte-lhe se precisa ou não de ajuda. Não deduza, porque isso pode ser fatal. Aqui vai um caso
recente que ilustra o problema. Estando hospedado em casa de amigos, resolvi dar um mergulho na piscina. Dirigi-me, então, ao lugar de onde sempre pulava de cabeça, quando um outro hóspede me advertiu: "É melhor você pular daqui." Por uma
questão de insegurança, resolvi aceitar o conselho e pulei do ponto que ele me indicou. Ocorre que se tratava da menor dimensão da piscina, o que me fez bater a cabeça na parede oposta. Por muito pouco não morri nem fiquei tetraplégico. O
desastre ocorreu porque ele não pensou que eu fosse mergulhar de cabeça e porque ele deduzira que, pelo fato de eu ser deficiente visual, não saberia nadar bem. É justamente por isso que repito: não deduza; pergunte, porque é mais seguro.
Muitas vezes, um cego pode não responder a um interlocutor pelo simples motivo de que não sabe com quem o outro está falando. Assim, sempre que precisar dirigir-se a um deficiente visual, chame-o pelo nome e, se não o souber, toque
levemente o seu braço. Algo similar pode acontecer em ambientes muito ruidosos. Nesses casos, os videntes, sem o notar, passam a comunicar-se por leitura labial, o que é impossível a um cego. Em locais como boates, discotecas, danceterias,
estações de metrô e outros, procure tocar o braço do não vidente e falar-lhe em voz alta ou próximo de seu ouvido. Caso contrário, ele poderá não lhe responder, por não ser capaz de ler os seus lábios.
É preciso que se entenda que qualquer deficiente encontra na sua deficiência um ponto de sensibilidade. O grau varia com o nível de adaptação que o indivíduo tiver alcançado. Há alguns deficientes visuais que não se sentem bem ao ouvir
termos como "cego", "cegueira", "ceguinho" ... assim como os que têm dificuldade para caminhar são sensíveis a termos como "manco", "coxo" etc. Isso advém do fato de que tais palavras passaram a possuir conotações pejorativas, o que deprime
o portador de qualquer uma das deficiências possíveis. Em alguns casos, isso vem a ser ainda mais sutil, como ocorre com aqueles cuja inteligência se situa abaixo do normal. Explico melhor: aqueles que têm dificuldade em aprender sentem-se
muito mais ofendidos quando são chamados de "burros" do que os demais, visto que são conscientes de suas dificuldades. Assim, sempre que precisar saber algo acerca da deficiência de um não vidente, não use de rodeios. Pergunte-lhe as coisas
diretamente, porém evitando uma terminologia que possa parecer pejorativa. Repito que isso atinge os indivíduos de uma forma extremamente particular e, à medida que nos conhecemos mutuamente, passamos a compreender o que pode ou não ser
ofensivo ou mesmo deprimente.Muitas pessoas pensam que os incapazes de ver não se interessam por diversões como televisão, cinema ou mesmo teatro. Outros videntes deduzem que o cego não seria capaz de entender por si próprio o que se passa em um filme ou em uma peça.
Trata-se de um terrível engano porque tais coisas são muito próximas da realidade e o deficiente já está habituado a deduzir o que se passa, através dos sons. Quando a compreensão se lhe torna difícil, ele mesmo se encarrega de perguntar.
Finalmente, é preciso que se compreenda que um cego é um ser humano como outro qualquer e está sujeito a mudanças de estado de espírito, como os demais. Uma vez estive viajando com um dos diretores da Associação dos Profissionais de
Recursos Humanos de Sto. Amaro, que também era gerente desse setor em uma grande indústria. Durante o percurso, deu-se o seguinte diálogo:
— Os cegos são muito malandros — disse ele.
― Por quê?
— Porque muitos dos que trabalham na minha firma dão esbarrões nas mulheres e desviam dos homens.
Expliquei-lhe, então, que os cegos não são ou deixam de ser coisa alguma. Há cegos malandros e outros que são sérios, há os que gostam de trabalhar, enquanto outros, como muitos videntes, procuram motivos para tirar seu sustento sem
esforço. Assim, podemo-nos referir à maior parte dos defeitos e das qualidades que acometem todos os seres humanos. O que pode diferir é o fato de que a deficiência põe o indivíduo em estado de tensão constante, que pode exacerbar seus
caracteres positivos ou negativos. É, portanto, um equilíbrio mais frágil do que o de uma pessoa normal, mas que se torna mais estável na medida em que o deficiente se torne mais apto a resolver por si mesmo a maior parte de seus problemas.
Quanto ao diálogo em si, muito embora pessoalmente reprove esse tipo de atitude, é preciso considerar-se que os homens normais saciam sua curiosidade com os olhos e os cegos também têm necessidade desse tipo de satisfação. Se os formos
reprovar, devemos fazê-lo na exata medida em que se reprovam os videntes que quase engolem as moças passantes com os olhos, já que a falta cometida é a mesma. Mais tarde, ele me telefonou para dizer que tinha entendido o problema e que
passara a ver o deficiente como um ser humano normal, em termos de necessidades.
FIM
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'Meus olhos têm quatro patas'
- excerto:
caps. 1 a 5 -
autor:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
1993
Fonte:
http://www.redespecialweb.org/
Δ
Set.2011
publicado
por
MJA
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