
Cego - fotografia de Marco Antonio Cruz (série 'Oscuridad Habitada')
§ 1.º A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
A questão da igualdade de oportunidades assume uma particular relevância num contexto como o do tratamento jurídico das deficiências físicas ou psíquicas. Com efeito, há
mesmo quem defina a deficiência como "(...) a perda ou a limitação das oportunidades de participar na vida da comunidade ao mesmo nível do que os outros"
e a noção
de igualdade de oportunidades foi recebida na nossa Constituição justamente a propósito da condição de algus cidadãos portadores de deficiência. Na verdade, no artigo 74 alínea h), da Constituição, determina-se que, na realização da política de ensino, incumbe ao Estado
(...) proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades".
Apesar de se encontrar aparentemente consolidado de forma definitiva no plano jurídico, trata-se de um conceito que, na perspectiva da filosofia política, permanece
extraordinariamente controverso, a ponto de certas correntes anglo-saxónicas afirmarem, não sem ironia, que "equality of opportunity is no more than the opportunity to
become unequal". Outros preferem falar de uma "igualdade de aptidões" (equality of capabilities) (AMARTYA SEN), numa "igual oportunidade de bem-estar" (equal opportunity
for welfare) (ARNESON) ou de um "igual acesso aos benefícios" equal access of advantages) (G. COHEN).
As correntes libertárias e neoliberais criticam a ideia de igualdade de oportunidades afirmando que "a vida não é uma corrida" (life is not a race), para usar a expressão
de ROBERT NOZICK. E, não por acaso, os que negam a ideia de igualdade de oportunidades rejeitam também a concessão de quaisquer apoios específicos aos mais
desfavorecidos: "[Não vejo (...) por que motivo os cidadãos de Indiana estarão obrigados a igualizar a sua situação com a dos nativos do Tchade e as minhas convicções no
que respeita à relação entre os atletas olímpicos e, por exemplo, os mongolóides profundos são exactamente as mesmas" escreve, não sem intuitos polemizantes, um autor
de inspiração libertária. Numa perspectiva liberal, RICHARD POSNER considera que o sistema jurídico deve ser estruturado exclusivamente de forma a maximizar a
riqueza social (social wealth) e, nessa medida, não pode contemplar a concessão de direitos sociais aos pobres ou aos deficientes.
No quadrante ideológico oposto, questiona-se também, de algum modo, a noção de igualdade de oportunidades, sustentando que a mesma incorpora uma concepção meramente
distributiva de justiça que obnubila a dimensão libertadora e cívico-participativa dos direitos. A este propósito, JÜRGEN HABERMAS observa que "[O] paradigma de Direito
ligado ao Estado social orienta-se exclusivamente pelo problema da justa distribuição das oportunidades de vida socialmente produzidas. Ao reduzir a justiça à justiça
distributiva, falha o sentido de 'garantia da liberdade' que possuem os direitos legítimos (...)". Numa perspectiva ideológica socialista, há, todavia, quem defenda
a ideia de igualdade de oportunidades; simplesmente, acrescenta-se que tais oportunidades têm de se orientar por três vectores: auto-realização e bem-estar, influência
política e status social.
A partir desta controvérsia em torno da igualdade de oportunidades estabeleceram-se uma série de distinções que, no fundo, procuram assinalar os limites de incidência (ou
de exigência) do princípio da igualdade. Assim, nos Estados Unidos separa-se a equality of process da equality as result (ou equality of outcomes). Entre nós, há quem
rejeite a ideia de uma "igualdade de resultados", preferindo falar, na esteira de DANIEL BELL, em "igualdade de condições" ou "igualdade de meios". Numa perspectiva
relativamente convergente, outros afirmam que se podem exigir "direitos iguais" (Gleichbertechtigung) mas já não "posições iguais" (Gleichstellung).
Concretizando o princípio da igualdade de oportunidades ou de "chances" (Chancengleichhei) escreve GOMES CANOTILHO: "[Esta igualdade [de oportunidades] conexiona-se, por
um lado, com uma poltica de 'justiça social' e com a concretização das imposições constitucionais tendentes à efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais.
Por outro lado, ela é inerente à própria ideia de igual dignidade social (e de igual dignidade da pessoa humana) consagrada no artigo 13.71 que, deste modo, funciona não
apenas com fundamento antropológico-axiológico contra discriminações objectivas ou subjectivas, mas também como princípio jurídico-constitucional impositivo de
compensação de desigualdade de oportunidades (...)".
Num sentido não muito distante, CASTANHEIRA NEVES observa que a ideia de "igualdade social" "(...) exprime uma bem característica pretensão de justiça social, a justiça
do 'Estado social' do nosso tempo". Aquele Autor acrescenta, depois: "[Igualdade social que postula uma real 'equal of opportunity', uma efectiva (i.e.
verdadeiramente eficaz) 'igualdade de chance' para todos nas condições ou nas possibilidades de realização da personalidade ético-social de cada um".
O princípio da igualdade de oportunidades possui, evidentemente, uma estreita relação com a problemática do tratamento jurídico das deficiências (físicas ou mentais). Não
por acaso, há quem caracterize o déficit (= a deficiência) como "(...) falta de oportunidade para executar as habilidades sociais e/ou a falta de reforço de condutas
socialmente aceitáveis". Com efeito, "(...) a igualdade de oportunidades exige que as pessoas sejam compensadas pelas desvantagens que escapam ao seu controlo".
E, assim, podem recordar-se, ao nível internacional, as resoluções das Nações Unidas n. 37/52 (cujo Capítulo F. é dedicado à igualdade de oportunidades) e 48/96 (que
aprova justamente as "Normas sobre igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência") e, bem assim, a Declaração de Viena e o Programa de Acção adoptado pela
Conferência Mundial de Direitos Humanos (ponto 64.). A Resolução 48/96 vai ao ponto de precisar o conceito de "igualdade de oportunidades": "[O] termo 'igualdade de
oportunidades' significa o processo pelo qual os diversos sistemas da sociedade e o meio envolvente, tais como serviços, actividades, informação e documentação, se tornam
acessíveis a todos e em especial às pessoas com deficiência" (ponto 24.); "O princípio de igualdade de direitos implica que as necessidades de todos e de cada um tenham
igual importância, que essas necessidades sejam a base do planeamento das sociedades e que todos os recursos sejam utilizados de forma a garantir a cada indivíduo uma
igual oportunidade de participação" (ponto 25.).
No âmbito da União Europeia, destaca-se a Resolução do Conselho, de Dezembro de 1996, que incide justamente sobre a igualdade de oportunidades para as pessoas com
deficiências. E também a jurisprudência constitucional recorreu à noção de igualdade de oporunidades, podendo citar-se como exemplo a já referida sentença 269/1994 do
Tribunal Constitucional espanhol.
Entre nós, além do já citado artigo 74.º, n.º 2, alínea h), da Constituição, cumpre recordar que a Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas
com Deficiência - a Lei n.º 9/89, de 2 de Maio - usa o conceito de "equiparação de oportunidades", o qual "(...) impõe que se eliminem todas as discriminações em função
da deficiência e que o ambiente físico, os serviços sociais e de saúde, a educação e o trabalho, a vida cultural e social em geral se tomem acessíveis a todos" (artigo
4.º, n.º 6). No decurso da discussão parlamentar da proposta e do projecto legislativos que viriam a resultar na Lei n.º 9/89, o Ministro do Emprego e da Segurança Social
deixaria afirmado: "[Torna-se necessário ir mais longe no sentido de uma tomada de consciência colectiva que de forma activa contribua para a eliminação das
discriminações negativas que são impeditivas do princípio de igualdade de oportunidades".
Finalmente, também a doutrina vem sublinhando a estreita ligação entre o princípio da igualdade de oportunidades e a condição dos deficientes. A título meramente
exemplificativo, pode mencionar-se a posição de BERNARD BOXILL, autor que distingue duas vertentes do princípio da igualdade de oportunidades - por um lado, a ideia de
que deve ser atribuída a cada um a posição que lhes permita realizar, dentro das suas qualidades e aptidões, o melhor possível as funções a que corresponde aquela
posição; por outro, a ideia segundo a qual os indivíduos devem ter as mesmas chances de adquirir qualificações para alcançar as posições desejadas. É este último sentido
da igualdade de oportunidades que, segundo BERNARD BOXILL, tem falhado no que concerne aos deficientes (e bem assim, às mulheres e aos membros de minorias étnicas), pelo
que se justifica que sejam objecto de um "tratamento preferencial" (preferential treatment).
§ 2.º A PROIBIÇÃO DO ARBÍTRIONo que concerne ao princípio da igualdade, deve aludir-se ainda à proibição da discriminação, constante do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição.
Sucede porém, que o artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, ao referir possíveis causas de discriminação (v. g. raça, sexo) não alude a deficiência (física ou mental), ao
contrário do que ocorre, por exemplo, com a Constituição da África do Sul (artigo 9.º), a Constituição das Ilhas Fiji (Secção 9a) a Constituição da Eritreia (artigo 14.º)
ou as recentes constituições da Suíça (artigo 8º, n.º 2) e da Finlândia (Secção 6a).
No entanto, é inequívoco que a enumeração do n. 2 do artigo 13º não é "fechada" ou "exclusiva": apesar de essa questão não ter sido debatida ex professo nos trabalhos da
Assembleia Constituinte no decurso da última revisão constitucional, a propósito de uma proposta de "Os Verdes" que pretendia incluir naquela norma uma referência à
"orientação sexual", foi claramente afirmado que a enumeração das causas de discriminação não é taxativa. Também a doutrina se pronuncia nesse sentido: como refere
JORGE MiRANDA "[Naturalmente, os factores de desigualdade inadmissíveis enunciados no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição são-no a titulo exemplificativo (até por causa
da cláusula aberta do artigo 16. , nº 1) de modo algum taxativo. Eles não são senão os mais flagrantemente recusados pelo legislador constituinte - tentando interpretar a
consciência jurídica da comunidade; não são os únicos possíveis e portanto, também não os únicos constitucionalmente insusceptíveis de alicerçar privilégios ou
discriminações". Do ponto de vista do direito comparado, pode referir-se que, em Espanha, o Tribunal Constitucional entendeu, na sua sentença 269/1994, de 3 de
Outubro, que o elenco de factores diferenciales contido no artigo 14.º da Constituição não era taxativo. Entre nós, o mesmo sucede com a jurisprudência da Comissão e do
Tribunal Constitucional: é o caso, por exemplo, do Parecer n.º 1/76 da Comissão Constitucional e dos Acórdãos do Tribunal n.0 203/86 e 191/88. No Acórdão n.º
563/96 - proferido justamente a propósito de uma questão ligada aos deficientes das Forças Armadas -, deixou-se afirmado: "[O] n.º 2 do artigo 13.º da Constituição
enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo
violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplificativo". Ante o exposto, é fácil concluir que o artigo 13.º, n.º 2, da
Constituição se aplica, inquestionavelmente, aos cidadãos portadores de deficiência.
Escreve aquele autor: "[Pode dizer-se que os cidadãos possuem dois tipos de
direitos. O primeiro é o direito a igual tratamento [equal treatment], ou seja, o direito a uma distribuição igual das oportunidades, dos recursos, dos encargos.
Por exemplo, numa democracia cada cidadão tem direito a um voto igual; é este o sentido da decisão do Supremo Tribunal segundo a qual uma pessoa tem direito a um voto
mesmo quando exista outro sistema que garanta melhor o bem-estar colectivo. O segundo é o direito a ser tratado como igual [treatment as an equal], que não se
confunde com o direito a receber a mesma distribuição de encargos ou benefícios, mas sim a ser tratado com a mesma consideração e cuidado do que qualquer outra pessoa. Se
tiver dois filhos, não demonstro igual consideração se decidir por moeda ao ar qual deles deve receber a última dose de medicamento. Este exemplo demonstra que o direito
a ser tratado como igual é um direito fundamental, e que o direito à igualdade de tratamento é um direito de carácter derivado. Em certos casos, o direito a ser tratado
como igual leva implicado o direito à igualdade de tratamento, mas isso nem sempre acontece".
E, falando a propósito de um estudante que, por força do sistema de quotas, viu negada a sua admissão a uma faculdade de Direito, DWORKIN prossegue: "DeFunis [o candidato
em causa] não tem direito a igual tratamento na distribuição de vagas na faculdade de Direito; não tem direito a ter um lugar só porque outros o têm. As pessoas podem ter
direito à igualdade de tratamento no que respeita à educação básica, pois a quem for negada essa educação poucas probabilidades terá de levar uma vida útil. Mas a
formação jurídica não é algo de tão vital que todos tenham igual direito a ela. DeFunis tem o segundo tipo de direito: um direito a ser tratado como igual na decisão
sobre os critérios de admissão a utilizar. Ou seja, tem direito a que os seus interesses sejam apreciados com tanta consideração e respeito como os demais (...)".
Com algumas afinidades com a dicotomia de DWORKIN entre o "direito a igual tratamento" (equal treatment) e o "direito a ser tratado como igual" (treatment as equal) há
quem estabeleça, no domínio da ética aplicada, uma distinção entre "tratamento igual" (equal treatment) e "igual consideração de interesses" (equal consideration of
interests), aplicando esta última à situação dos cidadãos portadores de deficiência: como escreve PETER SINGER, "(...) o princípio da igual consideração de interesses tem
força suficiente para proscrever uma sociedade esclavagista baseada em critérios de inteligência e, bem assim, as formas mais intensas de racismo e sexismo. Ele proscreve
igualmente a discriminação baseada na incapacidade, quer intelectual, quer física, na medida em que essa incapacidade não seja relevante para os interesses em
consideração (ao contrário do que sucede, por exemplo, quando atendemos à circunstância de alguém ser deficiente mental profundo para determinarmos se tem um interesse
pessoal em votar num acto eleitoral)".
Retomando os termos de DWORKIN, os deficientes, à semelhança do candidato à universidade, não têm qualquer direito fundamental a um tratamento privilegiado,
designadamente no domínio fiscal. A sua deficiência, por si só, não lhes confere esse direito. O que possuem isso, sim, são os mesmos direitos e deveres dos restantes
cidadãos e, bem assim, os direitos correlativos ao programa da norma do n.º 2 do artigo do artigo 71.º da Constituição.
Deste modo, a circunstância de a uns deficientes ser atribuída uma isenção fiscal e outros, que se encontram em situação análoga, não beneficiarem de idêntico tratamento
cria, quando muito, uma desigualdade entre deficientes, não parecendo haver, prima fade, qualquer situação de desigualdade entre deficientes e não-deficientes. O que
seria necessário, pois, era indagar se existiu um "tratamento como igual" (DWORKIN) ou uma "igual consideração de interesses" (SINGER) entre as categorias de deficientes
abrangidas e excluídas do âmbito de aplicação dos diplomas que atribuem tratamentos privilegiados (como é o caso do Decreto-Lei n.º 103-A/90).
Sendo assim, ter-se-á
de determinar se o princípio da igualdade de oportunidades, por um lado, e a proibição de discriminações, por outro, se aplicam tão-só nas relações
deficientes/não-deficientes ou se, pelo contrário, abrangem também as relações deficientes/deficientes. Crê-se que se deve adoptar esta última posição. A igualdade de
oportunidades não é apenas uma igualdade de oportunidades entre os deficientes e os não-deficientes; redunda também numa exigência de oportunidades iguais entre grupos ou
categorias de deficientes. E o mesmo vale, com as devidas adaptações, para o princípio da proibição da discriminação.
Por outro lado, sempre haverá de saber-se, quando se procede a uma discriminação entre categorias de deficientes, não acaba por ocorrer a latere também uma discriminação
entre deficientes e não-deficientes.
Na verdade, mesmo quem não perfilhe a ideia de que ocorre aqui uma discriminação directa, talvez possa falar, ainda que com um sentido algo diverso, do surgimento de uma
"discriminação indirecta" (indirect discrimination), conceito cunhado pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos na decisão do caso Griggs v. Duke Power Co. (1971), onde se
afirmou, a propósito de desigualdades na contratação de empregados negros: "[O] Congresso determinou que os testes ou critérios para contratação ou promoção nos empregos
não podem garantir uma igualdade de oportunidades que se reduza à fábula da oferta do leite à cegonha e à raposa. Pelo contrário, o Congresso exige agora que a postura e
a condição do candidato ao emprego sejam levadas em conta. Determina-se - para regressar à fábula - que o recipiente que contém o leite possua um formato que todos possam
usar. A Lei [o Civil Rights Act de 1964] proscreve não apenas a discriminação aberta mas também as práticas que são formalmente justas mas discriminatórias quanto ao
procedimento" (401 U.S. 431).
A noção de "discriminação indirecta" foi mais tarde aplicada, por exemplo, pelos tribunais superiores da Austrália. Curiosamente, também o Tribunal de Justiça das
Comunidades já recorreu, por mais de uma vez, à noção de "discriminação indirecta". [...] Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a discriminação indirecta
ocorre quando uma política, que aparentemente não é discriminatória, na prática afecta negativamente mais as mulheres do que os homens (ou vice-versa), excepto se essa
política for justificável de um ponto de vista objectivo. Aquela definição, firmada no contexto das discriminações em razão do sexo, vale, mutatis mutandis, para as
discriminações fundadas na deficiência, física ou mental.
Em suma, se as exigências da igualdade de oportunidades e da proibição de discriminações se destinam a obter uma paridade entre cidadãos (deficientes e não-deficientes),
sempre que haja uma desigualdade de oportunidades ou uma discriminação que afecte uns deficientes em relação aos outros, estar-se-á, ainda que indirectamente, a aumentar
a distância entre deficientes e não-deficientes. Tomando como exemplo as normas que conferem benefícios fiscais na compra de veículos, se a certas categorias de
deficientes for negado um benefício fiscal na aquisição de uma viatura que irá aumentar a sua mobilidade, empregabilidade ou qualidade de vida em geral, não existe apenas
uma discriminação dessas categorias de deficientes em relação a outras: há também uma discriminação entre deficientes e não-deficientes. Sempre que uma medida de
discriminação positiva é negada a cidadãos ou grupos que dela carecem, cria-se uma desigualdade não apenas em relação àqueles que dela beneciam como em relação à
sociedade em geral. Em suma, se a discriminação tem um propósito "compensatório" ou "equilibrante", a sua denegação significa, ao cabo e ao resto, a manutenção de um
statu quo inigualitário.
§ 3.º A NORMA DO ARTIGO 71." DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
A norma do artigo 71.º da Constituição determina o seguinte:
Artigo 71.º {Cidadãos portadores de deficiência)
1 - Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do
exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.
2 - O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas
famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva
realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores.
3 - O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência.
Esta norma contém, em simultâneo, uma dimensão preceptiva e uma dimensão programática. A primeira decorre, desde logo, da ideia segundo a qual "a pessoa deficiente é um
de nós e participa plenamente da mesma humanidade que nós", para usar as palavras da carta encíclica Laborem Exercens, de 14 de Setembro de 1981 (§ 22); ou, se se
preferir, assenta na ideia de "humanidade comum", expressão usada pelo Supremo Tribunal do Canadá no caso Eaton (1997). A dimensão programática, por seu turno, nasce da
necessidade de salvaguardar a "autonomia dos menos autónomos", na expressão particularmente feliz de CARLOS SANTIAGO NINO. Como refere, no mesmo sentido, JOSÍPH RAZ, o
Estado tem o dever não apenas de assegurar protecção contra as ameaças à liberdade, mas também de providenciar as condições para o desenvolvimento da autonomia dos
indivíduos. É duvidoso, no entanto, que se possa situar a dimensão preceptiva da norma do artigo 71.º no seu n.º 1 e, por outro lado, considerar que a dimensão
programática radica exclusivamente no n.º 2 do mesmo artigo.
Deixando em aberto esse problema, interessa salientar, acima de tudo, que, como já se referiu, a revisão constitucional de 1997 procedeu a uma importante alteração
terminológica, abandonando o conceito de "deficientes" e passando a falar de "cidadãos portadores de deficiência". Com isso, procurou reiterar-se, actualizando-o, o
compromisso de inclusividade firmado desde a versão originária da Constituição de 1976. Deste modo, não pode afirmar-se, sem mais, que se trata de uma alteração meramente
vocabular, sem quaisquer consequências no plano jurídico. É que, neste, como em muitos outros domínios, as palavras contam ou, se quisermos, "as palavras podem excluir".
Na verdade, como vem sendo demonstrado por vários autores, o "tratamento semântico" da deficiência está carregado de significado político (e, consequentemente, de
significado jurídico-constitucional). ma investigadora da Universidade de Uppsala, após ter analisado a evolução da legislação sueca e seus programas de compensação
das deficiências (Handikappersattningen), vai ao ponto de afirmar que a definição de "deficiência" tem de ser compreendida como um "discurso" e que este, por natureza,
reflecte uma dimensão de poder, o poder sobre as definições e os critérios que devem ser utilizados para descrever factos sociais. Num sentido análogo, muitos dos
autores que sustentam que a deficiência é "socialmente construída" (v. infra) enfatizam o papel dos estereótipos, dos rótulos e, sobretudo, das designações linguísticas
na estigmatização daquela realidade. Há mesmo quem procure descortinar e classificar os vários tipos de discurso compreendidos na "gramática da deficiência", referindo as
seguintes espécies: o discurso médico, o "discurso leigo" (lay discourse) o discurso caritativo, o "discurso dos direitos" (ríghts discourse) e o emergente "discurso de
gestão" (managemen discourse).
Noutro quadrante, PASCAL DORIGZZI analisou a evolução semântica do ordenamento jurídico francês, "descobrindo" várias categorias de deficientes, desde os infirmus
medievais da tradição caritativa judaico-cristã ou os idiotas do cientismo oitocentista, aos mutilés da Grande Guerra (a Lei de 31-3-1919), aos invalides da
legislação dos anos trinta e, bem assim, aos handicapés da política social do pós-guerra (v. g. a Lei Cordonier, de 2-8-1949) e, finalmente, aos travailleurs
handicapés (Lei de 23-11-1957).
Entre nós, não foi certamente por acaso que, no decurso dos trabalhos da Assembleia Constituinte, alguns deputados subscreveram uma proposta no sentido de substituir a
expressão "diminuídos" por "deficientes" (cf. supra). Os projectos de Constituição usavam conceitos como "incapacitados para o trabalho" (projecto do MDP/CDE),
"parcialmente inválidos" (projecto do PCP) ou "diminuídos físicos, sociais ou mentais" (projecto do PPD). Ora, não há dúvidas que expressões como "inválido",
"incapacitado" ou "diminuído" possuem uma carga semântica negativa, sendo facilmente explicável - e louvável - aquela alteração ocorrida na Constituinte. Considerou-se na
altura que a expressão "deficiente" era menos estigmatizante (curiosamente, em Espanha entende-se que a locução "deficiente" possui um sentido pejorativo, preferindo
falar-se em minusválido). Nos Países Baixos, operou-se uma alteração terminológica interessante - e em tudo idêntica à ocorrida em Portugal na revisão de 1997 -,
abandonando-se a designação "deficiente" (gehandicapte) em favor da expressão "pessoas com uma deficiência" (mensen met een handicap). Em Itália, a multiplicidade
de expressões existentes ao nível legislativo (mutilati, invalidi, subnormali, minoraú, disabili, inabili, portatori di menomazioni fisiche e sensoriale, etc.) tem vindo
a dar lugar, até por influência dos instrumentos jurídicos internacionais, aos conceitos de handicap e disabilità, que correspondem à ideia de pessoas com necessidades
particulares ou carências especiais. E, nos países de língua inglesa, há quem rejeite, em nome do ideal de uma maior integração, o conceito de disability, preferindo
falar em divers-ability ("habilidade-outra").
A alteração vocabular ocorrida com a revisão de 1997 está, pois, eivada de consequências no plano jurídico. Desde logo, ela vem assinalar que a deficiência não é uma
característica "essencial" ou "definitória" da pessoa humana na singularidade do seu devir. Por isso, não é possível tratar os cidadãos portadores de deficiência como um
grupo homogéneo, susceptível de ser unificado (ou caracterizado) por aquela qualidade. Nesse sentido, já a Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das
Pessoas com Deficiência - Lei n.º 9/89, de 2 de Maio - vinha afirmar, no n.º 2 do seu artigo 2.º, que "[As pessoas com deficiência não constituem grupos homogéneos, pelo
que exigem a definiição de respostas específicas que vão ao encontro das suas necessidades diferenciadas e identificáveis". Igualmente, o Conselho da Europa não deixa de
advertir para que "[A]s pessoas com deficiência não constituem um grupo uniforme de indivíduos com a mesma necessidade de apoio". Por outras palavras, o novo
conceito de "cidadãos portadores de deficiência" reitera a ideia de que "os deficientes" não existem como "categoria" una e totalizante, por oposição aos cidadãos
"normais". Desde logo, porque não existem cidadãos "normais", já que o "(...) nosso ordenamento jurídico não tutela (...) um arquétipo como a personalidade 'normal,
física ou sócio-culturalmente, abstractamente dominante, mas cada homem em si mesmo, concretizado na sua específica realidade física e na sua particular realidade moral",
como escreve RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA. É a essa luz que devem ser vistas as palavras do Deputado JORGE LACÃO no decurso dos trabalhos da quarta revisão
constitucional: "[E]sta [a deficiência] é encarada agora não na lógica de que cidadão com deficiência é, necessariamente, um deficiente, porque, nesse plano, porventura,
todos nós somos cidadãos deficientes, mas, sim, na de reconhecermos que qualquer cidadão pode ser portador de uma qualquer deficiência". Eis uma ideia recorrente
nos chamados "disability studies". Assim, diz-se, por exemplo, que "[E]m certos contextos, a incapacidade é o atributo da maioria, não da minoria" (1A6). Mais
incisivamente ainda, afirma-se que todos somos, em certa medida, incapazes e não deixa de se criticar o que se designa por "mito da perfeição corporal".
Justamente por isso, o projecto de revisão da Classificação Mundial das Incapacidades, da Organização Mundial de Saúde, vem afirmar: "(...) existe a convicção errónea de
que [esta classificação] trata apenas de pessoas com deficiências quando, na verdade, ela se aplica a todas as pessoas".
A introdução do conceito de "cidadãos portadores de deficiência", operada pela revisão de 1997, tem duas virtualidades. Por um lado, contribui para contrariar a lógica
daquilo que, na sua obra dedicada ao tema (Stigma, 1963), ERVING GOFFMAN designa como "estigma tribal" (tribal stigma), ou seja, o rótulo ou labéu que é adscrito em função
da pertença a um grupo social marginalizado ou desprezado. Com efeito, se a deficiência deixa de ser uma característica "essencial" ou "definitória" de uma pessoa ("o
deficiente"), passando a ser (mais) um seu atributo, igual a tantos outros, quebra-se, de algum modo, o prisma que encara os deficientes como um "grupo" (uma "tribo", no
dizer de GOFFMAN); pelo contrário, abre-se uma perspectiva "plural" que tende a atender às necessidades específicas de cada deficiente na sua diversidade e na sua
individualidade. Em segundo lugar, a referência à qualidade de "cidadãos" ("cidadãos portadores de deficiência") visa também inverter a lógica de "apatridia social" que
caracteriza o tratamento dos excluídos. O problema da cidadania constitui, com efeito, a questão ancilar da exclusão social, já que esta implica sempre um contexto
(dir-se-ia: um contexo "cívico" ou "comunitário") de onde se é excluído. Como bem assinala BRUTO DA COSTA, "(...) a noção de 'exclusão' suscita, desde logo, a pergunta
'excluído de quê?', ou seja, implica a existência de um contexto de referência, do qual se é, ou se está, excluído. A qualificação de 'social' ['exclusão social'} permite
interpretá-la como estando relacionada com a sociedade. Neste entendimento, a exclusão tem a ver com a cidadania". É certo que a cidadania dos deficientes pode ser
uma "cidadania bem pesada", recorrendo a uma expressão concebida por SUSAN SONTAG a propósito da doença, mas plenamente aplicável às situações de deficiência. Mas,
sendo ou não uma "cidadania bem pesada" - para recorrer novamente à terminologia de SUSAN SONTAG -, a cidadania dos portadores de deficiência é uma cidadania plena. Por
isso, ao contrário do que possa supor uma aproximação mais desprevenida, o n.º 1 do artigo 71.º não estabelece um princípio de equiparação de direitos e deveres entre
deficientes e não-deficientes (paralelo, por exempo, ao definido no artigo 15.º). Com efeito, se atentarmos na letra daquele preceito, verificamos que ela não afirma que
os cidadãos portadores de deficiência possuem os mesmos direitos e estão adstritos aos mesmos deveres dos restantes cidadãos; limita-se antes a proclamar que "gozam
plenamente e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição". Aliás, a própria necessidade de uma "cláusula de equiparação" poderia, porventura, ser questionada,
justamente à luz da ideia de inexistência de qualquer dissemelhança, do ponto de vista jurídico entre deficientes e não-deficientes.
A mudança ocorrida no texto constitucional não é certamente alheio o abandono de uma perspectiva individual (individual-centered approach) em favor de uma perspectiva
"ambiental" (person-environment approach) no tratamento da deficiência. Esse abandono é ditado pelo entendimento segundo o qual uma aproximação individual - ou,
talvez melhor, médico-individual - "descontextualiza" e "despolitiza" os processos sociais que levam à "invenção" da deficiência e, depois, à sua estigmatização.
Assiste-se, neste contexto, a um duplo movimento. Por um lado, há a passagem de um "modelo médico" para um "modelo social" na abordagem das deficiências. Por outro lado,
e em resultado daquela transição de paradigmas, ocorre uma abertura, no quadro do "modelo social", de duas perspectivas distintas: uma, centrada na busca de uma política
de identidade que unifique os esforços emancipadores - mas dispersos - das minorias ou dos oprimidos em geral; outra, na senda de uma aproximação universalista, procura
envolver toda a sociedade na problemática da deficiência.
Actualmente, é praticamente consensual a rejeição de uma aproximação médica e individualística (medical and individualistic approach) no tratamento da(s) defíciência(s).
Os mais radicais fazem mesmo um apelo - onde é claramente intutível o lastro do pensamento de FOUCAULT - à "desmedicalização" da deficiência. É que, consideram os seus
críticos, o "modelo médico" tende a ver a deficiência como uma situação similar à doença, concebendo-a exclusivamente como uma limitação funcional, ou seja, mais como um
provlema individual do que uma questão social, que deve ser resolvido através de medidas terapêuticas centradas no deficiente, não existindo a necessidade de alterar nem
o meio envovente, nem a sociedade em geral.
À rejeição do "modelo médico" subjaz a ideia de que a deficiência (física ou mental) é, à semelhança de outros conceitos, socialmente construída. Com efeito - e
independentemente da varidade das patologias que conduzem às deficiências e dos seus efeitos gravosos -, hoje em dia é relativamente pacífica a ideia de que a noção de
"deficiência" é um produto da consciência social ou, se se preferir, da "imaginação social". Trata-se, aliás, de uma proposta teórica que procura lançar pontes para
outros saberes, traçando, por exemplo, um paralelo com a noção de "infância" que, seguindo as investigações históricas de ARIES, também foi "inventada" nos tempos
modernos. A analogia mais usada é, todavia, com o conceito de "género" (gender), já que é pacífico, pelo menos no domínio dos "gender studies", que aquele conceito, por
oposição ao de "sexo" (biologicamente imposto), é socialmente construído e socialmente "aprendido".
A par da ideia da deficiência como "construção social",
frutifica a tese, a que atrás se fez referência, segundo a qual, num certo sentido, todos poderemos ser considerados "deficientes". Paralelamente, crê-se que a própria a
noção de "normalidade" é ilusória: "[A] ideia de que existe um paradigma universal, porventura definível em termos biológicos ou médicos, de 'habilidade' física [human
physical ability] é uma ilusão". Mesmo quem não subscreve esta tese, tende a reconhecer, pelo menos, que a "normalidade", à semelhança da "deficiência", é social
e discursivamente construída. E, a esse propósito, recordam-se tópicos desde o bónus pater famlias romano ao reasonable man, passando pelo homme moyen de ADOLPHE
QUETELET.
É este o quadro conceptual que fundou a transição do "paradigma médico" para o "paradigma social" na abordagem da deficiência. As características do "paradigma social"
são difíceis de definir (até porque, como já se disse, o mesmo possui uma grande heterogeneidade interna, comportando múltiplas - e, por vezes, contraditórias - abordagens). No fundo, ele vem afirmar que "a deficiência (...) é um produto do contexto social, não um atributo do indivíduo".
Pese embora o seu simplismo, o seguinte exemplo ilustra bem o que pretende o "modelo social": "se uma pessoa numa cadeira de rodas não consegue entrar na estação dos
correios da sua localidade por não haver qualquer rampa ou elevador, uma análise social dirá que o problema está na arquitectura do edifício, não nas pernas do
indivíduo".
Ao nível jurídico, o culminar da transição do medicai model para o social model dá-se primeiramente nos Estados Unidos, sobretudo a partir do momento em que o § 504 do
Rehabilitation Act de 1973 e a Secção 3.º (2) do American with Disabilities Act qualificam também como deficiente aquele que, apesar de não padecer de qualquer
enfermidade, é visto ou encarado como tal. Trata-se da consagração absoluta do "modelo social", que foi prosseguida no Disability Discrimination Act australiano, de 1992,
que considera como "disability" a deficiência que, não existindo ou não se manifestando, é todavia imputada a uma pessoa (cf, de igual modo, o que se dispõe na legislação
canadiana, mais precisamente no Ontario Human Rights Act, cit.)
No âmbito dos tribunais, o "modelo social" já foi acolhido, de certa forma, na jurisprudência do Supremo Tribunal canadiano, designadamente no caso Eaton (1997), onde se
afirmou que a deficiência "depende de coisas muito diferentes consoante o indivíduo em causa e o respectivo contexto". A necessidade de atender aos "factores contextuais"
é, aliás, uma constante da jurisprudência daquele Tribunal em matéria de deficientes, podendo mencionar-se os casos Law v. Canada (1999) e Granovski (2000). Mais
claramente, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, na decisão no caso Arline (1987) não deixou de realçar: "[A]o alterar a denição de 'pessoa deficiente', de modo a
incluir não apenas aqueles que se encontram sicamente enfermos mas também aqueles que são vistos como tal e que, em resultado disso, sofrem limitações em aspectos
cruciais da sua vida, o Congresso teve presente que os mitos e os medos existentes na sociedade em relação à deficiência e à doença são tão incapacitantes quanto as
limitações físicas que derivam de uma doença real".
A partir daqui, o "modelo social", como já se assinalou, cindiu-se, de certa forma, em duas perspectivas distintas: o chamado minority approach (ou civil rights approach,
por um lado, e o universal approach, por outro.
a) A "aproximação minoritária"
A "aproximação minoritária" (minority approach) procura fundar uma "política de identidade" (identity politics),
de contornos mais ou menos radicais, com base nos seguintes tópicos: por um lado, a defesa de uma "política do corpo" (body politics, bio-politics) de inspiração foucaultiana; por outro, a conceptualização do
labelling e da deviance como mecanismos de estigmatização e marginalização, tal como foi desenvolvida desde os anos sessenta por autores como GOFFMAN (Asylums, 1961;
Stigma, 1963), LEMERT (Human deviance, 1962) ou BECKER (Outsiders, 1963).
Um dos principais expoentes do minority approach é o politólogo norte-americano HARLAN HAHN, autor que, num conjunto de textos publicados desde os anos oitenta, vem
sustentando que a "minority group analysis", aplicada ao estudo da dinâmica social de marginalização em razão da raça, deve ser estendida à abordagem da deficiência. O objectivo central é, pois, o de prescrutar as afinidades entre os grupos minoritários, à luz da ideia de que "[Q]uase todas as minorias foram sujeitas a
tratamentos similares, que incluem o estigma da inferioridade biológica". Daí que, para esta corrente, se afigure como fulcral o conceito de opressão, que é
exercido, antes de mais, através de mecanismos de vigilância e disciplina do corpo, no quadro daquilo que FOUCAULT designou como "a hipótese repressiva".
Ora,
é a ideia de opressão (do corpo e através do corpo), que se pretende venha a constituir o traço de união entre grupos como as mulheres, os deficientes, os homossexuais ou
os membros de minorias étnicas. E, por isso, todos eles partilham o mesmo ideal de emancipação (ou de "reconhecimento", para usar as palavras de CHARLES TAYLOR). Neste
sentido, JÜRGEN HABERMAS observa que a ideia de reconhecimento público completo de cidadãos iguais se aplica "(...) aos Gastarbeiter [trabalhadores estrangeiros e outros
estrangeiros na Alemanha, aos croatas na Sérvia, russos na Ucrânia, e aos curdos na Turquia; aos inválidos, homossexuais, e por aí adiante".
Procurando concretizar esse projecto identitário comum, vários autores vieram estabelecer as fundações de uma teoria feminista da deficiência. Outros buscam
confluências com as aspirações dos movimentos em prol dos direitos dos homossexuais. Sustenta-se, nomeadamente, que, à semelhança do que ocorreu com os homossexuais, com
o chamado movimento gay pride - que teve a sua "Bastilha" nos incidentes ocorridos em 1969 no bar Stonewail Inn, em Nova Iorque -, os deficientes devem abandonar as
atitudes de autocomiseração que a sociedade "normal" lhes pretende impor, procurando antes caminhar na senda de um autêntico "orgulho na deficiência"
- é esta, de certa
forma, a ideia que subjaz à organização dos Jogos Paralímpicos. Pretende-se também encontrar pontos de contacto entre a situação dos deficientes e dos grupos
marginalizados (v. g., minorias raciais), no âmbito de uma abordagem multiculturalista. E, não por acaso, há ainda quem, a par do racismo e do sexismo, fale em
"defícientismo" (handicapism), pretendendo com isso significar uma "teoria e um conjunto de práticas que promovem o tratamento desigual e injusto de certas pessoas em
virtude da sua incapacidade física ou mental". Curiosamente, a tese do "deficientismo" surge a par - e com ela mantém, obviamente, estreitas ligações - da ideia
segundo a qual o aumento da esperança de vida, aliado à escassez de recursos médicos e aos défices prestacionais do Estado social, gera um novo tipo de preconceito, que
poderíamos designar por "idosismo" (do inglês "ageism"); no âmbito da teoria moral e da ética aplicada, há mesmo quem sustente que a idade deve servir de critério na
distribuição de recursos escassos (ex.: sempre que seja necessário optar entre um indivíduo mais novo ou mais velho na prestação de cuidados médicos, deve escolher-se o
primeiro).
Ultrapassando os limites da "política do corpo", certas correntes procuram mesmo instaurar uma "democracia radical", na senda de um projecto mais vasto que envolveria não
apenas as classes de cidadãos atrás citadas (mulheres, deficientes, homossexuais) mas todos os excluídos sociais em geral ou, melhor dizendo, todos os indivíduos (real ou
pretensamente) oprimidos, incluindo os trabalhadores. Este projecto tem como um dos conceitos-chave a ideia de "articulação", ou seja, a busca de uma intervenção activa e
coordenada de todos os marginalizados.
b) A "aproximação universalista"
A par desta "aproximação minoritária", existe, como já se deu nota, uma "abordagem universalista", de que o principal expoente é, porventura, IRVING ZOLA. Numa
síntese apertada desta abordagem, dir-se-á que, em seu entender, a "deficiência" não é um problema dos "deficientes", mas de toda a população, pois toda ela está em
risco, ideia perfilhada mesmo pêlos críticos dos sistemas de apoio aos deficientes, como RICHARD EPSTEIN.
c) Caminhos contemporâneos
Actualmente - e não sendo questionado o predomínio do "modelo social" -, trilham-se caminhos muito diversos, que oscilam entre dois pólos: por um lado, sustenta-se que só
um maior radicalismo poderá produzir frutos visíveis no plano prático da melhoria da vida dos deficientes; por outro, diz-se que os interesses dos cidadãos portadores de
deficiências serão melhor tutelados por uma aproximação menos retórica e mais realista.
O quadrante radical, como se referiu, exalta o significado político do corpo: "(...) o corpo transforma-se numa verdadeira questão política, porque não sendo um dado
biológico imutável é a origem e a consequência de um complexo processo de elaboração social, podendo mesmo garantir a integridade e a unidade política de uma
colectividade" - escreve o antropólogo JORGE CRESPO. Ora, no que respeita à deficiência física, é indiscutível a centralidade do corpo, como lugar de observação,
nomeação e exibição da "diferença". Tendo presentes estas duas ideias - o significado político do corpo e o papel do corpo na revelação da "diferença"
-, as
correntes mais radicais alinham, entre outras, as seguintes propostas:
-
aprofundando a ideia de que a deficiência é socialmente construída, há quem sustente que tal "construção" serve propósitos políticos: "(...) a deficiência é uma
construção que se destina a servir de categoria administrativa [administrative category] nos modernos Estados sociais";
-
por outro lado, há quem rejeite a pretensa "generosidade" da generalidade das leis sobre deficientes, considerando que as mesmas servem para perpetuar uma ordem social
que trata a deficiência de um modo paternalista e proteccionista. Esta perspectiva sustenta que a ordem jurídica acaba por rotular os deficientes como "incapazes", ou
seja, como indivíduos inaptos para tomar decisões sobre a condução dos próprios destinos. E, mais radicais ainda, certos autores não contestam apenas o tratamento
que o Direito tem conferido à deficiência (v. g. leis de protecção e apoio): indo mais longe, chegam a dizer que "(...) as políticas sociais, os programas de apoio e os
serviços de reabilitação contribuem para reforçar a construção social da deficiência";
-
certas correntes chegam a pôr em causa as ideias de empatia ou compaixão (cf. infra) e de inclusividade do "outro", considerando que o próprio conceito de "outro"
é potencialmente opressivo: "Quando concebemos pessoas como 'outros' agrupamo-las como objecto da nossa experiência, em vez de os encaramos como sujeitos nossos
iguais com quem nos podemos identificar".
O resultado mais impressivo desta abordagem consiste, porventura, na crítica à própria ideia de reabilitação (pelo menos, nos moldes em que vem sendo entendida e posta em
prática), afirmando-se que ela é excessivamente tributária do "modelo médico" e da imposição de padrões de "normalidade" socialmente construídos. Não se trata,
obviamente, de questionar as virtualidades da reabilitação no plano médico nem os eventuais efeitos positivos que a mesma produz na qualidade de vida dos cidadãos
portadores de deficiência. Considera-se, tão-só, que, por mais generosas que sejam, quaisquer intervenções na esfera individual - e, mais propriamente, na esfera do corpo
do indivíduo - não podem pôr em causa os valores da autonomia e da autodeterminação: "(...) a igualdade pretendida das circunstâncias actuais da vida e das posições de
poder não deve conduzir a intervenções 'normalizadoras' que restringem perceptivelmente as capacidades dos presumíveis beneficiários de moldarem as suas vidas
autonomamente", escreve JÜRGEN HABERMAS.
E este receio de intervenções "normalizadoras" que leva à rejeição da ideia segundo a qual a deficiência possa ser construída ou definida em contraste (ou por oposição) a
um padrão de "normalidade", o que é frequente. Pode referir-se, a título exemplificativo, que há quem, para caracterizar os cidadãos não-defícientes, não deixe de usar o
vocábulo "normais". De facto, muitas das caracterizações de deficiência apelam a um padrão de normalidade: "a deficiência é a condição que incapacita ou impõe
restrições à capacidade de a pessoa funcionar aos níveis normais (ou esperados) de actividade mental ou física", é a definição constante da Encyclopedia of disability and
rehabilitation (1995). Também a Classificação da Organização Mundial de Saúde dispõe que, "(...) no domínio da saúde, incapacidade corresponde a qualquer redução ou
falta (resultante de uma deficiência) de capacidades para exercer uma actividade de forma ou dentro dos limites considerados normais para o ser humano". E no mesmo
sentido vai o conceito de deficiência acolhido no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio: "[C]onsidera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda
ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica susceptível de provocar restrições de capacidade, pode
estar considerada em situações de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais tendo em conta a idade, o sexo e os factores sócio-culturais
dominantes" - desde logo, alude-se a "actividades consideradas normais"; e, mais ainda, torna-se como horizonte de referência os "factores sócio-culturais dominantes".
Noutro quadrante, também o Catecismo da Igreja Católica não deixa de afirmar que "[A] s pessoas doentes ou deficientes devem ser amaparadas, para que possam levar uma
vida tão normal quanto possível" (§ 2276, itálico acrescentado).
Ora, segundos estas correntes, a ideia de "normalidade" não só é socialmente construída como pode ser ameaçadora para os interesses daqueles que não se inserem no círculo
do "normal", já que, como observa CHANTAL MOUFFE, "(...) qualquer definição de um 'nós' implica a delimitação de uma 'fronteira' e a designação de um 'eles'". Na
verdade, nota AART HENDRIKS, a construção social da "normalidade" é apoiada discursiva e conceptualmente por um conjunto de padrões de distanciamento e de estigmatização,
tais como as dicotomias maniqueístas "normal"/"anormal", "nós"/"eles", "semelhança"/"diferença". Numa análise onde é visível o influxo do labeiling approach, HENDRIKS
conclui que, actualmente, a sociedade "aceita" as pessoas deficientes como "semelhantes" aos seres humanos, desde que elas se disponham a "ultrapassar" as barreiras que
os "separam" da "normalidade" e correspondam à "benevolência" da sociedade com uma atitude grata, passiva, reverente e dependente. "Por outras palavras
- escreve HENDRIKS - 'nós' generosamente concedemos aos deficientes o estatuto de 'seres humanos' desde que 'eles' se adaptem às normas da nossa sociedade". Trata-se daquilo que já se
designou por "terror da normalização" ou "tirania da normalidade".
Trata-se de uma questão que, como se vê, não deixa de possuir afinidades com o debate travado no contexto da "ciência do direito feminista" (feminist jurisprudence) que,
a propósito dos géneros masculino/feminino, discute os tópicos "semelhança", "igualdade" e "diferença". Gerado sobretudo com a publicação do livro In a different voice
(1982), de CAROL GILLIGAN (e, mais remotamente, na esteira da obra de SIMONE DE BEAUVOIR), esse debate visa discutir primordialmente os padrões de semelhança (sameness) e
de alteridade entre homens e mulheres.
Se este é o statu quo do prisma radical, no quadrante mais moderado reina uma grande incerteza sobre os desenvolvimentos futuros daquilo a que no universo anglo-saxónico
se designa por "disability studies". Não se sabe, por exemplo, qual o destino de conceitos-chave que até agora dominaram as novas abordagens de deficiência, como conceito
de "normalização".
Seja como for, existem alguns dados que, no seio da perspectiva mais moderada, podem já ser avançados:
-
por um lado, não falta quem queira fundar uma síntese capaz de integrar os contributos quer do "modelo social", quer do "modelo médico", reconhecendo que a deficiência
possui uma incontornável dimensão "política" mas que o "tratamento médico-individual" não deve ser completamente afastado. Parece ser essa, pelo menos, a proposta da
Organização Mundial de Saúde no projecto de revisão (versão P) da Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens;
-
existe, por outro lado, uma grande controvérsia sobre as virtualidades do "modelo social" e, acima de tudo, em torno da sua exequibilidade prática;
-
finalmente, e denunciando um certo "cansaço" em relação a uma controvérsia que por vezes se augura excessivamente teorética, há mesmo quem sustente que se assiste a um
"abuso" dos "modelos" no tratamento da problemática da deficiência.
Mas, mais curioso do que tudo isto, é a tensão que se verifica entre o próprio social model e o minority group approach. Neste sentido, JILL HUMPHREY tem vindo a
alertar de forma insistente para os riscos de uma "política de identidade" levada às últimas consequências; é que, no fim de contas, a identidade, por muito
"autocentrada" ou "autoconstruída" que seja, pode tornar-se, ela própria, sequestradora. Numa abordagem similar, HELEN LIGGETT chama desde há muito a atenção para
os riscos de uma "perspectiva minoritária" (minority group approach) na aproximação aos problemas da deficiência física e mental. Tais riscos derivam,
essencialmente, da especificidade dos deficientes ou, melhor dizendo, da heterogeneidade das deficiências: "(...) os deficientes não constituem um grupo minoritário
homogéneo, cujos membros partilham características que levam à discriminação, tal como sucede com os grupos rácicos ou étnicos e as mulheres".
Uma síntese de tudo isto é feita por ANITA SILVERS, autora que distingue quatro modelos no tratamento da deficiência:
-
o "modelo médico", que concebe a deficiência como um estado de debilidade dos indivíduos resultante dos seus defeitos físicos ou mentais;
-
o "modelo social", que concebe a deficiência como uma característica da sociedade que diminui os indivíduos, não como uma característica dos indivíduos que
os diminui perante a sociedade; assim, as disfunções (ou, pelo menos, certas espécies de disfunção) ligadas à deficiência são artificiais e remediáveis, e não
naturais ou imutáveis;
-
o "modelo minoritário", que concebe a deficiência como o produto de um ambiente social que responde à normalidade e à maioria e não às minorias
deficientes;
-
o "modelo moral", que concebe a deficiência como um estado de inferioridade, geralmente em resultado de uma limitação visível, que atinge os indivíduos por
causa dos erros passados dos seus progenitores ou dos seus próprios erros ou desvios de carácter.
Do ponto de vista jurídico, não há, como é óbvio, indicações em favor de uma ou outra aproximação, nem caberá ao Direito, naturalmente, tomar partido em favor de uma
perspectiva "minoritária", "universalista", "radical" ou "realista" do tratamento da deficiência. Existem, todavia, alguns dados interessantes. Por um lado, a recepção do
"modelo social" por diversos ordenamentos jurídicos parece ser um dado adquirido e irreversível. Mas, em simultâneo, outros sinais apontam, por exemplo, para uma recusa
de uma aproximação "minoritária", ou seja, de uma qualquer ideia de "articulação" (ou, pelo menos, de "similitude") entre categorias de cidadãos oprimidos. Assim, por
exemplo, no caso Cleburne v. Ceburne Living Cnter (1985), o Supremo Tribunal dos Estados Unidos recusou-se a aplicar aos doentes mentais o grau de exigência na avaliação
de eventuais discriminações das minorias raciais (o chamado strict scrutiny) e nem sequer o "nível intermédio de controlo" (intermediate level of review) a que recorre
nos casos de discriminação em razão do sexo, podendo mesmo questionar-se se não terá mesmo trilhado os caminhos da chamada differential review.
A Constituição
da República Portuguesa não opta, como é evidente, seja pelo "modelo médico", seja pelo "modelo social". No entanto, a alteração ocorrida em 1997 inscreve-se,
indubitavelmente, nas correntes que procuram convocar a sociedade em geral para o problema da deficiência - desde logo, ao rejeitar a ideia de que a deficiência é uma
categoria que caracteriza global e inelutavelmente a pessoa humana, procurando com isso dar um "sinal humanístico" (JORGE LACÃO). E não é descabido afirmar que as
palavras do Deputado JORGE LACão ("qualquer cidadão pode ser portador de uma qualquer deficiência") se aproximam, de algum modo, de uma "perspectiva universalista" no
tratamento da deficiência.
Deve notar-se, por outro lado, que a Constituição não usa o conceito de "deficiência" em sentido técnico. Explicando melhor, o conceito de "deficiência" acolhido no texto
constitucional é suficientemente flexível para abranger os três termos da classificação de PHLIP WOOD (ou, se se preferir, da classificação da Organização Mundial de
Saúde): deficiências stricto sensu, incapacidades e desvantagens (handicaps).
Mas se o artigo 71.º da Constituição é suficientemente flexível para abranger todas aquelas realidades, ele também não obriga, em contrapartida, que haja um tratamento
uniforme dos cidadãos portadores de deficiência ou, se se preferir, de todas as deficiências em geral. Pelo contrário, é a abertura a uma noção "pluralista" - e, de certo
modo, quase casuística - de deficiência que decorre primordialmente da alteração terminológica (mas também conceptual) ocorrida em 1997, que neste ponto se aproxima da
doutrina fixada por alguma jurisprudência italiana, nos termos da qual a apreciação da deficiência deve ser feita a partir dos dados concretos de cada caso ou do
Code of Practice for the Employment of People with the Disabilities in the Civil Service, da Irlanda (cf. supra). Ora, na senda desse "pluralismo" - que, aliás, já
decorria do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 9/89 - haverá justamente de reconhecer-se a possibilidade de um tratamento diferenciado em razão da gravidade, da natureza
(físicamental, permanente/temporáriaocasional) ou outros elementos caracterizadores da deficiência. Como salientou o juiz BRENNAN na decisão do Supremo Tribunal
australiano no caso Walter v. Public Transport Corporation (1992): "(...) as limitações - físicas, funcionais e mentais - são infinitamente variadas e criam necessidades
diferentes de acordo com a natureza e a extensão da incapacidade". Para mais, não existe apenas diversidade dos tipos ou graus de deficiência: há também uma diversidade
dos critérios definidores da deficiência. Pode tentar-se proceder a uma listagem das lesões ou das enfermidades ou a uma graduação das incapacidades. Pode atender-se
unicamente ao factor físico ou psíquico, circunscrevendo a análise à medição dos efeitos da lesão sobre a integridade (física ou mental) da pessoa. Pode ainda, numa
abordagem mais vasta, procurar avaliar-se a projecção das lesões sobre a capacidade de trabalho, seja sobre a capacidade de exercer funções anteriormente desempenhadas
(aquilo que em Espanha se designa como "critério profissional"), seja sobre a capacidade genérica para exercer qualquer tipo de trabalho (o chamado "critério laboral", na
terminologia espanhola). Noutras abordagens, pode também tentar verificar-se as consequências da lesão para a "capacidade geral de ganho", ou seja, para a obtenção de
recursos e a preservação da autosuficiência. Ou, numa visão ainda mais vasta, pode procurar avaliar-se o efeito da deficiência em todas as esferas da vida da pessoa
afectada (laboral, familiar, social, etc.). E, para mais, é possível ensaiar combinações de todos estes critérios.
Resta dizer que, à semelhança do que se disse a propósito da igualdade de oportunidades e da proibição de discriminações, também aqui se poderá questionar se a norma do
artigo 71.º da Constituição é aplicável apenas nas relações entre deficientes e não-deficientes ou se vale também para as relações entre deficientes. E a resposta,
apoiada nos considerandos que se fizeram precedentemente, também não poderá deixar de se inclinar no último sentido: pelo menos nos termos da sua intersecção com o
princípio da igualdade, o artigo 71.º aplica-se também no domínio das relações "internas" entre cidadãos portadores de deficiência. Aqui, com efeito, a norma do artigo
71.º é tomada como referente do artigo 13.º, até porque - escreve JORGE MIRANDA - "(...) a igualdade não é uma 'ilha', é 'parte do continente'; encontra-se conexa com
outros princípios, tem de ser entendida - também ela - no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição material".
§ 4.º OUTROS PONTOS DE
APOIOAlém das normas dos artigos 13.º e 71.º da Constituição, podem ainda enunciar-se três pontos de apoio argumentativos que merecem ser convocados por serem
especialmente ilustrativos e clarificadores da posição dos cidadãos portadores de deficiência no quadro da Constituição da República. Eles não devem, todavia, integrar
prima facie o "bloco de constitucionalidade" de defesa dos direitos dos cidadãos portadores de deficiência: nuns casos, porque se tratam de princípios ou normas de cariz
"programático" e "social"; noutro caso, que é o do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), porque a protecção por si conferida
tem um carácter "acessório" e, por assim dizer, "subsidiário", funcionando como ultima ratio.
4.1. A qualidade de vida
O primeiro tópico que deve
ser ponderado a propósito da condição jurídico-constitucional dos cidadãos portadores de deficiência é o da qualidade de vida. Como se sabe, a revisão constitucional de
1989 eliminou a norma do artigo 66.º, n.º 4 da Constituição, que dispunha: "[O Estado deve promover a melhoria progressiva e acelerada da qualidade de vida de todos os
portugueses". Os comentadores entendem, todavia, que a protecção constitucional nesta matéria não resultou diminuída, tendo em conta o que se dispõe nos artigos 9.º,
alínea d) 81.º, alínea a), e 90.º da Constituição. E a circunstância de a menção à qualidade de vida constar dos artigos 9.º, 81.º e 90.º da Constituição - e não
apenas do artigo 66.º - permite situá-la num âmbito mais vasto, desligando-a do "referente ecológico" que, segundo certas correntes, continuaria a marcá-la indelevelmente. Na verdade, como escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, "(...) embora a dimensão antropocêntrica de ambiente aponte para a qualidade de vida, este conceito não
se identifica com o de ambiente. A qualidade de vida é um resultado, uma consequência derivada da interacção de múltiplos factores no mecanismo e funcionamento das
sociedades humanas e que se traduz primordialmente numa situação de bem-estar físico, mental, social e cultural, no plano individual, e em relações de solidariedade e
fraternidade no plano colectivo". Não por acaso, toda a construção dos direitos sociais no Japão surgiu ligada à ideia da necessidade de instauração de uma "vida
decente", à luz da norma constitucional do artigo 25.º, cujo n.º 1 dispõe que "todos terão o direito a alcançar os níveis mínimos de uma vida plena e civilizada".
Situada num âmbito mais vasto e agora desligada do "referente ecológico", a ideia de qualidade de vida surge naturalmente associada à problemática dos direitos dos
deficientes. Basta dizer que, na recente Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiências para o Novo Século, adoptada na Conferência de Pequim, em 12 de Março de
2000, a primeira reivindicação foi justamente a da melhoria da qualidade de vida global dos deficientes. Também na doutrina se chama a atenção para a necessidade de
assegurar o bem-estar (well-being) e a qualidade de vida dos cidadãos portadores de deficiência: depois de contrapor dois sentidos de igualdade - a "igualdade de
bem-estar" (equality ofwelfare) e a "igualdade de recursos" (equality o f ré s oure e s) - DWORKJN alude ao "(...) poder que a igualdade de bem-estar detém para explicar
o motivo pelo qual as pessoas com deficiências físicas ou mentais (ou com outras necessidades especiais) devem beneficiar de recursos suplementares (...) Um esforço na
senda da igualdade de bem-estar (...) deve sempre integrar as nossas intuições sobre os deficientes".
Se a defesa da qualidade de vida está presente em muitos textos constitucionais - por exemplo, nas constituições da Tailândia (artigo 56.º), da Roménia [artigo 134.º, n.º
2, alínea)], do Paraguai (artigo 6.º), da África do Sul (preâmbulo) e de Espanha (preâmbulo) - a caracterização daquele conceito não é fácil de realizar. Numa primeira
abordagem, é particularmente incisiva a definição de "qualidade de vida" utilizada por DEREK PARFIT: "aquilo que torna uma vida melhor" (what makes a life go best).
No âmbito específico dos deficientes, foi ensaiada uma definição de "qualidade de vida" no Plan de Acción para Personas com Discapacidad 1997-2002, aprovado pelo Governo
espanhol em Novembro de 1996; de acordo com aquele Plano, a qualidade de vida consiste na "(...) auto-safisfação da pessoa portadora de deficiência nas condições de vida
que possui em casa, na escola ou empresa e no seio da comunidade". E, na verdade, entende-se geralmente que, na perspectiva dos cidadãos portadores de deficiência,
a melhoria da qualidade de vida assume preponderantemente uma dimensão subjectiva e individual. Por isso, insiste-se na ideia de "satisfação com a vida" (life
satisfaction), afirmando-se que, na avaliação dos níveis de qualidade de vida, é fundamental aquilo que os inquiridos consideram ser os padrões de uma "vida boa" (good
life).
Esta tese não anda longe da ideia de "realização de um plano de vida" (fullfilment of a plan of life), desenvolvida por RAWLS, que parece encontrar, assim, um campo de
aplicação privilegiado no domínio dos direitos dos deficientes. O aprofundamento dos espaços de autonomia e daquilo que nos Estados Unidos se designa por
"funcionamento adaptativo e independente" (adapative or independe functioning) constitui um aspecto nuclear do incremento da qualidade de vida dos deficientes.
Considera-se que, quanto mais os indivídos se controlarem a si próprios e ao ambiente que os rodeia, maior será a sua qualidade de vida. Assim, já nos anos setenta ALEX
ZAUTRA e DARIENNE GODDHART demonstraram tecnicamente que a qualidade de vida está relacionada com os níveis de autodomínio self-mastery) e FRANK ANDREWS e STEPHEN WITHEY
sustentaram que o mais importante indicador da satisfação com a vida é a chamada "auto-eficácia" self-efficacy).
É neste contexto que emerge o conceito de "vida independente" (independent living), já adoptado nas Standard ules das Nações Unidas. Esse conceito foi introdzido nas
Standard rules justamente por pressão dos movimentos dos direitos dos deficientes, que rejeitaram o "modelo médico" de tratamento da deficiência considerando que o mesmo
favorecia a dependência em relação a cuidados prestados por terceiros. O movimento a favor da independe living foi criado no início dos anos setenta nos Estados Unidos
com base nos Centers for Independem Living (CIL): o primeiro centro foi fundado em 1972 por ED ROBERTS em Berkeley, na Califórnia, tendo como base uma ideia de
"auto-ajuda" ou de "ajuda entre iguais" que havia sido desenvolvida no seio dos grupos de alcoólicos anónimos.
Paralelamente, o movimento da independent living foi marcado
decisivamente pelo conceito de "normalização" cunhado pelo sociólogo canadiano WOLF WOLFENSBERGER (Normalization, 1972) - a ideia de que os deficientes teriam uma vida
mais "normalizada" se as expectativas da comunidade em relação a eles fossem também sujeitas a uma orientação cultural "normalizadora" - e, acima de tudo, pela crítica ao
"modelo médico" e ao "modelo de reabilitação" no tratamento das deficiências (levada a cabo, em especial, por GERBEN DEONG). Em lugar de ter de (auto)assumir o papel
passivo de paciente o cidadão portador de deficiência deve, segundo o independem living, assumir-se como um consumidor com direitos. Na prática, a "vida independente"
recorre a mecanismos como: a opção pela manutenção no domicilio particular (residential option), em lugar do internamento; o papel nuclear dos chamados
"assistentes pessoais" [muitas vezes, eles próprios deficientes (peer visitors)]', a concessão de apoio jurídico; enfim, a importância do aconselhamento por outros
deficientes (peer-counseiling), à luz da noção de que "(...) aqueles que conhecem melhor as necessidades dos deficientes e o modo de lidar com elas são os próprios
deficientes" (EDWARD ROBERTS).
O movimento promoveu uma Conferência Europeia para uma Vida Independente (Estrasburgo, 1989), que levou à criação da European
Network on Independem Living (ENIL). A ideia logrou aplicação em vários locais, podendo citar-se, a título puramente ilustrativo, o trabalho precursor, ao nível
europeu, da Cooperativa de Estocolmo para a Vida Independente (STIL), o programa espanhol MIFAS ou, já fora da Europa, a difusão dos "centros de vida independente" no
Canadá. Do ponto de vista terapêutico e de reabilitação, a ideia de "vida independente" implica, entre o mais, a obrigatoriedade de informar o deficiente sobre tudo
o que se relacione com a sua deficiência, designadamente as opções e escolhas que tem ao seu dispor.
A concepção da "vida independente" foi consagrada nas Normas sobre Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiência, aprovadas pela Resolução 48/96 das Nações
Unidas. Na União Europeia, foi desenvolvido o programa HELIOS, por decisão do Conselho de 18 de Abril de 1988. E, ao nível judicial, algumas decisões não deixaram de
sublinhar que os deficientes tinham o direito a um tratamento "num meio o menos restritivo possível" (in the least restritive environment). A busca de ambientes
menos restritivos levou a uma alteração radical no tratamento de certas deficiências que ficou conhecido como movimento de "des-institucionalização". Concebida na
esteira do conceito de "normalização" - e, bem assim, da crítica às "instituições totais" realizada por GOFFMAN (Asylums, 1961) ou ROTHMAN (The discovery of the asylum, 1971) e popularizada por obras cinematográficas como Voando sobre um ninho de cucos (1975), de MILOS FORMAN
-, a
"des-institucionalização" visa, em traços gerais, substituir o tratamento em instituições especializadas (v. g. hospitais) pelo acolhimento em centros comunitários.
A rejeição das "instituições totais" em favor de um tratamento mais "autocentrado" (ex.: com permanência no domicilio) tem aumentado exponencialmente, em paralelo com o
aprofundamento da consciência dos riscos de "ghetização" de amplas franjas da sociedade, dos deficientes aos idosos. Basta referir, a título exemplifícativo, que,
só nos Estados Unidos, o número de deficientes mentais internados em instituições públicas decresceu de cerca de 195.000 para cerca de 87.000 entre 1968 e 1989; em
contrapartida, o número dos moradores em lares comunitários aumentou, entre 1977 e 1988, de 40.000 para 125.000. O movimento de "desinstitucionalização" levou,
pois, ao desenvolvimento de uma nova filosofia de reabilitação, que enfatiza o papel do envolvimento comunitário em detrimento de um "modelo médico" puro. E estas
considerações não deixaram já de extravasar para o plano jurídico: basta relembrar que, como se referiu, o Supremo Tribunal norte-americano, no caso Olmstead v. L.C. et
al. (1999), cotejou o internamento dos deficientes em instituições estaduais (state-run institutions) e o seu apoio por instituições comunitárias (community based
arrangements), concluindo que, se fosse essa também a intenção do deficiente, estas últimas eram de preferir.
Outro conceito extremamente importante na nova filosofia de tratamento da deficiência é o de "apoio razoável" (reasonable accomodation). Nos Estados Unidos, esse conceito
foi introduzido, ao nível legislativo, no Título VII do Civil Rights Act de 1964 (para proteger as práticas religiosas dos trabalhadores), sendo depois acolhido na Secção
504. do Rehabilitation Act e, acima de tudo, no American with Disabilities Act. Em termos genéricos, pode ser definido como o conjunto das medidas de "(...)
fornecimento ou transformação de aparelhos, serviços, instalações, modificação de práticas ou procedimentos em ordem a assegurar a uma pessoa em particular uma dada
actividade ou programa específicos". Outros caracterizam-na como a remoção das barreiras criadas pela sociedade de modo a que os indivíduos possam mostrar as suas
qualidades. Ainda que os seus contornos sejam mais difíceis de precisar do que os da independent living, é inquestionável que todas as medidas de promoção da
mobilidade física constituem uma reasonable accomodation para os cidadãos portadores de deficiência.
Em síntese, desde o final dos anos sessenta assiste-se à passagem de um paradigma de "protecção" para um paradigma de "preparação", caracterizando-se o primeiro pela
prestação de serviços de apoio aos deficientes e por uma ideia de protecção recíproca (proteger o deficiente da sociedade e a sociedade do deficiente) simbolizada na
instituição de saúde (ex.: hospital); a "preparação", por seu turno, assenta nas ideias de tratamento no meio "menos restritivo possível" e de "vida independente" e tem,
pois, o seu símbolo nos serviços comunitários (community-based services). No início dos anos oitenta, ocorre a transição de um paradigma de "preparação" para um paradigma
de "participação", onde se enfatiza a necessidade de o deficiente tomar parte activa na condução dos destinos da comunidade, apelando-se para ideias como "escolha",
"presença na comunidade", "competência", "participação na comunidade" e "respeito". O símbolo deste paradigma é, nos Estados Unidos, o desenvolvimento de programas
federais de financiamento do emprego de deficientes.
No contexto de um paradigma de "participação" e envolvimento comunitário da pessoa humana, a mobilidade física representa, sem dúvida, um dos pontos mais elementares da
garantia de uma vida com qualidade. É extremamente complexo, como decerto se compreenderá, definir padrões ou critérios de aferição dos níveis de qualidade de vida. Para mais, o conceito de bem-estar pode ser tomado quer ao nível individual quer ao nível colectivo (ou "social") e ambos nem sempre coincidem.
A dificuldade de definição de padrões de "qualidade de vida" é adensada pela circunstância de certos autores apresentarem critérios alteativos a uma simples abordagem
"quantitativa" ou "estatística"; é o caso do chamado capabilities approach, concebido por AMARTYA SEN e aprofundado por MARTHA C. NUSSBAUM, nos termos do qual, em vez de
se indagar quais os seus desejos ou a quantidade de recursos de que dispõem, se deve saber o que podem as pessoas fazer ou ser. A alternativa proposta por SEN e
NUSSBAUM é extremamente interessante para a problemática das deficiências (físicas e mentais), pois assenta no pressuposto de que o "nível de vida" (standard of living)
ou a "qualidade de vida" {quality of life) dependem menos dos meios disponíveis do que das "capacidades possíveis" e é em torno das capabilities e das human functionings
que deve ser avaliada a desigualdade social.
Ora, uma das mais fucrais "capacidades" é, sem dúvida, a mobilidade física. "A mobilidade - escreve SUE NAPOLITANO - é um aspecto fundamental da vida humana e da
sociedade. E através dela que, enquanto crianças, desenvolvemos o nosso sentido do espaço; e é através dela que, literalmente, obtemos aquilo que queremos, sendo um
factor importante da nossa capacidade para participar na sociedade. Sc uma sociedade quiser punir ou retirar poder a um dado indivíduo ou grupo, uma das formas típicas de
o fazer é colocando entraves à mobilidade, como acontece, por exemplo, através das prisões (...)". Na verdade, basta recordar, a título exemplificativo, que certos
autores, ao avaliarem o modo como devem ser tratados os nascituros de um ponto de vista ético - designadamente, no que respeita à admissibilidade do aborto -, atendem,
entre outros, ao critério da "qualidade de vida potencial" que os mesmos irão ter após o nascimento e integram nesse critério, naturalmente, a sua mobilidade. Neste
contexto, uma justificação particularmente sugestiva para legitimar, em termos genéricos, a concessão de apoios à mobilidade dos deficientes pode encontrar-se no seguinte
excerto de Amicus:
-
"Se o recém-eleito Presidente Franklin D. Roosevelt, ao viajar em 1933 de Hyde Park, Nova Iorque, para Washington, D.C., para a sua tomada de posse, tivesse de contar
apenas com os serviços de transportes normais, nunca lá teria chegado. Desde logo, não seria capaz de subir as escadas de um autocarro ou de um comboio. Se tivesse
escolhido o avião, provavelmente ser-lhe-ia negado o bilhete, a menos que tivesse um não-deficiente como acompanhante. Uma vez chegado a Washington, não só depararia
novamente com autocarros inacessíveis, mas também com condutores de táxis relutantes em transportar um passageiro com uma cadeira de rodas. (...) Poucas questões são tão
importantes para os deficientes como a existência de serviços de transportes acessíveis. O transporte pode fazer a diferença entre um trabalho com significado e a mera
subsistência, entre partilhar a companhia de amigos ou estar isolado, entre desfrutar o mundo das artes, do desporto ou da vida pública ou ser privado dessas dimensões da
existência. A disponibilização de meios de transporte acessíveis afecta directamente a qualidade de vida".
Noutra perspectiva, pode referir-se que os inquéritos ao bem-estar e qualidade de vida levados a cabo pelo Instituto de Investigação Social da Suécia desde 1968 (e que
procuram ultrapassar uma mera avaliação "quantitativa" do nível de vida, baseada na distribuição do Pib per capita) tomam, como indicadores do tipo "saúde e acesso a
cuidados médicos", a capacidade de caminhar 100 metros (o que é extremamente curioso para o debate sobre a importância da mobilidade), sintomas de doenças e a
regularidade dos contactos com médicos e enfermeiras. Nos três grandes inquéritos já efectuados - 1968, 1974 e 1981 - a propósito da mobilidade eram realizadas não menos do que três perguntas: se o inquirido conseguia caminhar 100 metros sem problemas, se era capaz de subir e descer escadas sem dificuldades e se conseguia correr 100 metros sem problemas.
Fora do universo dos países escandinavos - cujas preocupações pela indagação do bem-estar dos cidadãos se prendem naturalmente com a avaliação dos níveis eficiência do
figurino do Estado social aí instituído - não é difícil encontrar exemplos de modelos em que a mobilidade física constitui um dos elementos de aferição da qualidade de
vida. Assim, no Sickness Impact Profile (SIP), desenvolvido em 1976 e 1981 por MARILYN BERGNER para avaliar o impacto de diversas formas de doença na qualidade de vida
das pessoas, o bem-estar físico é estudado em três dimensões: deslocação \ambulation (A)], mobilidade [mobilily (M)] e cuidados corporais e movimento [body care and
movement (BCM)]. Depois, em cada uma destas dimensões, colocaram-se as seguintes questões: no que se refere à ambulaüon - "só consigo andar curtas distâncias ou paro para
descansar frequentemente" e "não caminho de todo"; no que se refere à rnobility - "mantenho-me sempre no mesmo compartimento" e "atasto-me de casa apenas por breves
períodos"; no que se refere ao body care and movement - "não consigo banhar-me" e "não tenho destreza nos movimentos". Não deixa de ser impressiva a circunstância de
todos os indicadores utilizados se ligarem, directa ou indirectamente, à capacidade de locomoção, à mobilidade e à destreza de movimentos. Por outro ado, o Quality of Life
Index (QLI), desenvolvido em 1981 por WALTER SPITZER para medir a qualidade de vida dos pacientes de cancro, apresenta os seguintes indicadores: actividade (activity),
vida quotidiana (daily living), saúde (health), apoio (support), etc., de onde consta, entre outros, a mobilidade.
Finalmente, o Health Status Index (HSI), criado
em 1975 por MILTON CHEN, S. FANSHEL e outros, que se destina a medir os níveis funcionais dos doentes, assenta em três indicadores: escala de mobilidade (mobility
scale), escala de actividade física (physical activity scale) e escala de actividade social (social activity scale). Quer a escala de mobilidade, quer a
escala de actividade física contêm questões do seguinte género: uso de transportes públicos/capacidade de conduzir sozinho, necessidade de auxílio para usar os
transportes públicos ou viatura própria, capacidade de sair de casa sozinho, capacidade de caminhar livremente sem limitações, capacidade de se deslocar
autonomamente ainda que com auxílio de instrumentos etc..
O problema da definição de padrões e indicadores da qualidade de vida não se circunscreve ao universo dos países escandinavos e dos Estados Unidos. Em França,
desenvolveram-se, por exemplo, as escalas PQVS (da autoria de uma equipa do INSERM da Universidade de Lyon) e SIQUAV (da autoria de MICHEL BRIOUL). Esta última toma como
referência os seguintes indicadores:
-
a) equilíbrio somático;
-
b) bem-estar psicológico;
-
c) relações e comunicação;
-
d) libido;
-
e) auto-realização (réalisation de soi), que compreende a criatividade, expressão, autonomia, liberdade de escolha e a identidade social;
-
f) vida quotidiana, que visa avaliar os níveis de conforto e satisfação nos domínios laborai, recreativo, etc.;
-
g) estima e inserção psicossocial.
De natureza multifactorial e baseada num questionário de 50 items, esta escala está vocacionada para os doentes e deficientes mentais. Ainda assim, muito dos tópicos
que contém são ilustrativos daquilo que, numa visão de conjunto, representa a ideia de "qualidade de vida".
Num âmbito mais genérico, R. SCHALOCK analisou os diversos métodos de medição da qualidade de vida, identificando em todos eles três componentes essenciais:
-
controlo
externo (environmental control) que equivale ao domínio que o indivduo possui em relação ao ambiente que o rodeia, no que concerne às actividades quotidianas,
alimentação, vestuário, obtenção de salário, encontros, lazer, privacidade, religião;
-
envolvimento comunitário (community involvement), que se liga a tarefas como o
trabalho, actividades recreativas e educação;
-
relações sociais com familiares, vizinhos, amigos, colegas.
Por seu turno, O'BRIEN sustentou que, em ordem a alcançar um
nível satisfatório de qualidade de vida, são necessárias cinco condições: 1) estar integrado na comunidade; 2) desenvolver relações pessoais; 3) fazer escolhas; 4)
desenvolver as competências pessoais; 5) exigir o respeito dos outros membros da comunidade. Trata-se, no fundo, de incrementar o "justo amor de si mesmo", para recorrer
a uma expressão utilizada, a propósito do suicídio, no Catecismo da Igreja Católica (§ 2281).
Procurando concretizar estas ideias no plano da avaliação da qualidade de
vida, foram ensaiadas novas metodologias de aferição, como as "entrevistas temáticas" de ATKINSON ou o método "presença constante" (being there" methodology) de
WILKINSON. Actualmente, considera-se que qualquer questionário de avaliação da qualidade de vida tem de conter três tipos de questões:
-
relevância (relevance):
valor que um dado indivíduo coloca num elemento particular da qualidade de vida;
-
frequência: tipo ou nível de ligação que a pessoa mantém com esse elemento;
-
satisfação (satisfaction): se esse nível de envolvimento é aceitável ou se, pelo contrário, seria necessário um contacto mais frequente ou profundo.
Transpondo estes tópicos - auto-realização, vida quotidiana, relações interpessoais, inserção psicossocial - para o domínio específico dos deficientes físicos não é
difícil perceber a importância da mobilidade e da capacidade de deslocação e movimentação para a garantia da qualidade de vida das pessoas. Ora, se se tiver presente que,
segundo os dados do Inquérito Nacional às Incapacidades, Deficiências e Desvantagens (cit.), a incapacidade de locomoção é o segundo tipo de incapacidade mais vulgar,
facilmente se concluirá que a garantia de instrumentos de mobilidade assume uma dimensão nuclear da promoção do bem-estar e da qualidade de vida de um número
significativo de cidadãos.
4.2. O direito ao desenvolvimento da personalidade
Em segundo lugar, o tratamento da problemática dos direitos e dos deveres
dos deficientes não pode dispensar, sobretudo após a revisão constitucional de 1997, uma referência ao direito ao desenvolvimento da personalidade (cf. o artigo 26.º, n.º
1, da Constituição).
O Tribunal Constitucional português já teve ocasião de explorar as virtualidades deste direito, a propósito da interrupção voluntária da gravidez, no Acórdão n.º 288/98, onde afirmou, designadamente, que o mesmo engloba "a autonomia individual e a autodeterminação" e assegura "(...) a cada um a liberdade de traçar o seu próprio
plano de vida".
Ainda que se possa dizer que, de algum modo, este direito se encontrava presente na Constituição porquanto esta já salvaguardava a dignidade da pessoa humana, é
indiscutível que a sua consagração expressa no texto constitucional, ocorrida após a revisão de 1997, lhe veio dar uma especial autonomia e uma nova densidade regulativa.
Há mesmo quem vá ao ponto de falar de "(...) uma revolução (silenciosa) no sistema constitucional de direitos, liberdades e garantias".
Os trabalhos parlamentares da quarta revisão mostram que, na perspectiva dos Deputados, o cerne essencial do direito ao livre desenvolvimento da personalidade [free
Entfaltung der Personlichkeit) consiste na tutela da individualidade. Nesta linha, já se observou que, com a consagração do direito ao desenvolvimento da
personalidade, se tratou de "(...) proteger aquilo que mais essencialmente define cada ser humano (único e irrepetível, original ou igual aos demais), assegurando a cada
pessoa o direito a escolher o seu destino e a exigir tanto o reconhecimento da sua diferença como a pedir que a lei não trate discriminatoriamente as diversas
orientações, nem impeça a sua expressão".
A tutela da autonomia e da autodeterminação individuais - no fundo, da "auto-instituição" da pessoa humana e do seu "direito à diferença" - não deve, porém, fazer
esquecer que "[O] desenvolvimento da personalidade é por natureza comunicativo e ocorre em interacção, tendo como contexto necessário as relações com as outras pessoas no
'mundo-da-vida'", como bem assinala PAULO MOTA PINTO. E há mesmo quem sustente que, não só a personalidade, mas a própria identidade (humana) é moldada ou
construída dialogicamente: "[Tornamo-nos em verdadeiros agentes humanos, capazes de nos entendermos e, assim, de definirmos as nossas identidades quando adquirimos
linguagens humanas de expressão, ricos de significado"; "A minha própria identidade depende, decisivamente, das minhas reacções dialógicas com os outros". Uma ideia
análoga é perfilhada por ANTHONY GIDDENS, que afirma: "[Uma caractestica discursiva ancoradora da auto-identidade é a diferenciação linguística entre 'eu/mimtu' (ou seus
equivalentes)". Este corpus conceptual - que já foi denominado de "teorias relacionais do eu" (relational theories of the self) - sustenta a tese do "eu"
"sobrecarregado" (encumbered) ou "situado", cuja natureza e identidade são definidas pelo desempenho de papéis sociais. Estas teorias do relational self foram
capturadas pela filosofia feminista, que veio sustentar a natureza constitutiva das relações interpessoais para a identidade, seja das relações familiares seja, num
plano mais amplo, das relações de amizade (M. FRIEDMAN, What are friends for? 1993). As investigações psicológicas de JONH BOWLBY (Maternal care and mental health,
1966, Attachment, 1971), de DANIEL STERN (The intyerpersonal worid of the infant, 1985) e de JESSICA BENJAMIN (The bonds of love, 1988) parecem confirmar empiricamente a
importância das relações interpessoais (designadamente, da ligação afectiva mãe/filho) para o desenvolvimento da personalidade infantil. E, de um prisma filosófico,
deve recordar-se enfim, que, de acordo com EMMANUEL LEVINAS, a subjectividade consiste numa reacção ao(s) outro(s), ideia que, de algum modo, já se encontrava presente na
Fenomenologia do Espirito hegeliana. Ora, são justamente as correntes pós-hegelianas que vêm sustentar, numa abordagem pouco favorável à ideia de integração dos
excluídos (v. g., dos deficientes), que a construção da identidade é feita através da rejeição hostil ou, se se preferir, da exclusão humilhante do "outro", tese
sufragada, com diferentes matizes, por MARY DOUGLAS (Puríty and danger, 1969), JULIA KRISTEVA (Pouvoirs de horreur, 1980, e Étrangers à nous-mêmes, 1988), JUDITH BUTLER
(Gender trouble, 1990, Bodies that matter, 1993) ou TERESA BRENNAN (History after Lacan, 1993). Ou, para usar a expressão cruel de JOSÉ GIL, "Os homens precisam de
monstros para se tornarem humanos".
Existe, pois, um relativo consenso em torno da ideia segundo a qual, pela positiva ou pela negativa, a ligação aos outros é essencial para a construção do "eu" (self) do
indivíduo. Mas essa ligação aos outros é mediada pelo corpo de cada um e suas "diferenças" (ou "deficiências"). Daí que se afirme que o self é um projecto do corpo.
E daí, enfim, duas conclusões extremamente importantes para o debate sobre o lugar constitucional dos deficientes: em primeiro lugar, a consciência de que o
desenvolvimento da personalidade se faz com os outros supõe, naturalmente, a garantia das condições para a afirmação do "ser-no-mundo" (HEIDEGGER), avultando, entre essas
condições, a mobilidade física; em segundo lugar, a consciência de que, se a interação dos outros se realiza (também) através da mediação do corpo, os deficientes físicos
poderão encontrar-se numa situação particularmente desfavorável no que concerne ao desenvolvimento da sua personalidade.
Por outro lado, considera-se que o reconhecimento do direito ao livre desenvolvimento da personalidade comporta uma dupla dimensão: a tutela da personalidade, enquanto
substrato da individualidade, e a tutela da liberdade geral de acção. No âmbito desta última, inclui-se a liberdade de deslocação física, tal como o Tribunal
Constitucional alemão concluiu em 6 de Janeiro de 1957, a propósito do jus emigrationis, no caso Elfes. Nessa decisão, o Tribunal adoptou uma concepção muito ampla
do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, afirmando, entre o mais, que o n.º 1 do artigo 2.º da Grndeset. contém "(...) um direito fundamental independente
que garante a liberdade geral da acção humana". Apesar de criticada por diversos sectores da doutrina alemã, aquela concepção foi confirmada posteriormente em
múltiplas decisões do Bundesverfassungsgericht. E, ainda que num contexto e com um alcance de todo em todo diferentes, entre nós o Tribunal Constitucional já
reconheceu que a liberdade ambulatória se inscreve no âmbito da liberdade consagrada no artigo 27.º da Constituição. A propósito deste jus ambulandi, RABINDRANATH
CAPELO DE SOUSA realça o seguinte:
"[Nas liberdades físicas salientam-se a liberdade de movimentação corporal e de circulação e a liberdade de disposição corporal. A liberdade de movimentação corporal e de
circulação, juridicamente subjectivada, foi uma das primeiras reivindicações do homem como direito fundamental, a ponto de a Magna Carta só a tal liberdade se referir, e,
nomeadamente, implica que ninguém possa ser (...) impedido de se movimentar (...), e que toda a pessoa tenha o direito de livremente movimentar-se, circular (...)".
Num plano não-jurídico, reconhece-se, efectivamente, a importância da liberdade de movimentação corporal e, sobretudo, da interacção e da situação do corpo no espaço.
Basta recordar, como das mais significativas, as abordagens da Escola de Paio Alto (Califórnia) e, mais especificamente, os trabalhos dos antropólogos RAY BIRDWHISTELL e
EDWARD T. HALL, centrados no estudo da gestualidade e da adequação das distâncias e do movimento (proxémia e cinésia). Numa das suas obras mais conhecidas, HALL vai
ao ponto de afirmar que "(...) praticamente tudo o que o homem faz e é está ligado à experiência do espaço". Além do conceito de "proxémia", desenvolvido em
particular por HALL, os antropólogos aludem também à noção de "espaço do corpo". E esta problemática, como está bem de ver, não poderia deixar de penetrar no
território dos "disability studies". Na perspectiva da geografia humana, há mesmo quem sustente que a deficiência (rectius, os deficientes motores) obriga a
repensar a ideia de "espacialidade". Nesta linha, também a noção de "espaço" seria, afinal, produto de uma construção social, eivada de implicações ideológicas. Independentemente desta discussão, há um dado inquestionável: o (auto)domínio do posicionamento no espaço e, enfim, a liberdade ambulatória são pressupostos
ancilares da liberdade.
Convergem, em suma, duas ideias que podem ser relevantes para o caso em apreço: por um lado, a ideia da natureza "dialógica" ou "comunicativa" do desenvolvimento da
personalidade; por outro, a ideia da liberdade de movimentos como prius ou componente essencial da liberdade de acção.
Paralelamente, importa relembrar a profunda imbricação do desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana. Como já se viu, a doutrina considera que, de
certa forma, o artigo 1.º da Constituição, ao tutelar a dignidade da pessoa humana, contemplava já a garantia do livre desenvolvimento da personalidade. Por outro
lado, a ligação entre aquelas duas realidades não deixou de ser enfatizada no decurso dos trabalhos parlamentares da quarta revisão da Constituição. E, ainda que
não entre nós, a imbricação da dignidade da pessoa humana e do direito ao desenvolvimento da personalidade já foi firmada na jurisprudência de alguns tribunais
constitucionais, podendo citar-se, como mero exemplo, a sentença 53/1985, de 11 de Abril, do Tribunal Constitucional espanhol.
Não é este o lugar adequado para abordar, em toda a sua complexidade, a temática do sentido e valor da dignidade da pessoa humana. Ainda assim, sempre se dirá que esta é
considerada como o cume da "hierarquia dos valores", a "fonte e a base de todos os direitos do homem", para usar as expressões do Tribunal Constitucional da Hungria na
sua decisão em matéria de pena de morte (Acórdão n.º 23/1990, de 24 de Outubro). Num sentido próximo - que, aliás, tem servido de inspiração à jurisprudência
constitucional húngara -, o Tribunal Constitucional alemão qualificou a dignidade da pessoa humana como o "valor supremo da Lei Fundamental que ilumina a substância e o
espírito do conjunto do texto" (die freie menschiiche Personlichkeit und ihre Würde ist hochster Rechtswert), como o "elemento fundamental do sistema de valores
constitucionais" (Mittelpunkt des Wertsyslems der Verfassung) ou ainda como "princípio constitucional fundamental que domina todas as partes da Constituição" (6
BverfGE 32, 36). Certas jurisdições afirmam mesmo que a dignidade da pessoa humana é, juntamente com o direito à vida, "o mais importante de todos os direitos do homem"
[§ 144 da decisão do Tribunal Constitucional sul-africano no caso Etat c. Makwanyane e outros (1995), relativo à pena de morte]. O valor constitucional da dignidade da
pessoa huhmana é reconhecido, de resto, pela generalidade das jurisdições constitucionais ou instâncias congéneres, podendo destacar-se os tribunais constitucionais da
Polónia (Acórdão de 17-3-1993) e da Alemanha (BverfGE 283, 286), e o Conselho Constitucional francês (decisão n.º 94-343/344 DC, de 27-7-1994). Na Austrália, a
propósito da temática dos deficientes, o Supremo Tribunal observou, no conhecido Marïon's Case (1992): "[A] dignidade humana exige que a personalidade no seu todo seja
respeitada: o direito à integridade física é uma condição da dignidade humana".
Também o Tribunal Constitucional português, em numerosas ocasiões, se referiu ao valor da dignidade da pessoa humana, podendo citar-se os Acórdãos n. 6/84, 16/84, 394/89,
105/90, 349/91, 748/93, 442/94, 443/95 ou 474/95. Merecem realce as afirmações contidas no Acórdão n.º 105/90. Elas demonstram, no essencial, que, no respeitante à
salvaguarda da dignidade da pessoa, a visão do Tribunal não anda longe da dos seus congéneres europeus. Assim, afirmou-se naquele Acórdão que o princípio da dignidade da
pessoa humana é "(...) um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto de 'validade das respectivas normas'".
Entre o mais, a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidde constitucional inclusiva, como salienta GOMES CANOTILHO. A
"inclusão", um pressuposto essencial das sociedades democráticas, deve, todavia, fazer-se em condições de liberdade e respeito pela autonomia de cada um, incluindo
a autonomia da vontade de permanecer "outro" ou "diferente" - "(Não é simplesmente em relação aos nossos semelhantes que se estende o mesmo
respeito por todos e cada um, mas à pessoa do outro ou dos outros na sua alteridade. E o facto de responder solidariamente ao outro como um dos nossos reporta-se a um
"nós" flexível de uma comunidade que (...) não pára de estender as suas fronteiras porosas. Esta comunidade moral só se constitui no quadro de uma ideia negativa de
supressão de toda a discriminação e de todo o sofrimento, incluindo, numa aproximação recíproca, os marginais e todo aquele que é marginalizado. Concebida de forma
construtiva, esta comunidade não é uma colectividade que constranja os seus membros (...) a afirmar a sua identidade específica. Incluir não significa enclausurar numa
identidade ou fixar-se noutra. 'Incluir o outro' significa antes que as fronteiras da comunidade sejam abertas a todos, incluindo precisamente os que são estranhos em
relação aos outros e que assim querem permanecer", escreve HABERMAS.
Uma conclusão que, a propósito do princípio contido logo no artigo 1.º da Constituição, se revela extremamente interessante para o tratamento jurídico dos deficientes foi
firmada pelo Tribunal Constitucional alemão no caso Microcensus (1969): "[O] Estado viola a dignidade humana quando trata as pessoas como meros objectos" (27 BverfGE l,
6; cf. DONALD KOMMERS, ob. cit., pp. 299 ss.). Mais recentemente, esta ideia foi reformulada por aquele Tribunal, que afirmou que o princípio da dignidade da pessoa
humana proíbe "(...) tratar as pessoas como simples objectos ou pôr em causa a sua qualidade de sujeitos" (87 BverfGE 209, 228). Uma ideia algo semelhante é avançada, por
exemplo, pelo Catecismo da Igreja Católica, cujo § 1944 afirma: "[O] respeito da pessoa humana considera o outro como 'outro eu'".
Procurando transpor
estas considerações para o plano concreto da situação dos cidadãos portadores de deficiência pode referir-se, desde logo, que, segundo algumas correntes, a
preservação da própria dignidade constitui um dever de cada pessoa humana, a ponto de se afirmar que "(...) cada um deve assumir uma postura coerente com a
exigência indisponível de manutenção e promoção da própria liberdade-dignidade, incluindo no domínio da integridade psicofísica".
Independentemente de saber se existe um "dever de reabilitação", é indiscutível que o processo de reabilitação, ao menos em certas dimensões, se desenvolve através da
interacção e da convivencialidade com os outros. A reabilitação para uma vida com qualidade depende em larga medida do apoio e dos laços com os "técnicos de reabilitação,
os outros deficientes e os amigos no contexto social e emocional onde passamos os nossos dias".
A literatura técnica sobre a matéria é peremptória a este respeito: se a deficiência é uma realidade biopsicosocial, a sua reabilitação haverá igualmente de contemplar
esses três aspectos - físico-biológicos, psicológicos e sociais. No que concerne aos aspectos psicossociais, GEORGE HENDERSON e WILLIE BRYAN salientam a necessidade
de, no decurso do processo de reabilitação, o cidadão portador de deficiência ter presente as seguintes ideias:
-
auto-aceitação (self-acceptance) da deficiência, à luz
das noções de que "parte da auto-identidade de uma pessoa portadora de deficiência é a deficiência" e de que "as pessoas com deficiência devem aceitar a sua deficiência
como um facto da vida mas não como toda a vida";
-
pensamentos positivos (positive thoughts) e autoconfiança;
-
realismo;
-
responsabilidade;
-
comunicação efectiva,
que se desdobra em (a) aceitação dos papéis de cada interveniente na relação de auxílio; (b) audição dos outros; (c) organização dos pensamentos; (d) atenção às reacções
dos que o auxiliam; (e) manutenção de uma "mente aberta" em relação às ideias dos que o auxiliam; (f) manutenção da abertura das vias de diálogo;
-
orgulho;
-
auto-promoção (self-improvement).
Neste contexto assumem uma dimensão crucial: a família, por um lado, e as relações interpessoais e a sexualidade, por outro.
A importância dos "outros" e da envolvente social do processo de reabilitação pode ser sumariada na seguinte afirmação:
"(...) a reabilitação envolve a ultrapassagem da incapacidade e a preservação de um papel social, não se resumindo a uma simples recuperação ou melhoria funcional".
Estas asserções foram confirmadas empiricamente, por exemplo, por MILDRED BLAXTER, num estudo sociológico sobre o processo de reabilitação de 194 deficientes, que deu
nota da importância das relações familiares e da vida social e dos problemas suscitados pela reabilitação nesses contextos específicos. Mas o desenvolvimento das
relações interpessoais, a criação e o aprofundamento de laços afectivos com os outros pressupõem, em larga medida, não apenas uma disponibilidade mental do deficiente,
mas também uma disponibilidade física para o efeito, o mesmo é dizer, a garantia de um mínimo de capacidade de locomoção. Quaisquer melhorias introduzidas ao nível da
mobilidade reflectir-se-ão directamente num incremento das possibilidades de reabilitação na sua vertente psicossocial.
Além da confirmação empírica, aquelas ideias tiveram tradução no plano normativo. A Lei n.º 9/89 prevê três tipos de reabilitação: médico-funcional (artigo 8.º),
profissional (artigo 10.º) e psicossocial (artigo 11.º); esta última, nos termos do artigo 11.º, "(...) compreende um conjunto de técnicas específicas
integradas no processo contínuo de reabilitação, com vista a desenvolver, conservar ou restabelecer o equilíbrio da pessoa com deficiência e das suas relações afectivas e
sociais". Ora, convém recordar que, no que concerne aos tipos de reabilitação, a incapacidade de locomoção é objecto sobretudo de reabilitação médico-funcional
(cerca de 81% das situações), verificando-se valores muito baixos nos outros meios de reabilitação: educação especial, formação e reabilitação profissional, integração
laboral e, sobretudo, integração social. Ou seja: as estatísticas indiciam que os sujeitos cuja incapacidade de locomoção se encontre afectada enfrentam grandes
dificuldades de se reabilitarem psico-socialmente, designadamente através do estabelecimento de relações afectivas e sociais com os outros. Já se viu, também, que o
desenvolvimento da personalidade é, por natureza, "comunicativo", "interactivo" ou "dialógico". Nessa medida, pode concluir-se que os deficientes que tenham problemas de
locomoção se encontram numa situação particular de desvantagem no que respeita ao livre desenvolvimento da sua personalidade, ou seja, ao exercício do direito previsto no
n.º 1 do artigo 26.º da Constituição da República.
4.3. O princípio da solidariedade
Um tópico que, a finalizar, merece igualmente ser ponderado
liga-se às exigências decorrentes do Estado social - e, mais precisamente, do princípio da solidariedade - no contexto de uma "comunidade constitucional inclusiva".
Apesar da sua genealogia remota, não é fácil alinhar uma definição consensual do princípio da solidariedade. Para além de perscrutarem as suas raízes etimológicas
(o étimo latino solidarum, que vem de solidmn, soldum, isto é, compacto, inteiriço), alguns autores distinguem várias acepções de solidariedade: dos antigos vs. dos
modernos, mutualista vs. altruísta, horizontal vs. vertical. Interessa-nos sobretudo esta última dicotomia: a solidariedade horizontal corresponde à solidariedade
pêlos deveres (solidarietà doverosd) ou solidariedade fraterna, que opera num sentido cidadãos_cidadãos - é nessa acepção que o Catecismo da Igreja Católica afirma, no seu
§ 1939. que "[O] princípio da solidariedade, também enunciado sob o nome de 'amizade' ou de 'caridade social', é uma exigência directa da fraternidade humana (...)" [cf.
também as cartas encílicas Solicitud rei socialis (§§ 38-40) e Centesimus annus (§ 10)]. Em contrapartida, a solidariedade vertical representa a solidariedade pública
soUdarietà pubblica) ou solidariedade paterna, que opera num sentido Estado cidadãos.
Se, em ambos os casos, a solidariedade se assume como um "princípio fundante da nossa convivência de Estado democrático", interessa-nos sobretudo, a acepção
"vertical". Com efeito, independentemente de se reconhecer o relevantíssimo papel exercido pelo voluntariado e pelas instituições particulares de solidariedade social
- que, aliás, foi justamente sublinhado na senteça n.º 75 de 1992 da Corte Costituonale -, o que importa é salientar que a República deve desempenhar uma função activa na
remoção dos obstáculos que limitam a liberdade e a igualdade e impedem o desenvolvimento da pessoa humana e da qualidade de vida dos cidadãos. Noutra formulação,
afirma-se que "(...) o indivíduo não pode desenvolver de modo satisfatório a sua personalidade se não se encontrarem reunidos certos pressupostos relativos à (...)
eliminação dos obstáculos que se opõem à sua participação na vida social em condições de liberdade e de igualdade".
O princípio da solidariedade assume, por isso, uma dimensão nuclear no tratamento da deficiência física e mental. Não por acaso, ele foi explicitamente utilizado pela
jurisdição constitucional egípcia, no seu acórdão de 5 de Agosto de 1995, para fundar discriminações positivas em abono dos deficientes. Entre nós, é bem significativa a
circunstância de o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 103-A90 se referir explicitamente à ideia de solidariedade social para justificar a isenção fiscal aí atribuída aos
cidadãos portadores de deficiência.
E também não deixa de ser elucidativo o facto de o n.º 2 do artigo 71.º da Constituição aludir igualmente à ideia de solidariedade a
propósito dos cidadãos portadores de deficiência: "[O] Estado obriga-se a (...) desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e
solidariedade". Trata-se, aliás, de uma noção bem presente no nosso texto constitucional. Sem falar de outras vertentes (v. g. solidariedade nacional), poderão apontar-se
as normas dos artigos 63.º (Segurança social e solidariedade), 66.º, n.º l, alínea d) (solidariedade entre as gerações), 73.º, n.º 2 (educação cultural), e 82.º, n.º 4
(sector cooperativo e social). A Constituição, todavia, não acolhe, em termos genéricos, o princípio da solidariedade (pelo menos, de modo explícito), ainda que não deixe
de afirmar, logo no seu artigo 1.º, que "[Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária".
Talvez por isso, o Tribunal Constitucional português não produziu jurisprudência significativa em torno daquele princípio. O mesmo se não dirá, no entanto, de outras
instâncias congéneres, como o Tribunal Constitucional italiano ou o Suprem Court norte-americano. O primeiro, porque a Constituição possui duas normas - os artigos
2º e 3.º - que se referem explicitamente ao princípio da solidariedade em termos genéricos; e o Supreme Court, por seu turno, porque usou a noção de solidariedade como
ponto de apoio para a garantia dos direitos das minorias.
A Corte Constituzionale emitiu um número significativo de decisões no que concerne à solidariedade horizontal, podendo destacar-se as sentenze n.º 47 de 1969, n.º 89 de
1970, n.º 35 de 1981, n.º 127 de 1983 e n.º 364 de 1988. No respeitante à solidariedade vertical, a abundante jurisprudência da Consulta tem-se centrado sobre a
problemática da segurança social, articulando os artigos 3.º e 38.º da Constituição.
Quanto ao Supremo Tribunal norte-americano, cumpre referir que o princípio solidarístico não emerge apenas no plano estrito dos direitos sociais, mas é situado no âmbito
mais vasto da tutela dos direitos (cívicos e políticos) das minorias, falando-se mesmo de uma "emancipação solidária" destas últimas. Tal orientação jurisprudencial foi
firmada desde o caso Brown v. Board of Education (1954) e actualizada nas decisões dos casos Griggs et al. v. Duke Power Co. (1971), Frontiero v. Richardson (1973),
Johnson v. Transportation Agency (1987), Hurley et al. v. Irísh American Gay, Lesbian and Bisexual Group of Boston (1995) e Romer, Governr of Colorado et al. v. Evans et
al. (1996) (estas duas últimas sobre direitos dos homossexuais). O Supreme Court, todavia, manifesta um grande self-restraint na aplicação do princípio da solidariedade,
designadamente no que tange à competência dos Estados, a ponto de já ter afirmado, na sentença San António Independem School v. Rodrigue (1973) que "(...) não é da
competência deste Tribunal criar direitos fundamentais substantivos em nome da garantia da igualdade [equal protection of the laws]".
Em estreita conexão com o princípio da solidariedade - e, sublinhe-se, numa conexão que possui um sentido particularmente actuante no domínio dos direitos dos deficientes
- emergem novos valores constitucionais no tratamento dos excluídos, como a empatia e a compaixão. Sem se pretender traçar, obviamente, qualquer paralelismo entre
ambas as situações, cumpre referir, no entanto, que, curiosamente, os valores da empatia, compaixão e simpatia têm sido igualmente convocados, de forma particularmente
incisiva, no âmbito da discussão sobre os chamados "direitos dos animais"; por oposição a uma abordagem considerada excessivamente "racional" - que seria, supostamente, a
de autores como PETER SINGER {Animal liberation, 1975) ou TOM REGAN (The case for animal rights, 1983) - certas correntes vieram sustentar que o debate sobre o lugar dos animais deve ser penetrado pelas ideias de simpatia e compaixão.
Em torno das ideias de compaixão e empatia, há mesmo quem oponha uma "ética do cuidado" (ethics of care) a uma "ética da justiça" (ethics of justice), reservando a
primeira ao género feminino. A noção de "cuidado" é caracterizada a partir de cinco ideias-força:
-
1) "cuidado moral" (moral attention);
-
2) "simpatia compreensiva" (sympathetic understanding):
-
3) "atenção relacional" (relationship awareness);
-
4) "apoio" (accommodation)
e
-
5) "reacção" (response).
Sem atender à dicotomia entre "ética do cuidado" e "ética da justiça", há quem sustente, pelo contrário, que, no decurso do
desenvolvimento moral, a justice e a benevolence se identificam é o caso de LAWRENCE KOHLBERG. Outros autores - mais precisamente os partidários da teoria da "acção
comunicativa" (kommunikativen Handeins), como APEL ou HABERMAS - afirmam que a formação de uma "comunidade ideal de diálogo" pressupõe que o eeo seja capaz de se colocar
na situação do alter e com ele estabelecer as condições de uma "empatia compreensiva" (einer sympaíhetischen Einfühiung), de natureza recíproca, que se materializa, em
primeiro lugar, na compreensão das apreensões dos outros e, depois, na consciência de pertença de todos os afectados, objectivamente fundada através da socialização;
logo, a assunção da "perspectiva do outro" relaciona-se com duas operações: a empatia (Einfühlung) ou identificação com o outro e, em segundo lugar, a universalização.
A empatia com os grupos minoritários e desfavorecidos caracteriza-se, segundo a doutrina, por três tópicos: o sentimento da emoção do outro, a compreensão da experiência
ou da situação do outro, tanto afectiva como cognitivamente, e, por fim, a acção desencadeada pela experiência do sentimento do outro. A introdução da ideia de
empatia no discurso jurídico, mais do que apelar para uma "jurisprudência dos sentimentos", visa "(...) a incorporação no Direito de um entendimento da experiência de
pessoas e de grupos, de forma a sublinhar o facto de que a legislação, a jurisprudência e a doutrina não se limitam a interferir nessa abstracção teorética que é a esfera
jurídica dos sujeitos, mas afectam concretamente pessoas reais, de carne e osso, a quem podem causar sentimentos de sofrimento, angústia e exclusão". Sem acolher
explicitamente os valores da empatia e da compaixão, o nosso texto constitucional não lhes é completamente alheio, podendo citar-se os seguintes afloramentos: a
referência ao empenhamento da República Portuguesa na construção de uma sociedade solidária (artigo 1.º), os princípios-directores das relações internacionais (artigo
7.º), a proibição de discriminações (artigo 13.º, n.º 2), o princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros (artigo 15.º, n.º 1) e, enfim, o todo o corpus dos
direitos fundamentais, designadamente dos direitos, liberdades e garantias pessoais (v. g. proscrição da pena de morte, da tortura, dos tratos ou penas cruéis,
degradantes ou desumanos, o direito de asilo e as regras sobre extradição).
Resta saber, todavia, se a dimensão do "fosso" que separa os cidadãos portadores de deficiência dos restantes cidadãos não impossibilita o estabelecimento de qualquer
reação de empatia. E essa, pelo menos, a tese de SUE HALPERN, exposta precisamente a propósito da mobilidade: "(...) A empatia para com os deficientes não está ao alcance
da maioria das pessoas não-deficientes. Simpatia, sim, empatia, não, pois qualquer tentativa de se imaginar a si próprio naquela situação - por exemplo, sentir como será
não possuir capacidade de deslocação - é sempre mediada pela capacidade de caminhar".
E, além do mais, sempre haverá de saber se as pessoas não-deficientes estão dispostas a estabelecer com os portadores de deficiência relações de empatia e compaixão. Mas,
enfim, mesmo quem rejeite quer o princípio solidarístico, quer as ideias de empatia e compaixão pêlos outros, não deixa de ter bons motivos para promover os direitos dos
deficientes e a sua reabilitação. Este é um ponto em que, à primeira vista, a situação dos deficientes se aparta da das mulheres ou das minorias raciais: uma vez que
todos estão sujeitos ao risco de, por qualquer motivo, se defícientarem, existe um interesse pessoal - ou, melhor dizendo, um interesse egoísta - na melhoria das
condições de vida dos deficientes. "Deste modo - escreve RICHARD EPSTEIN, um autor neo-liberal que critica as leis anti-discriminatórias e a concessão de medidas de apoio
aos deficientes -, existe uma característica (...) [da deficiência] que leva todos a pensarem que providenciar auxílio aos deficientes pode ser não apenas um gesto de
generosidade desinteressada mas também um acto prudente de defesa dos próprios interesses". Em suma, a defesa de um tratamento mais favorável dos deficientes pode
ser realizado mesmo de uma perspectiva egoísta: para usar uma dicotomia concebida por AMARTYA SEN na análise das motivações para a acção, o apoio aos deficientes requer,
quando muito, uma atitude de "simpai" - ou seja, um mínimo de atenção à posição dos outros, que pode implicar que o bem-estar pessoal seja afectado por isso (v. g. ficar
deprimido ao ver o sofrimento alheio) -, mas já não de "compromisso" - ou seja, uma postura de envolvimento activo que, no limite, pode envolver o sacrifício de
interesses pessoais.
EPÍLOGO
Historicamente, o movimento em prol dos direitos dos cidadãos portadores de deficiência surgiu
estreitamente associado aos movimentos contra a discriminação em razão da raça e do sexo. Pelo menos nos Estados Unidos, as concepções sobre o estatuto dos deficientes
nas sociedades contemporâneas, nascidas no início dos anos setenta, filiam-se nas correntes que, na década anterior, se afirmaram na defesa dos direitos dos negros e das
mulheres. Mais precisamente, as novas atitudes sobre o sentido da "disability" foram construídas na esteira do movimento de "libertação da mulher" (women's Uberaüon) e
com ele mantêm, como vimos, múltiplas afinidades.
Esta genealogia não deve, todavia, abrir espaço a qualquer confusão entre a situação dos deficientes, por um lado, e a das minorias étnicas e das mulheres, por outro.
Existe, com efeito, uma especificidade do problema dos deficientes físicos e mentais que corre o risco de se perder de vista ao procurar fundar uma "irmandade de
excluídos", na qual se incluiriam os portadores de deficiência, as mulheres os imigrantes ou mesmo os animais. Desde logo, porque, globalmente apreendida, a "deficiência"
- ao contrário do que acontece com a raça ou o sexo, por exemplo - é uma categoria que cobre um conjunto muito vasto (e assaz diversificado) de realidades. E é também,
naturalmente, uma categoria muito mais difusa e heterogénea do ponto de vista do sujeito deficiente, a ponto de se poder quantificar a incapacidade resultante da
deficiência (não se fala em "graus" ou "percentagens" de negritude ou de feminilidade...).
Ora, a pretexto de criar uma união de esforços entre aqueles que, parafraseando
FRITZ FANON, poderíamos apelidar de les peuples muêts du monde (ex.: trabalhadores, mulheres, deficientes, homossexuais, minorias étnicas), arriscamo-nos a encerrar os
cidadãos portadores de deficiência numa categoria única e, por assim dizer, "fechada", justamente ao arrepio daquilo que se visou - por exemplo, na revisão constitucional
de 1997 - ao substituir o conceito de "deficiente" por "cidadão portador de deficiência". Mais ainda: ao diluirmos a diversidade da(s) deficiência(s), corremos o risco de
fazermos renascer o "estigma tribal" (GOFFMAN) que impende sobre um grupo significativo de cidadãos. Objecto de uma manipulação política que visa objectivos mais vastos
(a libertação dos "oprimidos" da alienação provocada pela sociedade capitalista de consumo), os "deficientes" passarão, certamente, a ser uma "tribo" mais forte e
poderosa, dotada de maior capacidade de intervenção da esfera pública, mas nem por isso deixarão de ser uma "tribo" e nem por isso diminuirá a "distância" criada entre
"eles" e "nós". De nada vale, por outro lado, dizer que "somos todos deficientes" ou que "a perfeição corporal é um mito", pois essas afirmações até podem servir para
dificultar a justificação de medidas específcas de protecção dos cidadãos portadores de deficência. Qual o motivo para conceder benefícios fiscais aos deficientes motores
se eles são iguais a "nós"? Que razão existe para lhes dar um tratamento privilegiado se também todos "nós" somos, num certo sentido, "deficientes"?
E, numa aproximação mais cruel - mas, porventura, mais realista -, não está excluído que os apelos a conceitos como "desinstitucionalização" ou "vida independente"
acabem, no fim de contas, por servir de álibi para um acréscimo de desresponsabilização de um Estado social em crise. Até certo ponto, a experiência confirma-o: nos
Estados Unidos, a "libertação" dos "reclusos" em "instituições totais" como asilos, hospitais psiquiátricos ou clínicas, teve como efeito mais visível o lançamento para
as ruas de milhares de indivíduos com distúrbios mentais, sem que ao mesmo tempo houvesse a preocupação de lhes fornecer o acompanhamento adequado. Os números são
impressionantes: entre 1955 e 1970, o número de internados nos hospitais estaduais diminuiu de 559.000 para 339.000, enquanto que, só no espaço de uma década, entre 1970
e 1980, esse número decresceu de 339.00 para 130.000, calculando-se que, em 1995 existiam apenas cerca de 70.000 pacientes internados. Em Portugal calcula-se que os
hospitais psiquiátricos tinham 4020 pessoas em 1970 e apenas 1750 em 2000. Actualmente, existem cerca de 700 pessoas a ser objecto de reabilitação na comunidade,
experiência que, ao que parece, se tem revelado positiva (). Mas que dizer de todos aqueles que vagueiam pelas ruas das nossas cidades sem qualquer acompanhamento (ou,
pelo menos, sem o devido acompanhamento)? E quais os limites do "tratamento comunitário"?
Uma vez mais, deve meditar-se na experiência norte-americana, onde a "desinstitucionalização" não foi acompanhada, nos seus devidos termos, por uma política de
"tratamento na comunidade", designadamente por razões de ordem financeira. As novas teorias sobre a natureza "carcerária" das instituições hospitalares desaconselhavam o
internamento das novas gerações de deficientes mentais - e os hospitais atravessando dificuldades de natureza orçamental, não deixaram de se aproveitar desta situação: as
instituições psiquiátricas da Califórnia admitiram 42.000 indivíduos em 1970, mas em 1980 internaram apenas 19.000; no Massachussetts, foram internados 13.000 indivíduos
no início dos anos setenta e apenas 6.000 nos finais dessa década. Os tribunais, de seu lado, foram confirmando esta orientação: em 1972, o Supremo Tribunal declarou
a inconstitucionalidade das leis contra a vagabundagem (Papachristou v. City ofJacksonville 405 U.S. 156) e um juiz federal de Nova Iorque afirmou, em 1980, que o acto de
pedir nas ruas corresponde a um direito fundamental É certo que nem todos os sem-abrigo sofrem de perturbações mentais, mas, nos Estados Unidos, as estatísticas
demonstram que, nos anos setenta, pelo menos 40% tinham problemas psíquicos, número que, no final dos anos oitenta, cresceu para cerca de dois terços. Muitos dos
homenss são, ao cabo e ao resto, vítimas de um conluio perverso entre duas filosofias políticas de sinal contrário: a aproximação de esquerda que, nos anos setenta,
pugnou pela sua "libertação" e a aproximação neoliberal que, nos anos oitenta os deixou ao abandono.
Com isto não se pretende dizer que a forma ideal de tratamento das deficiências seja a clausura em instituições psiquiátricas ou o internamento compulsivo sem quaisquer
garantias -jurídicas e terapêuticas. Pretende-se, isso sim, advertir para uma triste realidade os cidadãos portadores de deficiência têm sido sujeitos sucessivamente a
aplicação das mais variadas "filosofias" e dos mais diversos "modelos" teóricos (v. g., o "modelo médico" ou o "modelo social") segregados por uma comunidade científica
composta, na sua esmagadora maioria, por cidadãos "normais" (rectius, "não-deficientes"). É certo que se conseguiram notáveis progressos, mas sustentar, por si só de um
ponto de vista estritamente abstracto, que a deficiência resulta de uma "construção social" de nada vale a um invisual ou a um paraplégico nem serve de lenitivo a quem
padeça de dificuldades de locomoção, por exemplo.
E, ao mesmo tempo, é certo que, se FOUCAULT criticava as instituições carcerárias do século XIX confrontando-as com os métodos do Ancien Regime também não poderemos
deixar de nos interrogar se o abandono a que são votados milhares de homens e mulheres nas grandes urbes do nosso tempo será, afinal, mais humano do que o "vigiar e
punir" oitocentista.
FIM
ϟ
"O CORPO (IM)PERFEITO: A PROTECÇÃO CONSTITUCIONAL DE UMA CONSTRUÇÃO
SOCIAL?"
é um
excerto da obra:
CIDADÃOS PORTADORES DE
DEFICIÊNCIA (O seu lugar na Constituição da República)
autor: ANTÓNIO DE ARAÚJO - Assessor do Gabinete do Presidente do
Tribunal Constitucional; Assistente da Faculdade de Direito de
Lisboa; Assistente da Universidade Lusíada
edição:
Coimbra Editora, 2001
Δ
6.Abr.2014
publicado
por
MJA
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