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 Sobre a Deficiência Visual

INTERAÇÃO: condição básica para o trabalho do profissional com o portador de deficiência visual

Maria Lúcia Amiralian

Menino cego e amigo brincam com um papagaio partido em Kabul
Menino cego e amigo brincam com um papagaio partido em Kabul

 

Meu interesse sobre a compreensão das pessoas com deficiência visual, bem como sobre os procedimentos de intervenção que melhor atendessem às suas necessidades, data do início de minha vida profissional. Essa compreensão se constituiu para mim como o esqueleto de meu desenvolvimento profissional. E o aprofundamento de meus conhecimentos em Psicologia se entrelaçou com meus conhecimentos sobre a cegueira e sobre as pessoas com deficiências visuais.

Durante minha vida profissional, fiz atendimentos terapêuticos de crianças, adolescentes e adultos cegos e com baixa visão, que me mostraram as dificuldades a que estão sujeitas as pessoas que, devido à ausência ou limitação da visão, percebem e compreendem o mundo através de outros canais sensoriais que não os utilizados pela maioria da população. Isso me levou a estudos e pesquisas com sujeitos cegos, com o intuito de compreender seu desenvolvimento e organização da personalidade, e de conhecer procedimentos mais adequados para seu psicodiagnóstico.

No estudo em que, através de uma abordagem psicanalítica, procurei compreender a influência da cegueira na organização da personalidade (Amiralian, 1992), pude observar que a cegueira — tanto pela condição física, ausência da percepção visual, como pelos significados conscientes e inconscientes de que ser cego é ser diferente num mundo vidente — conduz a conflitos e sentimentos comuns. Para todos, a cegueira se constitui como uma complexa condição com a qual têm que se haver cotidianamente, que se reflete em sua organização egoísta, em sua forma de estabelecer relações com os objetos e nos mecanismos de defesa que elegem. Seja a condição de cegueira sentida como uma incapacidade generalizada, seja dificultando suas relações afetivas, seja desencadeando sentimentos de inveja, ou desenvolvendo a capacidade de reparação e propiciando ricas introspecções, ela aparece sempre como elemento subjacente e central na história de vida dessas pessoas.

Essas descobertas e os anos de atividade profissional culminaram com uma proposta de trabalho em equipe com dois colegas da Universidade de São Paulo, especialistas na área, professora Élcie S. Masini e professor Marcos Mazzotta. Esta proposta tem como objetivo básico um estudo sobre a intervenção especializada com crianças deficientes visuais, tendo em vista as dificuldades percebidas no desenvolvimento e aprendizagem das crianças com deficiência visual. Ela tem como suporte três questões fundamentais: a do desenvolvimento da criança com deficiência visual, a relação mãe-bebê deficiente, e a do referencial perceptual do deficiente visual.


O desenvolvimento da criança com deficiência visual

Com relação à questão do desenvolvimento dos primeiros anos de vida, estudos realizados têm mostrado as dificuldades a que estão expostas essas crianças. Dóris Wills (1970) considera que o impacto da cegueira sobre o desenvolvimento da criança é provavelmente mais sério nos estágios primitivos de sua vida, quando ela tem que estabelecer uma efetiva relação com os objetos e organizar suas experiências.

Levantamento de vários estudos psicanalíticos na área (Burlingham, 1961; Sandler, 1963; Omwake e Solnit, 1964; Wills, 1970; Fraiberg, 1977; e Warren, 1984) mostra que numerosos fatores relacionados à falta ou diminuição de visão podem explicar o atraso no desenvolvimento das crianças nos seus primeiros anos de vida. Nesta idade, a atividade fundamental da criança é a exploração visual, seus olhos voltam-se freqüente e livremente, fixando-se sobre um objeto após outro. A criança que antes agarrava os objetos com suas mãos, agora os cata com os olhos. Isto é negado à criança deficiente visual que perde a continuidade com o meio ambiente. Além disso, ela é privada do contínuo feedback visual de sua mãe, uma resposta que premia e reforça seus esforços. Sua dificuldade em dominar o ambiente externo leva o bebê com dificuldades visuais a concentrar- se sobre suas próprias experiências corporais, e a experienciar uma constante auto-sedução. Por outro lado, este bebê recebe menor quantidade e variedade de estímulos do mundo externo. Assim, embora os estudos afirmem que as crianças com perdas visuais necessitam de um conjunto extra de estímulos para compensar sua falta de visão, observa-se que neste momento ela recebe menos, tanto pelas reações da mãe como por sua própria deficiência, geradoras de dificuldades em suas interações. Isto mostra a importância da intervenção precoce em crianças com deficiência visual.


As relações mãe-bebê deficiente visual

Estudos realizados em clínicas sob o referencial psicanalítico têm salientado, também, as dificuldades dos primeiros contatos da mãe com seu bebê cego, em contraste com o orgulho e o prazer das mães de bebês normais.

Considerando como Winnicott (1975) que o desenvolvimento é um processo que evolui da dependência absoluta para a independência a partir das interações primitivas do organismo com o ambiente (inicialmente a mãe), as interações mãe-bebê são o ponto básico a partir do qual se organizarão as relações com o mundo, elemento fundamental para a constituição do sujeito psíquico.

A constituição biológica não só possibilita a existência como também, através do sistema nervoso central, condiciona, limita e promove os intercâmbios como destacam Coriat e Jerusalinsky.

Sobre ela, determinado pela presença de uma estrutura familiar, se constitui o sujeito psíquico. Através das interações entre o bebê e seus pais, os atos, os gestos e as palavras vão sendo significados e articulados em uma seqüência que delineia o lugar do filho. Quando uma criança deseja algo, ela se interessará em primeiro lugar pelas coisas que são interessantes à sua mãe, que como diz Winnicott (1978), tem como uma das funções apresentar o mundo ao seu bebê. O mundo torna-se então objeto de interrogação, de experimentação e de intercâmbio organizado. Esse processo de desenvolvimento vai promovendo, por sua vez, intercâmbios cada vez mais organizados.

Estamos neste momento em presença do sujeito do conhecimento.

Como diz Winnicott (1990, p.44):

A natureza humana não é uma questão de corpo e mente — e sim uma questão de psiquê e soma interrelacionados, que em seu ponto culminante apresenta um ornamento: a mente.

Não podemos nos esquecer de que as pessoas com deficiência visual são constituídas por uma base somática diferente das pessoas que enxergam. Desta forma, suas funções psíquicas e a elaboração imaginativa das funções somáticas se constituirão a partir de condições peculiares, não conhecidas peias pessoas não deficientes visuais.

As mães e familiares, das crianças com deficiência visual não sabem o que é ser deficiente visual e não conhecem suas formas naturais de interação. De forma semelhante, nós, profissionais que atendemos a essas crianças, temos apenas informações teóricas sobre o caminho por elas percorrido em seu processo de desenvolvimento, e uma tendência natural para impor-lhes a nossa maneira de ser e de interagir com o meio ambiente. Essa imposição do ambiente, desrespeitando a maneira natural do ser, se constitui, no dizer de Winnicott (1990) como uma intrusão.

A criança poderá reagir a essa intrusão imprevisível, que não tem nenhuma relação com o seu processo vital, retraindo- se e adequando-se ao ambiente através do desenvolvimento de um falso self.


O referencial perceptual do deficiente visual

Temos constatado o uso habitual do referencial visual nos trabalhos com deficientes visuais, nos manuais de orientação, nos currículos escolares e nas investigações científicas sobre seu desenvolvimento.

Com relação a este aspecto, Masini (1990), a partir de dados de pesquisa, enfatiza a necessidade de educadores (pais e professores) bem como de outros profissionais buscarem o referencial perceptual do deficiente visual para qualquer tipo de intervenção junto a este.

Fundamentada na concepção de que é a experiência corporal que permite o emergir dos sentidos, a autora apresenta uma proposta para a formação de professores especializados cujo ponto essencial é a ênfase dada ao corpo. Neste sentido, a experiência perceptiva é que vai mostrar a relação dinâmica do corpo no mundo como um sistema de forças. O corpo é, então, visto numa totalidade em sua estrutura na relação com as coisas ao seu redor; o sentido já é imanente ao movimento, pois a relação no mundo é sempre significativa. O homem, ao se movimentar, já está dirigido para alguma coisa e caminha num espaço significativo. Assim, dispor de todos os órgãos do sentido é diferente de contar com a ausência ou diminuição de um deles, pois muda o modo próprio de estar no mundo e de relacionar- se. Isto assinala a importância de retomar o estilo dos movimentos e atitudes do portador de deficiência visual em diferentes situações e relações, para poder saber de sua percepção e cognição.

Para compreender o indivíduo e sua maneira de relacionar-se no mundo que o cerca, há sempre que se considerar sua estrutura própria que exprime ao mesmo tempo a dialética entre sua especificidade e generalidade: a) especificidade, que diz respeito aos dados sensoriais que ele reúne e que constituem o conteúdo daquilo que ele percebe do mundo; b) generalidade, <p> que diz respeito à forma de organização desses dados, fornecida pela função simbólica e que revela sua aquisição cognitiva.

No caso do deficiente visual, o que não se pode desconhecer é que sua dialética é diferente da do vidente, devido ao conteúdo e à sua organização referirem-se ao tátil, ao auditivo, ao olfativo, ao cinestésico e ao resíduo visual.

Assim, consideramos de grande importância focalizar:

a) a relação da criança com os outros (terapeutas, professores e familiares) para identificar ganhos em seu desenvolvimento.

Com relação a este aspecto, merece especial atenção o refe-rencial perceptual do profissional, no sentido de se identificar se ele busca os caminhos perceptuais do portador de deficiência visual para lidar com ele, ou se guia o deficiente a partir de seu próprio referencial de vidente. Na análise dos ganhos no desenvolvimento do portador de deficiência visual, deve-se ainda identificar se eles ocorrem quando se parte de seu próprio referencial perceptual na sua especificidade ou quando é guiado pelo referencial perceptual do profissional que lida com ele.

b) a ação da criança em diferentes situações para identificar suas características perceptuais e cognitivas (suas facilidades e dificuldades no contato com o mundo ao seu redor bem como sua forma de enfrentar dificuldades).

Precisamos compreender e procurar atingir o significado da maneira de a criança agir, através de características reveladas em várias situações e em diferentes momentos. Aquilo que a criança reapresenta estará evidenciando uma maneira própria de ser dessa criança, de como ela percebe e compreende a situação e como age.

Acreditamos que estudos que venham a nos trazer essas informações, sobre o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças com deficiências visuais, serão de grande auxílio para intervenções pedagógicas e terapêuticas e servirão de base à orientação de pais e de profissionais que atendem a pessoas com esse déficit perceptual.


Referências bibliográficas

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  • WINNICOTT, D.W. A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.


 

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INTERAÇÃO — condição básica para o trabalho do profissional com o portador de deficiência visual
autora: Maria Lúcia T. M. Amiralian
Professora do Instituto de Psicologia da USP.
Fonte: Em Aberto, Brasília, ano 13, n.60, Out./Dez. 1993

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20.Mai.2014
publicado por MJA