
Crianças cegas em Duren - foto August Sander, c. 1930
A profunda influência exercida por este livro torna-se mais marcante se considerarmos que, nos
dez anos anteriores à reedição pela American Foundation for the Blind, era muito difícil a sua
obtenção. Publicado pela primeira vez em 1933, em pequena edição, seus clichês foram
destruídos em 1943 e, conseqüentemente, esgotados. Tornou-se tão raro que não consegui adquirir
uma cópia, apesar de procurar durante cinco anos. Era conhecido apenas através de empréstimos
pessoais e pelo uso de um reduzido número de cópias, em algumas bibliotecas. A admiração pela
sobrevivência do livro aumenta quando relembramos seu primeiro acolhimento há quase vinte
anos. Encontrou pouca aprovação. Na verdade, foi condenado e criticado. O calor da sua rejeição
dificilmente pode ser imaginado hoje em dia. O autor, ele próprio uma pessoa cega oriunda das
escolas e sociedade sobre as quais escrevia, foi acusado de desferir um mero ataque pessoal,
apesar do mérito de ter se tornado um psicólogo clínico.
Talvez a prova mais convincente da influência do livro, seja a de podermos atualmente lê-lo,
desapaixonadamente e imaginarmos o que teria causado celeuma. Estamos, agora, atualizados com
sua maneira de abordar o assunto, com a sua linguagem e seus conceitos. Nem todos, dentro ou
fora do campo de trabalho com os cegos, gostam do livro, provavelmente ninguém o considera
perfeito, contudo, sua enorme cacpacidade para estimular pensamentos é geralmente reconhecida.
Lançou as bases do que pode ser denominada a psicologia social do cego. Não é somente o
esforço pioneiro nesta direção, mas é um dos poucos trabalhos que temos sobre este assunto. E, na
minha opinião, outros autores que abordarem o mesmo assunto, deverão esforçar-se muito para
alcançar a clareza, conteúdo informativo e as qualidades do estilo de Cutsforth. A reedição tornou-se imperativa pela procura deste livro. Além disso merecia ser mais difundido.
Dificilmente poderei exagerar a influência de Cutsforth na minha maneira pessoal de pensar. Ao
perder a visão, recebi, e quem não recebe, vários livros e muitos outros me foram indicados que,
asseguraram, me auxiliariam a encontrar o que foi denominado o meu "ajustamento". Ninguém
parecia saber exatamente o que significava este ajustamento à cegueira, mas todos tinham a
certeza de que os livros ofertados seriam úteis, pois eram quase todos autobiografias de indivíduos que conseguiram, após perderem a visão, alcançar um grau de perspectiva filosófica
acerca das suas condições. Naquele momento, eu estava tentando compreender o que tinha
acontecido às emoções dos que me cercavam. Ou, seria mais adquado dizer, eu lutava para
conciliar o que me diziam com o que, cada vez mais, eu sentia ser verdadeiro. Foi-me dito que eu
tinha mudado sutilmente com a perda da visão, que os sentimentos dos meus amigos e parentes
permaneciam os mesmos; o que eu sentia era o inverso. Tinha que manter-me reservado a este
respeito, pois, apesar de não ser estudante de psicologia, já ouvira algo acerca da alarmante
condição mental, da qual o sintoma principal é a tendência de projetar nos outros os próprios
sentimentos. Os livros que recebi falavam invariavelmente do ajustamento à cegueira, como algo
restrito unicamente ao indivíduo que perdeu a visão, neles não havia alusão a um ajustamento
social recíproco. Então, deparei-me com o livro de Cutsforth. Foi uma inundação de luz fria, clara
e até cruel, sobre o mecanismo psicológico com o qual eu lutava. A partir de Cutsforth, minhas
leituras e pensamentos ramificaram-se no esforço de confirmar, ou discutir, o que ele havia
escrito. É raro um escritor poder, com precisão, atribuir tanta influência a um livro, como posso
fazer com o de Cutsforth; não tenho dúvidas de que isto se deve exclusivamente ao fato de que
Cutsforth permaneceu o único neste campo específico.
Não é ir muito longe, penso, comparar o livro de Cutsforth, em vários aspectos fundamentais,
com outro trabalho de importância decisiva neste campo, denominado "Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem",
publicada em 1747, pelo filósofo francês Diderot. Como Cutsforth, Diderot trouxe, pela primeira
vez, às considerações sobre os problemas mentais e emocionais da pessoa cega, um ponto de vista
nascido numa fermentação nova de pensamentos intelectuais. O impacto também foi um choque.
Na verdade, o que Diderot escreveu sobre o cego contribuiu, eventualmente, para o seu
aprisionamento, como um pensador perigoso. Atualmente, seu livro é consagrado em todas as
histórias sobre as pessoas cegas. Ele apresentou algumas teorias, que nos parecem banais e
comuns hoje em dia, e cuja audácia não pode ser compreendida e anão ser que a consideremos no
seu momento histórico. Quarenta anos antes de haver uma escola para cegos, Diderot era de
opinião que a criança cega podia ser educada. Cutsforth não precisou desenvolver isto como uma
tese audaz em 1933, mas como Diderot, precisou insistir em que a educação da criança cega não devia consistir em "compensações" substutivas, mas no desenvolvimento das faculdades
existentes, encaradas de forma unitária. A razão de tanto um como outro terem produzido uma tal
sensação de choque, deve-se ao fato de ambos questionarem sobre a verdadeira atitude da
sociedade em relação ao indivíduo cego.
Não é fácil dizer-se a uma sociedade que os sentimentos e jos costumes dos quais sempre se
orgulhou, podem ter os efeitos destrutivos. O escritor que tentar será inevitavelmente acusado de
subjetividade. É verdade, creio, que Cutsforth nos faz peerceber, através deste livro, que tinha
definida opinião pessoal sobre este assunto. Mas não se conclui da´pi que seus julgamentos
fossem subjetivamente determinados. O grau de objetividade de Cutsforth sempre foi, parece-me,
a prova mais contundente do seu poder intelectual. Examinar e analisar o próprio meio ambiente
de um modo satisfatório, é, mesmo com a bagagem intelectual de um psicólogo clínico, um feito
extraordinárioi. Para isto, vigorosas qualidades pessoais, intelectuais e emotivas devem unir-se à
bagagem científica do escritor. Não tivesse o autor estas qualidades, este livro não teria sido
escrito.
A reedição apresenta o texto original. Alguns dados obsoletos foram eliminados, foram feitas
adições à bibliografia, mas, além disto, nada foi revisto ou modernizado no texto. Acho que foi
uma sábia decisão da Americam Foundation for the Blind, a de agir assim. Ao estudante moderno
alguns trechos do trabalho parecerão anacrônicos; mas lendo o texto antigo, ele estará apto a
comparar em que direção Cutsforth influi e em que sentidoa sua crítica, enunciada a vinte anos
atrás, ainda é válida. Por exemplo: o problema da co-habitação, nas escolas residenciais, parecia
quase insolúvel e, sobre isto, Cutsforth exprimiu-se com uma severidade que parece
desnecessária, pois, atualmente, o velho problema está a caminho de uma solução. Permanecem
até hoje, como crítica importante, as observações de Cutsforth a respeito do malogro da psicologia
em remontar à origem da estrutura do sentido do tato.
Um importante acréscimo foi feito. Em 1939 Cutsforth entregou, antes do encontro bienal da
"Americam Association of Workers for the Blind", um trabalho intitulado "A cegueira como uma
expressão adequada de ansiedade". Nesse trabalho propôs um conceito muito importante para a
psiquiatria, e ainda não muito difundido, de que na personalidade o uso suplementar de uma
limitação física, pode tomar a forma de uma neurose.Cutsforth foi o primeiro a desenvolver esta
tese, que é um importante suplemento, para o nosso conhecimento neste campo. Este trabalho
também se tornou de difícil obtenção. Por conseguinte, decidiu-se incluí-lo nesta edição.
Acho que a American Foundation for the Blind deve ser elogiada pela reedição deste obra que
não seria publicada em outras circunstâncias. Esperamos que ela prenuncie a reedição de outros
trabalhos, importantes para o nosso conhecimento, neste campo em que, pela demanda limitada
ou pelo pouco interesse dos editores em geral, estão se tornando raros.
Hector Chevigny
Nova Yorque - 1951
A finalidade deste livro é familializar os dotados de visão com a pessoa cega, e esta, consigo
mesma. Os problemas envolvidos são muitos. Falando de um modo geral, se uma pessoa
compreende um problema, pode resolvê-lo. Isto é tão válido para os problemas da personalidade
como da matemática. Conseqüentemente, tratando-se de problemas de personalidade da pessoa
cega, é muito importante que um grande número de questões sejam expostas conscienciosamente,
de tal maneira que o leitor possa compreendê-los. A limitação de espaço permite apenas a
discussão detalhada de uma parte dos problemas levantados. Se estes capítulos e os tópicos
sugeridos para estudos posteriores, aumentarem, de qualquer forma, a compreensão geral dos
problemas sociais e pessoais da pessoa cega, a meta do autor terá sido alcançada.
Sob o aspecto científico o livro sofre a ausência de maior número de dados reais, que foram
suprimidos, levando-se em consideração a natureza altamente pessoal dos mesmos. Esta falha,
entretanto, é duplamente compensada, para o autor, pela satisfação em poder retornar, sem
desculpas, aos que foram seus pacientes.
Um esforço constante foi feito para manter-se o tratamento da personalidade no nível mais
impessoal possível. Sempre que se desejava material ilustrativo, este foi procurado em fontes
documentadas e não em material fornecido confidencialmente. Se alguns se sentirem
desconsiderados através de citações de suas narrativas, oferecemos uma humilde desculpa por
este ato de vivissecção, em nome da ciência.
A elaboração deste livro foi favorecida por interesses generosos e cooperação de várias fontes.
Sinceros agradecimentos são devidos às centenas de crianças cegas, cuja esplêndida cooperação
facilitou a reunião de material, e aos seus professores que suportaram alterações na rotina escolar,
afim de cooperar em experiências e possibilitar entrevistas.
A Superintedente Eleanor A. Wilson da Escola de Cegos de Kansas, Superintendente Junius T.
Hooper da Escola de Winscosin para Cegos e o Diretor Edward E. Allen do Instituto Perkins,
contribuiram largamente para o progresso deste trabalho, fornecendo dados para a investigação de
problemas para pesquisa, em suas escolas.
A reunião de material informativo tornou-se fácil e agradável, graças à assistência de Mis Mary
Sawyer, bibliotecária do Instituto Perkins . Dr. Margery Gilbert Cutsforth, assistiu nos trabalhos
clínicos e fez inúmeras sugestões valiosas. Ampla assistência e encorajamento foram dispensados
pelo Dr. Raymond Holder Wheeler cujo interesse no problema só é ultrapassado pelo do autor.
Sua cooperação vigorosa e sugestões críticas influenciaram tanto a direção das investigações,
como a organização do livro.
O "Social Science Research Council" é responsável pela oportunidade de dedicação ao estudo. A
"Carnegie Corporation" tornou possível seguir os problemas psicológicos, que se desenvolveram
ao longo da investigação e generos ajuda para obtenção de material foi fornecida pelo "research
Council" da Universidade de Kansas.
Este livro é dedicado às crianças cegas de 1932, em memória de Samuel Gridley Howe, que
iniciou a educação do cego neste país em 1832. Um século de oportunidade educacional para o
cego não produziu um lider mais criativo e mais intensamente perspicaz para com os problemas
vitais da criança cega.
Thomas D. Cutsforth,
Doutor em Filosofia
Capítulo I - A criança cega na fase pré-escolar
Estamos começando a descobrir os grandes problemas vitais que são enfrentados por indivíduos
que, por acidente ou doença, foram postos à margem da sociedade e marcados como "deficientes".
Apesar de constituirem a minoria da população, mesmo assim, em números concretos, atingem
milhões. O bem estar social e mental da população em geral, assim como, a felicidade e sucesso
deste grupo minoritário, exigem que os problemas destes milhões sejam resolvidos
adequadamente. Entre estas pessoas estão os cegos, os surdos, os mudos, os defeituosos e
deformados. Seus problemas não são unicamente de ordem física. Todas elas tem que enfrentar
problemas mentais, de caráter tão sério, a ponto de afetar toda a sua personalidade. Seu
treinamento e educação esbarram em dificuldades que só a psicologia pode resolver. As suas
próprias atitudes de compreensão e as atitudes da sociedade em relação a elas, estão eternamente
em conflito, de maneira prejudicial a um entendimento mútuo, e portanto, ao desenvolvimento
normal de uma minoria portadora de deficiências, quanto ao aspecto social, intelectual e moral.
É no interesse de uma classe de pessoas, situada dentro deste grupo, que o presente volume é
escrito. Há, aproximadamente sessenta mil pessoas cegas nos Estados Unidos, sendo seis mil com
idade abaixo de vinte anos. Dentro das condições impostas pela sociedade, nenhum destes
sessenta mil seres humanos desenvolveu, ou poderá desenvolver, uma personalidade estritamente
normal. As razões são quase totalmente psicológicas.
Desde o instante em que nasce uma criança cega, ou em que a criança que enxerga perde a visão,
influências psicológicas, dela própria e do seu meio ambiente, começam a moldar seu processo de
crescimento. É durante a infância e meninice que o indivíduo assenta os padrões de
comportamento - atitudes, sentimentos, hábitos - que o acompanharão durante a vida. A sociedade
nunca se apercebeu do fato de ser, em grande escala, responsável pela integridade desses padrões.
Ninguém, ainda, compreendeu exatamente, como educar o cego. Supõe-se, geralmente, que a
cegueira ( 1.1) representa mera ausência ou imperfeição de um único sentido. Ao contrário, a
cegueira muda e reorganiza inteiramente toda a vida mental do indivíduo.
Quanto mais cedo ocorre esta frustação, maior é a reorganização exigida e também maiores são
os seus efeitos sobre os indivíduos que enxergam, e cujas atitudes determinam a vida sadia da
pessoa cega. A magnitude total do problema pode ser percebida através de uma analogia.
Se forem removidos os membros dianteiros de um ratinho, seu comportamento, quando adulto,
terá se organizado, quase completamente, na direção de atividade bípede. Deverá adotar métodos
de obtenção de alimentos, locomoção e companheirismo, estranhos à vida comum dos ratos. Na
verdade o rato que anda sob as patas traseiras não vive no mesmo ambiente que o rato que
permanece quadrúpede. Mas o animal de duas patas não é o único cujo comportamento é afetado.
0 rato de quatro patas deve modificar sua conduta para com o rato que o enfrenta ereto, em vez de
ficar de quatro. Uma alteração no crescimento, uma vez introduzida na vida de um organismo, não
cessará a diversidade progressiva até que morte detenha o processo.
Nenhuma atividade mental isolada, da criança congenitamente cega, deixa de ser desvirtuada
pela ausência da visão. Nenhum sentido escapa; o equipamento sensorial e o processo de
observação são organizados de maneira diferente na criança cega e na criança normal, que
enxerga. Seu mundo social, como o objetivo e o perceptivo, não é o mesmo no qual vive a criança
que é dotada de visão. É negar os fatos manter, como muitos dos nossos educadores de cegos
fazem, que a organização e crescimento da criança cega podem continuar como o da criança
normal, exceto pela ausência de um sentido. Seria lógico, e igualmente correto, afirmar-se que
uma melodia seria a mesma se a nota dominante fôsse omitida tôda vez que surgisse, ou que o
bridge seria o mesmo, se tôdas as cartas de copas fôssem descartadas antes do jôgo iniciar-se.
Mesmo nos casos em que a cegueira ocorre tardiamente, nas quais a organização da atividade
sensorial já alcançou um certo grau e que a estimulação sensorial é evitada, a organização não
continua como no início mas imediatamente é alterada no processo de reorganização progressiva.
Entretanto constatou-se que, não obstante a semelhança em equipamento sensorial existente
entre o cego congênito e o portador de cegueira adquirida não são feitas distinções suficientes entre estes dois grupos quer nos lares de crianças cegas, na fase pré-escolar,
quer nos institutos para educação dos cegos. É tão injusto e ineficiente tratar uma criança cega
congênita como se ela possuisse a organização sensorial e perceptiva da criança que enxerga,
como é tratar uma criança que possui possibilidade para apreciação visual de tamanho, forma,
distância e cor como se lhe faltasse esta vantagem.
A forma mais objetiva de experiência humana é a visual. Ela dá detalhes que nenhum outro
sentido pode fornecer; ao mesmo tempo traz objetos em relações simultâneas de posição,
distância, tamanho e forma. Apesar da criança normal que enxerga perceber inicialmente relações
espaciais em grau muito imperfeito, ela começa, cedo, a construir um mundo espacial visual e, a
objetividade assim adquirida empresta forma e lugar ao que é ouvido e tocado. Uma criança
imobilizada, à qual falta a objetividade que a visão dá, é completamente incapaz de organizar
padrões sonoros de extensão, direção ou localização espacial. Nas crianças cegas congênitas as
experiências sonoras não têm estas qualidades até que ela seja capaz de estabelecê-las através de
atividade motora, isto é, até começar a engatinhar e a andar.
A visão é o primeiro sentido pelo qual forma, tamanho, altura e largura são distinguidos e, na
sua ausência, a percepção tátil sofre um consequente retardamento.
Sem a visão, inúmeros detalhes faltam à percepþão tátil e a percepção de forma, assim como de
extensão, não podem acelerar o desenvolvimento motor. Nenhuma criança é capaz de perceber o
tamanho e reconhecer a verdadeira forma de um objeto através do movimento de dedos
insuficientemente controlados e sem coordenação. Mesmo a criança que enxerga parece ter uma
localização corporal muito indefinida, um conceito vago de sua própria geografia amorfa. Não há
ainda, um meio de se descobrir como se desenvolvem os conceitos puramente táteis de espaço,
tamanho e forma. Inicialmente o corpo deve sentir-se indefinidamente maciço e extenso.
Posteriormente, volumes menores como a cabeça e braço, tornam-se perceptíveis, sem terem sido
diferenciados a figura e a forma, unicamente o tamanho. Mais tarde, surgem as formas
exploráveis pela boca e pela mão, e, finalmente, aparecem a textura e formas requintadas, tais
como o toque da lã e do linho. O processo continua, até o ponto em que mais nada pode ser acrescentado, em minúcia, através do movimento dos dedos delicados.
Durante as movimentadas horas matinais, enquanto a criança que enxerga está inspecionando e
tomando conhecimento do mundo objetivo pela observação do movimento formas ao seu redor, a
criança cega de nada se apercebe, objetivamente, fora do arco descrito pelas suas mãos e pés
inseguros. Rapidamente, aprende a reconhecer as vozes e contatos pessoais, mas aquelas vêm do
nada e para lá voltam assim que se extinguem. Enquanto a vida da criança normal se desenvolve
ou no sentido de incluir um campo de estimulação cada vez maior, a criança cega deve encontrar
a própria estimulação dentro do âmbito corporal. Dai em diante ela constitui a maior parte do seu
próprio meio-ambiente. Encontra, em si mesma, o que a criança dotada de visão encontra no meio
ambiente visualmente objetivo: o estímulo e motivação para a ação.
Qual é a natureza do estímulo fornecido pelo meio ambiente tátil? A maior parte deste, já vimos,
consiste no próprio eu, logo que é diferenciado da massa inexpressiva de roupas e cobertores. O
corpo se torna imediatamente a fonte e o objeto do estímulo. Portanto os padrões para a
estimulação e manipulação corporal são forjados no berço; até que igualmente adequadas formas de
estímulo venham a substituí-los. ( 1.2)
Os professores primários, nas escolas para cegos recusam-se
a reconhecer a função de tais atividades. Vêem-nas apenas, como um hábito angustioso que deve
ser erradicado o mais depressa possível. Nas suas funções de examinadores esperam que o motor
funcione sem uma parte vital. Correção, proibição, castigo, tudo será inteiramente inútil, a não ser
que a criança encontre uma atividade substitutiva. Se a pressão tornar-se demasiadamente
drástica, ela encontra uma atividade que não seja visualmente ao professor: mas não há garantia
de que seja mais higiênica. O professor, muitas vezes, deixa passar a oportunidade de substituí-la
por uma atividade mais objetiva e que, traz em si uma motivação correspondentemente objetiva.
Alguns professores, realmente capazes, já perceberam que a preocupação tátil com narinas,
olhos e ouvidos pode ser dirigida no sentido de um asseio no vestir de uma melhoria no falar e na
postura.
Visto que o objeto tocado é o único que a criança cega conhece, ela deve ser suprida com
abundância de materiais para manusear e explorar. A falta de estimulação tátil pode ocorrer de
duas maneiras: pela apresentação de objetos de padrões táteis demasiadamente complexos, ou por objetos que
oferecem pouca variedade de forma e solicitam manipulação diminuta. Dos dois tipos de estímulo
deficiente, o primeiro é o mais comum e mais sério. Uma simples bola de borracha feita de
pneumático, por ex., tem muito maior valor educativo para a criança cega congênita, do que uma
boneca de celulóide ou um animal de porcelana. A forma da bola é cheia de significados para a
criança, ela a percebe e a aprecia totalmente, ao passo que, a boneca ou o animal nunca poderão
por si mesmos oferecer os significados típicos que têm para a criança que enxerga.
Um dos erros mais frequentes em que os pais incorrem na educação dos seus filhos cegos, é o de
oferecer-lhes material tátil tão complexo em forma e, tão intrincados nos padrões táteis, que
anulam a finalidade para a qual foi destinado. Os brinquedos comuns são objetos tatilmente tão
complicados, que a criança cega não tira nenhum significado deles. Falta-lhes o padrão tátil,
simetricamente simples, no qual, qualquer espécie de significado está subordinado á exploracão
manual.
Um facto na vida de Laura Bridgman ( 1.3.) ilustra o valor que a simplicidade e simetria de forma
pode ter para a experiência tátil da criança cega congênita. Conta-se que, quando Laura era
criancinha, seu brinquedo favorito eram as botas paternas.

Laura Bridgman, enfiando uma agulha com a língua - fotografia 1885
Zelava por elas e brincava durante horas, preferindo-as ao gato da casa. Quando a imagem é
despida do seu sentimentalismo deturpado, ver-se-á, imediatamente, que a bota preenchia um
passo necessário à educaçao tátil da criança. Não fora escolhida como brinquedo por simples
capricho.
Para Laura era o objeto mais compreensível encontrado na casa dos Bridgman. Faltando-lhe a
imagem visual da criança normal, eia ainda era capaz de seguir, tatilmente, o tamanho, a forma e
os contornos da bota. Acontecerá o mesmo com todas as crianças cegas congênitas; os objetos aos
quais são mais apegadas, e que aparentemente mais apreciam explorar, são aqueles de formas e
contornos mais simples. Galhos, varas, garrafas, caixas e sapatos, são os objetos que estão dentro
de sua compreensão tátil, e tentar desenvolver a apreciação de objetos mais complexos é
introduzir confusão perceptiva e irrealidade, com seus resultados desastrosos. A bota com a qual
Laura brincava, diariamente, tinha aquelas características táteis que particularizam o brinquedo
favorito. Do ponto de vista estético, isto é, tatilmente estético, o couro usado e engraxado
classifica-se como uma das coisas mais belas do uso diário.
Não somente, é agradável ao toque, mas tem uma maleabilidade que dá uma sensação
tridimencional ao toque. A
parte de cima da bota pode ser amarrotada, estirada, virada e espremida, esfregada na parte
externa de forma reta ou circular, enquanto a parte interna pode ser explorada, inteiramente, por
um braço infantil. No exterior as rugas profundas são convexas, enquanto que no interior são
côncavas. Salto, sola e costuras emprestam suas formas aos dedos, para que tracem curvas, cantos
quadrados e dêem laçadas.
Laura, deixada à vontade para se divertir, agiu sob princípios que não tinham sido descobertos
pelos psicólogos e educadores de cegos, em cem anos. Dificilmente se percebe que existe uma
beleza e um significado tátil que não se exibe visualmente e que, muita da beleza e do significado
visual do objeto é totalmente perdido para o tato. Estes são princípios importantes, sob os quais
devem agir os pais e os superintendentes de escolas maternais. Eles também são responsáveis
pelas dificuldades que as professoras primárias dos cegos encontram em ensinar suas crianças e
apreciar modelos de animais.
É provável que o ouvido se torne ativo antes das mãos tornarem-se peritas em exploração tátil.
Em todo caso, o cego congênito dá mostra de um alto grau de diferenciação sonora. Geralmente,
são capazes, precocemente, de fazer discriminações de tons agudos. A percepção do som absoluto
não é rara. O reconhecimento de vozes e a repetição de rimas e melodias indicam que a audição é
o caminho mais objetivo para a estimulação da criança cega congênita. Entretanto, apesar da sua
objetividade comparativa, o som que a criança cega ouve é qualitativamente muito diferente
daquela ouvido pela criança dotada de visão.
É impossível descrever-se os processos auditivos do bebê cego ou mostrar como eles assumem
um caráter objetivo, mas é possível indicar alguns retardamentos e reconduções de
comportamento, que resultam quando esses processos ocorrem. Não há dúvida, que a criança
inicialmente, e por um tempo relativamente longo, ouve de maneira muito subjetiva. Os cegos
estudados mostram que é longo o processo pelo qual a criança cega aprende as relações diretas,
entre o som ouvido e o objeto sonoro.
Este processo envolve as explorações e identificações táteis de objetos, e não avançam até que a
criança alcance livre locomoção. E, mesmo assim, o caminho é difícil e o aprendizado longo. Um
menino de seis anos era completamente incapaz de distinguir a direção de onde vinha o som.
Quando seu nome era pronunciado, ele não tinha meios de localizar a pessoa. Visto que nunca
tivera permissão para mover-se livremente, dentro de sua casa, a direção nunca se tornara parte do
som. O espaço, além da posição momentânea do seu próprio corpo, era absolutamente inexistente.
O som, como o adulto normal o percebe, é tão rico em relações espaciais e tão invariavelmente
atribuido ao objeto sonoro, que é difícil, para os pais de crianças cegas, compreender que a
audição como tal, tem pouco valor objetivo e de orientação. A fim de possuir esta objetividade a
percepção do som, deve sugerir seu lugar e sua origem. Portanto, uma bola sonora, ou um
chocalho tilintante, quando seguros pelas mãos, criam uma realidade espacial e objetiva. São de
imenso valor educativo, ao passo que uma seleção pianística tocada em seus ouvidos é sem
significado e irreal, se a criança nunca examinou, tatilmente, um piano, ou aprendeu sua posição,
dirigindo-se a ele. O piano como localização e causa do som, simplesmente, não existe.
Fala e linguagem são incalculavelmente importantes, no desenvolvimento da criança cega. A
linguagem amplia seu desenvolvimento em primeiro lugar, porque envolve relações pessoais, e
segundo, porque fornece um meio de controle remoto sobre objetos fora de alcance. Não
obstante, é muito fácil aceitarem-se os óbvios valores sociais sociais e objetivos da linguagem,
como os dotados de visão os experimentam, sem avaliar, criticamente, o lugar que ocupam na
vida da criança cega. Nome de coisas circulam entre a criança cega e seus companheiros, dotados
de visão, como se tivessem o mesmo significado, para ambos. Mas o nome da coisa vista, apesar
de ser a mesma palavra tem uma significação diferente do nome da coisa sentida ou ouvida.
Possivelmente, dentro de um alcance muito maior do que para o dotado de visão, as palavras
tornam-se uma fonte de auto-estímulo, fazendo a criança novamente se voltar para ela mesma,
tornando-a, como as suas experiências táteis a fazem, quase exclusivamente seu próprio meio-ambiente. Portanto, a aquisição da fala serve, tanto para objetivar e socializar a vida da criança
cega, como, ao mesmo tempo, para isolá-la ainda mais do mundo da visão no qual ela vive. Este
é o começo da irrealidade verbal.
Uma criança cega pode aprender rapidamente e nomear os sons e indicar suas fontes em termos
convencionais, sem necessariamente entendê-los. Pode reconhecer um toque freqüente e chamá-lo
"telefone"; assim como fazem os outros membros da família. Mas, até tornar-se fisicamente
amadurecida, o suficiente para localizar o telefone na parede ou na escrivaninha, e examiná-lo
com suas mãos, a palavra "telefone" significa para ela, relativamente à distância e função, o
mesmo que a palavra "lua" para uma criança dotada da visão que aprende a aplicá-la a um certo
ponto brilhante, que frequentemente vê. A criança cega pode aprender a denominar e imitar o
apitar da sirene de incêndio e o cocorocar do galo, e poderá fazer ambos os sons corretamente
quando lhe pedirem, mas se lhe derem a oportunidade de tocar poderá não ter idéia de qual seja o
galo e qual seja o carro de bombeiro. Portanto, no início da vida, começa o problema que é
conhecido como irrealidade verbal. Mostraremos adiante, como este problema é persistente e
como surge sob novas formas, toda vez que novas situações devem ser enfrentadas.
Os pais, f'reqüentemente, sentem que, para a criança sem visão, o único caminho aberto à
estimulação é o da audição. Serão tentados a falar quase incessantemente, com a criança
acordada, para impedi-la de sentir-se só. A maior parte desta estimulação, como no caso de tato,
será muito complicada, mas servirá para organizar as primeiras respostas sociais da criança e
encorajará o uso da vocalização para auto-estimulação. Num estágio mais avançado de
desenvolvimento, a crinaça reproduzirá, para si mesma, esta conversação constante, na forma de
rimas sem significado e frases sem sentido. Este quadro verbal é bem ilustrado em algumas
respotas dadas por uma criança de primeiro grau ( 1.4.) às perguntas do teste Binet.
Quando
perguntada sobre "O que é um tigre?" ela respondeu: "Uma coisa para te devorar". "O tigre diz:
"Vou te comer". Parece com um urso". "O urso diz: Vou te comer". "Parece com um lobo". "O
lobo diz: Vou te comer". A série só foi quebrada quando se introduziu uma nova pergunta.
Quando questionada sobre a menina cortada em 18 pedaços, ainda no teste de Binet, a criança
construiu o seguinte diálogo consigo mesma:
"Tire uma faixa de 19 pés de comprimento. 19 polegadas de pele. Ela disse que poderia cortar
mais profundamente, poderia cortar 20 polegadas de pele, e cortou 21 polegadas. Então ela disse,
cortarei 22 polegadas, lhe cortarei mais profundamente e cortou 23 polegadas. Há algo tolo e mau
sobre isto. Quanto pode alcançar 23 polegadas de pele? Até o teto?"
O fã comum, dos filmes cinematográficos, provavelmente, afirmaria que, num filme falado ele
ouve a conversação tão detalhadamente, como vê a ação da peça. Mas deixe-o parar e analisar o
quanto efetivamente ele "ouviu" da ação recíproca dos personagens, a qual ele considerava como
conversação. Compreenderá, imediatamente, a função da expressão e pantomina "facial" na
conversação direta. Toda a situação é esclarecida e definida pelas atitudes e gestos de figuras
eventuais, na peça. Deixe-o compreender as relações pessoais da criança cega, com sua família
dotada de visão. Será patente que toda a silenciosa conversação dos gestos está perdida para ela.
Seu mundo, falho de objetividade visual, é definido pelo contato imediato pessoal ou objetivo, e
ela é, desse modo, excluída da oportunidade de observar relações pessoais que não a incluem. A
criança vidente, desde pequena, torna-se consciente, das relações entre os outros membros da
família, tais como as atenções da mãe com os irmãos e as irmãs. As ações e expressões
envolvidas podem ser observadas à distancia e são cheias de significados. Antes de poder articular
palavras, a criança reconhece diferentes trajes e registrará desaprovação se um irmão for visto
usando o casaco de outro. Posições cômicas e caretas são percebidas e apreciadas desde muito
cedo. A incapacidade de perceber estas relações objetivas, e suas apuradas graduações de
significados sociais, inicia a personalidade da criança cega no caminho da introversão. Apesar de
flexibilidade social da linguagem, ela é excluida de grande parte do dar e do receber na vida
comum familiar. Seu mundo é composto de contatos pessoais do qual ela é o centro e no qual não
existem relações fora dela.
É quase impossível uma pessoa dotada de visão compreender como é restrito este mundo de
comunicação. Quem já possuiu visão e, repentinamente, se encontra excluido das relações sociais
visuais, tem uma vaga idéia de como estas são inteiramente sem significado, para alguém que
nunca as experimentou.
Tem, igualmente, vaga idéia da proeza imaginativa sobre-humana exigida da criança cega
congênita, para entender as vidas existentes inteiramente alheias a sua, exceto pelos contatos
pessoais que ela conhece e pode experimentar diretamente. Pode-se esclarecer algo, a respeito do
mecanismo desta percepção restrita; pela experiência de um doente, internado na enfermaria de
um hospital, após uma operação de olhos. Estando ambos os olhos vendados, sua usual percepção
de relações sociais objetivas estava muito reduzida. O paciente contou que era completamente
incapaz de perceber o que os outros ocupantes da enfermaria estava fazendo a não ser que lhe
fosse relatado. Não sabia quem estava falando com quem, ou o que faziam enquanto falavam.
Passaram-se três dias, até que fosse capaz de reconhecer um jogo de dados que dois pacientes
jogavam sem parar. Ouvia quando falavam, riam e exclamavam. Ouvia o retinir dos dados junto
com o barulho das roupas de cama. Estas percepções foram particamente inúteis para a finalidade
de interpretar a situação social. Finalmente, um dos jogadores falou que o dado devia estar
viciado. Até aquele momento, o paciente não fora capaz de reconstruir a cena visualmente e,
portanto, de se aproximar da situação e percebê-la como os outros pacientes.
Quanto tempo levaria o paciente para reconstruir uma situação tão significativa de jogo de dados,
se ele não tivesse visto ou experimentado este jogo anteriormente? Obviamente, sem a memória
visual, nunca teria percebido a situação corretamente, até que participasse do jogo. A participação
teria produzido um conjunto de relações, muito diferente daquele forncecido pela reconstrução
visual.
Tais são as restrições sob as quais o desenvolvimento social do cego congênito deve expandir-se.
Relações sociais, que não envolvam a criança, pessoal e diretamente, são sem significado e não
existem como tal. Ela não é um membro daquele todo social de personalidades análogas, que para
seus membros normais constitui a família. Pertence a outro todo social, completamente diferente,
de personalidades análogas à sua, e fora destes pontos de contato, desconhecidas como
personalidades independentes. As atividades e relações alheias são descritas em palavras, mas a
compreensão vem apenas através da participação e somente com uma predisposição egocêntrica
resoluta. O campo da compreensão permanecerá, comparativamente, restrito, pois a criança cega
somente pode participar indiretamente da maioria das atividades de seus companheiros.
Mesmo na maioria das formas de atividades vocais tais como falar, cantar, e fazer algazarras
infantis, a participação é incompleta, pois os aspectos auditivos do jogo constituem apenas uma
pequena parte da ação geral.
As páginas anteriores mostraram que a criança cega, inevitavelmente, torna-se egocêntrica. Sua
organização sensorial é tal que, mesmo que utilize os recursos do seu meio ambiente ao máximo,
ainda assim permanece dentro de si mesma. Portanto, uma tendência diversa de personalidade,
carregada de importância social de grande alcance, desenvolve-se diretamente a partir da
organização sensorial. Ainda devemos apontar, mais especificamente, o rumo do ajustamento
social resultante das atitudes sociais e a das exigências do grupo.
O tipo de normalidade social, ao qual a criança cega deve ajustar-se, é a criança dotada de visão
que cresce numa atmosfera social normal de um lar de nível médio. A criança cega não é mais
perversa, egoista ou anti-social, por natureza, do que a criança que enxerga. Mas seu crescimento
não é organizado da mesma maneira e ela está cercada por uma atmosfera de relações pessoais
anormais. Este comportamento social peculiar não representa um afastamento das formas normais
de comportamento. Ao contrário, representa a maior aproximação do normal permitido pelas
circunstâncias. Causas sociais, dentro do lar, e dentro da própria criança, fazem, inevitavelmente,
que ela se centralize e, assim agindo, limite seu discernimento para relações mais amplas,
deixando-a socialmente imatura e desvirtuada.
Os problemas sociais que se desenvolvem na vida pré-escolar da criança cega são muitos e
sérios. Em primeiro lugar, sua posição na família não é a mesma da criança normal. Seu
nascimento, provavelmente, causou aos pais inúmeras preocupações. Inevitavelmente, eles
adotarão para com ela um tipo de atitudes habituais, que certamente não serão saudáveis. Será
olhada como uma responsabilidade econômica ou como um objeto indulgentemente luxuoso.
Poderá ser completamente ignorada, com exceção dos cuidados para com suas necessidades
corporais, ou poderá ser super-estimulada por conversas e agrados constantes. O fato é que nem
mesmo durante a primeira infância ela é tratada como socialmente igual aos seus irmãos e irmãs.
Tal tratamento especial é discriminatório, não obstante estar ela cônscia do mesmo, provocará
respostas sociais correspondentemente anormais, que permanecerão durante toda a vida. A
criança que cresce aceitando auxílios passivamente sem críticas enfrentará poucos conflitos. Sua
simplicidade passiva, por sua vez, produzirá respostas apropriadas de cada novo grupo em que
ela encontre, e ela nunca saberá a diferença entre afeição total e tolerância piedosa. Mas, para
aquelas crianças que têm discernimento dos motivos de conduta, a vida não apresenta tal
serenidade. Em cada novo encontro enfrenta piedade e condescendência e deve lutar, novamente
pelo seu amor-próprio. Naturalmente, tais conflitos criam seus próprios efeitos sobre sua
personalidade, que, novamente, reage produzindo novos conflitos.
A reação mais típica que as atitudes familiares despertam na criança cega é a intermediária entre
as duas descritas. A criança cega, inicialmente, aceita a atenção discriminadora oferecida pela
maioria dos lares, depois a espera e finalmente a exige. A criança não precisa de um grau de
compreensão muito elevado para descobrir esta força com a qual a deficiência a supre. Mesmo na
fase pré-escolar é possível encontrar-se aqueles mecanismos sutis de personalidade, que
caracterizam o comportamento egocêntrico do histérico. Quando não conseguem obter os
resultados, através de pedidos feitos em nome da deficiência sensorial, a criança aprende, logo, a
ganhar a atenção desejada manipulando as circunstâncias de modo a provocar uma pressão social
em algum membro do grupo. Tal comportamento dificilmente será considerado como socialmente
anormal em seu lar, mas torna-se imediatamente aparente numa instituição, quando as exigências
são feitas a outros, igualmente deficientes.
A criança cega torna-se, consciente do seu defeito sensorial quando ainda é muito jovem.
Constatou-se que as crianças cegas congênitas com a idade de trinta meses reconheciam a sua
falta de visão através de observações, cheias de perspicácia, do poder de visão de seus
companheiros. Em alguns casos, com apenas trinta e seis meses, já eram capazes de denominar e
descrever a condição da cegueira com a qual a criança se familiarizará impelida pelo bom-senso
dos pais. Nesta idade aceita-se a condição de cegueira, da mesma maneira que a presença de dois
pés e um nariz, e somente bem mais tarde é que se constrói algum conflito emocional sobre si
mesma.
Numa das mais proeminentes escolar maternais ( 1.5.) para bebês cegos neste país, a palavra
cegueira, ou qualquer outra expressão verbal indicativa da deficiência sensorial é proibida pela
superintendência. O motivo é semelhante àquele que caraacteriza a atitude sexual puritana. Se a
palavra não for pronunciada e nenhum nome for dado, a condição não existirá. O superintendente,
que tem anos de experiência ainda acredita que assim que a criança cega torna-se verbalmente
ciente da sua condição, começará a preocupar-se com ela. Era interessante notar-se no
comportamento das crianças para com os atendentes, dotados de visão, que nenhum grande
mistério existia, em suas mentes, mesmo que nenhuma palavra fosse utilizada para denominar
suas condições.
Para a criança cega faltam muitos objetivos que motivam a criança dotada de visão. Mas, para
ser aceita socialmente, seu comportamento não deve revelar o que lhe falta. Deve aprender a
vestir-se com roupas bem combinadas sem a recompensa de ver o resultado agradável. Deve usar
vestes que podem agradar à visão mas que são tatilmente sem significado. Deve evitar sujar suas
roupas com nódoas e manchas misteriosas que não existem para a sua percepção. Deve descrever
verbalmente uma infinidade de objetos e atividades que, para ela não tem realidade a não ser nas
palavras em si e nas reações emocionais que produzem nos dotados de visão. Assim, as
exigências sociais começam a forçá-lo desde cedo, para um mundo de irrealidade. E, enquanto se
conforma com esta situação seu próprio mundo sofre a redução e desvalorização correspondentes.
Precisa aprender a renunciar à satisfação da exploração corporal e a quase que toda espécie de
auto-estimulação. Não deve exaurir a paciência da família com barulhos ridículos. Não deve
desenvolver a curiosidade tátil que perturbaria a ordem da casa e a integridade de objetos
perecíveis. A maioria da estimulação que seu crescimento exige ela deve obter, a despeito do
mundo que enxerga, mas, através de métodos subjetivos e introvertidos.
Se tiver êxito razoável na tarefa impossível de, sendo cego, apresentar-se como se não o fosse,
qual será o preço da façanha em termos de personalidade? Seu comportamento deve ser motivado
pelo desejo de recompensa normal e objetiva, mas, pelo desejo de aprovação social. Grande parte
de sua conduta é determinada não pelo que ela gosta de fazer, mas pelo que fará os outros
gostarem dela.
Através destas influências afasta-se da realidade. Uma realidade desagradável e severa,
indubitavelmente, deixa seus efeitos sobre a personalidade. Não é nada fácil a tarefa da criança
cega para ajustar-se a exigências de uma irrealidade severa e inexorável. Na verdade, quanto mais
ela se conforma ao conceito visual da criança normal, provavelmente, mais sofrerá de grande
limitação e mal ajustamento da personalidade.
Demonstrou-se como a criança cega congênita cresce, inevitavelmente, em direção a uma
personalidade introvertida. Por causa do seu desenvolvimento sensorial e da motivação que o
acompanha, é óbvio que a criança é suscetível a todos aqueles problemas de comportamento com
os quais o indíviduo egocêntrico se confronta. É igualmente óbvio que até certo ponto, o grau de
egocentrismo pode ser controlado pelo ambiente familiar. Entretanto, desconhece-se até que
limite, e assim será, até que se encontre um lar que tenha tudo que é possível, naquele sentido.
Tem sido uma prática largamente tolerada nas escolas para cegos, depositar na porta do ambiente
doméstico todos os problemas de personalidade da criança cega. As instituições parecem não
perceber o fato de que deformações da personalidade que se igualam em violência a qualquer
comportamento incipiente iniciado nas escolas maternais, florescem dentro de suas próprias
paredes. Há pouca virtude ou valor educacional na desorganização de um tipo de comportamento
anti-social, para criar-se outro negativo e menos adequado.
Muita estimulação objetiva pode ser oferecida à criança cega, na fase pré-escolar, que tornará
seu crescimento o mais análogo possível ao de seus irmãos e irmãs dotados de visão. Pelo que se
tem observada, no começo do crescimento da criança cega, dificilmente poder-se-á evitar o desenvolvimento egocêntrico inicial, até que ela atinja o estado físico de maturidade que lhe
permite gatinhar e andar. Este período pode ser acelerado e encorajado numa atividade contínua,
através de cuidados inteligentes e de persistência. Gatinhar é uma fase de locomoção que, muitas
vezes, é omitida devido à posição vulnerável da cabeça quando a criança anda de quatro. As
crianças, frequentemente, a substituem por uma forma de gatinhar na qual, através de uma
posição sentada, a locomoção é feita por um movimento, em arrancos, das pernas e das mãos.
Mas, aqui também, pelo balancear do corpo, a cabeça é a primeira a entrar em contato com paredes e móveis. Normalmente a maturidade fisica ocorre sem atividades acessórias e passa da
posição de borco, através da posição sentada para o ato de levantar amparando-se em algum
objeto. Irmãozinhos e irmãzinhas ajudam a reduzir os estágios das diferentes fases de locomoção.
Quando a criança aprende a andar, deve-se omitir dentro de casa, qualquer forma de guia manual
e permitir que ela se oriente sozinha, mesmo com o risco de pequenas contusões e angústia
emocional, quer por parte da criança ou qualquer membro da família. Uma criança guiada
manualmente, nunca chegará a orientar-se numa sala ou numa casa. Deve conseguir, sozinha, a
sua configuração espacial. Observou-se que, neste processo, um relógio de alarme, com um tique-taque sonoro, colocado dentro da sala sempre na mesma posição é de enorme eficiência.
Igualmente, um pouco mais tarde quando a criança começa a aventuar-se no gramado, um gongo
japonês que soa com o vento, um hidrante de águas chiantes, o murmúrio do moinho de vento é de
inestimável valor para fornecer à criança o ponto fixo de orientação. Outro expediente que ajuda a
ampliar a atividade e a mobilidade é dar à criança, como companheiro de folguedos, um
cachorrinho. A coleira deve estar equipada com pequenos sinos afim de ser possível perseguir o
animal e fugir do mesmo. O cachorro tem vantagem sobre a criatura humana pois não possui
valores sociais sentimentais que lhe permitam demonstrar piedade ou compaixão.
Não há dúvida que o discernimento e a atividade, desenvolvidos pela criança dentro do lar, na
fase pré-escolar, apesar de insuficientes, são mais reais e empíricos do que a atividade adquirida
nas escolas sob a estimulação de pedagogia primária altamente opressiva. A criança, na fase pré-escolar, geralmente, está confortavelmente ajustada ao seu meio ambiente e se desenvolvendo em
direção a realidades concretas; à medida que as enfrenta. De outro modo, não desenvolverá
nenhuma motivação e não haverá crescimento nessa direção. Duvida-se que a criança alcance tal
grau de ajustamento, num ambiente institucional ou numa sala de aula.
Para dar-se um exemplo concreto, do que se quer dizer sobre este importantíssimo problema do
ajustamento pessoal: Era ou não, Helen Keller melhor ajustada à sua vida simples antes da
chegada da senhorita Sullivan?
A criança Helen parecia, através de todos os relatos, ter uma situação bem controlada, desde o
paternal Capitão até o cachorrinho da casa. Era marcadamente egocêntrica em seu comportamento
social. A Helen adulta ainda o é, mas, em linhas que estão mais de acordo com os costumes da
maioria. Com toda sua educação baseada em conceitos verbais visuais há muito menos realidade
experimental e discenimento de situações no adulto Helen do que na criança desprotegida. A
questão importante é: aonde, ao longo do processo educacional e da formação da personalidade
deve o crescimento natural ser sacrificado em favor do artificialismo?
Neste capítulo foi feita uma tentativa para apresentar-se algum dos princípio fundamentais,
subordinados ao desenvolvimento da criança cega. Do princípio ao fim, a criança cega congênita
tem sido considerada, em geral como a criança cega típica na fase escolar. Afim de evitar-se
detalhes intrincados e repetições, a criança cega, congênita, foi tomada, arbitrariamente, como
padrão.
Concede-se ao leitor o privilégio de fazer qualquer modificação que possa ser exigida,
em casos especiais, por variações de graus de visão ou de idade em que ocorreu a cegueira. Este
processo justifica-se, pois os efeitos da cegueira são relativos tanto ao grau como à idade da
ocorrência da cegueira. A descrição e a discussão de princípios científicos são sempre mais claros
e definidos, quando têm como referência uma constante fixa.
Apesar da criança cega, na fase pré-escolar, apresentar oportunidade mais sedutora para o estudo
científico e educacional no campo do cego, pouquíssima coisa tem sido feita. O problema se
presta a investigações apenas pelo método longo e enfadonho do estudo de cada caso, cujos
resultados são limitados pela perspicácia da observação e dedução do investigador e,
consequentemente, susceptíveis de ampla variação, tanto no relato do fenômeno como na
interpretação. Geograficamente, o problema é difícil, pois a relativa raridade dos indivíduos limita
o número de casos que um investigador pode abordar. Também falta ao problema a uniformidade
e homogeneidade de material, que facilita a observação científica. As diferentes idades em que a
visão é perdida e os vários graus de visão conservada, empresta ao problema um aspecto
decididamente desconcertante, tanto para os psicólogos como para o observador casual.
Muitas vezes, a cegueira é apenas um de um grupo de defeitos fisicos do qual,
embora possa ser o mais óbvio, frequentemente, não é o mais importante. No meio ambiente do
lar e na vida familiar do indivíduo encontra-se falta de uniformidade. Isto tem tanta influência
sobre o indivíduo a ser estudado, como as suas próprias variações fisicas. As várias escolas
maternais para crianças cegas não oferecem condições mais uniformes do que os lares, pois cada
uma delas tem seu regime próprio, e as crianças são tratadas por indivíduos diversos com
personalidades diferentes. Talvez, no futuro, quando as escolas para cegos realmente desejarem
educar seus alunos, este campo obtenha maior importância e receba a investigação cuidadosa, que
merece. Mas, até lá os departamentos primários das instituições servirão como sala de
recuperação da escola, aonde é tentado superficial treinamento sensorial, motor e social.
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Notas
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1.1. As profissões médicas e legais definem a cegueira relativamente à visão normal. Para uso
psicológico é mais convincente rever-se este conceito e adotar-se o estado de cegueira total, como
padrão de referência. Através deste livro o termo cegueira será usado neste sentido, a não ser que
seja, especificamente, declarado o contrário.
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1.2. Os atos de auto-estimulação automáticos, encontrados entre os cegos são comumente
conhecidos sob o termo genérico de maneirismos. Crianças que têm um grau muito pequeno de
visão usualmente adotam o maneirismo que consiste em agitar as mãos e os dedos diante dos
olhos, nariz e boca, ou, em manipular apêndices, tais como, orelha, nariz, lábios e mechas de
cabelo. Estimulação cinestésica é produzida pelo balanceado do corpo, rolar ou inclinar da
cabeça, movimentos de braços e ombros e genuflexões exageradas. Os maneirismos são
considerados, popularmente, como hábitos nervosos.
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1.3. Laura Bridgmman, a primeira cega-muda a ser educada, nasceu em Hanover, New Hampshire,
1829. Com sete anos foi levada para o Instituto Perkins, em Boston, pelo Dr. Samuel Gridley
Howe. Aí lhe foram ensinados a maioria das matérias escolares e das atividades manuais providas
pelo Instituto. Aprendeu a linguagem manual rapidamente, e tornou-se muito eficiente apesar de
não ter aprendido a linguagem vocal. Permaneceu a maior parte de sua vida no Instituto Perkins.
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1.4. A criança tinha seis anos e oito meses, e tinha a idade de Binet de sete anos e um mês, e um
Q.I. 106.
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1.5. Foram encontrados lares estaduais, em vários dos estados mais populosos, nos quais as
crianças cegas eram colocadas até a idade de poder entrar numa escola residencial. Devido aos
métodos efetivos empregados nas campanhas médicas para a prevenção da cegueira, os números
nas escolas maternais estão decrescendo e espera-se que em breve se tornem obsoletos.
Capítulo II - Um caso de retardamento
O canário de estimação, que canta com gosto na sala, é um pássaro prisioneiro normal, que
responde inteligentemente à sua condição de engaiolado. As suas deficiências tornar-se-iam
aparentes assim que fosse libertado e obrigado a cuidar-se, numa situação maior e mais
complexa aonde os pássaros selvagens representam a normalidade. O canário engaiolado é
funcionalmente retardado, e em comparação com o pássaro livre, que tem a possibilidade de
perceber as relações não existentes no mundo do primeiro. Do mesmo modo Bert, o
indivíduo objeto do presente capítulo não era de forma alguma deficiente no ambiente
caseiro precário e vegetativo que seu lar lhe proporcionara durante os primeiros vinte e
quatro anos de sua existência. Possuia suficiente introspecção e vontade para dominar todas
as situações que até então se lhe haviam deparado. Nos termos das condições de seu
ambiente, levava uma vida completa e total e, como aquele canário de estimação que fora
libertado, tornou-se funcionalmente deficiente somente ao se defrontar com uma situação de
maior amplitude e complexidade. A atividade sempre se torna mais organizada, de acordo
com a extensão permitida por condições existentes. Isto é verdade para um motor elétrico, ou
para um vulcão, como também o é para o ser humano. A variabilidade no comportamento do
ser humano ou na potência dos motores elétricos verifica-se na organização das forças
causais e não no resultado final do produto. Muita informação psicolóica de valor poderá
ser obtida através de estudos de casos daqueles indivíduos que não possuem a organização
comum do ambiente social onde se apoiar e que somente pode ser compreendida em termos
de tal deficiência social. No capítulo anterior, tentou-se demonstrar como a criança cega, na
idade pré-escolar, inevitavelmente desenvolve todo um campo de reações peculiares a ela
própria, caso um esforço especial não seja realizado para desviar, esta atividade de volta ao
chamado normal, ou para ser mais preciso, na direção daquela desenvolvida por uma criança
dotada de visão. Um corpo fisicamente disforme, assim como uma personalidade distorcida
pode resultar da ausência de estímulo e de motivação.
Quando este estudo se iniciou, Bert, aos vinte e quatro anos de idade, acabara de ser
admitido numa escola para cegos adultos. ( 2.1) Apurou-se pelas investigações, ter nascido no
seio de um lar de classe média, economicamente independente. Seu pai era um artesão de
sucesso, e sua mãe uma senhora de boa educação, de New England. Bert era o mais jovem
de uma família constituída de dois filhos, sendo o outro dez anos mais velho. Este era um
belo exemplo de vigor físico e intelectual, e seu comportamento indicava excelente treino em
casa e uma geral sofisticação. A casa de Bert situava-se numa comunidade sectária, muito
rígida. Como seus pais não se conformassem com a ortodoxia local, a sua adesão a outra
seita deu maior intensidade à atmosfera religiosa do lar.
Bert era cego de nascença, devido a catarata congênita. Tinha a aparência física e mental de
uma criança normal. Começou a falar na idade normal, a andar aos trinta e dois meses, o que
não representa atraso para uma criança cega de nascença. Aos doze meses, obteve visão
parcial do olho direito através de intervenção cirúrgica.
É muito difícil descobrir-se os motivos fundamentais subexistentes nas atitudes dos pais
em relação a seus filhos deficientes. Qualquer que tenha sido a causa, o treinamento de Bert
foi lamentavelmente negligenciado em todos os sentidos. Sua mãe não permitiu que seu filho
cego fosse enviado a qualquer instituição equipada a lhe proporcionar os recursos
educacionais, mas lhe ministrava, ela própria, treinamento no lar, quase não vendo ele quem
quer que seja, a não ser membros de sua família e saindo apenas aos domingos para ir a
igreja. Um professor de piano dava-lhe algumas aulas em casa. Após a operação do olho,
Bert aprendeu a ler impressos e, mais tarde, um professor do Estado ( 2.2) ensinou-lhe a ler
Braille.
Com a idade de vinte e quatro anos, ao ingressar na instituição, Bert apresentava uma
aparência cadavérica e desajeitada. Era de estatura média, com dezoito quilos abaixo do
peso normal. Seu emagrecimento era conseqüência das inúmeras aversões alimentares que
lhe tinham permitido adquirir, e a uma acentuada e aguçada arcada dental que interferia na
mastigação dos alimentos.
Adquiriu uma curvatura dupla espinhal que não somente exagerava a inclinação desajeitada
dos ombros, como também projetava a sua cabeça para trás, a ponto de seu rosto ficar
voltado para o céu. A excentricidade de sua postura era aumentada pela tentativa de
empregar ao máximo o pequeno campo visual proporcionado pela operação. Para enxergar
pequenos objetos Bert suplementava a diminuta visão com um pequeno tubo ocular
subtraído de um microscópio, o qual segurava e ajustava com a mão. Para enxergar à
distância empregava uma peça telescópica de metal com oito polegadas. Mantinha a boca
aberta e em virtude da posição da cabeça, adquiriu uma tosse e emitia repetidamente um
som semelhante a um latido, originariamente decorrente da saliva que lhe escorria pela
traquéia. Este som repetia-se a cada minuto e meio, em média. Andando ou sentado,
passivamente, batia irregularmente as mãos defronte da face ou entre os joelhos. Sua
atividade manual incluia também a manipulação de algumas áreas erógenas do corpo.
O comportamento social habitual de Bert era o de manter-se em pé, num lugar distante, na
periferia de um grupo, onde pudesse ouvir a conversa. Enquanto escutava, fixava os olhos
em algum ponto no teto, na luz da rua ou na lua e respondia em solilóquios murmurantes.
Intermitentemente, a cada minuto e meio, emitia seus sons característicos de tique-taque.
Estes aumentavam em intensidade e freqüência dependendo das mudanças emocionais
provocadas pelo assunto das conversas, ou pelo perigo de ser abordado por alguém.
Não desejava comunicar-se com quem quer que fosse, e, se isto ocorresse, rapidamente,
debandava, ou cobria o rosto com as mãos e curvava-se até a cabeça chegar abaixo da
cintura.
Bert foi colocado nas classes de trabalhos manuais de fabricação de cadeiras e de cestas.
Aqui verificou-se que sua coordenação de movimentos correspondia ao de uma criança de
quatro a cinco anos de idade. A sua manipulação dos objetos com as mãos e os dedos
caracterizava-se por maneiras de tal modo grosseiras, que enquanto envolvia um dos dedos,
o resto da mão o acompanhava num movimento semelhante. Por exemplo, se instruído para
agarrar com firmeza um caniço entre o polegar e o indicador, ele aquiescia utilizando-se dos
quatro dedos, omitindo a função de apreensão do polegar. Era incapaz de auxiliar o
desempenho de uma das mãos com a atividade suplementar da outra.
Em virtude do constante uso de seu campo limitado de visão confusa, ele se achava
completamente perdido no desempenho de uma tarefa manual que excluisse a visão.
Entretanto demonstrava grande engenho para manipular seu material no sentido de
conseguir a melhor vantagem possível da visão que possuia.
Durante a primeira semana foi transferido do serviço normal de cestas para exercícios
especiais de desempenho. Uma estimativa mais precisa de sua habilidade manual foi
possível atraves destes exercícios. Conseguiu complementar os encaixes de Montessori de
diversos diâmetros, pela primeira vez, em oito minutos, e pela segunda, em quatro. Os
encaixes de diâmetros constantes e de comprimentos diferentes foram executados na
primeira vez, em dezoito minutos e em dez na segunda vez. A seguir foi colocado para
executar a tarefa de enfiar grandes contas de madeira sobre uma peça rígida de rota. Esta
tarefa apresentou-se mais fácil e lhe agradou. A razão talvez estivesse no fato de que podia
colocar a conta inteira e a extremidade da rota sob o seu pequeno campo visual.
Uma tentativa foi feita para interessar Bert em atividade que não necessitasse de
coordenação muscular tão delicada como a exigida para trabalhos em cadeiras e confecção
de cestas, mas sim, do emprego de grupos de músculos maiores. Em conseqüência, foi
encaminhado para a oficina de carpintaria, onde trabalhou durante dois períodos, com pouco
interesse, perfurando moldes em tábua de pinho com um jogo de martelo e prego. Aqui, mais
uma vez, tudo correu bem enquanto podia utilizar-se de sua visão, porém, se o local tornava-se escuro, ele tornava-se completamente incapaz. Na sua tentativa de aproximar-se o mais
possível de seu trabalho para enxergar, batia-se, repetidamente, com as garras do martelo no
movimento ascendente do mesmo. Logo conseguiu martelar um prego na tábua, mas nunca
dominou a tarefa de retirá-lo com o movimento de alavanca do martelo.
Ao ser reconduzido à seção anterior foi colocado no serviço muito simples de tecer,
utilizando-se de três travas verticais de meia polegada de cavilha e de um cordão rígido de
papel de dez milímetros, para tecelão. Conseguiu realizar esta simples tarefa de tecer,
somente após muitas horas de esforço. Compreendia e repetia as instruções verbais, e
exercia esforços sinceros para executá-las, mas sua diferenciação tátil era tão fraca que não
descobria o erro se este ocorresse ao lado, fora do alcance de sua visão.
Embora tivesse acuidade tátil suficiente para ler Braille com facilidade, nunca podia
distinguir se os urdimentos encontravam-se trançados ou em posição paralela lisa. De fato,
não lhe era possível contar pelo tato uma série de caniços de dez milímetros de diâmetro
colocados lado a lado. A sua acuidade tátil era normal, mas seus processos de percepção não
se tinham desenvolvido além dos do nível de uma criança.
Após várias semanas de trabalho com diferentes tipos de material, Bert, auxiliado
consideravelmente pelo professor, conseguiu completar uma pequena cesta do tipo de gomo.
Esta façanha parece não lhe ter proporcionado grande alegria criativa, muito ao contrário,
evitava olhar para a cesta enquanto o instrutor terminava de guarnecê-la. Nem tão pouco
desejou guardá-la para si. Demonstrou apenas interesse em que o diretor a visse. Entretanto,
este interesse não chegou ao ponto dele próprio levá-la ao diretor.
Em casa, Bert aprendera a vestir-se de alguma maneira, e isto incluia o desempenho de
amarrar o cordão de seus sapatos com um simples nó. Fez-se uma tentativa de ensinar-lhe o
nó duplo. Não demonstrou interesse algum, pois, como ele próprio disse "um só tipo de nó é
o que uma pessoa necessita". A tentativa terminou em fracasso, assim como, a de dispender
uma hora por dia empregada num sincero esforço de fazer uma dobra tripla. A inabilidade
em empregar as duas mãos simultaneamente e a falta de diferenciação individual dos dedos
tornaram estes esforços inúteis. Em resumo, durante as oito semanas em que esteve sob
observação, realizou apenas um ligeiro progresso na atividade manual. Os poderes místicos
da repetição e do exercício perdem a sua potência na ausência de motivação e na falta de
grau suficiente de maturidade.
Em casa, o pai de Bert fazia-lhe a barba cada domingo pela manhã. Este processo sensorial
tornou-se parte de seu programa de fim de semana. Portanto, no primeiro domingo na
instituição, recebeu de seu professor de cestas uma lição de como barbear-se sozinho.
Durante as restantes oito semanas Bert aparecia na sacada, pela manhã, aos domingos,
barbeado razoavelmente, apenas por seu próprio esforço. Naquela oportunidade era
inacreditável que tivesse adquirido em uma lição, somente, a habilidade suficiente para
desempenhar o que se considera, deveras, dificil até para um novato normal.
De fato, a incredulidade era tão grande que uma investigação se procedeu entre os demais
para apurar se alguém teria tido compaixão de sua incapacidade. Os resultados foram negativos, e nada se apurou para justificar o impossível.
Duas semanas após ter Bert ingressado na instituição, indagou, timida e acanhadamente, se
havia um piano no local que pudesse usar. Sendo esta a primeira vez que demonstrava algo
mais que indiferença, o pedido foi imediatamente atendido. Seu professor de cestas
acompanhou-o ao edifício musical e indicou-lhe uma das salas de exercícios dos estudantes,
que poderia ser utilizada por ele quando bem desejasse. Quando Bert sentou-se ao piano, o
instrutor surpreendeu-se bastante ao ouvir o acorde provocado sincronicamente por ambas as
mãos. Parecia incrível que aquelas mãos que se atrapalharam tanto com as travas e tessituras
da cesta pudessem se organizar em algo tão precioso. No momento que soou o acorde, Bert
levantou-se e disse que não gostava daquele piano por estar desafinado, fato que o instrutor
desconhecia. Um segundo piano foi experimentado e recusado, pelo mesmo motivo.
Finalmente, encontrou-se um terceiro piano que Bert aprovou. Sem mais uma palavra,
sentou-se por mais de meia hora, tocando exclusivamente para o próprio entretenimento. Era
evidente, pelo seu tocar, que tinha praticado anteriormente, pois as seleções que aprendera
antes haviam sofrido revisões improvisadas por ele mesmo. Aquelas partes que eram muito
difíceis ou que tinha esquecido, substituiu-as por outras, com esforço aparentemente
pequeno. A maioria de suas seleções era composta de melodias que ouvira no rádio e na
igreja. Sabia apenas o título de duas das músicas que tocava. Admitiu inocentemente, que as
demais não possuíam títulos, sendo apenas canções e hinos.
Bert aprendera sob as instruções de sua mãe, a escrever a lápis, letras de forma.
Desenvolveu suficientemente esta arte, que lhe permitia escrever a seu pai freqüentemente.
O seu objetivo principal na instituição era aprender a utilizar-se da máquina de escrever.
Permitiu ao instrutor de datilografia demonstrar-lhe como colocar o papel na máquina, e
como usar as letras maiúsculas, mas, após isto, empurrava-o para o lado com um gesto de
aborrecimento. Comparecia regularmente a sala de datilografia e praticava diligentemente,
alheio à classe e ao professor. A sua forma manual na máquina estava longe de ser correta,
mas podia escrever, empregando uma combinação dos métodos visual e tátil. Aquilo que pôde aprender de datilografia representou a maior conquista adquirida durante a
estadia.
Após algum tempo, através de conversação forçada, Bert desenvolveu interesse pela
informação geográfica, tendo demonstrado o desejo de visitar a sala de geografia da
instituição. Quando foi conduzido a essa sala, que estava equipada com grandes mapas em
relevo, globos e mapas de madeira dissecados, fez uma volta em silêncio, olhando
casualmente através dos óculos a cada novo objeto, evitando fazer qualquer exploração dos
mapas pelo tato ( 2.3), até mesmo daquelas partes que se encontravam além dos limites de sua
visão. Apenas uma olhada era suficiente. Instalou-se em seguida, passando a ler uma cópia
impressa de geografia que se encontrava na mesa do professor. Ao apanhá-la da mesa e abri-la na primeira página onde havia o título, observou, casualmente, que o livro era bom, porém
obsoleto, já que a última edição tinha sido publicada em 1915.
Verificou-se serem as atividades intelectuais de Bert tão esporádicas quanto as suas
realizações musculares. Em alguns aspectos ele se igualava, e em proezas de memória até
excedia a uma pessoa normal; em outros, o seu conhecimento e percepção de relações eram
extremamente infantis. Era capaz de dar os nomes de todos os Estados da Federação e de
todos os países da Europa, nomeando as capitais respectivas e as cidades principais.
Descrevia os vulcões e 'os esquimós, mas não podia justificar porque Nova Yorque era a
maior cidade dos Estados Unidos, nem tão pouco, porque existiam cidades maiores na costa
do Atlântico do que na do Pacífico. Lia consideravelmente uma variedade bem grande de
assuntos. Leu duas revistas Braille (2.4) e o "Companheiro da Juventude" regularmente, e a
Bília inteira. As histórias preferidas versavam sobre viagens e aventuras.Possuía um
vocabulário literário bastante amplo, isto é, conseguia pronunciar a maioria das palavras que
se lhe depara'vam com precisão considerável, demonstrando pelo menos estar familiarizado
com elas; mas seu vocabulário para expressar-se verbalmente era extremamente limitado.
Reconhecia muitas palavras durante a leitura sem ter com tudo qualquer noção quanto a seus
significados. Por exemplo, não lhe era possível dar termos equivalentes a um grande número
de palavras de sentido abstrato, ao mesmo tempo que objetos concretos, que podia descrever
verbalmente, fugiam a seu reconhecimento ao confrontá-los.
Conseguiu descrever um esqui com relativa precisão, porém, foi-lhe completamente
impossível reconhecê-lo ao lhe ser apresentado. Aparentemente não tinha curiosidade
alguma com relação a qualquer coisa do universo, com a possível exceção ao tempo e suas
mudanças. Demonstrava estar plenamente satisfeito com a quantidade e alcance dos
conhecimentos que já possuía, resistindo emocionalmente a qualquer tentativa de aumentá-lo
ou reagrupá-los. No que lhe dizia respeito, as informações que já possuia eram completas.
Muito embora se compreendesse, que não seria possível medir o nível de inteligência de
Bert por meio de quaquer teste psicológico, foram-lhe aplicados os testes de Binet, com a
adaptação de Irwin-Hayes, para serem aplicados aos cegos, tendo cooperado
admiravelmente. A sua idade mental, baseadas nos resultados dos testes, foi fixada em onze
anos e dois meses de idade. Superou todos os testes de padrões de dificuldades para crianças
cegas de dez anos de idade; um dos testes (demonstrar a mão direita do examinador)
correspondente à dificuldade de uma criança de onze anos de idade; dois dos testes
(memória de hábito, analogias, e raciocínio aritmético) correspondente ao nível de quatorze
anos. Os resultados destes testes são fornecidos com a advertência de que é possível que se
dê uma excessiva importância aos mesmos. É inconcebível como um teste baseado numa
norma obtida de um grupo de indivíduos organizados diversamente, possa representar algo a
não ser uma colocação ao acaso, em qualquer nível intelectual equacionado. Bert obviamente
é mais inteligente ou mais estúpido do que este teste possa avaliar. Ele representa uma
organização de padrões tão diferentes de discernimento, maturidade e motivação, que não
pode ser comparado com uma criança cega média, assim como não se podem medir os gases
num recipiente aberto. O seu nível intelectual está na dependência de seu meio ambiente, e
uma vez que este foi muito diverso do meio ambiente de um indivíduo normal, não é válida
qualquer comparação.
Socialmente, Bert, era um enigma para seus instrutores e objeto de desdém para os colegas
de instituição. Embora, fosse esta a primeira vez, em sua vida, que Bert se ausentava de
casa, não demonstrava qualquer saudade do lar ou preocupação, nem tão pouco curiosidade
a respeito da instituição e de seus ocupantes.
Trabalhou durante cinco semanas várias horas por dia, com um professor, antes de aprender
seu nome. Durante o período de oito semanas, dirigiu a palavra ao mesmo professor,
voluntária e espontaneamente, apenas doze vezes. Ao final de seis semanas não conhecia os
nomes de seus três companheiros de quarto, não demonstrando qualquer interesse pelo que
faziam. Após alguns dias, respondia perceptivelmente aos que lhe dirigiam a palavra, de
forma sumária e casualmente. Não se preocupava com os seus modos, nem com a sua
conduta; no entanto, era muito sensível às atitudes dos outros para consigo. Apesar de não
demonstrar vexame ou constrangimento ao espirrar, arrotar, ou flatular na presença de
terceiros, a menor insinuação de crítica desorganizava temporariamente todos os seus
processos mentais e motores. Este fato ocorreu quando o superintendente, na esperança de
incitar Bert a atacar alguns de seus problemas, censurou-o pela sua postura distorcida,
automatismos mecânicos, hábitos infantis de se expressar, e pelo seu ruído repetido. O
transtorno emocional, resultante desta revelação comprometedora de seus defeitos, perdurou
por três dias. Seu ruído duplicou-se, sua coordenação muscular tornou-se menos organizada
e sua linguagem quase incoerente. Entretanto, com uma personalidade verdadeiramente
introvertida, ignorava as relações sociais externas a não ser que lhe fossem especificamente
apontadas. Esta introspecção em sua situação era provisória, envolvendo uma circunstância
especial, e não podia ser utilizada em outras situações normais e recorrentes. Se, quando
dentro de casa, era lembrado para remover o boné que usava sempre, obedecia, até sair
novamente. Retornando ao edifício, mantinha o boné na posição habitual, e quando
lembrado do ato anterior de removê-lo, demonstrava ficar frustrado, como se não houvesse
qualquer relação entre os dois incidentes. Assim ocorria com todo o seu comportamento
social, até que os seus instrutores, com algumas exceções, perderam a esperança de
melhoria. Para ele não existia estrutura social mais complexa do que aquela em que vivera
durante vinte e quatro anos. Tinha-se ajustado confortavel e adequadamente àquela situação
social desde a infância; não surgira qualquer ocasião, ou necessidade, para um maior
desenvolvimento.
Muito embora se pensasse a princípio que a arcada dental aguçada de Bert, contribuisse
para dificultar-lhe a fala, verificou-se que a pronúncia normal era possível apesar desta
deformação.
Ele cooperou esplêndidamente no trabalho de correção de sua pronúncia, e logo ficou
demonstrado que podia articular todos os sons das palavras. Foram-lhe administrados
exercícios para pronunciar palavras e combinações de palavras, nas quais tinha dificuldade.
Aparentava encontrar poucos obstáculos nos exercícios. Entretanto, o único resultado de todo
esse trabalho foi uma fraca tentativa de Bert no sentido de melhorar o seu linguajar infantil
em conversação voluntária durante aqueles exercícios. Assim que se retirava da sala de
correção da linguagem, voltava imediatamente à sua forma antiga, desleixada e
desarticulada de se expressar. Poder-se-ia considerar como uma ligeira vitória testemunhar-se a aplicação do treinamento até perante uma situação limitada como a da classe.
A dificuldade única que Bert encontrava em relação à sua linguagem era a de não
manifestar desejo de falar mais apropriadamente. Seus pais o compreenderam perfeitamente
durante vinte e quatro anos. Seu modo de falar não era condenável de per si; não lhe causava
embaraço ou desagrado emocional porque ele não possuia o discernimento social para
perceber a sua impropriedade num meio social maior. Entretanto, se Bert vier a adquirir tal
atitude, mudará imediatamente seus hábitos de falar. Portanto, o seu modo de falar
defeituoso, assim como acontece a tantos, não é apenas uma dificuldade no falar, mas muito
mais, um problema de reeducação e de reorientação da personalidade.
Muitos dos traços de caráter de Bert eram, no todo assaz admiráveis. Implicitamente,
apoiava com solidez todos os valôres sociais de sua comunidade, e todos os dogmas de sua
classe, e, nas situações abstratas, possuia uma discriminação verdadeiramente apurada de
valôres. Entretanto, uma característica, a da apreciação humorística, parecia não possuir por
completo. Reagia a toda e qualquer situação indiferente ou seriamente. Não lhe era possível
perceber as incongruências tanto nas situações abstratas como nas concretas, com uma
possível exceção, e esta de cunho interessante. Toda vez que seu professor era colocado
numa posição inferior, a ocasião provocava-lhe uma risada excepcional.
O seguinte episódio servirá para indicar a falta de compreensão social. Era costume diário
de Bert dirigir-se à sala de música, à noite após o jantar, para se distrair ao piano.
Numa dessas ocasiões, entraram no edifício dois empregados agrícolas que cuidavam da
granja da instituição. Interromperam rudemente Bert, e apresentando-se como assaltantes,
exigiram-lhe um pagamento, em dinheiro, enquanto o ameaçavam com um grande canivete.
Bert acreditou na situação como sendo a de um genuíno assalto à mão armada, mas como
não tivesse dinheiro, não sentiu medo nem ira, somente um leve ressentimento pela
interrupção. Foi completamente inútil tentar explicar-lhe que aqueles homens não eram
verdadeiros assaltantes, mas apenas dois jovens empregados que faziam uma brincadeira.
Não podia compreender esta explicação, continuando a acreditar que o incidente tinha sido
uma tentativa genuína de roubo. Desde que não possuía dinheiro, não ficou de forma alguma
dissuadido de retornar cada noite ao local do assalto, apesar de argumentar que a
municipalidade deveria enviar um guarda à instituição para prender os homens antes que
encontrassem alguém que tivesse algum dinheiro.
Os poucos hábitos pessoais que Bert possuía, como barbear-se, lavar-se, atendimento
pontual e infalível às aulas, eram cumpridos escrupulosamente. Aparentava ter um senso
rígido de responsabilidade pessoal em situações onde percebia seus fundamentos. Portanto,
sentia profundamente o dever de freqüentar as aulas, e mesmo que tivesse sido dispensado
antes do término da hora de aula retirava-se com relutância, apesar do desagrado das
tarefas da classe. Conseguia manter-se ocupado à custa de muito esforço e fadiga. Isto
acontecia nas tarefas que não aprovava e que lhe desagradavam bastante. Ele suportava o
trabalho com perseverança mesmo em face de grande fadiga. Apesar de sofrer de debilidade
física por desnutrição, caminhava após cada refeição, e somente uma forte pancada d'água
impedia-o deste exercício.
O retardamento de Bert é um tipo freqüentemente encontrado entre aqueles que perdem a
visão muito cedo. O seu caso é fora do comum em grau e não em qualidade. O estudo de seu
caso não apresenta nada que não se possa encontrar de forma incipiente no desenvolvimento
de qualquer criança cega. A única diferença repousa no fato de que, naqueles considerados
mais normais, outros fatores ambientais orientaram o curso do crescimento.
Os hospitais para os dementes alojam grande número de indivíduos que tiveram ambientes
até mais favoráveis do que o de Bert. Classificá-lo como débil mental não esclarece as
coisas. Os fatos ainda precisam ser explicados e os fatôres causais descritos. É evidente, que
Bert representa, em quase todas as formas de atividade, uma larga diferença para um adulto
de vinte e quatro anos de idade, e baseados nos nossos padrões intelectuais e sociais, a maior
parte de sua atividade pode ser classificada como sendo defeituosa. Mas a ciência atual,
atestaria que a organização e energia da atividade de Bert estariam completos, em relação
com as condições da situação em que o crescimento se verificou. Se isto for verdadeiro, não
há razão para não justificar a sua deficiência. Todos estão bem familiarizados com tais
organizações "defeituosas" sob formas menos agudas e completas. Nesta mesma base,
poder-se-ia explicar, por exemplo, porque os estrangeiros se comportam de forma esquisita e
aparentam ser tão ignorantes para os habitantes do país onde ingressam. O estrangeiro,
quando em casa era um individuo típico normal, do tipo médio. A estrutura social em que se
criou, determinava a maior parte do seu comportamento. Forneceu-lhe o estímulo para
crescimento numa certa direção e para falar uma determinada língua. Também lhe
proporcionou as motivações para crescer ainda mais de acordo com a comunidade que
habitava. É, somente quando muda para outra comunidade, que ele aparenta não possuir o
discernimento e não ser suscetível às novas formas de estimulação. O cadinho pode queimar
valiosas motivações antigas, com mais facilidade do que fornecer novas. O estrangeiro pode
ser considerado funcionalmente como retardado, como também o brilhante professor
universitário, que passou a maior parte de sua vida dentro da estrutura social especializada
do ambiente da universidade. Ele está ligeiramente mais ajustada ao mundo rotineiro de seu
país do que o estrangeiro. Se a criança cega, que ingressa numa instituição, está
parentemente distorcida pelo seu treinamento limitado e atrapalhado obtido em casa, assim
ela será após o remodelamento, pela instituição, e ao ser colocada no mundo dos dotados de
visão.
Retornando ao caso em questão, quais foram as causas específicas, que produziram um
desenvolvimento aparentemente ilógico da atividade e realização manual em Bert? Por que
ele conseguia tocar piano, escrever a lápis, ler Braille, e, acima de tudo, aprender a barbear-se em uma lição, e, concomitantemente, ser mal sucedido nos mais rudimentares trabalhos
como de colocar pés nas cadeiras, tecer cestas e na oficina?
Um grande número de professores de cegos resolve este importante problema de maneira
simples e rápida caracterizando-o como uma perversidade obstinada. O aluno não deseja
adquirir a habilidade, e, portanto, não o faz a não ser obrigado. Raramente ocorre ao
professor que pode haver um motivo atrás da inabilidade em aprender alguma forma de
atividade com facilidade.
Na negligência geral com a criança, os pais de Bert não lhe proporcionaram material
suficiente com o qual pudesse aprender a usar as mãos. Em resumo, toda a sua musculatura,
com exceção dos músculos das pernas, nunca recebeu suficiente estimulação, que os
colocasse num estado além daquele de uma atividade ordinária. A sua infância não foi
preenchida com aquela multiplicidade de atividade manual necessária à individualização das
coordenações mais delicadas, de forma que os dedos e ambas as mãos cooperassem em
qualquer tarefa a ser executada. Tal condição não está apenas restrita aos cegos pois é
comum encontrar-se alguma falta de diferenciação muscular nos adultos com visão. Nem tão
pouco é uma característica dos retardados de per si, pois, tal condição pode ser encontrada,
num grau surpreendente, entre os professores universitários, sendo até uma das distinções da
classe dos Mandarins da China. Exatamente a condição oposta encontra-se no cirurgião
praticante, pois, não obstante a extensão de seu conhecimento médico e da habilidade de
diagnosticar, o sucesso do cirurgião depende do alto grau de desenvolvimento da ação
independente de seus dedos. Deve ser, não somente ambidestro, como também possuir uma
grande facilidade de individualização dos movimentos dos dedos.
Desde que Bert podia tocar piano, escrever a lápis, e aprender a barbear-se rapidamente,
dava a impressão de possuir habilidades especiais que formavam uma espécie de função
unitária. Daí a concluir-se, que a maneira pela qual um sistema geral coordenado de
atividade muscular pode ser alcançado através de uma síntese de treinamentos especiais até
que a complexidade de atos especiais venha abranger todas as fases de atividade. Entretanto,
é impossível explicar as conquistas motoras de Bert, ou as de qualquer outro, através de tal
princípio mecânico.
Como ocorre, nem o tocar piano de forma medíocre, nem o escrever a lápis, nem o barbear-se com um aparelho de segurança, é uma tarefa muito complexa, necessitando um grau
muito elevado de diferenciação motora. A manipulação dos dedos num teclado de piano
representa apenas hábitos de colocação e de posição; nem mesmo se requer muito
movimento dos dedos, e, a coordenação digital é mínima.
A observação de qualquer criança pianista demonstra que uma atividade muscular
complicada, fora a de tocar piano, não é alcançada com mais facilidade, mesmo na média
das crianças da mesma idade. Da mesma forma, escrever a lápis, quando se utiliza a visão,
implica apenas no movimento geral do braço e da mão mantendo-se o lápis preso
constantemente em uma posição. É de se notar que escrever a lápis é uma das atividades que
mais perdura em casos de degeneração muscular, de reumatismo inflamatório, e moléstias
semelhantes. Barbear-se com um aparelho de segurança resulta de movimentos manuais
mais grosseiros. Além disso, barbear-se para o cego novato, torna-se relativamente fácil,
pela ausência de confusão da visão ao espelho. A aquisição da atividade muscular não
envolve a perda dos movimentos musculares e de uma simplificação geral, como a
psicologia afirmava anteriormente. O processo é exatamente o contrário. A aquisição de
qualquer hábito motor é um aumento na organização muscular e uma adição da complicação
muscular.
As experiências recentes da psicologia e da fisiologia demonstram, conclusivamente, que a
habilidade muscular e outras atividades conhecidas desenvolvem-se, através de um ciclo
definido, de efeitos simples e generalizados aos mais refinados e complexos. Este fato tem
uma relação importante no caso de Bert. Exemplifica a deficiência motora geral encontrada
nas crianças e adultos cegos. É verdade que a maioria das crianças cegas adquire técnicas
tais, como a leitura do Braille, tocar piano, confeccionar cestas, e outras semelhantes, mas
aprendem com relativamente maior dificuldade se não tiverem participado, anteriormente
num largo campo de experiência e de atividade. Tal desenvolvimento muscular e manual
retardado tem as suas causas nas várias deficiências verificadas na vida inicial da criança.
Os pais, geralmente, pensam ser impossível à criança cega manipular materiais como uma
criança de visão conseqüentemente, privam-na da oportunidade. Desta forma falta a
estimulação necessária, e, logo atrás desta ausência, segue a falta de desejo para tal
atividade. Bert não tinha desejo algum de manipular material de qualquer espécie, de forma
minuciosa e intrincada. Seu desenvolvimento muscular total era caracterizado por
movimentos grosseiros.
Verificou-se, pelo estudo da criança cega pré-escolar, que os pais falham, não somente em
prover suficientemente a exploração tátil e a manipulação dos objetos, como também, na
realidade, cerceiam tal exploração, a um grau surpreendente. A mobília não deve ser
explorada pelo receio de batidas de cabeça ou marcas de dedos. Baldes para carvão, passeios
de pedregulho, fogões, motores de automóveis, aparelhos elétricos, rádios, vitrolas, plantas
em vasos, objetos de cutelaria e armas de fogo, são coisas que a família transforma em tabú,
por uma razão ou outra. Em tais casos deve ser lembrado, que a criança possui seu próprio
corpo, e, se tudo o mais lhe for negado, pode tornar-se perfeitamente ajustada à estimulação
e à motivação de si própria como ambiente. Mesmo dentro das melhores circunstâncias,
incluindo-se os pais mais inteligentes como os melhores meios, dar-se-á a falta inevitável de
estimulação objetiva. De qualquer forma, a maioria das crianças, que atualmente ingressam
nas instituições para educação, são deficientes em atividade muscular. É tarefa dos
departamentos escolares primários compensar esta deficiência o mais rapidamente possível.
Infelizmente, o Departamento primário moderno é falho neste ponto.
Para que se consiga o desenvolvimento motor uniforme, a criança, cega ou não, deve
experimentar uma atividade muscular diversificada. A atividade simples e grosseira a
princípio, proporcionará mais estimulação, e à medida que a criança amadurece, o desejo e a
oportunidade para uma atividade expansiva devem-lhe ser proporcionadas. A falta de tais
meios de desenvolvimento era a verdadeira deficiência de que Bert sofria, pois esta
possibilidade de desenvolvimento tinha estado presente num dado momento, muito embora
tivesse ou não sido irreparavelmente destruída.
O comportamento social enigmático de Bert justifica-se pelos mesmos princípios que
explicam seu atraso muscular e intelectual. Sob a proteção de seu lar não estava exposto às
contramarchas sociais, que formam um indivíduo social normal. Bert não tinha necessidade
de amadurecer, no sentido de ajustar-se aos membros de sua familia. Eles ajustavam-se
rapidamente à sua egocentricidade crescente, e não havia ocasião para o desenvolvimento de
motivações mais complexas. Conseqüentemente, ele possuía nada mais do que uma
introspecção social mais infantil e rudimentar.
As relações sociais mais simples no lar de uma criança normal tornam-se reais e vitais
através da participação; por conseguinte, as situações mais comuns no ambiente social
adulto eram completamente sem sentido e estranhas para Bert. As relações sociais mais
ordinárias eram tão irreais e estranhas a ele que faltava-lhe o desejo de participar delas. Mas
o fato de ser emotivamente sensível à crítica adversa indica que um potencial para expansão
ainda existia. Indubitavelmente, tivesse ele sido exposto por mais tempo à estimulaçao social
da instituição, padrões de motivação menos rudimentares teriam se desenvolvido. Porém o
período de oito semanas foi apenas suficiente para criar uma perturbação emocional geral
que se manifestou em sua sensibilidade aumentada. Seu professor aguardou esperançoso que
surgisse algum comportamento compensatório, entretanto, as relações sociais ainda eram
muito irreais para que se produzisse ao menos uma primeira indicação da adaptação. O
único sinal ppromissor de reorganização apareceu sob a forma de prazer quando o professor
assumiu o papel de caráter inferior.
Toda criança cega repete até certo ponto a história do comportamerto social de Bert, pois é
inevitável que ela não esteja sujeita às mesmas relações sociais de uma criança que vê. Não
deixa de ser uma racionalização grosseira e uma deturpação manter a possibilidade de um
desenvolvimento social normal. Os pais, irmãos e irmãs, amigos e estranhos não se
comportam assim e não devem fazê-lo em relação a uma criança cega como a uma de visão.
Entretanto, a extensão em que esta diferença de atitude se verifica, de todo modo é
determinada, em grande parte, pelo grupo social imediato em que a criança é criada. Todo
desvio do comportamento social normal cultivado pelos demais, produzirá inevitavelmente
alguma forma de divergência na introspecção e na motivação da criança. Tais desvios não
são singelos ou discretos, mas cumulativos, quanto aos seus efeitos sobre o desenvolvimento
social da criança. E, como no caso de Bert, a experiência social da criança determina a
personalidade do adulto. A sua atitude para com os demais, e, o que é mais importante, a sua
atitude para consigo próprio, será determinada por aquilo que seu ambiente social tenha lhe
proporcionado.
-
Notas
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2.1 - Afim de fornecer ao adulto cego uma educação vocacional que possa ser encontrada fora
de uma oficina organizada, muitos estados criaram escolas de verão. Geralmente são
mantidas em instituições para cegos, ocupadas no inverno pelas crianças. Aí os cursos
vocacionais habituais podem constar de: tecelagem, obras de vime, afinação de piano,
confecções de vassouras, e em alguns casos, ciências domésticas.
-
2.2 - Muitos estados empregam um ou mais professores cujas funções é visitar aquêles
indivíduos cegos que não podem ir a instituição estadual, afim de educar-se. No lar, é
costume o professor visitante instruir o aluno em leitura e escrita Braille e em qualquer ofício
manual que ele deseja aprender. É outra forma de educação do adulto cego.
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2.3 - Os equipamentos-padrões usados para ensinar-se as crianças cegas incluem mapas em
relevo que mostram rios, montanhas e vales de forma esquematizadas, globos que
representam a topografia em relevo são usadas algumas vezes. Mapas de madeira são
cortados de tábuas de 3/4 de polegada de espessura. As secções representam as divisões
políticas. Montanhas, cidades principais e capitais, são representadas pela cabeça de pregos
e os rios são traçados por estrias.
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2.4 - Em 1929 existiam 33 revistas para cegos publicadas em tipo punctiforme nos EE.UU.
Capítulo III - Verbalismo: palavras versus realidade
Nem a criança que enxerga, nem a cega podem compreender, plenamente, a diferença
existente entre seus respectivos mundos de experiência e de realidade. Aquelas que,
enxergam, mal percebem, que a maior parte de suas vidas consiste em experiências visuais,
empregando forma visual, tamanho, cor, luminosidade, movimento e distância espacial. Aos
cegos são ensinados esses conceitos e a maneira como eles devem ser usados e com o
domínio verbal destes uma paridade viável parece ter sido estabelecida entre o vidente e o
cego.
A peculiar situação social e educacional na qual os cegos estão situados, cria a necessidade
de tratar com um vasto mundo de irrealidade de maneira realista. Esta necessidade produziu
a tão discutida "incompreensão verbal" do cego. "Incompreensão Verbal", ou verbalismo,
não é um fenômeno social encontrado apenas entre os cegos. Existe em qualquer situação
que requeira o uso de conceitos abstratos, não verificados pela experiência concreta. Palavras
são símbolos convencionados, para objetos, qualidades, ações, sentimentos - sinais
taquigráficos usados para conhecimentos pessoais. Os seus significados para comunicação,
dependem da suposição de que essencialmente representam a mesma experiência para todos
que os usam. Mas, freqüentemente, aparecem situações sociais nas quais as palavras
possuem geralmente seu sentido próprio, com pouca ou nenhuma consideração para a
realidade prática que elas sugerem.
Uma forma moderada de verbalismo pode ser encontrada em toda a comunidade
universitária, entre jovens que constituem a intelectualidade estudantil. Tais grupos são
compostos, na maioria, por pessoas que jamais estiveram em contato com a realidade social,
fora de seus lares super-protegidos e ambientes escolares. No entanto conversam sobre
assuntos tais como trabalho, casamento, pobreza, regras literárias, filosofia de vida, ou na
verdade, sobre qualquer coisa que não tenham tido experiência pessol. A conversa de um
cego congênito sobre a teoria da fusão das cores não é nem um pouco mais verbal do que a
opinião sobre questões trabalhistas, de um estudante, que jamais trabalhou um dia sequer
em sua vida.
O conteúdo efetivo, em ambos os casos é extraído de experiências alheias. O estudante
universitário adolescente, não sabe mais sobre os aspectos reais do amor e do casamento do
que o cego congênito sobre o matiz, gradação e tonalidade das cores. Há, no entanto,
diferença vital entre o estudante verbal e o cego verbal. Ao término do seu curso, aquele, se
não entrar na universidade, será impelido para um mundo que exigirá dele a verificação da
realidade e subsequente reajustamento. O cego não terá tal válvula de escape. Será forçado a
continuar num mundo irreal. Permanecerá debaixo da necessidade de proceder com o irreal,
como se este na verdade existisse para ele.
Verbalismo no cego não é, como alguns autores sustentam, uma espécie de compensação
social, um esforço inconsciente, para manter uma igualdade. Se uma pessoa cega tem
qualquer curiosidade, é necessário socializar suas descobertas relativas ao seu mundo de
irrealidade, de certa forma, afim de que, algo mais possa ser acrescentado através de
comunicação com os dotados de visão. Palavras, e tão somente palavras são o meio através
do qual a socialização pode ter lugar. Esta situação é encontrada entre os cegos de nascença
e, de alguma maneira, naqueles que tenham imagem visual. A imaginação visual de uma
década atrás não é adequada ao mundo visual de hoje. Por exemplo: até a imagem visual,
clara, de modelos de vestidos de dez anos atrás será de pouco valor na concepção de como o
mundo moderno se veste.
A crença psicológica dominante de que a atividade de cada sentido é separada da atividade
de qualquer outro sentido, aumentou enormemente os problemas educacionais do cego. Os
mestres, através do conceito psicológico errôneo, são levados a olhar o aluno cego como
equivalente ao que enxerga, com exceção de que não pode ver. Eles concebem a criança
como estruturalmente incompleta, como um motor de automóvel, com um cilindro a menos.
Portanto, a educação não deve ser somente encarada como tal, mas, ser também uma
terapêutica que vai suprir a força perdida e, que fará o carro soar como se estivesse funcionando
satisfatoriamente com os seus seis cilindros. Ocorre a alguns, que a criança cega é mental e
fisicamente um todo global, organizado para funcionar perfeitamente, de acordo com o nível
de seu equipamento sensorial, com a respectiva restrição da atividade objetiva. Ela tem um
motor de cinco cilindros.
Os professores cegos, de crianças cegas, cometem o mesmo erro, pois insistem, com igual
rigor, para que seus alunos adquiram a mesma super estrutura adquirida por eles próprios.
Mais adiante, no capítulo que trata da vida estética será demonstrado até que ponto essa
super estrutura visual rouba o mundo sensorial de riqueza do belo e da apreciação, deixando
em seu lugar cascas vazias sem significados visuais. Há também os perigos para a
personalidade e ajustamento social. A descrença de um mundo cheio de significado, pela
adição de uma super estrutura visual na qual o cego precisa habitar, mas não viver, produz
uma atitude prejudicial a si mesmo. Se esta estrutura visual deficiente é tão superior ao
mundo da experiência em pobreza de experiências, então, deverá o cego sentir que vive. A
situação educacional é em suma, esta. Nós ainda não tentamos educar o cego, pois
dispendemos todos os nossos esforços educando os dotados de visão que não podem ver.
Dando-lhes caridosamente, o que não podem provavelmente usar, os privados da maioria
daquilo que possuem.
Num ponto de vista mais amplo, a intenção fundamental do verbalismo é a de encontrar
aprovação social. É uma tentativa de representar aos outros, as coisas de maneira mais
realista possível, dentro da situação social. Social e educacionalmente espera-se que os cegos
apreciem as coisas, não como eles mesmos as tenham experimentado, mas, como lhes
são ensinadas através da experiência alheia. Por exemplo: uma ovelha que é um animal cheio de
dobras, peludo, ossudo e bamboleante, possuidor de odor nada agradável, cujas patas
pontudas estão geralmente sujas e cuja boca e focinho são húmidos e babosos, não lhes é
descrito como tal, mas sim como um carneirinho inocente, travesso e branquinho como neve.
O parágrafo seguinte escrito por Hellen Keller ilustra a facilidade com que ela consegue
expressar e socializar aquilo que ela própria não pode experimentar:
"Seguimos um tributário do Tamar, que vislumbramos através de uma névoa esverdeada.
As árvores estavam florescendo. Os salgueiros já estavam cobertos de folhas, e eu podia
sentir o cheiro da grama virgem e do junco - uma maré verde avançando pela corrente cinza
prateada. Estava garoando, e nuvens macias rolavam umas sobre as outras no céu que, diz a
professora, tinha o dom de intensificar o verde até que a terra parecesse uma grande
esmeralda. Logo transpusemos a corrente e corremos, a toda velocidade, entre cercas densas de
prímulas e violetas. Tive que descer do carro uma meia dúzia de vezes para sentir as lagoas
azuis de violetas, e cascatas de prímulas douradas". ( 1)
O parágrafo transmite ao leitor comum um significado convencional. As palavras e
sentenças foram inteligentemente dispostas, a ponto do leitor médio reconhecer os
significados e situações comuns a ele e seus companheiros, mas, das quais a autora está
excluída. Não se deve supor, contudo, que a passagem, seja sem sentido para a autora. As
palavras visuais sugerem mais emoções e atitudes do que a experiência objetiva. Para a
escritora, o parágrafo representa uma disposição de idéias inteiramente diferentes da
realidade objetiva expressa nas sentenças, que representam, da maneira mais real possível, o
que a experiência seria para os que enxergam e ouvem. A trapaça implícita nesta infeliz
situação não se reflete sobre a escritora pessoalmente, mas antes, sobre a professora e os
objetivos do sistema educacional, na qual ela foi confinada durante toda sua vida. A
expressão literária foi a meta da sua educação formal. Uma bela escrita, independente do seu
conteúdo significativo, foi a finalidade para a qual tanto ela como a professora se
empenharam. Sua experiência própria e seu mundo foram negligenciados sempre que
possível, ou quando isto não podia ser feito, eram metamorfoseados em respeitabilidade
auditiva e visual. Sua própria vida de experiências foi rapidamente colocada em segundo
plano, e assim era aceita pela sua vítima.
Afim de compreender-se esta situação, na qual uma personalidade capitulou,
completamente, a um sistema de educação ou a valores de outra pessoa, é necessário
aprender-se todo o curso do processo. Neste caso o processo era uma vida inteira, e a
capitulação ocorreu na fase infantil, quando as afeições pessoais e confidências da criança
Helen foram entregues, completamente, à sua professora. Desde aquele momento, o mundo
de Helen estreitou-se, expandindo-se no da professora. Os ideais e gostos da professora
tornaram-se também os seus, e qualquer atividade emocional vivida pela professora era
experimentada por Helen.
A educacão do cego-surdo fornece uma linda ilustração do valor da realidade experimental
como mira educacional, em contraste com um treinamento, altamente especifico, na arte de
disfarçar a deficiência sensorial.
Tome-se por exemplo, a estória de Katrhyne Frick em contraste com os escritos de Helen
Keller:
-
"A relva em frente a Wissinoming Hall era alta e lá havia margaridas e trevos em flor.
Minha professora me deixou andar e colher flores. Descobri que não haviam pedras ou
cercas, sobre as quais pudesse cair, e portanto, decidi que seria seguro para mim correr
sozinha. Adorava correr, e não gostava de ser guiada. Por isso tentei afastar-me de minha
professora, mas ela cuidadosamente não me deixava ir longe. Então, arquitetei um plano
para enganá-la. Apontei para longe, e empurrei-a um pouco, o que significava que lá havia
flores que eu desejava, então acariciei o chão, no qual estava, para dizer-lhe que ficaria ali,
enquanto ela colhesse as flores para mim. Pensei que compreenderia que seria melhor uma
de nós ir, em vez das duas, pois, assim, menos relva seria pisada. Um dos meus tios era
fazendeiro, costumava visitá-lo e aprendera que a grama alta não devia ser pisada, pois
servia de feno. Procurei ser muito delicada, pois desde criança sabia que as boas maneiras eram uma força que pode ser usada para enganar.
Podia dizer, pelo raio de luz refletida no vestido que minha professora usava, que ela tinha
caído na minha armadilha e se afastara para pegar as flores, e, quando não mais podia vê-la,
tive a certeza que ela estava longe. Sabia que era uma mulherona, e, desde que usava um
cinto pontudo, como o de minha avó, concluí que não era nem jovem nem muito atraente.
Minha mãe era delgada e freqüentemente corria atrás de mim, quando eu escapava pelo portão
do fundo e fugia, mas, aqui em frente desta casa enorme, aonde estavam muitos cavalheiros
e damas, pensei que minha professora não ousasse correr como uma menina. Assim, disparei
na direção oposta. Não tinha ido longe, quando a senti agarrar o meu avental e tentar segurar-me. Sendo um dia de calor, pensei que pudesse vencê-la na corrida, portanto, dei um arranco
e corri mais velozmente. Oh, que momento feliz eu tive! Pensei que a encontraria ofegante,
com o suor escorrendo-lhe pela face e senti que ela merecia isto pois não me deixava correr
sozinha. (Eu não sabia, então, que ela ensinava cultura fisica, durante as tardes, e que
gostava de correr, tanto quanto eu). Não demorou para que me pegasse e segurasse
firmemente. Pôs a minha mão em seu queixo e balançou a cabeça vigorosamente, para dizer-me, de maneira mais enfática, que eu não deveria correr. Eu já sabia disto, mas tentei dar a
impressão de que não fizera nada errado.
Então ela guiou-me até o tanque, que está ao pé da colina, em frente a Wissinoming Hall. Mergulhou minha mão na água e deu-me uma vara, para manter lá dentro enquanto andava
ao redor do tanque para dar-me uma idéia de seu tamanho. Por gestos, mostrou-me como eu
teria caído lá e como a água teria coberto minha cabeça se eu tivesse ido mais adiante. Então, ali, recebi o aviso, e nunca mais tentei fugir quando estava perto do
tanque". ( 2)
Kathryne Frick surge como uma pessoa verdadeiramente educada, que conhece a si mesma
e o seu mundo de uma maneira profunda. Trata das próprias experiências completa e
realisticamente. Não usa um simulacro mecanizado estilístico para dar uma falsa aparência de
uma vida inteira de experiência, no nível dos que ouvem e dos que vêem, mas, mesmo sem
isto, dá a impressão de ser uma pessoa muito vivida e experiente. Infelizmente, esta proeza
foi negada a Helen Keller, através de seu treinamento mal planejado. Helen, nas suas obras,
aparece como uma pessoa muito menos vivida e experiente. Sua pretensão de gozar e apreciar
aquilo que não experimenta, dá a impressão de estarmos diante de uma alma cortada de suas
amarras, vagando entre a realidade e a miragem, incapaz de mover-se em qualquer uma das
direções, mas que com as costas voltadas à realidade, gesticula para o vazio que jaz à frente
e é para sempre inatingível.
Helen Keller foi criada dentro da tradição literária que Howe introduziu na educação do
cego. Este método de educação, que, em essência, era uma imitação das conquistas
literárias e informativas, dos dotados de visão, produziu uma excelente condição para o
verbalismo. O objetivo educacional estabelece-se não tanto no sentido de adaptação social e
ajustamento econômico, quanto em direção a uma cultura e requinte literários. Em resumo,
era uma adaptação para o cego da tradição européia clássica. Sob este sistema, o verbalismo
podia florir por si mesmo, pois as palavras eram tomadas em seu valor nominal, desde que
fossem empregadas na sua devida relação social e educacional. Se o estudante pudesse citar
Shakespeare e traduzir o latim, pouca importância era dada ao que realmente aquilo
significaria para ele. Realizar os mesmos empreendimentos que os estudantes dotados de visão
era o critério de valor. A quinta essência desta metodologia floresceu nos esforços literários
de Helen Keller. Sua professora, recém-saída da escola, estava no auge da irrealidade
literária. Refletidas nas obras de Helen Keller, encontram-se tanto suas virtudes como seus
vícios subjetivos. É um sistema que, inevitavelmente sacrifica a realidade no altar da
hipocrisia literária.
É um direito inato cedido a uma porção de verbosidade.
Apesar da educação do cego ter-se afastado das tendências estritamente literárias, no
sentido de alcançar maior objetividade, as condições ainda dirigem o aprendizado em
direção à irrealidade e longe da apreciação de princípios de auto-experiência. Na literatura,
história e composições, as palavras ainda são soberanas. A seguinte composição, em inglês,
do terceiro ano, escrita por uma inteligente menina, cega congênita, de nove anos, mostra até
que ponto é estimulada a irrealidade visual, e igualmente, até onde a realidade experimental
é desconhecida.
-
"O palhaço é igual a todas as pessoas, exceto que é mais engraçado por causa da
maquiagem. Se tiver a sorte de ir ao circo você o verá lá. Tem um franzido em volta do
colarinho do seu terno. Algumas vezes, uma das suas pernas, orelhas ou braços, é de uma
cor, enquanto os outros são diferentes; por exemplo: uma perna verde, a outra vermelha. Tem
um gorro pontudo e seu rosto é de várias cores. Algumas vezes é grande, algumas vezes é
pequeno. Agrada tanto às crianças como aos adultos, com suas apresentações no circo. Às
vezes, permanece com suas pernas escarranchadas."
Existe o grande perigo de que, o educador do cego esteja enganando-se ao pensar que a
simples introdução do método objetivo resolverá por si mesmo, o problema de irrealidade.
Para que isto de fato aconteça, deve introduzir-se no método educacional, toda a objetividade
possível. Mas, imediatamente, surgem certas questões ligadas a todas as formas de
pedagogia objetiva. Qual a finalidade do método objetivo? É o de ilustrar alguma analogia
visual, ou de aumentar o campo de experiência sensorial da criança cega?
A primeira ocorre
na maioria dos métodos objetivos, que atualmente se multiplicam rapidamente, e a segunda
é geralmente considerada irrelevante ao processo de educação. Por exemplo: a professora
sente que se mostrar à criança um modelo, em porcelana, de uma rã, deu realidade ao seu
conceito de rã, seu tamanho, forma e posição. São omitidas todas as características táteis da
rã, tais como: temperatura, deslize e movimento, bem como o som. Sob o ponto de vista
tátil, a rã de porcelana dificilmente parecerá uma rã verdadeira. Poderá assemelhar-se a tal,
mas certamente não transmitirá a mesma sensação. Sua concretização é pouco mais
significativa do que o símbolo verbal.
O sofisma latente, no assim chamado método objetivo não está somente no método em si e
no material empregado, mas também nos preconceitos dos mestres. Inicialmente, a
objetividade é empregada no mundo da natureza, e toda a lição, provavelmente estará
sobrecarregada de alguma moral socializante, tal como: A chuva cai sobre nossos campos e
verdes gramados para fazer a relva crescer, afim de termos pão para as torradas do café da
manhã; a neve é um grande cobertor branco que cobre o chão, para evitar que as árvores das
matas tenham suas raízes congeladas e assim possam nos dar sombra, quando chega o
cálido verão. Esta teleologia universal, freqüentemente, vicia os resultados do método
objetivo. A finalidade é a de mostrar a relação da natureza com o uso específico do homem.
Concluir que a esponja, cujo esqueleto é mostrado em classe, viveu apenas com o fito de,
algum dia, ajudar no banho matinal, é tão equívoco como dizer-se que o bezerro saltitante
corre e pula, durante toda a vida, pelo puro prazer de algum dia transformar-se em bife. Tal
ensino é não somente cientificamente falso mas, tem influência negativa sobre a
personalidade. É justificado sob o pretexto de criar interesses, mas sem a devida
consideração pela espécie de interesse despertado.
Inicialmente, já foi demonstrado que o
mundo da criança cega centraliza-se demasiadamente, ao seu redor. Sendo este o caso, os
professores deveriam controlar todos os meios possíveis para desenvolver a objetividade.
Quando o estudo da natureza oferece esta oportunidade, seria pura estupidez atacá-lo, de um
ponto de vista egocêntrico.
Suponhamos que a professora do cego leve sua classe a visitar um navio de guerra, que foi
construído para proteger nossa pátria contra inimigos insaciáveis e ambiciosos. No dia
seguinte, quando trouxeram suas tarefas escritas, que tipo de relatório será melhor aceito por
ela? Será a descrição da visita e do navio tal qual a professora, eventualmente observou? Ou
será uma mistura confusa de extensos cais e infindáveis escadas de ferro, impregnadas de
odor de tinta fresca, e cheiros e barulhos do porto, fileiras de rebites de pontas arredondadas
surgindo do nada e dirigindo-se para o nada? O aluno cego não terá dúvidas quanto ao que é
requerido para ser aprovado. Ele ignorar, novamente, sua riqueza de experiências e descrever
o que pensa que a professora viu. O odor alcoólico do hálito do guia naval, será considerado irrelevante, comparado com o
azul turquesa da vasta extensão do porto. Apesar de interessar muito mais a criança ouvir o
grito de uma gaivota do que a professora descrever o encapelar do "Old Glory" na ponta do
mastro o fato permanece de que na reportagem, escrita o "Old Glory" encapelará e tremulará,
mas a gaivota não gritará.
Em seguida temos dois relatórios escritos resultantes de uma lição "objetiva" sobre a neve.
Foram mostrados às crianças modelos de cristais de neve e depois foram conduzidas até a
neve para sentí-la e observar suas características:
"A neve é como uma jóia - tão clara, branca e fria. Vem das nuvens em aglomerados.
Quando o sol brilha sobre a neve, parece diamante, você sabe."
"Vi algo cair, era muito pequeno. Um floco de neve do céu, uma borboleta inteiramente
branca." ( 3)
Os exemplos foram tomados de alunos dotados de visão parcial. Envergonhamo-nos de
perguntar, o que a criança cega foi capaz de aprender da lição sobre a neve. É necessário a
falsificação do grande poder objetivo da natureza para ensinar à criança, totalmente cega,
que a neve vem das nuvens e que ela própria é gelada? Até a criança cega mais retardada,
saberia, antes de entrar na escola, tudo que foi ensinado nesta lição, apesar de nunca ter visto
um modelo em papel dos cristais de neve. Para ela os mesmos modelos podem ser usados,
com o mesmo efeito, numa lição sobre peixe-estrela.
O autor ainda não viu ser ensinada uma lição objetiva na qual não seja evidente a tentativa,
por parte do professor, de ler, na experiência, alguma percepção sensorial, que não existe
para o aluno, e, ao mesmo tempo negligenciar e não dar crédito a qualquer realidade que aí
possa existir. Requer-se um espírito resoluto para manter um respeito total pelas próprias
experiências, quando, tal depreciação social lhes é sempre atribuída. Em breve perdem a
aparência de experiências válidas, mesmo para a criança e, então, o sistema educacional
criou um verbalizador, com a personalidade de um verbalizador, (que não ousa confiar na
validade do seu próprio eu empírico. É difícil, senão impossível, persuadir-se aos educadores
de cegos a ver a necessidade psicológica do aluno cego possuir, primeiro, valores do seu
próprio mundo para, depois, imitar as experiências de outras vidas, estranhas, para sempre.
Visto que é o cego que está lutando para entrar no mundo de irrealidade dos que enxergam,
e que nenhuma pessoa dotada de visão, salvo alguns filósofos curiosos e psicólogos pensam
em entrar no mundo de realidades do cego, é socialmente conveniente, que este seja forçado
a pagar o preço da admissão. Entretanto não há necessidade do nosso sistema educacional
cobrar uma taxa de admissão tão pesada, pois, quanto mais se paga menos se aprecia o
espetáculo.
As mesmas condições que produzem o verbalismo também criam outro problema na
educação do cego. Introduzir a criança cega no mundo de irrealidade, de maneira
excessivamente rápida, produz hábitos de raciocínio imprecisos e pouco críticos. O cego,
como o filósofo, pode perceber claramente diante de relações obscuras. A educação evoluiu
para auxiliar a criança que enxerga, que está crescendo e se expandindo, a orientar-se no seu
cada vez mais complexo mundo visual. A educação do cego, na maior parte, tem sido uma
tentativa de adaptar este mal ajustado vestuário à estrutura mental, inteiramente diferente, do
cego. Muito antes da criança cega ser orientada para seu próprio mundo como é para si (e
não para seu professor), e muito antes da complexidade crescente do seu mundo ter se
tornado relativamente significativo. Ela é compelida a adquirir um conhecimento prático
altamente artificial e inadequado, de um outro e estranho mundo. Esta tarefa, como é
atualmente apresentada dentro da educacão do cego, é inteiramente impossível. Se deve ser
eficiente na tarefa proposta pela sua educação, o aluno cego torna-se semelhante a Helen
Keller, e, perderá de uma vez e para sempre, as mais sutis distinções entre fantasia e
realidade. Deverá tornar-se um adepto de conceitos e julgamentos ilusórios, que excluem
verificações perceptivas. Deverá adquirir, para coisas e situações não existentes, o mesmo
grau de credulidade que posui, inerentemente, para as coisas que pode experimentar. Se sua
educação for bem sucedida, estará vivendo, pelo menos emocionalmente, num mundo que
não existe; terá perdido a habilidade para discriminar o real do irreal e terá uma atitude de
escravo liberto para com sua própria vida experimental, dentro do mundo. Não somente virá
a temer e odiar aquilo que tentou ser, como também desprezará aquilo que realmente é.
Nada, além de hábitos de pensamentos vazios e pouco críticos, pode ser criado, quando
conceitos deformados, falsos valores e julgamentos falhos de validade são o material com o
qual algo deve ser construído.
Deve-se notar que aqueles indivíduos cegos que possuem hábitos de pensamentos coerentes
e que aderem à estrita observância de relações válidas, são os mesmos que foram mais
imunes à inoculação educacional. São aqueles que não se graduaram ou o fizeram com os
dedos cruzados, e são capazes de se descartarem da roupagem pomposa da irrealidade e
retornar à terra, assim que o período escolar terminar.
O seguinte trecho de uma das cartas de Helen Keller demonstra não somente o "modus
operandi" de tentativas abortivas de pedagogia objetiva, mas, também, a esterilidade
intelectual do resultado. Todo o propósito, método e resultado da educação literária do cego
estão sintetizados neste curto parágrafo:
-
"As vilas de pescadores de Cornwall são muito pitorescas, quer vistas das praias ou do topo
das colinas, com todos os seus barcos velejando no porto. Um dos espetáculos mais
impressionantes que me foram descritos é o de barcos flutuando em águas escuras à noite
com suas luzes brilhando. A cena é completamente tranqüila, nem um som chega à praia.
Pois, como já disse, os pescadores são silenciosos. A professora e Polly dão uma descrição
verbal tão viva que estou enfeitiçada. Quando a lua cheia, serena, flutua no céu, deixando na
água uma longa esteira de luminosidade, como um arado cortando um solo de prata, no meu
êxtase, apenas posso suspirar."
A total pobreza de experiência significativa do trecho anterior, torna-se aparente, quando
comparada com a seguinte passagem, expressão de um indivíduo que não foi orientado na
arte da linguagem visual. Estes parágrafos, de uma carta pessoal, mostram que, sem o
processo visual, a experiência pode ser completa e a expressão desembaraçada e o cego pode
apreciar, na íntegra, seus próprios valores perceptivos. É evidente, que um verniz superficial,
formal e visual, apenas ocultaria a beleza desta imensidade de experiência:
-
"Ontem regressei de uma semana de férias passadas num rancho no alto da montanha. A
primavera aí é ainda mais deliciosa do que no vale. É uma primavera mais repentina e
vertiginosa. Ela golpeia rápido como um soco no nariz.
Finalmente, o serviço florestal justifica sua existência. Mesmo que não possa salvar as
florestas de incêndios e de turistas, certamente pôde construir lindas trilhas. Nesta primavera, o grupo incumbido delas completou uma trilha de três pés que ia de Forks até o
posto de abservação. Grande parte de minhas férias foi empregada em explorá-las. Seu corte largo e suave rasga,
na maior parte do caminho, a encosta sul, até o topo, circundando os cumes dos desfiladeiros
quando são demasiadamente profundos para se atravessar. Tem aterros poeirentos e
aquedutos barulhentos e mal seguros e cabos de pontes estonteantemente oscilantes e
suspensas."
A ocorrência de "arquitetar fantasias" na vida de um indivíduo, pode ser considerada como
um aviso de que nem tudo vai bem entre ele e seu ambiente. Isto significa, que as fantasias
são empregadas para resolver certas tensões formadas no seu íntimo, cuja solução objetiva
não é permitida pelo ambiente social. O mundo de devaneio do jovem adolescente de visão
está repleto de fantasias inofensivas de amor e de conquista que o seu mundo verdadeiro não
lhe pode proporcionar. À medida que atinge a maturidade, e o ser, em crescimento, assume
relações normais com seu ambiente social, a maioria destes vôos ao irreal desaparecem
naturalmente.
As fantasias, em si mesmas, são raramente tão importantes para a vida, como as situações
ambientais que as provocaram, a não ser que, talvez, em algum caso raro, seu tema seja
transformado em algo de criação artística como uma sinfonia, uma novela, uma pintura, ou
invenção científica. A maior importância científica da vida de fantasia vem à luz quando as
escapadas para o irreal são estudadas em grupo social homogêneo. Aí, é possível descobrir
quais as deficiências de ambiente e de que forma indivíduos diferentes dentro de um grupo
reagem de modo diverso às mesmas situações.
As fantasias nunca são o produto de uma imaginação meramente jocosa ou super ativa.
Quer ocorram na criança, quer no adulto, elas constituem a melhor forma de atividade que o
indivíduo pode encontrar para salvar-se da desintegração social. Literalmente são batalhas
vitais travadas para resistir à extinção. Elas proporcionam o ajustamento social para
qualquer grupo, que, em virtude de diferença racial ou cultural, desempenha o papel da
minoria. A adaptação, efetuada através da avenida do irreal, pode ser encontrada na
população negra americana, em comunidades pequenas judaicas e dos "Quakers", em
famílias isoladas de índios que vivem entre os brancos, e nos indivíduos cujo ambiente
familiar não lhes permite a atividade que os seus egos exigem.
O aspecto mais infeliz do arquitetar da vida de fantasia reside no fato de que não representa
um sinal de desajustamento social de uma pequena parcela da personalida. Ao contrário, significa uma organizacão deficiente de todo o ser. A fuga para a irrealidade
deriva sua natureza da situação total, e, para quaquer indivíduo, a maior parte do ambiente é
o ego. Os cegos são criadores de fantasias crônicos. A saúde mental de qualquer criador
imaginativo depende de sua habilidade em conservar uma visão íntima normal. O artista
criador e o cientista conservam-na. O demente a perde. Os cegos podem e devem conservar o
discernimento da realidade mas para que assim o façam, devem enfrentar e resolver sem
treinamento ou precedente, os problemas a eles afetos.
A vida de fantasia dos cegos não surge de sua incapacidade física primária, mas sim
provém das relações sociais que esta incapacidade envolve. As inconveniências primárias e
as frustrações em que a cegueira implica, raramente resultam de distúrbio emocional, pois
tais conflitos resolvem-se pelo esforço extra de domínio do ambiente visual. Os conflitos
emocionais iniciam-se pela introdução e intervenção dos indivíduos de visão nas vidas dos
cegos. Esta circunstância é tão inevitável, quanto o dano resultante ao ego de uma pessoa
cega, para a qual cada pessoa dotada de visão é um insulto em potencial e, não raro, um
insulto real através de algum ato, palavra ou atitude. O campo de atividades e de relações no
qual o ego é frustrado é tão amplo quanto a própria vida. Uma vez que o cego vive no mundo
dos de visão, é necessário conseguir ajuda visual e informação. Quer seja voluntariamente,
ou por solicitação, representa isto uma diminuição da auto-expressão e é como tal registrado
emocionalmente. Além disto, o ato de pedir a um estranho o nome de um bonde que se
aproxima é a admissão de inferioridade para a qual deve haver uma compensação. E o guia
atencioso e bondoso que o conduz através de um congestionamento de trânsito, deve receber
agradecimento efusivo pela sua ajuda - assim o pede a sociedade - enquanto que as emoções
exigem que ele seja amaldiçoado ou golpeado com uma bengala.
As respostas sociais externas dos cegos constituem uma excelente demonstração da teoria
de Mead (4.1) sobre a mímica. Os membros da sociedade, dotados de visão, aproximam-se
dos cegos com atitudes predeterminadas. De acordo com o seu treinamento social, é
necessário que os cegos aceitem exteriormente as atitudes de seus amigos que enxergam.
Assim, se processam as relações sociais durante a vida. Os membros de visão da sociedade
estão expressando suas próprias atitudes honestas e salutares que, por necessidade,
estimulam o desenvolvimento de reações emocionais, que são desonestas, quanto ao seu
resultado cumulativo sobre os cegos.
Não se deve inferir que os cegos sempre avaliam a ausência de autenticidade nas suas
reações. Eles estão tão iludidos a este respeito quanto os de visão, que presumem que as suas
próprias atitudes e comportamento sejam as reações exigidas pelos cegos. Entretanto,
existem indivíduos que não reagem às atitudes sugeridas pelos de visão. São pessoas
desagradáveis, merecendo os qualificativos de cínicos e ingratos, o que representa um
preço muito alto para pagar, em defesa do amor-próprio. É um ajustamento muito mais
prudente e indolor aceitar conscientemente a avaliação e atitudes da sociedade, de bom grado
e sem reservas e cuidar do resíduo emocional, de alguma forma subjetiva. O indivíduo que
resiste aos comportamentos da sociedade abertamente é o mais saudável emocionalmente,
pois a resistência, em si, alivia o esforço emocional e envolve um ajustamento inteligente à
situação. Porém, tal ajustamento não é aconselhável.
O ajustamento mais conveniente é o padrão encontrado, em geral entre os cegos
socialmente inteligentes. Constitui-se na aceitação explícita das atitudes e reações dos de
visão, compensada por uma vida de fantasia ativa. Esta vida de fantasia é uma saída para a
descarga emocional e contribui para a preservação do amor-próprio individual. Os cegos
constituem uma minoria tão insignificante em seu meio social, que são obrigados a assimilar
os ideais e padrões dos companheiros de visão. Eles percebem as relações sociais entre os de
visþo e compreendem que elas envolvem respeito mútuo e consideração. Os cegos devem
empregar os mesmos comportamentos e maneiras sociais para com os de visão, porém as
relações nunca se tornam mútuas, pois as atitudes e respeito manifestados pelos cegos aos
seus comnheiros de visão nunca são correspondidas incondicionalmente. A ação social
recíproca torna-se, portanto, um processo irreversível, que deixa os cegos sem nenhuma
compensação social. Isto se verifica não somente nos lares do cegos e na sociedade em geral,
como também, de forma mais insidiosa, nos institutos educacionais para os mesmos, onde os
superintendentes e instrutnres de visão adotam um comportamento bondoso, serviçal e
paternal para com seus estudantes.
Com a finalidade de tratamento, achou-se conveniente classificar as fantasias dos cegos sob
três títulos distintos:
-
Fantasias nas quais o indivíduo elimina a fonte da contrariedade social.
-
Fantasias nas quais o indivíduo atinge superioridade ou segurança acentuada.
-
Fantasias nas quais o indivíduo se retira da situação ativa entregando-se a uma
preocupação simples e regressiva, em grande parte de natureza emocional. ( 4.2)
Esta classificação arbitrária das fantasias não representa reações de personalidade
diferentes e distintas; nem tão pouco os tipos designam causas diferentes e separadas. É
comum encontrar-se características distinguindo uma classificação que surge em
importância menor nas outras classes. O mesmo indivíduo pode possuir fantasias que são
características dos três grupos.
Os dados aqui apresentados foram coletados através de entrevistas pessoais entre quarenta
e oito rapazes e moças, cuja visão não excedia à percepção nítida de luz e de sombra. Todos
estavam, ou tinham estado, em alguma instituição estadual para a educação dos cegos. A
idade entre eles variava de sete a vinte e cinco anos. O grupo era formado por aqueles que
eram cegos de nascença e pelos que perderam a visão posteriormente.
A primeira coleção de fantasias é ilustrativa do tipo no qual o ego se defende pela remoção
imaginária ou eliminação daqueles que mais freqüentemente atacam o seu amor-próprio.
Possui a função de fuga da realidade. Em sua forma mais pura, este tipo de fantasia não
abrange amor-próprio exagerado. O eu não figura com relevância salvo nos atos necessários
à execução do plano. Os 'elementos inclusos neste capítulo foram selecionados entre um
grande número de fantasias. Não representam os casos mais extremos, que se situam entre o
assassínio de um indivíduo determinado a a uma destruição cósmica.
É de se notar que a violência, que surge nas fantasias do primeiro grupo, carece da
morbidez e a crueldade do sádico está ausente. Lembra a violência presente nas histórias
populares e nos contos de fadas. As primeiras três são apresentadas assim como foram
relatadas pelas próprias pessoas.
A - Masculino: Visão perdida aos dez anos.
A igreja, que freqüento regularmente, é um velho edifício de tijolos. Enquanto eu ainda
enxergava, duas escoras de tubo de ferro estendiam-se de uma parede à outra para evitar que
os lados da igreja se abrissem. Isto me interessou inicialmente, como uma medida de
engenharia de emergência, mas posteriormente tornou-se tema para muita imaginação. Tanto
na igreja, como fora dela, imaginava-se repleta de habitantes da cidade, e, repentinamente,
as paredes desmoronavam, ou pela tensão sobre as escoras, ou por estas serem cortadas por
alguém ou por mim mesmo. Isto provocaria a queda do telhado sobre a congregação. Esta
cena como eu imaginava, seria agradável e ao mesmo tempo horrível. Algumas vezes,
estaria sentado perto da saída para que pudesse escapar imediatamente, mas isto me
conduziria para longee da ação. Preferia imaginar-me permanecendo na igreja, protegido por
uma viga caída, que estivesse dependurada por uma ponta do que restasse da parede. Nesta
posição poderia observar a luta das pessoas para se libertarem. A maioria não conseguiria.
A cena da igreja variava em ensaios diferentes, e algumas vezes resultava na destruição de
todos, menos de mim. Em outras ocasiões reconheceria um amigo, parente, ou mais
freqüentemente uma moça de minha admiração, que arrastaria para um lugar seguro.
B - Masculino: Visão perdida aos onze anos.
A fantasia que alimento com mais freqüência e com a qual obtenho o maior prazer é
bastante violenta e horrenda. Penso nela seguidamente, mas sem regularidade. Tenho a
impressão de senti-la surgir, e não importa o que esteja fazendo, repasso-a naquele
momento, uma e, em certas ocasiões mais vezes. Tudo depende de como esteja me sentindo,
e de quanto prazer desfruto.
Inicialmente imagino estar preparando secretamente uma grande mesa para o jantar. Por
meio de grandes arcos e parafusos suspendo um tubo de gás de três quartos de largura por
baixo de toda a volta da mesa. Em seguida encho idadosamente o tubo com geléia de nitroglicerina, parafuso um detonador
afixando um fio até a cabeceira da mesa onde deverei estar sentado. O detonador está
colocado no meio da abertura de uma junta tripla.
A mesa é em seguida posta de modo atraente para tantos convidados quanto possa
comportar. Não sei de onde virão os pratos ou os talheres ou em que sala será colocada.
Entretanto, esta será duas vezes mais comprida do que larga, e a cabeceira ficará perto de
alguma porta de saída.
À medida que os convidados chegam, sentam-se à mesa. Em geral, são pessoas que
conheço muito bem e que são muito gentís para comigo, mas que não aprecio. O pastor está
no lado oposto ao meu. Quando a mesa fica completa, desempenho o papel de anfitrião, e
peço ao pastor para que reze o ação de graça, e assim que termina de dizer amém, aperto o
botão elétrico que se encontra na perna da mesa à minha direita. Com a força da explosão
todos são cortados em partes à altura da cintura. O prazer consiste em imaginar a execução
precisa e a destruição repentina de todos aqueles que desgosto, incluindo a mim próprio.
Algumas vezes vario um pouco. Não aperto o botão enquanto sentado, mas quando estou
atrás do prédio. Alcanço o botão e o aperto, após retirar-me da mesa no meio da refeição;
mas prefiro estar presente à explosão.
C - Masculino: Visão perdida aos três anos.
Quando encontro uma pessoa com maneiras paternais, necessito purificar-me imaginando o
que gostaria de fazer com ela. Se for um homem de grande estatura, aproximo - me por um
lado e com a mesma forma paternal, coloco o braço sobre seu ombro, amigavelmente. Em
seguida avanço para frente, segurando-o pelo queixo, e subitamente empurro a cabeça para
cima e para baixo até que os ossos do pescoço se esmaguem e se arrebentem. É necessário
que estes estalem e se arrebentem para que eu possa obter a satisfação desejada. Se for um
homem de porte pequeno, agarro-o simplesmente pelos tornozelos e rodo-o sobre a minha
cabeça atirando-o contra um móvel assim como se jogaria um gato contra a beira da calçada.
D - Feminino: Visão perdida com a idade de doze anos.
D. canta freqüentemente na igreja da cidade em que mora. A congregação é formada por
amigos, vizinhos, e pessoas que ela conheceu sempre.
D. realmente não tem aversão à prática do canto na igreja. Entretanto, preferiria cantar para
uma audiência desconhecida. Durante o tempo em que está cantando e toda vez que se
lembra vivamente da situação, ensaia uma fantasia da qual obtém prazer e satisfação
consideráveis.
Imagina o piso da igreja construído como uma doca sobre águas profundas. Este fato era
desconhecido pela congregação. Enquanto cantava seu solo, o fundo da igreja cairia como se
fosse a divisão de uma mesa. Isto faria com que toda a congregação deslizasse para trás
caindo na água. Enquanto isto ocorria, ela permanecia no púlpito da irþreja, sem ser
prejudicada pelo piso caído. Continuava a cantar até o fim antes de fazer transparecer que
estava consciente do que acontecera.
E - Feminino: Visão perdida aos três anos.
E. é uma menina tímida e quieta, que raramente sustenta uma conversa prolongada. De
família laboriosa alemã, fala com sotaque. Existem muitas pessoas que a atemorizam e das
quais não gosta. Os principais são: seu pai, alguns de seus professores, e algumas colegas de
mais idade. Ela se entrega à fantasia de possuir um cão do tamanho de um cavalo. O cão é
extremamente perverso e não aprecia ninguém a não ser ela. Tem pêlos compridos tão
compactos quanto os de um carneiro. Desta forma ele não precisa nunca estar dentro de casa,
podendo ficar fora todo o tempo.
Quando E. se sente ofendida ou amedrontada, imagina o ofensor andando pela vizinhança,
e sem que E. o incite, o cão subitamente avança em direção daquela pessoa, e rapidamente
dilacera o objeto de sua ira. O cachorro sempre come uma parte vital da pessoa; desta forma
ela fica impedida de viver e de sobreviver.
F - Feminino: Visão perdida com um ano.
F. é de ascendência russa, formou a crença de que seus pais a consideram como uma
responsabilidade. Quando em casa, mais do que na instituição, entrega-se à fantasia na qual
toda a família, com a exceção da irmã menor, é queimada juntamente com a casa onde
moram. Algumas vezes, F. escapa com a irmã, mas, com mais freqüência ela também é
queimada. Em virtude de sua falta de experiência com o fogo, existem poucos detalhes neste
quadro de incêndio.
Estas seis fantasias têm a sua função compensadora no desejo do sujeito livrar-se dos atos e
das atitudes dos seus conhecidos, amigos, e parentes que, por necessidade, o envolvem no
papel de inferior. Este tipo de fantasia ocorre, com muito mais freqüência, naqueles cegos
que já possuíram a visão em determinada época, do que nos cegos congênitos. É universal
entre aqueles dotados de inteligência superior e de um alto grau de coordenação motora.
A fantasia violenta representa saúde emocional, pois serve de ajustamento a uma situação
inevitável. A destruição dos amigos e dos parentes tem um valor compensatório, pois,
conserva a afeição e o respeito que o sujeito mantém para com as suas vítimas e remove o
sentimento de dano produzido por suas atitudes.
Freqüentemente, os sujeitos incluem-se na destruição. Este ato não pode ser considerado
como uma tendência mórbida de suicídio, pois este, como o resto da fantasia, é agradável e
pleno de estima própria positiva. Aparentemente existe algo de heróico, naquele sentimento
de desempenhar o papel de mártir, quando se inclui, a si próprio, na destruição do grupo.
Nas fantasias de destruição violenta surgem apenas umas tentativas de insuflar o ego. O eu
é percebido meramente como o planejador e executor do plano. O valor da sensação decorre
da ação da fantasia. Há a aceitação sadia da condição fisicamente responsável; os sujeitos
reagem agressivamente à situação imediata. Existe, entretanto, um outro tipo de fantasia, a
ser ilustrada mais adiante, em que, tal não ocorre. Ao invés, o sujeito é passivo, e as causas
de conflito com a sociedade não são incluídas. O sujeito vive num mundo diferente, onde não
é necessário haver conflito para manter o respeito próprio. Uma vez que, isto o leva a um
período anterior de sua vida ou a uma situação de vida mais simples e confortável, a fantasia
pode ser considerada como regressiva.
Talvez seja desnecessário salientar as características das fantasias violentas dos cegos que
têm a sua contra-partida na história de Sansão. Qualquer que tenha sido a origem desta,
nenhum menestrel semita do passado poderia ter cantado as fantasias de suas compensações
mais fielmente e de estilo mais clássico.
Encontramos Sansão dotado de uma superioridade divina que o conduz com sucesso até o
fim. Esta superioridade singular somente diminui para convidar o ataque, para que possa assim
ser demonstrada de maneira mais clara. Suas façanhas com as mulheres são ocasiões para
maiores exibições de sua superioridade tanto a elas como a seus rivais.
Imagine-se a abundância de sensação muscular nas fantasias onde o leão é domado, os
portões da cidade arrancados, os crânios de mil filisteus arrebentados, além de inúmeros
grilhões e cordas rompidas. O último ato é uma fantasia universal freqüente entre os cegos.
Baseia-se na necessidade emocional de eliminar do mundo aqueles que humilham seu ego e
destroem seu amor-próprio. Nesta cena, Sanção, também demonstra a escolha de uma
situação ímpar, quanto às suas possibilidades imaginativas. O quadro em que Sansão perece
juntamente com a destruição de seus inimigos está completo, pois cego algum já relatou a
história de suas compensações de forma tão genuína.
A evidência de que a fantasia subjetiva influencia o comportamento do cego é considerável.
Freqüentemente torna-se difícil relacionar qualquer forma específica de comportamento
notório a uma determinada fantasia que o motivasse. Deve-se isto ao mecanismo social
isolante da racionalização. Os sujeitos guardam para si as suas fantasias, cuidadosamente, e,
em raras ocasiões, podem ser levados a descrevê-las, muito embora admitam de pronto que
se entregam a devaneios. Atos que foram inspirados pelo ambiente emocional e imaginação
da fantasia são explicados pelos sujeitos em bases racionais e naturais sem referência
alguma ao incentivo disfarçado.
Freqüentemente, nas instituições, a fantasia torna-se socializada quando um aluno relata
aos seus colegas produto de sua imaginação. O fator socializante é de grande importância
para o problema da disciplina, pois se a fantasia abrange a acção é bem provável que surja
alguma demonstração evidente desta. Os seguintes exemplos de expressões evidentes de
fantasias destrutivas são típicos:
- Cinco rapazes entre dez e treze anos de idade, que freqüentavam uma instituição na
mesma cidade, onde havia uma penitenciária estadual interessaram-se pelo enforcamento de
um criminoso condenado. Imediatamente após o enforcamento, cujos detalhes foram
enumerados na capela, verificou-se o seguinte comportamento dos rapazes. Pelo receio de
tifo, encontrava-se água fervida numa grande jarra colocada na prateleira da varanda do
fundo da instituição. Cada um dos rapazes, após beber, por várias vezes, na maioria das quais eram meros
gestos de satisfazer a sede, enchia novamente o copo, e prendendo-o a uma corda de rede,
firmemente atada ao balaústre, com uma observação exultante de "Enforcando!", deixava
cair o copo. Este caía até o comprimento do cordão, verificando-se em seguida o borrifo
d'água e o ruído do copo na grade embaixo. A epidemia do enforcamento logo passou,
culminando com a descoberta pelo porteiro, numa manhã, do gato de estimação da
instituição, enforcado e dependurado na escada de incêndio do dormitório dos rapazes. Estes
ofereceram como explicação racional, justificando a eliminação do gato, o medo de
machucá-lo, pisando-o pelos corredores.
- Um cão perdido adotou uma instituição como sua residência. Durante uma tarde e à noite
considerável atenção foi-lhe dada pelos rapazes. Na manhã seguinte, antes da cerimônia
religiosa, o cão foi colocado num saco juntamente com pedras pesadas e levado ao riacho e
afogado sem cerimônia. Os quatro rapazes de treze anos de idade que praticaram o
afogamento alegaram em defesa de seu ato que o cão tinha tuberculose, pois a tinham notado
na respiração do animal, e seria melhor que fosse afogado. A verdadeira causa do
afogamento era bem diferente. O líder do grupo identificou-se com aquele cão sem lar e sem
dono, e projetou suas tendências regressivas aos seus colegas, resultando daí ter o cão
encontrado a fuga que o jovem conspirador delineara em sua vida de fantasia.
- Um novo superintendente tinha sido nomeado para uma instituição. Era uma pessoa
muito bondosa, mas estúpida, encarando a sua nova posição mais do ponto de vista
filantrópico do que educacional. Sua solicitude afetada e atenções para com os estudantes os
irritavam. Dois jovens de treze anos cujo quarto se localizava no segundo andar, planejaram
uma forma de represália aos agravos sofridos pelos seus egos. Logo abaixo de suas janelas,
havia um passeio de cimento correspondente exatamente a seis dos pesados passos do
superintendente, vindo da varanda do fundo. Os dois rapazes adquiriram um ferro de passar
antigo e pesado, e sem cabo. Planejou-se que, quando o superintendente caminhasse por
baixo da janela, o ferro de passar seria empurrado no momento exato para cair sobre a
cabeça da vítima. Afim de reduzir as possibilidades de errar o alvo desejado, o ferro foi
derrubado várias vezes para calcular o tempo de queda. Durante vários dias o ferro encontrava-se no parapeito da janela, pronto para ser empurrado
por um dedo. Felizmente para todos, isto nunca chegou a acontecer, Entretanto a
contemplação daquele ferro e suas potencialidades teve um efeito terapêutico sobre os
rapazes e os auxiliou no seu ajustamento aos fatores condenáveis do novo superintendente.
As fantasias do segundo grupo foram selecionadas e ordenadas para ilustrar a regressão.
Aqui o eu, ao invés de ser a execução do plano,torna-se o vértice da fantasia. Os
mecanismos da fuga produzem tanto a superioridade social como a segurança econômica.
Qualitativamente as fantasias são subjetivamente, mais agradáveis do que as do primeiro
tipo pois podem ser revistas pelo sujeito de maneira mais passiva e sem se chocarem com
qualquer corrente adversa de emoções contraditórias.
Deve-se apreciar uma diferença muito importante entre o primeiro e o segundo grupo de
fantasias, antes de se compreender o significado funcional destes tipos. Os planos e a ação
do primeiro grupo servem a um fim em si mesmos, enquanto que as fantasias do segundo
grupo destinam-se a evocar estados emocionais agradáveis que podem ser observados e
apreciados pelo sujeito. Esta tendência à regressão poder ser encontrada de forma ainda
mais acentuada no terceiro grupo de fantasias que se segue:
G. Masculino: Visão perdida aos onze anos
Às vezes em minha infância, via um quadro da crucificação. Na ocasião, não me
impressionava, talvez por não compreender o seu significado. Ao alcançar a idade de catorze
anos o quadro tornou-se o tema altamente agradável de imaginação. No início, durante uma
depressão emocional intensa; rememorava aquele quadro obtendo algum prazer da cena
imóvel. Logo após a natureza passiva do episódio desaparecia, tornando-me um ator na
crucificação.
Imaginava a cruz colocada a cinco ou seis pés à mi nha frente e à esquerda, estando Maria
ajoelhada diante da cruz com o olhar para o alto. Ao redor e por detrás de mim não se
encontravam mais as testemunhas judáicas e sim minha própria familia amigos e gente da
cidade. Com a cena assim preparada eu tomaria uma lança dotada de ponta larda metade do
comprimento de um forcado, e quanto mais larga pudesse visualizar tanto maior o prazer.
Com um golpe súbito atirava a lança no lado de Cristo. Este ato era recebido com imenso
choque de surprêsa por minha família e amigos, ao qual eu respondia aplicando uma
violenta pancada com a lança no rosto de Maria. Em seguida retirava-me da cena. Sentia ser
um sacrilégio indescritível porém era altamente agradável e satisfatório.
H. Masculino: Visão perdida aos nove anos
H. não dança, mas freqüenta os bailes em todas as oportunidades. O prazer que obtém em
comparecer é conseguido pelo estado exaltado e eufórico induzido pela música. Senta-se no
balcão e imagina-se estar sobre as cabeças dos dançarinos. Ora flutua numa posição
reclinada, ou então executa danças aéreas por ele inventadas. Este prazer existe pelas
imagens mentais cinestésicas em conjunção com a música. Ele também aprecia a posição de
estar acima dos demais dançarinos para ser completamente visível aos demais. A dança
imaginária é sempre de natureza solitária.
I - Masculino: Cego congênito.
I. está consideravelmente acima da média em inteligência, é extremamente ativo. Domina
facilmente os cursos industriais da instituição e é versado nos cursos de literatura. Não tem
interesse por música tendo deixado de estudá-la há três anos aproximadamente. Embora,
admita, terminantemente, não ter planos definidos para o futuro, após deixar a instituição
deseja viver no México ou na América do Sul, e durante os últimos quatro anos tem
imaginado possuir uma fazenda em qualquer dos lugares acima. A fantasia, é
surpreendentemente real, toma muito de seu tempo. Possui uma fazenda que produz café. A
propriedade é servida por mão de obra nativa. Reside só, numa casa térrea grande. Algumas
vezes tem um rapaz para tomar conta da casa, mas com mais freqüência está só. Quando
está morando lá, ninguém sabe onde ele está ou o que está fazendo, nem mesmo seus
parentes. Não se interessa pela produção de café, a não ser na medida em que forneça o
sustento de sua vida.
J - Masculino: Cego congênito.
J. é um rapaz de inteligência média. Possui uma voz de considerável valor. Este é o seu
único talento, pois é inábil em todos os trabalhos manuais. Todas as tentativas para adquirir
as artes manuais das instituições foram infrutíferas, em parte devido à falta de habilidade
manual e também porque não desejava aprendê-las.
J. sente-se como um bem sucedido cantor no futuro. Vive na fantasia de estar aparecendo
em concertos pelo país conquistando a fama. Esta imaginação tornou-se tão real e vital que
ele realmente se sente seguro do futuro. Não é imperativo que se exercite assiduamente. Ao
mesmo tempo que sabe que a sua voz é defeituosa e necessita de muito treinamento, a
assertiva emocional é tão forte que reduz seus esforços ao mínimo.
K - Masculino: Visão perdida aos quinze anos.
K. possui inteligência média, sendo ativo e vigoroso. É hábil em todas as ocupações
manuais da instituição, tendo adquirido outras de sua própria iniciativa. Possui habilidade
medíocre para música instrumental, alcançando um grau de execução razoável, através da
prática zelosa. Suas realizações musicais, entretanto, nunca ultrapassaram a expressão
mecânica da música aprendida mecânicamente. K. acredita ser um músico talentoso, e na
imaginação seria um grande sucesso tanto como executor nos instrumentos quanto como
professor. Mas sente que jamais poderá seguir carreira motivada por um calo no seu dedo
indicador causado por espinho de cardo. Uma operação ligeira removeria o espinho. Não
consente nisto, pois então teria que enfrentar teste de.sua habilidade real em vez de
permanecer na imaginária.
L - Masculino: Visão perdida aos doze anos.
L. possui habilidade intelectual média. É bastante ativo e cuida-se com facilidade. Nunca
teve interesse no trabalho manual da escola. Fez os cursos industriais necessários, com
resultados pobres. Seu trabalho nos cursos literários foi satisfatório, mas sem brilho. No
início da adolescência, L. criou a fantasia de ingressar na universidade quando terminasse a
instituição e o ginásio na cidade. Esta fantasia explicava a sua falta de interesse nos cursos
industriais da instituição, pois não teria necessidade destes na universidade. Em sua fantasia,
colaria grau após quatro anos de universidade estadual tornando-se um advogado ou editor
de jornal. Após terminar seus trabalhos na instituição, providências foram tomadas para que
ingressasse no ginásio da cidade, o que aconteceu algumas semanas depois. Deixou
voluntariamente a escola, indo para a sua casa, onde viveria com os seus pais
continuamente.
Poucas pessoas cegas, de habilidade média ou acima desta, deixam de fazer uso da
imaginação em seus planos para a vida madura. Estas fantasias seriam de grande valor
educacional se as nossas instituições fossem bastante astutas em utilizá-las na formação das
profissões de seus estudantes. As expressões evidentes das fantasias são tão significativas
quanto numerosas, e embora estas em si mesmas sejam responsáveis por algum sucesso,
produzem numerosos fracassos porque iniciam começos falsos que podem somente ser
corrigidos através do contato com a realidade.
As fantasias regressivas até aqui consideradas deixam o sujeito tão passivo em seu
comportamento que, como já observamos, ele sofre de uma falta de motivação para uma
carreira econômica. Por outro lado, ocasionalmente, promovem o sucesso incomum, como se
esclarece pelos seguintes exemplos contrastantes:
1 - A fantasia de Thomas Gore de chegar a ser senador servia como uma fuga da situação
impossível em que o rapaz se encontrava em sua cidade natal. Este sonho foi alimentado
pela leitura dos "Arquivos do Congresso"e sobre as vidas de homens que se fizeram por si
próbrios, e pela projeção da fantasia em debates e discursos políticos. Esta tornou-se uma
quase obsessão, em torrno da qual a vida do invíduo integrou-se de tal forma que as
atividades que não contribuíam definitivamente para as ambições senatoriais eram
negligenciadas. ( 4.3)
2 - "Um caso que deve tornar-se clássico é o daquele jovem, que tendo se diplomado em
curso acadêmico, dirigiu-se a um homem de negócios, seu amigo, para aconselhar-se.
Concebeu o plano de comprar em grande escala para mercearias em base de cooperativa,
reservando para si uma boa comissão, enquanto economizava, para as firmas boas quantias e
o trabalho de comprar. Seu amigo perguntou-lhe o que sabia a respeito do negócio de
mercearia. "Ora, nada, e não vejo porque faz alguma diferença".
"Ora, para eles faz, você pode estar certo. Acha que se este plano fosse viável não teria sido
empregado há mais tempo? Aprenda o negócio, meu rapaz! aprenda-o e depois poderemos
conversar" E o jovem retirou-se desapontado, mas sem se convencer. ( 4.4)
Temos a considerar a seguir as fantasias regressivas onde o sujeito procura anestesiar-se do
mundo da realidade. Nestas, o estado emocional assemelha-se ao do êxtase religioso,
característico do transe oriental. O sonhador pode contemplar a ação, mas como um
estranho. Esta ação é relativa aos atores no sonho, enquanto que ele desempenha o papel de
um espectador atento.
M - Masculino: Visão perdida com onze anos.
M. passou a maior parte de seu tempo de estudo e de aula, durante dois anos, entretendo-se
com a fantasia seguinte:
À sua frente, no chão, na escrivaninha ou a mesa onde se sentara, visualisava dois
manequins. Estes corpos eram de dez a doze polegadas de altura e possuiam as proporções
de atletas bem desenvolvidos. Cada um vestia uma armadura de placa e malha, ficando
livres apenas a cabeça e as extremidades mais baixas dos braços e das pernas, que estavam
desprotegidos. A armadura, imaginada em seus mínimos detalhes, consistia de protetores
dos ombros, uma chapa para o peito ligado a um colête por baixo, que alcançava até os
joelhos. Os manequins estavam armados de escudo redondo e uma espada curta e larga, que
era utilizada como uma arma de ataque, mais do que para trespassar. Distinguiam-se entre si
pelos materiais diferentes de suas arma e da armadura. Um era feito de metal polido e o
outro de prata. As duas figuras não possuíam individualidade ou personalidade. Embora
suas feições fossem distintas, nunca mudavam de expressão, mantendo-as constantemente
fixas como de bonecos.
Assim que M, percebia estas figuras, um combate hábil e vigoroso à mão se iniciava. O
único ponto vulnerável de cada manequim era a cabeça desprotegida. A técnica da luta
consistia em dar e defender golpes (por baixo da mão) de esgrima com um tipo de sabre. M.
podia ficar sentado presenciando o espetáculo durante toda a hora de aula sem cansar-se.
Exercia algum controle voluntário sobre a ação dos manequins, pois eles
executavam qualquer móvimento que o observador desejasse e, à medida que o tempo corria, ele podia dirigir a ofensiva de um enquanto controlava os movimentos defensivos
do outro. Conseguia isto através da cinestesia empática ( *). A resposta afetiva à batalha nos manequins
provorcionava imenso prazer. Dava ao observador a sensação de quase completa satisfação
na ação. Evidentemente, era tão agradável e indireta, quanto uma ação imaginada pode ser.
N - Masculino: Visão perdida aos nove anos de idade.
N. possui uma inteligência muito acima da média, e tem um modo de comportamento
quieto e sensível. Aos catorze anos de idade iniciou a formação de uma fantasia que cresceu
e persistiu durante oito anos. Imaginava estar na companhia de uma jovem de sua idade.
Esta pessoa imaginária não possui nome e nunca se identificou com qualquer outra. Ela
surgiu aos quatorze anos de idade, e, naquela época tinha a sua idade. Agora tornou-se oito
mais velha. N. perdeu a visão em 1909, e a pessoa imaginária está vestida com as roupas
daquela época. Este fato persiste apesar de N. conhecer a moda atual.
A jovem imaginada é uma criação visual total, pois nunca fala nem se comporta de modo
definido. Ela desempenha o papel de uma companhia silenciosa cuja presença é uma fonte
de prazer ao observador. Não possui habilidades, nem desempenhos especiais. É possível a
N, descrever a sua presença minuciosamente, dos pés à cabeça, mas não possui atributos, a
não ser como uma figura visual. É possível projetá-la em qualquer lugar e posição mas
sempre de forma indiferente e amistosa. Ela nunca se presta às fantasias eróticas do
observador e nem tão pouco participa de seus prazeres ou outros estados emocionais.
Funciona inteiramente como uma espécie de criação estética que satisfaz não somente o
ideal de beleza feminino do observador como também, de forma passiva o seu conceito de
uma companhia agradável.
O - Masculino: Visão perdida aos onze anos.
Quando passo por uma situação embaraçosa, ou enfrento algo que detesto fazer perante
pessoas entretenho-me com um desmaio imaginário. Figuro-me como tendo caído dramaticamente para trás e tenho consciência de sentir algo
como comiseração de mim mesmo. Esta situação imaginária parece aliviar meu horror e
constrangimento como uma espécie de anestésico auto-administrado. Desconheço como
poderia esqueçer tão subitamente todo o desprazer.
P - Masculino: visão perdida aos dez anos
Toda vez que relembro ou antecipo algum constrangimento social, consigo esquivar-me da
humilhação imaginando estar mergulhando numa piscina profunda permanecendo no fundo.
Aqui, em minha imaginação, sinto-me separado de todos neste mundo e, quase que vivendo
esta situação, consigo fugir dos sentimentos de humilhação. Sou um bom nadador, e, na
realidade, sinto este prazer debaixo d'água. Se não fosse necessário respirar e comer, acredito
que residiria permanentemente assim.
Estas fantasias mais regressivas geralmente são acompanhadas por períodos longos de
inatividade e contemplação agradável na vida do sujeito. A sua consciência preenche-se com
a atividade emocional relativa ao sonho durante este tempo.
O caso de um certo professor de música ilustrará mais um passo no mecanismo que exclui
toda estimulação objetiva, restando a consciência apenas com o conteúdo emocional.
Periodicamente, este professor sentia a necessidade de uma experiência espiritual, mais
intensa. Jejuava até ficar fisicamente tão fraco, provocando daí um estupor de transe.
Enquanto permanecia neste estado, sentia as mais agradáveis e encantadoras emoções.
Reconhecia a experiência como comunhão com Deus e somente aceitava alimentos com
relutância para retornar ao estado físico e mental normal.
No caso de Clarence Hawkes, ( 4.5) apresenta-se um mecanismo regressivo de breve
duração. Ele relata como, logo após perder a visão aos treze anos de idade,ficou tomado pela
dor e pelo desespeo. A perturbação emocional cessou de repente, tendo ele encontrado o
alívio por algum tempo numa paz calma, passiva e como que de transe, na qual percebia a
presença de sua avó amada e carinhosa, que tinha falecido há cinco anos antes de seu
acidente. A experiência não representava um ajustamento progressivo. Era antes uma fuga temporária e regressiva, semelhante àquela da conversão religiosa.
Laura Bridgman ( 4.6) aos vinte e três anos de idade retornou à casa dos pais após completar
a sua eduçação no Instituto Perkins. Foi, durante todo o tempo de escola, dirigida e
supervisionada pessoalmente. Era o centro de atenção tanto dos instrutores como dos
visitantes. Em resumo, sua personalidade organizara-se completamente para ser o elemento
de prova A da instituição. Com exceção de um contato desagradável com a sua mãe, Laura
viu-se repentinamente desligada até dos recursos socais mínimos disponíveis. Nem mesmo
ataques de raiva e o conseqüente arrependimento puderam restabelecer sequer uma sombra
de sua posição central anterior. Tornou-se apática mental e emocionalmente e fisicamente
lânguida. A regressão continuou ao ponto de colocar a sua vida em perigo, mas o problema
foi resolvido pelo retorno acertado àquele ambiente onde estava treinada para reagir.
Muito embora se tenham coligido inúmeras fantasias eróticas de ambos os sexos, estas não
apresentem nada de novo a respeito do padrão funcional da vida de fantasia. Em geral,
refletem, antes, a experiência havida com o sujeito, e abrangem fantasias que envolvem
planos e ação para se completarem e as do tipo altamente subjetivo, que representam a mera
contemplação das emoções subjetivas e das sensações físicas decorrentes da estimulação
autoerótica. O conteúdo imaginário das fantasias eróticas apresenta situações heterossexuais
normais, e situações homossexuais ativas e passivas, e um grande volume de atividades
altamente mecanizadas, autoeróticas e onanísticas que terminam na expressão manifestada.
A natureza regressiva da vida mental do cego também é demonstrada de maneira mais
evidente pelos períodos de concentração prolongados sobre a sensação corpórea. Estas
desempenham a mesma função do que as fantasias regressivas. Representam o mecanismo
da fuga do meio ambiente, preservando ao mesmo tempo o fluxo da consciência. E no mais,
colocam o sujeito na condição passiva desejada.
Estas sensações provêm do coração, do peito, do estômago e intestinos. Tais períodos
transformam-se em alguns casos num estado habitual, resultando daí o constante
encolhinento da personalidade. Em consequência, a estimulação do meio ambiente deixa de
obter a reação normal.
Impressões da continuidade da vida de fantasia dos cegos foram prejudicados
sensivelmente pela necessidade de apresentá-las em setores isolados e não como um todo
corrente. As fantasias não ocorrem em unidades estanques, mas sim em padrões correntes
nos quais alguns temas se repetem. O volume de tempo empregado no entretenimento de
uma fantasia depende das exigências do meio ambiente externo, e, a reação a estas
exigências, por sua vez, depende da receptividade para a estimulação externa do sujeito. Em
outras palavras, quando o meio ambiente externo deixa de atrair a atenção do sujeito, a
consciência se ocupa com fantasias.
Existe um grande campo de diferenças individuais entre os cegos a respeito da percepção
do meio ambiente. O grau de compreensão não é constante, uma vez que varia em relação
tanto da intensidade da estimulação externa, quanto das exigências emocionais da
preocupação subjetiva. Verifica-se no início da adolescência um declínio acentuado na
importância da estimulação objetiva e da atividade, que continua até a fase adulta. Esta
mudança também implica no uso crescente da fantasia como um mecanismo de ajuste.
A vida de fantasia é característica da personalidade introvertida, e, com o começo da
adolescência, estas tendências da personalidade são cada vez mais visíveis. De forma ampla,
a cegueira reproduz as mudanças mentais e algumas físicas, próprias da adolescência. O
indivíduo, por necessidade, torna-se menos objetivo, pois, uma grande parte da estimulação
fica fisicamente excluída. Resulta, que a mente volta-se para dentro no sentido de
estimulação individual íntima. É uma revelação aos dotados de visão compreender o volume
de sensação orgânica que pode ser continuamente observada. Estas sensações não permitem,
por muito tempo, somente a atividade normal da função fisiológica, mas são estimuladas e
manipuladas em padrões, de forma que o máximo de prazer possa ser obtido através da
observação. A fantasia, com o seu acompanhamento emocional, torna-se uma desculpa
conveniente para uma absorção prolongada nos processos corpóreos. A redução da atividade
física, e a inépcia comparativa, exagerada pela observação subjetiva, produz um
constrangimento e acanhamento comparáveis somente à desengonçada situação da
adolescência.
Muito embora a construção de fantasias seja uma atividade introvertida, existem diferentes
graus de introversão, não somente entre as fantasias de indivíduos diferentes, como também
entre as de um mesmo indivíduo. As fantasias incluídas no primeiro grupo representam o
que se pode denominar quase que do tipo objetivo a extroverdito; mas o sujeito que
apresenta as do primeiro grupo pode também tê-las do segundo e terceiro grupos. Além
disso, cada fantasia é sempre construída em torno de alguma situação particular real,
deixando o sujeito inicialmente ajustado normalmente a outras situações reais; isto é,
alguma circunstância particular que produz o desajustamento pode ser enfrentada por uma
reação introvertida. O mecanismo subjetivo e compensatório continua a atuar em direção
mais introvertida, enquanto perdurar aquela circunstância. Portanto, uma criança pode de
imediato, eliminar a sua família de uma forma introvertida, enquanto que mantém uma
atitude objetiva com relação a outros aspectos de seu meio ambiente. Posteriormente sua
situação econômica e os aspectos mais amplos de seu meio ambiente introduzirão novas
dificuldades, que, por seu turno, produzirão novas fantasias ou outras relações introvertidas.
Eventualmente, o sujeito pode desenvolver uma personalidade completamente introvertida e
tornar-se demente, ou pode permanecer extrovertido em relação a muitas situações reais,
conservando sua normalidade.
A construção de fantasias deriva grande parte de seu valor terapêutico de criação, no
momento, da sensação de ajustamento necessária para equacionar o ego com o meio
ambiente. A natureza dinâmica do ajustamento social exige que a compensação seja
contínua e permanentemente em mudança. Assim sendo, é possível descobrir-se uma grande
quantidade de material imaginário que já tenha suplantado a sua utilidade emocional. Na
tarefa de coletar fantasias dos adolescentes cegos, o investigador tem a probabilidade de
armazenar somente material desgastado que não funciona mais na vida emocional do sujeito.
Estas relíquias de conflitos e ajustamentos do passado são mais facilmente revelados pelos
sujeitos, do que as que estão em uso ao tempo da investigação. Os detalhes das fantasias
descartadas são superiores aos das atuais. As primeiras sofreram difenciação no decurso de
se tornarem socializadas e evoluíram a um estado de proporcionar prazer pela sua
transmissão. Nesta circunstância a criação ganha em satisfação pela elaboração do que não existia na
fantasia quando de seu emprego como uma parte vital da vida emocional do sujeito.
O investigador deve estar constantemente prevenido para não confundir as fantasias antigas
com aquelas que estão desempenhando o seu papel atualmente nos ajustamentos presentes.
A importância científica das fantasias abandonadas desaparece; na verdade, o sujeito
raramente é preciso com relação ao conflito emocional determinado, que a fantasia se
prestava a resolver. Seguem-se exemplos de fantasias abandonadas que não desempenham
mais um papel vital no ajustamento social do sujeito. Poder-se-á observar como são
definidas e completas em comparação com as outras vitais anteriormente apresentadas.
1 - Era dia de Ação de Graças e os estudantes participavam de vários jogos diferentes,
numa festa que foi oferecida pela Sociedade Endeavor, no sub-solo do salão de música. Na
verdade, reinava muita alegria, e todos se divertiam. Eu não era membro da Sociedade,
porém muitos outros que também não faziam parte dela, tinham sido cordialmente
convidados. Acontece que eu tinha sido esquecido, como sempre ocorre em todas as
ocasiões. Durante a festa um grupo de rapazes resolveu pregar uma peça no supervisor
sabendo muito bem que este colocaria a culpa sobre mim. Eles pensavam que eu estaria
zangado por não ter sido convidado. Logo após ter terminado a festa, um dos rapazes
entusiasmou-se bastante com a idéia que teria que executar - o que o faria sobressair-se entre
os demais, como sendo um dos mais corajosos da universidade. Assim que se verificou a
diabrura, surgiu o supervisor, levantando acusações falsas contra mim. Respondi-lhe : "Sob
a minha palavra de honra, não tomei parte em nada do que ocorreu e de que estou sendo
acusado". Em seguida fui deliberadamente taxado de mentiroso. Naquele instante perdi o
controle dos nervos. Quando voltei à calma, estava lutando com a força de um poderoso
animal, como se fosse dotado de movimento perpétuo. Foram necessários os esforços totais
de vários estudantes para impedir que eu o estraçalhasse. O supervisor foi levado
imediatamente ao hospital e colocado sob os cuidados dos melhores médicos. Fui expulso
para não mais voltar, e tendo ingressado numa escola em Chicago, formei-me com honras.
2 - Ouso dizer que era o homem mais feliz do mundo, pois tinha me apaixonado e me
tornado noivo da garota mais delicada deste mundo. Era também um dos melhores
vendedores deste mundo. Acontece, que me ausentei durante três meses para uma transação
de negócios. Fui visitar minha garota, pela última vez, antes de embarcar. Depois de passar os três
meses sofrendo dificuldades, adquirindo grande fama em todos os lugares, estava mais do
que ansioso para regressar à casa.
À minha chegada, revi muitos amigos da minha garota, mas ela e os outros me viram? Não.
Muito ao contrário, fui ignorado e evitado por todos. Por algum tempo fui um homem
perplexo, e continuei a meditar. Fui à casa da garota, mas ela não me cumprimentou como
de costume. Perguntou apenas "Com quem deseja falar?" Muito surpreso respondi lhe "Vim
saber porque estou sendo ignorado por você e pelos amigos". Recusou-se a falar, e aí disse-lhe: "Você é quem tem sido a minha inspiração e o motivo da minha fama e nome; mas se
isto a fizer feliz, pois vejo logo que não se interessa mais, renunciarei à fama, e dedicarei a
minha vida à reclusão num convento". Retornei ao meu empregador e contei-lhe a minha
desventura. Pediu-me que contasse o caso em detalhe. Declarei que durante a minha
ausência de casa, um dos meus velhos amigos tinha conseguido conquistar aquela que eu
amava, e agora eu renunciava para poder ir à Itália. Fui feliz em conseguir o passaporte e fui
cordialmente recebido na bela cidade de Florença. Não sentia que estivesse fazendo nada
contra a minha vontade; ao contrário, percebia que me dirigia para além daqueles muros por
uma grande causa, e de estar evitando a perpetração de um terrível crime. Todas as noites
cantava e ajoelhava-me orando com os velhos monges. Os dias me pareciam anos, e os
meses como vintenas de anos, e os anos, séculos. Meu rosto não se apresentava mais
marcado com meu sorriso habitual, mas adquiriu um aspecto solene, alongado, e monástico,
comum a todos os frades. Era uma bela e esplêndida tarde de verão crepuscular: o perfume
das flores se espalhava ao redor por uma leve brisa e os pássaros no ar cantavam canções
alegres. Enquanto observava a grande vastidão deste cenário maravilhoso, retornavam as
memórias daquelas velhas praias da costa da Califórnia. Por fim, os últimos cumes das
montanhas e dos vales eram absorvidos pela escuridão. Voltei-me para o velho portão de
entrada em direção às paredes do convento e ajoelhei-me em oração, agradecendo ao meu
Deus, pedindo-lhe se poderia enviar um anjo para aliviar-me desta miséria. Naquele
momento alguém colocou a mão sobre minha cabeça, e levantei-me pensando ser um anjo
enviado do Céu, mas qual não foi a minha surpresa ao verificar que era a garota com a qual
antes pensara me casar. Ela ajoelhou-se soluçando e rogando que a levasse de volta, mas eu tinha perdido todo
interesse pelo mundo e recusei com um "Não". Posteriormente retornei à América, para viver
sob a grandeza das "Estrelas e Listras" para sempre.
Infelizmente este estudo pouco difunde as diferenças qualitativas e quantitativas entre as
fantasias dos cegos congênitos e daqueles que já foram dotados de visão. Um estudo
estatístico comparativo seria necessário para determinar as diferenças e semelhanças
existentes. Pode-se antecipar, entretanto, que em tal estudo os indivíduos congênitos
apresentariam fantasias violentas em menor número, do que aqueles do primeiro grupo.
Estas fantasias teriam a forma de histórias verbais e de conversas, abrangendo situações e
cercanias indefinidas com um pequeno grau de distinção entre o real e o imaginário. O
grande volume de pensamento verbal torna desnecessários o material e as situações objetivas
e concretas. A palavra é o estímulo suficiente para suscitar e manipular as sensações
orgânicas. Para os cegos congênitos, a palavra possui o mesmo valor sensorial do que aquele
ligado à imagem da situação concreta.
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Notas
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4.1 - G.H. Mead, "A behavioristic Account of the Significant Symbol", Journal of Philosophy,
19 ( 1924) pp 157-63.
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4.2 - Dra. Anita M. Muhl, achou o estado de preocupação muito frequente entre os cegos que
ela estudou. As preocupações tomavam a forma de medo apreensivo de várias espécies, tais
como, ansiedade como a saúde de membros da família, sobre as situações escolares
quotidianas e seus sucessos e fracassos futuros. Dr. Muhl classificou estes medos
apreensivos como um aspecto da vida de fantasia. É altamente discutível serem estas duas
formas de comportamento emocional classificadas conjuntamente. A vida de fantasia da
criança cega é muito constante de um instituto a outro. Medos apreensivos não o são. Em
algumas escolas residenciais a maioria das crianças será aflita e apreensiva, enquanto que
em outras escolas a ansiedade, a apreensão são raras. Somos de opinião que medos apreensivos surgem de uma causa ambiental mais imediata
do que a vida de fantasia, principalmente de malnutrição e de fadiga resultantes de um
programa escolar altamente regimental.
Cf. Anita M. Muhl, "Results of Psyhometric and Personality Studies of Blind Children at
the California School for the Blind", American Association of Instructors of the Blind,
Report, 1930 pp. 568-73.
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4.3 - James Creelman, "The Blind Senator from Oklahoma", Pearson's Magazine, May 1909.
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4.4 - R. S. French, "The Education of the Blind, a Critical and Historical Study (California
School for the Blind, Berkeley, Cal.,.l925) Parte II pp 87-88, com permissão.
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4.5 - Clarence Hawkes, "Hitting the Dark Trail", (Henry Holt and Co., 1915).
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4.6 - Laura E. Richards, "Laura Bridgman: The Story of an Opened Door", (D. Appleton and
Co., 1929), Chap. IX.
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(*) Nota de revisão: Empatia: tendência para sentir o que se sentiria se estivéssemos na situação da pessoa que
se observa.
O valor que a voz e a fala humanas têm para os cegos, dificilmente pode ser superestimado.
A fala e a vocalização proporcionam constante estimulação subjetiva e objetiva, desde a
primeira infância. Grande parte do que os cegos congênitos conseguem saber do seu mundo,
chega-lhes através do veículo que é a voz humana. Os que se tornaram cegos, de igual modo,
logo após perderem a visão, continuam a visualizar o seu mundo transformado, através de
palavras e de vozes alheias.
Nas situações sociais, as vozes de terceiros constituem a maior parte daquilo que representa
alguma importância nas relações sociais e pessoais. Quase que literalmente, o mundo dos
cegos está povoado por vozes, e na verdade, a sua própria voz é um fator importante na
expressão da personalidade. A vocalização, como qualquer outra forma de atividade, conduz
a uma expansão do ego. A cessação da voz produz uma contração, efetiva, do ego. Pessoa
alguma, cega ou não, pode falar dentro de um tambor sem sentir-se maior e sem ficar
desapontada quando termina o solilóquio. A relação entre a voz e o ego pode ser notada
através da observação casual de quase toda a criança cega congênita. A vocalização é uma
parte tão necessária de si própria, que, quando as palavras significativas se esgotam, toadas
monótonas e versinhos verbais, sem sentido, são utilizados, sempre, até o limite das
proibições sociais, tanto do lar e da família como da sala de aula e do professor. Muitos
adultos, cujo desenvolvimento da personalidade exige uma expressão positiva do ego,
falarão, seguidamente, sobre qualquer assunto, de qualquer maneira, durante o tempo que
este processo lhes assegurar um ouvinte.
Para o cego, as vozes transmitem não somente o significado da palavra falada, como
também aquelas formas silenciosas de linguagem que se tornam evidentes aos que
enxergam, pela expressão facial, gestos da mão, da cabeça, do corpo.
Uma vez que a convenção social exige um controle maior da expressão visível do que da
modulação da voz, os cegos estão vivamente a par da disposição subjetiva, atitudes, e
preconceitos que eles não podem perceber pela expressão facial e pelo gesto manual, mas
que podem ser revelados na voz. É neste sentido que o cego mais sofre no seu ajustamento
com os dotados de visão. Pouco importa o que as palavras faladas possam significar,
contanto que, o ouvido perceba, na voz, um significado tão claro e inequívoco, como quando
a vista percebe o gesto de bater de leve na testa.
Os pais, professores e o público dotado de visão, em geral, freqüentemente, se espantam
porque as suas frases ressonantes de encorajamento aos cegos não encontram mais
repercussão. É simplesmente porque estes indivíduos aprenderam como mentir aos cegos
mais com palavras somente. A sua duplicidade é apenas parcialmente completa. Não
dominaram suas entonações e modulações tão habilmente, como escolheram as palavras. A
vida de fantasia dos cegos revela que muitas fantasias violentas surgem, em grande parte,
desta infeliz situação.
Estes significados subverbais, transportados pela voz, fazem com que os cegos coloquem
muito peso e dêem muito valor, para relações pessoais, nas primeiras impressões dos
indivíduos. Para eles a pessoa recém-conhecida, assim como, aquela que lhes é familiar, é o
que a sua voz representa, não poderá ser nem mais nem menos, e as palavras concretas que
ela proferir serão de muito menor importância do que as qualidades sugestivas de sua voz. Para
aqueles que não possuem as impressões visuais do orador para suplementar a voz, a imagem
auditiva, da mesma, carrega os traços pessoais da pessoa recentemente apresentada. Para
aqueles que empregam imagens mentais visuais concretas e fotismo cinestésico, a voz
estruturará imediatamente, numa imagem mental visual a nova pessoa, que irá persistir
como uma idéia rígida e estereotipada. Se os cegos estão cientes disto ou não, ou
posteriormente mudem ou não as suas atitudes para com o novo membro de seu grupo
social, a primeira impressão auditiva exercerá uma profunda influência em determinar as
atitudes subseqüentes para com a nova pessoa.
Ocorreram casos, nas escolas para os cegos,
em que o fracasso do professor tenha sido conseqüência exclusiva da primeira impressão
causada sobre os estudantes. Isto, além de outras razões, torna importante que os professores
possuam experiências práticas pedagógicas com os cegos, antes de assumir posições
regulares de ensino nas instituições. A atitude condescendente do missionário auto-constituído é notoriamente revelada pela voz.
Um grande número de indivíduos cegos desenvolve sua percepção, dos significados não
verbais, de forma involuntária. Somente alguns estão cientes que percebem mais do que as
palavras, em si, sugerem. Aqueles que de fato apreciam o que estão fazendo, não tiram
maior proveito do que aqueles que procedem de forma mais simples. É interessante observar
que a percepção dos significados não verbais é relativa à organização da personalidade
daquele que percebe. Indivíduos extremamente egocêntricos, em situações em que estejam
envolvidos, raramente, percebem mais do que as palavras nuas garantem. Seus processos
perceptivos estão tão fortemente auto-centralizados, que nada menos que um bastão de
beisebol poderia causar-lhe alguma impressão. Estes são os cegos que se transformam em
vendedores melhor sucedidos. Nada, na atitude do comprador em potencial, os intimida.
Possuem uma armadura social que é invulnerável à sugestão e às insinuações.
Os cegos, cujas personalidades são mais objetivamente organizadas, empregam a sua
interpretação da voz como um meio social para se manterem melhor sincronizados com suas
vizinhanças. Este meio está constantemente em uso. O autor está familiarizado com dois
adivinhos cegos que capitalizaram sua habilidade interpretativa com grande vantagem
comercial. Consideram-na como a sua melhor mercadoria no negócio, e são muito mais
honestos, com relação à sua real habilidade, do que um grande número de profissionais,
analistas de caráter, que alegam fundamentar seus processos em princípios científicos. Estes
adivinhos "leêm as mentes" de seus clientes, simplesmente, pela interpretação de suas vozes.
Por conseguinte, eles conhecem o suficiente sobre a natureza humana, em geral, para
formular previsões que parecem verdadeiras ao cliente. Na verdade, algumas destas
geralmente se tornam realidade, simplesmente por causa da análise relativamente precisa da
personali.dade e dos hábitos do cliente.
O exemplo seguinte demonstra como são sutis os fatos interpretados adequadamente pelos
cegos, nas situações diárias. Sr. K. e seu filho cego de treze anos pararam numa mercearia
da vizinhança, para comprar passas. Sr. K. perguntou ao dono: "Você tem passas sem
sementes?" Este respondeu, "Sim, tenho algumas que chegaram ontem. Deseja-as, ou prefere
as maiores com sementes?" A Sra. K. quer passas sem sementes", respondeu o freguês. Assim que o Sr. K. e seu filho encontravam-se do lado de fora, o menino perguntou-lhe
porque o vendedor não lhe quisera vender as passas sem sementes. O Sr. K. julgou não haver
razão alguma, uma vez que, afinal de contas, ele nada dissera em não querer vendê-las.
Entretanto, na próxima vez que o Sr. K. esteve na mercearia, perguntou ao vendedor porque
não lhe quisera vender as passas sem sementes. O comerciante lhe respondeu que o novo
embarque que recebera um dia antes, tinha vendido apenas um pacote, que tinha sido
devolvido por estar infestado de traças. Embora estivesse ansioso em dispor de todo o
estoque, sentiu- se com receio de vendê-las a um de seus melhores fregueses. Neste exemplo
o menino captou um significado na pergunta, "Deseja-as, ou as maiores com sementes?" que
seu pai não tinha percebido. O significado estava contido na voz do vendedor.
Há pouco tempo um cientista teve a oportunidade de dirigir a palavra a um grupo de
profissionais que não estava muito familiarizado com o assunto do orador. Posteriormente,
este encontrou-se com um cego, que tinha assistido à reunião, e perguntou-lhe se lhe
agradara o trabalho literário. Respondeu-lhe que provavelmente o trabalho era bom, mas que
estivera mais interessado nas atitudes emocionais cambiantes do orador do que no discurso.
O orador desejou saber o que isto queria dizer. O cego respondeu-lhe que durante o trabalho
o orador manifestara cinco mudanças definitivas de atitude pessoal, em relação à oração e à
assistência. O cientista admitiu ter experimentado mudanças de atitude em relação ao seu
trabalho e à assistência durante a apresentação, mas, insistiu que ninguém o sabia a não ser
ele próprio. Também estava bem certo que não mudara a sua a atitude por cinco vezes, e
pediu que a seqüência das suas fosse descrita. O ouvinte cego assim as descreveu:
"Inicialmente estava satisfeito com a oportunidade de apresentar o seu trabalho àquele grupo
especial, e ansioso para que eles o compreendessem. Em segundo lugar, tornou-se suspeito
tanto da clareza do seu trabalho quanto da habilidade da assistência em compreendê-lo.
Terceiro, ficou esperançoso no fato de que se o grupo não podia apreciar os conceitos
científicos, poderia desfrutar e apreciar os detalhes e exemplos concretos. Quarto, perdeu
esta esperança e decidiu que nada mais tinha a fazer a não ser importuná-los durante o resto
da noite. Isto perdurou até quase o fim, quando, quinto, compreendeu e aceitou a impressão
de que não passava de perda de tempo, e de energia, tanto instruir como divertir uma
assistência tão indiferente.
Um modo interessante de comunicação sub-verbal, que os alunos parecem desenvolver,
pode ser encontrado em todas as instituições para os cegos. Um código de linguagem sem
palavras é formado pela tosse convencional, ou ruído de limpar a garganta. O significado
reside, não tanto na forma de articulação vocal da tosse ou do ruído, como ainda mais na
maneira sutil com que é modulada. Esta maneira de comunicação é empregada, bem
extensamente, toda vez que a conversação às claras não seja permitida. Muitas destas
conversações, não formuladas, foram explicadas ao autor. Também participou delas, debaixo
do nariz do professor, que nem sequer suspeitava de sua existência.
Os significados sub-verbais das explosões vocais, raramente se desenvolvem, além da
expressão de uma atitude pessoal geral, tal como a de surpresa ou aborrecimento. Mas,
quando empregadas ponderadamente, tal como os cegos as empregam, constituem formas de
expressão valiosas, nas situações que não permitem quaisquer palavras articuladas
abertamente. Portanto, se um aluno adentra a sala tardiamente para a aula, ele pode, em
benefício de seus colegas, casualmente limpar a garganta, o que significa para eles que
finalmente chegou, e que será admoestado pelo seu atraso, e que não está muito preocupado
com isto. O fato é que os demais ficam, imediatamente, cientes de toda a situação. Em outra
ocasião, o aluno poderá estar agindo como guia, mostrando aos visitantes a instituição, e
outro aluno que entre na sala deseja saber quem está presente. Tal intercâmbio de
significados; como o que vem a seguir, pode ocorrer entre os dois através de uma troca de
tosses casuais e de limpeza de gargantas:
Primeiro aluno: tosse ("Quem está na sala?")
Segundo aluno: uma ligeira limpeza da garganta ("Estranhos em visita à instituição. Pelo
amor de Deus, não desarrume coisa alguma")
Primeiro aluno: fechando a porta atrás de si, com uma tosse ou grunhido ("Perdoe-me, não
o farei, pois estou de saída") .
Portanto, é a entonação, além da situação geral, que proporciona a desejada troca de
atitudes, e, conforme estas determinam, a tosse, ou a limpeza da garganta casual; pode
indicar desafio, triunfo, humilhação, tristeza ou remorso: "Eu quero ", "Eu não desejo", "Por
favor", "Por favor, não", "Venha aqui", "Vá-se embora", "Vá para o inferno", "Você é
completamente louco".
Em resumo, não existe limite para o significado incipiente, aplicado pelo remetente, ou para
aquele que é projetado na comunicação pelo receptor.
Uma investigação em torno da patologia da fala dos cegos progride, apenas um pouco,
antes de esbarrar com o seguinte problema paradoxal: Como é que os cegos, que são tão
sensíveis às qualidades da voz de terceiros, além de cônscios de todos os defeitos da
articulação e projeção da voz e também da entonação significantes, possuem uma variedade
tão grande de dificuldades de fala e mais vozes mal moduladas e pobremente projetadas?
A professora S. M. Stinchfield ( 5.1), realizou um estudo compreensivo e cuidadoso dos
alunos da Escola Pennsylvania para os Cegos em Overbrook e no Instituto Perkins para
Cegos em Watertown, Massachusetts, abrangendo quatrocentos cegos. Ela descobriu que
quarenta e nove por cento deste número possuia alguma forma de defeito na fala.
A fim de justificar tão grande incidência de defeitos de fala, entre os cegos, é necessário
rever quase todo o campo da psicologia e do desenvolvimento da personalidade deles. A
causa primária pode ser encontrada nos fenômenos psicológicos, que existem na constituição
do desenvolvimento da personalidade do indivíduo cego. Como já foi demonstrado nos
capítulos anteriores, a situação do meio ambiente da criança cega compele-a a tornar-se
egocêntrica. Isto significa que o ego é o fator mais importante em toda a situação onde ela se
encontra. Tal organização da personalidade nunca permite uma auto-observação crítica e
objetiva. A pessoa cega, é tal qual a pessoa egocêntrica que enxerga, e se esquece de seus
defeitos sociais, ou então com eles se delicia, emocionalmente, pela simples razão de que lhe
pertencem. Os cegos são tão propensos a não ser críticos de suas vozes e articulação das
palavras, como o são dos pensamentos distorcidos e das idéias que manifestam sob a
influência dos ensinamentos verbais. A fala desleixada e o pensamento frívolo são gêmeos,
nascidos dos mesmos pais, fruto do mesmo meio ambiente.
As condições encontradas, que contribuem de maneira mais específicas para as
dificuldades da fala dos cegos, são as seguintes:
1 - Causas somáticas: Existe uma variedade de causas somáticas, que produzem tanto os
defeitos de fala passíveis de correção, como os irremediáveis. Estes podem ser de natureza
congênita, ou podem ser adquiridos pela doença ou por moléstia. Com a cegueira, ocorrem
deformações mais comuns de natureza nasal, oral ou laringeana; retardo mental; ausência de
controle neuro-muscular ocasionado por raquitismo, meningite espinhal e paralisia infantil; e
instabilidade emocional causada por distúrbios glandulares, em grande parte da tiróide.
2 - Falta de estimulação: Um fator mais específico do meio ambiente, que contribue para a
expressão defeituosa vocal dos cegos, pode ser encontrado na falta de estimulação, nos lares
e nas instituições, para a atividade muscular. Tal falta de estimulação e de motivação para a
atividade muscular desenvolve uma condição de tonus muscular e inaptidão muscular geral
diminuídios. Existe uma notável e alta coincidência de flacidez das mãos, com a fala
defeituosa, sem expressão e inanimada entre os cegos. Uma única atividade manual,
altamente hábil, tal como a de tocar o piano, com horas de exercício diário, não é suficiente
para corrigir a influência desta ausência geral de estimulação e atividade. A flacidez das
mãos e a fala inexpressiva são encontradas em grande número de músicos hábeis. Esta
condição pode ser descrita ainda como uma falta de elasticidade e tônus muscular. A
coordenaqão dos grupos musculares é frouxa, irregular, e direcionalmente incerta. Mesmo o
volume normal de diferenciação da atividade geral e maciça do corpo deixa de aparecer. As
mãos somente, em sua forma especial de treinamento, atingem um alto grau de atividade
inteligente. Como sugere a Professora Stinchfield, este defeito, na situação do meio ambiente
dos cegos, pode ser sobrepujado pelas oportunidades que se multiplicam, para a atividade
nas artes dramáticas, ginásticas e esportes ativos. Até que as escolas para os cegos
encorajem os seus alunos a uma atividade maior e generalizada, continuarão a existir as
dificuldades de postura, expressão oral, e facilidade de movimento de corpo.
3 - Persistência da fala infantil: A persistência de maneiras de falar desenvolvidas durante
a infância, dentro do nível infantil de descriminação perceptiva, é comum tanto aos cegos
como aos dotados de visão. É mais provável que, em virtude de seu meio ambiente social, os
cegos tendam a reter mais as formas infantis da fala do que os que enxergam. Tais defeitos surgem nas formas comuns de balbuciar, omissão e transposição de sons de
letras. Se for permitido que isto persista na fala do aluno, após ingressar na escola, muitas
vezes se constitui em sério obstáculo ao desenvolvimento profissional do canto e da fala.
4 - Imitação: Pouca atenção tem-se dado à influência da imitação da fala entre os cegos.
Pela observação e estudo de casos, é possível sugerir-se, que a imitação da fala característica
dos pais, professores, e amigos, forma um grande fator nas dificuldades da fala dos cegos.
Isto pode ocorrer durante a infância, prolongando-se pela adolescência, quando o jovem
provavelmente imitará as formas de falar e as qualidades da voz de alguma pessoa de sua
alta estima. É uma circunstância infeliz, que isto geralmente ocorra, quando o modelo possui
a maneira de falar e qualidades de voz muito diferentes daquelas do imitador. Quando a voz
e a enunciação de ambos são semelhantes, não há motivo para a rivalidade, porque a
identificação pessoal já é completa nesse sentido. Em casos de fixação de pais e do
professor, tão comuns entre os cegos, esta tendência mal pode ser esquecida. Não se tornará
necessariamente, uma condição patológica grave. Para corrigí-la, basta empregar a visão do
jovem, demonstrando a ele a natureza óbvia de seu defeito e a influência prejudicial sobre o
seu crescimento independente.
O problema terapêutico não é tão simples assim, quando a imitação se verifica num nível
infantil. A organização da fala da criança é muito menos evoluída e tem muito menos para
regredir, do que na fala mais madura do adolescente. As formas defeituosas da fala do
professor e a imitação das qualidades das vozes inconvenientes podem, logo, ser
incorporadas ao desenvolvimento da fala da criança. Enquanto que, no caso do adolescente,
o discernimento e a motivação podem ser suficientes para corrigir tal imitação na criança,
uma completa reeducação de fala será, provavelmente, necessária.
Em algumas escolas para os cegos, tem-se notado até certo ponto, uma forma geral de
algum defeito específico de fala entre os alunos. Em certos casos, é possível identificar a
origem nas formas de fala de algum professor, ou de um aluno mais velho proeminente. A
seleção dos professores e dos funcionários deve ser feita, levando-se em consideração a
importância da. fala. Na seleção dos professores, a fala e a voz devem merecer pelo menos a
mesma consideração que se tem para com a beleza, nas escolas dos que enxergam.
5 - A análise imperfeita do som: Entre as crianças dotadas de visão é muito comum
encontrarem-se palavras mal pronunciadas integradas no vocabulário destas, pela percepção
auditiva imperfeita. A dificuldade corrige-se, automaticamente, em grande parte, quando a
criança que enxerga alcança a habilidade de ler amplamente. Entre os cegos, esta fase de
percepção auditiva defeituosa é uma constante fonte de dificuldade de fala. Como as
crianças dotadas de visão, suas primeiras palavras são percebidas nas conversações das
pessoas. Nesta situação, entretanto, a criança que enxerga tem a vantagem adicional de ver
os lábios, a boca, o queixo formarem a palavra, e daí, a palavra falada para ela possuir mais
critérios de correção do que para a criança cega, que somente percebe o aspecto auditivo da
mesma. Em resumo, a linguagem falada, para a criança que enxerga, é um padrão de
estímulo muito maior do que o é para a cega; da mesma forma, a criança,dotada de visão
progredirá na proporção de sua vantagem perceptiva. Muitas pessoas cegas bem instruídas
pronunciam erradamene um grande número de palavras. A aquisição de palavras é, deveras,
uma ocupação perigosa para o cego adulto a não ser que o faça conscientemente levando em
conta a dificuldade, ou dependendo de absorver as palavras novas de sua própria leitura do
Braille, o que é geralmente muito limitado.
Esta dificuldade perceptiva particular.pode ser observada numa classe de estudantes cegos
que se iniciam numa matéria estranha e nova, como: ciência geral, biologia, ou fisiologia
avançada. Se estes não possuírem livros em Braille, experimentarão grande dificuldade com
a terminologia técnica. Cada indivíduo enfrenta os problemas de maneira característica a sua
própria personalidade. Os mais auto-concientes demonstrarão muita hesitação no emprego
de novas palavras, enquanto os alunos mais corajosos tomam toda a sorte de liberdades com
a pronunciação.
6 - Cinestesia: A imagem cinestésica, muito comum entre os cegos, dá origem a uma
dificuldade de fala que ocorre com muito mais freqüência e com mais persistência do que em
geral se reconhece. A maior parte da estrutura consciente mental do cinestésico consiste de
fotismos visuais de cor, forma, e movimento, cada qual com um significado distinto. O ato
de pensar se verifica pelo processo da observação do campo visual, tanto passiva como
ativamente. Neste processo de pensamento do tipo visual, as palavras são até supérfluas, e,
de fato, uma vez que estas também são formadas visualmente, a sua introdução pode
atrapalhar ao invés de facilitar o processo do pensamento.
É a tendência implícita do cinestésico de proceder, mentalmente, de forma silenciosa e,
quando as palavras se tornam necessárias para se comunicar, ele deve escolher
laboriosamente que símbolo verbal que expressar ou descrever o mais exatamente possível, a
experiência subjetiva visual. Esta situação, muitas vezes, produz uma fala lenta, hesitante e
intermitente, de nível pouco elevado de coerência. O processo trabalhoso de igualar palavras
com fotismos pode ser logrado somente de uma forma - através da seleção rápida e pouco
exigente de palavras, pela qual uma facilidade de fala verbal é alcançada, às expensas da
precisão e da continuidade. Inevitavelmente, isto conduz a uma forma de pensar muito
displicente, quando são utilizadas as palavras, e à falta de verificação do pensamento, atrás
de cada uma delas. Em tais casos é muito dificil melhorar-se a fala, sem prejudicar o
desenvolvimento intelectual.
7 - Amor próprio negativo: Um grande número dos fatores que influenciam o
desenvolvimento da personalidade entre os cegos leva a atitudes negativas de amor-próprio.
Apesar de uma grande parte destas atitudes ser tratada por várias atividades compensatórias,
elas influenciam profundamente todo o comportamento social dos cegos. A fala é apenas
uma das formas pela qual as atitudes deficientes de auto-estima são exibidas. Podem
aparecer pelo gaguejar, tartamudear, fala indistinta e hesitante nos notoriamente tímidos, ou
na fala alta, descarada, e forçada daquele, cuja voz procura compensar a falta de confiança
que sente.
A terapia necessária para a correção completa desta dificuldade é demorada e difícil, pois
exige um processo de reeducação de todo o conjunto de atitudes de auto-estima, o que, em
resumo, se constituiria na reconstrução emocional do indivíduo. Atualmente é tratada de
modo superficial, por meio de exercícios de dicção e expressão. Por este método, é possível
tomar-se uma voz muito fraca, com articulação e pronúncia pobres, e aperfeiçoá-la para uma
boa apresentação pública. O sistema é falho, entretanto, porquanto treina para uma situação
específica e é apenas adequado para aquela única situação. A habilidade em recitar, diante
de uma assistência pública, as linhas longas e intrincadas de "O prisioneiro de Chillon", "A
Batalha da Montanha do Rei", ou a oração fúnebre de César, de nada adiantará ao jovem
orador em condicioná-lo a ser um vendedor competente ou conversador. Os truques de salão
de um cão policial estão no mesmo nível de comportamento inteligente.
8 - A localização aparentemente defeituosa - voz típica de transmissão radiofônica: O
resultado mais específico e comum que a cegueira tem sobre o uso da voz é proveniente da
localização defeituosa do ouvinte. Embora esta condição resulte primordialmente da
ausência da visão, os métodos de correção da fala para os cegos nem classificaram o defeito
especificamente e nem compreenderam a causa do seu aparecimento. Em vez disso, fala-se
muito sobre o ocorrência de vozes pobremente moduladas, e muito se fez para melhorar as
qualidades da voz dos indivíduos.
Na falta de uma denominação melhor e mais cientifíca, basta se falar da voz com este
defeito, muito comum, de projeção, como sendo a "voz de transmissão radiofônica". É uma
qualidade facilmente observada como singular, entre os indivíduos sem visão. A qualidade
desta voz é exatamente a oposta daquela que possui uma pessoa míope, que projeta a sua
voz tão especificamente, que o esforço e direção são audivelmente evidentes e que possui
aquela qualidade de ambigüidade espacial que se verifica no berro de uma ovelha ou no
mugir da vaca quando separada do rebanho. É uma voz sem projeção direcional específica. É
produzida de tal forma, que serve em qualquer lugar dentro de uma moldura tridimensional
de espaço determinado. O que é normalmente julgada maior do que realmente o é.
A razão porque este defeito não tem recebido mais atenção, reside, talvez, no fato de que
não surge em qualquer forma pronunciada nas relações pessoais íntimas tais como a
conversação direta. Nos levantamentos e no trabalho corretivo o método por conferências é
muito aplicado e daí este defeito escapar à observação. O método por conferências abrange
uma situação onde as relações espaciais entre o orador e o ouvinte são percebidas de uma
maneira própria a uma audiência e julgadas corretamente. Nesta situação perceptível
limitada o indivíduo cego pode empregar uma forma adequada de modulação da voz, e desde
que sabe estar o ouvinte à sua frente, a variação de alguns graus na projeção da voz não
envolverá o orador em qualquer situação séria. É nas configurações espaciais maiores e mais
complicadas que o orador cego encontra dificuldade em escolher o volume certo e dar-lhe a
direção precisa. Em conseqüência, ele corta o nó Gordio selecionando um volume de voz que
se conhece como suficiente para o limite superior da situação e o lança de modo atrapalhado
na direção geral em que o ouvinte possa estar localizado, com a esperança implícita que ao
menos algum grau aceitável de sucesso possa ser alcançado. Não é nada surpreendente observar-se, quão rapidamente este tipo de projeção da voz se
desenvolve, após a perda da visão. O0 indivíduo que enxerga, que fala com uma voz bem
modulada e com uma definição perfeita de projeção quando emprega a visão, no escuro,
numa situação espacial estranha, usará imediatamente do mesmo dispositivo de transmissão
utilizado pelos cegos.
É muito difícil para os cegos congênitos, aprenderem, e para os que perderam a visão,
relembrar a discriminação necessária ao orador na projeção efetiva da voz. Por outro lado,
eles podem determinar, pela voz duma pessoa que enxerga, se ela os estão olhando na face,
ou na altura da cintura ou aos seus pés, ou para longe, e utilizam-se desta habilidade para
determinar o olhar visual dos outros nas situações sociais. Não obstante, o hábito de falar de
frente, parece ser o mais difícil para ser adquirido ou mantido após a perda da visão. É
possível treinar um indivíduo cego a olhar aparentemente na face do ouvinte enquanto fala,
mas o treinamento é eficaz apenas para uma distância pequena. Quando esta aumenta ao
ponto da localização dos sons tornar-se imprecisa, o que ocorre a uma distância de 8 a 12
pés aproximadamente, a exatidão da projeção da voz se quebra, e formar modificadas de
transmissão da voz surgirão inevitavelmente.
A "voz de transmissão radiofônica" não é condenável em discursos públicos, pois é própria
para uma situação espacial que envolve uma assistência grande e espalhada. É na sala de
aula, em reuniões sociais informais, recreações ao ar livre, ou em qualquer situação onde
haja um grande fator espacial com localizações definidas de ouvintes, que o defeito se torna
mais aparente.
A voz de transmissão radiofônica torna-se mais evidente nos cegos, após o período infantil
e durante e após a adolescência. Na maioria dos casos, a criança, cega, durante os últimos
anos de idade infantil, possui um espaço auditivo-motor definitivamente diferenciado e
portanto uma melhor localização do som do que durante a adolescência. Esta afirmação pode
ser aceita como mais verdadeira, no caso do cego congênito, do que no de portadores de
cegueira adquirida. A criança até a adolescência, esté construindo um mundo espacial
auditivo-motor cada vez mais eficiente.
Durante a adolescência, entretanto, em virtude da quebra da coordenação motora pelo
crescimento rápido dos músculos e dos ossos, a relação equilibrada entre movimento e som
sofre uma desintegração considerável, com o resultado que o mundo espacial auditivo dos
cegos, naquela idade, está menos adaptado para a projeção da voz do que o fora na idade
infantil.
A voz de transmissão e a falta de orientação que a acompanha produzem muitas daquelas
situações embaraçosas nas lojas e restaurantes nos quais o empregado que enxerga ou
garçonete não podem fazer contato com o freguês cego. Seu comportamento indica um
esquecimento tão completo de suas circunvizinhanças, que o empregado é obrigado a
aproximar-se perguntando: "Que tamanho de colarinho usa seu amigo", ou a garçonete, "Seu
amigo deseja sopa?"
Toda vez que os cegos se queixam da estupidez dos indivíduos que enxergam que fazem
perguntas tão tolas, estão completamente desapercebidos de que são eles, e não os que
enxergam, que são estúpidos, pois não parecem estar, por todos os critérios objetivos,
orientados para a situação social espacial, e até que adquiram a habilidade de parecerem
estar orientados na aparência e no uso da voz, caixeiros e garçonetes serão eterna e
teimosamente indiferentes.
-
Notas
5.1 - Sara M. Stinchfield, Speech Pathology (Expression Co. 1928).
Capítulo VI - Os problemas da vida emocional dos cegos
A demonstração emocional que um grupo apresenta a respeito da cegueira de um de seus
membros é semelhante àquela que ocorre durante um enterro irlandês. Requer uma grande
agitação social para se tornar o acontecimento lamentável e temível que o grupo sente que
deve ser. Quando a orgia da vigília embriagada termina, os parentes desolados têm de se
ajustar a um modo de vida, modificado pela ausência do membro falecido. Mas a
perturbação social que a perda de visão provoca nunca se acaba, mesmo entre os parentes e a
sociedade em geral. Não há cessação das condolências saturadas. Os cegos nunca são
deixados em paz, como acontece com os parentes irlandeses afortunados, para se ajustarem à
organização modificada de vida. Muito fresqüentemente, o indivíduo privado da visão torna-se o mais lamentoso pândego no gozo de suas misérias sociais imaginárias.
A confusão e a incompreensão, com relação às dificuldades emocionais dos cegos,
acentuam uma grande parte dos desentendimentos mútuos entre estes e aqueles com visão.
Além das considerações de ordem prática, o problema representa um exemplo de como, uma
maioria social absoluta, pode impingir o seu comportamento sobre uma pequena minoria,
mesmo contra os fatos da experiência pessoal. Tudo o que é verdadeiro, com relação à
atividade emocional dos dotados de visão, também o é para os cegos. Aquelas diferenças
que se verificam resultam das condições impostas pela cegueira, e não pela falta de visão em
si. O homem que queima os dedos na tentativa de acender o cigarro contra o vento, sempre
maldiz o vento, o fósforo ou a sua própria inépcia, mas nunca o fato de não ser termicamente
anestesiaado. De igual modo, o indivíduo cego que bate com o queixo num móvel sempre
culpa a cadeira, ou a pessoa que a colocou naquele lugar, ou a sua própria estupidez em não
se recordar onde ela se achava, mas nunca se queixa do fato de que não a podia enxergar, a
não ser que seus amigos o tivessem orientado nesse sentido.
As investigações levadas a efeito sobre a vida dos cegos demonstram que os distúrbios
emocionais característicos resultam das situações sociais criadas pela cegueira e não pela
limitação sensorial em si. Nas investigações clínicas efetuadas pelo autor sobre a vida emocional dos cegos, durante
um período de vários anos, dificilmente encontrou-se qualquer prova que a cegueira em si
mesma tenha produzido distúrbios emocionais. Os cegos congênitos, não tendo jamais
experimentado o que a visão representa, não sofrem qualquer sensacão da privação, salvo a
aquelas que se definem através das relaçõoes sociais. Para muitos, será uma revelação saber
quão rapidamente os cegos que estavam habituados a ver podem se ajustar emocionalmente
à perda física da visão, como uma atividade sensorial pura. Eles podem alcançar este ajuste e
ao mesmo tempo permanecer socialmente desajustados o resto de suas vidas. Psicológos,
educadores de cegos, e até os próprios cegos acham este fato muito difícil de ser
compreendido.
A cegueira deve ser encarada na sua verdadeira perspectiva psicológica antes de ser
possível perceber-se o problema real na vida emocional do cego evitando-se as
interpretações populares errôneas que a cercam. A cegueira é quase universalmente
considerada como uma cessação de atividade visual, ou uma ausência sensorial. É preciso
lembrar sempre, que os orgãos do sentido não funcionam de modo mecânico e
separadamente. A súbita ocorrência da cegueira não produz uma falta ou deficiência na
atividade sensorial do indivíduo. O que realmente produz é uma reorganização motora e
sensorial que é alcançada com incrível rapidez. A existência biológica está baseada num alto
grau de adaptabilidade, porém se a privação da visão ocorreu sob uma vida mental
fragmentada em pedaços, a adaptação seria impossível, pois não haveria meios para se
reorganizar. O autor tem estudado aspectos deste problema tanto em animais como em seres
humanos sem visão. Verificou sempre que não permanece uma deficiência funcional, mas
que se processa uma rápida e súbita adaptação, resultando alguma organização diferente de
atividade.
O autor amputou os ossos terminais das asas de um faisão novo, verificando então que ele
não fazia qualquer tentativa para voar. Entretanto, se a operação for efetuada num outro mais
adulto, quase que imediatamente aprende que é impossível voar e passa a empregar as asas
apenas como uma ajuda para correr.
O autor retirou os dentes de cascavéis, verificando que estas imediatamente reorganizam
seu método de ataque. Ao invés de lançar-se de forma a permitir a introdução dos dentes,
elas agarram o adversário, como o faria um cão, com um aperto firme e persistente, e assim
seguro elas apresentam movimentos de torsão e de puxões com a cabeça, anteriormente não
utilizados. Um rato aprende a correr por um labirinto com um alto grau de eficiência, e
continua a apresentar o mesmo recorde anterior quando seus olhos são extirpados. Isto é
conseguido dentro de 24 horas após a operação, mesmo antes de desaparecerem os efeitos
pós-operatórios. Muito a contragosto, o autor tem observado, freqüentemente, como o pônei
do oeste, ao tornar-se manco, sem qualquer experiência, consegue logo após uma meia dúzia
de passadas, adotar um modo de caminhar estranho que se adapta dentro da nova
configuração que o manquejar introduziu em sua locomoção.
É com facilidade semelhante de adaptação que a cegueira, a qual conduz à imediata
reorganização, não produz de per si qualquer distúrbio emocional. De fato, a maior parte da
reorganização é alcançada de forma imperceptível. Somente quando o cego se envolve em
situações sociais reais ou imaginárias, é que experimenta alguma dificuldade emocional.
Pode sentir-se angustiado ao contemplar a necessidade de abandonar alguma forma
particular de atividade social ou tornar-se humilhado ante algumas situações sociais
desagradáveis nas quais a cegueira o colocou. Entretanto, é interessante observar os esforços
solitários daqueles que se tornaram repentinamente cegos, de dominar alguma tarefa familiar
e antiga sob as novas condições impostas pela falta de visão. Deixados a sós, não
demonstram qualquer evidência de distúrbio emocional. Tome-se o exemplo do indivíduo
que acabou de perder a visão, procurando barbear-se pela primeira vez. Sem a interferência
de quaisquer fatores sociais, tais como a presença imediata de parentes de cara amarrada,
ansiosos e solícitos, tem-se observado freqüentemente que o principiante está entretido com a
novidade e dificuldade da operação.
Os membros da sociedade dotados de visão, e a atitude amor-próprio que induzem nos
cegos, são totalmentereponsáveis pelos distúrbios emocionais existentes nestes como um
grupo. A maneira pela qual os amigos dotados de visão, os parentes e os estranhos
apresentam-se aos cegos os induz a uma de duas formas de desajustamento emocional.
Os cegos devem, ou conservar as suas atitudes psitivas de amor-próprio, resistindo
emocionalmente às sugestões sutís e nem sempre tão sutís, de inferioridade orgânica e
social, ou então aceitar a avaliação social e pessoal dos dotados de visão, sacrificando em
conseqüência o seu amor-próprio. Os primeiros mantém o seu respeito próprio tornando-se
socialmente detestáveis. Os segundos obtém aprovação social trocando suas atitudes de
amor-próprio pela conformidade com as atitudes e conceitos dos dotados de visão. Tornam-se precisamente os deficientes que a sociedade julga serem os cegos. É raro o cego que
emocionalmente caminha em meio campo, conformando-se externamente, quando assim se
faz necessário, para a avaliação dos dotados de visão, e ao mesmo tempo conserva o seu
respeito-próprio virando emocionalmente o seu nariz àqueles que gostariam de ajudá-lo,
conseguindo inadvertidamente a sua completa destruição.
É difícil, senão totalmente impossível para aqueles dotados de visão mais chegados aos
cegos, compreender emocionalmente que estes não estão sofrendo privação tormentosa pela
perda da visão. Muitos cegos também manifestam a sua objeção pela posição assumida
neste capítulo, de que a inabilidade para ver não seja a causa específica do distúrbio
emocional. Eles adotaram, de bom grado, a atitude de seus colegas de visão.
Os dotados de visão concebem os cegos como levando unicamente uma vida de grande
anseio de rever novamente as belezas da natureza. É inconcebível para eles que os cegos não
desejem dar dez anos de vida para uma última olhada saudosa a um por-de-sol maravilhoso,
ou a uma paisagem com toda a sua grandeza de colinas, vales e montanhas - oh sim com
aqueles pássaros e flores! Acima de tudo, o que eles não dariam para rever os rostos de seus
entes queridos?
Este conceito monoidéico consiste, quase, numa idéia fixa socializada com
os dotados de visão, e é algo de que os cegos, dificilmente tem possibilidade de escapar. Se
eles concordam com o conceito por palavra, pensamento e ação, constituem uma prova
positiva de sua correção. Se negam a implicação contida nas palavras e atitudes dos dotados
de visão, são considerados literalmente como mentirosos ignorantes, e são recompensados
pela sua independência e personalidade com o sofisma cristão de que estão enganados a
respeito de si mesmos e possuem almas corajosas por apresentar tal embuste. Pelo contrário, os estudos sistemáticos demonstram que não existe desejo específico de ver,
pelo simples fato de ver. Não se verifica isto nem naqueles adultos recentemente cegos.
Antes, muitos sentiram como se tivessem obrigação de ter tal desejo que era um tanto
estranho e desusado não estarem emocionalmente perturbados. As perturbações mocionais
ocorrem em relação a outras condições que os colocam em decidida desvantagem entre seus
colegas. Tomemos, por exemplo, um caso concreto. Suponhamos que um cego experimente
alguma perturbação emocional ao escolher uma gravata de seu guarda-roupa. Presume-se
que, se pudesse ver a gravata, a reação emocional provavelmente não aconteceria. Mas ficará
este indivíduo mais perturbado por não poder ver a gravata ou porque teme escolher uma
que, aos outros, não aparecerá bem com o terno que está usando? O fato é que ele não pensa
jamais na eventualidade de ver a gravata, nem mesmo de consultar alguém com relação à cor
e às listas. É como a cascavel sem os dentes; ele adota um outro ataque. O ajustamento, tão
difícil para ser compreendido pelos dotados de visão, é alcançado rápida e facilmente na
cegueira, ou, de fato, em qualquer outra forma de perturbação sensorial ou motora.
Os cegos, quase que geralmente, reclamam da atitude tomada contra eles pelos dotados de
visão. As reclamações variam desde uma espécie de tolerância humorística para com estes
até o protesto emocional violento que muitos exprimem em sua vida imaginária. Entretanto,
é extraordinário dtescobrir-se a extensão da aceitação de atitudes e avaliações por eles
próprios tão condenadas. O sentimento de desapontamento e ressentimento que os cegos
exprimem em relação às atitudes e às m ximas desgastadas dos dotados de visão são
paradoxais quando eles próprios as repetem universalmente.
É desalentador encontrarem-se pessoas cegas proeminentes se acovardando a fim de
aumentar a popularidade e vendagem de seus escritos. O cego mendigo de rua, com o seu
distintivo, trai menos seus colegas do que aqueles escritores que publicam, para o consumo
expresso de um público choramingas, dotado de visão. Os lamentos heróicos de Clarence
Hawkes ( 6.1) com relação a sua cegueira e o exibicionismo de Helen Keller sobre os prazeres
extáticos do som negado e da beleza visual, confundiram mais os dotados de visão do que
qualquer volume de trabalho científico possa provar.
A verdade sobre o assunto está no fato de, quarenta e oito anos após ter ficado cego,
Hawkes está desfrutando uma quantidade muito maior de acuidade visual do que no dia em
que perdeu sua visão. Os numerosos e maravilhosos livros que publicou, descrevendo uma
grande variedade de vida animal demonstra que adquiriu uma vasta complexidade de
conceitos visuais que não poderia jamais possuir aos quatorze anos de idade. Em aditamento
ao crescimento e desenvolvimento de suas imagens visuais concretas, sua percepção auditiva
assumiu uma completa estrutura visual. Sem dúvida, o tato, a gustação, e o olfato significam
mais para ele em conseqüência das imagens visuais. Diz ele: "De fato, possuo a capacidade
muito apurada de visualizar quadros por palavras, ou qualquer coisa que se assemelha a um
quadro; portanto, quando outros pedem um lápis ou uma escova, com um golpe de
imaginação, consigo o mesmo resultado" ( 6.2). O lamento carinhoso sobre a cegueira faz a
sua autobiografia parecer mais real aos dotados de visão do que aos cegos.
Helen Keller, em seu alvoroço sobre a beleza visual faz lembrar uma pessoa tão ignorante,
que ficasse discursando extensamente sobre os prazeres e as maravilhas do uso de seis
pernas para se locomover ao invés de duas. Entretanto, a diferença reside no fato desta
pessoa ignorante poder se utilizar de sua imaginação para as extravagâncias possíveis a uma
existência hexapodal, ao invés de depender daquilo que algum inseto superior poderia lhe ter
dito.
A atitude popular dos dotados de visão exige que os cegos sejam imbuídos de tristeza e
desespero por não poderem ver, ou pelo menos que façam uma tentativa de parecerem
desanimados, encontra expressão dramática na frase autística do "mundo da escuridão" ( 6.3).
A conclusão de que os cegos devem viver num mundo de escuridão decorre do raciocínio
errôneo dos físicos seguidores de Newton, que, diga-se, nunca foi bem ajustado para explicar
os fenômenos visuais. Se uma pessoa é cega, não se apercebe da luz, e se a negrura, ou
escuridão é o oposto da luz, então os cegos vivem num mundo de escuridão completa. A
implicação está em que os cegos que desejam ver tão desesperadamente confrontam-se, pela
sua inabilidade, com um mundo de escuridão empírica, repleto com todos os horrores da
melancolia, do medo, da solidão, e tudo o mais que os temerosos, dotados de visão,
experimentam no escuro. Isto é tão falso psicológica como fisicamente. Os cegos não se sentem mais infelizes em seu ambiente visual desfavorável e estúpido do
que qualquer outro grupo de pessoas que se defronta com uma situação embaraçosa
semelhante.
O autor investigou esta questão profundamente, também sob o aspecto físico, para
determinar se existem quaisquer fundamentos para a existência de um mundo de escuridão,
tanto para os cegos como para os dotados de visão. Verificou-se ser impossível a vida tanto
para uns e outros num mundo de escuridão. O mundo escuro sem qualquer luz não
permanece escuro: torna-se um mundo cinza neutro, sem luz, ou escuridão. O mundo
empírico escuro dos completamente cegos de nascença consiste num vazio visual no que diz
respeito a sua natureza. Isto deve fazer o público dos dotados de visão duplamente
compadecido dos cegos, porque estes vivem não somente num "mundo escuro", como
também se tornam incapazes de apreciar as misérias da escuridão, uma vez que esta não
existe. Em todos os casos de visão parcial em que a retina é sensível à luz, os cegos, como
aqueles dotados de visão, podem perceber a escuridão, e, assim como os últimos,
experimentam graduações de luz e escuridão em proporção à estimulação física. Aqueles,
entre os cegos, que são privados de retinas funcionais não.percebem nem a luz e nem a
escuridão. Provavelmente vêm exatamente os que os dotados de visão enxergam, quando se
acostumam ao que se denomina de adaptação à escuridão, um campo visual cheio de um
"cinza" neutro. Aqueles indivíduos cegos, com retinas que são incapazes de estimulação
externa, mas que comportam uma atividade endófita tem o seu mundo de escuridão formado
de experiência visual em cor e movimento, equivalente aos fogos de artifício numa festa
popular.
O autor, não faz muito tempo, teve uma excelente oportunidade de estudar a adaptação à
escuridão dos dotados de visão. Um grupo destes indivíduos foi conduzido para dentro de
uma caverna a uma distância de três milhas sob uma montanha, havendo uma cortina de
mármore sólida, entre eles e a luz. As luzes foram apagadas por mais de uma hora. Ao fim
deste período, ninguém, entre o grupo, pode informar que estivesse experimentando a
escuridão. O campo visual estava tão livre de uma experiência de escuridão, que dava a
impressão dos objetos estarem visíveis. Sob circunstâncias normais, quando o campo visual
se encontra tão livre da escuridão como o deles se tornou, teriam podido ver os objetos de
forma distinta.
As diferenças distintas, que caracterizam as vidas emocionais dos cegos e dos dotados de
visão, surgem da necessidade de serem encontrados de diferentes modos, os seus meios
ambientes social e físico. Nem o cego nem o vidente reage, racional e emocionalmente, a
qualquer destas fases, de forma separada e distinta. Por exemplo, pode ser difícil ser
apresentado a um estranho. Encontrar o seu cachimbo pode ser igualmente difícil. Uma
situação é tão social quanto a outra; fisicamente objetivas, elas se equivalem. "Espero que
ela me aperte a mão se eu a oferecer e espero que não tente se eu não a oferecer". "Espero
que ninguém me diga onde está meu cachimbo". "Não imagino onde a sua mão possa estar".
"Estará mais abaixo ou mais acima?" "Teria deixado meu cachimbo sobre o consolo, sobre a
minha escrivaninha, ou perto da lareira?" Em qualquer dos casos, a situação será mais social
do que física, e qualquer uma delas é mais difícil de ser enfrentada pelos cegos do que o
seria para os dotados de visão.
Um problema importante, na vida emocional do cego, é o da influência que o esforço físico
adicional exerce sobre a alteração de sua suscetibilidade. Muitos cegos consideram o esforço
empregado como uma ponte muito importante de distúrbio emocional, e defendem este ponto
de vista com muitos exemplos e explanações. Suas conclusões, contudo, correspondem à
análise incompleta da situação total, pois em todos os exemplos dados, os distúrbios
emocionais têm, como fundamento comum, o aspecto social da situação em que o cego se
encontra. Não importa que, em muitos casos, a situação social se apresente apenas na
imaginação do sujeito como, por exemplo, quando ele compara a sua atividade e grau de
realização com os dos dotados de visão ou com a sua própria habilidade antes de perder a
visão. Ambas as situações sociais reais e imaginárias implicam em problemas, que não são
causados pelas condições físicas objetivas, contra as quais ele está lutando. Entretanto,
existirá uma possível exceção para esta perspectiva? Pode o mero esforço adicional que a
cegueira exige para dominar o meio ambiente fisico, produzir o distúrbio emocional?
Estabelecendo-se que a fadiga produz atividade emocional na ausência de causas sociais,
então será possível a provocação de distúrbio emocional entre os cegos causado por aquele
esforço extra de si próprio.
Uma vez que os cegos são obrigados a dispender mais esforço, nas tarefas mais simples, do
que os dotados de visão, segue-se que aqueles se encontram constantemente mais perto do
ponto de fadiga do que estes.
A pessoa dotada de visão desenvolve a sua atividade rotineira de forma automática, tendo a
sua mente ocupada com assuntos centenas de milhas distantes. O cego raramente pode
dedicar-se a sua rotina, esquecido da vizinhança material imediata. Ele deve estar sempre
extremamente consciente da imediata situação, pois aquilo que é simples, quando visto,
torna-se altamente complexo, ao ser necessário utilizar-se do tato e guiar-se por movimentos
e ruídos corporais a fim de estabelecer contato. Cada esquina que se dobra e cada maçaneta
que deve ser encontrada exige o encontro pessoal, consciente. Apressar a pessoa cega, e
assim destruir as relações conhecidas entre o movimento do corpo e as posições dos objetos,
é introduzir total ineficiência e completa confusão na sua orientação com relação ao seu meio
ambiente.
A pessoa cega defronta-se, repetidamente, com um tipo de situação que sempre ocasiona aborrecimento, e, com mais freqüência, sérios distúrbios emocionais. Isto acontece, quando
ela deve abandonar seus métodos próprios pelos quais manipula alguma parte desajeitada de
seu meio ambiente visual de forma conveniente, substituindo-os pelo procedimento
socialmente aprovado pelos dotados de visão. Um simples exemplo ilustrará este ponto.
Desejando encher um copo d'água e estar seguro de que não transbordará, pode-se fazê-lo
conveniente e inofensivamente mantendo um dos dedos sobre a borda do copo até que a água
o alcance. Este método é incorreto visualmente pela simples razão de que o dedo pode ser
visto, sendo necessário depender-se do senso auditivo confundido pelas vozes balbuciantes
dos convidados. Existe a possibilidadede que o copo transborde ou não ao ficar cheio. Cada
dia, inúmeros atos devem ser executados desta forma, mais ou menos desajeitada,
simplesmente para salvar a respeitabilidade visual e aceitação. A necessidade de ajustar-se a
este tipo de exigência social induz, às vêzes, a um esforço emocional intenso, à consciência
de estar sendo vigiado. Esta tensão emocional, muitas vezes, alastra a todo o
comportamento e adquire a intensidade de uma obsessão ou fobia.
O autor investigou, nas escolas para os cegos, o resultado do excesso de supervisão e
cuidado do treinamento em prol da respeitabilidade visual. Um grande número de estudantes
cegos é constantemente perturbado pela sensação de estar sendo observado e vigiado. Esta
persiste, até mesmo na intimidade de seus próprios aposentos. Apesar das crianças saberem
que isto é impossível, ainda assim sentem como se seus professores e supervisores pudessem
olhar em volta dos cantos, na escuridão total e até mesmo através das paredes. Muitos
alunos de escolas para cegos relatam que esta fobia de estar sendo vigiado persiste durante
anos, após terem deixado a instituição.
A literatura autobiográfica dos cegos cuida, de forma generosa, da ocorrência e do efeito
emocional dos pequenos embaraços e frustrações que a cegueira lhes impôs. Descrevem eles
como a necessidade de não fazer coisas que muito gostariam de fazer, ou de fazer outras de
forma bem diferente da desejada, produz aborrecimentos de intensidade e graus variáveis.
Estas formas de distúrbio emocional, enquanto sejam interessantes para o público dotado de
visão, pouco diferem das que são experimentadas constantemente pelos indivíduos dotados
de visão, também não sendo mais intensas. A vida de um indivíduo que enxerga não é de
forma alguma uma extensão contínua de atividade fácil ininterrupta. Este, podemos verificar,
está sujeito a sofrer mais distúrbio emocional por causa de um parabrisa congelado e
nublado do que uma pessoa cega ao se perder quando se dirige para o armazém da esquina.
Uma pessoa de visão sempre fica mais embaraçada do que uma sem, quando pisa em uma
poça de barro ou quando chama pelo nome errado a uma pessoa. Isto se deve ao fato de
estarem menos acostumados a tais dilemas. A base para comparação, quanto às pequenas
frustrações, é relativa. O fato de que ocorrem com mais freqüência entre os cegos cancela-se
pelo motivo de se tornarem mais habituais. O cego inteligente evita muitos aborrecimentos
desta espécie, substituindo-os por outras formas de atividade. Se é impossível ler o matutino
quando é entregue, o cego inteligente simplesmente reconhece a situação e se ocupa de outra
coisa até que um leitor apareça. Raramente se verifica uma situação na qual o
comportamento inteligente não possa oferecer um substituto para os planos frustrados.
Proteger o cego das suas obstruções e frustrações é prejudicial ao desenvolvimento normal
de sua personalidade. A engenhosidade que se desenvolve, quando ele enfrenta tais
situações, torna-se uma fonte importante, de treinamento e de sentimento próprio positivo.
Aqueles aos quais é poupada grande parte da dificuldade de enfrentarem seus próprios
problemas ou que não tomam conhecimento do serviço que lhes está sendo prestado, ou não
tenham habilidade de resolver suas dificuldades de forma inteligente, perdem muitos desejos
e se acomodam na segurança de uma quase que completa inatividade.
Um dos aspectos de atividade frustrada, que é mais importante, entretanto, tanto na vida do
cego, como na do dotado de visão, é aquele que necessita, pela escolha inteligente, da
mudança completa de um plano de vida, ou de uma grande demora em sua execução. Os
cegos, sejam ou não bem sucedidos, raramente se encontram fazendo as coisas que mais
desejariam ou para as quais estejam mais capacitados. As circunstâncias obrigam-nos a
desistir de todo um programa de vida. Este fato é comumente aceito como inevitável entre os
cegos adultos, mas, muito mais do que se supõe, é verdadeiro para aqueles que são cegos de
nascença. A educação inspiradora proporcionada pelas instituições para os cegos provoca
logo cedo no aluno, o desenvolvimento emocional de ambições, que nunca poderá satisfazer
pelas oportunidades limitadas que possui. Somente algumas das crianças dos institutos, que
são incitadas a dominar a afinação de pianos tornam-se profissionais afinadores
independentes. Somente alguns daqueles treinados para trabalho musical chegam a alcançar
sequer uma fração do alvo que motivou os anos de prática. Poucos estudantes universitários
cegos têm a oportunidade de empregar os seus conhecimentos superiores em atividades
vocacionais.
As frustrações desta natureza produzem uma instabilidade profunda e enraigada, e é
necessário uma inteligência muito superior para reorganizar a vida, sob qualquer forma de
atividade salutar quando se sabe que as "chances" são de 10 para 1 e que não há escolha.
Existe uma grande literatura biográfica que elogia as excelentes qualidades pessoais
daqueles indivíduos cegos que obtiveram sucesso no mundos dos dotados de visão. Estes são os que o poder do esforço pessoal e aplicação de uma inteligência superior,
conseguiram esculpir um nicho respeitável para si mesmos na estrutura econômica e social.
O psicólogo social pode reconhecer outra classe geral de cegos, que são tão interessantes e,
talvez, de mais valor para estudo. São aqueles que, a custa do esforço pessoal e pela
aplicação da inteligência, também alcançaram para si mesmos uma posição de segurança
econômica, sem o acompanhamento usual de aprovacão social.
Os sucessos e realizações do
cego mendigo, músico de rua, vendedor de lápis e comerciante de cordões de sapato,
raramente ou nunca encontram o caminho entre os mais importantes no mundo dos cegos. A
persistência da mendicância, após um século de educação organizada e de treinamento
industrial, revela o fato desdenhoso de que, até agora, nem o treinamento vocacional nem a
atitude do público dotado de visão tem progredido suficientemente para permitir a absorção
pela indústria desta classe mendicante. Talvez os dotados de visão sejam demasiadamente
indulgentes em sua efusão emocional sob a forma de moedas de níqueis e tostões e, talvez,
os próprios cegos sejam desdenhosos de sua classe de párias. O que quer que tenha
prolongado a prática da mendicância pelos cegos, e sem levar em conta a condenação que os
cegos respeitáveis mantém para com os mendigos menestréis de esquina, constituem estes a
classe mais admirável dos cegos indigentes. Existe uma diferença psicológica entre o
indivíduo que passivamente, sob a proteção de um teto que lhe foi fornecido, recebe a ajuda
pública e o que, por livre escolha, vai à rua e ganha com o seu acordeão ou um punhado de
lápis, aquilo que teria recebido, mais confortavelmente, da sociedade. Esta é uma forma
sobremaneira ativa, um método mais complexo de ganhar a vida, exigindo assim um tipo
mais elevado de inteligência e de orgaanização de atividade. Não são todos, que podem
repudiar os efeitos do treinamento social suficientemente ao ponto de assumir o papel de
mendigo, mesmo que seja uma ocupação lucrativa. Não é uma tarefa fácil a de aguentar a
inclemência das quatro estações nas ruas da cidade. Entretanto, um grande número de cegos
prefere esta profissão às mais fáceis tarefas de oficina de trabalho e da respeitável arte de
vendas.
A psicologia social do mendigo cego é pouco diferente da psicologia e ética do moderno
homem de negócios. Tanto um como o outro são bastante inteligentes para perceber e
manipular a situação social de tal maneira e trazer um lucro financeiro para si próprio. Pouco importa que esta situação represente o desejo humano de experimentar compaixão ou
que seja a exigência por pasta de dente, ou por tratores. O homem cego anuncia as suas
mercadorias pela sua presença pessoal e pelos estridentes acordes de sua harmônica. A
propaganda lota a matéria impressa de nossos jornais e monopoliza o ar através do rádio.
Para alguns, ambos podem ser inconvenientes públicos.
O mendigo não é tão necessitado e miserável como aparenta ser. Nem tão pouco a pasta de
dentes pode ser a panacéia representada. Talvez a oportunidade que se oferece ao comprador
de adquirir um coração cheio de probidade e um chapéu pleno de amor-próprio positivo seja
uma necessidade social: assim sendo, o cego mendigo não deve ser eliminado dos negócios
pelo serviço social organizado, no qual somente o filântropo milionário possa sozinho
entreter-se na compra destas utilidades. A moeda que passa do bolso para o copinho
representa uma relação muito mais íntima entre o produtor e o consumidor, e deveras não
incorre em despesas gerais meticulosas.
A sociedade apresenta um problema de dupla personalidade para o mendigo.
Primeiramente, ele deve ter um forte motivo para ganhar a sua vida através de seus esforços
próprios ao invés de entregar-se à caridade organizada. Ao mesmo tempo, torna-se
necessário prosseguir, diante da desaprovação social, para alcançar o objetivo construíido
pelo conjunto admirável de suas motivações. Muitos mendigos cegos conseguem alcançar
personalidades relativamente sadias sob as condições desfavoráveis que astas circunstâncias
lhes impõem, mas um número bem maior deles sofre desintegração ou nunca chega a
desenvolver personalidade adequada. Entretanto, existem mendigos que possuem as
qualidades necessárias e tão raras para os cegos. Trabalhar nas ruas dá a alguns qualidades
excelentes de persistência e audácia correta, de desafio e rebelião. Naturalmente, nenhuma
destas características é exibida de maneira profissional pelo mendigo, pois será desastrosa
para o negócio. Tal comportamento não seria compatível com o conceito da personalidade do
cego, que lhe atribui o público dotado de visão. Somente quando está fora de serviço é que
pode apresentar seu próprio "eu", e, assim como o médico praticante e o juiz, ele se dispõe a
assumir uma aparência prof issional, para poder passar o resto do dia como ele próprio.
Antes de condenarmos o mendigo cego por algo mais que não o de ser um espetáculo
desagradável e notoriamente desafinado e, antes de desalojarmos sua exploração de negócio
de longa data, pelo serviço social organizado, poderemos aprender muita coisa de valor
psicológico.social pelo estudo dos casos a respeito das personalidades, dos objetivos, e da
filosofia da vida deste tipo e a respeito das verdadeiras razões sociológicas porque esta
profissão ainda prevalece.
Sr. Ronk era um músico de rua, próspero aos quarenta e oito anos de idade. Trabalhava nas
cidades e outras localidades menores do oeste central, nos estados entre as montanhas e na
costa do Pacífico. Seu itinerário não incluia os estados situados a leste e ao sul. Os primeiros
apresentavam muitas restrições legais, ou onde estas não existiam, muita concorrência. No
setor sulino o negócio tinha sido destruído pela concorrência dos negros.
O Sr. Ronk possuia casa própria num dos estados da costa do Pacífico; ali residiam sua
esposa e filhos, e era onde permanecia de férias durante a estação inclemente do inverno.
Durante este descanso das ruas, servia uma pequena clientela no negócio respeitável, porém
menos lucrativo, de afinação de piano. Esta forma de recreação, entretanto, estava
diminuindo rapidamente face ao progresso contínuo do rádio.
Em sua própria comunidade, ou em qualquer momento que se encontrasse desocupado
profissionalmente, o sr. Ronk era ativo, com a aparência inteligente de uma pessoa com bom
senso de humor e com uma pronunciada seriedade de propósito. Era dedicado ao seu lar e à
família e tinha a reputação de ser pontual e bom pagador entre os comerciantes da
comunidade. Em casa, ou em serviço, não mantinha filiações religiosas e nem ligações
políticas. Não voltara a votar desde a primeira vez logo após seu 21º aniversário. Relatamos
a seguir a sua própria descrição de como se tornou mendigo e porque o é e sempre o será.
O pai de Roy Ronk era um trabalhador rural, um homem para todos os serviços na lavoura.
Sua mãe faleceu quando ele tinha 9 anos. Aos catorze anos perdeu a visão de um olho
provocado por um fragmento volante de aço incandescente de uma bigorna, numa oficina de
consertos do vizinho; e a visão de outro resultante da subseqüente oftalmia simpática.
Ingressou no ano seguinte numa escola estadual para cegos. Teve bom desempenho nos
assuntos literários mas não se distinguiu. Adquiriu a habilidade de seu pai em serviços de
consertos, e tornou-se bastante competente nas tarefas manuais da escola. Desenvolveu uma habilidade musical medíocre e dominou a arte de afinar pianos.
Dois anos antes de Roy completar o curso, seu pai contraiu febre tifóide e faleceu. Quando
chegou a época de sair da instituição, Roy não possuía um lar e nem recursos para manter-se. Foi convidado, insistente e entusiasticamente, para morar com uma família de primos em
segundo grau. Alí, durante um ano, procurou ganhar para a sua pensão ajudando no serviço
da fazenda, confeccionando cestas e redes e armando algumas cadeiras. A comunidade rural
oferecia pouca oportunidade para ocupar-se da afinação de pianos; nem apresentava um
mercado conveniente para as mercadorias feitas à mão. Ao fim de um ano, quando se tornou
evidente que era um fardo econômico indesejável aos seus parentes, Roy procurou outra
residência.
Um amigo de seu pai, pessoa arguta e carinhosa, convidou Roy a trabalhar para ele. Era um
gerente de bar moderadamente próspero em uma pequena cidade. O benfeitor estava em
dúvida quanto ao que poderia fazer por Roy, mas, até que descobrisse, deu-lhe um quarto de
fundo para dormir e permitiu-lhe inteira liberdade pelo local, enquanto observava o seu
ajustamento à nova situação.
Nos fundos do salão do bar encontrava-se um piano usado que tinha caído num estado de
desarranjo. Roy emprestou as ferramentas necessárias da loja musical local e, após o horário
de funcionamento, consertou o instrumento. Não demorou muito para recuperar a maior
parte de sua habilidade musical, que tinha sido lamentavelmente negligenciada durante o
ano anterior. Durante as noites entretinha os fazendeiros que se distraíam fàcilmente,
tocando e cantando. Através da influência de seu benfeitor conseguiu um certo número de
pianos para afinar. No bar, o campo de suas atividades foi-se expandindo gradativamente,
inicialmente judando o proprietário a lavar os copos durante as horas e movimento da tarde e
da noite, e posteriormente escovando as mesas de bilhar, varrendo as dependências após o
fechamento, gelando as serpentinas da cerveja, e fazendo sanduíches para o lanche gratuito.
O empregador de Roy pagava-lhe generosamente por este trabalho a mais.
Roy tornou-se de considerável valor para seu benfeitor além do trabalho que executava. A
sua habilidade para entreter e a sua destreza manual transformaram-se em objeto de
curiosidade, uma atração para os fazendeiros de boa vontade, tão grande quanto o era o gato
engaiolado existente no bar do salão concorrente.
Esta ligação atraente continuou até o outono, quando as eleições da estação introduziram a
lei seca e deixaram tanto Roy, como seu empregador, sem trabalho.
Roy tinha experimentado o sabor da luta econômica e apesar desta primeira colocação ter
terminado de forma abrupta, a experiência adquirida deu-lhe uma riqueza de amor-próprio
positivo e uma quantidade respeitável de dinheiro. Seu sucesso anterior fez com que ficasse
seguro de que poderia se estabelecer numa posição semelhante na séde do município
vizinho, que era uma cidade maior e que não estaria sujeita à lei seca durante muito tempo.
Muitos ex-garçons de bar sem colocação em suas comunidades como opção, tiveram a
mesma idéia, com o resultado que aquela municipalidade ficou saturada de mão de obra de
individuos dotados de visão. Apesar da recomendação que trazia de seu empregador anterior
Roy era recusado com a alegação de que não havia disponibilidade ou então era-lhe
claramente dado a entender que nenhum vagabundo cego era desejado no local. Enquanto
aguardava esperançoso uma oportunidade, Roy voltou a sua atenção para a afinação. Para o
seu desapontamento verificou que a cidade já possuia dois afinadores, um dotado de visão e
um cego. Não demorou muito para que as suas economias ficassem seriamente abaladas
pelas suas despesas de sustento. Não achava nada para fazer, mesmo depois de passar
semanas procurando, e o fazia entusiástica e resolutamente.
Roy não podia pensar em retornar para a hospitalidade nem de seu empregador anterior e
nem a de seus parentes. Resolveu morrer de fome primeiro. Um dia de jejum foi suficiente.
Entretanto, não foi o bastante para quebrar sua resolução de nunca mais voltar aos parentes,
mas sim para torná-lo furiosamente raivoso e rebelde para com todo o mundo. Não podia
compelir-se a pedir ajuda ou alimento a qualauer pessoa, mas com o seu último níquel
tomou o chapéu e a bengala e dirigiu-se a um bar onde amparou o seu amor-próprio com
dois copos de uísque e um sanduíche. Alcançou o centro do distrito comercial caminhando
algumas quadras, disse em voz alta encostando-se numa esquina, para si mesmo, "Se preciso
viver como pensas que devo, por Deus, deves pagar para isto". Começou a cantar, e quanto
mais cantava mais furioso ficava. Quando julgou que tinha esmolado o suficiente para
adquirir uma passagem para uma cidade maior mais próxima, desapareceu.
O sr. Ronk nos conta que nunca mais trabalhou naquela cidade, e que nunca o fará,
receando reencontrar aquele rapaz tolo, que deixou para trás. A sua primeira tentativa não foi lucrativa, pois, como dizia,. "Eu parecia por demais
zangado e independente para ser objeto de caridade. A gente deve adquirir aquela cara de
humildade cristã antes que comecem a pingar as moedas". Mas aprendeu rapidamente os
truques do ofício. O que não aprendeu por si, obteve dos outros. Agora, após anos de prática
profissional, ele possui um cabedal de psicologia social prática, que causaria muita inveja a
um graduado de uma escola de administração de empresas.
O sucesso ou fracasso de Ronk, como se queira denominar, demonstra, plenamente, uma
ordem elevada de inteligência. Foi bastante astuto para aperceber-se de sua verdadeira
relação social. Aceitou a situação de maneira objetiva sadia, que se transformou no segredo
de seu sucesso material e no desenvolvimento de sua personalidade. Através da escolha
inteligente do que, para muitos seria uma situação impossível, Ronk preservou para si,
aquilo que a maioria dos cegos não conserva sob circunstâncias muito mais favoráveis.
Escolheu, como cada ego inteligente deve escolher para resistir à desintegração, a situação
na qual pode manter a sua independência pessoal.
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Notas:
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6.1 - "Algumas pessoas são felizes, o destino e as estrelas parecem enviar-lhe boa fortuna,
mas não posso lembrar de ter tido o que se pode chamar de um golpe de sorte, em toda
minha vida. Lutei todas as polegadas do caminho. Nenhum mineiro cavando ouro no Ártico
gelado com o termômetro a 60 abaixo de zero, e a terra gelada até o ponto que só Deus sabe,
lutou e suou mais do que eu. Nenhum soldado, na marcha cansativa, carregado com seus
pesados fardos e armas, com a lama até a metade dos joelhos teve que lutar como eu. Meu
sucesso, o parco que obtive, foi literalmente cavado das sólidas rochas da adversidade, com
dedos nús e ensanguentados". Clarence Hawkes, "Hitting the Dark Trail", (Henry Holt e Co.1915 ). p. 100 com permissão.
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6.2 - Ibid p. 6.
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6.3 - Os títulos de quinze revistas publicadas, em relevo e em inglês, empregaram algumas
variações, deste conceito, tais como: "Holofote", "Farol", "Alvorada", "Iluminador", "Raios
de sol para o cego". Muitos cegos aceitam o conceito de um modo mais pessoal., e este pode
ser encontrado freqüentemente em seus rascunhos biográficos. Os seguintes títulos são
ilustrativos: "'Saindo do escuro", "Descobrindo a trilha escura", "Um desafio à escuridão".
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6.4 - Um estudo da imagem cinestésica do aluno com cegueira adquirida, nas universidades
residenciais, mostra que o fenômeno desempenha uma parte muito importante na vida visual
daquele que ficou cego.
Capítulo VII - O comportamento sexual dos cegos
A discussão sobre sexo é difícil e perigosa, mesmo quando o assunto é abordado
cientificamente; e os riscos aumentam quanto mais específica ela se torna. Três dificuldades
básicas terão que ser enfrentadas na apresentação de qualquer estudo que se refira à vida
sexual dos cegos. Há o perigo de se antagonizar indevidamente os educadores de cegos, que
acharam conveniente adotar aquela atitude, em relação ao sexo, de que é melhor deixar
deitado um cachorro adormecido. Existe a possibilidade de que um interesse popular nocivo,
possa ser despertado pela vida sexual desta classe especial, como o que já foi agitado no
caso dos artistas de cinema, do sacerdócio, e dos mórmons. Existe o risco de que qualquer
discussão, salvo as mais inócuas, dos problemas sexuais dos cegos, possa ofendê-los,
quando não possuem nem uma atitude sadia em relacão a sua vida sexual, nem
compreendem a natureza de seus próprios problemas.
A maioria das informações relativas à vida sexual dos cegos é bem diminuta e, apenas
parcialmente, compreendida. Todas têm sido coletadas através da observação de atos
manifestos, e são generosamente diluídas com inferêcias injustificáveis. As deduções que se
possam fazer de tais dados não esclarecem os problemas do desenvolvimento sexual da
própria criança. São de valor apenas para indicar as atitudes sociais do observador. O fato,
de que estas atitudes sociais não são as da criança, escapa ao observador e ao intérprete e,
portanto, não têm relação alguma com o problema, no nível da própria criança.
Dá-se importância demais ou de menos às formas anti-sociais de expressão sexual
encontradas nos cegos. A prevalênncia da masturbação, entre os seus alunos cegos, alarmou
Howe ( 7.1). Ao mesmo tempo ele desculpou a sua existência, comparando-a com a
encontrada nas crianças dotadas de visão. Pouco esclarecimento traz à natureza da
deficiência dietética de um grupo, observar-se que, outro grupo encontra-se igualmente
faminto. Mesmo que fosse possível o desenrolar do emaranhado sexual, no qual se
encontram os cegos, para que pudessem adaptar-se tão rapidamente quanto os dotados de
visão, os seus problemas estariam ainda longe de serem resolvidos.
Possivelmente, a criança que enxerga encontra tanta dificuldade em adaptar-se a sua
situação social sexual, quanto a criança sem visão. Não importa, se ambas forem igualmente
bem ou mal sucedidas, restará uma vasta diferença na maneira pela qual alcançaram o
mesmo nível de compreensão. Este é o aspecto que justifica a investigação científica.
Questões de princípios morais não devem ser admitidas no problema, pois estes não têm
valor para fins comparativos, a não ser que os padrões sejam idênticos para ambos os grupos
em comparação.
O problema de vida sexual dos cegos tem sido sempre apresentado de tal forma, que nada
possivelmente pode advir de sua investigação. Qualquer comparação dos cegos com os
dotados de visão subentende que somente os padrões e valores destes, é que determinarão os
resultados. Conseqüentemente, o problema deverá ser assim colocado: "Baseando-se os
julgamentos, sobre os padrões e preconceitos sociais do público que enxerga, terá a criança
cega um desenvolvimento sexual tão normal quanto o da criança que enxerga?" Sem jamais
ter visto uma criança cega, uma pessoa de inteligência média é capaz de oferecer uma
resposta negativa. De igual forma, julgada sob padrões e preconceitos felinos, a vida sexual
de um cachorrinho comparada a de um gatinho está cheia de irregularidades e perversões. A
vida social e sexual tanto dos que enxergam, quanto a dos cegos é natural, plena e completa.
O crescimento sexual se verifica até o limite proporcianado pelos seus respectivos meios
ambientes.
O problema colocado em suas verdadeiras relações é o seguinte: "Qual é o efeito sobre o
seu desenvolvimento sexual, o fato de viver da forma como uma criança cega é compelida a
viver?" A resposta a esta pergunta encontra-se somente no íntimo da própria criança.
Nenhuma observação objetiva suficiente, não importa o cuidado empregado e expresso
minuciosamente, poderá proporcionar um quadro completo.
Todo crescimento social e intelectual da criança cega tem as suas condições estabelecidas,
mais pelo meio ambiente subjetivo, do que tem o de uma criança de visão. O
desenvolvimento sexual é um processo social e intelectual. Se o mundo social da pessoa que
enxerga for completo e pleno e se o seu mundo intelectual for vigoroso e objetivo, então a
sua vida sexual será completa, ativa e objetiva.
É impossível esperar que a criança cega, que sob as condições mais favoráveis, se inicia
com um mundo social e perceptivo muito insuficiente, possa jamais redimir sua perda. Enquanto a criança que enxerga está se desenvolvendo em relação ao seu mundo sociaal
em expansão e ao seu meio ambiente objetivo e estimulante, a criança cega também está
crescendo em relação ao seu meio ambiente. Entretanto, a situação social em expansão e o
meio ambiente objetivo e estimulante não são os mesmos. Não se deve pensar que a criança
cega carece de estimulação e relações sociais, pois este não é o caso. Seu crescimento é de
natureza tão positiva quanto o das demais, mas muito diferente, pois obtém seu
relacionamento num grau muito maior, das estimulações que o seu ego pode proporcionar.
Durante todo o periodo pré-escolar, o mundo social da criança cega consiste em qualquer
pessoa que se aproxima dela, com a qual possa conversar, tocar ou ser tocada, e o mais
importante de tudo, ela própria. Seu mundo perceptivo é composto de tudo o que, no
perturbado mundo espacial, ela possa ouvir, saborear, e cheirar, e o que possa explorar, tocar
e acariciar, e, novamente, o mais importante de tudo, ela própria. Dois mundos de
experiência em expansão, fundindo-se em apenas um - aquele que é ela própria.
As fantasias eróticas das crianças cegas demonstram a natureza do crescimento sexual
social. Elas demonstram que as relações sexuais derivam pouco a pouco das relações sociais
e, finalmente, tornam-se reconhecidas como pertencentes a uma categoria especial. As
fantasias da criança, dos 4 aos 7 anos, poderão envolver situações sexuais sociais nas quais
o aspecto sexual não tenha se desenvolvido além de um abraço desejado, uma carícia, ou
beijo do progenitor favorito, do professor, ou do amigo. Nenhum significado sexual é
atribuido a estes atos a não ser em algum período mais avançado da vida da criança.
Aparentemente, a maturidade física que se verifica no início da puberdade é necessária,
antes que tal desenvolvimento sexual social possa ser experimentado.
Sem dúvida, isto parecerá paradoxal aos pais e às professoras de escolas maternais, que
observaram numerosos casos de masturbação muitos anos antes de quaisquer sinais de
puberdade. Embora a masturbação infantil empregue os orgãos sexuais, dificilmente pode
ser considerada uma situação sexual.
Difere da atividade adulta de duas maneiras. Primeiro, mental e emocionalmente o ato
nada tem de natureza sexual. O significado de uma situação sexual não se desenvolveu na
criança, e nem tão pouco a afetividade sexual específica. Segundo, a primeira atividade
sexual da criança é, estritamente, uma resposta física, induzida por uma estimulação local do
corpo. Permanecerá neste nível, até que a situação se altere, através de maturidade física
adicional. Encontra-se no mesmo nível de estimulação física que o hábito do adulto de
remexer os dedos do pé toda vez que retira os sapatos.
O problema de maturidade física pode ser melhor ilustrado pelo trabalho do Prof. G.E.
Coghill ( 7.2). Demonstrou como, na vida de um embrião de salamandra, é possível evocar
uma resposta à alimentação muito antes da capacidade de comer. O animal imaturo agarra
pequenos objetos pela boca antes mesmo de poder engulir. Da mesma forma, os orgãos
sexuais da criança, são capazes de responder à estimulação local, mas não a estimulação
sexual. Até chegar à puberdade, a masturbação não pode ser encarada como um problema
sexual. O mais próximo, que uma criança pode chegar, de transformá-la numa situação
sexual, é de tê-la explicada como tal, e ainda assim, será apenas uma situação sexual
racional, não real.
Na puberdade, a vida sexual da criança realmente desponta. Aqui, novamente, a criança
que enxerga colhe os benefícios de seu mundo social em expansão e do meio ambiente ativo
e objetivo. De igual forma, o mundo da criança cega expande em atividade social e
expressão objetiva. Mas há uma restrição interior adicional. A estimulação sexual social com
que se confronta está composta de fugas auto-geradas para a irrealidade, e seus sentimentos
são satisfeitos através da atividade auto-erótica.
Estudos clínicos de rapazes e moças púberes, de escolas residenciais, demonstram como a
masturbação infantil e a construção de fantasias se mesclam numa vida sexual completa.
Também demonstram, como a vida sexual do adolescente cego se torna mais restrita em
proporção a sua idade. Aqueles indivíduos que escaparam às práticas masturbatorias da
infância, têm uma vida de fantasia muito ativa e vigorosa que precede a descoberta dos
meios pelos quais a vida sexual se manifesta. Esta atividade subjetiva é a reprodução do
vigor objetivo encontrado nas crianças dotadas de visão, na idade de 10 a 12 anos.
A introdução da masturbação na configuração sexual, quer seja auto-descoberta ou pela
iniciação, tem o efeito de fazer com que outras formas de atividade sexual social se tornem
desnecessárias. Uma situação semelhante pode ser encontrada na criança que enxerga,
quando as suas expressões sexuais objetivas são reduzidas unicamente à atividade de
masturbação.
Mesmo sob condições sociais ótimas, a vida sexual social dos cegos é composta, em sua
maior parte, por fantasias egocêntricas. É verdade que estas incluem tudo o que o seu
ambiente social lhes proporciona, porém apenas de forma subjetiva. As restrições sociais
numa escola residencial impede-os de utilizar, objetivamente, uma situação sexual mais
ampla de maneira mais objetiva e normal. Até agora, as escolar residenciais não se
aperceberam de que estas restrições sociais não somente reduzem a vida social objetiva dos
cegos, como também abreviam o volume de experiência que poderia ser utilizado
subjetivamente. Uma vez que é impossível, em muitos casos, para a criança cega em idade
escolar, falar, andar, e trabalhar com as do sexo oposto, seu desenvolvimento social se
realiza no reino da fantasia, onde não existem códigos sociais ou tabus.
A professora atraente da escola residencial ficaria, sem dúvida, muito perturbada se
soubesse com que freqüência torna-se o assunto da conversação num exame clínico. Para o
aluno adolescente da instituição, ela é o membro mais atraente e, mais socialmente acessível
do sexo oposto. Ela está completamente alheia ao fato de ser o tema central de uma grande
quantidade de fantasias sexuais sociais, que são resolvidas pela atividade auto-erótica. Esta
situação é a causa de considerável dificuldade disciplinar com os seus jovens adolescentes,
pois, entre os cegos, as fixações de progenitores e da professora são comuns. O jovem que vê
sua professora como a mais perfeita criação social que jamais conheceu, desenvolve uma
atitude ambivalente para com ela. Sua situação é emocionalmente difícil. Ele soluciona sua
tensão da única maneira possível. Algumas vezes ele é tratável e docilmente obediente. Em
outras ele é embirrado, petulante e rebelde.
A mesma situação pode ser encontrada entre moças das instituições. Seus professores
masculinos e superintendentes desempenham um papel proeminente em sua vida sexual
social, como esta deve ser vivida.
O professor precisa estar constantemente de sobreaviso, para não ser colocado numa
posição embaraçosa por uma jovem admiradora que, motivada pelo desespero em
acrescentar mais realismo às suas criações subjetivas, denuncia avanços indecorosos,
fictícios, partidos dos professores.
O incidente seguinte ilustra a facilidade com que as situações mais estranhas podem
compor uma configuração sexual, em uma instituição. Numa pequena escola do oeste, o
conjunto todo, com exceção de alguns edifícios externos, consistia num prédio sem proteção
contra incêndios. O sistema de aquecimento, que consistia de um aquecedor ultrapassado e
de uma chaminé muito suspeita, também estavam localizados no edifício principal. Desde
que a legislação deixou de prover recursos para manter-se um guarda noturno, o
superintendente, que receava os perigos de um possível incêndio, desempenhava aquelas
funções, realizando uma viagem de inspeção antes de se recolher. Embora este fosse um
homem forte e de grande estatura, cujas passadas de Titã podiam ser ouvidas em todo o
prédio, as moças de maioridade raciocinavam que o objetivo verdadeiro da inspeção do
superintendente pelos corredores dos seus dormitórios era definido, malévolo, com o fim de
conseguir umas "olhadelas". A represália contra esta conduta indecorosa era a de pular da
cama quando o ouviam chegar, e marchar em conjunto, pelo corredor até o banheiro, em
camisola. A finalidade racional deste comportamento era de envergonhar o superintendente,
por estar passando através do corredor das moças, depois que o toque de recolher tinha
soado.
O problema da masturbação que assombra todas as escolas residenciais em si mesmo não é
sério. A gravidade está na situação que o produz. O que está crescendo não pode ser
destruído meramente pela poda da flor. A acusação mais séria que pode ser levantada contra
os masturbadores é a de que são anti-sociais. O anátema desta acusação perde a sua
mordacidade, quando é aplicado aos internos dos institutos, porque a finalidade fundamental
e original de toda instituição tem sido a de oferecer asilo onde possa ser protegida a anti-socialização. O cego, como o ermitão, deriva as suas atividades anti-sociais do seu meio
ambiente, e se cada instituição encontra atividades anti-sociais censuráveis entre seus
alunos, são elas prova positiva de que o meio ambiente da instituição é deploravelmente
deficiente. A instituição, e não a criança, é que necessita de tratamento. Não existe medida disciplinar a
não ser um pelotão de fuzilamento, que possa reduzir a prática da masturbação nas escolas
residenciais.
Além do seu aspecto anti-social, a prática da masturbação encerra dois graves perigos.
Primeiro, grande dano pode ser causado à criança cega, que raramento se encontra apoiada
em chão firme para uma atitude positiva de auto-estima, se a sua prática anti-social for
considerada como um ato de perversão maliciosa que surge de uma mente imoral e suja.
Quase que universalmente, esta é a atitude assumida pelos supervisores na sua tentativa de
refrear a atividade entre os seus pupilos. Um grande número de superintendentes
compreende que é completamente incapaz de erradicar a prática; não obstante tratam a
criança como se esta fosse a única causa. O muito que pode ser conseguido, através da
supervisão constante, é o de manter a prática como uma atividade solitária. Segundo, as
práticas masturbatórias estão a um passo da homossexualidade. Estudos clínicos
demonstram que o caminho das práticas homossexuais, que são muito comuns nas escolas
residenciais, passa pela masturbação socializada antes de chegar à forma mais perigosa. Isto
pode ser demonstrado pelo seguinte caso clínico.
J. perdeu a visão, por moléstia, com a idade de três anos. Ingressou na escola para cegos
quando tinha seis anos e meio. Durante toda sua infância foi um aluno ativo e inteligente.
Nunca estivera muito absorvido em seus trabalhos escolares, mas se distinguiu,
particularmente, nas atividades esportivas mais extrovertidas e nos departamentos
industriais. Era um lutador extraordinário e logo foi recohecido como um líder do grupo de
estudantes mais jovens.
Aos doze anos de idade tornou-se um problema discilinar devido ao uso clandestino do
fumo. Aproximadamente aos treze anos de idade, tornou-se fisicamente mais fraco, menos
espontâneo, e mais soturno e letárgico. Nesta epóca, mais ou menos, enamorou-se de uma
aluna de mais idade que era a soprano principal no coro escolar. As restrições da instituição
impediam-no de estar com ela, exceto em raras ocasiões, tais como reuniões dançantes
escolares e literárias. Os professores perceberam o seu afeto pela moça e aplicaram-lhe
repreensões pessoais severas pelo seu impulso normal.
Também tornou-se o alvo social de desaprovação de todos os estudantes, pois enquanto
houvesse um caso de amor evidente na instituição, todas as reuniões dançantes e festas eram
proibidas. Deste modo a instituição estava apta a trazer a pressão social do grupo estudantil
sobre os casos disciplinares. J. foi condenado pelos seus colegas por destruir egoisticamente
suas vidas sociais, e foi exortado a refrear qualquer demonstração de atenção para com a
moça.
Durante o verão seguinte, J. perdeu sua afeição pela moça, e tudo correu bem durante
algum tempo, depois que a escola reabriu no outono. J. tinha um colega de quarto algo mais
velho do que ele, que durante o outono iniciou-o nas prátioas homossexuais. Isto continuou
pelo resto daquele ano. No começo do ano seguinte, J. recebeu um colega de quarto mais
jovem, o qual, por sua vez, o iniciou nas práticas homossexuais que tinha aprendido. Numa
altercação entre J. e ele, sobre a ventilação do quarto, houve troca de ressentimento e
pancadas, tendo seu colega saído derrotado. Ao relatar o incidente ao supervisor o colega
também incluiu as práticas homossexuais de J. entre as suas ofensas. J. foi, sumariamente,
expulso sem ter sido feita qualquer tentativa de serem expostas as causas de sua conduta
anti-social. O retorno ao lar de J., não se tornou mais fácil pela carta que foi dirigida aos seus
pais com relação às causas de sua expulsão. Naturalmente, a família, que estava tão
ignorante do assunto quanto os dirigentes da instituição, sentiu-se profundamente vexada e
envergonhada pela conduta de seu filho. Esta atitude doméstica tornou o lar quase tão
insuportável, quanto era impossível a volta à instituição. J. vendeu jornais durante algum
tempo em sua cidade natal, mas logo sob o pretexto de arrumar uma esquina mais vantajosa
para venda de jornais, numa cidade vizinha, ele partiu. Em pouco tempo desapareceu do
alcance da vista, tanto da instituição como da família. Atualmente alterna a venda de jornais
com diferentes formas de venda mendicante.
Embora a administração atual encare a prática de homossexualidade com grande aversão, e
a trate impiedosamente quando descoberta, muito existe sem ser descoberto. Em uma
instituição, onde não se acreditava que ela existisse, seis casos ativos foram encontrados; em
outra, quatro. Uma vez que é um problema de causalidade do meio ambiente, não há razão
para que toda escola residencial não encare o problema aberta e honestamente. É um
problema que deve ser aceito como fato consumado em vez de tratado com sobressalto e
surpresa.
Quando encontrado, deve ser tratado sabiamente, recebendo o meio ambiente seu
tratamento corretivo proporcional. É apenas tornar pior uma situação, colocar-se toda a culpa
nos infelizes indivíduos envolvidos.
Foi realizada uma tentativa para determinar, qual o efeito que as práticas homossexuais
têm, sobre a adaptação pós-institucional. Os resultados indicam as conclusões gerais
seguintes: Aqueles indivíduos homossexuais, que graduaram sem serem descobertos,
abandonam a prática, muito rapidamente, quando adentram um meio ambiente social mais
vigoroso e ativo. Quando são lançados juntamente com os membros da sociedade dotados de
visão numa comunidade maior, existe pouca oportunidade para socializar qualquer atividade
sexual de uma maneira homossexual. Estes indivíduos parecem não sofrer quaisquer
conseqüências danosas oriundas de suas experiências da adolescência.
A história é bem diferente, quando se trata de indivíduos graduados da escola residencial e,
que ingressam em outra instituição, tal como uma oficina de trabalho, ou se associam a uma
organização para cegos adultos. Tal situação oferece a oportunidade de continuar o que foi
previamente adquirido, pois os fatores do meio ambiente são muito semelhantes. Sob estas
condições as práticas homossexuais estão na iminência de se tornarem fixas, e nenhum outro
progresso sexual jamais se efetivará.
Os resultados mais desastrosos da prática podem ser encontrados naqueles indivíduos, que
foram descobertos participando da atividade e que foram expulsos de uma instituição. O
mundo dos dotados de visão é suficientemente desconcertante, para os cegos que deixam a
instituição, sob condições, as mais favoráveis. O ajustamento torna-se quase que impossível,
quando procurado por alguém com o sentimento de desonra social. Rapidamente descobre,
que as atitudes dos que enxergam em relação às práticas homossexuais, são muito mais
severas do que aquelas de seus associados na instituição. Torna-se duplamente convencido
de sua deficiência social e fará seu ajustamento de acordo com isto.
Embora pouco possa ser feito para controlar a masturbação nas escolas residenciais, muito
poderá ser conseguido no tratamento das práticas homossexuais. Supervisores e professores
devem ser treinados para encarar a atividade, não como alguma forma de perversão
degenerada, mas como um resultado perfeitamente natural, embora infeliz, das condições
sob as quais vivem as crianças.
Devem sentir que o comportamento do jovem cego homossexual, em relação à situação do
seu meio ambiente, é tão normal quanto a atividade sexual social dos que enxergam, que se
acompanharn ao cinema.
Os professores devem ser treinados para descobrir o desenvolvimento homossexual em seu
início. Professores e supervisores, freqüentemente, se deleitam com os tipos de amizade à
Jonathan e David, que surgem entre os seus alunos. As crianças parecem muito devotadas
umas às outras e, estão juntas em todas as oportunidades Seu trabalho e recreio - são
socializados toda vez que surge a oportunidade, e perambulam num abraço parcial que não
tem significado para as crianças. Não se pode realmente esperar que, quando o
desenvolvimento sexual destas crianças requerer uma forma de estimulação maior e mais
objetiva, cada qual não ir se incorporar dentro da vida sexual da outra. Estas amizades e
ligações infantis, inofensivas como possam ser num nível infantil, levam um perigo
potenrial, muito além da imaginação da maioria dos professores.
Todas as escolas residenciais poderiam, mais criteriosamente, fornecer um ambiente
heterossexual mais amplo, no qual ajudariam a expandir a vida sexual social da criança
cega. A prática da segregação nas instituições é perda gratuita de uma das mais valiosas
vantagens educacionais da escola. Qualquer que seja o valor duvidoso que a segregação
possa ter na prevenção de casamentos entre cegos, ele é alcançado a custa de um preço
educacional alto demais.
Qualquer forma de desenvolvimento social é normal, apenas quando as condições, sob as
quais ele se efetua são normais. Nem com esforço de imaginação poder-se-á aceitar que, um
ambiente social no qual o sexo oposto é excluído enrorage uma atividade social sadia. Ainda
não foi. conseguido, quer nos acampamentos militares, quer nos conventos. Não ser
cncontrado nos campos de mineração, nem nos seminários. O que houver de disponível no
ambiente será utilizado ao máximo, e o que não estiver lá, nunca poderá ser artificialmente
suprido. O processo de crescimento normal e exige condições normais. O que se desvia disto
produz anormalidades.
Por circunstâncias políticas, foi designado para diretor de uma escola estadual para cegos,
um superitendente que nada sabia dos problemas educacionais dos deficientes visuais. Na
verdade, mal sabia que o estado mantinha tal instituição. A primeira vez que visitou a escola
já o fez na situação oficial de superintendente. Como a maioria dos superintendentes
compreendia a criança cega como uma criança comum exceto que não podia ver; mas ao
contrário de muitos educadores, presumiu que se devesse dar a ela o mesmo ambiente social
dos que enxergavam. Sabia tão pouco a respeito da educação da criança cega que, somente
após mais ou menos um ano é que ficou sabendo que se supunha haver um sério problema
de sexo rondando a instituição.
Não tendo ele criado o problema era incapaz de encontrar algum, e portanto presseguiu na
suposição de que não havia perigo heterossexual na mais livre associação dos sexos. Com a
saída deste superintendente, foi nomeado um outro, igualmente tão inocente em relação aos
problemas educacionais do cego, como o seu antecessor. Por conseguinte, continuou ele com
os mesmos hábitos que achara predominante na escola. Durante os quinze anos em que o
programa normal foi seguido, não ocorreu, no estado, nenhum casamento entre estudantes da
instituição e apenas um caso de indiscrição heterossexual. Os adultos cegos que tinham sido
crianças neste período, demonstraram maior aproximação à normalidade social do que
aqueles que os precederam ou os seguiram. Igualmente, seu ajustamento ao mundo dos que
enxergam foi relativamente fácil. Uma grande parte realizou casamento feliz, com pessoas
dotadas de visão.
O grau de liberdade e de relações sociais entre meninos e meninas, nesta instituição, nunca
encontrou paralelo em nenhuma parte deste país. A mistura de sexos não parou na educação
conjunta em classes de aula, e em ocasionais festas supervisionadas. Não havia quaiquer
restrições, exceto aquelas solicitadas pelas convenções sociais, normais, do mundo dos que
enxergam. Qualquer rapaz ou moça podia encontrar-se, a qualquer tempo,em qualquer lugar,
dentro ou fora do instituto, exceto nas horas de aulas e nos dormitórios. As funções sociais
eram organizadas voluntariamente pelos alunos. Tinham liberdade de programar danças para
qualquer noite do fim de semana, menos domingo; preparavam os seus piqueniques e
festas, à vontade.
Muitos romances, adolecentes e violentos, surgiram nestes quinze anos, mas não havia
interferência alguma, a não ser que fosse evidente estarem prejudicando a eficiência do aluno
em seus trabalhos escolares. Não havia limite para o número de vezes que as mesmas
pessoas pudessem dançar juntas.
Isto resultou numa rivalidade sadia e entusiástica, dentro do salão. Durante as horas livres,
entre o jantar e o período de estudo, os jovens tinham o hábito sadio de passear pela
vizinhança, em grupos, ou em pares. Eram reprovados apenas, quando suas preocupações
juvenis os atrasavam para a hora de estudo. É dentro destas condições, e somente dentro
destas condições, que se pode esperar que a criança cega desenvolva um grau de
competência social e possua uma inteligência sexual, social, manipulável. Nestas
circunstâncias, o sexo perde sua característica perigosa, e se deriva numa situação social
mais ampla e sempre em expansão. O rapaz e a moça aprendem a consentir e a resistir ao
sexo. Através de anos de contatos íntimos compreendem, emocionalmente, a inconveniência
social e pessoal de casamentos entre eles. Aprenderam, de uma maneira positiva, aquilo que
é impossível ensinar por meios negativos, através de moralismos, normas, exemplos e
coerções.
Alguns educadores de cegos acreditam, que o problema sexual social nas suas escolas pode
ser resolvido pela introdução de um programa de higiene educacional. É muito difícil
compreender, como tal programa possa alcançar êxito. Em primeiro lugar, a instituição não
possui elementos capazes de executar tal programa, pois nenhum, entre muitos professores
de cegos, compreende o problema. Supondo--se, que todos compreendessem, o que poderiam
ensinar que fosse de algum valor para a vida social da criança? Haveria pouco mérito em
dizer-se à criança a verdade em relação à sua condição. Em nada a ajudaria saber que estava
predestinada a crescer de acordo com as condições de seu meio ambiente. Do mesmo modo,
os resultados seriam o mesmo se lhe fosse administrada higiene"inspirativa" suficiente para
fazê-la depositar toda sua fé na determinação individual do desenvolvimento da
personalidade. Mas pouco pode advir de novos métodos baseados em velhos fundamentos.
Sob um sistema de terapia educacional, como a criança cega tirará sua motivação para uma
vida que não conhece? Quais seriam os resultados de fazê-la assumir valores não
experimentados? Mesmo sendo possível fazê-la viver de maneira abstrata, os resultados
seriam mais nocivos do que corretivos. Ela se divorciaria, ainda mais, da realidade e tentaria
habitar, neste caso, um mundo onde seria realmente impossível viver.
A educação não deve julgar-se um poder sobrenatural. Como a vida e o crescimento, ela
pode utilizar apenas o que está presente. É verdade, que conceitos abstratos, estranhos,
podem ser inculcados nos jovens, mas permanecerão sempre, relativamente, deslocados da
vida da criança, enquanto é vivida.
Biologicamente, o sexo tem um significado restrito que o confina ao processo de
reprodução e de perpetuação das espécies. Em termos de comportamento humano, é
impossível descrever ou mesmo definir o que é incluído sob a atividade sexual. Até agora, a
sociologia e a psicologia foram incapazes de delinear a extensão dos problemas introduzidos
pelo sexo, dentro dos seus respectivos campos. Será suficiente, para, discussão neste
capítulo, afirmar-se que a atividade sexual é, ao mesmo tempo, mais e menos do que
ensinam os sociólogos e os psicólogos.
A sociologia não pode demonstrar até que ponto a atividade sexual se realiza nas práticas
religiosas. Sabe-se o suficiente para indicar que muito do crescimento sexual de cada
membro da sociedade se orienta naquela direção. Do mesmo modo, a psicologia não pode
demonstrar, claramente, até que limite o crescimento sexual determina padrões de motivação
e estabelece metas, mas, sabe-se o suficiente para mostrar, que uma grande parte desta fase
da vida mental é estruturada em configurações sexuais. Tais formas de atividade sexual não
são, para a criatura humana normal e social, sublimações ou perversões. São tão partes da
vida sexual da pessoa normal como o desejo para o sexo oposto, apesar de possuírem
significados e relações adicionais. Um substituto externo, assexual, que possa ser
introduzido para desviar e esgotar o assim chamado impulso sexual numa maneira
assexuada, não funcionará a não ser que possua um significado sexual e efetivamente se
incorpore à atividade sexual do indivíduo.
Os animais, quando compelidos à maturidade, num ambiente restrito e limitado,
incorporarão ao seu padrão de atividade sexual materiais e objetos que seriam inteiramente
destituídos de importância e significado sexual para os membros normais de sua espécie.
Quando chega a fase certa da maturidade, a pomba macho, criada em cativeiro solitário
coopulará na mão de seu guarda ( 7.3). A expressão sexual desenvolve-se apenas naquela
direção, e apenas naquela medida.
Da mesma maneira, se o pombo correio é criado com outra espécie de pombo, sua atividade
sexual nunca incluirá os membros da sua própria espécie, mas, apenas, os da espécie com a
qual foi criado. A atividade sexual completa foi alcançada naquela configuração e aí
permanecerá sempre. Em muitas espécies de animais domésticos, criados em condições de
segregação, a falta de estímulo e desenvolvimento sexual provocarão masturbação e formas
de atividade homossexual.
A criatura humana é muito mais sexual do que qualquer outro animal. Com seu
equipamento mental ampliado, seu meio ambiente sexual expandiu-se ilimitadamente, além
daquele das outras espécies. O ser humano não depende de alguma situação específica para
a estimulação sexual. Pode obter estimulação e desenvolvimento sexual de livros, quadros,
teatros, hinos, sermões, jogos de basquete e de inúmeras outras fontes. A configuração
sexual do homem é mais dilatada, pelo fato de que o período de união inclui o ano todo, e
não apenas uma exploração periódica de atividade como nos animais irracionais. As formas
de atividade sexual, além daquelas requeridas para o processo de reprodução, que são
incorporadas à vida da criatura humana, são consideradas, pelos freudianos, como
perversões ou sublimações assexuais do impulso sexual. Elas não são mais assexuais ou
sublimações do que o bíceps arrendondado, o peito saliente, e a corrida veloz elástica, são
contrários à aptidão física. No nosso mundo moderno o emprego específico da atividade
sexual para a reprodução, como o emprego do corpo, fisicamente habilitado, nos combates
pessoais, é de importância secundária. É muito menos necessário ter-se uma prole do que é
ser um membro social, normal e mentalmente sadio com os mesmos valores éticos e morais
dos companheiros. É menos necessário ser capaz de derrubar e sobrepujar físicamente um
rival comercial, do que é possuir-se um corpo sadio, capaz de agüentar as fadigas de um dia
de trabalho. Nos tempos modernos, social e individualmente, a necessidade primária de cada
um se perde. Atualmente, a função mais importante do sexo é a de criar uma personalidade
que enfrente as exigencias da sociedade moderna. Isto, e nada menos do que isto, deve ser o
alvo de toda educação sexual.
Num artigo recente sobre a psicologia do cego, Dr. J. Q. Hobsappel ( 7.4), esperançosamente,
sugere que o problema sexual do cego pode ser resolvido aplicando-se o princípio da
sublimação. Apesar deste mecanismo freudiano ter sido a nota dominante na psicoterapia, para as
gerações passadas, está sendo descartado em várias regiões, assim como a imposição de
andar com as mãos e o uso de amuletos. O mecanismo da sublimação sexual subentende que
o sexo é uma resposta unitária e instintiva: é um impulso ou ímpeto que está sendo
empurrado de dentro para fora; esta natureza especial pode ser utilizada de alguma maneira,
que não através da expressão sexual específica. Se este fosse o caso, haveria alguma
justificativa lógica para se crer na sublimação como terapia. Infelizmente, para o cego como
para o dotado de visão, nem o sexo, nem qualquer outra forma de atividade tem origem tão
simples e unitária. O sexo que está ligado ao crescimento potencial do indivíduo de maneira
global, aparece no desdobrar desta potencialidade e como tudo mais, é estruturado pelas
condições sob as quais ocorre o crescimento. Portanto, é impossível sublimar, enganar ou
distorcer aquilo que ainda não apareceu. A sublimação está tão longe da realidade, e é tão
impossível, como seria empurrar um pintinho recém-nascido para dentro da casca e fazê-lo
emergir como um coelho.
Suponha-se, por um momento, que a atividade sexual seja o ímpeto ou instinto atômico que
se supõe ser. Aonde, dentro da vida institucional do cego, existe uma forma de criação
espontânea que sublime uma força tão potente e onipresente? O problema crítico do cego não
é como ocultar e paralisar a atividade, mas como promover e encorajar o seu
desenvolvimento normal.
O princípio da sublimação foi usado durante muito tempo em nossas instituições. Nada fez,
além de tolher e distorcer a personalidade.
-
Notas
7.1 - S. G. Howe, "Counsels to parents of blind children", p. 25
7.2 - G. E. Coghill, "Anatomy and the problem of behavior" (Macmillan Co., 1929)
7.3 - Wallace Craig, "Male doves reared in isolation", Journal Animal Behaviour, 3 ( 1914)
pp. 121-33
7.4 - J. A. Holsapple, "An analysis of the relationship between tactual and visual perception",
Outlook for the Blind, 24 ( 1931) pp. 33-37.
Uma luz considerável pode ser lançada sobre os problemas do crescimento estético de uma
pessoa normal pelo estudo de um grupo, que teve reorganizado todo o seu conjunto de
valores pessoais, seus processos de percepção, e esteve mergulhado nas tradições e
satisfações de um desenvolvimento visual contrário às suas personalidades e alheio aos seus
processos de percepção. Com uma organização de crescimento estético tão amplamente
diferente, é impossível confiar-se tanto nisso quanto no estudo do mesmo assunto com
referência aos indivíduos dotados de visão. É inaceitável continuar com a suposição, um
tanto ingênua de que, fora a ausência da percepção visual, o desenvolvimento estético do
cego é idêntico ao do indivíduo que enxerga. Tão pouco é possível, estabelecer-se qualquer
analogia perceptiva entre mãos e olhos. O estudo deve ser feito na pressuposição de que os
cegos vivem num ambiente estético completamente diferente daquele no qual vive uma
criança normal e somente sob este ponto de vista podemos basear uma consideração válida
do seu crescimento.
Portanto o estudo da vida estética do cego envolve todas as situações de suas vidas e não
alguns tipos ou funções isoladas de percepção ou certos valores sentimentais. A vida estética
do cego procede tanto do desenvolvimento da personalidade, com suas compensações, como
da percepção das formas e apreciação da música. Infelizmente, para ele, as irrealidades do
espaço visual, forma e beleza, têm mais influência sobre o desenvolvimento da apreciação
estética do que tudo que experimenta diretamente.
A organização sensorial e a percepção tátil delineiam toscamente as fronteiras dentro das
quais o cego tem acesso às fontes objetivas para estimulação estética. Entretanto, os maiores
problemas na psicologia do julgamento estético não se confinam ao campo de sensação e
percepção. Preliminarmente, os estudos do julgamento estético no cego, mostram
claramente, que qualquer forma de apreciação e um todo que inclui todas as experiências
perceptíveis e todas as relações sociais da personalidade total. Os cegos, como os
camponeses medievais, exemplificam como um máximo de valor estético pode derivar de
um mínimo de estimulação, quando ambos são criados para eles. O camponês venera, misticamente, e adora nas catedrais, os objetos de arte sacra, que estão
além da sua compreensão mental, mas identificados com a religião e aprovados pela Igreja.
Um cego pode reverenciar uma estátua grega, não obstante estarem a graça e os detalhes da
mesma perdidos para ele. Ela pode simbolizar para ele padrões da cultura helênica, e, além
disso, tem a aprovaçao dos que enxergam.
Recentemente, no Instituto Perkins, foi mostrado a um visitante cego, que se interessava
pelo problema da percepção tátil, nas suas relações com experiências estéticas, a reprodução
em miniatura da estátua "O Apelo ao Grande Espírito". O visitante dotado de grande poder
visualizador, tinha conhecimento do original, através de descrição verbal e tinha construído
uma imagem bastante definida de como julgava ser a figura. Contudo através do exame da
estátua, foi absolutamente incapaz de identificá-la como uma reprodução de uma peça
estatuária da qual já tivesse ouvido a descrição. Pôde identificar o cavalo como tal, o índio
como um chefe ou guerreiro índio. Mas este pareceu-lhe muito mais real que o cavalo. A
estrutura do corpo e pernas deste eram muito esbeltas e graciosas para um cavalo
tipicamente do oeste. A primeira pergunta que fez foi: "Por que um índio cavalgando um
cavalo árabe? " E a segunda: "O que faz este índio e o que há com ele?"
Durante vinte e cinco anos o visitante convivera intimamente com índios do oeste de várias
e diferentes tribos. A familiaridade que tinha com os seus hábitos e costumes sugeriu-lhe a
possibilidade da estátua representar um índio bêbado caindo do cavalo, na sua volta da
cidade. Momentaneamente, isto serviu para identificar a figura. Mas tendo o visitante
auxiliado várias vezes índios em tais condições, a remontarem seus pôneis ou os ajudado
depois de uma queda, compreendeu que, um momento tão prosáico da realidade não oferecia
tema apropriado para uma expressão artistíica.
Procurando uma interpretação mais satisfatória, lembrou-se que, no Oeste, os métodos dos
indígenas eram empregados para caracterizar o senil e transitório. Esta idéia ofereceu uma
pista racional a partir da qual um todo estético foi construído para adaptar as condições da
experiência tátil. O índio com seu cavalo, simbolizando uma velha passageira forma de
viajar, estava ou cumprimentando ou despedindo-se de alguma forma nova de locomoção e
tendo o olhar voltado para o alto, o novo método era o moderno avião.
A figura estava completa em significado e cheia de valor estético. O índio da planície
ocidental, que viu os trens de gado da era de cinqüenta e os saudou com balas e que sofreu
uma quase que total degradação nos campos das ferrovias na era de setenta e oitenta estava
reconhecendo o novo meio de transporte com um gesto de admiração e espanto.
Existem duas razões distintas para explicar o fato do visitante não poder alcançar o
significado da estatueta, após um exame tátil prolongado. Os que enxergam são capazes de
apreender a situação com um olhar. As dinâmicas visuais, isto é, a representação da postura,
movimento e atitude não estão ao alcance do tato. Aqui novamente, o que é visualmente
simples é tatilmente complexo. Visualmente, há uma enorme diferença entre as dinâmicas
apresentadas numa atitude atemorizada de reverência e o cambalear de um bêbado.
Tatilmente não há nenhuma, ambas são dinamicamente semelhantes e estéticas. Por mais,
importante que seja o aspecto objetivo, a contribuição subjetiva é ainda mais significativa.
Um julgamento estético é um todo expressivo para o qual o ego contribui com a maior parte.
O visitante deixou escapar a interpretação e a apreciação convencionais da estatueta devido à
construção da sua fantasia e organização das experiências lembradas. Era incapaz de fazer o
julgamento estético convencional simplesmente porque sua experiência incluia muita
realidade indígena e pouca arte convencionalista. Conhecera índios, sempre dentro de uma
realidade própria. Atitudes de medo e reverência nunca foram para ele uma típica
configuração indígena. Procurava o que é estéticamente impossível: o significado concreto
numa construção idealista, como o idólatra convertido tenta compreender literalmente a
unidade da Trindade Santa.
Experiências no campo da percepção tátil mostraram, até que ponto o tato é incapaz de
abranger significados e relações visuais convencionais e típicas. Raramente, talvez nunca,
poderá ela produzir uma configuração com a abundância de conexões tão significativas
como a percepção visual produz. Figuras em relevo, formas de gesso, em baixo relevo, partes
de objetos; figuras montadas em animais, todas falham, sob o exame tátil, em produzir a
percepção global e significados alcançados pela visão. As figuras e os objetos são percebidos
como algo, mas, não constituem a conexão, tão expressiva, que assumem sob o exame
visual.
A psicologia convencional não explica esta incapacidade, satisfatoriamente, quando aponta
o tato como incapaz de sugerir o sentido tridimensional da luz e sombra. Nem poder-se-á
dizer que o tato não é suscetível de ser treinado para o simbolismo artístico convencional. A
explicação reside menos no fato do tato não poder usar as técnicas e os recursos sugestivos
da representação visual, do que no fato da percepção tátil introduzir inúmeras condições
novas que não estão presentes num exame visual. O tato e a visão são duas formas de
experiência distintamente diferentes. A percepção tátil, por melhor treinada que seja, carrega
uma sugestão de realismo material que não permite a compreensão dos significados ideais.
O mais perfeito espécime de taxidermia é menos real para o tato do que a imagem
bidimensional mais simples é para a visão. Não somente isto, mas o animal que está sendo
montado é definitivamente alguma coisa mais. Todas as realidades perceptíveis ao tato,
exceto a forma estética e parte de sua textura, não são encontradas na inspecção do animal
vivo. Ao contrário é duro, rijo, estático, sem movimentos internos e tem posturas estranhas
que distorcem seus significados. O pêlo é morto e frio sem o livre deslize da pele.
Verbalmente é o animal, mas empiricamente é algo bem diferente. Por outro lado, a imagem
traz consigo semelhanças com a experiência visual de ver o animal. As formas são
toscamente semelhantes, a posição é familiar, não há disproporções na representação da
estrutura interna e, acima de tudo, o movimento ou a possibilidade de movimento é
representada no quadro.
A percepção tátil sofre pela impossibilidade de abranger por estes meios a presença das
relações dinâmicas. Estas estão presentes na percepção visual do objeto como um todo. Não
são percebidas pelo cego porque dependem das relações de forma e linha da figura completa,
que não podem ser alcançadas através do processo restrito do tato.
Através do tato é impossível representar-se o movimento, a menos que esteja presente
tangivelmente no elemento observado. Para a visão uma flecha solta suspensa no es paço é
uma flecha em vôo. Para o tato as dinâmicas estão ausentes; é uma flecha em repouso e
assim permanecerá até que se mova ou até que seja aceita racionalmente como uma flecha
móvel como a figura montada é considerada racionalmente como o animal que representa.
Corredores são figuras agachadas imóveis e o discóbolo é um enigma estático.Pode-se ilustrar de modo concreto esta proposição. Tome-se duas figuras, uma
representando um gato raivoso trepado, e a outra um cachorro, amarrando à caça. Para a
visão os movimentos potenciais dos animais estão vivamente representados no quadro; são
quase tão reais e significativos quanto a própria situação real. Ao tato falta o significado; a
sugestão dinâmica não está presente. O significado de movimento que a situação possui
limita o gato a uma posição ereta, com uma pata levantada e mandíbulas separadas. Pode
ser interpretada, racionalmente, como um gato miando e procurando alcançar alvo. O cão,
com seu focinho assestado e seu rabo retezado, é racionalmente um cachorro cansado,
levantando uma pata. Talvez a tenha machucado ou talvez queira trocar um aperto de mão.
Os animais de montaria, não somente têm, para os que enxergam, posturas e movimentos
implícitos, alheios à experiência tátil, mas, como todos os animais vivos, reagem quando
tocados, e portanto, muito raramente transmitem uma experiência tátil análoga a visual. Em
outras palavras: um gato de estimação nunca é um gato selvagem, nem o cão perdigueiro
fica em alerta sob o exame tátil.
Portanto, se este não pode revelar as relações dinâmicas das figuras tridimensionais, que
obviamente sugerem movimentos, quando percebidas visualmente, há pouca utilidade, para
o cego em decifrar ou pretender perceber o significado das figuras de homens e animais em
ação. O ridículo de tais tentativas já foi ilustrado inúmeras vêzes. Entretanto, a imagem
visual, acompanhada da percepção tátil, tem o hábito enganador de fornecer significados e
relações, que não existem experimentalmente na situação. A imagem visual ampliará a
percepção tátil com detalhes visuais que não serão afiançados pela própria experiência tátil.
Por exemplo: a visualização de um cego poderá imaginar que as malhas quadradas, da tela
das janelas, se estendem em fileiras verticais e horizontais. Ao tocá-las e alisá-las, com as
pontas dos dedos, percebe que o padrão horizontal-vertical desaparece e que as malhas
quadradas se reagrupam num padrão diagonal. Aconteceu o seguinte: pelo tato, ele não
percebe as malhas quadradas, quer na disposição vertical, horizontal ou diagonal. Lembra
visualmente, que a tela da janela tem um formato vertical e horizontal, mas, quando a toca,
ele segue o padrão diagonal, que é formado pela justaposição dos fios nos cantos opostos da
malha da tela.
Este desenho, regular, é perceptível como sendo uma sequência de filas de quadrados e
portanto para orientar a parte tátil da percepção, com o todo visual, é necessário perceber-se
as malhas quadradas, que correm diagonalmente. Apresentando-se a uma pessoa cega, com
capacidade de visualização, um peixe em baixo-relevo, poderá este ser identificado como
uma âncora, mas, quase nunca, como um peixe; um sapo poderá ser um dente ou um toco,
ou qualquer outra coisa que seu processo visual possa construir. Portanto a.percepção real
torna-se completa pelas conciliações entre memória visual e experiências táteis. O cego que
visualiza constrói e completa em visões globais a percepção tátil de tamanho, forma, direção
e extensão, que são dadas apenas parcialmente pela experiência tátil. A experiência tátil
proveniente da colocação passiva da mão sobre o espaldar de uma cadeira, precisa continuar
além da porção imediatamente sob a mão. Ela, expande-se visualmente, afim de incluir
alguma espécie de cadeira completa. A complementação visual pode não ser,
necessariamente, esquemática; pode se completar com detalhes de cor, número e posição das
travessas, pernas curvas ou quadradas, braços quadrados ou redondos, assento de couro,
bambú ou estofado.
Os indivíduos dotados de visão, por mais familiarizados que estejam com o cego, nunca
deixam de projetar seus próprios significados visuais nas percepções táteis daquele. A
professora, que enxerga, nunca se abstem de supor que o aluno cego está percebendo, através
do tato, a mesma forma que ela vê. É lhe impossível conceber que mesmo as formas
geométricas mais primárias, assim como as extensões espaciais mais simples são ambas,
qualitativa e quantitativamente, diferentes das da sua própria percepção. Se os indivíviduos
que enxergam não são capazes de reproduzir forma tátil e dimensões, com suas próprias
experiências táteis, quando tiverem o processo de verificação de uma vida inteira entre estes
dois sentidos, dificilmente poder-se-á esperar que uma criança cega, que ou não tem imagens
visuais ou que as tem divorciada da realidade, perceba os objetos do mesmo modo que são
percebidos pelos que os enxergam. ( 8.1)
Um quadrado é quadrado para a criança cega porque assim foi denominado e não porque
tem quatro ângulos retos e lados iguais. Para ela pode ser um retângulo e na maioria das
vezes é realmente um paralelograma com ângulos desiguais.
Um triângulo é reconhecido como tal porque tem três ângulos e três lados, mas, para que
um tipo de triângulo seja distingüido de outro é necessário haver diferença de forma mais
acentuada para o tato do que para a visão. Com esta carga de visão antropomórfica por parte
dos dotados de visão, nas simples percepções táteis, é possível conceber-se quanto divergem,
mestre e aluno, quando tratam de processos perceptivos mais complexos; para o professor, a
massa de mármore talhado sobre a figura cinzelada representa cortinas. Para a criança cega,
qualquer que seja a denominação que lhe ensinaram a dar, será nada mais do que mármore.
Significa cortina e tecidos tanto quanto as gotículas de gelo, agrupadas após uma chuva. A
criança poderá aprender a chamar de cortina e igualmente colher alguma experiência estética
no processo, apesar de que sob o ponto de vista de apreciação, a vantagem está muito mais
com a cortina de chuva do que com a deusa grega. A cortina de chuva é criação mais
significativa e os detalhes são mais simples e mais simétricos.
É quase que trivial dizer-se que o padrão de estímulo, o aspecto objetivo da percepção, é a
parte menos importante de qualquer experiência estética. Mas apesar disto, tanto o indivíduo
que enxerga, como o cego, consideram-no como fonte núcleo da experiência. Quando
confrontado com o padrão de estímulo o observador está, em grande parte inconsciente do
campo de experiência que mais contribuiu para o momento presente. O conceito
é reconhecido no vendar de olhos de Eros assim como nas palavras da balada "Seja sempre
modesto, não há lugar como o lar". Amor, patriotismo, reverência religiosa, beleza artística,
tudo depende em grande parte mais da orgapização subjetiva do que da percepção sensorial.
É fútil, num certo sentido, discutir- se a questão da viabilidade sensorial da estimulação
artistíca. O desenvolvimento estético não se realiza tanto pelos sentidos como através de
todo o desenvolvimento intelectual. A apreciação estética está sempre em relação com a
riqueza de relações afetivas que organiza sobre o padrão-estímulo. Roy Chapman Andrews é
capaz de obter uma apreciação, mais intensa, do simples pensamento verbal de um ovo de
dinossauro, do que o escritor do exame de uma cesta cheia dos mesmos. Seu conhecimento de paleontologia, ao lado das experiências nos museus e neste setor dá-lhe uma base de relações que faltam à percepção do escritor. Do mesmo modo, um acorde
orquestral produz em Walter Damrosch uma configuração perceptiva à qual o escritor nunca
seria susceptível. William Beebe pôde perceber no cupim, incolor e arrepiado, um objeto de
beleza requintada. Em resumo, através de um treinamento estético, o indivíduo pode fazer
uma bolsa de seda de qualquer orelha de porco.
A vida estética do cego sofreu muitos prejuízos na sua riqueza, devido aos métodos
educacionais e às idéias atualmente em prática. Sendo o desenvolvimento estético
dependente da riqueza total de experiências diversificadas, reconhecer-se-á imediatamente
que o meio ambiente das instituições educacionais está longe de ser o ideal. O monótono e o
prosaico disto não conduz a nenhuma expansão espontânea daquela relação vital, que
garante uma plenitude de vida. O entusiasmo, espontaneidade e curiosidade encontram sua
expressão em grande parte no campo de situação de vida, assim como ela é vivida. O
interesse pelas causas naturais, pela vida e por tudo que a cerca, é desviado pelo arquitetar
de fantasias e pela irrealidade. A expressão estética, criadora, é praticamente extinta pela
monótona rotina que envolve as artes manuais, que dependem de treinamento sensorial.
O aluno cego, oferece aos educadores, um desafio vigoroso. Qual das artes manuais ou das
profissões ensinadas na escola para cegos, conduz ou à apreciação estética ou à expressão
estética? Todas, sem exceção, são selecionadas sob o critério de construção visual, forma,
tamanho, padrão e cor; e todas são, até visualmente, muito medíocres. O ato de tecer não
apresenta nenhum padrão de beleza tátil e de simplicidade. É um processo mecânico, que
produz resultados que podem ser apreciados por outros, mas não pelo tecelão cego. A
fabricação de cestas, trabalhos em palha e o ato de empalhar, são ainda mais incômodos,
pois o material deagradável ao tato, tem sua aspereza acentuada, porque deve ser
manipulado úmido. A fabricação de cestas tem suas possibilidades estéticas criadas pelo
fato de que, orientadas horizontalmente, o trançado alternado produz um rítmo ondulante.
Este, entretanto, é destruído nos padrões mais intricados e complicados impostos ao tecelão
cego pelas exigências visuais.
O empalheirar em seis fileiras produz um padrão formado de buracos circulares, que tem a
mesma beleza tátil de um objeto em estanho perfurado. O cego nunca pode aceitar vassouras
e esteiras como algo dotado de beleza, mesmo quando apresentam variedade de cores. Ao
passo que, costurar oferece possibilidades estéticas para as meninas, assim como trabalhos
em madeira para os meninos. O material oferece uma homogeneidade aprazível, que é
freqüentemente muito apreciada pelos alunos. Em ambos os casos, entretretanto, este
material raramente constrói um todo capaz de proporcionar prazer igual ao dado pelo
material original. O tecido de um vestuário, mesmo quando usado carece da beleza da
mercadoria não cortada. Do mesmo modo, uma gaiola ou uma estante para livros não possue
a beleza tátil da suave extensão da prancha inteiriça. A forma visual destruiu a simetria tátil,
pura, necessária à beleza tátil.
No capítulo sobre verbalismo, mostrou-se como os métodos educacionais tolhem o
desenvolvimento intelectual do cego, pela insistência em empregar ensinamentos verbais, e
conceitos visuais artificiais. Os métodos educacionais, ao tentarem avivar a vida artística do
cego, forneceram, em vez disso, uma abundância de alvos visuais e motivações que serviram
como anestésicos. Admite-se que o cego deva conhecer objeto de arte visual, sua construção,
temas e história cultural; mas seria o máximo do ridículo, esperar-se que o cego ou
apreciasse a arte visual, como tal, ou se igualasse na expressão artística dos que enxergam.
O autor já observou professores, dotados de visão, martirizarem verbalmente, crianças a
respeito das belezas visuais de quadros renascentistas até estas serem capazes de repetir, em
coro, suas lamurientas descrições visuais. Tais processos pedagógicos obtiveram unicamente
efeitos desastrosos. Inicialmente, o cego recebe uma opinião tão exagerada da beleza visual e
da arte pictórica visual, que não tem mais confiança na validade dos próprios métodos de
apreciação; em segundo lugar, os valores estéticos são abalados pela crença de que o objeto
de arte e o padrão de estímulo transcendem, em importância, o tema da expressão artística e
as relações subjetivas envolvidas na apreciação do tema. A arte visual deve ser apresentada
ao cego simplesmente como um método de expressão de algum tema sugestivo. Devem ser
ensinados que ela é apenas mais um método de escrever uma história ou descrever uma cena
e uma situação. Até que isto seja feito, nas escolas para cegos, não haverá verdadeira compreensão da real
natureza da arte visual e nenhuma possibilidade do aluno cego desenvolver por si mesmo um
sistema próprio de expressão artística.
A verdadeira vida estética do cego, no pouco que lhe é permitido ter, como todas as suas
outras formas de atividade, é organizada de maneira mais egocêntrica do que nos dotados de
visão. Isto não significa que o cego possua uma receptividade mais refinada e subjetiva do
que os que enxergam, pois a apreciação estética é mais exclusivamente de natureza subjetiva
tanto no cego como no dotado de visão. A diferença seria mais a existente entre um artista e
um leigo. O artista, mais subjetivamente organizado, requer, para ter experiência estética,
um padrão de estímulo menor do que um leigo. Para o artista os valores subjetivos e relações
são tão reais e importantes como aquelas do próprio padrão de estímulo, mas para o leigo,
não. Este encontra mais arte, falando de modo prático, no padrão de estímulo, do que em si
mesmo. Falta-lhe a imaginação criadora, através da qual percebe um objeto de arte mesmo
com estimulação incompleta.
Por tais motivos, o cego é incapaz de beneficiar-se da vantagem inerente que existe nas
suas organizações subjetivas. Um crescimento objetivo sadio lhe foi impedido pela crença
errônea, por parte dos professores e amigos, de que sua apreciação do belo é enormemente
estorvada pela exclusão de estímulo objetivo. Disto resultou a prática de empanturrar a
criança cega de tantos significados de expressões artísticas visuais, tão verbalmente quanto
possível. Naturalmente, o cego sente que se não for capaz de provar que pode fazer o gesto
convencional da apreciação e comreensão artísticas, será olhado como não apreciador dos
valores estéticos e incapaz de viver uma existência artística.
Como resultado, temos o cego superestimando suas próprias e verdadeiras experiências
estéticas e repetindo várias tolices visuais, com a maior perícia. Quando é compelido a falar
sobre arte visual, com o dotado de visão, o que exprime é tão falho de autenticidade e
realidade quanto uma vitrola. Foram previamente ensaiados, lubrificados, e preparados em
atitudes de educação visual e apresentados como um disco que é a duplicação exata da
repetição visual. Toda a vez que um estímulo ou uma situação visual aperta o botão, o disco
tocará, até o fim, e depois ficará parado e silencioso.
A dificuldade na educação estética do cego não é tanto projetar-lhes novos métodos e
técnicas de apresentação de formas visuais de expressão, mas como imaginar meios através
dos quais, o cego possa evitar o efeito prejudicial do excesso dos mesmos. A expressão
artística visual não tem para o cego mais valor estético do que a arte cristã para um
"Yafoubo". Podem ser treinados a reproduzir algumas delas, mas nunca poderão vivê-la ou
criá-la. Seus valores estéticos são organizados de maneira diferente e assim permanecerão.
O muito criticado educador do cego, que é dotado de visão, levantar-se-á, indignado, e
perguntará, "Como então deveremos ensinar ao cego a apreciação estética e desenvolver seu
amor pelo belo, se tudo que temos é visual e inútil?"
A apreciação do belo não é nem
ensinada, nem aprendida formalmente. É uma fase do crescimento da personalidade e esta se
desenvolverá ou não de acordo com as condições sob as quais vive. Duvida-se que qualquer
preceito formal na expressão artística, tenha mais efeito sobre este aspecto do
desenvolvimento da personalidade do que meramente fornecer técnicas, que podem ser
empregadas nas genuínas expressões artísticas, no caso destas acontecerem, ou por imitação,
quando o crescimento estético não se efetua ao ponto de sustentar expressões criativas. Isto é
tão verífico, com o cego, como o é, entre os que enxergam. Os departamentos de belas-artes,
das nossas faculdades, não produzem maior organização estética no desenvolvimento da
personalidade dos seus estudantes do que as escolas de administração de negócios.
O cego, como o dotado de visão, deve ser ensinado, permitindo-se-lhe viver, para que seu
desenvolvimento pesoal possa incorporar as verdadeiras relações entre ele e o ambiente. Este
é um ideal social e educacional que nunca é alcançado, mas, quando dele ligeiramente se
aproximam, o resultado é o indivíduo culto, quer seja um indígena selvagem, quer seja um
diplomado. Estará apto a apreciar a beleza do seu meio ambiente, assim como a entender os
lugares comuns, o trivial. Terá idéias de valor artístico úteis ao seu grupo. A vida estética
inclui mais do que a apreciação das várias formas de expressão artística. A importância
destas reside, apenas, no fato de representarem a mais apurada forma convencional pela qual
os valores da vida estética podem socializar-se.
Como estímulo ao desenvolvimento estético, o objeto de arte é importante, na medida em
que, a representação concreta de um ideal pode ser abrangida mais efetivamente do que a
exposição abstrada do mesmo. Além do valor técnico pouco pode lucrar-se de um quadro ou
estátua que, dentro de uma história, não foi criado com o mesmo grau de domínio artístico.
A perda desta forma de estímulo não é tão importante para o cego como o educador é
propenso a crer, e é muito menos relevante do que o prejuizo acarretado pela tentativa fútil
de empregá-la como tal. O que realmente importa na vida estética do cego é o mesmo que na
do dotado de visão, exceto que se torna mais agravado com o cego. É uma dificuldade
social, própria do meio ambiente que se resolve através de um problema de desenvolvimento
da personalidade, no qual o cego encontra menos oportunidades para qualquer forma de
desenvolvimento estético.
O mais valioso estímulo para o desenvolvimento estético é sempre encontrado na situação
social do indivíduo normal, e a mais perfeita criação e expressão artística é seu
comportamento em relação a seu grupo social. São criadas atitudes sociais; que impedem o
cego de apreciar, a este respeito, seus próprios valores ou os dos que enxergam, seu
desenvolvimento cultural é distorcido por compensações egocêntricas e defensivas que
resultam numa pobreza espiritual trivial, medrosa e mesquinha. Assemelha-se a uma
caricatura de educação, na qual, a criança cega, que é potencialmente capaz de
desenvolvimento social normal, ao lado dos dotados de visão, é impedida, por seu miserável
ambiente institucional, a aproximar-se do desenvolvimento social dos videntes, resultando
perder para sempre a sua maior oportunidade para uma expressão estética, simplesmente por
nunca lhe ter sido apresentada.
É com grande hesitação que o autor aponta as mais proeminentes razões pelas quais a
instituição é uma forma deficiente de estímulo social e porque a estética social não penetra
através de seus muros. Há um provérbio no campo da física, que diz que a água não pode
subir além da nascente. Francamente, o corpo de pessoal dos institutos, com numerosas
excessões, é social e estéticamente incapaz de fornecer estímulo social adequado. Esta é a
razão primordial pela qual a educação do cego é, sempre foi e continuará a ser um fracasso.
O culturalmente cego não pode conduzir o fisicamente cego ao desenvolvimento social.
A investigação científica da percepção tátil pode revelar uma grande riqueza de
estimulação e expressão objetiva para o cego. Tanto as possibilidades, como as limitações de
tato, estão se tornando mais evidentes à psicologia, e existem motivos razoáveis para se
esperar que o campo do tato torne-se mais fértil em utividades estéticas do que tem sido até
o presente. Embora a quantidade de organização visual vigente determine a natureza
subjetiva de cada experiência tátil, existem condições, no padrão de estímulo tátil, que
deveriam produzir valores efetivos comuns. Entretanto, é de esperar-se que diferenças
individuais de valores efetivos das qualidades táteis, ocorram, na mesma escala, dos
existentes nos valores efetivos de cores. Há um grande número de estudos específicos que
devem ser levados avante, antes que, qualquer princínio definitivo possa ser posto em prática
no campo da estimulação estética e de expressão tátil. Qual é o valor afetivo da forma tato-
manual? Quais os valores afetivos, relativos das várias formas táteis? Que combinação de
tamanho e peso produzem o maior valor afetivo? Qual é o valor das qualidades de superfície
da elasticidade interior, a importância da textura, temperatura, umidade, lubrificação, a
poeira, a viscosidade, o deslize? A importância dos movimentos internos deveriam ser
investigados pois há evidências de investigações preliminares, de que as formas mutáveis
possuem os maires valores estéticos táteis. Apesar de tudo isto, a viabilidade de toda espécie
de experiência tátil, para o cego, é muito limitada.
Qualquer ataque inteligente ao problema do desenvolvimento estético do cego deve
abandonar o ponto de vista de que a percepção tátil é absolutamente adequada a produzir a
mesma riqueza de experiência fornecidas pela percepção visual. O apologista do cego, a este
respeito, procura encobrir a deficiência através de uma sutil combinação de experiências
táteis e verbais, nas quais o padrão de estímulo é uma parte insignificante da experiência.
Este subterfúgio foi apontado habilmente por P.Villey ( 8.2). Entretanto, não se aproveitou da
sua posição para mostrar de que maneira o tato pode auxiliar a vida estética do cego.
Na percepção tátil, o todo visual, que representa relações espaciais esquematizadas, não
pode ser compreendido; significados e relações contidos no complexo padrão visual não
podem ser percebidos; o significado visual dos materais trabalhados, não aparece. É
necessário, portanto, que o tato possa operar no seu nível perceptivo próprio, aonde pode
desempenhar um papel mais vantajoso.
O tato, tanto para o cego como para o dotado de visão, é uma experiência - muito concreta e
real. Se na percepção de objetos, visualmente expressos, está em desvantagem, o mesmo não
acontece quando empregado nas situações puramente táteis. Se uma estátua de bronze do
"pensador" não transmite ao tato a suavidade da carne e se sua postura é ambígua, pois os
dedos não indicam se ele sofre de dor de cabeça ou está apontando para um dedo
machucado, esta realidade deveria ser aplicada a um uso legítimo, em vez de anular os
valores que são expressos na forma visual e no significado.
Na verdade, o cego pode gozar da realidade concreta de tato de uma maneira muito mais
ampla do que se supõe geralmente. Esta forma de prazer estético é auto-revelada, como a
bota na infância de Laura Bridgman. O autor colecionou muitos exemplos, nos quais objetos
comuns eram enormemente apreciados, pelo puro prazer tátil de manipulação. Um adulto de
vinte e dois anos era extremamente afeiçoado ao aspecto das bolas de aço de três quartos de
uma polegada de diâmetro. Um punhado destes objetos, simétricos e polidos,
proporcionavam-lhe o maior prazer tátil. Não um prazer extravagante e transitório, mas
constantemente desfrutado, dia após dia. A forma simétrica das bolinhas e sua capacidade
de produzir padrões táteis variáveis eram a fonte de seu fascínio.
Uma jovem de dezoito anos possuía, desde sua infância, um conjunto de fichas de
borrachas para pôquer, com as quais se distraia diariamente. Isoladamente, eram macias e
muito simétricas; quando empilhadas e seguradas com a mão eram capazes de tomar
contornos e formas diferentes, e apesar da mudança de feitio a simetria do todo permanecia.
Seu prazer restringia-se unicamente à manipulação tátil.
Um inquérito sucinto e sagaz, feito entre os cegos, revelará uma longa lista de objetos que
são apreciados pelas suas formas simétricas, tatilmente percebidas, pela simplicidade de
padrão, constante ou variável, e pelas qualidades de maciez ou quase maciez - garrafas,
tubos de ensaio, pequenos artigos de louça, porcelana, jarros de barro, pequenos potes,
bolsas de couro, bolsa d'água, pedaços de sabão não usados, pedras simetricamente
moldadas, pequenas caixas de laca, cordas de couro crú trançadas.
Se o cego é capaz de colher tal estímulo, de padrões vazios de conteúdo intelectual e
emocional, apenas porque estão no seu nível perceptivo, é de se supor que se estes objetos
estivessem carregados de conteúdos significativos poderiam enriquecer infinitamente a vida
estética. Quando deixado com suas próprias possibilidades, é isto, precisamente, o que tenta
alcançar, o cego inteligente. Mas dificilmente obterá um grau considerável de
desenvolvimento intelectual sem ter seus valores estéticos distorcidos e envenenados pelos
valores e atitudes dos que enxergam.
O autor é bem relacionado com um cego, pessoa educada, que insiste em manter seus
próprios valores estéticos. Para ele, o mais perfeito padrão de estímulo tátil, além de formas
vivas e móveis de animais é um sabre bem conservado, do período da guerra civil. Este
objeto concreto e real é belo, não somente como objeto, mas porque possui conexões com
toda a história econômica, política e militar do período da guerra civil, e igualmente com a
história cultural de "New England", onde o sabre foi fabricado e adquirido.
Conseqüentemente, esta pessoa pode obter mais prazer estético de uma espada, feita durante
este período, do que do exame tátil de todos os objetos de arte do melhor instituto de "New
England".
A arte tátil do cego é uma arte tátil concreta - objetos concretos em tamanho contorno,
forma e textura, assim como, em significados. Uma pequena e comum urna grega, de terracota tem mais valor estético para o cego do que todas as esculturas de Fídias. Contém não
somente tudo o que a cultura grega significa para o indivíduo, mas é, ao mesmo tempo, um
objeto tátil real e completo, capaz de carregar um sentido de beleza peculiar. Do mesmo
modo, um velho jarro escocês, de rapé, além de ser concretamente agradável de ser
manejado, tem o poder de relembrar velhos presbíteros de uma igreja escocesa que
esvaziavam em suas reuniões anuais.
Se a educação espera ensinar ao cego uma apreciação das realizações materiais da história
cultural, tem que fazer uma das duas coisas. Ou os métodos e conceitos de educação devem
ser revistos, para que seja ensinada experiência, em vez de palavras, e atitudes copiadas dos
dotados visão, ou o cego deve ser deixado com os seus próprios recursos para descobrir
meios de expandir seus valores estéticos.
A literatura dará ao cego todos os valores e atitudes que necessita. A apreciação musical,
felizmente, é tão subjetiva que está colocada além do alcance da espoliação visual. É
interessante especular-se sobre o que faria o professor de música que seu aluno, cego
congênito, não estava nem se deliciando, nem sentindo a seleção musical com mesma
maneira que ele. É interessante notar-se que a única arte na qual o cego é eficiente é a única
que não pode ser subjugada pelos valores e significados visuais.
O cego, como um grupo, sofre mais em sua vida estética, da falta de educação sensorial, e
motora do que da falta de visão. Os métodos americanos de educação ainda não fizeram a
diferenciação entre esta e o treinamento.
As formas de educação sensorial e motora que são
oferecidas nas escolas para cegos são melhores classificadas como migalhas de treinamento
intensivo mais do que educação. No momento em que, a criança cega empalheira sua sua
primeira cadeira, ou completa sua primeira rede, ela já recebeu destas atividades todo o valor
educacional que as mesmas podem oferecer. É claro, que irá aumentar sua eficiência, rapidez
e precisão na manipulação. Esta habilidade continuará a se expandir, mas, infelizmente, o
mesmo acontecerá com sua deficiência sensorial e motora, de um modo geral. A criança
cega, inutilmente tenta educar-se através da aquisição de habilidades especiais, que são
propositadamente escolhidas pela falta de complexidade, e porque envolvem um longo
período de cansativa monotonia de movimentos repetidos. Se a criança cega, no momento
em que amarra a sua primeira rede não tiver extraído dela todas as relações e filosofia que a
mesma contém, também não o fará após a quinquagésima. O mesmo sucede com quase
todas as outras atividades de treinamento manual, com exceção da carpintaria. Nesta,
felizmente para o cego, o trabalho não pode ser reduzido à simlicidade de um processo
mecânico homogêneo e repetido. Mas é surpreendente, como um grande número de
professores a proximam disto.
O espírito de Valentin Haüy ainda paira sobre a educação sensorial e motora do cego.
Ainda é necessário oferecer provas concretas da capacidade de desenvolvimento intelectual
do cego. A educação sensorial e motora de todas as crianças, que freqüentam instituições, é
medida em termos de habilidade especializada. Se produzir três cadeiras empalhadas até o
fim do ano, ele é superior, em desenvolvimento sensorial e motor, à criança que produziu
apenas uma ou duas. Não importa a capacidade de uma e outra em manipular o mais vasto e
complicado aspecto do seu meio ambiente em geral. Os modernos métodos de treinamento
dos sentidos para os cegos, conservam a maioria dos sofismas psicológicos e educacionais
de Haüy e deram sua contribuição ampliando-os.
Haüy, como pioneiro, encontrou apenas algumas atividades adaptáveis aos cegos. A
primeira, entre estas, era a encadernação. Desde então, muitas outras formas de atividade
foram adicionadas à lista de métodos de treinamento dos sentidos. Foram consideradas mais
apropriadas à educação do cego por serem mais mecânicas e proprocionarem um campo
mais restrito de atividade e movimento. A confecção de cestas, é em geral, considerada de
maior valor educacional do que a encadernação, por ser mais simples e mais facilmente
reduzida às repetições mecanicamente aprendidas. Portanto, em consideracão à
aprendizagem mecânica e à realização de movimentos automáticos, foram introduzidos
dispositivos, meios de treinamento, que são educacionalmente muito inferiores, e a falha tem
se agravado pelo sofisma adicional de que um método deficiente pode ser superado pela
multiplicação de métodos deficientes.
Na realidade, não nos deveria surpreender ou desapontar, o fato dos cegos, no momento da
sua colacão de grau, serem ainda, com exceção da sua habilidade manual especial, muito
deficientes nas funções motoras e sensoriais. São capazes de tecer cestas e tapetes, recolocar
assento nas cadeiras, fazer vassouras, e muitas outras coisas especiais. Mas, e a sua
habilidade motora e sensorial em geral? Esta é uma pergunta raramente feita. Que
facilidades motoras e perceptivas exige o graduado de um instituto nas funções mais
simples, tais como: limpar um peixe, descarnar um coelho, consertar instalações elétricas,
remendar o linólio da cozinha, lavar o carro da família, reparar um pneu furado, limpar e
reparar sua própria máquina de escrever, ou mesmo colocar uma atadura no próprio dedo
machucado?
A maneira pela qual funções como estas são executadas é que demonstrarão o nível da sua
educacão sensorial e motora e será muito pouco influenciado pelo seu treinamento sensorial
e motor especial. É verdade, que muitos cegos fazem regularmente tudo isto e até mais, mas,
não foram estas funções ensinadas nos institutos. As habilidades especiais adquiridas aí,
tornam necessário que a educação motora e sensorial continue, eventualmente, durante o
período em que o instituto é freqüentado, ou seja, adiada para aquele infeliz período pós-institucional de ajustamento. Então, a maturidade estará muito perto, e terá passado o melhor
tempo para toda aprendizagem.
Se a educação sensorial e motora algum dia penetrarem vagarosamente nas escolas para
cegos, o que não acontecerá enquanto a repetição for o lema para o processo cultural, surgirá
numa forma muito diversa do que é atualmente ensinado como treinamento dos sentidos.
Não será um processo estéril, mecânico, tanto para o ensinamento como para a
aprendizagem. Não será possível ensiná-lo ou aprendê-lo através de instruções automáticas,
tais como: "Atrás de um e na frente de dois" "Dois tricô e dois meia" "Três de verde e seis de
rosa" "Cinqüenta nós para uma carreira e cinqüenta carreiras para um corpo" "Quando
escrever "z" aperte os pontos um, três, cinco e seis".
Um funcionamento sensorial e motor inteligente não pode ser produzido em partes, mas
únicamente, como uma expansão global. O treinamento deve consistir, sempre em novas
situações, nas quais o discernimento ativo das experiências sensoriais prévias é necessário
para apropriar-se de adaptação inteligente. Antes que qualquer mudança sanadora ocorra nos
métodos educacionais de treinamentos sensorial, há necessidade de uma recomposição de
sistemas e valores. ;Inicialmente, serão convocados professores mais inteligentes. Em
segundo lugar, o treinamento industrial deve ser reconhecido como incapaz de prover
educação sensorial adequada. Em terceiro, será necessário compreender que o valor
educacional reside na atividade e não na repetição monótona ou no seu produto material
final.
As inovações que serão feitas nos métodos destinados à educação sensorial, nas escolas
para cegos, aparecerão lentamente e muitos anos após terem sido aceitos nas escolas para os
dotados de visão. No momento atual há uma séria escassez de professores competentes, nas escolas para
cegos, e qualquer revisão de métodos e conceitos fundamentais tornará esta falha ainda mais
grave. É possível mudar-se a teoria educacional da noite para o dia, mas requer mais de uma
geração para alterar-se métodos de ensino.
A separação do treinamento industrial do sensorial será, durante muito tempo, impedida,
sob o pretexto de eficiência prática. A filosofia americana de matar dois pássaros com uma
pedra só é uma característica tanto institucional como individual. O autor encontrou apenas
dois educadores que foram os únicos que se aperceberam da deficiência, no presente método
educacional de treinar as percepções sensoriais e as habilidades motoras, em combinação
com as finalidades vocacionais e semi-vocacionais. A meta final de todo treinamento
sensorial, sob os métodos atuais, é o produto terminado, completo, de qualquer espécie -
uma linha de Braille, uma vassoura esmerada, uma maçã plástica, uma enfiada de contas,
ou, mais ridículo do que tudo, uma silhueta de papel, cortada com tesoura e cheia de
significação visual. Este estúpido programa materialista alcança seu fim, e infelizmente para
a criança cega, nada mais além disto. A meta da criação é mecanizada, com o resultado
inevitável de que o método, sob o qual é produzida, torna-se mecanizado. A repetição
prosaica fixa a educação da criança em geral no nível do seu ato inicial, enquanto seu
progresso geral é relativamente embargado, pois, seu intelecto não acompanha o
desenvolvimento neuro-muscular. Deficiências sensoriais e motoras entram na escola com a
criança em proporção à sua idade, ela sai daí com um maior acúmulo de deficiências.
Educação, sensorial e motora, adequada é fundamental para o problema do
desenvolvimento estético. Para a criança cega, como para a que enxerga, a expressão estética
criadora é o mais importante aspecto da existência humana, assim como a mais
negligenciada. Nenhuma forma de expressão criadora pode surgir de habilidades
mecanicamente rotineiras, por mais apto que seja o construtor e por mais eficiente que seja o
seu trabalho. À criação falta o espírito inteligente e a unidade emocional do planificador e do
construtor. Toda criação estética requer mais do que a destreza manual necessária para
construi-la.
Ela requer inteligência suficiente para achar o conceito apropriado e uma visão das relações
do ego com o seu meio ambiente necessárias para incorporar este significado à criação, quer
seja a construção rudimentar de um estilingue infantil ou a obra literária de um adulto. A
educação sensorial e motora deficiente não somente falha na execução de um estilingue
rudimentar mas, o que é infinitamente pior, deixa de criar o desejo para o mesmo. O
indivíduo cego de uma escola para cegos que se especializou em fabricar cestas não somente
será incapaz de construir uma peça de cerâmica, uma bandeja de cobre, uma faca de marfim,
para cortar papel, mas nunca, almejar fazê-las, até que a sua vida estética se identifique com
a sua habilidade neuro-muscular. Enquanto ele estiver equipado com habilidades mecânicas,
repetidas continuará a manufaturar automaticamente o que lhe foi ensinado organizará
subjetivamente qualquer capacidade criadora estética que possua, por menor que seja, dentro
da irrealidade de arquitetar fantasias.
-
Notas
8.1 - Cf. T..D. Cutsforth, "An Analysis of the Relationship between Tactual and Visual Perception", a aparecer em Psychological Monographs 42 ( 1933).
-
8.2 - Pierre Villey, "The world of the blind" (Macmillan Co, 1930), Chap. XV.
Capítulo IX - Problemas relativos à personalidade, nas instituições, para cegos.
Não é finalidade deste capítulo criticar as instituições educacionais para cegos, mas sim
discutir aqueles aspectos da vida institucional que, mais diretamente, contribuíram para
deturpar a personalidade dos alunos e que tolheram o seu ajustamento social subsequente.
Mostrar que aquelas condições, que desabonam as instituições, têm origem na própria
natureza do sistema institucional, tal qual ele é organizado pela sociedade. Como o próprio
cego, as instituições, representadas nas pessoas dos seus superintendentes e professores, são
muito sensíveis em relação aos seus defeitos e construíram defesas e explicações
racionalizadas para ocultar, o que reconhecem ser, condições desfavoráveis e altamente
ineficientes. No decorrer das investigações dos efeitos da vida institucional sobre o cego,
todos os aspectos do assunto tratado neste capítulo foram discutidos com dirigentes. Espera-se que nada tenha sido dito por qualquer um deles ou por qualquer professor inteligente, que
não possa ser repetido na presença de seu superior. Embora se possa chegar a conclusões,
não inteiramente lisonjeiras para alguns aspectos das instituições, nenhuma tentativa foi
feita para depreciar os esforços sinceros devotados daqueles que estão engajados na missão
de educar as crianças cegas deste país.
A posição do dirigente, em qualquer instituição estadual, é na verdade, ingrata e
normalmente mal remunerada. O estado exige que ele administre eficiente e
economicamente. A sociedade exige que ele trate com consideração aqueles que lhe são
confiados. Sendo a habilidade administrativa o requisito preliminar para um dirigente bem
sucedido, acontece que os hospitais estaduais, para doentes mentais têm melhores dirigentes
do que psiquiatras; que as penitenciárias têm excesso de administradores, mas poucos
criminologistas; e, igualmente, nossas escolas para cegos, possuem administradores capazes,
mas não contam com educadores eméritos.
Os dirigentes e as instituições não podem ser responsabilizados por esta situação, que é
produto da política estatal de administração dos institutos. Não lhes cabe culpa se a
instituição não atrai elementos capacitados. As condições são tais que, um administrador
eficiente e habilidoso, pode ser um sucesso, aos olhos do governo, pela simples razão de
manter as despesas do instituto dentro da verba concedida no biênio anterior, ao passo que
um educador iria, inevitavelmente reorganizar e alterar o instituto e fazer exigências,
aparentemente tolas e desnecessárias; para seu aperfeiçoamento. O administrador eficiente
detesta elevar o orçamento do instituto, tanto quanto ao estudante econômico repugna
escrever para casa pedindo dinheiro, mas, de outro lado; o educador, que sente sua
responsabilidade educacional, e como o estudante que compreende que pedir ao pai faz parte
do jogo.
Outra situação desfavorável, que é inteiramente inerente ao sistema estatal, é o baixo nível
salarial imposto aos professores e empregados, na maioria dos institutos. Devendo a
educação do cego ser parte de um campo especializado de educação, a remuneração
inadequada terá, forçosamente um dos dois efeitos. A posição será preenchida ou por
professores inexperientes, que impedirão proporcionar treinamento adicional, ou, pior ainda,
por aqueles com considerável experiência, que foram incapazes de atualizar seus valores
profissionais. Existem, dentro do professorado, indivíduos que, por dificuldades de ordem
pessoal, não conseguem vencer a concorrência nas escolas para os que enxergam e refugiam-se nas posições, comparativamente menos procuradas dos institutos. Esta condição é válida
em todas as posições, desde a dos diretores de escolas ginasiais até os de setores primários.
A finalidade básica da fundação, por parte do Estado, de um instituto educacional para
cegos, é de estender a este grupo da sociedade, as vantagens que, acredita-se, não serem
exequíveis através do seu sistema escolar público. Esta é a teoria, aceita pela maioria dos
cidadãos, e na verdade, é o conceito sob os quais as instituições são dirigidas. Pode-se,
entretanto, perguntar se o aluno cego aceita esta idéia de relação entre a sociedade e ele
próprio. Infelizmente, a resposta é negativa. Aparentemente, parece que sim, pois continua a
comparecer, mas, raramente formula objeções às situações sociais através de palavras.
Entretanto, não é necessário muito tempo para que a criança deduza, pelas atitudes do
público dotado de visão e do pessoal do instituto, que ele é, muito mais do que a criança que
enxerga, uma responsabilidade pública. Compreende logo, que o hospital estadual para
dementes, a penitenciária estadual, os reformatórios para meninos e meninas, estão sob a
mesma administração geral que dirige sua escola. Compara as regras e regulamentos desta
com os das outras crianças, e não demorará muito a obrigar-se a aceitar a situação, como ela
realmente é. Tem a sua primeira experiência de sentir-se como um encargo público e,
freqüentemente, até como um ônus social. Verificou-se que, crianças de apenas oito ou nove
anos, chegaram, precisamente, a estas coclusões. É possível mostrar-lhes que sua escola é,
logicamente, em princípio, comparável a uma universidade ou colégio estadual, mas,
emocionalmente, a lógica não tem significação. Esta sensação é agravada se a criança
percebe, em sua família, uma disposição exagerada de transferir à sociedade, por algum
tempo, ou mesmo por um período indefido, o ônus econômico do seu treinamento.
Dificilmente poder-se-á afirmar que esta atitude de auto-crítica, não tenha influência
marcante sobre o crescimento da personalide de uma criança educada num instituto.
Com o correr dos anos, torna-se mais vivamente conscia da sua posição social e mais
ajustada à mesma, até que no momento em que terminar a escola, não será aversa a
continuar no papel de um ônus público. A situação é, sob o aspecto subjetivo, análoga
àquela que o conhecimento da ilegitimidade ou a descoberta tardia de ser adotado contribui
para a delinqüência ou outros desajustamentos de personalidade.
Uma instituição para educação do cego, como qualquer outra instituição ou sistema escolar
altamente organizado, inevitavelmente se torna mais absorvido em manter sua própria
integridade, do que seus resultados, menos tangíveis, mas não menos essenciais. Torna-se,
cada ano, mais evidente, que o sistema democrático de escolas públicas, na América, está
deixando de cumprir sua finalidade e, entre os educadores, há pouca dúvida, de que as
instituições de educação superior estejam preenchendo insuficientemente suas funções na
sociedade. Portanto, as escolas para cegos não estão sozinhas na sua incapacidade de atacar a raíz de
seus problemas. Foram comparadas, por um brilhante aluno de escola estadual, a um
rinocerante, que, depois de atacar seu inimigo imediato, e de espezinha-lo, continua seu
ataque indefinidamente, tornando-se mais formidável e eficiente no seu impulso crescente.
Mas é incapaz de descobrir outros inimigos. Absorve-se inteiramente nas esplêndidas
formas e domínio de sua presa, nas quais o sacudir de chifres sincroniza- se perfeitamente
com as batidas e resfolegos.
Há alguns anos, as escolas para cegos alcançaram sua finalidade imediata, de fornecer aos
alunos uma educação literária.adequada. Desde então, a maior parte de seus esforços foi
empregada no apuro de métodos e organização institucional, sem metas definidas, a não ser
de criar uma instituição típica e eficiente. O espirito criador, no campo de educação para os
cegos, na América, morreu com Samuel Gridley Howe em 1872 ( 9.1). Depois dele, os
educadores se satisfizeram em imitar as realizações materiais daquele pioneiro mas, nenhum
ousou ir além do que ele já conseguira, isto é, fornecer uma metodologia pela qual pode ser
ministrada uma educação liberal. Imitaram suas conquistas materiais unicamente
construindo maiores e melhores institutos, com maiores e melhores bibliotecas, planejando
outros e melhores sistemas puntiformes para ler e dispositivos mecânicos para impressão;
melhorando as oficinas, os métodos, e equipamentos para salas de aula. Além disso,
dificultaram todo o sistema educacional com sufocantes e invioláveis conceitos, que são
costumes tradicionais da vida institucional através do país. Em resumo, estão tão absorvidos
em manter a integridade da instituição, com suas metodologias e tradições, que perderam a
visão do indivíduo cego, e do fato de que cada aluno representa um problema social e
individual isolado, em vez de mais uma justificativa para a existência de uma instituição que
a prática social e a tradição perpetuaram.
Isto tornou-se justificativa para as escolas, a tal ponto que, dificilmente haverá uma fase de
atividade do aluno na qual a primeira e mais importante deliberação não seja a conveniência
da instituição, em vez das necessidades vitais e educacionais do aluno. Sempre que esta fase de ossificação social é atingida, em qualquer instituição, quer seja de
cegos, ou uma tribo de índios ou exército nacional, a eficácia é reduzida ao mínimo.
Howe, como Martin Luthero, realizou uma reforma e fundou uma instituição social muito
útil. Mas, como o protestantismo, ela cristalizou-se no nível em que foi fundada. A teoria
social mudou, a prática social em geral continuou dinâmica, mas, o apego à tradição e à
sombra do fundador anularam a finalidade essencial para o qual as instituições foram
originalmente criadas.
Em 1832 Samuel Gridlev Howe revolucionou o tratamento do cego, na América, ao
introduzir o sistema de educação literária e manual fundando a Escola Perkins. Os cegos
começaram a participar da atividade intelectual de seus irmãos dotados de visão; foram
ensinados a compartilhar das atividades industriais dos seus vizinhos. Cem anos mais tarde,
os cegos ainda labutam, sem esperanças, com os problemas de personalidade e lutam,
inutilmente, com ajustamentos sociais. Os princípios estabelecidos por Howe não os
ajudaram a livrar-se do isolamento social, que talvez tenha sido ampliado pelo libertar da
mente e pela perspicácia dos sentidos. Na verdade, o sistema que ele introduziu, muito
contribuiu para agravar, nestes últimos anos, os problemas de personalidade dos cegos.
Howe viveu numa época de extremo individualismo, quando o homem era considerado o
senhor do seu destino e, o racionalismo lógico social de Rousseau e Voltaire ainda não havia
demonstrado sua inconsistência social. Havia muito de sábio e cientista naquele velho e
grande abolicionista, a tal ponto que se visitasse a América, após cem anos, seria o primeiro
a queimar uma grande parte da sua própria obra. Sem os ensinamentos de Freud e Jung, ele
perceberia que, na atual fase da educação do cego, uma mente ativa e alerta é inútil, quando
acompanhada de uma personalidade frustada. O cego do seu período era o contraste do
anterior a 1832, mas, agora, o cego se compara ao dotado de visão do ano 1932.
Os verdadeiros e vitais problemas da educação do cego, em 1932, não são os técnicos de
como aprender aritmética, geografia, latim ou mesmo de soletrar ( 9.2). Os métodos
educacionais, atualmente usados, são suficientes para fornecer ao cego todas as informações
de que necessita. Muitos jovens estão aprendendo Braille antes da hora.
O problema que está desafiando os educadores dos cegos, quer eles percebam ou não, é a
tarefa de reformular seu treinamento a fim de capacitar os cegos a viverem
harmoniosamente, consigo mesmos, e com conforto, social e mental, dentro da sociedade dos
que enxergam, na qual em última análise, deverão viver.
Visto que pouquíssimas investidas conscienciosas, foram feitas a este problema, não será
de se admirar que tão poucos progressos tenham sido alcançados. Perceber-se-á que as
instituições, que foram modeladas pelo sistema de Howe, carecem, lamentavelmente, tanto
de métodos como de conceitos, que não foram supridos pelo mesmo. As condições
educacionais do século XX são muito mais amplas e compreensivas do que as do século
passado. Howe conquistou fama internacional por educar Laura Bridgman no mesmo nível
de uma pessoa retardada mental. O cego-surdo do século XX torna-se famoso, somente,
quando recebe grau de bacharel ou faz conferências. Há cem anos atrás, um artífice cego
seria tão excêntrico como a "Fita do Chapéu de Dick", e, apesar disso, seria um grande
sucesso. Atualmente o cego deve distinguir-se o menos possível dos outros cidadãos. Não
podem permitir-se ao luxo de nenhum conjunto de defesas e compensações sociais. Devem
ajustar-se aos constritivos conceitos de serem membros aptos e adequados da sociedade.
Perguntar-se-á, como o exame de tais fatores, estranhos e tão desastrosos, contribuirá, de
qualquer forma para a compreensão da personalidade da criança cega? A psicologia desta,
como a do rato, do pintinho e do dotado de visão, está relacionada mais intimamente com a
situação total, da qual ela é parte, do que com os gráficos educacionais e diferenças
individuais. Estudar a personalidade do cego, sem levar em devida consideração os fatores
do meio-ambiente, seria tão incompleto e ilusório, como estudar-se a eficiência de um motor
gasolina, sem levar-se em consideracão a qualidade dn combustível empregada.
Neste
problema, está a resposta à questão: de como existem tantos cegos, proeminentes, que não
foram educados em instituições, tais como Gore, Pulitzer, Pearson, Scholl, Irvine, Scapini e
outros, e porque tantos, igualmente brilhantes, saídos dos institutos decaíram abaixo do nivel
médio. A razão desta diferença surpreendente não está nem no próprio indivíduo, nem no
público dotado de visão, que é invariavelmente o mesmo para todos. Portanto, deve ser
procurada em outro lugar. As próprias instituições são responsáveis pelo triste malogro de
não alcançarem sua meta educacional primordial, isto é, produzir individuos capazes de se
ajustarem ao mundo dos que enxergam.
Este infeliz e mau desenvolvimento das instituições para educação dos cegos não é devido
inteiramente ao próprio sistema de educação, mas em grande parte é delineado por uma
situação mais complexa: a sociedade que fundou e mantém as instituições. Novamente o
trabalho grosseiro da eficiência administrativa é exposto, pois, na verdade, que tempo ou
motivação possui um administrador de uma instituição, para estudos experimentais de seus
problemas, quando não está conciente da existência dos mesmos, nem familiarizado com os
resultados do seu regime vigente? É quase compelido a fazer da instituição sua primeira
consideração e empregar aqueles que fazem o mesmo. Sua atitude é a seguinte: Deixemos
aqueles que têm comissões de controle menos exigentes e legislaturas menos econômicas,
mostrar-nos o caminho, e então teremos um ponto de argumentação evidente, para provar a
necessidade de alterações, dentro da nossa instituição, caso, realmente, algumas devam ser
feitas. Deste modo, a única liberdade possível ao superintendente é no sentido de expansão,
afim de ir ao encontro das exigências de crescimento de uma população que aumenta dia a
dia, o que é na essência quase o mesmo. Nas escolas para cegos, a insistência sobre a
eficiência administrativa, no escritório do superintendente ou na sala de aula, não é mais
proveitosa à adaptacão qualitativa e ajustamento às necessidades do aluno, do que nas
organizações escolares públicas e universidades. Quando, numa situação, o mesmo esforço
for exigido, da parte dos professores, para agir prudentemente ou para agir indiferente e
prejudicialmente, o resultado inevitável é o das instituições tornarem-se insensíveis às
exigências da personalidade em crescimento. Mesmo que a comissão estadual de controle e
o poder que ela representa permaneçam sobre a instituição, como um espectro, seria possível
para o pessoal, se eles estivessem dispostos e conscientes das exigências, fazer mais o favor
do melhoramento dos problemas da personalidade do aluno.
O interesse das finanças públicas, inevitavelmente, entra em conflito com os interesses
educacionais do aluno. Em primeiro lugar, o aluno sente a situação geral, na qual ele, como
um indivíduo em expansão, é membro de uma instituição que simplesmente não permite
expansão.
Sob o ponto de vista do meio-ambiente, a instituição, além das classes de aulas, não
proporciona no 8º ano, maior campo para uma livre atividade do que no 1º ano. E
relativamente, em termos de exigências individuais, que se multiplicam, isto significa que a
instituição, efetivamente, restringe, pois oferece um ambiente menos adequado do que o
inicial. Este ambiente, torna-se progressivamente deficitário em proporção ao tempo aí
decorrido, ou, em outras palavras, sua adequação é inversamente proporcional à idade do
aluno. O indivíduo logo reconhece o fato de que qualquer conflito que surja entre as
exigências de sua personalidade em crescimento e os limites de atividade, prescritos pelos
recursos e tabus da instituição, terminarão com a completa vitória deste último.
Um
superintendente, a quem foi perguntado: como os alunos se ajustavam às limitações das
atividades institucionais, replicou desembaraçadamente: Eles logo aprendem, através de
experiências e erros, até que ponto lhes é permitido ir e quais são as regras, e satisfazem-se
em desfrutar aquilo que escola pode fornecer."
Nenhum animal enjaulado, nem mesmo a criança cega de instituição percebe a limitação
do seu meio ambiente através de experiências e erros. O que estiver disponível será utilizado
mas o que não estiver lá, tornar-se-á, rapidamente, inexistente, como se não existisse em
parte alguma. O crescimento potencial se interioriza e a criança cria um mundo subjetivo,
que não pode suportar relacionamentos mais complexos do que os fornecidos pela mente
infantil. O poder de adaptação às varias e rápidas mudanças perde-se proporcionalmente à
extensão do crescimento introvertido. Na época de sua saída ou da colação de grau, o aluno
confronta-se com uma infinidade de situações e de relações, que variam rapidamente, que
ele não comprende e de cuja existência eles não se apercebiam.
A direção dada pelas instituições ao desenvolvimento do caráter podem ser severamente
impugnadas. A educação do caráter oferecida pelas instituições, não somente revelam a
verdadeira atitude dos funcionários para com os alunos, mas, ao mesmo tempo, fornecem a
estes os conceitos e o comportamento social mais apropriado para tornarem-se, social e
economicamente dependentes. Este é o inevitável de desenvolvimento da verdadeira situação
social nas instituições. Visto que os próprios funcionários não possuem a confiança e a fé
que proclamam, no sucesso final dos alunos, nenhuma outra atitude de auto-estima é
possibilitada a estes. Portanto, atitudes sadiamente independentes, para consigo mesmo, ou
para com os outros, nunca poderão ser incorporadas a seus comportamentos pessoais. Em resumo, esta situação repete, em pequena escala, as exigências, do mundo que enxerga,
sobre a personalidade do cego, forçando aquelas atitudes fracas e auto-destrutivas que o
próprio mundo dos que enxergam detesta encontrar nos cegos.
Inicialmente, todos deveriam viver de acordo com as leis divinas, que acontece serem
igualmente, as leis de cada instituição em particular. Deveriam praticar as virtudes cristãs,
salientando-se, especialmente, a obediência, respeito pelos superiores, o virar da outra face,
mais abençoado dar do que receber, a honestidade é a melhor política, cedo para cama, e
vale a pena anunciar. Devem apresentar-se sempre alegres, agradáveis ao próximo e, em
todas as ocasiões, felizes, não de um modo vigoroso, mas sim, otimista, como se o cego,
sozinho, tivesse resolvido o problema de como encontrar completa e eterna felicidade, aqui
na terra. O comportamento social é dirigido no sentido da aquisição de uma personalidade
trivial e banal.
Nenhuma individualidade rica em auto-expressão é encorajada. Audácia, rebeldia, orgulho,
ressentimento e outras, das boas e velhas virtudes pagãs, não são fomentadas. Henry James
tinha abundantes elementos para a seguinte descrição das monótonas cenas de Richmond:
"as vistas triviais, as perspectivas indefinidas, eram tão tristes como as faces de um cego. (
9.3)
Na verdade, a instituição não é capaz de desenvolver personalidades individualistas,
positivas e viris, pois apenas uma personalidade incompleta, vazia, pode existir dentro de um
ambiente não incompleto e vazio.
O aluno exuberante, de personalidade agressiva e irrefreável, quase sempre se constitui
num problema disciplinar. Nenhuma virtude é percebida em sua atividade salutar, somente
inconveniências e impecilhos à rotina. Na carreira de tal aluno ocorre, inevitavelmente uma
das duas coisas: ou é declarado indisciplinado e é mandado embora ou depois de certo
tempo estará frustrado, domado, até o ponto suficiente de conformidade com o conceito
institucional de comportamento adequado. De outro lado, o aluno, orgulho da instituição, é
aquele que intuitivamente sente as exigências e expectativas do lugar e conseqüeentemente
nunca viola, quer por palavras quer por ações, os costumes e tabus. Este objeto da felicidade institucional possui uma índole dócil, jovial, aparentemente
nenhuma preocupação ou curiosidade ardente, além das tarefas imediatas,.que lhe foram
designadas. Enquanto os estudos e trabalhos exigidos forem consciencios, e laboriosamente
executados, a inteligência será supérflua. Com estes pré-requisitos, o sucesso institucional
do aluno está assegurado, quer ele seja ou não, um completo fracasso, posteriormente,.
Freqüentemente, há pouca dúvida e pouca preocupação por parte da instituição, pelos
resultados finais.
Será quase impossível discuutir-se, detalhadamente, todas as condições que, dentro das
instituições, contribuem para as deficiências da personalidade do aluno cego. Deve-se
reconhecer que este problema é relativo não somente à cada instituição isoladamente, mas
também a cada alunio invidualmente e aos mestres que eles enfrentam.
Na escola primária, aonde os problemas de personalidade pareceriam a um observador
casual, como os menos importantes, ocorrem algumas das mais flagrantes violações da
higiene educacional. Foi mostrado, no capítulo sobre a criança cega na fase pré-escolar, que
ela chega a esta idade com o desenvolvimento muscular, proporcionalmente, inferior aos da
criança dotada de visão. Não obstante, os professores destes departamentos parecem
obcecados com a presumida necessidade de iniciar-se, imediatamente, a educação literária
da criança. Para a grande maioria dos professores primários, educar uma criança cega
significa ensinar-lhe, sem demora, ler e escrever em Braille e aprender intrincados e
complicados trabalhos manuais, até o limite de sua capacidade. Apesar de centenas de
crianças cegas demonstrarem, todos os anos, ser isto possível, a conveniência e o critério
definitivo podem ser questionados. Qual é o preço pago, em termos de saúde mental e
felicidade, por esta imposição prematura de tarefas complexas?
Quais os resultados que já foram observados, de ensinar-se a ler e escrever em Braille,
antes do crescimento e do desenvolvimento terem alcançado grau suficiente para suportar tal
atividade Inicialmente, é necessário fazer-se uma análise do Braille e apurar-se com que forma de
atividade, dentro do processo educacional da criança que enxerga, ele pode ser comparado.
O Braille é um sistema de escrita puntiforme, no qual as letras são combinadas através de
pontos em relevos. Sendo um sistema extremamente volumoso, os pontos são colocados de
tal modo que estão pouco acima da habilidade descriminatória dos adultos. Quando
comparamos este meio de leitura com a impressão visual, compreendemos que para ler a
letra B em Braille requer o mesmo grau de energia nervosa que é necessária para ler-se uma
edição, na qual, cada letra é do mesmo diâmetro de um alfinete comum.
Qual o educador, responsável pelo bem estar de alunos dotados de visão, de jardim de
infância ou de escola primária, que iria forçá-las a começar a ler sob uma tensão física e
mental tão extenuante? Isto é, exatamente, o que fazem os educadores dos cegos. Mesmo que
a tal excesso não resulte nenhuma psicose, a criança cega não escapa incólume.
Além desta tremenda desvantagem, sob a qual a criança cega começa a ler, há uma
segunda, que geralmente não existe na criança que enxerga. Como já foi demonstrado, a
criança cega na idade pré-escolar, sofre muito pela falta de estimulação motora e motivações
para a atividade física. O departamento primário, da escola para cegos, deve suprir este
desenvolvimento motor falho, antes de lançar a criança às tarefas regulares, de ler Braille, de
fazer trabalhos intrincados, os quais pressupõem, pela sua própria natureza, um grau de
desenvolvimento neuro-motor que ainda não foi atingido. Apesar de ser possível, em alguns
casos, a criança fazer progressos no Braille e em trabalhos complexos manuais, logo após a
sua chegada na escola, mesmo assim, é uma prática custosa e perigosa.
A criança, na fase
primária, quando incumbida da tarefa de ler Braille, é compelida a dispender tantos esforços
no processo, que a fadiga é quase imediata; todo o sistema neuro-muscular sofre, pela
energia nervosa que é irradiada a todos os nervos e músculos do seu corpo, insuficientemente
amadurecido. Como resultado, temos uma condição que pode ser descrita por psicólogos,
como desorganização do processo mental, e falta de controle voluntário dos músculos
corporais. E, sob o ponto de vista do professor, a criança não tem controle sobre sua atenção,
é desmiolada; perde-se em distrações.
É uma afirmação comum, entre os professores, que as crianças cegas gastam mais energia
no seu processo de aprendizagem do que as dotadas de visão. Estas observações são
absolutamente corretas, e suas razões não devem ser procuradas longe. Toda vez que se
encontra uma criança cega que dispende mais energia que uma criança da mesma idade e
inteligência deveria dispender, considerando-se os obstáculos materiais envolvidos,
imediatamente.deveria reconhecer-se que ela tem ainda uma imaturidade neuro-muscular e,
antes que maiores danos surgissem, tomar-se-iam providências para remediar esta
imaturidade. As atividades que fornecem à criança um grau normal de amadurecimento,
proporcional à idade, são aquelas que a criança normal, da mesma idade adquiriu.
Decididamente não são: ler e escrever Braille, bordar contornos de cartões ou mesmo
modelar com argila e fazer esteiras de junco. Mas sim, correr, pular, lutar, jogar bolas e
pedras; dar machadadas, manusear aviões, serras e outros instrumentos grosseiros. Em
resumo, uma escola primária - sem uma esteira para lutas, uma mesa de carpinteiro e
ferramentas - é um quarto de tortura e uma diminuta fábrica de personalidades neuróticas.
Para uma escola, não saber quando e como usar tais dispositivos, é não estar longe de uma
negligência criminosa.
Além disto, deve ser lembrado que a fadiga excessiva é tão responsável por estados de
distúrbios emocionais, como por uma energia neuro-motora desorganizada. Esta não
permanecer desorganizada, mas, ligar-se às situações que a produzem. Aqui começa a
dificuldade da personalidade, e, infelizmente nunca termina. É motivo de queixa, entre os
educadores de cegos, o fato dos que terminam o curso não continuarem, como deveriam, com
suas leituras em Braille, após deixarem a escola, e mesmo enquanto a freqüentam de não
lerem, o suficiente. A razão é óbvia. A fadiga, desconforto, desencorajamento e completa
falta de significado, envolvidos nas tentativas prematuras, para aprender Braille,
organizaram-se em preconceitos emocionais contra todo o sistema dþ leitura em relevo. Este
mesmo sentimento pode prevalecer na preparação de lições diretamente do exemplar em
braille. Estas condições, conjugadas com a desorganização análoga, resultante da tentativa
de forçar instrução manual antes de maturidade muscular, pode causar uma reação
desfavorável para com todo o sistema educacional da instituição.
Dentro de um âmbito maior ou menor, toda a instituição se caracteriza pela mesma
escassez de estimulação adequada, encontrada nas classes primárias. Esta insuficiência e
inadaptação geral, de atividade social e física, não é inteiramente atribuível à instituicão ou a
seu pessoal. A maioria das nossas instituições foi construída antes do período de tráfico
motorizado, quando era de grande vantagem, tanto para o aluno como para a instituição,
localiza-se esta o mais perto possível de uma cidade. Nos dias em que os veículos de tração
animal e os bondes constituíam a maior parte do trânsito, era possível ao cego explorar as
ruas da cidade, sem guias, dentro de uma amplitude deliciosa, desacompanhados. O advento
dos veículos motorizados alterou estas condições de uma forma aflitiva. Agora, é quase
necessário que um membro da instituição, dotado de visão, seja responsável por cada saída à
rua. Dificilmente, poderemos avaliar quanto esta transição circunscreveu o mundo
estimulante do cego, de uma instituição. Modificou suas relações com os lugares de
trabalhos, com as igrejas, teatros, e, até mesmo com amigos e membros da própria família.
O resultado inevitável, foi o das instituições tentarem reproduzir, dentro dos seus próprios
muros, o meio ambiente cívico. Por mais bem sucedidos que tenham sido em organizar os
próprios comissariados, serviçoc religiosos, organizações religiosas de jovens, escoteiros e
escoteiras, em importar entretenimentos externos, há, uma influência de máxima importância
que não pode ser reproduzida: a necessidade de ações independentes, sob os olhos críticos do
público dotado de visão.
Parece não haver meios de evitar-se a influência danosa, que esta privação exerce sobre o
desenvolvimento pessoal do cego de uma instituição. Esta lacuna deixa o aluno, no fim da
sua residência no instituto, socialmente imaturo e infelizmente, perdido entre os outros
membros da comunidade.
Os casos estudados no capítulo seguinte indicarão algumas formas particulares, através das
quais, este retardamento social, ou mediocridade social é expressa.
Outra condição da instituição, que contribui para os problemas de personalidade, durante a
vida na instituição e depois, é o costume generalizado de ocupar-se, quase todas as horas
úteis do aluno, com alguma forma de atividade regulada. Este programa é justificado sob a
alegação de que é melhor, para o aluno, manter-se ocupado, do que sentado ociosamente. O
uso proveitoso do seu tempo, assim raciocina a instituição, é de maior vantagem educacional
do que uma ociosidade infeliz; além disto, o cego é, naturalmente, mais lerdo e requer mais
tempo para executar o mesmo que a pessoa dotada de visão. Estas são algumas das supostas
convincentes razões pelas quais o cego é mantido, impiedosamente ativo, ao passo que a
verdadeira razão, para ser franco, é a conveniência da instituição. É mais fácil supervisionar
alunos em classes organizadas do que durante as horas livres. Portanto, as horas matinais
são inteiramente ocupadas com aulas de literatura, práticas musicais e estudos
supervisionados. Logo que estes trabalhos diminuem, durante a tarde, os alunos são
absorvidos pelos cursos industriais até o anoitecer. Um jantar, no começo da noite, mais
horas de estudo supervisionado, uma hora solitária de liberdade, sob os olhos de um
supervisor, e, já é tempo de recolher-se.
Se é verdade que é preciso mais tempo para o cego, executar uma unidade de trabalho, o
que indubitavelmente é o caso, também é verdade que maior esforço é dispendido no ato da
execução, e conseqüentemente haverá maior fadiga. Admite-se que oito horas de trabalho
representam o limite máximo de efiência mental e física para um adulto normal Se este for o
caso, parece que o dia escolar, médio, na maioria das nossas instituições é demasiadamente
fatigante para uma criança cega, imatura. O velho adágio de que uma mudança é tão bom
quanto um descanso, perde seu significado, quando outra hora de aula é substituto para um
período de repouso necessário. Não é de admirar, que os professres se queixem de que
seus.alunos devaneiam. É nada menos do que a velha fadiga tanto do corpo como do
espírito. É exatamente a mesma espécie de desatenção demonstrada pelo estudante de
universidade que, ou está estudando demasiado, ou dançando e freqüentando festas várias
noites, durante a semana. É simplesmente outra forma do efeito disseminador da fadiga,
encontrada na classe primária. Não sendo este um livro sobre métodos educacionais os
detalhes que tornam o trabalho de classe particularmente cansativo para o cego, não serão
aqui discutidos.
É suficiente dizer que os métodos educacionais desenvolveram-se, principalmente, sob o
ponto de vista dos professores, e o material empregado, é muito mais claro e lógico sob o
aspecto da apresentação do que do ponto de vista receptivo.
Este capítulo seria incompleto, se ele não considerasse as metas e os padrões de motivação,
estabalecidos pelo regime institucional. Quais são os métodos pelos quais os alunos, de uma
instituição, são levados a esforça-se além do ponto da fadiga? As metas, que eles lutam para
alcançar, os preparam para a vida depois que os dias escolares terminarem? Os educadores,
e psicóloþos estão se interessando, cada vez mais pelas finalidades e motivações criadas nas
salas de aula. Pergunta-se, atualmente, se as condições sob as quais o estudo se desenvolve
não são de maior importância que a materia aprendida.
Observou-se, em animais de laboratório, no trabalho diário normal e nas classes de aulas,
que a aprendizagem se realizara de alguma forma e em alguma direção, sob qualquer
condição que se lhe imponham. O rato, talvez, não solucione a caixa de quebra-cabeças da
forma prevista pelo pesquisador, pois possui metas, motivações e organização de um rato, e
o pesquisador, que possui apenas idéias humanas a respeito das metas e do padrão de
motivação do rato, freqüentemente se assombra com o comportamento do animal. Em outras
palavras: a situação para o ente humano e para o rato, são inteiramente, diferentes, e não se
tornarão idênticas, enquanto, o rato for incapaz de compreender os desejos do pesquisador.
De maneira sucinta, o rato e o pesquisador representam a situação existente entre
professores e aluno. Ao aluno são dadas tarefas e problemas para executar. Neste caso, a
professora está apta a fornecer métodos e técnicas para resolver problema da maneira que
julga mais certa. Comumente o processo corre de maneira satisfatória, com pequenas
exceções, nas quais o aluno emprega métodos infantis, que para a professora parecem um
comportamento irracional e pouco inteligente. Comumente admite-se que a criança tem uma
visão clara do porquê deva estudar matemática, leitura ou geografia. Esta visão deve
preceder ao desejo de aprender e motivar a continuação do processo de estudo. Muito
freqüentemente isto não ocorre. A criança é incapaz de ver qualquer relação entre a tarefa e
ela mesma, exceto, quando se torna um aspecto da sua relação pessoa com a professora. Em outras palavras, a professora no princípio, poderá ser, não somente, a fonte de todo
conhecimento, mas também, a mola da qual toda a motivação intelectual da criança emana.
As lições devem ser aprendidas para agradar à professora, ou mais freqüentemente, para não
desagradá-la. Tais motivações pessoais poderão funcionar através do sistema educacional. A
equação pessoal da professora é dominante através da maior parte do sistema secundário.
Nas escolas para cegos este problema educacional agravado enormemente por ser a
professora, social e pessoalmente, muito mais importante, dentro da instituição, do que nas
escolas públicas. As professoras bem sucedidas, freqüentemente, gabam-se de que seus
alunos tudo farão por elas. Nunca perguntam o que eles podem fazer sem ela. O ruibarbo
plantado num barril crescerá oito centímetros, mas quando o barril é removido, as hastes,
sozinhas, não ficarão em pé. Portanto,isto, não é educação, pois não prepara o aluno para a
vida. É meramente, um ajustamento da personalidade a alguma forma altamente
especializada de relacionamento pessoal e social.
Certamente, não é função da professora no campo da educação, mesmo de um cego de
instituição, ocupar inteiramente o quadro. O resultado desta prática pode encontrar-se na
ausência de curiosidade intelectual; não somente nas escolas secundárias e colegiais, mas
também, em proporção assustadora, em instituições para cegos. Toda atividade intelectual é
tão coordenada entre funcionários da escola, que no momento em que esta estimulação não
mais existe, o resultado é uma lassidão pós-institucional. Esta surge através da ausência
total de interesse nas situações objetivas do mundo social e na falta de esforços inteligentes
para associar-se às tendências de movimentos mundiais. Este apego social ao professor
induz muitos cegos graduados a tentar uma carreira colegial e universitária, pois aí,
novamente, esperam restabelecer a relação tão expressiva que deu um significado vital à vida
institucional. Não é um grande feito pedagógico enrolar uma criança de instituição em redor
do dedo da professora (exercer completo domínio sobre uma criança da instituição). É muito
mais dificil não fazê-lo. É esta árdua proeza que o futuro professor do cego e do dotado de
visão deve obter.
Esta relação social é estreita e freqüentemente temporária. Algumas vezes estabelece-se
pela hábil manipulação de palavras. Porque então, esta manipulação não alcança a mesma finalidade de ajustamento social, no
mundo mais amplo dos que enxergam, como, por exemplo, nas transações, comerciais e no
planejamento de uma carreira? Precisamente isto será tentado, até que o cego graduado
descubra que se requer mais do que conteúdo verbal para trocarem-se idéias, no mundo dos
que enxergam. Muitos nem aprendem esta lição, pois o substituto funcionou muito bem, por
tempo demasiado longo.
A relação entre professor e aluno é muito complicada e deve ser examinada sob vários
ângulos. Por exemplo, os professores de cegos desenvolveram uma técnica muito sutil para
empregar os complexos de inferioridade dos alunos como motivação para execução das
lições e o controle do comportamento em geral. É muito comum ouvir-se advertências tão
sugestivas como, "Você não vai admitir o fracasso, não é?", "É dificil compreender isto
porque você teve tão pouca experiência", "O que pensariam as visitas se pudessem ver como
você está agindo?", "Levante-se e erga a cabeça corretamente.", "Não se pareça como um
excêntrico", este tipo de advertências tem muito mais sucesso nos estudos mecânicos do que
em produzir atitudes sadias. Em breve, os pontos sensíveis tornam-se tão calejados às
censuras dos mestres e supervisores, que no final resulta negativismo ou indiferença
pessoal., em vez da melhoria esperada. Não haverá valor educacional ou terapia pessoal no
processo de lembrar-se, constantemente à criança um defeito, que é mais aparente a ela do
que a qualquer outra pessoa.
É um costume largamente estabelecido nas escolas para cegos, realizarem-se exibições
públicas dos trabalhos dos alunos. Estas têm mais efeitos prejudiciais sobre os internados,
do que valor educacional para o público. É historicamente lamentável que Howe tenha
empregado o método para preparar o público para o sucesso e as necessidades da primeira
escola na América. Na maioria das instituições esta prática ainda se mantém. Entretanto, é
um sinal promissor, o fato de algumas escolas terem descartado esta tradição de Valentin
Haüy ( 9.4), afim de proteger seus estudantes da curiosidade mórbida dos visitantes.
A educação dos cegos, há muito, já alcançou tal ponto de desenvolvimento, que não há
desculpa aceitável para prática tão bárbara a não ser uma vaidade egoísta ou a antipática
ignorância da administração. Em algumas escolas, tais exibições são acontecimentos
habituais do ano letivo; em outras são permitidas ocasionalmentel em muitas são proibidas.
As atitudes dos alunos em relação a esta prática são significativamente diferentes, nos três
grupos de escolas. No último grupo, os alunos reagem vivamente contra as exibições,
jurando que prefeririam ser expulsos do que atravessar a prova de exibir, pessoalmente, aos
curiosos visitantes dotados de visão, como o cego lê, faz crochê ou usa a máquina de
escrever. No segundo grupo os alunos, tendo consentido com o penoso circo ocasionalmente,
receiam temem e desprezam a "atuação" e experimentam sentimentos de amor-próprio
negativo, não somente antes e durante as exibições, mas também posteriormente. As
perguntas formuladas por visitantes estúpidos, são na maioria das vezes irrelevantes e
efetivamente ofensivas. Os alunos não podem responder como as pessoas comuns, normais,
o fariam. Tudo que podem fazer é engolir as insinuações envolvidas na questão e tentar não
tanto dar a informação mas satisfazer uma mente obtusa com uma meia verdade estúpida. A
condição é ainda mais deplorável nas instituições em que a demonstração pública é uma
tradição arraigada. Aqui os alunos perderam todos os sentimentos de degradação, orgulho e
humilhação pessoal.
Estão virilmente endurecidos ao costume e dificilmente vêem algo errado nele. Visto que,
poucos sentimentos negativos de amor-próprio acompanham o espetáculo. Na verdade,
fazem disto uma espécie de jogo, se impondo à curiosidade e estupidez do visitante, através
de mentiras e réplicas veladas, que só podem ser apreciadas pelos próprios cegos. Um
exemplo exagerado será suficiente para ilustrar esta atitude comum entre os cegos, que se
tornaram sofisticados em relação ao público, dotado de visão: "Se você não pode ver, como
pode saber que está acordado". "É para isto que cada dormitório tem um grande sino que não
somente nos desperta mas nos diz que estamos acordados".
Pode ser alegado que o hábito de demonstração escolar tem, pelo menos, um resultado
benéfico: é um meio esplêndido para tornar-se o estudante emperdernido para com o público
dotado de visão. Não se poderia encontrar melhor método para tornar o estudante cego,
emocionalmente preparado para vir a ser um mendigo e candidato à ajuda estatal.
É necessário discutir-se mais uma condição encontrada na instituição que é um fator
preponderante na formação da personalidade; a instituição será, então, deixada em paz. É
geralmente admitido pelos educadores e aqueles que trabalham com cegos que as
perspectivas do graduado para um ajustamento econômico não são tão boas, como se poderia
desejar. Esta situação produziu uma viciosa hipocrisia institucional. Aos poucos, o aluno
descobre que os ofícios que lhe foram ensinados e foi instigado a aprender, motivado pela
expectativa de contribuir para seu sucesso econômico, são nada mais que os remanescentes
arcáicos medievais, que há muito se tornaram "ultrapassados" pela revolução industrial, e
que ele e o condenado de uma penitenciária são os únicos a lutar contra o aço e o vapor.
Desde o advento do rádio, o estudante de afinação de piano juntou-se a esta fila e suas
perspectivas, futuras não se tornam mais fáceis pela visita, ocasional, de alunos que estão
profundamente desiludidos e desesperados.
Dúvidas, medo, receios, temores, desconfianças e renúncias, são as contribuições que os
departamentos industriais das escolas dão a vida emocional sadia do cego de uma
instituição.
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NOTAS:
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9.1 - Dr. Hawe organizou e dirigiu o primeiro instituto para cegos nos EEUU. Este, mais
tarde conhecido como Perkins Institution e Massachusetts School for the Blind, inaugurou-se
em 1832. Ele permaneceu nas funções de superintendente durante quarenta anos.
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9.2 - O ato de soletrar é geralmente reconhecido, pelo professor do cego como uma das
matérias elementares mais difíceis para serem dominadas pelo cego. Mesmo que seja
aprendido é rapidamente esquecido, pela falta de estimulação.
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9.3 - Henry James. "A cena Americana"(Harper & Brother, l907) p. 356
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9.4 - Em 1771, Valentin Hauy interessou-se em formular planos para a educação de cegos.
Logo em seguida começou a trabalhar com seu primeiro aluno, François Lesueur. Tornou-se
um hábito de Hauy organizar freqüentes exibições dos talentos dos seus alunos, afim de
conseguir apoio para seu programa. Seu método era bem sucedido tanto para assegurar apoio
governamental e interesse popular.
Capítulo X - O ajustamento social em uma comunidade universitária
O último teste que o cego deve enfrentar, com relação a sua adequação social, é aquele que
se relaciona com o seu ajustamento social perante o mundo dos dotados de visão. Tal
adaptação deve ser tentada por todos os cegos independentes, tão logo completem os
trabalhos na escola para cegos. Para alguns, o problema surge assim que ensaiam
estabelecer relações comerciais, para outros, diante das relações sociais na comunidade
caseira, e ainda para outros, na procura de uma educação mais elevada. Os casos referentes a
dois estudantes universitários apresentados neste capítulo, mostram certas dificuldades
resultantes deste ajustamento e indicam os métodos característicos pelos quais podem ser
resolvidos. Ao ingressar na universidade, estes estudantes colocaram-se num dos ambientes
mais favoráveis à disposição dos jovens cegos graduados. Entrar numa nova escola, requer
menos esforço e reorganização do que desligar-se dela e abraçar alguma nova forma de
atividade comercial. A posição universitária proporciona um ambiente social simples e
uniforme. Fatores econômicos que complicam os problemas de ajustamento no mundo do
trabalho diário, são quase totalmente eliminados.
A comunidade universitária e seus arredores estão bem definidos e limitados; os estudantes encontram-se num estado de fluxo social e possuem a adaptabilidade própria da juventude.
As atividades locais e das salas de aula proporcionam aos estudantes cegos oportunidades
para demonstrar igualdade e muitas vezes superioridade em concorrência com os dotados de
visão. Por último, mas não menos imþortante, o estudante cego tem a possibilidade de
encontrar entre os instrutores alguém em torno do qual possa idealizar e integrar o seu
trabalho e personalidade, da mesma forma como o fez na escola para os cegos. O meio
ambiente universitário, por conseguinte, oferece ao graduado cego as condições mais
favoráveis para aprender a viver com os dotados de visão. Ele pode tornar-se membro da
comunidade universitária, aceitável pessoal e socialmente, com muito mais facilidade e
alcançar mais sucesso do que em qualquer outro tipo de contato com os dotados de visão.
Escapa das muitas dificuldades existentes nos lares paternais ou vivendo com parentes e
amigos. Portanto, contrariando a crença popular, o fato de se tornar parte da comunidade
universitária é uma tarefa muito mais simples e promissora do que qualquer tentativa de
estabelecer-se no comércio ou de desempenhar uma atividade num empreendimento
industrial.
Os dois estudantes comparados neste estudo apresentam paralelos interessantes, que
servem para reforçar o contraste entre as reações que cada um demonstrou na vida
universitária. Ambos os rapazes perderam a visão aproximadamente na mesma idade.
Ambos estiveram o mesmo tempo, em média, em escolas estaduais para cegos que eram do
mesmo nível e semelhantes em muitos outros aspectos. Por último, uma vez que
freqüentaram a mesma universidade, no mesmo período de anos, as circunstâncias,
referentes às suas carreiras universitárias são completamente comparáveis.
Horácio e Dick, que eram estranhos entre si, ingressaram na mesma universidade durante o
mesmo ano acadêmico. Ambos tinham pouco mais de vinte anos, tendo completado os
deveres acadêmicos em escolas estaduais para os cegos há dois anos. Os rapazes foram os
primeiros estudantes cegos a ingressar nesta universidade. Gozavam das vantagens e da
conveniência de serem um interesse novo ao corpo estudantil e aos professores, tendo apenas
que enfrentar uma leve e tolerante incredulidade. As condições apresentavam-se ideais para
o sucesso social e intelectual dos rapazes. O relato seguinte dos anos de vida universitária
demostra a que ponto Horácio e Dick puderam utilizar-se de seu meio-ambiente favorável.
Aos vinte e três anos de idade, Horácio era um pouco mais alto e de mais peso, que uma
pessoa média. Embora usasse roupas que eram apresentáveis em si, aparentava estar sempre
vestido com desleixo. As suas feições, com exceção de sua boca, podiam ser descritas como
sendo pesadas e imóveis. Sua expressão era avivada apenas por um ligeiro sorriso patético.
Horácio era de temperamento sensível e impetuoso e sempre nervosamente ativo. Era
excelente conversador e compensava a sua ansiedade social discorrendo a vontade sobre a
maioria dos assuntos de interesse intelectual da atualidade. Porém, embora conversasse bem, não era muito apreciado pelos ouvintes, em virtude da má
qualidade de sua voz, que era de tonalidade aguda, distoante e pobremente modulada para
uma conversação direta e pessoal. Entretanto, a sua voz se prestava bem para recitar na sala
de aula e para discussões.
No início, Horácio demonstrou habilidade excepcional em conhecer as coisas das
redondezas. Quase que imediatamente dominou o sistema de caminhos, bem como das
plantas dos andares dos inúmeros prédios, resultando poder atender as aulas sem se fazer
acompanhar. Esta realização teria sido normalmente encarada como notável e teria
proporcionado a Horácio um certo prestígio social, porém, novamente, ficou aquem da
aceitação social. Agia em função da compulsão egocêntrico, sem visão social por completo.
Sendo canhoto, incidiu no hábito anti-social de andar à esquerda nos passeios afim de
utilizar a sua bengala da melhor forma. Disto resultou muito desconforto aos estudantes
durante o congestionamento entre as aulas e algum desconforto físico aos distraídos que não
percebiam a aproximação de Horácio, até que fossem abalroados para cima dos gramados
pela seu físico de oitenta e sete quilos.
Aos vinte e hum anos, Dick tinha uma estatura abaixo da média e pesava de 5 a 6 quilos a
menos do normal. Possuia um bom físico, forte e decidido em seus movimentos. Suas
feições anglo-saxônicas eram expressivas e versáteis, sem serem marcantes e, ao mesmo
tempo, acima do comum, em aparência. Dick era exigente para se vestir e cuidava tanto de
suas roupas, que geralmente apresentava-se bem trajado de acordo com a moda de dois ou
três anos atrás. Dick era extremamente acanhado e socialmente tímido. Era um conversador
vacilante, quase incoerente quando se encontrava entre um grupo de pessoas, onde se
sentisse pelo menos como estranho. A qualidade de sua voz era agradável, e sua modulação
não demonstrava quaisquer dos defeitos tão freqentes entre os cegos. Entretanto, a sua
articulação era deficiente, e a construção gramatical estava longe de ser perfeita.
Durante o ano todo, Dick mal conseguiu andar livremente, pelas dependências. Tinha uma
aversão emocional pela bengala, e toda vez que se dirigia às classes, sozinho, fazia-o sem o
incômodo de usar uma bengala. Raramente encontrava dificuldade em se locomover sozinho
dada a sua ligeireza cuidadosa e precisão segura de movimento. De fato, os estranhos, dificilmente, reconheciam que ele fosse cego. Isto o agradava sempre,
pois indicava uma compensação bem sucedida.
Quando ambos completaram o curso em suas respectivas escolas estaduais para os cegos,
verificaram estar completamente sem condições de poder assumir qualquer atividade
econômica independente. Tinham seguido carreiras educacionais, na esperança de que um
grau universitário compensasse uma deficiência vocacional. Horácio, baseado puramente em
considerações econômicas, decidiu preparar-se para uma carreira de evangelista. Dick não
era tão positivo quanto ao seu objetivo e, durante dois anos, suspendeu o seu julgamento
com relação a poder tornar-se um professor de ciências sociais, ou de abraçar o jornalismo,
ou de seguir o curso de direito. Os seus planos um tanto vagos cristalizaram-se o suficiente
para se formar em ciências sociais.
Horácio fixou residência num pequeno pensionato particular, compartilhando o quarto com
um colega que também era hipertenso, estudante brilhante de teologia, interessado no
sacerdócio quanto ao seu aspecto econômico. No que diz respeito ao temperamento e
personalidade, os dois rapazes não se combinavam, da mesma forma que o sacerdócio não se
adaptava a qualquer um dos dois. Discutiram e argumentaram desde o início, procurando, de
diversas maneiras, afirmar a superioridade de um sobre o outro. Desde que os demais
pensionistas da casa eram estudantes apagados e desinteressados em teologia. Horácio
encontrava pouca compatibilidade, a não ser nos seus contatos em classe e com os
professores.
Dick, por outro lado, teve a felicidade de morar com um grande grupo de estudantes de
todas as categorias sociais e oriundos de todas as partes do mundo. Seu companheiro de
quarto e ledor era o mais brilhante aluno de último ano da universidade, que tinha uma
concepção agradável e tolerante sobre a vida em geral. Representava para Dick um tipo que
lhe era completamente estranho, pois mantinha pontos de vista radicais, era ateu, e ao
mesmo tempo era honesto, gentil, e um trabalhador laborioso. Sob a influência desta
personalidade, Dick não demorou em perder muitos dos hábitos sociais monásticos que
adquirira na instituição. Em pouco tempo granjeou um grande grupo de amigos aconchegados que o consideravam,
nos esportes do alojamento, nos trotes, e atividades afins, como um igual.
Horácio começou, em breve, a distinguir-se nos trabalhos universitários; o seu
brilhantismo, ativado pelas suas compulsões sociais, tornaram-no uma pessoa proeminente
em toda a classe ou grupo, com o qual estivesse identificado. Dava boa conta de si
especialmente nos cursos de debates, tais como literatura, filosofia, retórica, e teologia.
Aprendeu os poucos fatos de que necessitava e adquiriu com rapidez todos os truques
acadêmicos de apresentação e argumentação. Era reconhecido pela maioria das sociedades
honorárias literárias e filosóficas.
A lâmpada intelectual de Dick não brilhava com tanta intensidade. Ele ficava bastante
perplexo com os novos fatos que ia encontrando nos cursos, tendo ainda o problema
adicional de reconciliá-los com as interpretações ainda mais estranhas de seu radical
companheiro de quarto. Se não era uma chama que ardia com brilho, queimava
profundamente deixando para sempre o estigma do ceticismo e da dúvida que lhe era de
mais valia do que qualquer aprendizagem formal. Dick raramente falava voluntariamente
nas classes, e nos grupos onde se debatiam os assuntos intelectuais, permanecia em silêncio,
mas como um ouvinte atencioso. Freqüentava com mais assiduidade os jogos de pôquer e as
bebedeiras do que as sociedades literárias loquazes, saindo-se melhor naquelas do que
nestas.
Quanto à expressão social da personalidade, Horácio e Dick eram antagônicos em todos os
aspectos, embora as suas motivações fundamentais fossem as mesmas. Horácio era
altamente egocêntrico, obviamente orgulhoso, ardiloso e geralmente inconstante. Ele,
somente ele, e o presente imediato, eram os fatores que determinavam a maior parte de seu
discernimento social e seu comportamento. Aproveitava-se de todas as oportunidades para
fazer-se valer, sem vislumbre aparente das conseqüências futuras. Quando não estava
exercitando o seu ego, em alguma situação concreta social, deliciava-se em construir
fantasias. Não possuía interesses objetivos. Tocava bem piano, mas raramente para o seu
próprio deleite. Os poucos amigos que adquiria eram logo perdidos, em virtude de tirar
proveito do tempo e da paciência deles além dos limites da tolerância.
A falta de discernimento social de Dick corria em direção oposta. Possuía uma natureza tão
retraída que recorria a qualquer meio para evitar os estranhos. Tomava o cuidado extremo
para não abusar do tempo e da boa fé de seus colegas. Pelo contrário, dedicava grande parte
de seu tempo tutelando e assistindo os novatos e, freqüentemente, servia como emissário e
conselheiro dos estudantes relapsos, que se encontravam em dificuldades com a
administração. Estava sempre ativo. Caso não se encontrasse no ginásio exercitando-se com
os aparelhos ou então na piscina, preencha seus momentos vagos reencardenando a sua
coleção de livros de segunda mão, ou recortando diagramas tridimensionais e mapas. Pode-se ter uma idéia de sua atividade extrovertida pelo relatório da seção de dormitórios de seu
primeiro ano, quando ele e seu companheiro de quarto, zagueiro defutebol americano, foram
debitados com uma conta no valor de quatorze dólares por quebra de móveis.
Durante o período de segundo-anistas da universidade, Dick e Horácio começaram a
centralizar as suas atividades intelectuais e escolásticas, em torno de seus professores
favoritos. Uma vez que as relações pessoais com os instrutores motivaram atividade
intelectual durante o tempo em que viveram nas instituições, eles sentiam nessas novas
relações uma adaptação confortável e também familiar à situação escolar. E assim,
aconteceu que o progresso intelectual e social dos dois rapazes sofreu grande influência,
através desses contatos.
Dick tornou-se interessado em um jovem professor de ciência, pela sua personalidade e
pela matéria que ensinava. A supervisão enérgica e a amizade pessoal do professor muito
contribuiram para superar o acanhamento de Dick, e a ciência, que exigia pensamento
preciso e independente e a manipulação de material, prendia a atenção de sua mente
objetiva. Daí para frente, toda a carreira escolar de Dick ficou subordinada às relações com
esta nova matéria e com a personalidade do novo professor. Estas influências muito fizeram
para determinar a sua conduta pessoal, a sua escolha de colegas, as matérias que estudava e
as atitudes sociais que adotava; e, finalmente, as suas tendências extrovertidas encontraram
o escape que exigiam, no laboratorio.
Horácio, igualmente, em consonância com suas características de personalidade,
solidarizou-se com um professor e com a matéria que melhor servia a seus gostos e aptidõs. Foi atraído pelo brilhante professor de humanidades, demonstrou muita habilidade no
domínio da matéria e logo encontrou-se em boas e agradáveis relações com o mestre. Tanto
Horácio, como o professor, eram individualistas extremos. Horácio, naturalmente, adotou os
ideais que seu amigo mais maduro professava, com o resultado de que a filosofia do mestre
tornou-se a ética prática do estudante. No decorrer do resto do curso universitário, os efeitos
desta situação em muito prejudicaram o desenvolvimento social e adaptação de Horácio. Era
intelectualmente capaz de dominar os sistemas lógicos e filosóficos mais intrincados, mas
faltava-lhe a visão social e pessoal no sentido de utilizar os padrões de comportamento ético
que tinha adquirido teoricamente.
Na primavera de 1917, quando os Estados Unidos entraram na guerra, a onda popular de
patriotismo e de história de guerra deslizou sobre a universidade. Uma mudança decidida de
ênfase ocorreu nas atitudes e nas atividades. Os estudos escolásticos e intelectuais foram
negligenciados em favor da preparação militar, e a aptidão física tornou-se o primeiro
requisito para se poder participar nas novas atividades ou identificar-se com o novo espírito
do grupo. Um corpo de treinamento de estudantes foi organizado e dirigido por estudantes e
membros do corpo docente, que desprezaram as aulas pelos novos interesses e atividades.
Este reajustamento social teve profundos efeitos sobre as atitudes de interesse próprio e
sobre o comportamento social de Horácio e de Dick. Na confusão de organizar o corpo
militar de treinamento de estudantes, corpo de direção do material bélico, e guarda nacional,
as unidades da Cruz Vermelha, as organizações femininas para isto e aquilo, Horácio e Dick
não se adaptaram.
Finalmente, depois de Dick ter fracassado nas várias tentativas vigorosas para encontrar
alguma atividade, não combatente, na qual pudesse manifestar os seus sentimentos ativos e
patrióticos, ele desenvolveu uma reação violenta contra a mania da guerra. A sua
compreensão da situação era suficiente para impedí-lo de opor-se aberta e diretamente à
guerra, mas seu ressentimento pelo ego ferido encontrou diversas saídas interessantes.
Matriculou-se numa classe de principiantes da língua alemã, o que nunca tencionara estudar,
pela simples razão de que o alemão era mui to mal visto e o departamento encontrava-se sob
crítica geral e em desconceito administrativo. Ele obtinha grande satisfação de falar o alemão
com todo aquêle que conseguia atrair para essa prática proibida.
Numa oportunidade, foi submetido à investigação por parte do serviço secreto federal, por
estar viajando com uma valise emprestada contendo etiquetas de hoteis alemães de Frankfurt
e de Bremen. Ao ser interrogado pelo agente de polícia, Dick respondeu insolentemente em
alemão, aumentando ainda mais o excesso de cautela do agente. Quanto a situação piorou,
Dick desafogou-se divertindo-se com a idéia infantil do agente, de que um espião pudesse se
encontrar viajando pelo país com anúncios alemães em sua bagagem.
As compensações obtidas pelos sentimentos negativos de si próprio que cresceram da sua
relação com a situação na universidade, quase colocaram Dick em maiores dificuldades.
Todos os estudantes, durante duas horas, na parte da tarde, eram convocados para o exercício
de armas manuais de madeira. O campo de exercícios ficava do outro lado da rua onde Dick
se hospedava. Enquanto o exército embrionário ensaiava, Dick e outro estudante
incapacitado para o serviço militar devido à paralisia infantil, entretiam-se tocando no piano
mecânico com os foles a toda carga, toda a música alemã que conseguiam obter. Em
seguida, enquanto a banda estudantil concluía o período de exercício com a revista e o hino
nacional, Dick e seu companheir o rebelde cantavam, em altas vozes, "Die Wacht am
Rhein".
Horácio enfrentou a situação de guerra através de uma série muito diferente de mecanismos
compensatórios. Inicialmente ficou bastante perturbado com a mudança de ênfase de
interesses intelectuais para as atividades preparatórias. As discussões literárias e filosóficas
derivaram para o assunto absorvente que era a participação da América na guerra. Horácio
logo adquiriu a compreensão teórica sobre a preparação militar e sobre a situação européia,
que o possibilitou a reassumir o seu papel usual em qualquer grupo. Entretanto, isto já não
era mais suficiente para satisfarer o seu amor-própr io positivo. Apenas falar sobre as
situações, discutir meios, e resultados, não o identificava intimamente com o vértice da vida
universitária alterada.
Escreveu uma peça na qual apresentava um jovem oficial britânico deixando a sua jovem
esposa para servir em Flandres. A peça estava escrita de forma suave, no estilo sentimental
do período de guerra. O jovem oficial, após ter servido algum tempo na frente de batalha, foi ferido por uma
explosão que destruiu a sua visão permanentemente. A ação mais importante da peça gira
em torno de sua volta à Inglaterra. Abrangia os problemas heróicos de personalidade que se
desenrolaram ao resumir a sua vida anterior. Ele se debatia na luta de decidir se deveria
continuar casado naquela condição, pois, casara quando se encontrava em plena idade viril.
O amor da jovem esposa finalmente liquida as suas apreensões e, com a sua ajuda, ele efetua
o ajustamento à sua condição física e à situação social decorrente.
Evidentemente, o mero fato de ter escrito a peça não proporcionava o grau de identificação
pessoal que Horácio desejava. Afinal de contas, a peça possuia apenas uma realidade
substitutiva de qualquer fantasia, enquanto que o isolamento social de Horácio exigia uma
identificação pessoal mais concreta com a realidade. Persuadiu a sociedade dramática da
Universidade a encenar a peça. Aí ele alcançou a desejada conexão com a realidade
representando o papel do jovem oficial e dando o de esposa a uma jovem que cursava o
último ano e com a qual estava noivo naquela época.
Horácio e Dick conseguiram uma certa segurança e um senso aceitável de pertencer à rotina
usual dos assuntos universitários. Quando a estrutura social desabou, foram eles novamente
atirados para o isolamento. A desorganização repentina e a perda de segurança tiveram,
essencialmente, o mesmo resultado em ambos os rapazes, porém cada qual manifestou a sua
reação à mudança de acordo com suas características próprias. Por conseguinte, a situação
social à qual Dick não pôde se adaptar desalojou-o do grupo e a sua falta de identificação
com ela, originou a sua traição para com a fidelidade nacional. Horácio, ao sentir o
desconforto de perder a sua identificação com o grupo social, engedrou métodos egocêntricos
para se reintegrar, mesmo que tivesse custado a traição à estima de si próprio. Teria sido
emocionalmente impossível para cada um deles adotar as compensações que serviram ao
outro. Em ambos os casos o sentimento positivo do próprio ego foi conservado em termos de
valores para com o indivíduo, sem penetração nos valores da sociedade objetiva.
Quando ingressou na universidade, ofereceu-se a Dick a oportunidade de associação
agradável com as colegas compreensivas porém simpaticamente curiosas. Esta curiosidade
simpática, com a qual Dick se confrontava a todo o instante, desenhou-lhe um curso definido
de ação com relação às associações com as colegas. Para Dick,a solicitude por parte dos
homens era bastante desagradável, mas partindo das moças, tornava-se completamente
insuportável. Após as primeiras duas semanas de seu primeiro ano, ao término da estação de
alojamentos livres, Dick chegou à conclusão que as colegas, embora brilhantes, francas, e na
maioria agradáveis, eram, em conjunto, muito pessoais para ele. Durante o resto do ano
evitou-as ao máximo. Quando tinha necessidade de conversar com alguma delas, Dick
apresentava-se com boas maneiras e agradavelmente, mas não se prolongava na conversa
além do que a cortesia o exigia. No ano seguinte, teve menos contato com elas. Em meados
do ano subseqüente, seus amigos, furtivamente, arranjaram-lhe uma companheira para um
jantar dançante, encontro este do qual Dick não pode declinar de forma decente. Antes de
efetivar-se o encontro, Dick foi apresentado à moça. Por razões mais conhecidas a ele
próprio, a perspectiva de passar uma noite inteira na companhia desta moça, particularmente
bem intencionada e realmente muito agradável era, sentia, mais do que poderia suportar.
Dois dias antes da reunião Dick tomou um trem meia-noite para passar o fim de semana nas
montanhas. De um ponto distante duzentas milhas telegrafou suas desculpas desculpas
alegando que tivera sido chamado. Durante o período final, entretanto, Dick conheceu
algumas colegas cujas personalidades e interesses objetivos eram tais que se sentia bem na
presença delas. Estas eram tratadas de f'orma tão impessoal no início, como se fossem
homens, e se suportassem a disciplina impessoal que lhes era imposta, eram qualificadas.
Poucas moças universitárias, entretanto, aprecia tal atmofera impessoal.
Horácio encontrou imediatamente na moça universitária curiosamente simpática uma
estimulação receptiva para as suas tendências egocêntricas. Esta combinação infeliz de
traços de personalidade era uma fonte infalível de dificuldade e desastre. Horácio empregava o seu sorriso patético e sua limitação física auto-exagerando ao
máximo, e estes, raramente, deixavam de encontrar uma receptividade correspondente no
coração da colega sincera. Talvez, racionalmente, Horácio não tenciosse tornar-se o libertino
em que quase se transformou, mas sempre as suas relações altamente pessoais com as
moças dirigiam-se naquela direção e resultaram inevitavelmente em desagrado por parte sua
e por parte de uma colega muito menos compreensiva e mais experiente. Tal foi a sua
carreira durante o curso universitário - complicações com as colegas, seguidas por
complicações com as filhas dos paroquianos de fora, e novamente com colegas. Finalmente a
sua carreira terminou com um escândalo que destruiu um lar e enegreceu para sempre o
nome de qualquer cego que viesse a ingressar na comunidade.
A opinião pública desta comunidade particular, atribuiu, sumariamente, todo o
comportamento anti-social de Horácio ao estado físico da cegueira. Talvez tenha sido fator
primário, pois esta condição foi a causa dele ter passado os anos de adolescência numa
instituição destituída de condições apropriadas para o desenvolvimento do discernimento
social. A cegueira era o fato primário tanto quanto a aptidão física para o serviço militar foi
responsável pela onda de crime que surgiu após a guerra. A personalidade egocêntrica de
Horácio, com a sua falta de valores sociais, também foi alimentada pelo meio ambiente
social estéril da instituição para os cegos, que ele freqüentou. Ele tinha sido o aluno mais
brilhante da escola, e a atividade intelectual e social inteira da instituição tinham se
centralizado nele. Readaptação para qualquer outro desempenho, foi e sempre ser impossível
para Horácio. Seu discernimento social e organização eram suficientes para um meio
ambiente institucional artificial, mas a sua disposição egocêntrica impede para sempre maior
vislumbre em sua própria situação social. Ele preenche todo o quadro sozinho. Não existe
formação de fundo de onde ele possa obter as bases de uma vida social.
A formação universitária de Dick lançou-o num meio ambiente social mais confuso e
turbulento. Retornou à comunidade, que deixara quando criança. Pela primeira vez em sua
vida, Dick viu-se na contingência de ter de ganhar o seu sustento. Esta dura realidade Dick
desejou encontrar e dominar quando ingressou na universidade, mas ao mesmo tempo era
uma realidade çue ciesejou procrastinar. Acuado por esse par de perseguidores, sem trégua,
a dura necessidade e o medo absorvente de fracasso, Dick possuia discernimento suficiente
para compreender que sua situação de fuga das realidades não era mais possível. Apreendeu
completamente a grave necessidade de expandir o seu meio ambiente objetivo, para que o
ego não fosse ferido e nem restringido, e compreendeu que seria uma luta até o fim da vida.
O controle bem sucedido das relações entre si e o seu mundo objetivo conferiu-lhe uma
profissão, uma casa confortável e uma família agradável.
Os casos sumários estudados, destes dois estudantes universitários, demonstram que
nenhum deles estava socialmente equipado para utilizar, com melhor vantagem, a situação
social tão simples que a universidade oferecera. Estavam tão limitados em discernimento e
tão falhos em motivação, em virturde de sua base institucional parca e acuada, que eram
incapazes de participar das oportunidades sociais maiores da vida universitária.
Os casos estudados demonstram, ainda mais, que as condiçõs subjetivas são tão
importantes quanto a estimulação objetiva na organização do comportamento social, pois
pode-se verificar como dois estudantes poucas vezes, e talvez, raramente, enfrentaram a
mesma situação de maneira igual. Para ser mais preciso, o que parecia ser situações
idênticas ao espectador, foi para os dois rapazes completamente diferentes, cada uma das
quais colorida pelas atitudes subjetivas do indivíduo concernente.
Um dos estudantes exerceu discernimento social suficiente para atravessar os limites da
aprovação social. O outro não. Isto, de forma grosseira, era tudo quanto existia de diferença
fundamental entre os dois. Ambos tornaram-se funcionalmente apatetados, em virtude do
treinamento institucional, no que diz respeito à adaptação funcional.
Capítulo XI - A cegueira como expressão característica da ansiedade (
11.1)
Está se tornando um conceito psiquiátrico geralmente aceito aquele de que todos os seres
humanos são candidatos potenciais à condição neurótica. Toda vez que, o nosso meio
ambiente não nos proporciona as satisfações que os nossos padrões emocionais exigem,
somos compelidos a enfrentar a vida de maneira irreal, pelo emprego do que se costuma
chamar de sintomas de ansiedade. Estes indícios se desenvolvem quando as nossas
exigências não podem ser satisfeitas no mundo objetivo sendo transformadas em problemas
subjetivos. Isto é o que ocorre ao hipocondríaco e ao alcoólatra.
Em relação ao nosso problema, um dos aspectos da origem dos sintomas é de grande
interesse nosso. É aquele em que se observa que todos os sintomas, aparentemente sem
exceção, se desenvolvem da percepção emocional das insuficiências individuais. O
hipocondríaco define a sua ansiedade em termos da falta de confiança em sua própria saúde
física. Outra característica destes sinais, que nos interessa é a de que estes ocorrem
individualmente e não em pares ou grupos. Em outras palavras, o hipocondríaco necessita
apenas de uma doença imaginária para satisfazer suas frustrações. O soldado que sofre de
choque, por explosão de granada, necessida de um sintoma apenas para fazê-lo sair das
trincheiras.
Do ponto de vista psiquiátrico, tem-se a impressão de que este mecanismo humano
levantaria um problema muito interessante com relação à vida emocional dos cegos e da
adaptação de personalidade, a que se vêem obrigados a fazer, em relação ao seu mundo. É
geralmente aceito, que os cegos têm considerável dificuldade emocional em suas adaptações,
e que encontram um número muito maior de formas de frustração do que a pessoa dotada de
visão normal. Se este fosse o caso, encontraríamos uma grande dose de psicopatologia
exibindo-se nitidamente no comportamento da personalidade do cego. Mesmo encontrando
mais do que desejaríamos que existisse, ainda assim, o volume de distúrbio emocional
aparente não está, de forma alguma, em proporção com o que acreditamos, realmente, que
deveria aparecer, em virtude das circunstâncias em que vivem os cegos. Evidentemente,
existem apenas duas respostas lógicas a esta questão: ou estamos nos enganando a respeito
do volume de frustração e contrariedade na vida dos cegos, ou então estes estão usando
alguma forma de sintomas patológicos que nos escaþam.
À luz de recente investigação psiquiátrica em outros campos, justificamo-nos por ter uma
forte suspeita de que a condição da cegueira, que produz uma vida de frustrações, também
causa seu principal sintoma patológico próprio.
Afim de poder avaliar este conceito devidamente, seria esclarecedor para aqueles, entre nós,
que tiveram muitos anos de contato com pessoas cegas, contar nos dedos, o número de casos
observados de úlceras pépticas, coração hipertenso e distúrbios circulatórios, de paralisias
histéricas diversas, anestesias, e de condições abrangendo instabilidade vasomotora, entre os
cegos.
É lamentável, que não tenhamos dados médicos da média de freqüência de distúrbios
funcionais que ocorrem entre os cegos. Entre os dotados de visão, estes ocorrem em
aproximadamente trinta por cento da população e são utilizados por eles para enfrentar as
dificuldades da vida. Todos nós temos um grande número de amigos e conhecidos, dotados
de visão, que estão constantemente em luta com intestinos nervosos, alergias exageradas à
alimentos, corações excitáveis e fobias por isto e por aquilo. Mas encontramos, em nossa
longa lista de conhecidos cegos, algo que chegue tão perto desta alta proporção de distúrbios
nervosos?
Até bem recentemente, o mundo médico considerava como um fenômeno interessante e
inexplicável, serem os pacientes tuberculosos aparentemente mais felizes e melhor ajustados
emocionalmente do que a sua condição lhes permitia. A investigação psiquiátrica adequada
sobre o ajustamento emocional do paciente tuberculoso levou a indicar que o conceito
médico mais antigo era superficial e estava longe de ser verdadeiro. Verificou-se que o
inválido tuberculoso, sob seu comportamento objetivo, vivia em profunda ansiedade,
apreensão, frustração e desespero. É óbvio que tal grau de distúrbios emocionais produziria
uma variedade de sintomas pertinazes em uma pessoa fisicamente sadia, mas desde que um
paciente tuberculoso, assim que a sua moléstia é reconhecida, é forçado a um estado de
invalidez, torna-se possível ao paciente, com sucesso, enfrentar todos os seus problemas,
deitado de costas. O estado de invalidez, em si mesmo, é um escape suficiente de todas as
preocupações reais, e o paciente pode enfrentar o seu mundo objetivo agradável e
alegremente.
Não requer imaginação alguma aplicar-se imediatamente o padrão de personalidade, que o
paciente tuberculoso adotou, à situação em que a pessoa cega se encontra. No caso do cego
congênito e daqueles que perderam a visão, depois de possuí-la normalmente durante algum
tempo, o mundo e suas responsabilidades pessoais, do ponto de vista da pessoa dotada de
visão média, são irresistivelmente muito perigosos para enfrentar. Os dois casos de cegueira
são muito semelhantes, com exceção de que a criança cega congênita tem uma oportunidade
para incorporar o seu sintoma à sua atitude de amor-próprio, desde o nascimento, com o
resultado de que ela nunca fica sabendo que está enfrentando os seus problemas de forma
histérica. Do ponto de vista do prognóstico psiquiátrico, é quase necessário considerá-la
como incurável.
A perspectiva terapêutica para as pessoas com cegueira adquirida que antes de ficarem
cegas, tinham uma atitude sadia para consigo mesmas, é muito mais otimista, pois muito
poderá ser feito para reinterpretar-lhes os novos perigos, tanto do mundo físico, como social.
Quando isto é conseguido, verificamos que eles empregam a cegueira cada vez menos como
uma histeria de conversão. O mundo objetivo torna-se mais real, interessante, e controlável,
enquanto que o seu mundo subjetivo diminui em importância egocêntrica.
É em relação a este processo de reabilitação da personalidade dos cegos, que nos
aproximamos da segunda fase deste problema. Talvez seja esta uma pergunta que somente
um ignorante proporia. Mas não é concebível, que, possamos reabilitar um cego talvez com
prejuízo não só de sua saúde como também de sua felicidade? Suponhamos um indivíduo
que perdeu a sua visão durante um período conveniente, digamos durante a sua adolescência
inicial, e que fôssemos capazes de evitar que ele escapasse inteiramente para a sua nova
condição, e de reparar uma grande parte do prejuízo ao seu ego até que atingisse o estado de
adulto. Isto significa que ele consideraria sua condição de cego como a coisa mais sem
interesse e sem importância de si próprio. Ele assumiria todas as responsabilidades do adulto
normal e começaria a alcançar os seus objetivos e viver a sua vida como um indivíduo
normal. Sem dúvida, em virtude desta limitação, que ele aprendeu a ignorar ao invés de
utilizar-se dela como um escudo, encontraria um caminho extremamente difícil de trilhar; e,
naturalmente, construiria um conjunto de ansiedades normais, em relação ao mundo objetivo
que adotara.
Como resultado, ele ou seria infeliz, pela realizacão limitada, ou desenvolveria sintomas de
ansiedade, característicos de seus companheiros dotados de visão, ou desenvolveria uma
condição de hipertensão ao manter o esforço extra que a sua tarefa exibiu.
Talvez fosse bom para todos aqueles que tiveram longos anos de associação com os cegos,
rever seus conhecimentos e julgar se esta não é a situação daqueles que estão atormentados
com sintomas de ansiedade e as conseqüências orgânicas dos distúrbios funcionais. Nestes
casos, o quadro psiquiárico desenvolve-se não da cegueira, mas sim, das conseqüências de
sua renúncia, como um apoio histérico através da vida.
É motivo de satisfação para quem está pessoalmente interessado, tanto nos cegos como na
formação de sua personalidade, observar que uma parcela crescente de atenção está sendo
dada ao problema do ajustamento emocional do cego, em nossas instituições educacionais e
vocacionais e organizações para adultos. Entretanto, é muito importante para aqueles que
estão tão interessados, reconhecer as dificuldades que são inerentes ao problema com o qual
lutam. Apesar do melhor que o melhor de nós pode executar, a conclusão é óbvia, que não,
existe um ajustamento sadio para os cegos. Ao invés, existem dois tipos principais de
desajustamento: um proporciona um estado egocêntrico de segurança para o indivíduo cego;
o outro proporciona orgulho e satisfação à sociedade e àqueles que formaram sua
personalidade, e uma vida mais ativa e útil para o cego. [1939]
-
Nota
11.1 - Este trabalho foi publicado pela primeira vez no "Proceedings of the American
Association of Workers for the Blind", 1939.
Apêndices
Capítulo I - A criança cega na fase pré-escolar.
Os problemas educacionais de qualquer espécie, relacionados com a criança em idade
escolar são suscetíveis de serem desviados, a não ser que sejam, primeiramente,
compreendidos os princípios básicos e fundamentais do crescimento organizado. As
diferenças fundamentais entre os cegos e os dotados de visão devem ser determinadas, para
que se evitem o emprego de princípios educacionais aplicáveis aos que enxergam, que não
são apropriados para a educação dos cegos.
-
1 - Um estudo comparativo da atividade, em desenvolvimento, das crianças cegas
congênitas e das que enxergam, deve ser feito.
-
2 - Quais são as formas mais eficientes de estimulação objetiva, que podem ser substituídas
pela auto-estimulação física, praticada pela criança cega?
-
3 - Um estudo cuidadoso deve ser feito sobre desenvolvimento genético da localização
auditiva, na criança cega congênita, para que se determine como e quando os elementos do
som recebem posição espacial.
-
4 - Em que nível de idade o som absoluto torna-se diferenciado?
-
5 - A preferência das crianças cegas por objetos simples e simétricos deve ser investigada.
Em que nível de idade surge a apreciação pela beleza tátil?
-
6 - Em que nível de idade aparece a apreciação pelo ritmo tátil?
-
7 - Até que ponto o trabalho escolar fica prejudicado pela falta de estimulação e de
atividade na criança pré-escolar, quando se inicia a escola?
-
8 - O desen volvimento genético do reconhecimento tátil das partes do corpo deve ser
comparado como desenvolvimento do reconhecimento visual, pela criança que enxerga.
-
9 - Como se comparam as crianças cegas e as dotadas de visão na identificação olfativa dos
estímulos resultantes do tato e da visão? A experiência visual de uma laranja aumenta o seu
reconhecimento pelo olfato?
-
10 - Um estudo deve ser feito do conteúdo sugestivo do vocabulário da criança pré-escolar.
Qual é o conteúdo dos substantivos freqüentemente empregados?
-
11 - Que vantagem poderia ser auferida por uma escola para cegos, da utilização de um
departamento pré-primário, aceitando crianças com à idade de três anos aproximadamente?
Quais os tipos de atividades que deverão ser acentuadas em tal organização? Isto tenderia a
prevenir os efeitos maléficos das atitudes paternais e das condições caseiras doentias?
Capítulo II - Um caso de retardamento.
Casos graves de retardamento constituem um problema difícil, em todo departamento de
ensino primário. O professor primário médio encontra-se tão perdido ao procurar cooperar
com eles corretamente como a criança retardada, em compreender as situações novas e sem
sentido de uma sala de aula. Os periódicos para a educação dos cegos deveriam dedicar mais
espaço ao estudo de casos de crianças retardadas. Uma vez que, toda escola residencial
possui casos de retardamento, não há desabono por parte da instituição, em admitir a
situação francamente e em socializar os sucessos e fracassos sofridos pelos diferentes
professores.
Todo professor primário deve observar a criança retardada em relação às seguintes
questões:
-
1. Ter o retardamento da criança afetado todo o seu desenvolvimento ou somente alguns
aspectos isolados deste?
-
2. Que conseqüência teve o retardamento sobre as diferentes formas de percepção
sensorial?
a) Audição:
-
1. Localização de sons.
-
2. Percepção de melodia musical, do ritmo, e da altura do som.
b) Percepção e manipulações táteis e cinestésicas:
-
1. Auto-orientação na sala de aula e nas vizinhanças da escola.
-
2. Reconhecimento de objetos comuns e a facilidade em manipulá-los.
-
3. Até que ponto as motivações normais deixaram de se desenvolver? Quão próximos os
desejos e vontades da criança correspondem àqueles encontrados na criança normal que
enxerga? Quantos interesses objetivos tem a criança? São reais e manipuláveis ou
imaginários e verbais?
-
4. Até que ponto é possível estabelecerem-se motivações que não atuaram, previamente,
no desenvolvimento da criança? É possível prosseguir-se na sua educação sem proporcionar- lhe as atividades fundamentais anteriormente perdidas?
-
5. Até que ponto deixou de se desenvolver o discernimento social da criança? A criança é
lenta em identificar-se com as atividades da sala de aula e do pátio de recreio?
-
6. O discernimento social da criança desenvolve-se comensuradamente com o
estabelecimento de padrões de motivação social? Que evidências quotidianas de
egocentricidades podem ser observados?
-
7. Com que freqüência a sugestão dócil combina-se com a teimosia reclusiva em crianças
retardadas?
-
8. Quais são os estímulos substitutos mais eficientes para o monólogo absorvente?
-
9. Que tipos de atividades escolares melhor se prestam para desenvolver a diferenciação
muscular fora da ação maciça?
-
10. Em quais atividades escolares a criança demonstra o menor comportamento de
discernimento?
-
11. Que tipos de atividades escolares produzem maior instabilidade intelectual e
emocional?
Capítulo III - Verbalismo: Palavras versus Realidade.
É bem evidente que o estudo verbal está subvertendo os fins educacionais por todo o curso
escolar do cego. Também é aparente, que uma grande maioria dos professores não está a par
do resultado que este desenvolvimento tem sobre a inteligência e personalidade e não está
familiarizado com as diferentes formas que possa assumir. O problema de como a criança
cega domina intelectualmente os significados concretos e as relações deve ser objeto de
muita atenção nos periódicos destinados à educação dos cegos, pois, praticamente, não têm
recebido atenção alguma.
-
1. Como pode a situação de estudo ser arranjada de modo que as relações concretas da
história, da geografia, das ciências naturais, das relações sociais, e dos valores estéticos
possam ser significativas à criança cega?
-
2. Como pode o alvo de estudo ser transferido de mera conquista na sala de aula e de
reprodução verbal para a percepção real das relações?
-
3. Qual é a contribuição de irrealidade verbal na formação dos mentirosos patológicos?
-
4. Que evidência, de fato, existe de que os métodos objetivos, recentes, de apresentação de
matérias sejam mais corretos, sob o ponto de vista de relação, do que os métodos literários
de instrução?
-
5. Como deverá o professor da criança cega substituir a relação entre professor e aluno, por
motivações novas, para fim de estudo.
-
6. Poderá haver alguma correspondência entre as relações perceptivas do professor e aluno
cego, dentro do padrão de estímulos, por exemplo, na percepção da forma, tamanho, peso,
relações espaciais, situações sociais e valores sociais?
-
7. Que resultados efetivos resultam da capitulação dos valores perceptivos sobre a
tenacidade com que são retidos os valores morais e espirituais?
-
8. Sob que aspectos o estudo verbal é uma continuação de retardamento?
-
9. A irrealidade e estudo verbal serão para os que enxergam, um aspecto de retardamento?
Capítulo IV - A vida de fantasia dos cegos.
Embora a construção de fantasias seja uma atividade altamente subjetiva, que não requer
expressão objetiva, pode servir quando não existem meios objetivos, como um método
higiênico de preservar o ego contra a desintegração.
-
1. A vida de fantasia afeta os valores sociais e as atitudes da criança?
-
2. Que efeitos tem uma vida de fantasia ativa sobre a formulação do bom senso e
julgamentos comuns de uma criança?
-
3. Embora uma vida de fantasia ativa possa servir como um ajustamento pessoal, chega a
facilitar qualquer ajustamento social possível, na vida do indivíduo?
-
4. De que maneira pode a vida de fantasia da criança cega ser empregada para motivar o
trabalho escolar?
-
5. Haveria algum valor terapêutico no emprego da vida de fantasia como uma motivação
para o trabalho escolar?
-
6. Como poderá ser empregada a construção de fantasias, no desenvolvimento de uma
carreira literária, para a criança?
-
7. Quando o desenvolvimento intelectual e a personalidade tenham sido mantidos num
nível altamente subjetivo, por algum tempo, é de todo possível introduzir relações
efetivamente objetivas e significativas que deveriam ter-se desenvolvido anteriormente?
-
8. Pode uma vida sexual subjetiva e excêntrica apoiar uma personalidade sadia?
-
9. As preocupações, temores, e apreensões relatados por Muhl, pertencem a uma atividade
semelhante à de construir fantasias, ou são o produto da fadiga e da subnutrição?
-
10. Como se compararia a vida de fantasia dos cegos com a das crianças negras que vivem
numa comunidade de brancos?
-
11. Como se compararia a vida de fantasia do adulto cego com a do operário de uma
fábrica, dotado de visão?
Capítulo V - Voz e fala.
A freqüência dos hábitos defeituosos do linguajar, verificada nas escolas residenciais para
os cegos, indicaria uma origem dos defeitos no meio ambiente.
-
1. Um levantamento dos hábitos defeituosos da fala, entre os cegos que freqüentam escolas
para os dotados de visão e que desfrutam um ambiente normal caseiro, revelaria um índice
tão alto?
-
2. Que provas poderiam ser coletadas para demonstrar que as causas dietéticas contribuem
materialmente para o linguajar defeituoso, entre as crianças residentes nas escolas?
-
3. Que efeito produz a leitura lenta e hesitante do braille nos hábitos da fala, nas crianças
cegas?
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4. Até que ponto o crescimento visual, após a perda da visão, interfere com a facilidade da
fala?
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5. Quais são os melhores métodos para motivar a criança no sentido de uma enunciação
com maior facilidade e correção?
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6. Até que ponto ocorre o gaguejar entre os cegos congênitos?
-
7. É possivel corrigir o que se costuma denominar de "voz radiofônica" dos cegos,
defeituosa, em face de localização auditiva?
-
8. Quanto da fala defeituosa no cego é um remanescente de retardamento?
Capítulo VI - Problemas na vida emocional dos cegos.
Se as atitudes emocionais dos cegos em relação aos seusdefeitos não são produzidas
socialmente, muitas formas de distúrbios emocionais graves deverão surgir neles.
-
1. Porque o índice de suicídio entre os cegos é baixo? Os suicídios são na maioria das
vezes, oriundos de defeito físico ou existem outras condições responsáveis?
-
2. As manifestações histéricas são mais comuns entre os cegos do que entre os dotados de
visão? Quantos casos de mecanismo de escape podem ser encontrados entre a população
cega, tais como anestesias, amnésias, fugas e outros semelhantes?
-
3. O cego congênito, cuja organização intelectual está baseda inteiramente sobre as
percepções cinestésicas, é capaz de sofrer uma paralisia histérica funcional? É a paralisia
histérica puramente uma função da visão?
-
4. Até que ponto ficam os cegos incapacitados pela aceitação das atitudes emocionais
demonstradas pelos membros da sociedade dotados de visão?
-
5. Até que ponto os cegos são impedidos de empregar as suas habilidades e treinamento,
pelo sentimentalismo lamuriento e preconceito incrédulo dos que enxergam?
-
6. Até que ponto impõem-se os cegos diante das atitudes dos dotados de visão?
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7. Até que ponto o serviço de bem estar social para cegos explora as atitudes emocionais
do público dotado de visão?
Capítulo VII - Comportamento sexual dos cegos.
Uma vez que o problema do desenvolvimento sexual, nas escolas residenciais, está tão
insoluvelmente ligado ao problema de prevenir o casamento entre cegos, dados referentes à
eficiência da política onerosa da segregação seriam bem recebidos.
-
1. Um levantamento efetuado nos diferentes estados, em que se encontram aqueles que
freqüentaram as instituições para cegos, demonstraria que aquelas escolas que mantinham a
segregação estrita teriam diminuido a proporção dos casamentos entre as pessoas cegas?
-
2. A segregação dos sexos, durante a infância e a adolescência, produz a forma de
debilidade sexual, que se pode encontrar entre os cegos sob a forma do pudor exagerado,
orgulho, presunção moral e religiosidade militante?
-
3. O ambiente sexual escasso de uma instituição, que pratica a segregação, facilita o
casamento com os que enxergam?
-
4. Tais indivíduos não se encontram grandemente prejudicados, até mesmo quando
tenham conseguido casamento com os dotados de visão?
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5. Qual a influência que exerce sobre a personalidade da criança cega a desconfiança
notória de sua decência e julgamento, insinuada pela segregação rígida?
-
6. O homosexualismo é notoriamente manifesto entre moças das instituições com a mesma
freqüência do que entre os rapazes?
-
7. Qual é a média relativa de casamentos com os dotados de visão, entre mulheres cegas,
em comparação com os homens cegos?
Capítulo VIII - A vida estética dos cegos.
-
1. Se a vida estética obtém a sua característica da vivência total, na qual são apreciadas as
relações dinâmicas entre o ego e seus ambientes, podem as aulas, formais, ministradas pelos
que enxergam, ajudar a criança cega em seu crescimento estético?
-
2. Como poderá o sistema educacional encorajar a arte de escrever, como forma efetiva de
apreciação estética e de expressão para os cegos?
-
3. Isto poderá ser conseguido ordinariamente, através do treinamento em técnicas ou pelo
desenvolvimento de motivações nos alunos e pela confiança em suas próprias percepções?
-
4. Por que são os cegos tão deploravelmente imitativos quando os requisitos fundamentais
para uma solução adequada de seus problemas de ajustamento são a perspicácia e
engenhosidade?
-
5. É saudável para o cego tentar a expressão estética em seu mundo de irrealidade?
-
6. Se fosse permitido a uma criança cega confiança em seus valores perceptivos, a
expressão estética então assumiria forma objetiva?
-
7. O sucesso alcançado por eminentes músicos cegos depende mais do treinamento e da
habilidade musical do que de fatores de personalidade?
Capítulo IX - Problemas relativos à personalidade nas instituições para cegos.
Embora, a grande maioria das escolas residenciais para os cegos seja limitada pela sua
política de organização, ainda assim, poderá realizar muito em face desta séria limitação.
Sob o sistema atual, e óbvio que, o maior defeito das escolas residenciais é o de deixar de
proporcionar à criança cega um meio ambiente adequado e apto.
-
1. É possível expandir o meio ambiente institucional para atender a esta necessidade
imperativa, ou é necessário desenvolver-se a educação dos cegos no sistema escolar público,
como ocorre em vários estados e cidades? Se o desenvolvimento da educação para os cegos
seguir esta última direção, haverá adaptação adequada, proporcionada aos alunos cegos, nas
escolas para os que enxergam?
2. Como se compara o desenvolvimento da personalidade da criança cega, treinada numa
escola residencial, com aquele da criança de uma escola para os dotados de visão? A criança
cega, que freqüenta a escola diurna, desenvolve mais motivações normais e um
discernimento social maior, correspondentemente?
3. É necessário possuírem os professores, das escolas residenciais para os cegos, o
treinamento exigido para o mesmo grau de especialização, nas escolas para videntes? Onde
se pode obter um treinament o adequado e contínuo?
4. O que apontaria um levantamento, onde se fizesse um estudo comparativo, dos salários
dos professores das escolas residenciais para cegos e daqueles, com igual especialização, das
escolas para os que enxergam?
5. O que se apuraria num levantamento onde se demonstrasse a comparação das escalas
salariais, numa escola residencial, entre professores que enxergam e os que são cegos?
Estarão os professor es cegos sendo explorados pelo sistema educacional?
6. Que papel desempenharia a sub-nutrição e a dieta deficiente nos problemas de
personalidade dos alunos de escolas residenciais?
7. É necessário, ou mesmo desejável, que a educacão dos cegos seja organizada em torno
de qualquer sistema puntiforme de leitura?
8. Qual é a conseqüência de cercar-se a criança cega, na escola residencial, de confortos e
comodidades materiais, que jamais ela terá em sua própria casa e que não teve em sua casa
paterna?
9. Admitindo-se que os professores cegos possuam habilidade pedagógica e
conhecimentos intelectuais equivalentes aos dotados de visão, deverão aqueles ser
empregados para a educação dos cegos? Poderão os alunos fugir ao plágio de personalidade?
10. Demonstraria um levantamento, que os alunos melhor sucedidos, das instituições para
os cegos, devem o seu sucesso ao treinamento vocacional que receberam na escola?
11. Desde que o treinamento industrial é oferecido tão largamente nas escolas
institucionais de verão, o que justifica manter-se os estudantes de curso ginasial em escolas
residenciais?
12. Quais são os fatos concernentes ao status sócio-econômico dos alunos das escolas
residenciais para os cegos?
Capítulo X - O ajustamento social numa comunidade universitária.
A natureza das escolas residenciais para os cegos torna necessário, ao graduado cego,
ingressar em sua carreira econômica, concomitantemente, com o ajustamento difícil à
sociedade dos que enxergam. Por conseguinte, recai uma dupla carga sobre o graduado cego,
de escola residencial. Uma vez que, qualquer uma das formas de ajustamento é mais do que
o melhor dos otimistas pode esperar, a combinação das duas dificilmente será alcançada.
Informações abundantes podem ser encontradas, com relação aos esforços e empenhos
daqueles cegos que foram bem sucedidos, mas muito mais poder-se-ia aprender se
pudéssemos dispor de relatos autobiográficos de fracassos igualmente excepcionais. O
material para estes relatos existem em grande abundância.
-
1. Que percentagem de ex-alunos de escolas residenciais são economicamente auto-suficientes?
-
2. Que percentagem, dos bem sucedidos, obtém o seu sustento da aprendizagem
vocacional nas escolas residenciais?
-
3. Que percentagem de graduados cegos, universitários, conseguiram utilizar o seu
treinamento especializado?
-
4. O fracasso das universidades em obter colocação para os seus graduados cegos é devido
ao preconceito popular, ou às personalidades defeituosas dos próprios cegos?
-
5. Uma vez que o treinamento intelectual é realmente o mais fácil que as instituicões
podem proporcionar, será possível que um grande número de estudantes seja instado a seguir
atividades intelectuais?
-
6. Qual o efeito social, sobre o aluno que vive na escola residencial para os cegos,
enquanto está freqüentando o ginásio? Enquanto freqüenta a universidade?
Final do livro
ϟ
O CEGO NA ESCOLA E NA SOCIEDADE: UM ESTUDO PSICOLÓGICO
por
THOMAS D. CUTSFORTH
título original: The Blind in School and Society: a psychological study
1.ª edição: New York, D. Appleton and Company (1933)
Editora Fundação para o Livro do Cego no Brasil
Edição mimeografada - 1969
Δ
2.Mar.2015
publicado
por
MJA
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