
Antes de tecer qualquer outra consideração, gostaria de enfatizar que o meu
trabalho de ledor oral do livro falado tornou-se uma das experiências pessoais
mais ricas e positivas que me coube viver, embora minha existência tenha sido
cheia de atividades atraentes e felizes. Por outro lado, essa é uma profissão
que jamais fizera parte de meus planos e programações dos afazeres possíveis e
se introduziu em minha vida graças ao empenho providencial de um amigo
particularmente querido.
PRAZERES OU DÚVIDAS?
Em 1984, quando retornei ao Uruguai, depois de cinco anos de experiência no
México, Enrique Elissalde, com quem há 20 anos compartilhava o culto comum da
poesia, ofereceu-me um trabalho que me pareceu insólito. Confiante em minha
vasta experiência de radialista, pensou que eu poderia ser útil em um novo
serviço que a Fundação Braille do Uruguai pretendia inaugurar naquela ocasião: a
gravação de textos e obras literárias em cassetes que os usuários levariam para
casa em regime de empréstimo temporário. Fiquei entusiasmado com o projeto.
Pensei nos riquíssimos horizontes a serem abertos por essa via para quem
estivesse impedido de ver. Mas, o entusiasmo não significava de modo algum que
me sentia seguro para desempenhar de maneira satisfatória semelhante tarefa.
Minha experiência de 30 anos de jornalismo - ainda que intermitente - não se
comparava em nada à ocupação de ledor de textos que abrangem os mais variados
gêneros, mesmo que a voz e a expressão fossem bastante treinadas. A capacidade
de ler em voz alta material tão heterogêneo supõe outros requisitos e
habilidades que jamais havia testado.
COMPLETANDO LUIS BRAILLE.
Não domino temas tiflológicos. Apenas, tento transmitir as considerações
certamente ingênuas que me ocorreram naqueles primeiros momentos. Parecia-me que
a problemática da cegueira não se limita unicamente à perda da função visual.
Perguntava-me se mais grave, ainda, não seria a dificuldade ou a impossibilidade
de acompanhar bem de perto e em seu próprio ritmo a multiplicidade de um mundo
cada vez mais complexo que caminha, às vezes, em velocidades vertiginosas. Daí,
a importância de prover à pessoa cega com todos os instrumentos e os meios
possíveis para povoar sua experiência interior com elementos da realidade que
permitam a ela não se desconectar dos desenvolvimentos em curso no mundo em que
vive. Pensava também que para atacar a problemática da cegueira, a partir desse
referencial, seja de modo parcial ou complementar, faltam, hoje, ferramentas
apropriadas e abundantes que estejam ao alcance dos cegos sem demandar-lhes
esforço excessivo. Parecia-me da maior importância que essa rica abertura em
termos da realidade não se tornasse para os cegos tão limitadora como é, hoje,
tão problemática e fragmentada. Era precisamente nesta linha de aportes
complementares que se inscrevia o novo projeto de gravações de textos que me
propunha Elissalde. Bendito seja Luis Braille, pensava eu. Mas, benditos também
sejam todos os recursos que idealizamos para abordar o universo dos cegos a
partir das referências mais variadas e numerosas e, desse modo, enriquecer suas
experiências interiores. A proposta era, sem dúvida, um desses meios que
significavam o engajamento de sua relação com o mundo. Como não ficar
entusiasmado com tal projeto?
O OFÍCIO DE DESCORTINAR HORIZONTES.
Assim, a primeira preocupação foi a de entender cabalmente o que seria a
minha nova profissão. A principal conclusão pode ser formulada em poucas
palavras: essa profissão consiste em abrir mundos. Quem lê para cegos não pode
pensar nem por um momento que sua função seja a de dar expressão oral às linhas
escritas no papel. Deve ler com a consciência muito alerta para o fato de que do
outro lado do gravador existe alguém para quem o que está ouvindo é uma porta de
acesso a uma nova experiência de vida dificilmente alcançada de outro modo. Ou
tal ato se tornaria simples e superficial. Parece só um matiz ou um detalhe.
Mas, não é assim. Quando lemos com a convicção de que estamos fazendo liberar
horizontes, todos os aspectos da leitura são transfigurados e iluminam o manejo
das inflexões, as cargas de expressividade, as entonações, as intencionalidades
e o colorido do que tentamos transmitir.
NOSSO INIMIGO, O TÉDIO.
Talvez, eu me refira ao que me parece a principal lei da leitura oral que
formularei de maneira simples e pueril: o aborrecimento aborrece. Em outras
palavras, se quem lê o faz de forma tediosa, transmite tédio. Daí, a importância
de que a leitura oral possa interessar genuinamente ao profissional que deve ler
para outros porque Se ele lê maquinalmente, sem penetrar no conteúdo percebido,
será ouvida uma mensagem incolor, apagada e sem vida. A conseqüência será o
tédio. Esta lei inexorável sempre se cumpre em qualquer tipo de leitura oral.
Mas, parece-me ainda mais rigorosa no caso do ouvinte cego. Isso porque o seu
campo de atenção fica ocupado com mais radicalidade pela mensagem auditiva. Por
isso, será mais fácil para ele detectar o estado de ânimo de quem lê. Por essa
razão, parece-me um princípio natural o de escolher, se possível, textos
atraentes para quem os lerá. Claro que nem sempre isso será possível. Nessa
profissão, será inevitável que caiam em nossas mãos, ás vezes, textos que nos
são completamente alheios. São como pesadelos profissionais que, às vezes, -
diga-se de passagem - o amigo Elissalde nos infligirá sem nenhuma piedade. Quem
poderia entusiasmar-se lendo páginas e páginas de estatutos ou regulamentos
inteiros com artigos frios, incisos pálidos e parágrafos mumificados? Nestes
casos, para nós, dramáticos, talvez, a salvação consiste em recorrer a uma
segunda lei da leitura oral que funciona como paliativo para os tormentos deste
material desditoso.
SEGUNDA LEI: LER CLARIFICANDO.
Poderíamos anunciá-la assim: devemos ler procurando tornar claro a cada
momento o sentido do que está sendo lido. Exagerando um pouco, talvez, diria que
se trata de ler explicando ao outro. Resvalar pelo significado, passar ao largo
dos sentidos e pensar em outra coisa têm como conseqüência o obscurecimento da
mensagem e a dificuldade adicional de compreensão. Sem contar que o tédio será
mais uma vez a conseqüência inexorável. Diria que o primeiro mandamento para
quem lê para outro é tornar plenamente compreensível o que transmite. Isso
porque se tratamos de explicar aquilo que estamos lendo surgirão matizes,
acentos e ênfases que animam a leitura e são capazes de dotar de certa vida até
os artigos de cimento armado de um regulamento ou estatuto.
TERCEIRA LEI: LEITURA COMUNICATIVA.
Existe um tipo de leitura pessoal e um tipo de leitura comunicativa. No
primeiro caso, sentimo-nos comprometidos em recitar em voz alta o que está no
papel. No segundo caso, ao contrário, ficamos em busca do outro, sem descanso,
aquele ser humano que ali está atento a tudo que pronunciamos. Não somos
monologuistas. Dialogamos ou quem sabe, simplesmente conversamos como dois
amigos. Nosso dever é, pois, chegar ao outro, interpelá-lo, comovê-lo,
comprometê-lo, fazer com que participe do que falamos. Ocorre ou deve ocorrer
tal como na vida diária, quando conversamos com alguém. Utilizamos - sem nos dar
conta - de um repertório de recursos de comunicação oral que condiciona e
modifica nossa fala. O ideal seria que quem escuta tenha a sensação de que
estamos falando direta e exclusivamente para ele.
QUARTA LEI: O TEXTO MARCA E COMANDA.
Claro que nem sempre é possível converter a leitura em conversa. Existem
textos que não o permitem por sua própria índole. Isso nos leva a lançar mão de
outra lei que também se cumpre inexoravelmente: cada texto requer um tipo
próprio de leitura que o traduza e o expresse da melhor maneira segundo a sua
natureza. Se lêssemos todos os textos do mesmo modo, seríamos maus ledores.
Quando leio uma novela, procuro converter-me em narrador vivo e comunicativo da
história transmitida. Se leio, porém, um discurso parlamentar que me coube ler,
não me resta outro remédio senão o de me aproximar pelo menos um pouco do estilo
da oratória. Ao ler um poema de amor, não posso fazê-lo do mesmo modo que leio
um estudo sobre tiflologia. Em cada caso, tenho que simular um pouco o meu
estilo de leitura, pois o resultado seria nefasto se, em todos os casos, o
leitor oral uniformizasse sua expressão. Aproximar-se dos atores teatrais,
representar a leitura apresentada, Admito que seja exagerado, pois não se trata
estritamente de representar e sim de tornar adequado. Mas, a palavra
representar, talvez, tenha a vantagem de estabelecer o que quero por ter
provocado uma associação de idéias com a atividade teatral e, em particular, com
o trabalho dos atores realizado no palco. Justamente a leitura oral demanda com
freqüência que atuemos à maneira dos atores. Obriga-nos até certo ponto a
entrarmos na pele de quem escreveu o texto. Entrar na pele é mister
eminentemente teatral e artístico. Se leio um poema de amor, como já disse, não
preciso estar verdadeiramente enamorado para que a leitura seja convincente.
Bastará entrar na pele do enamorado, sentir como ele, no momento em que está
embebido de seu sentimento amoroso. Esta não é, contudo, a única forma de
atuação exigida. Por exemplo, às vezes devemos ler uma novela ou um conto
relatados na primeira pessoa. Neste caso, nosso dever é fazer a leitura como se
fôssemos o personagem que narra. Devemos encarná-lo, desempenhar o papel de.
Ocorre com freqüência em narrações lidas por nós, mesmo na terceira pessoa e não
na primeira, o surgimento de diálogos e de monólogos. Quer dizer, os personagens
falam e, por vezes, falam abundantemente. Existem contos inteiros de Morozoli,
por exemplo, construídos em grandes seqüências de diálogos. Em todo caso, não
temos outro remédio senão o de nos convertermos momentaneamente em atores, pois
faríamos um péssimo favor ao autor e ao ouvinte se uniformizássemos as falas de
todos os personagens. O ladino apareceria falando como santo e o velho bêbedo
como a mocinha virginal. É preciso que marquemos ao menos certas diferenças
básicas de falas nestes casos. Isso implica em certos riscos que não nos escapam
e que chegamos a discutir nos primeiros tempos do livro falado. O que seria
preferível, uma leitura branca ou uma leitura até certo ponto expressiva? No
último caso, não estaríamos condicionando o leitor à interpretação do texto que
lhe chega? Não o estaríamos induzindo a ver e sentir segundo a nossa
interpretação que poderia não ser a dele? Quem faz leitura oral pode induzir,
mesmo sem o pretender, a um certo entendimento do texto, cuja interpretação será
a sua e pode não coincidir com a de quem o excuta. Assim, o ledor oral
converte-se em intermediário - ou se preferirmos - em um intruso que se interpõe
entre o texto do autor e a recepção do ouvinte. Seria então preferível a leitura
branca e inexpressiva como se frases desfilassem impavidamente, umas atrás das
outras, para que o ouvinte pudesse carregá-las de sentido por sua conta e ao seu
modo? A solução mais aceitável como ocorre tantas vezes parece ser o meio termo:
nem a leitura branca que logo se torna tediosa e, talvez, não seja tolerada por
muito tempo, nem uma leitura demasiado comprometida em sua expressão para
induzir o ouvinte a aceitar o que seria o entendimento subjetivo de quem lê.
Contentamo-nos, pois, em marcar minimamente os matizes que fazem falta à melhor
percepção do texto, tomando cuidados para não carregá-lo com tal ou qual
intencionalidade passível de diferentes interpretações.
CONFINADOS COMO PRISIONEIROS.
Embora o ledor oral esteja especialmente preocupado em comunicar-se e
dirigir-se a um ouvinte concreto, sua relação direta com quem o escuta é
desgraçadamente mais do que limitada. Seu trabalho deve ser realizado entre
quatro paredes estreitas, isolado do mundo exterior, em uma penumbra quebrada
apenas pela luz do portátil sobre o texto. Ali passa as horas envolvido na
aventura de ler, vivendo-a quase como um ermitão. Raramente, terá contato com os
usuários e poucos são os que chegam a saber da real ressonância de seu trabalho.
A quais expectativas dos usuários temos correspondido? Que demandas não foram
satisfeitas? Somos aceitos, bem tolerados? Ou apenas nos suportam? Emocionam-se
ou ficam frios com a nossa leitura? Somos claros? Ou não propiciamos nenhum
entendimento útil do texto? Consideram-nos intrusos nesta intermediação entre o
usuário e o autor? Mil perguntas, mil incertezas que jamais poderemos esclarecer
completamente.
AS JANELAS E A PONTE.
Às vezes, penso que o nosso trabalho de ledores orais deveria ser como o
vitral de uma janela através do qual o ouvinte visse sem ver-nos. Que lhe
chegasse somente o autor e o texto e não a nossa leitura. Igualmente, ao
passarmos por uma ponte, olhamos a paisagem sem prestarmos atenção à ponte. Nós,
leitores profissionais, também deveríamos ser assim, apenas ponte que permita ao
passante passar por ali atento ao panorama e não à estrutura sobre a qual vai
avançando. De qualquer forma, ser ponte ou vitral de uma janela, não é belíssima
a nossa profissão? Permitir ver mais longe, conduzir a outros mundos quem
desejar. Como não me sentir gratificado com esta venturosa tarefa que um dia
Enrique Elissalde teve a inspiração de contemplar-me e que, hoje, constitui
parte iluminada de minha existência?
ϟ
Milton Schinca é jornalista e trabalha na unidade do livro falado da
Fundação Braille do Uruguai. Este texto foi extraído da publicação
especial "Para los 15 anos de la Fundación Braille del Uruguay",
13 de Junho de 1993 em Montevidéu.
A tradução brasileira - de Elizabeth Dias de
Sá - foi publicada na
revista INSIGHT Psicoterapia, março/94, Editora Oasis São Paulo.
Tradução livre do
espanhol: Elizabeth
Dias de Sá
Δ
26.Fev.2009
publicado
por
MJA
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