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 Sobre a Deficiência Visual

O Jogo Simbólico da Criança Cega

Sheila Correia de Araújo

-excerto-

The Wounded Angel - Hugo Simberg, 1903
Anjo ferido - Hugo Simberg, 1903


INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 - HISTORIANDO ACERCA DA CEGUEIRA
1.1 REDESENHANDO A CEGUEIRA A PARTIR DA HISTÓRIA
1.2 RECONCEITUANDO A CEGUEIRA A PARTIR DA FENOMENOLOGIA DAS PERCEPÇÕES
1.3 RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE IDENTIDADE DA PESSOA CEGA
1.4 CONCEITUANDO A CEGUEIRA
1.5 ESPECIFICIDADE DA CEGUEIRA
CAPÍTULO 2 - O JOGO
2.1 BREVE CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO JOGO
2.2 O JOGO E A EDUCAÇÃO
2.3 CARACTERÍSTICAS DO JOGO
2.4 O JOGO SIMBÓLICO
2.4.1 Estágio Sensório-Motor e o Jogo de Exercício
2.4.2 Estágio Pré-Operatório e o Jogo Simbólico
2.5 CARACTERÍSTICAS DO JOGO SIMBÓLICO DA  CRIANÇA CEGA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS

 

INTRODUÇÃO

[...] a imitação não assenta numa técnica instintiva ou hereditária: a criança
aprende a imitar e essa aquisição suscita, tanto quanto as demais, todos
os problemas relativos à construção sensório-matara e mental.
(PIAGET, 1990).

 

A presente pesquisa tem como proposta compreender o jogo simbólico da criança cega de dois a quatro anos e o interesse pelo tema teve sua origem há mais de vinte anos, quando escolhi ser terapeuta ocupacional. Essa escolha tornou-me uma profissional interessada nas questões das pessoas com deficiência e nas suas possibilidades.

O foco de interesse de minha pesquisa se deteve sempre na infância e, conseqüentemente, nos seus jogos e brincadeiras e, como apontado por Motta e Takatori (2001), estas são atividades muito estudadas pelos terapeutas ocupacionais que atuam na área de pediatria. Nesta atuação, cujo objetivo é trabalhar com crianças para promover o seu desenvolvimento global, meu interesse pelas brincadeiras e os jogos infantis foi estimulado.

Como eu já me encontrava implicada com a temática de crianças com deficiência visual, pois até o momento prestava assistência a essas crianças em consultório particular, tive a oportunidade de, em 1998, ser convidada para ser terapeuta ocupacional do Centro de Intervenção Precoce (CIP) do Instituto de Cegos da Bahia (ICB). Juntamente com um grupo de profissionais, iniciei a implantação desse serviço que, atualmente, é centro de referência para o nosso Estado.

A partir de então, com um número mais expressivo de crianças com deficiência visual sendo atendidas por mim, é que surge a problematização que fomenta esta pesquisa. Comecei a perceber várias questões pertinentes à minha prática, como: por que as crianças por mim atendidas usavam as duas mãos para levar a colher à boca? Explico melhor: os terapeutas ocupacionais aprendem que devem ensinar à criança cega sempre mostrando através do corpo junto ao dela, como, por exemplo, levar a colher à boca para comer. Logo, as crianças imitam o terapeuta e seguram com a mão direita a esquerda, para levar a colher à boca, pois é assim que elas internalizam e imitam como se leva a colher à boca para se alimentar.

Na mesma época, outra questão por mim percebida era o fato das crianças terem dificuldades com certas situações, e logo eram taxadas de deficientes ou atrasadas pelos professores/terapeutas/pais. Por outro lado, essas mesmas crianças tinham outras condutas muito pertinentes e com capacidade para demonstrar ou explicar conceitos abstratos. Daí, eu pensava: ora, então ela não é tão atrasada!
Concomitante a estas colocações a respeito da minha prática clínica no Centro de Intervenção Precoce do Instituto de Cegos da Bahia, foi surgindo uma necessidade maior de sistematizar o meu conhecimento, através de uma pesquisa acadêmica mais formal e, portanto, que viesse a contribuir, efetivamente, com mudanças de paradigmas acerca das crianças cegas.

A tentativa de responder a tais questões do cotidiano profissional, expostas anteriormente, e que surgiram do exercício diário no atendimento de crianças cegas, além de fomentar outras, nasce com o meu ingresso no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, na área de concentração Educação e Diversidade, onde se insere o presente estudo.

Partindo do pressuposto de que a brincadeira e os jogos são inerentes à condição da criança, e que essas atividades são alicerces para que o desenvolvimento cognitivo ocorra em direção a um equilíbrio que provoque aprendizagem, é que esta se pesquisa ancorou.

Por outro lado, pensar que a criança deficiente ainda é vista como uma criança doente, sem condições de brincar e, por conseqüência, sendo poupada de um direito constitucional estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Art. 16, que remete ao direito à liberdade e compreende diversos aspectos, inclusive brincar, praticar esporte e divertir-se, por si só justifica este trabalho. Também a literatura aponta para a escassez de materiais referentes ao brincar de crianças cegas e, como afirma Silveira, Loguércio e Sperb (2000, p. 134): "Muito se tem estudado a respeito do brincar em crianças de visão normal, no entanto, com relação a deficientes visuais, são restritas as pesquisas realizadas, principalmente no Brasil."

Além das justificativas apontadas, também o presente estudo pretende contribuir para a lacuna existente no conhecimento da especificidade da criança cega e o seu brincar de jogo simbólico, entendendo essa atividade como essencial ao desenvolvimento cognitivo de qualquer criança.

O objetivo geral da pesquisa é compreender como as crianças cegas de dois a quatro anos brincam e elaboram o jogo simbólico e como constroem o conhecimento acerca do mundo ao seu redor. Como objetivos específicos: analisar a construção do jogo simbólico; identificar a estruturação da sua ação lúdica; e o uso da imitação do seu entorno. [...]


CAPÍTULO 1

HISTORIANDO ACERCA DA CEGUEIRA
 

Aprendi que se depende sempre, de tanta muita diferente gente.
Toda pessoa sempre é a marca das lições diáriasde outras tantas pessoas.
Gonzaguinha (1982)
 

Ao longo de toda a trajetória da evolução do homem, ter um corpo biologicamente perfeito, com todos os canais sensoriais abertos ao mundo, foi e é considerado imprescindível para se alcançar o status de humano.

Qualquer desvio dessa ordem era e é, ainda, considerada uma tristeza para uma pessoa e sua família. A não aceitação social do diferente é mais ou menos cristalizada, a depender dos valores de cada época, e não se constitui um fenômeno isolado, antes pertence a uma cadeia sucessiva de situações socioeconômicas, políticas, religiosas, tecnológicas e de transformação mundial. Entender como as pessoas deficientes foram vistas ao longo da história ajudará a compreender as representações sociais acerca da cegueira.

Este capítulo pretende desmistificar a cegueira enquanto incapacidade e limitação, bem como pensar na deficiência visual não apenas como um déficit orgânico, mas inclusive como uma constituição histórico-cultural, construída por séculos, a partir de uma concepção "visocentrista".


1.1 REDESENHANDO A CEGUEIRA A PARTIR DA HISTÓRIA

Na atualidade, para compreender a relação que a sociedade estabelece com as pessoas deficientes visuais, torna-se imprescindível historiar como ao longo do tempo foi evoluindo a concepção filosófica do entendimento sobre qualquer pessoa que se desvia do padrão normal referido. Esta compreensão acerca das deficiências sempre é considerada, levando-se em conta os valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos do pensamento do homem de cada época.

No entanto, a visão ocupa, desde as mais antigas épocas, um lugar de supremacia em relação aos outros órgãos dos sentidos. No ensaio "De olhos Vendados", que compõe o livro fruto do seminário promovido pela FUNARTE, com o título "O olhar", Adauto Novaes (1988, p. 9) escreve:

Se a realidade é o domínio do impreciso, das sombras e das coisas ocultas, por que a ciência - ou a precisão cientifica - passou a ter soberania tão absoluta sobre os sentidos? E por que, dentre os sentidos, o olhar é o primeiro a ser chamado à ordem? Seria por que, de todos os sentidos, "a vista é o que nos faz adquirir mais conhecimentos, nos faz descobrir mais diferenças?" Ou é em virtude do prestígio que a visão passou a ter em nossa cultura, concentrando em si a inteligência e as paixões? Por que o olhar ignora e é ignorado na experiência ambígua de imagens que não cessam de convidá-lo a ver?

Este fragmento do texto pode proporcionar a "visão" que se tem da importãncia do ato de ver. Inicialmente, existem duas formas de entender as deficiências: a primeira é a concepção pré-científica, onde todos os acontecimentos eram respondidos à luz de valores culturais e éticos, ao invés de uma explicação natural dos eventos; assim, na Antiguidade o comportamento diferente era associado a forças sobrenaturais. Existia a prática da trepanação, que era a abertura de orificios no crãnio para "afugentar os maus espíritos", sugerindo, segundo Amiralian (1986), a concepção demonológica.

Também na Grécia o culto à força e à beleza fisica impedia a aceitação de qualquer mutilação corporal; em Esparta, considerada terra de um povo guerreiro, não havia espaço para pessoas aleijadas, sendo que os imaturos, os fracos e os defeituosos eram propositalmente eliminados. Já os romanos descartavam-se de crianças deformadas e indesejadas, lançando-as em esgotos localizados, ironicamente, ao lado externo do Templo da Piedade (ARANHA, 2001).

Para a compreensão desses procedimentos, a autora lembra a necessidade de serem os mesmos observados no contexto da organização social, política e econômica vigente na época. Fundamentadas na agricultura, pecuária e artesanato, as atividades  do dia-a-dia eram executadas por pessoas do povo que não detinham qualquer poder nos âmbitos referidos, ou bens de posse e de uso da nobreza, a quem serviam e obedeciam, por serem considerados sub-humanos. Nesse contexto, a pessoa com deficiência, à semelhança do povo, parecia não ter importância enquanto ser humano, já que o seu abandono e extermínio não geravam problemas éticos ou morais.

Esta é uma visão global sobre as pessoas deficientes e, quando se trata especificamente da pessoa cega, existem filósofos que teorizam sobre os olhos possuírem uma relação mística com a alma. Historiadores relatam que os crimes sexuais e sociais, considerados delitos graves, provocavam o pior dos castigos para o homem: "[....] a perfuração dos olhos" (AMIRALIAN, 1997, p.27).

Na Idade Média, foi intensificada a crença no sobrenatural e, com o avanço do cristianismo, ora os cegos eram tratados e reverenciados como adivinhos, ora como não possuidores de alma, e mesmo endemoniados, sendo "[...] recomendado por cartas papais uma ardilosa inquisição, para obtenção de confissões de heresia, torturas, açoites, outras punições severas, até a fogueira" (ARANHA, 2001, p. 4).

Outra forma de compreender a deficiência foi denominada de concepção científica, que surge na época do Renascimento com a preocupação voltada para o "indivíduo doente". Nesse período, houve a famosa revolução dos grilhões, feita por Pinel nos hospitais psiquiátricos, dando-se início ao tratamento mais humanitário para pessoas com deficiência.

À época, surgiram instituições asilares e de custódia, denominadas instituições totais, que tinham como objetivo o tratamento médico e/ou educacional, como sugere Aranha (2001). Para a autora, esta institucionalização era uma prática que tinha como objetivo a retirada da pessoa de sua comunidade de origem, sendo mantida em instituições residenciais segregadas ou em escolas especiais, geralmente situadas em localidades bastante distantes da família. As pessoas com deficiência, a titulo de tratamento, proteção ou em decorrência de processo educacional, ficavam isoladas da sociedade. Embora o tempo decorrido, esta prática institucionalizante, ainda que em menor escala, pode ser encontrada nos dias atuais em algumas regiões do país.

Concomitantemente à evolução histórica acerca das concepções sobre a deficiência, muitas "verdades" e "mitos" surgiram do senso comum com referência às pessoas cegas. Essas concepções quanto às pessoas deficientes visuais ainda predominam na nossa sociedade.

No mito da caverna, de Platão (2006), a metáfora das trevas (alienação) em oposição à iluminação (sabedoria) é muito difundida e estudada pelos filósofos. No livro VII da obra A República, um diálogo é travado entre Sócrates (personagem central das obras de Platão) e Gláucom, seu interlocutor, em que é narrada a história de presos retidos em uma caverna, cujos pescoços e pernas se encontravam atados a grilhões, durante todo o tempo. Pequena entrada da caverna permitia que a luz vinda do exterior se projetasse, fazendo sombra na parede do que lá fora se passava.

No exterior, existia um caminho por onde transitavam homens carregando estátuas e objetos diversos e que, no entanto, devido a alguma peculiaridade da parede localizada em frente a esse caminho, os homens não eram vistos e as imagens contempladas de dentro da caverna eram apenas aquelas produzidas pelas sombras dos objetos sendo transportados, acrescido do eco incompreensível do que era falado por eles. Para os habitantes da caverna essa era a vida real. Quando um dos prisioneiros resolveu se soltar das amarras e subir à superficie, no primeiro momento a imensa claridade deixou-o cego e com o tempo foi se acostumando à claridade e passando a contemplar o novo mundo. Chauí (1999) diz que entre as várias metáforas a que o mito se refere uma delas é que conhecer é um ato de libertação e iluminação.

Após contemplar o novo mundo, o prisioneiro resolve retornar à caverna para contar aos seus companheiros que o que eles enxergam não é o mundo verdadeiro, senão o mundo de sombras, sendo por isso tido como louco e insano. Assim, a escuridão da caverna propicia a falta de conhecimento do homem sobre a vida e o exterior, enquanto o contato com a iluminação proporcionada pelo sol faz com que o conhecimento e a verdade sejam conhecidos pelo sujeito.

Essa metáfora é um dos pilares que servem para mostrar a força do ver associado ao conhecer. Bosi (1988, p. 65) afirma que o homem de hoje é um ser predominantemente visual: "Alguns chegam à exatidão do número: oitenta por cento dos estímulos seriam visuais." Essas "verdades" acerca do conhecer através da visão, concomitante ao fato de o mundo contemporâneo priorizar os estímulos visuais, geram um senso comum quanto ao cego não conseguir saber, compreender e aprender com e sobre o mundo. O senso comum é compreendido, segundo Vasquez (1977, p. 210), como a relação entre o pensamento teórico e a prática esvaziada de teoria. A falta de formulações teóricas pode proporcionar "[...]  uma rede de preconceitos, verdades estereotipadas e, em alguns casos, superstições de uma concepção irracional (mágica ou religiosa) do mundo." Para o senso comum, existe uma passividade com uma relação acrítica à teoria, o sentido da prática por si só, "[...] é o praticismo; prática sem teoria ou com o mínimo dela" (VASQUEZ, 1977, p. 211).

O conjunto dos "conhecimentos" não-científicos ou o senso comum podem ser classificados como parte constitutiva do que se denomina de cultura popular. O modo de ver e de fazer do senso comum, mesmo não contando com uma estrutura de difusão organizada e institucionalizada, penetra na consciência do homem comum de maneira profunda; e, além de servir a cada um individualmente, assume funções sociais importantes.

Como diz Kosik (2002, p. 19), "O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias".

Certamente, muito do descrédito quanto à capacidade do indivíduo cego está corroborado pelo senso comum, como afirma Amiralian (1997): fala-se de "visões de mundo", quando há referência às diferenças culturais; é "evidente", quando se quer assegurar que algo é efetivamente verdadeiro, desde "pontos de vista" sobre uma estrutura conceitual de referência e "revisão", a mudanças ou correções de idéias.

A autora segue analisando os dizeres populares relacionados não apenas ao conhecer, mas ao poder de transmitir energia, de ser capaz de induzir ao bem ou ao mal, como a "frieza do olhar", "mau olhado", "olhar poderoso" além de: "olhar amoroso", "amor à primeira vista", "amor cego", quando a expressão advém do desejo sexual e afetivo. Ela pergunta: pela falta da visão é que os cegos são considerados assexuados e em outras ocasiões poderosos amantes? E será que eles são considerados indefesos pelo fato de o olho ser visto como órgão, por excelência, de controle, cuidado e guarda? Fala-se em "estar de olho", "ficar de olho", quando o querer pede cuidadosa atenção, vigilância e autoproteção.

Portanto, parece que a relação entre ver e conhecer é antiga e a ausência da visão remeteria ao mundo das "trevas" e à eterna "escuridão" (AMIRALIAN, 1997). Logo, as pessoas que por alguma adversidade da vida são desprovidas deste sentido, não poderiam entender, conhecer ou aprender com o mundo e sobre o mundo.

Em pleno século XXI, ainda existem resquícios dessas concepções acerca da cegueira. Recentemente, deu-se um fato que ainda marca sobremaneira a concepção. Em uma missa de celebração de formatura no final do ano de 2006, foi lido, no momento da Aclamação do Evangelho, o seguinte texto de Matheus (6, 19-23):

Não juntais para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os consomem e onde os ladrões penetram para roubar. Mas acumulai para vós, tesouros no céu, onde nem traça nem ferrugem os consomem e onde os ladrões não penetram para roubar. Porque onde estiver o teu tesouro, ali estará também o teu coração. Teus olhos são como uma lâmpada para o corpo. Se, pois, teus olhos estão bons, todo o teu corpo estará na luz. Mas se teus olhos estão doentes, todo o teu corpo estará em trevas. E se a luz que está em ti são trevas, como serão grandes essas trevas! (grifos nosso). Em coro, responderam os fiéis: "Palavra da Salvação! Glória a Vós, Senhor."

Diante dessas representações, cabe questionar: como fica uma criança que nasce cega? Ela vive eternamente nas trevas e na escuridão? Ela não tem capacidade de conhecer e interagir com o mundo?

Elaborar a deficiência como uma condição de vida para a pessoa deficiente é o que propõe Amaral (1995). A autora inclui cinco pressupostos básicos para alicerçar o amplo fenômeno da deficiência. O primeiro refere-se ao entendimento do individuo e da sociedade como indissolúveis. O preconceito, a discriminação, a estigmatização 1 do deficiente são um produto da sociedade e da pessoa deficiente, em que um é o produtor e o outro é o produto. Essa é uma relação dialética em que ora um está sendo produto para, a seguir, passar a produtor. Na ausência dessa compreensão, o deficiente está sempre no lugar de vítima, eternizando a idéia de fraco/forte, oprimido/opressor, excluído/inclusor, cabendo à sociedade o papel da força e, ao deficiente, de fraco. Nos dias atuais, esta é uma idéia muito combatida pelos movimentos sociais dos deficientes, que tentam interromper a dicotomia e não mais aceitam discutir qualquer assunto referente à própria situação sem que estejam envolvidos, sendo o seu lema: "Nada de nós sem nós."

O segundo é que, a partir de uma visão histórica, há de se pensar em um sujeito concreto, com a sua singularidade e numa sociedade também concreta e única, tornando-se necessária a reflexão sobre essa contextualização. O terceiro diz da importância que a Psicologia Social deverá ter no processo de colaborar nas discussões que envolvem a temática de inclusão/exclusão.

O quarto pressuposto diz que a deficiência, como outros fenômenos, é muito mais multifacetada "[...] que por exemplo o ponto de ebulição da água!!!"(AMARAL, 1995, p. XX). Uma das concepções que apoiam o entendimento refere-se às descritivas, que subsidiam os fatores intrínsecos da deficiência (grau, tipo, extensão etc); a outra problematiza os fatores extrínsecos às pessoas com deficiência, que são as atitudes discriminatórias, preconceitos, estereótipos etc. O quinto e último pressuposto defende que informar e compreender a deficiência por si só não dá conta de reverter um processo histórico, mas deve ampliar as bases para uma reflexão crítica.

Pensando nas concepções histórico-culturais é que se torna imperativo entender a pessoa cega como alguém que é concebido e vive filosoficamente marcado por este estigma, gerando, como conseqüência, pessoas que estão sempre precisando dos "olhos" e da "visão" do outro para aprender e viver.

Desfazer essa visão e ressignificar o lugar do deficiente visual como alguém que aprende e conhece por outros caminhos são tarefas das pessoas que acreditam em uma sociedade mais justa e democrática para todos, e esta pesquisa propõe-se discutir e desmistificar essa visão da construção histórica acerca da cegueira.

No seu livro 'Heróicos Furores' o renascentista Giordano Bruno (1984 apud NOVAES, 1988) faz referência aos olhos. Em um dos diálogos estabelecidos entre os olhos e o coração - representados como entidades corporais separadas, dotadas de razão e sentido - existe um embate que começa com uma acusação e um lamento do coração, que diz aos olhos:

perceber, ver, conhecer, eis, em verdade, o que o desejo acende; é, pois, graças aos olhos que o coração é incendiado. Por sua vez, os olhos acusam o coração de ser o princípio de todas as lágrimas; na verdade, o fogo e a dor do coração fazem brotar as lágrimas dos olhos.

Ao final, chega-se à questão central para Giordano: "[...] como é possível traduzir em ato uma potência infinita? Como dar uma positividade ao infinito? Como romper o equilíbrio de duas forças iguais?". No encerramento do diálogo, surge a resposta: "[...] acima dos olhos e do coração está o Desejo. [...] É o desejo que leva o ver a se transformar em ação de ver, dando às paixões e ao intelecto movimento infinito" (p. 18).

Uma vez mais citando Chauí (1999, p. 41), em relação ao mito da caverna de Platão, ela diz: "Os olhos foram feitos para ver, a alma para conhecer." A partir desse entendimento sobre o que é enxergar e ver é que se pretende, neste estudo, um aprofundamento sobre as percepções, utilizando dos pressupostos da fenomenologia das percepções discutidas por Merleau Ponty (1994) e Masini (1994, 1997), que nos alerta sobre o equívoco que é tentar entender o cego pela lógica do vidente.


1.2 RECONCEITUANDO A CEGUEIRA A PARTIR DA FENOMENOLOGIA DAS PERCEPÇÕES

Na perspectiva da fenomenologia das percepções, o ver é sentido e vivido pelo sujeito que sente e vive no corpo. Para o filósofo Merleau-Ponty (2006), o mundo não é o que o sujeito pensa, mas o que é vivido por cada um, a partir da sua singularidade, sendo que este mundo não é possível de ser "possuído", pois é inesgotável. Segundo ele afirma: "Há um mundo, ou, antes, há o mundo" (1994, p. 14).

Para a fenomenologia das percepções, o mundo é uma intersecção da experiência do sujeito, com o outro e com a somatória das próprias experiências, gerando uma outra experiência, sendo inseparáveis a subjetividade e a intersubjetividade no tempo das experiências do presente, assim como do passado, formando uma nova unidade de experiências que trazem para dentro de si um outro mundo.

Nesse sentido, o corpo é o Sujeito no mundo, pois é o corpo que sente, que sabe, que compreende e apreende. O corpo é uma totalidade de movimento que se relaciona com o mundo de significados e é a partir dele que se adquire a experiência, permitindo-lhe saber, compreender, sendo ainda nele que o significado se manifesta. Para o autor, a percepção é uma síntese integrada do que é vivido corporalmente.

A pesquisadora Masini (1997, p. 35-36) diz:

No caso do deficiente visual, por exemplo, ele tem a possibilidade de organizar os dados, como qualquer outra pessoa, e estar aberto para o mundo, em seu modo próprio de perceber e de relacionar-se; [...] O que não se pode desconhecer é que o deficiente visual tem uma dialética diferente, devido ao conteúdo - que não é visual [...] É dessa dialética entre o específico e o geral que se define a estrutura psíquica, integrada ou não.

Para a autora, a pessoa cega tem uma outra percepção do mundo. Ela ainda afirma: "[...] embora ficasse respondido que conhecer não é ver, este permanecia como condição daquele" (MASINI, 1997, p. 81).

Masini (1994) propõe uma reflexão bastante interessante sobre o "olhar" com que cada qual se dirige às pessoas com deficiência visual. Para a autora, o olhar direcionado à pessoa cega é o olhar da "falta de visão", ressaltando que a importância da visão é a da experiência do vidente e a comunicação é fundada no visual. Dessa forma, a identidade do cego é a ausência de visão, ao invés de ser a presença dos sentidos que possui. Ela escreve: "[...] o não vidente (ou portador 2 de deficiência visual) pode transformar-se em objeto, pois a presença do outro (vidente) é tão marcante que o rouba da sua própria" (p. 89).

Para a autora citada, é clara a contribuição da fenomenologia das percepções para se entender o caminho da pessoa com deficiência visual, visto que, diferentemente das teorias do desenvolvimento e da aprendizagem que separam o corpo da mente, esta, ao contrário, acredita que, para construir o conhecimento, deve-se partir da percepção do corpo em relação à cultura: "Preocupado com o vivido, Merleau-Ponty volta-se para o próprio corpo e diz que o corpo sabe, o corpo compreende e é nele que o significado se manifesta" (p. 94). É ainda a referência ao corpo que o move a escrever:

A consciência consiste em estar nas coisas por intermédio do corpo. A experiência do corpo faz cada um reconhecer o emergir do sentido aderido aos conteúdos, unidade de implicação em que diversas funções se desenvolvem dialeticamente. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 83).

Assim, é importante que reconheçamos qual a identidade que constitui o ser cego em um mundo de vidente e extremamente visual. Como o sujeito se constitui na "falta" de algo tão importante quanto é a visão? Ele sempre terá uma incapacidade? E a criança, será incapaz de apreender e aprender sobre o mundo?


1.3 RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE IDENTIDADE DA PESSOA CEGA

Na contemporaneidade não mais existe espaço para pensar na pessoa cega com características da cegueira, com incapacidades por causa do déficit orgânico e nem com uma identidade própria, como até então encontrávamos nos livros e manuais de educação e atendimento ao deficiente visual. Porém, como afirma Amaral (1998) as deficiências existem e não são apenas socialmente construídas; existem especificidades decorrentes da questão orgãnica, o que não pode ser esquecido.

Ochaita e Espinosa (2004) referem que a cultura ocidental atribui papel preponderante à visão, sendo que a sua falta ao nascer vai trazer, entre outros desafios, as interações comunicativas precoces, e muitos pais podem ter, e têm de fato, sérios problemas para "olhar" para o seu bebê que acabou de ter o diagnóstico de cegueira congênita. Basta essa dificuldade para que seja iniciado um processo de atraso global do desenvolvimento da criança cega, pois já é fato, segundo vários autores (FRAIBERG, 1977; ROSA; OCHAITA, 1993; LEONHARDT, 1992; BRUNO, 1993, 1997, 1999, 2004) que a falta de uma adequada interação com a família torna-se a primeira exclusão da criança cega. Esse impedimento simbólico é a maior deficiência à qual a criança está sujeita, sendo responsável pela formação da sua "identidade cega".

Quando se fala da identidade do cego, é importante refletir sobre a concepção de identidade como uma categoria de análise, um significado social e culturalmente construído, que gera polissemia. A identidade não é inata e sim construída na relação com o outro.

Para Ferreira (1986), identidade é a qualidade do idêntico; conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos fisicos, impressões digitais etc. Ciampa (2001) define a identidade como a articulação de vários personagens, articulação de igualdade e diferença, constituindo e constituído por uma história pessoal.

Para o autor, este processo é nomeado de metamorfose.

Em um ensaio sobre identidade e diferença, Silva (2000, p. 74) afirma como ambos os conceitos tendem a ser naturalizados, cristalizados, essencializados. Para o autor, "A identidade é simplesmente aquilo que se é: "sou brasileiro", "sou negro", "sou heterossexual" [...] Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é auto-contida e autosuficiente." Enfatiza ainda que a diferença é concebida como uma entidade independente. Entretanto, tanto a identidade depende da diferença, como o inverso também é verdadeiro. Logo, uma e outra são inseparáveis, mutuamente determinadas e ativamente produzidas no mundo cultural e social.

O processo de construção da identidade sofre influência de pressupostos dialéticos e, segundo Gadotti (2004), para que efetivamente seja aberta, inacabada e possa ser um processo de construção contínuo ligado ao conjunto das relações cotidianas do indivíduo, deve ser permeada de quatro princípios:

1. Princípio da totalidade: tudo se relaciona;
2. Princípio do movimento: tudo se transforma;
3. Princípio da mudança qualitativa.
4. Princípio da contradição: unidade e luta dos contrários.

Para Bruno (2004), a construção da identidade da criança com deficiência visual dependerá dos vínculos que possa estabelecer com os adultos e com os seus coetâneos. Desde o início da sua vida, a depender de como as suas satisfações essenciais serão atendidas, como as qualidades das trocas de experiência com os seus cuidadores e com outras crianças acontecerão, é o que permitirá a identificação e construção do eu, da personalidade e identidade. A autora afirma:

A identificação se dá pelo processo de assimilação de atitudes, comportamentos, gestos e por sua imitação e expressão. A criança internaliza esses valores, hábitos e desejos expressos que vão caracterizar a sua individualidade. Para isso, é importante que a criança com deficiência visual esteja plenamente integrada ao grupo, que tenha o sentimento de aceitação e pertença ao grupo, participando de todas as atividades juntamente com as demais crianças. (2004, p. 23).

Acredita-se que, a partir da construção desses princípios da dialética, é possível redefinir e ressignificar o lugar da criança cega em um mundo que deve deixar de ser "visocentrista" para se constituir em um mundo próprio de significado e vivido pela própria criança na relação com o outro. Dessa forma, oportunizar-se-á que ela se constitua a partir de um olhar de possibilidades e não de impedimento, devido ao déficit visual.


1.4 CONCEITUANDO A CEGUEIRA

O conceito acerca do que é cegueira modificou-se ao longo da história.

Inicialmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1980 apud MARTÍN; RAMÍREZ, 2003) sugeriu uma classificação das deficiências visuais 3 baseada apenas na medida da acuidade visual e do campo periférico. Dessa forma, tinha-se o conceito de cegueira legal (grifo nosso) difundida em todos os países ocidentais, como: "[...] um olho é cego quando sua acuidade visual com correção é 1/10 (0,1), ou cujo campo visual se encontra reduzido a 20°" (CRESPO, 1980 apud MARTÍN; RAMÍREZ, 2003, p. 40 ). Na década de 80, a OMS recomendou que fosse eliminada a categorização, pois estava existindo injustiça nos diagnósticos, embora não tenha sugerido solução alternativa. No ano de 1992, em Bangkok - Tailãndia, houve um congresso histórico onde se encontraram, para discutir a educação das pessoas com deficiência visual, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho Internacional para Educação de Pessoas com Deficiência Visual (ICEVI). No encontro, foi rediscutida a importãncia da avaliação clínica, juntamente com uma avaliação funcional da visão, pois se entendia que o desempenho visual é mais um processo funcional dinãmico do que uma simples medida de acuidade visual que ocorre com a pessoa em posição estática (normalmente sentada na cadeira do oftalmologista); já na avaliação funcional, deveria ser observado o que a pessoa faz com o uso da visão que possui, ou seja, ela deve ser avaliada através de atividades funcionais: andando, subindo escada, alimentando-se, brincando, escrevendo etc (BRUNO, 1997).

Assim, as novas recomendações da OMS/ICEVI sugeriram que é considerada cega a pessoa com ausência total da visão, até a perda da projeção de luz, sendo que o seu processo de aprendizagem se dará através da integração dos sentidos tátil, cinestésico, olfativo, auditivo, gustativo, utilizando o sistema braile para leitura e escrita. E as pessoas com baixa visão são aquelas que apresentam desde condições de indicar projeção de luz até o grau em que a redução da acuidade visual interfere ou limita seu desempenho. Essas pessoas deverão utilizar recursos ópticos e não ópticos para o seu processo de aprendizagem (BRUNO, 1997).

O diagnóstico precoce de deficiência visual, juntamente com a indicação para a intervenção precoce, ajuda a compreender que a criança cega é antes de tudo criança. Que gosta de fazer tudo o que uma criança com visão gosta: ir ao parque, à praia, brincar, assistir televisão, dançar, comer pipoca e brigadeiro. As suas peculiaridades são na forma de perceber e assimilar o seu entorno, e cada uma delas terá uma singularidade, que vai desde possuir a mínima percepção de luz, que a ajudará na orientação e mobilidade, até viver ou transitar em um ambiente com muito preconceito, não aceitando a deficiência.

Podem-se ter também crianças que não vêem nada, e o sentimento de aceitação e pertença ser muito bom, podendo até mesmo compensar a falta de percepção luminosa. Como diz Bruno:

A criança com deficiência visual, como as demais crianças, devem ser vistas conforme suas especificidades. Cada criança é um ser singular, único, com tempo e ritmos diferentes, os quais devem ser respeitados e valorizados em sua espontaneidade, em sua forma diferente de ser, de fazer, de compreender e agir no mundo. (2004, p. 23).

A maioria das crianças nasce cega em decorrência de fatores prénatal 4, peri-natal 5 e pós-natal 6; contudo, também há crianças que possuem alguma doença hereditária como, por exemplo, glaucoma 7 congênito. Vários autores (BUENO; MARTÍN, 2003; ESPINOSA; OCHAITA, 2004; OCHAITA; ROSA, 1993; LEONHARDT, 1974; FRAIBERG, 1977) ainda sugerem que é considerada cega congênita aquela criança que nasceu cega ou perdeu a visão até os cinco anos de idade. Sobre essas crianças é que se desenvolve a presente dissertação.
 

1.5 ESPECIFICIDADE DA CEGUEIRA

Como citado anteriormente, o empenho neste trabalho é ultrapassar a concepção "visocentrista" e entender a criança cega não em relação a uma criança vidente, mas ela própria com a sua singularidade idiossincrática. A literatura especializada, porém, aponta as características da criança cega.

Partindo dessa revisão bibliográfica, se discutirá as especificidades decorrentes da cegueira e, ao final, se apresentam análise, reflexão e proposta de novos olhares (grifo nosso) sobre esse ser.

Em seu clássico livro sobre a deficiência visual, Lowenfeld (1974) afirma que a cegueira, relativamente às questões cognitivas e perceptivas, impõe três limitações básicas ao indivíduo, devido a: inicialmente, falta de variedade das experiências; falta de capacidade para mover-se e, por último, dificuldade de interação com o ambiente.

Telford e Sawrey (1977) falam das limitações intrínsecas da incapacidade que a cegueira provoca, quais sejam:

1. falta de acesso à escrita e leitura em tinta;
2. restrição da mobilidade independente;
3. falta de percepção direta do ambiente e dos objetos e
4. privação das pistas sociais e de imitação.

Muitas pesquisas têm investigado sobre a existência, ou não, da defasagem no desenvolvimento fisico, social, mental e educacional das crianças cegas (KIRK; GALLANGHER, 1991). Em suas pesquisas, Scholl e Schnur (1976 apud KIRK; GALLANGHER, 1991) indicaram não existir nenhuma atitude específica em relação à cegueira, além de reação de estresse e incapacidade; todavia salientam que a perda da visão causa certas restrições à variedade e profundidade de experiências cognitivas e algumas limitações de experiências pelo fato da mobilidade ser restrita. Para os pesquisadores, a variedade de experiências depende da criança ter nascido cega ou ter ficado cega posteriormente, ou de a cegueira ter sido repentina ou gradativa.

Outros estudos, como os de Tillman e Osborne (1969 apud KIRK; GALLANGHER, 1991), verificaram que as crianças cegas eram melhores nas tarefas de memória a curto prazo, comparadas a crianças com visão; mas os alunos cegos tiveram um desempenho significativamente pior nos itens que exigiam correlação com as semelhanças entre objetos. Tais estudos vieram confirmar que a falta de experiência fazia com que houvesse uma incapacidade de compreender a ligação entre idéias e objetos.

Na pesquisa de Kephart e Schwartz (1974 apud KIRK; GALLANGHER, 1991), foi solicitado a trinta e sete crianças com visão e quarenta e nove crianças cegas, entre 5 e 7 anos, que dissessem o nome das partes que deveriam ser incluídas em desenhos contendo uma criança e uma casa. Os resultados mostraram que as crianças cegas revelam menos conhecimento das partes do corpo e do componente de uma casa, sugerindo "[...] que a maneira que a criança cega processa informações pessoais e ambientais parece resultar em compreensões fragmentadas e distorcidas de conceitos simples e diretos" (p. 193).

Durante dez anos, Selma Fraiberg (1977) desenvolveu um estudo longitudinal comparando o desenvolvimento de dez crianças cegas congênitas, sem outra deficiência associada, com o desenvolvimento de crianças videntes, tendo por objetivo conhecer o efeito da cegueira e fazer deduções sobre a função da visão na organização sensorial, mediante o estudo dos efeitos da deficiência. Os resultados mais significativos foram os seguintes:

a. vínculos humanos - que a visão não é indispensável para a formação dos laços afetivos. As diferenças das crianças cegas em relação às crianças videntes são observadas somente com atraso, quanto à constituição da mãe como objeto.

b. preensão - houve uma discrepância significativa entre o desenvolvimento da coordenação olho-mão entre as crianças videntes e cegas. As crianças que enxergavam, entre três e oito meses apresentavam uma destreza em segurar e conhecer um objeto; nesse mesmo período, as crianças cegas que não tinham o objeto com o contato táctil não apresentavam nenhum gesto de utilizar a pista sonora. Para a criança cega, o som não tem consistência. As mãos dos cegos, que servem como órgão sensorial primário, eram mãos sem utilidade, pois não pegavam os objetos; eram chamadas "mãos cegas". Certamente por isso muitas crianças cegas chegam à alfabetização com incapacidade de ler o braile, segundo a pesquisadora.

c. desenvolvimento motor geral - os progressos com as posturas se apresentavam dentro das margens da idade normal das crianças videntes, porém a mobilidade em cada postura apresentava atraso considerável. Nenhuma criança participante desta pesquisa engatinhou antes de andar. Também foi observado o aumento das estereotipias, por exemplo, a criança "fica de gato", mas não se desloca e fica balançando na postura. Além disso, registrou-se atraso na aquisição da marcha de cerca de seis meses com relação aos videntes.

d. linguagem - a maioria das crianças cega conseguiu os marcos da linguagem na mesma etapa da criança vidente. Para a pesquisadora, o atraso na aquisição da linguagem nas crianças que se encontram sem comprometimento neurológico e com os demais sistemas intactos é devido à pobreza de suas experiências. Contudo, atrasos significativos na capacidade de representar a si mesma como "eu", em um universo de "eus", foram observados em todas as crianças da pesquisa. Fraiberg (1977) considera que:

[...] en los aspectos deI desarrollo en que contamos com datos comparativos, nuestros ninos ciegos, favorecidos por nuestro programa de educación, estaban más próximos a la evolución de los ninos con visión normal qua a la de los ninos ciegos en general. (p. 309). 8

A idéia mais difundida hoje em dia (COBO; RODRÍGUEZ; BUENO, 2003) é a de que a criança cega não é um vidente que carece de visão, como discutido no capítulo anterior, mas a compreensão é de que a sua maneira de perceber e apreender o mundo não é igual à de uma criança sem a privação visual; em decorrência, a sua organização sensorial será operada por outras modalidades sensoriais. A informação visual é globalizada e rápida, e a percepção tátil, que substitui e integra a visão e as outras modalidades sensoriais dos cegos, é analítica e lenta. Dessa forma, a informação que a criança cega vai dispor do ambiente será sempre mais restrita e parcial. Portanto, o conceito tradicional de que a cegueira era componente inibidor do desenvolvimento cognitivo não mais se aplica e carece de fundamentos, como apontam Cobo, Rodríguez e Bueno (2003).

Nesse sentido, Hampshire (1981 apud COBO; RODRÍGUEZ; BUENO, 2003, p. 98) afirma:

[...] a criança cega vive em estado de privação sensorial, já que relativamente poucos objetos lhe proporcionam sons, odor, etc., o que é continuamente necessário para atrair sua atenção da mesma forma que um objeto com cores brilhantes sempre terá entrada no sentido visual de uma criança vidente; existem, por isso, menos oportunidades para a criança cega desenvolver a coordenação ouvido-mão correspondente, e outras faculdades e, pelo mesmo motivo, será muito mais dificil incitá-la a explorar, guiada pela fala do adulto.

A idéia também difundida por Piaget, nos seus estudos de desenvolvimento e compreensão de como a criança pensa, refere-se à criança cega como alguém impedido de se adaptar aos esquemas sen sório-motores e origina, por conseguinte, um retardo considerável na coordenação geral (COBO; RODRÍGUEZ; BUENO, 2003). Esses mesmos autores voltam a afirmar:

A sociedade exige do cego uma apreciação das coisas e um comportamento semelhante ao do indivíduo vidente. [...] Os cegos podem desenvolver habilidades sociais iguais ou parecidas às dos seus pares videntes, embora, com freqüência, verifica-se retardo de dois ou três anos no surgimento, em comparação aos videntes. (p. 112, 113).

Igualmente se confirma, por grande parte das pesquisas realizadas nos últimos anos sobre o desenvolvimento cognoscitivo dos cegos (ESPINOSA; OCHAITA, 2004) que, ao chegar à adolescência e à idade adulta, eles atingem um nível de desenvolvimento funcionalmente equivalente ao das pessoas videntes. Essas autoras contribuem ademais com a discussão em torno da importância de serem observadas as peculiaridades dos contextos em que a criança cega se desenvolve: seu ambiente familiar, sua escola, o trabalho e nível de instrução de seus pais, ou as conotações que a deficiência visual tem no ãmbito microcultural ou cultural em que se desenvolve. Dessa forma, singulariza-se o desenvolvimento de uma determinada criança cega, sendo esses fatores determinantes para as suas características, não ficando restritas àquelas da cegueira.

O que as autoras propõem é analisar as vias alternativas que as crianças cegas dispõem para construir o seu desenvolvimento; para as mesmas, não há motivos para atraso no desenvolvimento de uma criança cega.

Em estudo anterior, Ochaita e Rosa (1995) observaram que as crianças cegas mostravam um atraso de três a quatro anos nas provas referentes a tarefas de manipulação de matérias, enquanto nas tarefas verbais de classificação elas não apresentavam atrasos.

Bruno (2004) coloca que as crianças com deficiência visual, em função da sua privação sensorial ocasionada pela ausência da visão, deverão ter mais tempo para elaborar a noção de objeto permanente; para se desligar da figura materna; para se adaptar à escola; além do que alguns movimentos corporais de repetição não deverão ser entendidos como deficiência mental, mas como forma de manifestar tensão, agitação e diversos sentimentos como alegria e ou tristeza.

A pesquisa de Ormelezi (2000) parte das percepções de adultos cegos congênitos, apontando as peculiaridades apresentadas por eles no processo de aquisição de conhecimento em relação às suas percepções, imagens mentais e conceitos sobre o mundo de objetos, relações e sobre si mesmos.

As suas conclusões foram nas seguintes direções: a forma das pessoas cegas captarem o mundo por outros canais sensoriais que não o visual se dá através das formações de imagens mentais, utilizando principalmente o tato e o cinestésico, e, em menor prioridade, os sentidos olfativos e auditivos.

Conceitos visuais como cor, beleza; compreensão do desenho como linguagem não espontânea e a percepção do espaço não fazem sentido para a pessoa cega, embora façam parte do seu repertório cultural.

Outra conclusão importante da pesquisadora é quanto à idéia do significado de compensação, que é da ordem sócio-psicológico, como ela afirma:

Sabe-se que a visão é o sentido da apreensão do mundo de forma direta, global e à distância. Na sua ausência, há uma reorganização de toda a estrutura mental que possibilitará ao cego adquirir conhecimento sobre o mundo. Todos os relatos evidenciaram a força dessa outra e complexa reestruturação psicológica em razão da atividade fisiológica que visa a um maior desenvolvimento do tato ou da audição, mas principalmente de uma reorganização em virtude da possibilidade de o cego comunicar-se na experiência social. (ORMELEZI, 2000, p. 197).

Uma outra constatação é de haver coisas no mundo que unem cegos e videntes, fazendo-os compartilhar do mesmo mundo. Merece destaque os sujeitos da pesquisa apontarem para a importância da presença afetiva dos adultos em suas vidas. A linguagem mais uma vez foi indicada como fundamental para adquirir consistência no conteúdo e ampliação da dimensão do conceito sobre o mundo.

A autora acrescenta um fator de extrema relevância para esta dissertação: o fato de que os relatos de memória dos sujeitos entrevistados a respeito da aquisição do conhecimento e as suas experiências significativas acontecerem a partir dos quatro anos de idade, período este marcado pela função simbólica e constituído de amplo jogo também simbólico.

Dentre as importantes contribuições na mudança de paradigma acerca das pessoas com deficiência visual no Brasil, situa-se a instituição pioneira ao atendimento precoce dessas crianças, a Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual (Laramara), que tem como presidente Mara Siaulys. Referida pesquisadora defendeu, no ano de 2006, uma dissertação de mestrado sobre "Inclusão social e escolar de pessoas com deficiência visual: estudo sobre a importância do brinquedo e do brincar". Após anos de prática na idealização e confecção de brinquedos adaptados para crianças cegas e com baixa visão, referida autora propõe, como problematização do seu trabalho de pesquisa, conhecer o papel da brincadeira e brinquedos especiais para a aprendizagem, desenvolvimento e inclusão de pessoas com deficiência visual. Os seus objetivos se voltaram à verificação da importância dos brinquedos especiais por ela confeccionados, para o desenvolvimento de jovens que o utilizaram na infância, e como a família entende a ludicidade como mediadora do desenvolvimento dos seus filhos.

A pesquisa foi realizada tendo como sujeitos jovens que na infância participaram do atendimento por ela realizado e que ainda freqüentavam a instituição, bem como famílias de crianças pequenas que realizam atendimento no Laramara. No seu trabalho de pesquisa as categorias se deram a partir de três eixos: inclusão social - onde era observada a opinião dos alunos sobre si mesmos, expectativas e desejo em relação à inclusão na escola, no trabalho e na sociedade. O segundo eixo relacionava-se ao papel do brincar e do brinquedo para a sua aprendizagem e desenvolvimento, e o último era conhecer o papel da instituição especializada.

Após análise dos questionários, as suas considerações relativas à inclusão social apontaram que os jovens revelam: auto-imagem positiva com sentimento de segurança, independência e clareza relativamente aos objetivos de vida e luta para conquistar seus ideais; pensamento crítico, capacidade de reflexão sobre suas possibilidades e dificuldades; ter equilíbrio emocional, auto-aceitação e maturidade, sendo independentes e bem integrados socialmente.

Para a pesquisadora, a fortaleza que alguns jovens relatam parece ter origem na presença de vários fatores, sendo que para ela um dos principais é os jovens terem relatado que durante a sua vida houve sempre a presença de uma pessoa com a qual se relacionaram e criaram vínculos, dando-lhes auto-confiança e segurança, servindo-lhes de referência, fato também apontado por Ormelezi (2000). Para as pesquisadoras, esta pessoa foi, na maioria das vezes, o pai ou a mãe, mas em alguns casos pode ter sido um dos avós, parentes, terapeutas ou educadores. Mas realmente havia esta pessoa na vida de cada um deles.

Quanto ao papel do brincar e do brinquedo para a aprendizagem e desenvolvimento, os jovens entrevistados revelam que o brincar foi fundamental para a sua interação, comunicação e aprendizagem, tanto no ambiente familiar como na escola e comunidade. Citaram a importância da brinquedoteca, da fantasia, do mundo do faz-de-conta, das brincadeiras com o corpo, o correr e o pular e a exploração do ambiente como elementos fundamentais à aprendizagem, para o desenvolvimento fisico, sensorial e psicológico. O espaço e tempo que lhes foi proporcionado com essas brincadeiras de forma global e harmoniosa e a importância que tinham pelo profissional envolvido em suas brincadeiras também foram referidos (SIAULYS,2006).

Essas são algumas considerações fundamentais ao entendimento de como está sendo construída a vida de relação da criança cega, considerando as peculiaridades de uma forma global e as suas necessárias especificidades.

A partir dessas considerações e concordando com Bardisa et alo (1986, p. 55), pode-se dizer que: "[...] el nifío ciego es más igual al niño vidente que diferente" 9 será construída a discussão que se segue, a respeito do jogo simbólico da criança cega.

 

CAPÍTULO 2

O JOGO

"A criança tira tudo do nada"
(Autor desconhecido)


As brincadeiras e os jogos se constituem um importante recurso para entender o desenvolvimento infantil. Para alguns adultos, circunstancialmente a brincadeira é uma atividade trivial e sem sentido; não obstante, para outros, o jogo torna-se um alicerce para todos os aspectos do desenvolvimento da criança.

Conceituar jogo é desafiante. Em Ferreira (1986) existem mais de vinte definições para o termo jogo. Para além do seu significado nos manuais e dicionários, é importante refletir sobre as situações em que ocorre o jogo e aquela na qual o mesmo não está presente. Interroga Brougére (2003): "[...] o que há de comum entre duas pessoas jogando xadrez e um gato empurrando uma bola, entre dois peões pretos e brancos em um tabuleiro e uma criança embalando uma boneca?" (p. 14).

Obviamente, o que há de comum é não existir similaridade nas ações, apesar de ser usada a palavra jogo para referir-se a essas diversas ações; logo, a palavra jogo gera uma polissemia de significados, às vezes criando uma confusão de entendimento e certamente corroborando com não ser "sério", um dos adjetivos dado ao jogo pelo senso comum, pois nem mesmo há uma única explicação para o fenômeno (grifo nosso).

Na cultura brasileira existe sinonímia entre as palavras jogo, brincadeira e atividade lúdica. No Brasil, nem todos os jogos são considerados brincadeiras, assim como nem todas as brincadeiras são jogos.

Neste trabalho, especificamente se tratará do jogo simbólico, objeto de estudo a ser pesquisado. Este termo também é conhecido como jogo de faz-de-conta, de representação, de imitação, de ficção ou jogo de "mentirinha". Ao longo do trabalho, uma seção tratará exclusivamente desse tipo de jogo.

Para cada definição encontrada há um uso específico, por isso, é bastante significativo pensar que cada contexto cria sua concepção de jogo, não simplesmente para dar uma nomenclatura. Para Kishimoto (2005, p. 16), "[...] empregar um termo não é um ato solitário. Subentende todo um grupo social que o compreende, fala e pensa da mesma forma." E esse termo deverá condizer com a linha teórica do pesquisador e comportar dimensões que se queiram estudar. Em alguns momentos do trabalho, será utilizada a palavra brincadeira ou atividade lúdica, pois muitas vezes é a maneira como se encontra na literatura pesquisada, com o significado de ação, ato de brincar.

Para compreender a complexidade da ação de jogar, faz-se necessário entender o jogo a partir da sua evolução na história, incluindo e adotando determinadas concepções teóricas a respeito do desenvolvimento, evolução e características do jogo; primeiramente de uma forma geral e, depois, do jogo simbólico, em específico.


2.1 BREVE CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO JOGO

Historicamente, há registro de jogo desde os tempos da Antiguidade, sendo visto como oposição ao trabalho, como afirma Brougêre (2003): "Nós tentamos descobrir a lógica da noção usual do jogo [...] e percebemos um uso como oposição estruturante ao trabalho, ao útil e ao sério" (p. 35). A idéia era de uma atividade simplesmente voltada ao divertimento. Uma característica peculiar desse período é que o jogo acontecia normalmente em espaços abertos, sem diferenciar adulto de criança, nem classe social. Não se pode esquecer que os jogos olímpicos nasceram na Grécia, não só com o significado de disputa, mas de heroísmo, técnica, organização, cuidado com o corpo, culto à beleza, convivência entre habitantes de diferentes cidades ou regiões, entre outros.

Os gregos valorizavam a cultura do concurso e do jogo disputado, e este último também fazia parte do domínio religioso. Em 776 a.C. foram instaurados na Grécia os jogos Olímpicos, que tinham o objetivo de permitir aos atores expressarem seu dinamismo nas competições; desta forma, pretendiam estabelecer um relacionamento com o divino, aprisionando o sobrenatural. Eram esses jogos recursos de estruturação da comunidade, como afIrma Brougêre (2003, p. 39-40):

[...] deve-se salientar a grande importância do concurso para a civilização grega. [...] os participantes dos concursos, lutando no estádio, impõem-se como os atores do ciclo dos renascimentos, no quadro de uma teologia da renovação cíclica da vegetação, mas também do universo, das comunidades e de seus principes (reprodução cósmica, biológica e social). Se o espectador se beneficia dos efeitos, aqui a participação é essencial. A liturgia [...] e continuar a proteger a comunidade sobre a qual reinavam.

Para os romanos, existiam dois tipos de jogos: os de cena, do qual faziam parte o teatro, a dança e a poesia, e os jogos de circo, vinculados às caças, aos jogos atléticos, corridas etc. Desenvolviam-se e eram considerados atividades de adultos, mas as crianças desde muito cedo conviviam diretamente com essas temáticas.

Na cultura Asteca, o jogo tinha conotação diferente dos gregos e dos romanos. Para esse povo, existia uma função social caracterizada pelo "como se", que foi apropriado pelas crianças e pela religião, sendo que o sentido vai variar, ora sério e se aproximando do religioso, ora fantasioso, aproximando-se das crianças e distanciando-se de certas expressões mais sérias.

Na Idade Média o jogo mantém aproximação não só com o religioso, mas também com todas as pessoas, independente de idade e condições sociais. O carnaval e o folclore são ícones de jogos que se situam entre o religioso e o profano, entre os mitos pagão e religioso-cristão. Ainda no período Medieval, relata Ariês (1981), existia uma ambigüidade da boneca e das réplicas de objetos dos adultos, as quais foram encontradas em escavações e parecem terem sido utilizadas para práticas de bruxarias e instrumentos de feiticeiros.

Com a evolução da humanidade, o jogo perdeu o vínculo com a religiosidade e o caráter comunitário, tornando-se cada vez mais reservado às crianças "[...] cujo repertório de brincadeiras surge então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizadas [...]" (ARIES, 1981, p. 89).

Até então, o jogo não é compreendido como algo que possa ser e tem que ser fundamental ao desenvolvimento infantil (grifo nosso), mesmo porque a infância foi construída socialmente. Para Ariês (1981), a duração da infância era reduzida ao período mais frágil, quando ela ainda não conseguia bastar-se, mas, assim que ela adquiria condições motoras, era misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos. "[...] a criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las [...]" (ÀRIES, 1981, p. 10).

A infância começa a ser construída socialmente a partir do século XII; o seu desenvolvimento, porém, torna-se significativo somente a partir do fim do século XVI, e durante o século XVII novas concepções sobre as crianças surgem, compreendendo-as como dignas de receber uma educação moral a partir dos dois anos de idade.

Segundo a construção iconográfica de Ariês (1981), a partir do século XVII houve uma mudança significativa na compreensão social sobre a vida das crianças. Principalmente as de condição social superior foram separadas dos adultos e mantidas sob quarentena em locais reconhecidos pela Igreja e pelo Estado, a exemplo do colégio. Acompanhando o progresso, a família começou a dar importância à educação infantil.


2.2 O JOGO E A EDUCAÇÃO

A importância do jogo na escola se dá a partir da necessidade de tornar o colégio um local mais agradável e adequado para as crianças. Passa a ser visto como algo para entreter e distrair os pequenos, que deixam de estar em um local livre para ficarem confinados em salas de aula.

Então, como poderia ser dado valor ao jogo na educação, já que o jogo era visto como frívolo e se opondo à seriedade, enquanto a educação era muito séria? Existiria espaço para esta atividade? Quando esta atividade começa a ser compreendida como importante no desenvolvimento infantil? Brougêre (2003), decorrente de pesquisas em textos oficiais franceses, aborda sobre o surgimento da escola maternal francesa com a denominação de "sala de asilo" - instituições de caridade que cuidavam das crianças, das mães viúvas e trabalhadoras, mantidas pelas mulheres da classe alta e sem preocupação educativa. Nesses espaços promoviam-se discussões das propostas educativas do jogo.

Na metade do século XIX, surge na sala de asilo o método que imita a mãe, com a proposta de "[...] pôr a criança em presença, não dos livros, mas das coisas" (BROUGERE, 2003, p. 109). "Eram necessários meios novos para uma finalidade nova. Trata-se de fazer para um grande número o que a mãe de família faz para seus próprios filhos" (BROUGERE, 2003, p. 110).

A criança, ao passar a ser reconhecida como um ser que efetivamente precisa do outro, faz com que também o sentimento de família, especialmente da mãe, transforme-se:

Toda mãe que compreende sua missão, que educa seus filhos, faz três coisas: dispensa-lhes os cuidados fisicos necessários à conservação da saúde e ao desenvolvimento das forças; cerca-os de uma vigilância atenta; cultiva seus corações e desperta sua inteligência através de um ensino variado, agradável e espontâneo. (JEAN-NOEL LUC, 1833 apud BROUGERE, 2003, p. 110).

É a partir dessa compreensão que surge o método inspirado nos cuidados maternos, imbuído do compromisso de agrupar as crianças, de modo que o controle pudesse se fazer facilmente através da presença do professor, momento em que o jogo passa a ser uma atividade orientada pelo adulto. Pauline Kergonard (1905 apud Brougêre 2003, p. 122), responsável pela famosa frase "o jogo é o trabalho da criança", coloca o jogo no centro de sua pedagogia. Querer pôr o jogo no centro da educação, porém, implica sempre em resistência e reticências por parte dos professores. Ainda hoje essa situação é reproduzida, como afirmam alguns autores (KISHIMOTO, 2003; WAJSKOP, 2005).


2.3 CARACTERÍSTICAS DO JOGO

Segundo o psicólogo cognitivista Bruner (1976), o fenômeno do jogo é uma forma de aprendizagem da vida adulta, e deve acontecer em um local de total segurança emocional, sem perigo ou tensão, permitindo a aprendizagem de comportamento de existência ulterior em situação de baixo-risco. Referido autor analisa a brincadeira 10 como um saber-fazer que possibilita a coordenação de ações mão-olho-cérebro como competência necessária ao desenvolvimento do ser humano. A imitação do esquema dos adultos é denotativa e deve ocorrer de forma indireta, pois dessa forma permite a observação, identificação e ação intencional da criança, no sentido de repetir e de recriar, contribuindo para o desenvolvimento da intencionalidade e inteligência.

Para Burghardt (1984 apud BICHARA, 1994) o comportamento lúdico 11 possui características comuns, como: predominância em animais jovens, pela necessidade de jogar mais para aprender a vida adulta, através da busca de estimulação, quebra de relações de papéis, ausência relativa de ações consumatórias, presença de sinais lúdicos especiais, movimentos exagerados, incompletos ou desajustados, gasto energético, mistura de comportamento de vários contextos e variabilidade seqüencial.

O jogo como elemento cultural foi estudado por Huizinga (1996), que elencou, como características fundamentais para que o fenômeno ocorra, o prazer de quem joga, o caráter não-sério, a liberdade, a separação dos fenômenos do cotidiano, as regras, o caráter fictício ou representativo e sua limitação no tempo e no espaço.

Segundo Piaget (1990), jogar é reflexo do nível cognitivo da criança e para tal ela precisa equilibrar dois processos complementares: a assimilação, que é a incorporação de novas informações da realidade exterior ao conhecimento já existente nas estruturas cognitivas, e a acomodação, ou seja, a transformação oportunizada quando a experiência existente incorpora-se ao assimilado. Com o processo equilibrado entre esses dois pólos, que não são antagônicos, mas sim complementares, é que se processa a inteligência.

Definir a infância como época de jogar e brincar, em que a criança explora, sobretudo pelo jogo, seus próprios comportamentos, é o que propõe Chateau (1987), para quem a criança copia o adulto no jogo simbólico, e no processo prepara-se para a vida ulterior. A criança que não sabe brincar, "[...] uma miniatura de velho [...]" (CHATEAU, 1987, p. 14), será um adulto que não saberá pensar. O jogo desenvolve funções latentes, logo, quem é mais habilidoso é também aquele que joga mais. Esse comportamento é diferente no adulto, que joga muitas vezes para fugir ou compensar o trabalho.

Outra característica do jogo, segundo Scarfe (1974 apud ROSAMILHA, 1979) é o propósito de ajudar a criança a apreender valores sociais, alcançar maturidade e conseguir a harmonia cultural junto ao seu meio de convivência, entre pessoas e objetos. Para Hartley (1971 apud ROSAMILHA, 1979), também nos jogos infantis emergem outros valores, como curiosidade, coragem, auto-aceitação, otimismo, cooperação, maturidade emocional, alegria etc.

A partir dessas características, fica mais clara a importância a ser atribuída ao jogo, nos diversos espaços informais ou no espaço formal da escola, pois, segundo o Relatório de Delor (MORIN, 2003), os quatro pilares da educação contemporânea são: aprender a ser, fazer, viver juntos e conhecer. Todavia, essas são habilidades que a criança aprende no jogo e na convivência com outras crianças, o que se pode dar tanto na convivência da rua, como na escola.

Freinet (1974 apud ROSAMILHA, 1979) defende que a característica do jogo é esbanjar energia sem ter a preocupação com os resultados. Rosamilha (1979 ) acrescenta que para o pensador francês Sartre existe um papel fundamental do jogo na existência humana. A definição do homem consciente, para Sartre, é a não-coincidência consigo, é a não-identidade em relação a si próprio. Existir é, antes de mais nada, jogar. Qualquer existência humana "[...] é representar ser". Outro autor que contribui sobremaneira com as discussões em torno das características do jogo é Vygotsky (1991). Primeiramente, ele caracteriza o jogo como uma ação que nem sempre dá prazer às crianças; para o autor, existem muitas outras atividades prazerosas para as crianças que, no entanto, não se constituem jogo, como por exemplo, chupar o dedo; em outras situações, o jogo se torna desagradável, quando alguém perde em jogo de disputa.

Complementa a abordagem ao afirmar que a propriedade real do jogo é o fato da regra tornar-se um desejo. A criança joga para satisfazer um prazer, nem sempre possível, como visto anteriormente, mas ela é livre para determinar as suas próprias ações, sabendo que essa liberdade é ilusória, pois é sempre constituída e impregnada de significados culturais impostos pelo outro, que tanto pode ser o objeto, outro sujeito, a cultura etc.

Para muitos psicanalistas, entre eles Freud e Winnicott, o jogo é o representante mais fidedigno dos processos internos da criança. O objeto transacional, termo proposto por Winnicott (1975) para se referir aos objetos que se "encontram no meio do caminho" entre a realidade concreta e a psíquica da criança, vai ajudá-la nessa construção e separação entre os mundos reais e imaginários.

Atualmente, Johson, Christie e Yamkey (1999) rediscutem as características do jogo infantil, elaborando critérios para identificá-las, que são:

  1. não-literalidade: são situações no jogo em que as ações não são iguais ao real, mas traduzem o que a criança sabe sobre o seu contexto, por exemplo: dar comidinha à boneca com a colher vazia e falar para ela comer tudo para ficar forte.

  2. efeito positivo: é o fato da criança sentir prazer em jogar e estar sempre rindo na ação, proporcionando efeitos positivos nos aspectos motores, cognitivos e sócio-afetivos, por exemplo, quando ela joga pega-pega ou picula.

  3. flexibilidade: é a possibilidade do jogo em criar situações novas para novos problemas. Essa flexibilidade é possibilitada pela ausência de pressão do ambiente.

  4. motivação intrínseca: é a finalidade em si mesmo. O jogo só deve ser concebido com essa designação quando o seu objetivo for simplesmente o jogar. Alguns jogos, principalmente o educativo, perdem essa propriedade, pois o mesmo tem que ser jogado como determina o produto, por exemplo, o jogo de encaixe de figuras é para "ensinar" habilidade de reconhecer figura-fundo, conhecer cores, desenvolver habilidades de coordenação motora fina etc.

  5. livre escolha: o jogo infantil só é jogo se for escolhido livremente e espontaneamente pela criança. Caso contrário, é trabalho ou ensino.

  6. controle interno: são os próprios jogadores que determinam os acontecimentos.

A partir desses elementos aprofunda-se o tipo de jogo objeto deste estudo: o jogo simbólico.


2.4  O JOGO SIMBÓLICO

Como mencionado anteriormente, o jogo simbólico é também uma polissemia de nomes, conhecidos por: brincadeira de faz-de-conta, jogo de representação, jogo de imitação, imaginativo, fantástico e "de mentirinha". Pesquisas sugerem que o jogo simbólico parece ser universal e também uma atividade essencialmente humana (BICHARA, 1994).

O jogo simbólico é uma brincadeira típica da idade de 2 a 7 anos. Essa é uma fase denominada por Piaget de Estágio Pré-Operacional e que tem como uma importante característica o início da linguagem e da representação. Nessa faixa etária, a criança deixa de simplesmente manipular o brinquedo para assimilar a realidade externa ao seu universo interior, praticando distorções e/ou transposições. Inicialmente, o processo é individual e idiossincrático, partindo a seguir para a socialização e transformando-se em jogo com regras.

Apesar de existirem várias definições para o jogo simbólico, a maioria dos autores (PIAGET, 1990; BRUNER, 1976; VYGOTSKY, 1991; ELKONIN, 1998; BROUGERE, 1998, 2003, 2004a, 2004b; KISHIMOTO, 1998, 2003, 2004,2005) concorda com o fato de que o jogo simbólico é a representação e faz uso de objetos e materiais de maneira diversa do normal, dando-lhes outras funções, distanciando o significado do significante.

A palavra representação, sob o ponto de vista piagetiano, é empregada em dois sentidos diferentes: primeiramente se confunde com o pensamento, isto é, com toda a inteligência que se sustenta em um sistema de conceitos ou esquemas mentais, não mais se apoiando simplesmente em percepções e movimentos (característica do período sensório-motor); segundo, ela evoca realidades ausentes, reduzindo-se à imagem mental. No entanto, as duas representações implicam em relações mútuas.

O conceito de qualquer coisa é um esquema abstrato, ou seja, é um significado. Ao pensamento se interligam significações e imagem, símbolo concreto e sempre presente no pensamento; apesar desse não ser reduzido apenas a imagens concretas; essa "imagem" com significados é um significante, produto do pensamento individual. Então o esquema poderia ser assim: SIGNIFICADO (que é qualquer coisa abstrata) + SÍMBOLO (imagem concreta) = SIGNIFICANTE.

As crianças constroem o seu pensamento durante o seu desenvolvimento e este seguirá uma trajetória onde determinadas aprendizagens se tornam alicerces para aquisições ulteriores, como diz Piaget (1990):

[...] mesmo que se chegasse, sem arbitrariedade, a entrosar as diversas fases da vida mental com as camadas neurológicas bem distintas, subsistiria sempre que à descontinuidade relativa das estruturas corresponde uma certa continuidade funcional, de modo que, cada uma, dentre elas, prepara as seguintes, utilizando, ao mesmo tempo, as precedentes. (p. 19).

Para Piaget (1990), a criança passa por quatro estágios de desenvolvimento bem delimitados e com características próprias, assim compreendidas: sensório-motor (zero a dois anos), pré-operatório (dois a sete anos), operatório concreto (sete a onze anos) e formal (de onze anos até a vida adulta). Também o jogo passa por estágios denominados: jogo de exercício, jogo simbólico e jogo de regra.

A teoria epistemológica genética evidencia uma construção da inteligência, explicando como se opera a passagem das formas limitadas às formas superiores do conhecimento. A partir de duas perspectivas é concebida a sua idéia sobre o conhecimento: a primeira é o racionalismo, que parte do pressuposto que para compreender o conhecimento é preciso dirigir-se ao sujeito cognoscente e definir suas formas de organização. A outra perspectiva é o pragmatismo, que é a idéia de que a ação comporta uma lógica e que a lógica encontra sua força na ação.

É a partir dessa lógica do desenvolvimento que se estabelece a aprendizagem e essa se dará em uma sucessão coerente, podendo-se inclusive utilizar a metáfora de um espiral para entender o processo, que será a seguir explicado a partir do referencial piagetiano, fazendo uma correlação entre os estágios de desenvolvimento e suas características e o jogo.


2.4.1 Estágio Sensório Motor e o Jogo de Exercício

Para Piaget (1990), a evolução do jogo simbólico tem início a partir desse período, ou seja, do nascimento da criança. Esse estágio é subdividido em seis fases e tem como característica principal a evolução de uma criança que passa de uma ação reflexa para terminar o período com linguagem e pensamento.

O desenvolvimento da inteligência sensório-motora é anterior à linguagem, mas é inteligência prática, que resolve vários problemas de ação, como alcançar objetos escondidos e proporcionar espetáculos prazerosos, a partir da percepção de interação com o meio.

A construção do jogo de representação segue o mesmo estágio desse período. Na primeira fase, a criança está sob a ação dos reflexos ou mecanismos hereditários, dando início à substituição desse reflexo pela assimilação reprodutora com incorporação de elementos exteriores. Esses elementos são interligados desde as sensações interoceptivas 12, proprioceptiva 13 e extereoceptivas 14 que, juntas, vão provocar o movimento corporal. Esse movimento será muito prazeroso para a criança e ela vai repeti-lo, formando as reações circulares primárias, iniciando o jogo de exercício, que é preparatório para o jogo de representação simbólica. Piaget (1990) afirma que tudo é jogo durante os primeiros meses, com exceção apenas da nutrição e certas emoções como medo e dor.

Na segunda fase, da imitação esporádica, não existe diferenciação entre meios e fins. São constituídos os primeiros hábitos e as primeiras percepções organizadas e os sentimentos diferenciados. Isso é visto quando em um berçário um bebê começa a chorar e outros o acompanham. Essa é a primeira característica que define a imitação vocal "[...] o contágio vocal nada mais é do que uma excitação da voz da criança pela voz de outrem, sem imitação precisa dos sons escutados" (PIAGET, 1990, p. 25).

A partir da coordenação da visão e da preensão evidencia-se a diferença entre a criança cega e a vidente. É o momento em que tudo que o bebê vê ele quer agarrar, dificultando o jogo da criança cega, pois nem tudo tem som para ela agarrar. Aqui tem início à terceira fase, caracterizada pelas reações circulares secundárias, que são integradas às reações circulares primárias. Essa fase é também conhecida como "fase do espetáculo". A criança percebe que pode modificar o ambiente, causando-lhe prazer e necessidade de repetição. Embora este ato não seja intrinsecamente uma ação lúdica, prolonga-se em jogo.

Piaget (1990) refere que nesta fase parece que a criança é capaz de imitar todos os movimentos das mãos, executados espontaneamente, por puro interesse nesses movimentos, fala-se que o prazer de olhar as mãos é o primórdio da reversibilidade 15.

Ainda não existe nenhuma imitação espontânea.

Nas quarta e quinta fases, com o progresso da inteligência, a criança passa a procurar imitar sons e gestos novos, coisa que antes lhe era indiferente e ela só imitava movimentos já executados no seu próprio corpo.

O novo não era imitado porque a imitação evoluiu de esquemas simples, e a acomodação permanecia indiferenciada da assimilação.

Na quarta fase, as reações são intermediárias e a acomodação começa a diferenciar-se em função da coordenação dos esquemas, sugerindo inicialmente apenas exploração. Surgem duas novidades em relação ao jogo: a aplicação de esquemas conhecidos às novas situações e a mobilidade dos esquemas, que permite a formação de diferentes combinações lúdicas sem esforço de adaptação.

Piaget aponta para uma questão bastante interessante nessa fase: por que motivo a criança, que até então só reproduzia o que ela sabia, passa agora a tentar reproduzir modelos novos para ela? É descontinuidade ou prolongamento de tudo aquilo que se desenrolou precedentemente? Para o autor, trata-se de uma continuidade funcional das estruturas imitativas:

[...] nós acreditamos ter constatado, a existência de todas as transições entre essa assimilação reprodutora que é a reação circular, ou imitação de si mesmo, a assimilação recognitiva e simultaneamente reprodutora que é o início da imitação de outrem por incorporação do modelo ao esquema circular, e a assimilação mediata, por indícios inteligentemente coordenados, que é a imitação dos movimentos conhecidos mais invisíveis para o sujeito. (1990, p. 68).

Em todos esses casos, a criança imita na medida em que conserva e repete cada uma das ações de que é capaz, sendo imitação, acomodação e assimilação, ao mesmo tempo. Ainda nessa fase, começa a dissociação entre o sujeito e o objeto, obrigando os esquemas assimiladores a uma acomodação cada vez mais diferenciada. Os modelos se apresentam de formas diversas em relação à fase anterior e em toda atividade circular. O caráter "interessante" e "prazeroso" do resultado provém desse resultado retroalimentar o funcionamento da ação. O interesse passa a ser a mola propulsora da descoberta, o aspecto afetivo da assimilação. Assim, com o "sucesso", a criança passa cada vez mais a querer mais coisas novas e a aprender como resolver novos problemas.

Na quinta fase, a imitação do modelo se torna sistemática e uma vez mais paralela "[...] com os progressos da própria inteligência, da qual a imitação parece, pois, depender estreitamente" (idem, p. 71).

Como este estudo refere-se à criança cega, fica de novo uma questão: como a criança cega vai imitar? Mais uma vez a imitação está associada à evolução da inteligência. Então, a criança cega não é inteligente devido a essa incapacidade?

Nessa fase, a acomodação continua processando a sua diferenciação relativa à assimilação. A inteligência coordena um maior número de esquemas, levando então à descoberta de novos meios, preparando para a fase ulterior. Aparece o caráter da "ritualização", que nada mais é do que a criança "complicando as coisas", depois repetindo minuciosamente tudo pelo simples prazer de tornar a sua atividade mais completa possível. Em várias situações, pode-se observar uma criança com a perna presa a um barbante, por exemplo, conseguir se desvencilhar e voltar a repetir a ação.

Como diz Piaget (1990, p. 125), esse é o primórdio do jogo simbólico:

Sem dúvida, ainda não intervém necessariamente, nessas condutas, a consciência de "fazer-de-conta", pois a criança limita-se a reproduzir fielmente os esquemas em questão, sem aplicá-los simbolicamente a novos objetos; mas, na falta de representações simbólicas, já ai podemos apontar um esboço de símbolo em ação.

A criança até então exercitou os seus jogos de exercício e para Gross (1902 apud Brougêre, 2003), essa é uma necessidade biológica, um instinto e, psicologicamente, um ato voluntário.

O início da imitação representativa ocorre na sexta fase, a qual, além de marcar o fim do período sensório-motor e conseqüentemente das experiências empíricas, aponta para o início das combinações mentais e da linguagem. Aparece a "imitação-diferida", que é a primeira reprodução do modelo que não precisa do mesmo, além de ser feito na ausência deste e após um intervalo de tempo, sendo configurado como os primórdios do nível da representação.
 

Surgem três tipos de imitação como demonstrado no quadro 1:
 

Quadro 1 - JOGO SIMBÓLICO - TIPOS DE IMITAÇÃO
 

TIPOS DE IMITACÃO
 

DESCRICÃO
 

1. IMITAÇÃO IMEDIATA DE NOVOS MODELOS COMPLEXOS

  A criança olha o adulto cruzar e descruzar os  braços e tenta reproduzir o modelo.

2. IMITAÇÃO DIFERIDA

  Ela repete uma ação sem o modelo, por exemplo, fazer uma birra igual ao que o irmão fez pela manhã.

3. IMITAÇÕES DE OBJETOS MATERIAIS, SERVINDO PARA A SUA REPRESENTAÇÃO

  O abrir e fechar da boca da criança quando  tenta abrir e fechar a caixa de fósforos.

 

Finalizando este período, a criança começa a entrar no mundo do pensamento e da linguagem. Até então não existia diferenciação entre o significante e o significado e os únicos "significantes" são constituídos por indício 16 ou sinais 17. Os vinte e quatro meses necessários para exercitar a inteligência prática formaram o alicerce para as novas habilidades, em que os jogos praticados pelas crianças eram essencialmente de exercício, envolvendo repetições de seqüência, sem propósitos práticos ou instrumentais, mas por prazer da ação motora.

Segundo Kishimoto (2003), esses exercícios diminuem transformando-se em jogos de construção, definindo metas para si mesmo e funcionando como jogo de transição para as condutas adaptadas; e quando os jogos de exercícios adquirem regras explicitas, transformam-se em jogos de regras, característicos do estágio operatório concreto.


2.4.2 Estágio Pré-Operatório e Jogo Simbólico

Esse novo período, como já foi mencionado anteriormente, é marcado pela linguagem e o aparecimento da representação. Compreende a faixa etária de dois a sete anos. Agora a criança passa da simples satisfação de manipulação para imitar a sua realidade externa ao seu eu, fazendo distorções ou transposições. O processo imitativo é apontado por Piaget, Wallon e Vygotsky como a constituição da representação: "[...] se a representação nasce da imitação, o aparecimento de brincadeiras simbólicas depende do domínio de processos imitativos" (KISHIMOTO, 2003, p. 41). Já que para realizar o jogo simbólico é imperativa a imitação, Piaget (1990) estudou as teorias que fundamentam a imitação. Guillaune (sjd apud PIAGET, 1964) define que nada existe de inato na imitação. Para Piaget:

[...] A criança aprende a imitar e essa aprendizagem é particularmente evidente no domínio dos movimentos não-visíveis do corpo do sujeito [...] o bocejo, por exemplo, por mais reflexo que seja, só se torna contagioso depois do segundo ano, por falta de correspondência compreendida entre o modelo visual e os movimentos da própria criança. (p. 102).

O autor também menciona os trabalhos de G. Finnbogason, que reduzia a imitação à própria percepção, e o de H. Delacroix, que aprofundou essa hipótese, sugerindo que a imitação pura copia tanto as coisas como as pessoas, mas só raramente as coisas se desdobram em gestos exteriores. A mesma permanece como um esboço, aparecendo quando ocorre o jogo do boliche e se observa o percurso da bola. Para o estudioso, na vida cotidiana esses movimentos são inibidos pelos movimentos de utilização, todavia, sendo encontradas nas crianças pequenas e nos artistas, pessoas menos utilitárias que a maioria das pessoas.

Porém Piaget (1990) conclui que a evolução da imitação, concomitante à dos estágios, supõe que os esquemas dos primeiros englobam elementos novos, diferentemente da imitação que, apesar de tudo, tem de ser aprendida. A imitação é um produto de uma atividade perceptiva, desenvolvida por assimilação e acomodação ativamente combinadas, e o equilíbrio delas é a adaptação inteligente.

Adaptação inteligente, imitação e jogo são, portanto, as três possibilidades, provenientes do equilíbrio estável entre a assimilação e a acomodação ou do predomínio de uma dessas duas tendências sobre a outra. (PIAGET, 1990, p. 114).

Já se sabe que o ato de inteligência culmina no equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, que a imitação prolonga a acomodação e o jogo é essencialmente assimilação, ou assimilação predominando sobre a acomodação. Antes o jogo de exercício era simples assimilação funcional ou reprodutora, não necessitando do ambiente externo. Mas para que o jogo simbólico se desenvolva, faz-se necessário ser alimentado por contribuição exterior. O sentimento de "como se" caracteriza esse jogo.

Como a criança vai reproduzir essas ações? Ela vai utilizar esquemas já aprendidos e "ritualizados", mas primeiro, em vez de usá-lo na presença do objeto a que são habitualmente aplicados, assimila novos objetos, por exemplo, a colher que está dando comida à boneca pode virar escova de dente. Segundo, esse novo objeto tem o único propósito de dar à criança a possibilidade de imitar ou evocar um esquema. É a reunião dessas duas condições - aplicação do esquema a objetos inadequados e evocação para proporcionar prazer - que parece caracterizar o início da ficção.

Na obra A Formação do Símbolo na Criança, Piaget (1990) insiste que as novas aquisições são construções e essas não aparecem abruptamente, mas somam-se às anteriores em um processo de desenvolvimento, gerando novas aprendizagens. Os exercícios nos jogos não simbólicos, importantes para a assimilação funcional, permitem à criança consolidar suas competências sensório-motores, formando alicerce para o jogo simbólico e de regras.

Por mais que Piaget (1990) coloque o desenvolvimento como uma seqüência de variáveis determinantes, também ele compreende que em outros momentos o adulto, por exemplo, pode ter comportamentos "[...] sem mais finalidade do que o prazer de exercer os seus novos poderes" (PIAGET, 1990, p. 149), quando, por exemplo, compra um som novo e fica ligando, desligando e experimentando, em que se pode ver a metáfora do espiral, como citado anteriormente. É evidente que a freqüência deste jogo diminui com o desenvolvimento do sujeito.

No entanto, quando a criança metamorfoseia um objeto em outro, ou atribui à sua boneca ações semelhantes às próprias, a imaginação simbólica constitui o instrumento ou a forma do jogo e não mais o seu conteúdo. Este é o conjunto dos seres ou eventos representados pelo símbolo 18, é o objeto das próprias atividades da criança, da sua vida afetiva, as quais são pensadas e evocadas por causa do símbolo.

Piaget (1990) classifica os jogos simbólicos em três fases, que serão discutidas posteriormente; porém, antes de evocar objetos ausentes, surge a mais primitiva representação: o esquema simbólico, ou reprodução de um esquema sensório-motor fora do seu contexto e na ausência de seu objetivo usual, como por exemplo, fazer-de-conta que dorme e necessitar deitar para fingir que dorme. O que a criança quer é usar com liberdade os seus poderes individuais, pelo prazer de ser um espetáculo, a si própria e aos outros.

Por que a criança faz jogo simbólico? Vygotsky (1991) afirma que todo processo psicológico é construído a partir da exigência do contexto social, logo, as brincadeiras de desempenhar papéis resulta de influências sociais recebidas durante a sua formação. Kishimoto (2005, p. 40) fala da importância desses jogos para a aquisição de símbolos: "[...] ao brincar de faz-de-conta a criança está aprendendo a criar símbolos." Para Piaget (1990), a função do jogo simbólico é de assimilar o real ao eu, fazendo transposição ou distorções, libertando a criança das necessidades de acomodação.

A evolução do jogo simbólico, como o desenvolvimento do pensamento, tem o processo de construção de formas mais simples para as mais complexas, conforme se verá a seguir.

O primeiro esboço concreto da criança na representação é o que o Piaget (1990) chamou de Esquema Simbólico, que funciona como a transição para evocar objetos ou pessoas. Nesse esquema, ela ainda utiliza o seu próprio corpo para representar ações conhecidas, como por exemplo, fingir que dorme; a criança se deita e fecha os olhos. Aqui ela utiliza ações sensório-motoras para representar uma ação bem conhecida, mas é óbvio que ela não precisa brincar de dormir para aprender a dormir.

Após esse período de transição, a criança vai passar por determinadas categorias de jogo simbólico, assim explicado por Piaget (1990):
 

Fase I - de 2 a 4 anos, são subdivididos em três tipos.

Tipo l-A: Projeção dos esquemas simbólicos nos objetos novos:

A criança vai atribuir a outro e às próprias coisas o esquema que se tornou familiar. É muito comum ser observado quando a criança dá comida à boneca com a colher vazia ou quando bate na boneca e a manda chorar e a criança mesma imita o choro.

Tipo I-B: Projeção dos esquemas de imitação em novos objetos:

Utiliza certos modelos para imitar e não diretamente a ação do outro.

A criança finge que lê o jornal, como o seu pai faz. Fala ao telefone de brincadeira e coloca a boneca para falar e já evolui para pegar qualquer coisa e fazer de conta que é um telefone. Aqui começa a existir uma dissociação entre o símbolo e o simbolizado, que vai ser generalizado nas categorias seguintes.

Tipo II-A: Assimilação simples de um objeto a um outro:

Aqui intervém um elemento de imitação, propriamente. A caixa que a criança brinca (o símbolo ou simbolizante) se transforma em um carro (o simbolizado ou significante).

Tipo II-B: Assimilação do corpo do sujeito ao de outrem ou a quaisquer objetos:

Funde-se ao tipo anterior, porém com maior complexidade. É o que o senso comum chama de "jogo de imitação". Agora a criança realmente assume o papel. Diz que é a mamãe (símbolo/ simbolizante) e pede a quem está próxima, para dar um beijo na mamãe (simbolizado/significante), no caso ela mesma.

Tipo III: Combinações simbólicas:

São contemporâneas aos tipos I e II, mas antes elas eram bem simples. Surgem por volta da segunda metade da fase I, portanto, não mais observadas a partir dos 3-4 anos, e são subdivididas em quatro combinações, que na verdade são fases que constituem tipos de complexidades crescentes.

1. Combinações simples: ocorrem construções de cenas inteiras. A criança dá de comer à boneca, como a si é dada a comida, refazendo a cena: "vai...come mais um pouco...vai ficar forte...etc." Nessa idade a criança tem pouca imaginação, então só lhe cabe representar o seu cotidiano, elemento imitativo de seus jogos.

2. Combinações compensatórias: é quando o real é mais para corrigir do que exercer prazer. Quando a criança é proibida de fazer alguma coisa ela compensa na representação. Como por exemplo: não lhe é permitido ir à cozinha, pois tem água fervendo, então ela faz uma "cena com cozinha" e ferve água de brincadeira para compensar a proibição. A compensação pode se tornar catarse quando ela reage pelo jogo contra um medo, ou quando realiza pelo jogo o que não se atrevia a fazer na realidade.

3. Combinações liquidantes: como na anterior, na presença de situações de medo ou desagradáveis, a criança compensa como na combinação anterior, ou então aceita, mas procura revivê-la com uma transposição simbólica. Um dos exemplos descrito por Piaget é quando J. (uma das suas filhas que ele observa o desenvolvimento e elabora o método clínico) avista um pato morto e depenado sobre a mesa da cozinha e no outro dia J. é encontrada deitada imóvel no sofá com os braços estendidos e a perna dobrada e quando indagada sobre o que está fazendo, ela diz "que é o pato morto".

4. Combinações simbólicas antecipatórias: a criança recorre a uma representação do real, com uma antecipação exata ou simplesmente exagerada, das conseqüências do ato reproduzido. A antecipação continua sendo lúdica, atribuindo a reconstituição a um companheiro imaginário.

Esse período é o apogeu do jogo simbólico; depois declina ao aproximar-se mais do real, transformando-se em uma simples representação imitativa da realidade. Existem três características que definem a fase II, que são: a ordem relativa das construções lúdicas; a imitação exata do real; o simbolismo coletivo.

A fase III, dos sete aos doze anos, é caracterizada pelo fim do jogo simbólico e início dos jogos de regras. Essa passagem também ocorre em um crescente e fica muito evidente quando a criança começa a socializar e a brincar mais com outras crianças do próprio jogo simbólico, criando mais regras, passando a preferir jogar de jogos de regras.

Dentre os vários autores pesquisados (LOGUERCIO; SILVElRA; SPERB, 2000; REVUELTA; COLS, 1992; BRUNO, 1993; RAMIRO, 1997; AMIRALIAN, 1997; FRAIBERG, 1977), inclusive dissertações, teses e artigos consultados, a obra de Piaget é sempre utilizada como referencial teórico para a compreensão do jogo simbólico. Pelo motivo de Piaget ( 1990) ter aprofundado e estudado detalhadamente a gênese, evolução e classificação do jogo simbólico é que se opta em utilizar esse referencial teórico para, partindo da sua categorização e da evolução do jogo simbólico, analisar os jogos das crianças cegas, investigação maior da presente pesquisa.


2.5 CARACTERÍSTICAS DO JOGO SIMBÓLICO DA CRIANÇA CEGA

No que se refere à brincadeira das crianças cegas, Tait (1972, 1973) e Will (1972 apud LOGUERCIO; SILVElRA; SPERB, 2000) afirmam que as crianças cegas não parecem se interessar por jogos dramáticos, preferindo brincadeiras manipulativas, no entanto, não são inábeis para a brincadeira simbólica, como alguns autores sugerem.

Sandler e Wills (1965 apud QUINN; RUBIN, 1984 apud LOGUERCIO, SILVElRA; SPERB, 2000), observaram divergências no brincar das crianças cegas com as videntes. Tais discrepâncias são: as crianças cegas apresentam um atraso na exploração do ambiente e dos objetos; não se engajam em rotinas de brincadeiras elaboradas com outros significantes; a imitação e os jogos de papéis aparecem tardiamente, quando aparecem.

Para Ochaita e Rosa (1995), as crianças cegas apresentam um atraso significativo no desenvolvimento do jogo simbólico, se comparadas às videntes. Esse fato é explicado pelas autoras a partir de duas perspectivas. A primeira remonta à dificuldade encontrada para a construção de uma imagem de si mesma e dos outros. A outra perspectiva baseia-se na ausência da visão, motivo pelo qual a criança não tem acesso a experiências que lhe permitam imitar as ações diárias da vida, o que se constitui o argumento inicial dos jogos simbólicos. Além disso, as autoras afirmam que os brinquedos que constituem o elemento da representação simbólica para as crianças videntes podem não ter nenhum significado para a criança cega.

Em um estudo espanhol desenvolvido pelo grupo de educadores da ONCE (Organização Nacional dos Cegos Espanhóis), Revuelta e Cols. (1992) pesquisaram quatorze crianças com baixa visão e cegueira. A pesquisa se propunha a observar a hora do jogo dessas crianças, a partir de um protocolo onde foi observado que o jogo simbólico da criança cega tem qualidades específicas condicionadas à deficiência visual. Porém, essa forma não deve impedir as funções intrínsecas do jogo, pois este lhe proporcionará situar-se entre o mundo real e imaginário, expressando o seu mundo interno, elaborando os seus próprios conflitos.

As autoras afirmam ser dificil acontecer o jogo em situação espontânea, pois a deficiência visual é uma barreira intransponível para poder jogar, tanto do ponto de vista cognitivo como emocional. Em suas conclusões, reforça a importância do apoio e da intervenção do adulto para a implementação do jogo simbólico, assim como da necessidade que a criança dessa idade tem de ser ajudada a jogar simbolicamente.

Preisler e Palmer (1989 apud LOGUERCIO; SILVEIRA; SPERB, 2000) fizeram observações sobre crianças cegas de 2-3 anos em uma escola, juntamente com crianças videntes da mesma idade, e verificaram que as crianças cegas manipulavam inicialmente os brinquedos com a boca; depois, com as mãos, pés e outras partes do corpo, e só quando se familiarizavam com os brinquedos não os colocavam mais na boca. A maior interação dessas crianças era com as pessoas adultas, em detrimento das outras crianças. Para os pesquisadores, esse comportamento deve-se ao fato das crianças acharem nos adultos maior condição de lhes ensinar e orientar sobre o mundo.

Também foi observado por Preisler e Palmer (1989) que as crianças cegas se engajavam mais em brincadeiras estruturadas, ao contrário das brincadeiras livres. Enquanto que as videntes movimentavam-se por todo o espaço e imitavam as ações dos outros. As crianças cegas tinham dificuldade de compreender o significado da brincadeira.

Fraiberg (1977) constatou que as crianças cegas não imitam, ou raramente imitam as atividades da vida diária realizadas por seus cuidadores; isto contribuiria para dificultar o desenvolvimento da função simbólica.

Ainda segundo Revuelta e Cols (1992), se comparadas às crianças videntes, crianças cegas possuem uma defasagem de diferença média de quinze meses entre idade cronológica e idade de desenvolvimento da atividade do jogo simbólico.

Bruno (1993) adverte para a dificuldade que as crianças cegas encontram para iniciar a imitação e o jogo simbólico e enfatiza a importância desse jogo para o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança deficiente visual, pois é através dele que a criança exercita o pensamento pré-Iógico.

Para alcançar essa representação, as atividades devem ter vivências significativas e outras crianças para brincar, pois assim ela passa a conhecer e aprende sobre o mundo:

A formação do símbolo alicerça-se na construção do real. Brincando, a criança representa suas vivências, evoca as experiências significativas, organiza e estrutura sua realidade externa e interna e toma consciência de si como ser atuante. Este é o caminho para conhecer o mundo [...] (p. 49).

Ramiro (1997) considera que as crianças cegas avaliadas no estudo, faixa etária de oito anos e estudando em escola especial, apresentavam atividade lúdica espontânea, comum às crianças videntes da mesma idade, porém com certas peculiaridades quanto à forma de expressão, que se apresentavam como próprias da deficiência visual.

Em outro estudo brasileiro, Loguercio, Silveira e Sperb (2000), após a observação das brincadeiras das crianças cegas em dois contextos diferentes, na brincadeira espontânea e a partir da proposta do observador, identificaram que a brincadeira espontânea só acontecia quando havia alguém para propor a atividade. Quanto às atividades de manipular os brinquedos com a boca, foram observadas em várias crianças, assim como o uso de objetos sonoros: telefone, microfone etc. As crianças interagiam muito mais com o adulto do que com os seus coetâneos, e chamou a atenção o fato das famílias estarem pouco orientadas e preparadas para lidarem com seus filhos cegos.

Obviamente essa é uma situação que ocorre em todo país e isso se deve, certamente, às poucas pesquisas que existem sobre o brincar da criança deficiente visual. Segundo Batista (1997 apud LOGUERCIO; SILVEIRA; SPERB, 2000), a literatura especializada, em geral, é mais voltada para as características visuais e a avaliação das relações entre habilidades adaptativas. Portanto, essa pesquisa tenta suprir tal lacuna a respeito da criança deficiente visual e o papel do seu jogo simbólico no processo de desenvolvimento, e da construção do conhecimento da criança cega na etapa de 2 a 4 anos.


Considerações finais

A presente dissertação considera que todas as crianças deste estudo fazem jogo simbólico, desde o mais simples, que se refere à categoria de Esquema Simbólico, até o mais complexo, que são as Combinações Simbólicas, seguindo os estágios de evolução caracterizados por Piaget (1990).

As crianças que demonstram jogo simbólico menos complexo são as crianças com o ambiente menos estimulador e com baixo nível social e cultural, e os seus pais são também aqueles com maiores dificuldades de compreensão e entendimento da importância do brincar e da necessidade da interação da criança cega com o entorno. Já as crianças com maior complexidade de jogos simbólicos são as que iniciaram mais precocemente o atendimento de intervenção precoce e os seus familiares mostraram maior empoderamento quanto às questões da necessidade de brincar com as crianças e de estimular brincadeira com outras crianças.

Todos os pais apresentaram falta de compreensão sobre a importância do jogo simbólico e também colocaram o fato dos seus filhos não saberem brincar, ou porque jogavam tudo fora ou porque não sabiam brincar.

Diferentemente de outras pesquisas, Silveira, Loguercio e Sperb (2000) e Revuelta et al (1992), as crianças da pesquisa apresentaram bom deslocamento no espaço, explorando toda a sala onde foram realizadas as sessões, inclusive descobrindo outros objetos que não compunham a caixa de brinquedo.

Outro dado relevante é o fato de nenhuma criança do estudo estar incluída na educação infantil. A pesquisa também aponta para o fato que as crianças que brincavam mais com outras crianças tinham jogo simbólico mais complexo.

É importante salientar que a metodologia adotada nesta pesquisa mostrou-se apropriada para abordar as questões propostas, possibilitando e permitindo um novo olhar sobre o jogo simbólico das crianças cegas.

Chegamos ao final da pesquisa compreendendo que a criança cega deve ser reconhecida antes de qualquer coisa como criança. Criança que quer exercer o que existe de mais humano na vida: aprender, fazendo jogo simbólico.

 

    Notas

  • 1 Para Erwin Goffman (1988), o estigma é um atributo que teve sua origem nos gregos, quando queriam, através desse termo, referir-se a sinais corporais para identificar um escravo, um criminoso ou um traidor, na tentativa de afastar de lugares públicos quem portasse qualquer um destes sinais. Na atualidade, o termo evidencia mais o próprio defeito que acompanha a pessoa deficiente.

  • 2 O termo portador permaneceu nessa situação por ser literal do livro citado. Mas é um termo em desuso pelas pessoas com deficiência, que alegam ser o mesmo inadequado, visto que eles "não carregam" a sua deficiência, mas é uma condição de vida. Para saber mais sobre os termos utilizados para conceituar as pessoas com deficiência, ler o artigo "Como chamar os que têm deficiência", de Romeu Sassaki, disponibilizado pela rede SACI.

  • 3 Deficiência Visual compreende tanto a cegueira quanto a baixa visão.

  • 4 Pré-natal é quando a patologia ocorreu antes do nascimento da criança. Geralmente por causas infecciosas da mãe como a rubéola, toxoplasmose, citomegalovirus etc.

  • 5 Peri-natais é quando o problema da criança ocorre no momento do nascimento. O mais freqüente no nosso pais é a anoxia peri-natal (falta de oxigênio ao nascimento) que podem deixar várias seqüelas e entre elas a deficiência visual.

  • 6 Pós-natal é quando a patologia ocorre no cérebro imaturo, que para a maioria dos autores seria até os dois anos de idade. O mais comum é a meningite bacteriana ou acidentes por queda ou afogamento.

  • 7 Glaucoma é o aumento da pressão interna dos olhos. Quando a criança nasce com esse diagnóstico, frequentemente cursa para cegueira.

  • 8 [...] nos aspectos do desenvolvimento em que contamos com dados comparativos, nossas crianças cegas, favorecidas por nosso programa de educação, estavam mais próximas da evolução das crianças com visão normal que a das crianças cegas em geral (Tradução nossa).

  • 9 "[...] a criança cega é mais igual à criança vidente do que diferente."

  • 10 O termo brincadeira tem um sentido amplo na nossa língua, confundindo-se com brinquedo e jogo. Segundo Kishimoto (2005), brincadeira é a ação que a criança desempenha ao realizar as regras do jogo. É o lúdico em ação.

  • 11 Comportamento lúdico deve ser entendido como a ação de brincar.

  • 12 São sensações captadas pelos órgãos internos que causam dor, fome, sede etc.

  • 13 São sensações captadas pelos músculos, tendões, aponeuroses, articulações e no labirinto, e são capazes de nos informar sobre a posição dos segmentos do nosso corpo e os movimentos que nele se processam.

  • 14 Sensações captadas pelos receptores contidos na superficie cutãnea e informa sobre o ambiente externo, como a textura da roupa, diferença de temperatura, de gosto etc.

  • 15 É um conceito que se desenvolve no Estágio Operatório-Concreto e é a capacidade que a criança tem de executar a mesma ação nos dois sentidos do percurso, mas tendo consciência que se trata da mesma ação. Nesse periodo, a criança já tem capacidade de entender que a mesma massa que faz uma bola é a mesma que faz uma cobrinha, apesar dos tamanhos serem diferentes.

  • 16 É um signo móvel, não relacionado à ação e que permite reconstituir o passado ou vislumbrar o futuro (PIAGET, 1990).

  • 17 É a mesma ação que desencadeia o movimento mais ou menos automático, é uma referência necessária para que ocorra a ação (PIAGET, 1990).

  • 18 Na teoria piagetiana o símbolo é o objeto presente, que desempenha o papel de "significante" e o objeto ausente por ele "significado". É produto do pensamento individual.

FIM


 

Sheila Correia de Araújo | Terapeuta Ocupacional e mestre em Educação pela FACED/UFBA. Atualmente é doutoranda em Educação FACED/UFBA, professora titular do Curso de Terapia Ocupacional da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, terapeuta ocupacional do Núcleo de Terapia Neuro Evolutiva e do Centro de Intervenção Precoce do Instituto de Cegos da Bahia. Tem experiência na área de Terapia Ocupacional com ênfase em Deficiência Visual, Intelectual e motora, atuando principalmente nos seguintes temas: terapia ocupacional, desenvolvimento infantil, jogos e brincadeira, deficiência visual, física, intelectual e múltipla deficiência, intervenção precoce e inclusão escola.
 

 

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excerto de:
O Jogo Simbólico da Criança Cega
Sheila Correia de Araújo
2007
Dissertação (mestrado) apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação.
Área de Concentração Educação e Diversidade.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - FACULDADE DE EDUCAÇÃO - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - MESTRADO EM EDUCAÇÃO
Salvador 2007
Fonte do texto integral (pdf) aqui.
 

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10.Dez.2012
publicado por MJA