
Série Les Aveugles
- Le Lynx -
Sophie Calle, 1986
"J'ai rencontré des gens qui sont nés aveugles. Qui n'ont jamais vu.
Je leur ai demandé quelle est pour eux l'image de la beauté."
Introdução
Schilder (1994, p. 7) define a imagem corporal como sendo "a figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós". Para seu real entendimento, devemos analisá-la de forma ampla,
multidimensional, abordando seus aspectos fisiológicos, sociais e afetivos de forma integrada. A imagem corporal deve ser encarada como um processo complexo, dinâmico, vulnerável e extremamente dependente de nossas percepções.
Nossa imagem corporal é de suma importância para a execução de qualquer tarefa motora, sendo fundamental para o início de movimentos, principalmente aqueles voltados para nosso próprio corpo. É a partir dela que escolhemos um membro
para o início de uma atividade, localizamos estímulos táteis, a posição espacial de nossos membros, a diferenciação entre um estímulo na pele e a movimentação de um membro etc. A presença de distúrbios em nossa imagem corporal
impossibilita a escolha correta de um membro para a execução de uma ação e também causa dificuldades no reconhecimento das diferentes partes dos corpos dos outros. Nossa imagem corporal nos guia em nossas ações corporais e interação
com o meio (Schilder, 1994).
Parâmetros teóricos
Para Schilder (1994), a construção de nossa imagem é responsável pelo conhecimento que temos acerca de nós mesmos. Dessa forma, quando este conhecimento é incompleto ou imperfeito, todas as ações em que ele é necessário também se
tornam imperfeitas. É com o conhecimento que temos sobre o nosso corpo que construímos a relação entre as diferentes partes de sua superfície e escolhemos qual lado ou parte do corpo utilizaremos para executar nossas ações.
A construção desse conhecimento, segundo o autor, tem início desde o princípio da vida e é um processo contínuo. Nossa imagem corporal se desenvolve a partir de nossas percepções, ou seja, a partir de tudo que vivenciamos com o corpo.
São as percepções corporais que norteiam o processo de desenvolvimento, no qual cada percepção se traduz em um movimento que, por sua vez, acarreta uma nova percepção.
O processo de construção de nossa imagem corporal é constante. Estamos a todo o momento destruindo-a para reconstruí-la, sendo a destruição apenas uma fase do processo de construção. Segundo Schilder (1994), mesmo quando construímos
uma imagem corporal adequada a nossas necessidades e tendências, esta não permanece inalterada. Temos um fluxo contínuo, no qual cada cristalização é seguida por um estágio plástico de reconstrução e remodelamento da imagem
corporal. Como foco de estudo, deter-nos-emos aos possíveis distúrbios no desenvolvimento da imagem corporal causados pela deficiência visual. Em nosso trabalho, utilizaremos o termo deficiência visual, já que este envolve tanto a perda total
da visão (cegueira) como a perda parcial (baixa visão ou visão subnormal. Assim, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), deficiência seria
-
[...] uma anomalia na estrutura ou da aparência do corpo humano e do funcionamento de um órgão ou sistema, seja qual for sua causa; em princípio, a deficiência constitui uma perturbação de tipo orgânico (Melo, 1991, p. 11).
Consequentemente, a deficiência visual "caracteriza-se por perdas visuais parciais ou totais, que após correção óptica ou cirúrgica, limitem seu desempenho normal" (Melo, 1991, p. 11).
Craft (1990) descreve que, durante o desenvolvimento da pessoa com deficiência visual, esta pode apresentar atrasos em determinados aspectos. Tais atrasos não se devem a alterações físicas ou psicológicas da deficiência em si, mas à
redução no número e na qualidade das informações que a pessoa cega ou com baixa visão recebe do meio e dos outros, resultando em diminuição das experiências por ela vivenciadas. Dessa forma, o deficiente visual tem de estruturar sua
imagem corporal a partir de outros meios de informação que não os visuais e pode, assim, apresentar alterações no desenvolvimento da mesma.
Tavares (2003) descreve que o estudo da imagem corporal pelos profissionais da área de Educação Física e outros traz uma mudança da perspectiva em relação à pessoa portadora de deficiência. Ampliamos nossa compreensão sobre a
individualidade de cada aluno, entendendo suas limitações, capacidades, aspirações e desejos. Assim, temos a possibilidade de oferecer em nosso trabalho atividades que tragam experiências positivas para o desenvolvimento da imagem
corporal. O entendimento do tema auxilia-nos na valorização das diferenças e reconhecimento da singularidade de cada ser.
A prática esportiva exerce papel importante na reconstrução da imagem corporal pela pessoa com deficiência visual, pois proporciona a descoberta do corpo, de seus limites e possibilidades. Nesse sentido, o esporte é fundamental já
que fornece experiências corporais positivas para o praticante deficiente. Este vivencia seu corpo de variadas formas e o descobre como um corpo possível e repleto de potencialidades.
Nosso objetivo com este trabalho é agregar o maior número possível de informações da literatura científica sobre o desenvolvimento da imagem corporal em pessoas com deficiência visual, servindo, assim, como subsídio para os
profissionais da área de Educação Física e outros que trabalhem com essa população. O estudo tem como meta identificar, por meio de um trabalho de revisão de literatura, a ocorrência de possíveis atrasos no desenvolvimento da imagem
corporal em pessoas com cegueira ou baixa visão.
Toda nossa metodologia está baseada em Turtelli (2003). A autora realizou um extensivo trabalho de revisão bibliográfica sobre imagem corporal e qualidade de movimento, encontrando diversos estudos sobre as suas relações. Dessa
forma, utilizaremos a metodologia empregada em seu trabalho.
Desenvolvemos nosso estudo mediante análise e interpretação de dados obtidos em pesquisa do tipo bibliográfica. A base desta pesquisa, portanto, consistiu no estudo de livros, artigos especializados, dissertações e teses, o que
possibilitou o acesso e manipulação de informações relevantes para nossa reflexão sobre as relações entre desenvolvimento da imagem corporal e deficiência visual.
O levantamento bibliográfico foi realizado em bases de dados disponíveis via internet. Restringimos o período de levantamento bibliográfico dos livros, dissertações, teses e artigos em periódicos de 1990 a 2004; anteriormente a este
período foram selecionados apenas os trabalhos dos autores mais relevantes para o tema de nossa pesquisa. Ao todo, pesquisámos em cinco bases de dados digitais:
1) Bases de dados da ERL - WebSpirs;
2) Bases de dados da Bireme;
3)
Base de dados Dedalus;
4) Base de dados Acervus; e
5) Base de dados Athena. A busca bibliográfica nas bases de dados citadas foi realizada nos computadores das bibliotecas setoriais da Universidade Estadual de Campinas -- Unicamp. A base de dados WebSpirs é acessível apenas para pesquisadores e instituições
conveniados, enquanto as bases Bireme, Dedalus, Acervus e Athena são de acesso livre.
Os materiais bibliográficos selecionados foram adquiridos nas bibliotecas setoriais da Unicamp. Os artigos selecionados não encontrados nas bibliotecas da Unicamp foram solicitados a outras universidades brasileiras, pelo sistema
Comut.Realizamos a pesquisa em todas as bases de dados por assunto. Utilizamos como palavras-chave "imagem corporal, deficiência visual, cegueira e baixa visão". Os cruzamentos das palavras-chave foram utilizados de acordo com a necessidade
de língua portuguesa ou inglesa pela base de dados.
Nossa busca bibliográfica consistiu, posteriormente, na seleção de trabalhos por meio da análise das referências bibliográficas trazidas pelos trabalhos selecionados. Esse tipo de busca tornou-se necessário pelo escasso número de
trabalhos encontrados nas bases de dados via internet, como será relatado depois.
Após o levantamento bibliográfico, o material foi estudado com a realização de fichamentos, que objetivavam abranger todas as informações relevantes para o estudo da imagem corporal em relação à deficiência visual, bem como sínteses
das principais ideias de cada texto pesquisado. A elaboração dos fichamentos com as principais ideias de cada texto objetivou uma posterior correlação entre os diversos autores. O cruzamento dos resultados e as conclusões
apresentados por cada estudo possibilitou uma visão abrangente sobre os caminhos que as pesquisas sobre imagem corporal e deficiência visual vêm seguindo. Tal análise permitiu a observação dos pontos falhos sobre o assunto e também
pudemos propor novos questionamentos para possíveis estudos futuros.
Resultados
O tema imagem corporal e deficiência visual necessita de muitos acréscimos no que diz respeito a pesquisas realizadas na área. A primeira busca de trabalhos realizada sobre o tema não resultou em um número significativo de
trabalhos. Foram encontrados apenas 430 trabalhos com o emprego das palavras-chave mencionadas. Além do reduzido número, apenas alguns dos trabalhos encontrados pelo levantamento realmente tratavam do tema. Grande parte desses
estudos relacionava-se com outros temas referentes à deficiência visual, temas estes que não dizem respeito à imagem corporal da pessoa com cegueira ou com baixa visão, apesar de apresentarem o termo imagem corporal em seus resumos.
A maioria dos estudos estava associada com o tema orientação e mobilidade, no qual a imagem corporal era apresentada como um conteúdo a ser desenvolvido. Essa abordagem do tema imagem corporal como um conteúdo a ser abordado durante
o trabalho de orientação e mobilidade não condiz com o conceito empregado por nós em nossa pesquisa.
A escassez de resultados alcançados durante o primeiro levantamento resultou na realização de uma nova busca bibliográfica. Esta foi realizada por meio da análise das referências bibliográficas apresentadas nos trabalhos
selecionados pela primeira busca nas bases de dados via internet. A pesquisa por trabalhos realizada nos permitiu observar a escassa quantidade de trabalhos relacionados diretamente com o tema imagem corporal. Foram encontrados
apenas dois trabalhos que realmente abordavam o tema. Estes se direcionavam para a análise das diferenças encontradas entre crianças cegas e videntes nas relações de proporcionalidade entre as diversas partes do corpo (Kinsboourne
e Lempert, 1980; Pierce e Wardle, 1996).
Os estudos encontrados relacionam-se, em grande parte, com aspectos psicológicos e sociológicos da cegueira, com ênfase nas reações emocionais e psicológicas que ela acarreta para a pessoa com deficiência visual. Tais trabalhos
abordam fundamentalmente aspectos como autoconceito, autoimagem e autoestima da pessoa com cegueira. O conceito de imagem corporal é apresentado por grande parte dos autores como sinônimo destes (Van Hasselt, 1983; Obiakor e Stile,
1990). As pesquisas realizadas na área concentram-se fundamentalmente no estudo da criança com deficiência visual, com ênfase na condição de cegueira em detrimento da baixa visão. Não foram encontrados trabalhos relacionados com a baixa
visão. Os estudos realizaram-se no contexto da escola especial, abordando a educação especial de forma geral. Todos os pesquisadores são da área de saúde, principalmente do campo da Psicologia. Foram ausentes os estudos na área de
Educação Física, bem como a atuação de seus profissionais em pesquisas sobre o tema.
Os autores apresentam como objetivo principal a elucidação do papel das informações visuais durante o desenvolvimento da pessoa com cegueira e as consequências de sua ausência. A justificativa apresentada para tais estudos reside no
processo de desenvolvimento e socialização da pessoa deficiente visual.
Grande número dos trabalhos encontrados relaciona-se com o processo de socialização apresentado pela pessoa com deficiência visual e se concentra fundamentalmente na análise de tal processo, abordando alguns pontos importantes como
a maneira como este se dá, os comportamentos apresentados pelo mesmo, as diferenças de atitudes deste com relação ao vidente, bem como as consequências da cegueira nas reações apresentadas pelo vidente em seus contatos sociais com a
pessoa com cegueira. Alguns outros trabalhos direcionam-se para o processo de formação de conceitos pela pessoa com deficiência visual, concebendo-o como dependente da formação de uma consciência de si mesmo e da construção da
imagem corporal.A correlação entre as diversas ideias apresentadas pelos autores nos apontou a existência de um ponto controverso importante. Estes discordam quanto à validade das comparações realizadas entre crianças com cegueira e videntes com
relação a aspectos psicológicos como autoconceito e autoestima. Apesar de muitas pesquisas terem como base esse processo de comparação entre os níveis de autoconceito e autoestima, há autores que discordam e afirmam que tais
aspectos devem ser analisados sob o referencial da pessoa com cegueira, com base no contexto da cegueira para a construção do entendimento global da pessoa com deficiência visual. O estabelecimento de comparações entre uma pessoa
com cegueira e outra vidente traria uma compreensão enviesada da real condição causada pela cegueira.
As pesquisas apontam as informações táteis e sinestésicas como as principais para a construção da imagem corporal em pessoas com deficiência visual. No entanto, as informações recebidas pelos canais sensoriais não são suficientes
para o desenvolvimento de uma boa representação de si mesmo. Estes apresentam uma representação pobre e distorcida da figura humana. O reconhecimento da própria voz exerce um papel preponderante na formação da imagem corporal, bem
como para a criação de um senso de eu.
Alguns autores descrevem que sintomas como depressão, ansiedade, sentimentos depreciativos e ideias suicidas são causados pela deficiência visual, mas não há um consenso sobre o assunto. Há autores que descrevem que, quando
comparadas com crianças videntes, as crianças com cegueira apresentam geralmente características de maior introversão, submissão e um senso diminuído de autossuficiência e confiança. Entretanto, outros autores descrevem que os
níveis de autoconceito e autoestima apresentados por crianças com cegueira revelam-se como similares aos níveis apresentados por crianças videntes. Os níveis de autoconceito e autoestima apresentados pela crianças com cegueira estão
associados à maneira como esta acredita que é vista e encarada pelas pessoas próximas. As crianças com cegueira apresentam uma visão positiva sobre si mesma.
A cegueira é encarada pelos autores como um dos principais fatores limitantes dos contatos sociais, influenciando de maneira quantitativa e qualitativa. A deficiência visual teria como consequência uma pobre adaptação social,
causando déficits nas interações com o meio e com os outros. Pessoas com deficiência visual não são influenciadas em seus contatos sociais por padrões de beleza e normalidade estabelecidos pela sociedade. Entretanto, videntes são
influenciados em grande parte por tais aspectos, reduzindo a quantidade e qualidade de seus contatos com pessoas com cegueira, fundamentalmente, pela situação incômoda causada pelos olhos esbranquiçados decorrentes da cegueira.
Discussão
A ausência ou limitação na capacidade visual traz para a pessoa com deficiência visual uma série de consequências para o desenvolvimento de sua imagem corporal. A visão aparece como um fator importante no processo de diferenciação e
individualização vivenciado pela criança, bem como no desenvolvimento de seu autoconceito (Obiakor e Stile, 1990). Consequentemente, Pierce e Wardle (1996) descrevem que as pessoas com deficiência visual não apresentam experiências
como a de ver a si mesmas, comparar seus corpos com os corpos dos outros e ainda observar o impacto de seus corpos nos outros. A construção de sua imagem corporal dá-se por outros meios que não os visuais. Este processo baseia-se
principalmente em informações táteis, sinestésicas e auditivas. É a partir dessas sensações que a pessoa com deficiência visual estrutura o conhecimento sobre si mesma, o mundo e os outros (Kinsbourne e Lempert, 1980; Ormelezi,
2000). Ormelezi (2000) descreve que a percepção do mundo por meio desses sentidos não proporciona um conhecimento do objeto em sua totalidade, sendo necessário primeiramente o reconhecimento do todo parte a parte, detalhe após detalhe,
para depois reuni-los em uma totalidade. Sacks (1995) apud Ormelezi (2000) afirma que:
-
[...] o espaço é reduzido ao próprio corpo, e a posição deste é conhecida não pelos objetos que passaram por ele, mas pelo tempo que esteve em movimento [...] Para o cego as pessoas não estão lá se não falam [...] As pessoas estão
em movimento, são temporais, vêm e vão. Aparecem do nada e desaparecem (Sacks, 1995 apud Ormelezi, 2000, p. 138)
Ormelezi (2000) afirma que o conhecer para a pessoa cega é um processo que se completa aos poucos, à medida que são vivenciadas as situações concretamente. A percepção tátil traduz-se em um conhecimento sequencial, e não simultâneo
como o proporcionado pela visão. Para a concretização do processo de conhecimento do meio, é fundamental a estimulação por parte de outras pessoas, com a vivência de situações capazes de tornar possível a atribuição de significados
e compreensão das relações presentes no ambiente.
Ormelezi (2000) afirma que o desenvolvimento da imagem corporal na cegueira é fundamentado principalmente no reconhecimento tátil do próprio corpo e do corpo do outro. As sensações táteis possibilitam a vivência concreta do seu
corpo e do outro. Da mesma forma, durante a apreensão do mundo pela pessoa com deficiência visual, o tato aparece como um meio informativo essencial, as informações táteis são capazes de concretizar a existência dos objetos e dos
outros. Para a autora, outro ponto fundamental para a construção da imagem corporal na cegueira é o reconhecimento da própria voz. Esse reconhecimento está envolvido com a criação de uma consciência de si. A estruturação de uma imagem
corporal é dependente de um processo de diferenciação, dentre as suas impressões, do que se relaciona com o mundo externo e do que diz respeito ao próprio corpo. É necessário o reconhecimento da própria voz como exterior, porém
pertencente a si mesmo. A autora ainda descreve que a linguagem atua fundamentalmente durante o processo de conhecimento estabelecido pela pessoa com deficiência visual. Ela permite a compreensão de conhecimentos que não encontram respaldo nos sistemas
sensoriais de que o mesmo dispõe para conhecer o mundo, e estas aquisições são fruto de representações a partir do que lhe é dito, de aquisições anteriores e do conhecimento científico. Para tanto, o corpo, a linguagem/cultura e a
afetividade assumem o papel de mediadores no processo de aquisição de conhecimento, no qual a experiência perceptiva não ocorre isolada do contexto social. Tampouco a linguagem atua fora da relação afetiva da qual o corpo é seu
receptor e guardião. Nesse sentido, o desenvolvimento da linguagem, em crianças com cegueira, apresenta maior vulnerabilidade às condições afetivas e ambientais, quando comparadas com crianças videntes.
Para Pierce e Wardle (1996), os pais e parentes próximos exercem papel importante no desenvolvimento da imagem corporal de crianças com cegueira. Aspectos como autoestima e autoconceito estão relacionados com a sua crença de como
seus pais e pessoas próximas avaliam seu corpo. As atitudes e comentários a respeito de seu corpo, bem como os relacionados com valores corporais, como, por exemplo, a obesidade, influenciam o processo de desenvolvimento da imagem
corporal dessas crianças. A crença de ser encarada positivamente por seus pais e parentes reflete-se em um elevado nível de amor-próprio e em um bom autoconceito relacionado com a aparência física, sem diferenças entre gênero e
sexo. Segundo esses autores, de forma geral, as crianças cegas apresentam boa autoestima, que se traduz em uma visão positiva sobre si mesma. A ausência ou limitação da capacidade visual impede que a criança seja imposta aos exigentes
valores culturais relacionados com a aparência física. A presença de boa autoestima reflete-se em alto nível de autoaceitação, com uma visão positiva sobre a cegueira. A cegueira é considerada por tais crianças com apenas poucas
queixas sobre a presença de olhos brancos característicos. Crianças videntes demonstram maior pessimismo quanto à cegueira, quando comparadas com crianças cegas.
Ainda com relação aos autores citados, estes afirmam que crianças afetadas pela cegueira tendem a idealizar maior nível de atividade física para suas vidas, bem como um corpo de aparência grande e firme. Há necessidade por parte
destas de apresentarem-se com um corpo grande e robusto, o qual proporcionaria maior estabilidade física, sensação de maior presença no ambiente, bem como a sensação de "estar aqui". Elas encaram a criança obesa como uma pessoa com
maior capacidade para praticar esportes e jogos do que as outras crianças e ainda creem que se apresente mais forte.
Pierce e Wardle (1996) ainda descrevem que crianças com cegueira com crenças de que são julgadas por seus pais e parentes como sendo de baixo peso apresentam um nível de autoestima mais baixo, quando comparadas com crianças vistas
como apenas magras ou com peso normal. A necessidade de um corpo forte e de tamanho grande está associada com as sensações corporais, as quais são fontes de informações sobre o meio e os outros para a criança cega. Um corpo de maior
estatura e largura traduz-se em um maior número de sensações corporais e, consequentemente, em um maior número de informações sobre o mundo.
Kinsbourne e Lempert (1980) e Pierce e Wardle (1996) descrevem que a percepção construída pela criança com cegueira por meio de seus caminhos perceptivos traduz-se em uma representação do corpo humano pobre e distorcida. As
informações táteis e sinestésicas acarretam distorções na representação corporal relacionadas com a proporção entre as partes do corpo. Estas tendem a apresentar uma representação exagerada de partes do corpo associadas com o
recebimento de informações do meio, como mãos, dedos e cabeça. Tal representação distorcida reflete a grande atenção voltada para tais regiões corporais.
Para Pierce e Wardle (1996), a imagem corporal de crianças com cegueira é construída sob uma perspectiva funcional, em detrimento de uma perspectiva centrada na aparência física. Para elas, o corpo é visto como um bom corpo quando
capaz de desempenhar bem suas funções. Assim, podemos observar que o aspecto principal durante o desenvolvimento de sua imagem corporal reside na funcionalidade do corpo, e não na aparência física.
Em contraponto, autores como Diamond e Ross (1945) apud Van Hasselt (1983) e Fitzgerald (1970) apud Van Hasselt (1983) afirmam que a cegueira pode acarretar algumas tendências comportamentais, porém estas não devem ser
homogeneizadas para todos os deficientes visuais. Eles podem apresentar depressão, ansiedade, sentimentos depreciativos, ideias suicidas, entre outros. Petrucci (1953) apud Van Hasselt (1983) afirma que as crianças cegas demonstram
maior introversão, submissão, e se avaliam como menos autossuficientes e com baixo nível de autoconfiança, quando comparadas com crianças videntes. Elas ainda apresentam grande necessidade de socialização.
A deficiência visual apresenta como principal consequência uma pobre adaptação social, com contato social reduzido. A cegueira traz efeitos qualitativos e quantitativos para as relações sociais estabelecidas pela pessoa com
cegueira. Seus contatos sociais podem apresentar-se distorcidos pelas respostas recebidas pelas pessoas com que está interagindo, as quais tendem a apresentar respostas estereotipadas, determinado grau de inibição e, ainda,
respostas incoerentes (menos representativas) com suas crenças reais. Tais comportamentos são provocados pela situação desconfortável, estranha e incerta causada pela cegueira (Van Hasselt, 1983).
Kleck et al. (1966) apud Van Hasselt (1983), em uma pesquisa realizada com crianças, encontraram evidências da existência de comportamentos atípicos durante a interação destas com pessoas com deficiência. Para a realização do
trabalho, as crianças foram separadas em dois grupos e submetidas a uma entrevista: um grupo com entrevistador nãodeficiente; outro grupo com entrevistador com uma deficiência física (cadeirante). As crianças entrevistadas pelo
entrevistador com deficiência apresentavam variabilidade menor em seus comportamentos, finalizavam a conversa em menos tempo que as crianças entrevistadas pela pessoa nãodeficiente e expressavam opiniões menos representativas
daquelas nas quais realmente acreditavam.
Dessa forma, podemos observar que os contatos sociais estabelecidos pela pessoa com deficiência visual apresentam-se distorcidos. As pessoas nãodeficientes, quando interagem com pessoas com deficiência, em geral, tendem a oferecer
menor variabilidade de comportamentos e opiniões, opiniões distorcidas, bem como respostas curtas, quando comparadas com suas relações com pessoas não-deficientes (Klek et al., 1966 apud Van Hasselt, 1983).
Van Hasselt (1983) afirma que as crianças que demonstram maior desejo de interação com outras crianças com deficiência, geralmente, apresentam baixo nível de socialização, sendo as de maior isolamento social, menor experiência
social e com valores relacionados aos seus pares distorcidos, quando comparadas com as crianças menos prováveis de iniciar contatos com outras crianças com deficiência. Para o autor, a interação com crianças socialmente isoladas
exerce pequeno papel na aquisição de habilidades sociais. Nas escolas especiais, o contato da criança com cegueira fica restrito a outras crianças com deficiência, podendo acarretar uma visão distorcida e/ou limitada do mundo. Como
consequência, crianças com cegueira que frequentam as escolas especiais demonstram um nível de maturidade social menor que o apresentado por crianças com cegueira que frequentam instituições de ensino com outras crianças
nãodeficientes (Van Hasselt, 1983).
Ainda com relação ao autor, este afirma que a ocorrência de contatos sociais distorcidos pelos fatores mencionados anteriormente acarreta a construção distorcida do mundo e dos outros. A pessoa com deficiência visual é dependente
das respostas recebidas durante seus contatos sociais para aprender sobre comportamentos sociais apropriados, compreender a dinâmica das relações sociais e, dessa forma, construir a sua visão sobre o mundo e sobre si mesmo. A pessoa
deficiente visual depende das respostas oferecidas dentro de seus contatos sociais, pois não apresenta a capacidade de aprender com a imitação. As relações sociais são essenciais para o cego desenvolver uma imagem adequada do mundo
e de si. A quantidade de contatos sociais experienciados pela pessoa com deficiência visual pode ser diminuída por fatores como a aparência física. As crianças consideradas perante os valores culturais como sendo mais bonitas estabelecem
maior número de contatos sociais, em detrimento das crianças consideradas distantes dos padrões culturais de beleza (Young e Cooper, 1944 apud Van Hasselt, 1983). Da mesma forma, crianças com algum tipo de deformidade visível são
preteridas nas relações sociais. No caso específico da criança cega, a presença de deformidades nos olhos, como os olhos brancos, limita seus contatos sociais (Van Hasselt, 1983).
A ausência ou limitação nas expressões corporais aparece conjuntamente como fator limitante nos contatos sociais estabelecidos pelo cego. Em crianças com cegueira, a expressão de sorriso aparece tardiamente em comparação com
crianças videntes. O sorriso aparece como resposta a vozes familiares ou a sons que demonstrem alguma relação com a mãe. Essa diminuída resposta corporal, como o sorriso, pode levar seus pais a oferecem estimulação reduzida ou
limitada, criando-se a ideia de que a criança com cegueira é indiferente a estímulos ou até à própria mãe (Freedman, 1964; Fraiberg, 1970; Burlingham, 1971; Warren, 1977 apud Van Hasselt, 1983).
O contato visual exerce papel importante durante contatos sociais estabelecidos entre pessoas videntes e com cegueira. Pessoas videntes relatam sentimento de desconforto quando se relacionam com pessoas com cegueira que perderam a
capacidade de estabelecer um contato visual durante suas conversações (Bauman, 1967 apud Van Hasselt, 1983). A presença ou o aumento de um contato visual traduz-se em um acréscimo nas respostas recebidas e no reforço positivo (Sanders
e Goldberg, 1977 apud Van Hasselt, 1983). As expressões faciais também exercem papel importante durante os contatos sociais.
Como visto, são inúmeros os fatores participantes da construção e do desenvolvimento da imagem corporal da pessoa com deficiência visual. A compreensão desse processo deve partir do referencial da própria pessoa com cegueira, e
devemos entender as formas e os meios que esta utiliza para perceber o seu corpo e o meio. Não há uma imagem corporal característica para pessoas com deficiência visual. A imagem corporal do cego ou da pessoa com baixa visão está
relacionada com as mudanças provocadas em suas experiências corporais, e estas, por sua vez, são encaradas de modo peculiar por cada pessoa. Características como níveis de autoestima e autoconceito serão construídas a partir das
relações estruturadas pela pessoa com deficiência durante sua vida, não sendo resultado apenas da falta de visão. A partir desse entendimento, seremos capazes de fornecer, durante nossas atividades e programas, as informações
necessárias para que a pessoa com deficiência consiga desenvolver uma imagem corporal de qualidade.
Conclusão
A leitura e posterior análise dos estudos encontrados possibilitaram uma visão abrangente da atual situação das pesquisas realizadas sobre a imagem corporal de pessoas com deficiência visual. Podemos observar que ainda são grandes
as lacunas a serem preenchidas. Há necessidade do desenvolvimento de pesquisas recentes, voltadas para a compreensão da imagem corporal na infância, adolescência e fase adulta.
Para a elaboração de trabalhos nesse campo é fundamental um entendimento entre os autores sobre o conceito de imagem corporal, o qual é defendido por muitos como sinônimo ou parte integrante de outros conceitos como autoconceito e
autoestima. São reduzidos os pesquisadores que apresentam, durante seu trabalho, a compreensão do tema imagem corporal semelhante à defendida por Schilder (1994). Aliada a esses fatores, ainda é necessária a construção de métodos
avaliativos capazes de proporcionar a compreensão da representação do próprio corpo pela pessoa com deficiência visual, além de como se dá esse processo de construção.
A presença da deficiência visual não acarreta a elaboração de uma imagem corporal característica. A cegueira ou baixa visão traduz-se na construção da imagem corporal por outros meios sensoriais que não os visuais. Os principais
canais sensoriais atuantes nesse processo são o tato, a audição e a propriocepção, em que o tato exerce um papel preponderante, pois é capaz de concretizar a existência dos objetos e dos outros. Entretanto, a preponderância desses
canais sensoriais durante a formação da imagem corporal resulta na construção de uma representação do corpo humano pobre e distorcida, com alterações na proporcionalidade entre as diversas regiões corporais.
Seu processo de construção é baseado no aspecto da funcionalidade, pelo qual é visto como um bom corpo aquele capaz de desempenhar suas funções de modo satisfatório. Os valores culturais de beleza e normalidade impostos pela
sociedade não exercem grande influência sobre o processo de construção da imagem corporal de pessoas com cegueira. No entanto, os contatos sociais por eles estabelecidos exercem papel preponderante na compreensão do mundo, nas
relações presentes na sociedade, bem como nos níveis de autoconceito e autoestima desenvolvidos. Com relação a esses aspectos, a crença de como são vistos por seus pais ou parentes próximos apresenta maior relevância. Há necessidade
do desenvolvimento de pesquisas sobre esta questão, visto que os autores pesquisados demonstram opiniões diferentes e contraditórias sobre os níveis de autoconceito e autoestima apresentados por pessoas com deficiência visual.
Para que a construção e o desenvolvimento da imagem corporal de pessoas com deficiência visual sejam satisfatórios, é necessário que sejam estimuladas de diversas formas desde seu nascimento. A criança deve ser motivada a praticar
atividades físicas, movimentos amplos de maneira geral, para que, assim, consiga estruturar sua imagem corporal a partir das percepções sinestésicas, táteis e auditivas que recebe a todo instante. Para tanto, a presença do professor
de Educação Física é imprescindível, o qual é capaz de desenvolver atividades e programas para a formação de uma imagem corporal de qualidade.
Conjuntamente, ainda é preciso que a criança mantenha relações com vários ambientes e, na medida de suas possibilidades, integre-se de maneira efetiva a eles. É fundamental também a manutenção de relações saudáveis com a sociedade
em que se encontra inserida, onde os pais devem preparar a criança com deficiência visual para possíveis preconceitos e estigmas com que possa se deparar. Assim, o deficiente visual terá condições de estruturar uma imagem corporal
de boa qualidade, com a compreensão de suas reais capacidades e limitações. Vale reforçar que um item essencial para a construção e compreensão da imagem corporal, portanto, é a capacidade de adaptação da pessoa com deficiência
visual frente a um mundo cheio de diversidades, quer sejam tradicionais ou apoiadas em mudanças constantes.
Referências
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Imagem corporal e deficiência visual: um estudo bibliográfico das relações entre a cegueira e o desenvolvimento da imagem corporal.
Autores:
Maria Luíza Tanure Alves [Programa de Pós-graduação em Educação Física, Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas] e
Edison Duarte [Departamento de Estudos da Atividade Fisica Adaptada, Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas]
Publicação: Acta Scientiarum Human and Social Sciences (UEM), Abril 2008
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14.Out.2010
publicado
por
MJA
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