
Teme-Bozu - Oda , 1832
Imagética Visual e Percepção Visual
A visualização sem experiência prévia, como é o caso dos cegos congénitos,
indicaria a existência de imagética visual independentemente da percepção
visual. Isto implicaria que os cegos congénitos seriam capazes de utilizar
outras modalidades sensoriais para integrar essas aferências através do sistema
visual para produzir conceitos passíveis de representação gráfica. Parece, pois,
que o estudo da imagética visual em cegos pode ser uma ferramenta conceptual e
metodológica útil na tentativa de responder a algumas dessas questões,
nomeadamente se é possível existir imagética visual sem percepção visual.
As características e as bases neuronais da imagética visual constituem
terreno fértil para a investigação, havendo vários grupos, nos últimos 25 anos,
a tentar compreender os mecanismos subjacentes aos processos de evocação e
produção de imagens não observadas directamente e para as quais não existem
representações retinianas: "ver com o olho da mente".
Permanece a questão de saber se essas imagens se baseiam em contribuições das
áreas visuais primárias ou de áreas visuais superiores, ou, ainda, se a
imagética e a percepção visuais partilham os mesmos mecanismos e áreas
corticais.
A complexidade do sistema visual aumenta com o facto das informações
relacionadas com a forma, o movimento, e a cor, serem conduzidas não por um
único percurso hierárquico, mas por, no mínimo, três (e possivelmente mais)
percursos cerebrais, paralelos e interactivos, de processamento. Este
processamento em paralelo levanta, ainda, outra questão: de que modo a
informação transportada por três percursos separados é conjugada numa única
imagem? A resposta conduz-nos a um processo central em cognição: o "binding
mechanism" (mecanismo de ligação).
Quando vemos um objecto podemos reconhecê-lo porque as várias características
que o identificam são relacionadas através de um "binding mechanism", seja por
activação de uma população neuronal ou por representação numa hipercoluna do
córtex visual; mas independentemente do processo, haverá sempre um padrão
específico que o permite reconhecer como único.
Podemos, todavia, "ver" exactamente o mesmo objecto com os olhos fechados,
mantendo as várias características. Deverá, então, o mesmo padrão ser activado
como anteriormente. Como pode isto ser feito sem sinais retinianos? Será
necessário reactivar todas as áreas visuais, nomeadamente o córtex visual
primário, ou poderá o processo ser conduzido unicamente por activação de áreas
superiores?
A dificuldade do estudo da imagética visual reside na pouca objectividade em
avaliar os seus processos. A experiência em imagética visual, ao contrário dos
estudos sobre memória, linguagem e controlo motor, é pessoal e de difícil
acesso.
Visto que tantas áreas interagem mutuamente, processando, cada uma,
diferentes modos e características das imagens, será que a reevocação de imagens
deverá activar a sua totalidade e todos os níveis hierárquicos?
Surgem três hipóteses principais relacionadas com este tema:
a) Existe uma
separação anatómica entre as áreas corticais visuais que processam a imagética
visual e as que servem a percepção visual;
b) As áreas utilizadas para a
imagética visual são um subconjunto das envolvidas na percepção;
c) O substrato
neuronal para a imagética e percepção visuais é o mesmo.
A maioria dos estudos iniciais em imagética visual baseava-se em psicologia
cognitiva e somente os avanços nas técnicas neuroimagiológicas, nomedamente PET
(Tomografia por Emissão de Positrão) e fRMN (Ressonância Magnética Nuclear
funcional), permitiram mostrar que a imagética mental utiliza muitas das
estratégias envolvidas na percepção (Kosslyn, Ganis e Thompson, 2001).
Kosslyn defende que a imagética, tal como outras funções cognitivas, não é
uma capacidade isolada e indiferenciada mas antes um conjunto de capacidades que
podem ser comprometidas individualmente. Quando os indivíduos rodam padrões
mentalmente, os seus lobos parietais (frequentemente bilateralmente) e frontais
direitos são, em regra, fortemente activados. Quando visualizam padrões
previamente memorizados para decidir se são mais compridos ou mais largos, as
áreas activadas localizam-se nos lobos occipitais e no córtex associativo
esquerdo.
A construção da imagem visual é realizada passo-a-passo e as imagens são
construídas através da activação de partes individuais, imaginadas
aproximadamente na mesma ordem por que são habitualmente desenhadas.
Pedindo aos sujeitos para imaginar uma letra maiúscula de olhos fechados, os
padrões de activação dependem do tamanho da letra; se é maior são activadas as
áreas da porção anterior dos lobos occipitais médios, sendo menor são activadas
as áreas posteriores. Estes resultados foram confirmados com estudos de PET
mostrando activação da área 17 quando os indivíduos formam imagens visuais
mentais, indicando que a imagética visual mental envolve representações
"pictóricas" e não somente descrições do tipo discursivo e/ou linguístico.
A maioria dos estudos relacionados com imagética visual procura activação nas
áreas visuais primárias. Estas áreas estão organizadas topograficamente,
preservando, de algum modo, a geometria espacial da retina e os seus padrões de
activação evocam a forma. Se estas áreas fossem activadas durante a imagética
visual isso significaria que a imagética se baseia em representações que mostram
a informação em vez de a descreverem, ou seja, a imagética visual é baseada em
imagens verdadeiras. A activação occipital durante a imagética visual ou mais
precisamente a activação da área 17 não está presente em todos os estudos. Para
algumas tarefas, a imagética parece basear-se em representações pictóricas no
lobo occipital; no entanto, quando a tarefa não implica a reconstrução
geométrica detalhada de uma forma, a imagética não necessita de evocar um padrão
de actividade nas áreas corticais topograficamente mapeadas. Outros autores
defendem, ainda, que a imagética visual é implementada através do mesmo
mecanismo neuronal em que se baseia a busca de memória na visão e propõem um
modelo unificador para percepção e imagética .
Bartolomeo defende que o modelo de Kosslyn da relação percepção-imagética
falha na predição de padrões de desempenho observados em doentes com lesões
cerebrais, desafiando os argumentos de Kosslyn que defendem a necessidade de
activação do córtex visual primário na imagética visual. Suportando esta ideia,
outros estudos sugerem que o córtex visual primário não está, provavelmente,
envolvido. Este resultado é consistente com os registos de neurónios individuais
em macacos conscientes, que mostram efeitos cognitivos sobre a actividade
neuronal no córtex visual secundário, mas não no primário.
Os substratos neuronais de geração de imagens mentais foram investigados por
RMN funcional tendo os resultados revelaram que somente o córtex visual
associativo, e não o primário, estava envolvido durante a condição de geração de
imagem mental. Os resultados apoiam a hipótese de que a imagética visual mental
é uma função do córtex visual associativo, e que a produção de imagens se
localiza assimetricamente à esquerda.
Os resultados de Knauff e colaboradores, também com RMNf, não confirmam
igualmente a hipótese de que o córtex visual primário esteja envolvido na
imagética visual mental, mas antes que uma rede de subsistemas espaciais e áreas
visuais superiores a suportam, reforçando a ideia que a imagética visual é uma
função do córtex visual associativo.
Roland e Gulyás defendem que as zonas utilizadas para a imagética visual são
áreas associativas parieto-occipitais e temporo-occipitais que representam
unicamente um subconjunto das áreas visuais envolvidas na percepção.
A activação de V1 ou de áreas visuais associativas adjacentes não é um
pré-requisito para a imagética visual dos padrões. Os únicos quatro campos
activados no armazenamento, na recordação e no reconhecimento foram os
pertencentes ao lobo infero-temporal posterior, ao precuneo, à circunvolução
angular e ao lobo parietal superior posterior. Estes poderão ser os locais de
armazenamento de tais padrões. A ser verdade, o armazenamento, recordação e
reconhecimento de padrões visuais complexos são mediados por áreas visuais de
nível superior. Então, a aprendizagem e o reconhecimento visuais de iguais
padrões utilizam áreas visuais idênticas, enquanto que a busca deste material, a
partir dos locais de armazenamento, activa unicamente um subconjunto de áreas
visuais. As redes extravisuais que medeiam o armazenamento, a busca e o
reconhecimento são diferentes, indicando que os processos pelos quais o cérebro
acede aos locais de armazenamento são também diferentes. Estes resultados
indicam que as áreas visuais primárias não estão envolvidas de forma
significativa na imagética visual de cenas, padrões simples ou padrões
geométricos múltiplos.
Os casos clínicos parecem indicar que áreas diferentes estão envolvidas em
ambos os processos. Pacientes com lesões localizadas perdem a capacidade de
imaginar imagens preservando simultaneamente a percepção visual e vice-versa.
Neste último estudo concluiu-se que representações internas complexas podem ser
activadas para suportar a imagética visual mesmo quando não podem suportar a
percepção, visualmente mediada, dos objectos.
Num paciente com lesões bilaterais do córtex temporo-occipital, com agnosia,
alexia, acromatopsia e prosopagnosia, a imagética mental encontrava-se
perfeitamente preservada para as mesmas entidades: reconhecimento de objectos,
leitura, cor e reconhecimento de faces. Os autores defendem que os resultados
suportam a existência de mecanismos diferentes para a percepção e a imagética
visuais. Noutro estudo a imagética visual encontrava-se preservada num paciente
com cegueira cortical total após enfarte bilateral da artéria cerebral
posterior. A doente negava a própria cegueira confundindo as imagens mentais com
percepções visuais.
Parece, pois, possível que danos graves no córtex visual primário sejam
compatíveis com a imagética visual.
Os Sonhos dos Cegos
No filme de Wim Wenders "Até ao fim do Mundo" para além da extraordinária
fotografia e banda sonora, impressionou-me de forma particular a ideia de
conseguir obter sinais eléctricos do cérebro de forma a que uma cega pudesse
voltar a ver os locais e as pessoas que conheceu ao longo da vida. Claro que
depois o filme acaba com o inverso, ou seja, retirar os sinais eléctricos do
cérebro e transformá-los em imagens, e todas as personagens querem ver os seus
próprios sonhos e quando o conseguem ficam de tal forma perturbadas que se
isolam e se tornam viciadas…
Então porque não avaliar a capacidade dos cegos congénitos para produzir
imagens através dos seus sonhos?

Desenho de uma cena onírica por um cego congénito
O sonho é uma sequência de imagens e sensações que têm lugar no cérebro durante
o sono. Mas é simultaneamente um mundo mágico, em que parece que a existência
têm mais facetas que a vida quotidiana; experiências inovadoras, fantasia,
inspiração. Um mundo em que podem acontecer todas as coisas, onde os animais
podem falar e os desejos serem realizados, até à vivência das experiências mais
arrepiantes e aterradoras.
Parece não haver contradição sobre que o sonho constitui uma parte essencial
da nossa vida mental, basta reparar no papel que ocupa nas ciências (psicologia,
psiquiatria, neurofisiologia…), nas religiões (budismo, hinduísmo…) e em muitas
outras tradições. Também parece certo que todos sonhamos, nas várias fases da
nossa vida, e que quem afirma que não sonha simplesmente não recorda o que
sonhou.
A fase do sono com maior predominância de sonhos é a paradoxal, devido às
aparentes contradições entre um cérebro excepcionalmente activo e um corpo
virtualmente inactivo. O paradoxo do sonho é que o corpo está imobilizado mas o
cérebro transmite a sensação de liberdade ilimitada de movimentos. Por essa
razão, o sonho é um estado de consciência no qual temos a experiência de uma
existência plena num mundo que não tem qualquer existência objectiva. Num sonho
tudo conta, todos os acontecimentos são vividos com intensidade. O sonho é como
a arte, na qual até mesmo os acontecimentos mais triviais se animam na sua
trivialidade e são transportados a um nível elevado do ser. Na realidade, talvez
fosse mais correcto dizer que a arte é como o sonho, visto que este precede a
arte tanto na sua história como na sua psicologia individual. As imagens do
poeta não são mais do que refinamentos da capacidade onírica de criar mundos
impossíveis e de suspender a nossa descrença na sua existência.
A distinção entre imaginação e realidade desaparece no sonho. Como Jean-Paul
Sartre diz no livro A Psicologia da Imaginação, no estado onírico falta-nos a
"categoria do real"; a consciência fica desesperadamente prisioneira do sonho e
não tem outra alternativa senão passear por entre as suas produções imaginárias.
Durante o sonho, até os estímulos externos, são integrados no sonho, como dele
provindo. Esta perda de ligação ao mundo real tem duas consequências
importantes. Em primeiro lugar, as imagens visuais que são fracas ou ténues,
durante o pensamento vígil, tornam-se imagens ou cenas, reais e nítidas, no
sonho porque não concorrem com as distracções da vida prática, durante a qual
muitas coisas competem pela atenção. Os sonhos são os exemplos mais puros da
capacidade do cérebro para condensar sentimentos em imagens que formam uma
estrutura narrativa. Estes enredos dos sonhos, por mais bizarros que possam
parecer ao acordar, são notáveis não só pela sua vivacidade mas pela coerência
que alcançam em termos de continuidade. Esta qualidade de finalização do sonho
levou muitos teóricos a acreditar que os sonhos deveriam ser feitos com
antecedência e guardados pelo cérebro para posterior utilização. Visto não haver
qualquer prova para esta pretensão, parece mais plausível assumir que o sonho é
simplesmente a transformação de pensamentos não sensoriais em imagens. O sonho
não tem tempo para pensar porque é ele próprio o pensamento à medida que este
vai progredindo. Os medos, anseios e apreensões do sonhador sobre os
acontecimentos do sonho ocorrem à velocidade do sonho. Se receamos que o monstro
encontre o nosso esconderijo, ele quase de certeza o irá encontrar; se uma cena
nos recorda um amigo de infância, esse amigo irá de repente aparecer, etc. No
sonho somos simultaneamente escritor, produtor, estrela e público de uma ficção
instantânea.
O sonho escapa, pois, à vontade e à responsabilidade do sujeito, pois a sua
dramaturgia nocturna é espontânea e incontrolada. É por isso que o sujeito vive
o drama sonhado como se ele existisse realmente fora da sua imaginação. A
consciência das verdades fica obliterada, o sentimento de identidade aliena-se e
dissolve-se. O sonho é a expressão desta actividade mental que vive em nós, que
pensa, sente, prova, especula, à margem da nossa actividade diurna, e em todos
os níveis, do plano mais biológico ao mais espiritual do ser, sem que o
saibamos.
Os sonhos raramente reproduzem experiências passadas ou recentes como na
realidade elas sucederam. O princípio guia da construção onírica parece ser
aquilo a que Freud chamou a sua qualidade Parnassiana. Ou seja, os sonhos reúnem
pessoas e acontecimentos dispersos sem respeitar o espaço e o tempo do
acontecimento real, tal como a reunião de poetas e filósofos mundiais nas
pinturas Parnassianas de Rafael, Mantegna e outros. Os sonhos não se interessam
por reviver o passado do sonhador; apresentam uma versão imaginária da sua
história psíquica, tal como os romancistas transportam as suas memórias do mundo
empírico, através de um filtro imaginário que as rearranja de acordo com uma
ordem temática. Até mesmo as pessoas importantes na vida do sonhador aparecem ou
como composições delas próprias com outras pessoas, ou como composições dessas
pessoas, ao longo do tempo, saídas da memória do sonhador. Esta qualidade
extra-temporal da imagem onírica é provavelmente a principal causa da sua
vivacidade. Sonhamos a imagem não a partir de uma fotografia arquivada na
memória, mas a partir da imaginação, ou seja, a partir de uma biblioteca
neuronal de semelhanças metafóricas: a imagem é meio sentimento e meio objecto.
Até as próprias ideias se podem tornar objectos nos sonhos.
Num certo sentido, é óbvio que os sonhos são uma distorção da realidade, mas
em muitos casos esta é uma visão parcial. Se tomarmos o sonho no seu terreno
temos de assumir que ele cria o seu mundo de acordo com um princípio autóctone
que nada tem a ver com as concepções da realidade durante a vigília. Não
pensamos nas imagens poéticas como distorções da realidade, embora sejam
frequentemente mais ultrajantes que as imagens oníricas. Percebemos estas
imagens como metáforas que implicam parecença, mas no estado onírico a metáfora
perde toda a sua base de semelhança. A imagem onírica é literalmente uma
metáfora: a semelhança torna-se identidade, e só quando acordamos pensamos no
sonho como sendo bizarro ou irreal.
Como consequência, a primeira questão que se coloca sobre o sonho é: qual o
seu significado?. O Egipto antigo dava aos sonhos um valor sobretudo
premonitório. Sacerdotes, escribas sagrados ou onirocríticos interpretavam nos
templos os símbolos dos sonhos, segundo chaves transmitidas através dos tempos.
Desde a famosa interpretação de José, do sonho do Faraó, no Antigo Testamento,
sobre as vacas gordas e as vacas magras, passando pelo sonho de outro José
Bíblico sobre a fuga para o Egipto, até ao presente, os sonhos têm sido
considerados como uma linguagem simbólica através da qual a natureza, ou os
deuses, ou algum espírito interior, se comunica connosco. A oniromância, ou
adivinhação pelos sonhos era praticada em toda a parte. Para os Negritos das
Ilhas Andamane, os sonhos são produzidos pela alma, que é considerada a parte má
do ser. Ela sai pelo nariz e faz fora do corpo as proezas de que o homem toma
consciência em sonho. Para todos os índios da América do Norte, o sonho é o
sinal último e decisivo da experiência. Para os Bantos do Congo, alguns sonhos
são produzidos pelas almas que se separam do corpo durante o sono e vão
conversar com as almas dos mortos. Estes sonhos têm um carácter premonitório
sobre a pessoa, ou então podem ser verdadeiras mensagens dos mortos aos vivos,
que interessam ao conjunto da comunidade.
Os sonhos podem igualmente ser inspiradores tanto na arte como na ciência.
Considerem-se os seguintes exemplos: August Kekulé descreveu a estrutura
hexagonal do benzeno, Otto Loewi a transmissão química dos impulsos nervosos,
Dmitry Mendeleyev a Tabela Periódica dos Elementos, Stevenson o enredo de Dr.
Jekyll e Mr. Hyde, inspirados nos seus próprios sonhos (Stone, 1993). Em
Portugal existe um exemplo paradigmático nos diários de sonhos de Fernando
Lanhas e a sua subsequente representação em obras de arte.
No que respeita a interpretação dos sonhos, a figura mais importante é
Sigmund Freud, com a publicação do seu livro A Interpretação dos Sonhos em 1900.
Confrontado com as distorções do sonho sobre a experiência vivida, Freud
explicava que o sonho era um puzzle e que com a compreensão adequada, podia ser
descodificado e usado como um instrumento na psicanálise dos seus doentes com
neuroses. Freud acreditava que os sonhos eram "guardiães do sono" e que estavam
carregados com materiais psíquicos, sensórios, que emergiam do id (o
inconsciente), transformados em imagens que apresentavam um conteúdo latente de
uma forma disfarçada. Por essa razão, segundo Freud, não haveria sonhos
inocentes; todos os sonhos seriam lobos com pele de cordeiro. Houve, no entanto,
muitos desafios à teoria, começando com o filósofo Ludwig Wittgenstein e com o
colega de Freud, Carl Jung. Tanto um como outro colocavam certas reservas ao
factor de disfarce. Wittgenstein dizia que se um símbolo num sonho não era
percebido, então não se comportava como símbolo, não havendo razão para o tratar
como tal. Jung achava que os sonhos fazem parte da natureza, que não tem
intenções de enganar, mas sim exprimir algo da melhor forma que sabe.
Mais recentemente, com o avanço da neurofisiologia, os cientistas começaram a
interpretar as chamadas distorções dos sonhos, como expressões de um processo
associativo normal onde o cérebro classifica informação perceptiva que chega e a
correlaciona com informação já armazenada na sua memória. Os sonhos parecem não
se importar se lhe prestamos ou não atenção. De facto, a maioria dos sonhos são
imediatamente esquecidos. Os sonhos, quer sejam recordados ou não, parecem ser
indispensáveis para o equilíbrio psíquico de formas que parecem ter pouco a ver
com o seu significado.
Em termos neurofisiológicos foi de extrema importância a descoberta dos
Movimentos Oculares Rápidos (MORs) em 1953 por Aserinsky e Kleitman, que
rapidamente deram nome à fase de sono paradoxal – Sono REM – Rapid Eye Movements.
Nos finais dos anos 50 Jouvet descreve a atonia muscular em REM. Em 1960, vários
artigos, debruçam-se sobre a função do REM, a recordação do sonho em REM
relacionada com a presença ou ausência de actividade electromiográfica e a
relação entre a existência de MORs e a "visualização" no sonho.
Michel Jouvet descobre ainda que os animais põem em prática rotinas
predatórias durante os seus sonhos, activando cirurgicamente os sistemas
musculares de gatos domésticos, normalmente inactivos durante o sono, e
descobrindo que eles realizavam movimentos de espera de presa e de ataque
durante o sono REM; estas rotinas eram executadas, no entanto, aleatoriamente,
tal como os sonhos que parecem ignorar uma sequência lógica. A contribuição do
trabalho de Jouvet indica que os sonhos humanos podem simplesmente envolver
processos predatórios mais complexos, grande número envolvendo comportamento
social (sucesso, embaraço, frustração). Nesse sentido, os sonhos podem ser úteis
do mesmo modo que o treino é necessário para o músico ou o atleta, que se mantêm
em forma tocando ou correndo, para estarem preparados para as verdadeiras
actuações. É igualmente na década de 60 que se iniciam os estudos com cegos,
defendendo Berger a relação entre o EEG e os movimentos oculares em REM em
indivíduos cegos; a ausência daqueles em cegos congénitos; e a relação entre os
MORs e os movimentos de seguimento visual durante o sonho. Descobre-se ainda que
existe um aumento da actividade do nervo óptico durante o sono REM.
Brooks e Bizzi descrevem a partir de 1963 as Ondas Ponto-Geniculo-Occipitais
(PGOs) dizendo: "O primeiro sinal, anunciando o início de um episódio de sono
REM era, invariavelmente, o aparecimento de ondas de sono profundo no tronco
cerebral (…) Os movimentos oculares nunca ocorriam na ausência de actividade de
sono REM, mas nem todas as ondas REM se associavam a movimentos oculares".
Registadas na protuberância, no núcleo geniculado dorsal e no córtex occipital,
parecem fornecer informação sobre a direcção dos movimentos oculares rápidos que
começam poucos milisegundos após o ínício da onda, havendo estudos imagiológicos
que mostram um aumento do metabolismo de glicose no córtex visual concomitante
com as PGOs. Estes estudos, conduzidos na sua maioria por McCarley, Steriade,
Livingstone e Hubel, nas décadas de 70 e 80, procuravam um sentido para a
activação visual no sonho, os MORs e aquelas ondas. Aliás, em 1989, conseguiu-se
induzir uma paralisia transitória do movimento ocular provocando sensação
subjectiva e ilusória de movimento, sendo descrito que as PGOs podem interromper
os processos cognitivos durante os sonhos, provocando descontinuidades e
bifurcações e a consequente estranheza onírica.
Uma das mais provocadoras teorias pós-freudianas é a do psicólogo e analista
de computadores Christopher Evans de1983. Evans contraria a teoria de Freud de
que os sonhos são os guardiães do sono. Em vez disso, defende que o corpo
precisa de dormir para dar tempo ao cérebro para sonhar. Nós não dormimos porque
estamos cansados mas porque o cérebro precisa (em linguagem de computadores) de
tempo "off-line" para processar a enorme quantidade de informação absorvida
durante o dia. Nesta analogia cérebro-computador: aquele deverá fechar todos os
canais de entrada e perder as suas defesas, enquanto passa em revista as
experiências sensoriais do dia, correlaciona os seus programas antigos (memória
de curto e de longo prazo), incluindo aqueles que dizem respeito a conduta
social, capacidades, modos, conflitos vindouros e outros já presentes. Na
definição de Evans o sonho é uma intercepção momentânea da mente consciente no
material que está a ser analisado, alterado, etc., durante o sono REM, embora a
experiência onírica possa representar apenas uma pequena fracção de todo o
trabalho onírico levado a cabo pelos circuitos corticais do cérebro. Por outras
palavras, se o sonho não distorce, se representa tudo tal como foi apercebido
durante a vigília, estaria fora dos processos principais do cérebro cuja função
não é repetir o que já sabe mas sim preparar o organismo para a sobrevivência
num mundo aberto e surpreendente que nunca repete os seus desafios e perigos. As
imagens metafóricas do sonho, seriam então um meio pelo qual o cérebro filtraria
os padrões da experiência que são de algum modo essenciais para a prontidão
psíquica do organismo ao encontrar o mundo. O neurobiologista francês
Jean-Pierre Changeux sugere que os sonhos são meios através dos quais o cérebro
estabiliza padrões neuronais iniciados durante o dia. Changeux diz que durante o
estado onírico o cérebro está desatento, ou seja, não está direccionado na
gestão da importante relação entre o organismo e o seu ambiente. Por essa razão,
o pensamento onírico toma algumas das características do discurso delirante:
palavras, ideias e imagens são ligadas de uma forma ilógica, aparecendo uma
componente aleatória. Esta aleatoriedade, no entanto, pode estar relacionada com
o modo como o cérebro processa os acontecimentos mentais e os preserva como
categorias neuronais para utilização futura. Tal como os movimentos dos gatos de
Jouvet, os sonhos são colagens comportamentais sem qualquer ordem; mas, como
parte do sistema de codificação do cérebro, interligam padrões de comportamento
que, de outro modo, se poderiam perder por completo, se o cérebro estivesse
completamente adormecido.
Estas teorias variam no grau de ênfase colocado nas componentes cognitivas,
desde as que defendem que as experiências oníricas são simples subprodutos de
outras actividades (que se pensa suportarem funções importantes), até outras
onde os aspectos cognitivos são essenciais. Berger defendia que uma função do
sono REM seria manter, via activação oculomotora, a actividade do sistema
visual, importante para a coordenação binocular no estado de vigília. Crick e
Mitchison consideravam o sono REM como um período em que o cérebro se libertava
de memórias não desejadas, acumuladas durante experiências de vigília. O
processo seria conduzido por remoção de determinados modos de interacção nas
redes neuronais do córtex cerebral, defendendo os autores um mecanismo de
aprendizagem inversa (Reverse Learning Mechanism), para que a memória do cérebro
sobre o sonho inconsciente fosse enfraquecida pelo próprio sonho ao invés de ser
realçada. Sustentavam, ainda, que ao contrário do que sucede nos computadores, o
armazenamento de memórias no cérebro, é distribuído, sobreposto e robusto, pelo
que os sistemas são muitas vezes sobrecarregados. Como as memórias armazenadas
partilham características comuns, uma estimulação aleatória produz,
frequentemente, resultados ou saídas mistos. O "reverse learning" poderia,
então, reduzir a sobrecarga, durante o sono REM, explicando os fenómenos de
condensação, tão comuns no sonho. Os autores referem ainda que a ausência de
sono REM na equidna e em duas espécies de golfinhos (com cérebros relativamente
grandes) sugere que a existência de REM permita que o cérebro seja menor do que
na sua falta.
A hipótese de Hobson e McCarley da activação-síntese considera o sonho como
consequência da interpretação que o prosencéfalo faz do barramento da actividade
do tronco cerebral recebida durante o sono REM, sintetizando num argumento
onírico os resultados dessa activação. Em 2000, Hobson propõe uma actualização
do modelo chamando-lhe AIM (Activation, Input Source, Modulation), que se
caracteriza pela introdução de um novo mecanismo de modulação e pela importância
dada à motivação emocional do sonho. Antrobus também considera o sonho como um
produto da activação cortical e baseou-se na interpretação da actividade
espontânea do córtex, na ausência de informação aferente externa, e durante o
período do patamar de elevada sensibilidade, para justificar os acontecimentos
qualitativos específicos que ocorrem durante o REM. Outra das hipóteses
propostas para o processo onírico é chamada "a sensory image-free hypothesis",
assumindo que um estado com um padrão de EEG de sonolência (NREM fase 1) e
atonia muscular produzem um fluxo de pensamento vago e desorganizado como pano
de fundo durante o sono REM. A excitação fásica do cérebro que ocorre
concorrentemente com o disparar dos MORs activa o sistema de memória
hipocampo-neocortical e retira imagens sensoriais do reservatório de memórias do
cérebro. O sonhador forma uma associação livre sobre as várias imagens
sensoriais e constrói uma história onírica.
Os autores mais cognitivos, por outro lado, sugerem que o sonho depende das
capacidades de organização de experiências na memória, e de acesso e
reorganização dessas experiências, independentemente de estímulos ambientais
externos (Foulkes, 1982). Esta abordagem cognitiva não se baseia em
acontecimentos fisiológicos específicos para explicar os factos oníricos e
considera o sonho como uma espécie de pensamento.
Uma dificuldade fundamental em verificar se sonhos com conteúdo visual surgem
em cegos congénitos é a falta de medidas fisiológicas objectivas aceitáveis.
Visto que para indivíduos normovisuais a experiência onírica se associa à
actividade do córtex visual, era ideia generalizada que os cegos congénitos não
sonhariam Isto foi fortemente refutado por vários autores e é hoje em dia aceite
que os sonhos dos cegos são vívidos e gratificantes. Aceita-se ainda
correntemente que os cegos congénitos, ou aqueles que perderam a visão antes dos
5-7 anos, têm sonhos sem conteúdo visual. Alguns autores referem mesmo que os
cegos congénitos relatam sonhos que não incluem qualquer descrição de cenas ou
paisagens, contendo unicamente sons, sensações tácteis ou experiências
emocionais. No entanto, dados laboratoriais obtidos para 10 sujeitos cegos
congénitos mostraram que os sonhos de cegos e normais eram idênticos, com
excepção para 2 cegos cujos sonhos não apresentavam componentes visuais.
A pergunta que se impõe formular é se esta imagética visual dos cegos
congénitos tem correspondência sob o ponto de vista da actividade cerebral.
Para esclarecer esta questão recorremos à electroencefalografia, dado que a
dinâmica de certas actividades rítmicas cerebrais pode dar indicações fiáveis da
activação das áreas corticais responsáveis pelo processamento das imagens
visuais. Neste contexto, é importante examinar os resultados de outros estudos em que
o comportamento de cegos congénitos em testes de conteúdo visual foi
investigado.
Estas conclusões têm sido, no entanto, questionadas. Certos estudos
envolvendo imagética visual, relatam que os cegos congénitos apresentam apenas
ligeiras diferenças de desempenho quando comparados com normovisuais. O
conhecimento espacial e as propriedades métricas parecem estar preservadas nos
cegos congénitos. Em representações espaciais de matrizes bi e tridimensionais
de diferente complexidade, os congénitos só têm pior desempenho nas últimas. Um
recente estudo psicológico conduzido em cegos congénitos indicou que estes
possuem capacidade para gerar imagens visuo-espaciais.
Estas observações levaram a concluir que os cegos congénitos têm certas
capacidades de avaliação de representações espaciais que são, em geral,
consideradas como dependendo da actividade do sistema visual.
Os relatos de cegos adquiridos assemelham-se muito aos dos normovisuais, com
relatos de formas, cores, movimento, etc. Para além disso, quando lhes é pedido
para imaginarem qualquer objecto, os seus olhos têm movimentos, como se para
imaginar o objecto fosse necessário perscrutá-lo com os olhos. Presume-se que os
cegos que não tenham perdido as memórias visuais, preservam a capacidade de
activação do córtex visual. A grande questão é saber o que se passa quando se
começam a perder essas memórias, e particularmente quando essas memórias não
existem de todo, como é o caso dos cegos congénitos.
Como serão os sonhos de um indivíduo que viva permanentemente sem luz ou
dentro de uma caverna? Serão coloridos, terão formas? São questões deste tipo
que se colocam em relação aos cegos de nascença. Quando se pergunta a um cego se
ele sonha a resposta é imediata: "Sim!" Mas se lhe perguntamos se ele vê imagens
ou cenas no sonho, a resposta será ambígua porque ele não tem experiência vivida
do que é ver. Isso implica que os relatos oníricos, por si só, são difíceis de
interpretar como testemunho da presença de activação visual no sonho desses
cegos. Uma possível abordagem será considerar os ritmos cerebrais e a sua
conhecida relação com a activação visual.
É possível também determinar se os cegos congénitos têm sonhos com conteúdos
de imagética visual, no caso deles serem capazes de os representar graficamente.
É conhecida a existência de correlações entre o EEG e a actividade visual. A
maioria dos autores considera a atenuação ou o bloqueio da actividade alfa como
um indicador da imagética visual em geral. A potência do alfa diminuiu no
hemisfério direito quando os sujeitos desempenharam uma tarefa imaginária de
rotação de blocos, e foi suprimida quando os sujeitos observaram ou jogaram Pong
(um jogo de ténis na TV); o efeito para a assimetria do alfa na região parietal
era igual ao observar simplesmente o jogo ou jogando-o, mas o envolvimento motor
potenciava a assimetria nas derivações centrais e temporais. As bandas de
frequência do EEG correlacionam-se com a imagética visual e com o pensamento
abstracto; e a potência do alfa é mais afectada por imaginação visual que por
imaginação abstracta. A actividade alfa parieto-occipital é fortemente suprimida
quando os sujeitos visualizam e avaliam letras, mas a formação de uma imagem
visual provoca menor supressão que a inspecção directa do padrão. Estudos
magnetoencefalográficos mostraram igualmente uma atenuação da actividade alfa
200 ms após o aparecimento de um estímulo visual e também durante imagética
visual.
A origem occipital das ondas alfa foi proposta, em 1935, por Adrian e
Yamagiwa ao detectarem que aquelas não estavam em fase ao longo de todo o
escalpe. A definição internacionalmente aceite de ritmo alfa foi proposta em
1966 como sendo "um ritmo, normalmente com uma frequência de 8-13 Hz em adultos,
mais proeminente nas áreas posteriores, presente de uma forma mais acentuada com
os olhos fechados e atenuado durante a atenção, especialmente a visual"
A análise de conteúdo onírico está sujeita a muitas críticas, devido
principalmente à sua subjectividade. No entanto, Hall e Van de Castle propuseram
um índice altamente reprodutível que é largamente utilizado em análise de
conteúdo onírico. Nenhum dos estudos mencionados anteriormente utilizou este
sistema de classificação.
A pesquisa por nós conduzida no Laboratório de Electroencefalografia e Sono
da Faculdade de Medicina de Lisboa (Bértolo H; PaivaT; Pessoa L; Mestre T;
Marques R; Santos R: Visual dream content, graphical representation and EEG
alpha activity in congenitally blind subjects. Cognitive Brain Research
15(3):277-84, 2003) é baseada em dados neurofisiológicos tentando trazer uma
contribuição real ao estudo dos sonhos. As experiências com dados
neurobiológicos são importantes no avanço do estudo do sonho. O estudo por nós
apresentado demonstra que os cegos congénitos podem possuir imagens visuais
durante o sonho, confirmando simultaneamente a atenuação da actividade alfa como
uma medida fisiológica da actividade visual. Na obtenção destes resultados
tentámos recolher de forma cuidadosa dois tipos de dados. Por um lado, os dados
psicológicos (relatos oníricos, representações verbais e pictóricas do conteúdo
onírico) analisados com instrumentos validados e precauções metodológicas tais
como a utilização de juízes que ignoravam se os dados provinham dos voluntários
cegos ou normovisuais. Por outro lado, as variáveis fisiológicas (análise
espectral do EEG em diferentes derivações). É a comparação dos dados
neurofisiológicos e psicológicos que nos permite tirar conclusões. Pensamos ser
esta a metodologia mais adequada e que permite tirar conclusões fiáveis
relativas à actividade psicológica.
Os resultados por nós obtidos parecem infirmar a ideia generalizada, mesmo
entre investigadores de sonho, que os sonhos de cegos congénitos são desprovidos
de imagens visuais. Por análise da amostra verifica-se que dois dos voluntários
cegos não apresentaram conteúdos visuais nos seus relatos pelo que poderá
acontecer que alguns cegos não produzam imagens virtuais.
A presença de imagens visuais em cegos congénitos confirma a ideia de que o
sonho é um processo "construtivo" que não consiste simplesmente na reprodução da
experiência perceptiva. Montangero defende a existência de dois tipos de imagens
nos sonhos: enquanto a maioria das imagens oníricas são construções originais,
algumas são baseadas em resíduos perceptivos. Já que os cegos não possuem,
naturalmente, estas imagens, parece provável que a precisão e vivacidade das
suas imagens não seja completamente comparável com as dos normovisuais o que
poderá explicar a menor taxa de recordação neste grupo, já que se formulou a
hipótese que a recordação onírica é influenciada pela riqueza e vivacidade do
aspecto visual dos sonhos.
Pensamos que os resultados apresentados constituem uma nova contribuição para
a psicologia cognitiva em geral, favorecendo reflexões e novas ideias de
pesquisa entre os investigadores que estudam a natureza das imagens visuais ou o
desenvolvimento cognitivo. Seria, por exemplo, interessante estudar como e
quando se desenvolve a capacidade imagética visual nos cegos congénitos.
Os nossos dados sobre o conteúdo visual nos sonhos de cegos congénitos
diferem fortemente de estudos publicados anteriormente.
Os relatos oníricos dos indivíduos cegos são vívidos com referências tácteis,
auditivas e cinestésicas, mas igualmente com conteúdo visual. Não foram
encontradas diferenças estatísticas nem para a Taxa de Actividade Global (TAG)
nem para a Taxa de Actividade Visual (TAV) entre ambos os grupos (cegos e
normovisuais). No entanto, a potência do alfa apresentou diferenças entre os
grupos, para a derivação C4, com uma actividade mais baixa nos cegos e uma maior
variabilidade em O2 para os cegos. Quando se comparam as variáveis de Conteúdo
com as componentes espectrais do EEG, observa-se em ambos os grupos uma
correlação negativa entre a TAV e a potência do alfa: quando a taxa de
actividade visual aumenta, a potência do alfa diminui. Este resultado é válido
para ambos os grupos.
Quanto às tarefas "gráficas": representação de uma cena onírica e
representação de uma figura humana, todos os voluntários desempenharam a
primeira tarefa de representação gráfica, o desenho de uma cena onírica que era
perfeitamente reconhecível. Os indivíduos cegos foram capazes de representar
graficamente as cenas que tinham previamente descrito oralmente. A média
calculada para a complexidade foi 2 para ambos os grupos, não apresentando
diferenças estatisticamente significativas. Relativamente ao conteúdo, as
paisagens encontravam-se em 70% dos desenhos, os objectos em 90% e as figuras
humanas em 10%. Não foram encontradas diferenças estatísticas significativas
entre os grupos.
Relativamente ao "Desenho da Figura Humana" a única diferença
significativa entre os grupos para o Teste de Quoc Vu relaciona-se com a
ocupação vertical do desenho: os cegos tendem a desenhar no lado esquerdo da
folha de papel; na escala de Goodenough, a figura humana era reconhecível em
ambos os grupos, e das 51 alíneas de caracterização do desenho, só uma foi
estatisticamente diferente entre grupos: os cegos representam mais
frequentemente as orelhas que os indivíduos normovisuais.

Desenhos da figura humana:
os dois primeiros de cegos congénitos,
os 2 últimos de normovisuais
Resumindo, os principais resultados são:
a) os cegos congénitos não só são
capazes de descrever verbalmente o que poderá ser o conteúdo visual dos seus
sonhos, mas conseguem apresentar, através de desenho, uma representação gráfica
de tal conteúdo. As diferenças entre cegos e normovisuais são apenas ligeiras.
b) em ambos os grupos foi encontrada uma correlação negativa significativa
entre o Conteúdo Visual dos sonhos e a potência do alfa. As relações encontradas
entre os conteúdos oníricos e as componentes espectrais do EEG são concordantes
com o que se sabe sobre o funcionamento cognitivo em vigília mostrando que a
utilização do sonho como paradigma de estudo é acertada e deverá ser continuada.
A observação da correlação conteúdo visual/atenuação do alfa juntamente com a
inexistência de diferenças nas representações gráficas leva-nos a propor que os
cegos congénitos conseguem produzir imagens virtuais, isto é, que os seus sonhos
correspondem à activação de regiões corticais visuais. Parece, pois, existir actividade visual nos sonhos de cegos congénitos
indicando ser possível ter percepção visual sem aferências visuais externas, e
sem experiência prévia de visão.
ϟ
Hélder Bértolo é Assistente da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa e Investigador do Laboratório de Estudo do Sono,
Cronobiologia e Telemedicina
Δ
3.Abr.2010
publicado
por
MJA
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