Izilda Maria Campos
O projecto «assino em baixo» foi desenvolvido a partir da
constatação de que algumas pessoas cegas, adultas, alfabetizadas e
com diferentes níveis de escolaridade assinavam através da impressão
digital. Estas pessoas são usuárias do Centro de Apoio Pedagógico às
Pessoas com Deficiência Visual de Belo Horizonte. Para elas, as
pessoas cegas que não assinam são tratadas como se fossem
analfabetas e passam por situações de constrangimento no momento em
que vão abrir uma conta ou solicitar uma abertura de crédito, ou
quando não conseguem dar um autógrafo, assinar uma lista de
presença, o comprovante de matrícula ou o diploma, assinar um
contracto, entre outros actos de rotina.
O projecto 'assino em baixo' surgiu do desejo de ajudar um colega de trabalho, cego congénito, a
assinar a folha manual de presença do servidor. Ele tem 36 anos, é
auxiliar de biblioteca, frequenta a Faculdade de Letras e trabalhava na
Biblioteca do Professor na Secretaria Municipal de Educação. Lá, ele
usava a impressão digital para assinar mensalmente o registo de
presença, o que me incomodava e a ele também. Em nossa primeira
conversa, percebi que ele seria capaz de assinar e desejava muito
aprender a escrever o seu nome completo. Assumimos este compromisso,
estabelecemos uma disciplina de horário para nossa actividade e,
assim, começámos...
Consultei o
Instituto de Identificação e o Ministério de Educação, sobre as
normas de validação de assinatura e rubrica com a intenção de
orientar meu trabalho no sentido de respeitar os requisitos formais
para fins de registo de identidade, reconhecimento de assinatura e
documentação em geral. Assim, estudei a forma mais adequada de
padronização da assinatura, uma vez que o nome e o sobrenome devem
ser escritos por extenso, apenas os nomes complementares podem ser
abreviados e a assinatura deve ser estável para ter validade legal.
Criámos uma assinatura
condizente com estas normas e o meu colega passou a escrever dentro de
uma "janela" (rectângulo confeccionado com papelão), utilizada com o
objectivo de guiar o movimento das mãos, estabelecer limites para
orientação e divisão do espaço.
Ao perceber que ele já estava
escrevendo seu nome, utilizando o espaço de forma correcta e com um
bom traçado das letras, passamos a utilizar uma janela menor. Assim,
ele foi forçado a diminuir o tamanho das letras em relação ao espaço
delimitado. No início, ele reclamou, disse que não conseguiria, mas
em pouco tempo lá estava ele escrevendo dentro das novas dimensões e
dos limites demarcados. Em menos de um mês, já conseguia assinar de
forma legível e estável. A partir dessa experiência,
passei a desenvolver o projecto com os utentes do CAP/BH.
Os primeiros participantes do
projecto constituem um grupo de 5 mulheres e 3 homens, cuja faixa
etária é de 24 a 39 anos. Nasceram cegos ou perderam a visão
prematuramente em consequência de catarata congénita e glaucoma.
Entre eles, 5 são funcionários públicos municipais, sendo 2
professoras, 2 auxiliares de biblioteca e uma auxiliar de
secretaria. Os demais trabalham de forma autónoma como músicos ou
operadores de telemarketing. Entre os funcionários públicos, uma tem
curso superior, um é estudante universitário e 3 têm o ensino
médio. Os outros apresentam ensino básico e ensino médio
incompletos. Todos foram alfabetizados por meio do Sistema Braille
em uma escola de ensino especial durante o ensino básico.
O ensino da assinatura
baseia-se em uma metodologia aberta, flexível e individualizada, por
meio da qual se aprende a escrever o nome por extenso, a rubricar e
a usar um marcador ou guia confeccionado para este fim. Consiste em
uma interacção dialógica, centrada nos conhecimentos prévios,
interesses, motivações e experiências individuais, na qual se
valorizam a percepção táctil e a expressão corporal.
As actividades são definidas e
modificadas dinamicamente, de acordo com as características
pessoais, as manifestações e o desempenho do sujeito, o que consiste
em um exercício de observação e criatividade para quem se dispõe a
ensinar esta tarefa de forma atraente e não padronizada.
O trabalho é realizado duas
vezes por semana durante uma hora, considerando-se os limites de
resistência ou de fadiga em relação ao manuseio do material. Os
sujeitos são estimulados a praticar a assinatura em suas horas
livres, utilizando as grades confeccionadas para este fim e com as
quais já têm familiaridade.
O projecto tem como objectivos:
-
Substituir a impressão
digital pela assinatura em tinta;
-
Estimular e promover a
emancipação, autonomia e o sentido de privacidade;
-
Possibilitar o
fortalecimento da confiança em si mesmo e auto-estima;
-
Respeitar a individualidade
e exercer a capacidade de decisão.
Inicialmente, desenvolvemos
actividades exploratórias com movimentos livres para identificação e
reconhecimento da posição do corpo, dos braços e das mãos.
Percebemos o movimento da mão dominante e da mão guia em relação à
coordenação e ao deslocamento de um ponto a outro da folha de papel
ou de uma superfície plana qualquer.
As linhas rectas, quebradas e
curvas são representadas por objectos e outras referências, tais
como a posição vertical, horizontal ou dobrada dos braços. Os
primeiros traços ou rabiscos são feitos livremente em uma folha de
papel com um lápis cera ou de carpinteiro, que é substituído ao
longo do processo pelo lápis comum e pela caneta esferográfica.
Introduzimos uma grade de papelão, confeccionada com tampa de caixa
de sapatos, contendo um rectângulo central vazado de aproximadamente
20 cm X 3 cm, dentro do qual será grafado o nome completo do sujeito.
A compreensão das formas das
letras se dá a partir do toque físico e da comparação com as partes
do corpo ou de objectos familiares. Assim, a letra "c" pode ser
comparada com o formato da orelha ou com a curvatura dos dedos
polegar e indicador. O círculo formado por estes dedos corresponde à
letra "o", assim como o "n", ou o "m" lembram as ondulações das
mãos fechadas ou entreabertas. As letras maiúsculas e minúsculas do
nome são confeccionadas com fio, arame flexível, papelão, cola em relevo, entre outros, para que o sujeito possa
manusear os contornos, as semelhanças e diferenças entre as letras
e fazer a representação gráfica e mental.
Utilizamos uma sequência de
cinco grades ou guias de papelão com pautas vazadas, cujas dimensões
variam até atingir a extensão e largura mais adequadas para a grade
de assinatura a ser padronizada. Podem-se usar também como
guias cartões de banco sem validade, papel cartão,
cartolina, entre outros, e para escrever lápis cera, lápis de carpinteiro, até alcançar a caneta esferográfica.
O desempenho do sujeito
durante o desenvolvimento da assinatura é observado e avaliado
continuamente em uma interacção recíproca, na qual ressaltamos os
pontos positivos e aqueles que podem ser melhorados. O desenho das
letras e os traços são examinados e confrontados com exemplos e
modelos já conhecidos e esboçados anteriormente. Assim, reproduzimos
em relevo o nome, tal como foi grafado, para mostrar através de
referências tácteis, as letras e fragmentos que precisam ser
aperfeiçoados. Esta representação em relevo é importante para
espelhar as características e os detalhes da caligrafia que não
podem ser visualizados.
Nessa avaliação, valorizamos a
qualidade e o estilo da assinatura, procurando aperfeiçoá-la cada
vez mais até alcançar o padrão estável que será adoptado. Os
resultados são alcançados rapidamente, considerando-se que o tempo
empregado nessa actividade tem sido de
8 a 20 aulas de uma hora. O
sujeito é considerado apto a assinar e poderá obter o novo registro
de identidade, quando conseguir escrever seu nome com segurança.
O culminar do projecto dá-se
com a obtenção de um novo Bilhete de Identidade. Esse momento é
aguardado com expectativa, insegurança, ansiedade e hesitação.
Encorajamos o sujeito a escrever e reescrever seu nome em uma folha
de papel até sentir-se preparado e à vontade para fazer a assinatura
definitiva. Nesse acto, presenciamos diferentes reacções que vão de um
gesto de alegria ao ímpeto de rasgar ou queimar o BI velho.
Em nossa observação durante o
desenvolvimento do projecto, percebemos que o revisor de textos em
braille do CAP/BH, depois que aprendeu a assinar, passou a anotar
com um lápis as letras corrigidas na própria folha de revisão, o que
facilita a interacção com os profissionais que fazem a transcrição e
a adaptação de textos em braille. Uma vendedora de cosméticos quis
aprender os números para registrar os telefones das clientes ou de
pessoas que ligavam para sua casa e pediam que anotasse o telefone
para alguém da família.
Anotamos algumas falas e
comentários obtidos em conversas informais e depoimentos espontâneos
que demonstram a mudança de status, o sentimento de pertença e de
auto-estima.
1 - Auxiliar de secretaria, 23
anos, casada, mãe de 2 filhos, ensino médio. Considera que aprender
a assinar é importante porque "Hoje em dia serve para tudo... Tendo
um documento assinado posso ter conta corrente, cartão de crédito,
fazer compras com o cartão, assinar o ponto, enfim exercer a
cidadania".
Ela admite ter passado por situações
constrangedoras quando foi fazer um empréstimo porque, depois de tudo preenchido, não podia assinar,
ficando na dependência de terceiros. Ressalta que a assinatura vai
mudar sua vida.
2 - Auxiliar de biblioteca,
solista de uma banda de música, 34 anos, divorciada, tem dois
filhos, ensino médio. Relatou que há muito tempo despertou nela o
desejo de aprender a assinar e, às vezes, ficava triste por ter uma
formação, saber ler, escrever e, no entanto, constar na identidade
um "não assina".
Para ela, assinar significa
ter mais independência, não precisar mais de um procurador, poder
realizar coisas simples como ter cartão de crédito, ter uma conta
no banco, poder movimentá-la, assinar cheques, contratos de aluguer,
dar autógrafos, assinar a folha de presença do trabalho... E o mais
importante, assinar a matrícula do filho e os bilhetes que recebe da
escola.
Numa conversa com o filho, ele
diz todo feliz:
- "Agora, mamã, já podes assinar os meus
bilhetes!... Eu vou te mostrar as letras baixinhas e altinhas"...
Ela diz:
- "Não vou precisar
pedir à minha ajudante para assinar por mim!"
3 - Músico autónomo, 38 anos,
casado, um filho, ensino básico incompleto. Para ele, assinar
significa "ser igual aos outros, realizar o sonho de abrir uma conta
corrente e conseguir financiamento para compra da casa própria".
Contou que foi fazer um empréstimo na Caixa Económica Federal e foi-lhe
dito, diante de todo o mundo, que não podia fazer porque não
assinava.
Depois que aprendeu a assinar,
resolveu formar palavras com as letras de seu nome e pedia ao filho
de 6 anos para ler. Considera que mudou de status porque as pessoas
agora o colocam nas nuvens e ele passou a ser visto como uma pessoa
de muita inteligência. Na rodoviária de São Paulo,
foi exigida a assinatura para compra de passagem no cartão de
crédito. Como ele sabia assinar, conseguiu comprar a passagem.
Comentou também que faz compras em diversas lojas e as pessoas ficam
surpresas porque ele assina.
A partir da incorporação do
projecto entre as actividades do CAP/BH, outros utentes manifestaram
o desejo de aperfeiçoar a sua assinatura e despertaram a curiosidade e
o interesse em aprender as letras do alfabeto e os números. Eles se
sentem encorajados com a experiência dos outros e perdem o receio,
pois a assinatura deixa de ser um tabu, já que as dificuldades são
desmistificadas.
A importância do acto de
assinar passou despercebida ou foi negligenciada durante a infância
ou a juventude dessas pessoas, talvez pelo facto de ainda não se
confrontarem com as exigências e responsabilidades inerentes à vida
adulta. Além disso, elas conviveram e ainda convivem com a
ignorância de quem vê e não acredita que sejam capazes de
assinar ou de desempenhar outros actos corriqueiros. Para muitas
pessoas, a escrita do nome em braille corresponde à assinatura. Para
outras, basta a impressão digital. Existem, ainda, aquelas que se
contentam com a escrita simplificada por meio de letra de forma.
O ensino da escrita cursiva em
tinta para pessoas cegas é importante, seja para escrever o nome por
extenso, reconhecer letras e números, ou formar palavras e
frases, facilitando a comunicação com as pessoas que enxergam. A
escrita do nome, de números e de pequenas anotações tem uma
utilidade e uma função social que não deve ser subestimada. Por
isso, o projecto ASSINO EM BAIXO vai além do simples acto de assinar,
uma vez que se repercute na vida do sujeito de forma abrangente,
representando emancipação, independência, responsabilidade. A
assinatura contribui significativamente para o fortalecimento da
auto-estima, afirmação de identidade e legitimação da cidadania.
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Izilda Maria de Campos é
professora especializada na área de deficiência visual, trabalha no
Centro de Apoio Pedagógico às Pessoas com Deficiência Visual de Belo
Horizonte. Pedagoga, pós-graduada em Alfabetização:
Interdisciplinaridade e construção.
Δ
2-Fev-07
publicado
por
MJA
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