T. V. Cranmer

Isaac velho e cego abençoa
Jacob pensando
que ele é Esaú - Govert Flinck, 1638
É surpreendente como sabemos tão pouco acerca da maneira como as pessoas
cegas escrevem e lêem braille. É ainda mais surpreendente, uma vez que se
entende que a escrita é tão importante para os cegos, como o é para todas as
pessoas normovisuais. Esta tem a mesma função para mim, como tem para vós na
audiência com as vossas canetas e lápis à mão.
Há algumas coisas acerca da escrita, que deliciam o espírito humano. Existe
algo místico, miraculoso e não completamente percebido, que acontece quando
dedos treinados e com prática, de um leitor cego, lêem esses sinais simétricos,
que formam as células braille, que transmitem palavras, pensamentos, ideias e
emoções para a sua mente, de um amigo ou de pessoas há muito desaparecidas.
O braille parece mágico, para aqueles que esqueceram que as crianças
instintivamente tentam tocar as coisas que vêem, para melhor conhecerem aquilo
que as rodeia. O braille é algo místico, para aqueles que esqueceram que as
crianças tentam segurar um brinquedo nas suas mãos e não se contentam em olhar
para ele. Todos nós devemos ser lembrados de tempos a tempos que o tacto e a
vista são pares na hierarquia dos sentidos.
Nós que somos cegos, nem sempre desfrutamos a maravilha da palavra escrita.
De acordo com uma fonte normalmente fiável, a National Geographic, o nosso
antepassado hominídeo Lucy, bípede que deixou pegadas nas margens de um lago em
África, viveu há cerca de três milhões de anos. Penso que é seguro afirmar que
Lucy era analfabeta. De acordo com a venerável Enciclopédia Britânica, a escrita
apareceu na Mesopotâmia há oito mil anos. O braille apareceu em França em 1829.
Fica claro, a partir destes factos, que do tempo em que a escrita apareceu
até ao tempo em que Louis Braille inventou o código que os cegos utilizam hoje,
passaram vários milhares de anos. Neste longo ínterim, foi deixado para os
outros, outros que vêem, o registo das experiências da cegueira.
A escrita, em todas as suas formas, é uma invenção maravilhosa do Homem. A
presença codificada do vosso nome ou do meu, a tinta ou em braille, continua a
deliciar-nos. Cito agora um caso pontual:
A entrevista que eu dei para o programa de televisão "Sixty Minutes" durou
mais ou menos 4 horas. Quando o programa foi para o ar, a minha participação
durou apenas um momento. Uma grande parte dessa breve aparição frente às câmaras
focou o nome de Lesley Sthal escrito em braille num Braille Lite. As minhas mãos
foram focadas lendo, enquanto eu falava "LESLEY, STHAL". Não foi feita qualquer
referência ao facto de eu ter perguntado à anfitriã como se soletrava o seu
nome, pois nunca o tinha visto escrito. [nota: os nomes ingleses têm muitas vezes de ser soletrados,
pois a língua inglesa não tem sempre correspondência fonética entre a fala e a
escrita, como têm por exemplo o português e outras línguas latinas.]
O padrão metódico do braille, que representava o nome de Lesley Sthal, era
mágico. Possuía valor de entretenimento, bem como algum mérito educacional em
potência. Segundo o ponto de vista do produtor do programa, era merecedor da
atenção de uma Televisão de audiência nacional.
O braille é a linguagem escrita dos cegos. seria difícil sobrevalorizar a sua
importância. É um facto lamentável, e muitas vezes repetido hoje em dia, que
setenta por cento dos cegos estejam desempregados ou subempregados. É também um
facto, infelizmente repetido poucas vezes, que noventa por cento dos cegos que
lêem braille trabalham em bons empregos.
O braille não é muito compreendido e é pouco apreciado pela generalidade do
público. Muitos educadores partilham esta indeferença em relação à importância
do braille, para aqueles cegos que o dominam. Depois de décadas de negligência
por parte de professores treinados para cegos, muitos indivíduos da comunidade
dos cegos têm sido levados a acreditar, que existem alternativas viáveis à
aprendizagem do braille. Não existe nenhuma. As mesmas pessoas educadas que
acreditam que existem substitutos possíveis para o braille, ridicularizarão a
noção de que os substitutos para a impressão a tinta são viáveis para aqueles
que vêem.
Ao longo dos anos, têm sido levados a cabo vários estudos, para compreender
como é que os cegos lêem braille. Psicólogos e outros profissionais, que não
dominam o braille de uma maneira eficiente, ou que simplesmente não o conhecem,
tomaram a seu cargo grande parte dos esforços desta pesquisa. Não fui capaz de
identificar um único estudo sobre a leitura e escrita do braille, que incluísse
alguma introspecção subjectiva feita por indivíduos cegos, que estivessem a
participar na investigação. Poderíamos esperar, que os bons leitores de braille
fossem solicitados para explicarem como lêem.
A comunidade cega e a sociedade beneficiarão grandemente de novas pesquisas
mais iluminadas, que levarão a melhorias no treino da leitura e da escrita
braille. Temos necessidade de um melhor conhecimento da fisiologia do tacto.
Precisamos de uma medida exacta da amplitude da banda de transmissão através do
sentido do tacto, quer dizer, perguntar:
-
Quantos canais paralelos podem transportar simultaneamente informação
táctil para o cérebro?
-
Quantos "bites" por segundo podem fluir por cada canal de tacto?
-
Quais são as limitações fisiológicas inerentes à comunicação táctil?
É necessária mais informação sobre o reconhecimento táctil de objectos
grandes ou pequenos, de como a imagem táctil é adquirida e armazenada a partir
da experiência prática dos indivíduos cegos. Quão independente é a interpretação
pelo tacto num determinado contexto? - A lista de oportunidades para a pesquisa
pode ser alargada indefinidamente.
Tentem por favor imaginar a seguinte experiência táctil, como eu tentei há
muito tempo. Eu estava a dormir sentado num banco do meio de um avião. O lugar
da coxia à minha direita estava vazio. Quer dizer, estava vazio quando eu
comecei a dormir. Ao acordar, desloquei a posição da minha mão direita do meu
colo e deixei-a cair no lugar à minha direita. Esta pousou sobre um joelho nu. O
tempo em que a minha mão ficou sobre o joelho podia ser medido em milionésimos
de segundo. Este lapso de tempo foi o bastante, para eu reconhecer, que deveria
retirar a minha mão, porque estava um passageiro no lugar anteriormente vazio,
que o passageiro usava calções ou mini-saia, que era provavelmente uma jovem ou
um jovem. Se pudesse colocar novamente a mão, conseguiria determinar o género e
a idade do joelho, bem como a medida da má disposição do seu dono ou dona.
A riqueza da informação que passou através da minha mão, no momento do
contacto, desafia as análises. Com toda a minha introspecção, posso dar apenas a
informação imperfeita, de que o contexto teve um papel muito importante em todos
os aspectos deste acontecimento.
Devia ser tentada uma melhor compreensão da percepção táctil, através de
novas pesquisas, inspirada em novas introspecções, sobre a interacção das
pessoas cegas com o mundo físico.
Vamos começar com a leitura do braille.
Eu sustento que os processos cognitivos envolvidos na leitura a tinta e na
leitura do braille são essencialmente os mesmos. As imagens conduzidas através
das regiões específicas do cérebro são armazenadas e processadas para o seu
sentido linguístico, sendo as mesmas para todo o tipo de leituras, sejam estas
visuais ou tácteis. Artigos recentes, em jornais científicos, bem como na
imprensa popular, referem que o cortex visual no cérebro, de indivíduos cegos ou
normovisuais, é o lugar onde a imagem é armazenada. Portanto, a única diferença
entre a leitura a negro e a leitura a braille está na modalidade de percepção
necessária, para estabelecer um treino de transmissão de imagem através do
cortex visual - quer dizer, os caminhos da visão para o cérebro por um lado e os
caminhos do tacto por outro.
Gostaria de enfatizar este processo; aqueles que lêem a negro devem
estabelecer uma corrente de imagem no cortex visual, aqueles que lêem braille
devem, do mesmo modo, estabelecer um fluxo de imagens através do cortex visual.
As imagens dos leitores cegos e normovisuais, que passam pelo cortex visual no
cérebro, são verdadeiras em ambos os casos, embora estejam codificadas em
percepções visuais e percepções tácteis respectivamente.
Outros investigadores terão de repetir as experiências que indicam que a
mesma região do cérebro é usada para processar imagens tácteis e visuais, antes
de profissionais no campo aceitarem tal facto. Uma vez que o papel do cortex
visual na leitura tenha sido estabelecido, o investigador dos factores que
afectam a leitura do braille serão livres de se centrarem inteiramente na
interface mecânica do tacto com a página em braille. Este conhecimento também
reduzirá a importância do papel da compreensão, como uma medida da velocidade de
leitura.
Agarrar o sentido pretendido pelo autor de uma passagem escrita, pode não
significar mais do que o papel mínimo que é a transformação das palavras
escritas nos seus equivalentes no discurso natural. As pessoas com vista que
lêem poderão fazê-lo sem compreenderem a informação contida. Isto é do
conhecimento comum entre estudantes cegos que tenham utilizado indivíduos
videntes para lerem textos em voz alta.
Não consigo resistir a uma breve divagação para partilhar convosco uma das
minhas experiências com leitores normovisuais. Voltando à minha juventude,
quando me sentia atraído pela química e não conseguia encontrar um livro em
braille sobre o assunto, acima do nível de principiante, contratei uma jovem
para ler um livro de nível avançado. Ela leu-o com facilidade. Leu-o com tanta
velocidade quanta possível para eu perceber. A certa altura, perguntei-lhe se
percebera o que tinha estado a ler. Com um bom humor exagerado ela respondeu:
-"Oh sim, eu percebi todas as palavras, mas o meu problema são as frases e os
parágrafos."
Uma vez que aceitemos a premissa, que o ponto central de um inquérito sobre
os factores que afectam a leitura do braille está confinado apenas àqueles
relativos ao tacto, será necessário identificar os factores específicos a serem
avaliados. Para começar aqui está uma breve lista de factores que têm influência
na leitura pelo tacto:
-
Aceitação (predisposição) da pele que cobre as pontas dos dedos. As camadas
superiores da pele que está em contacto com o braille devem ser suficientemente
macias para serem deformadas pelo padrão dos caracteres do braille, à medida que
estes passam por baixo dos dedos que lêem;
-
A área da pele que está em contacto com a linha de braille a ser lida tem
uma relação crítica com a eficiência da passagem da informação táctil para o
cérebro. Esta é uma das variáveis das estratégias de leitura de cada indivíduo;
um dedo, dois dedos ou mais; uma mão ou duas mãos. Quanto maior é o contacto da
pele com a linha de braille, maior é a imagem táctil;
-
Temperatura dos dedos que fazem a leitura. Os dedos frios não são adequados
para uma boa leitura de braille;
-
Alinhamento e localização das mãos e dedos com a linha de braille a ser
examinada. Um mau alinhamento e um exame da linha defeituoso podem resultar no
contacto com uma linha adjacente. Isto pode distorcer o fluxo da informação
táctil. Os engenheiros referir-se-iam a esta estimulação táctil extra como
interferência. Uma proporção de sinal superior à das interferências contribuirá
satisfatoriamente para o processo de leitura.
Esta lista parcial dos grandes factores mecânicos que afectam a leitura do
braille omite qualquer referência a estratégias de leitura. Alguns
investigadores têm tentado analisar as técnicas de leitura de sujeitos cegos,
estudando gravações de vídeo das suas mãos enquanto estes lêem, durante sessões
de laboratório. Outros investigadores têm explorado a leitura do braille,
apresentando um carácter braille de cada vez, utilizando um dispositivo chamado
"tachistotactometer". [Nota: penso que o aparelho referido acima poderá ser chamado
de medidor do tacto.]
Tenho a impressão que a utilização de gravações de vídeo e deste dispositivo
dizem-nos mais acerca do gosto dos investigadores pela tecnologia, do que sobre
a técnica utilizada pelo leitor de braille.
Passo agora a apresentar a minha opinião; que de certeza vai ofender a ordem
estabelecida:
A melhor informação acerca da técnica efectiva de leitura do braille virá da
análise de relatórios subjectivos de leitores de braille muito experientes. Eu
defendo, que nenhum tipo de observação por parte do investigador vidente pode
ultrapassar os relatórios subjectivos, sobre o que se passa na interface entre o
leitor cego e a página braille. Acho também que esta afirmação se aplica
igualmente à leitura contínua do braille e à procura de informações especificas
num livro em braille.
À medida que colhemos os frutos da nossa investigação sobre a leitura e
percepção tácteis, deverá emergir um conjunto claro de princípios para projectar
um transdutor de tacto controlado por computador. [Nota: um transdutor é um dispositivo que transforma um tipo de
energia noutro tipo de energia, por exemplo: um microfone transforma voz em
impulsos eléctricos e uma coluna de som faz exactamente o contrário.]
Estes deveriam ser de dois tipos. O primeiro dispositivo de tacto poderia
consistir numa impressora, que imprimisse material sólido em papel, disposto em
camadas, com o detalhe necessário para representar objectos em três dimensões.
Um rosto humano seria uma boa escolha, para exemplificar a impressão de imagens
tácteis. O rosto poderia ser construído como um relevo base com dimensões X e Y
reais e um eixo Z escalonado com os requisitos mínimos que possibilitassem o
reconhecimento imediato de pormenores como: nariz, boca, olhos, etc.. Uma imagem
de relevo base com detalhes e resolução suficientes, formada deste modo, poderia
considerar-se uma fotografia táctil - "tactograph". Penso que devo ser
desculpado por inventar este termo - "tactograph". De facto, julgo que essas
fotografias de rostos humanos poderiam ser produzidas num futuro bastante
próximo, com a modificação de máquinas utilizadas na indústria de hoje para a
produção de protótipos.
Não é necessário grande esforço, para imaginar o segundo transdutor, que
deveria ser uma superfície topográfica dinâmica controlada por computador, capaz
de produzir imagens em relevos base renováveis. Muito pouca tecnologia de hoje
está vocacionada para o fabrico de monitores ou mostradores com esta
complexidade. Devem ser encontrados ou projectados novos materiais para este
fim. Não será encontrado ou projectado nenhum, até os homens e mulheres dos
vários ramos da ciência estarem inspirados para começarem a procura com o mesmo
zelo com que agora pesquisam materiais com boas propriedades electrónicas e
ópticas.
O Centro Internacional para a Pesquisa do Braille (International Braille
Research Centre) está ansioso para apoiar inteiramente ou associar-se a qualquer
tentativa individual ou de grupo, por exemplo surgido das pessoas que estão a
assistir a esta conferência, que partilhem o nosso sentimento para o futuro, que
possam idealizar os instrumentos para aumentar a percepção táctil, para que o
cego sinta o que não pode neste momento tocar e encontre o caminho que devemos
seguir para construir as tecnologias de tacto do futuro.
ϟ
Tim Cranmer foi presidente do Centro Internacional para a Pesquisa do Braille
e director da National Federation of the Blind
Fonte: LERPARAVER
Texto traduzido por: João Eduardo dos Santos Fernandes Lda.
Δ
5-Dez-2009
publicado
por
MJA
|