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 Sobre a Deficiência Visual

Ferramentas Cognitivas e Tecnológicas para a Inclusão Social de Pessoas com Deficiência Visual

Eliana Sampaio

The blind leading the blind - engraving after Tintoretto, 1767
The Blind leading the Blind - engraving after Tintoretto, 1767

 

1. Introdução

Tanto o conhecimento intuitivo quanto os estudos científicos e as estatísticas apontam para o fato de que as pessoas com deficiência sofrem frequentemente discriminação social, podendo chegar ao extremo da rejeição e consequente isolamento da pessoa (KIDD; SLOANE; FERKO, 2000; REN; PAETZOLD; COLELLA, 2008).

As consequências humanas, psicológicas e socioeconômicas são gravíssimas. Para tentar superá-las, a maioria dos governos promulga leis e estabelece benefícios e/ou incentivos para tentar favorecer a integração social dessa população. Em 2006, foi adotada a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (entrando em vigor em 3 de maio de 2008). Essa Convenção é o primeiro instrumento internacional impositivo: descrevendo as obrigações dos Estados em relação à promoção e à proteção dos direitos das pessoas com deficiência no mundo todo, ela foi cuidadosamente analisada sob vários aspectos por cientistas sociais, que a consideraram um dos melhores instrumentos nesse âmbito (MANNAN; MACLACHLAN; MCVEIGH, 2012).

Apesar desses esforços mundiais, as pessoas com deficiência continuam sofrendo com a falta de medidas e materiais adaptados à situação específica que vivem e com a consequente marginalização, cuja pior consequência é provavelmente a introjeção, pelo próprio indivíduo, dos valores negativos relativos à deficiência que são projetados sobre ele por outrem. Em outros termos, Ali, Hassiotis, Strydom, e King (2012) mostraram que tanto a discriminação pela sociedade quanto a internalização do estigma são processos que interagem mutuamente, não devendo, assim, ser considerados isoladamente. Para prevenir as consequências comportamentais desajustadas que esses dois processos podem fomentar, Meltzer, Brugha, Dennis, Hassiotis, Jenkins, McManus, Rai e Bebbington (2012) preconizam estratégias de prevenção que envolvam as ações paliativas e vicariantes tanto para o aspecto físico e objetivo da deficiência quanto para o aspecto cognitivo.

Esses breves dados introdutórios permitem, por um lado, situar melhor o grau de risco que representa a deficiência na vida de um indivíduo e, por outro, perceber que a deficiência, de qualquer natureza (sensorial, motora, psíquica, mental), é um fenômeno complexo, requerendo a abordagem de aspectos psicológicos, históricos, jurídicos, políticos, sociológicos, educacionais, antropológicos e biológicos.

Tradicionalmente, a questão da deficiência recebeu um enfoque negativo, pautado pela ideia de falta, imperfeição, defeito. Publicando em 1749 “Lettres sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient” (Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem), o filósofo francês Diderot inaugurou uma linha de abordagem positiva para a compreensão do funcionamento cognitivo das pessoas cegas, baseando-se na audição, no tato, no paladar, no olfato e na cinestesia, bem como na interação entre essas modalidades sensoriais (entre elas próprias e entre elas e o entorno).

As descrições aguçadas que ele fez continuam sendo pertinentes praticamente três séculos mais tarde. Todavia, essa perspectiva positiva somente começou a ser adotada muito mais recentemente, sobretudo pelo novo paradigma proposto pelos “disability studies” nos anos 1980 (STIKER; RAVAUD; ALBRECHT, 2001).

Tradicionalmente, também, as pessoas com deficiência eram consideradas meros objetos de pesquisa. Na linha aberta por Diderot e, mais recentemente, implementada pelos “disability studies”, elas começaram a adquirir o estatuto de sujeitos, cuja explicitação da experiência peculiar que vivem deve ser valorizada e incorporada tanto nas práticas educacionais ou terapêuticas quanto no desenrolar dos trabalhos de pesquisa.


2. Fomentar a autonomia das pessoas com deficiência visual

A plena participação na sociedade de pessoas com deficiência envolve, necessariamente, dois pré-requisitos. Primeiro, conhecer as características da deficiência, em seus aspectos sociais (representação cultural e histórica, características institucionais e ambientais…) e pessoais (impacto emocional, físico, perceptivo e cognitivo da deficiência). Em seguida, criar condições de acesso a todas as atividades.

No caso da pessoa com deficiência visual, uma das maiores dificuldades encontradas para integrar-se socialmente e viver com dignidade é a conquista da locomoção autônoma.

Como se pode facilmente compreender, a locomoção na ausência da visão é bem mais estressante do que a locomoção visualmente orientada. De fato, medidas objetivas (indicadores fisiológicos) e subjetivas evidenciaram que sujeitos cegos experimentam muito mais estresse do que sujeitos videntes em situações de locomoção autônoma (TANAKA; MURAKAMI; SHIMIZU, 1981).

Como o nível de estresse dos sujeitos cegos decresce quando seus caminhos se tornam familiares, quando se tornam mais experientes ou quando são guiados por sujeitos videntes, eventuais dificuldades no plano motor desses indivíduos podem ser excluídas; o estresse é de fato diretamente vinculado às incertezas inerentes ao deslocamento sem visão.

Embora o nível de estresse e o medo que o indivíduo cego experimenta possam ser reduzidos sempre que o trajeto desconhecido se torna familiar, muitos cegos adultos mantêm a recusa em sair, ou raramente saem sozinhos de suas casas (CLARK-CARTER, 1983; DODDS, 1993; FOULKE, 1982), evidenciando, dessa forma, grande dificuldade em interromper esse círculo vicioso. Clark-Carter, Heyes e Howarth (1986) mostraram que 30% dos deficientes visuais da população estudada evitavam sair sozinhos, mesmo que fosse nos arredores de suas casas. Embora dois terços dos recenseados fossem idosos, evidenciou-se que o impedimento locomotor constatado não deveria ser atribuído à idade, mas sim ao medo e à ansiedade, pois entre a população equivalente de idosos videntes somente 5% dos sujeitos apresentavam o mesmo comportamento.

Do ponto de vista prático, o maior impacto da ausência de visão na locomoção está na dificuldade ou na impossibilidade de antecipar as características do espaço ambiental (FOULKE, 1971; SHINDLEDECKER, 1978).

Embora a bengala de cano longo ofereça alguma antecipação ao cego, essa antecipação é, segundo Foulke (1982), muito restrita quando comparada à antecipação proporcionada ao pedestre vidente pelo sistema sensorial visual. A superioridade da locomoção visualmente guiada é inegável. Mesmo em ambientes visualmente empobrecidos, quando a visão se torna intermitente, essa superioridade persiste (THOMSON, 1983).

Apesar de todo o empenho tecnológico na busca de soluções para uma locomoção autônoma e sem riscos, o deslocamento espacial de indivíduos cegos e de baixa visão ainda permanece problemático. Embora a bengala represente um recurso de grande utilidade, ela apresenta algumas sérias limitações, sobretudo porque não é capaz de dar a proteção desejada para uma das partes mais importantes do corpo humano: a cabeça. Esse problema torna-se especialmente agudo no caso de o cego necessitar se deslocar sozinho em cidades entulhadas de objetos, como placas de sinalização, aparelhos públicos de telefonia, anúncios etc. (HUGES, 1987; JACKSON; ALEC; BENTZEN, 1983; WARDELL, 1987).

Paradoxalmente, os problemas de locomoção dos cegos surgem bem antes de eles darem os primeiros passos. Em razão de seu caráter eminentemente distal e contextual, a visão é reconhecida como a modalidade sensorial que mais contribui para a criação do espaço externo. Sempre que o bebê é impedido, por falta de estimulação vicariante adequada em caso de cegueira ou de baixa visão, de estabelecer relações entre o próprio corpo e os objetos existentes no ambiente externo, sua primitiva movimentação corporal se estagna, perde o sentido e dá lugar a um padrão locomotor anacrônico, bem distinto daquele apresentado pela criança vidente, que não necessita de estimulação específica para interagir com seu entorno, como esticar o braço para apanhar um brinquedo que se movimenta na sua frente (BIGELOW, 1992, FRAIBERG, 1977; SAMPAIO, 1989a, 1989b, 1991, 1994a; SAMPAIO; BRIL; BRENIERE, 1989). Por causa disso, muitos são os indivíduos cegos ou com baixa visão que não ousam se deslocar sozinhos e que, ao ousarem, experimentam um altíssimo nível de estresse (subjetivo e fisiológico).


3. Substituição sensória

Por reconhecer a gravidade desse problema, os laboratórios de pesquisa têm se dedicado à elaboração de dispositivos eletrônicos de substituição sensória. O conceito da substituição sensória é relativamente simples: permitir que um sistema sensório intacto receba e processe as informações normalmente tratadas por outro sistema sensório.

O sistema de leitura Braille é um exemplo clássico: ele permite que os dedos (em vez dos olhos) captem e processem as informações táteis de natureza geométrica (configurações de pontos em relevo, em vez de configurações de linhas bidimensionais), que serão transmitidas ao cérebro 1 para ser interpretadas (letras e palavras). Outra substituição sensória mundialmente conhecida é a bengala.

Os dispositivos eletrônicos de substituição sensória se dividem, grosso modo, em duas categorias: substituição visuoauditiva e substituição visuotátil.


3.1. Substituição visuoauditiva

No final do século XVIII, o filósofo inglês John Locke lançou um debate, célebre até os dias de hoje,2 sobre as possibilidades de substituição sensória das pessoas cegas; em 1749, como já vimos anteriormente, o filósofo francês Diderot descreveu, de maneira minuciosa, a capacidade de detecção dos obstáculos das pessoas cegas; e, no final do século XVIII, o biólogo italiano Spallanzani descobriu a origem auditiva da capacidade de detecção dos obstáculos dos morcegos. Mas é na metade do século XX que esses três temas convergem e, associados ao modelo do sonar e do radar, dão origem a dispositivos eletrônicos de ecolocalização, que se dividem em duas grandes categorias: detectores de obstáculos e analisadores de ambientes. Esses últimos oferecem uma informação mais rica que os primeiros e permitem não somente detectar os obstáculos, mas também perceber, simultaneamente, certos parâmetros espaciais (distância e localização) e certos aspectos da estrutura dos objetos.

O Sonicguide, inventado por L. Kay (1966) na universidade de Canterbury, Nova Zelândia, deu origem a um grande número de pesquisas, mostrando sua eficácia tanto na utilização com pessoas adultas (KITZHOFFER, 1983; WARREN; STRELOW, 1984, 1985) quanto com bebês ou crianças maiores (AITKEN; BOWER, 1982; SAMPAIO; DUFIER, 1986 SAMPAIO, 1989a). Todavia, limitações tecnológicas e práticas acabaram por impedir o uso desse tipo de dispositivo na vida cotidiana das pessoas cegas. Uma das grandes limitações para o auxílio à locomoção é o fato de o sinal fornecido pelo aparelho ser auditivo, entrando em competição com informações sonoras “naturais” que são fundamentais para a locomoção da pessoa cega (o barulho dos veículos, o ambiente sonoro de uma rua, a voz humana etc.).


3.2. Substituição visuotátil

Um dos mais famosos dispositivos de substituição visuotátil é o TVSS (Tactile Vision Substitution System). Esse aparelho, inventado por Paul Bach y Rita e sua equipe no início dos anos 1960, permite transformar as imagens visuais, captadas por uma videocâmera miniatura, em imagens táteis transmitidas a uma matriz de minipistões vibradores colocados em contato com a pele das costas (BACH-Y-RITA; COLLINS; SAUNDERS; WHITE; SCADDEN, 1969; BACH-Y-RITA, 1972).

Desde então, várias versões do TVSS foram elaboradas, uma delas especialmente concebida para bebês cegos (BACH Y RITA; SAMPAIO, 1995). A mais recente versão desse dispositivo incorpora avanços tecnológicos que permitem, entre outros aperfeiçoamentos, sua miniaturização. Como nas versões precedentes, a imagem visual é captada por uma minivideocâmera (ou diretamente captada da tela de um computador), mas, aqui, a imagem tátil é transmitida a uma matriz composta por 144 microeletrodos (3 cm × 3 cm) inserida na boca e explorada com a língua.

Os primeiros resultados obtidos com esse dispositivo foram bastante interessantes. Por exemplo, tanto pessoas com visão normal, mas com os olhos vendados, quanto pessoas totalmente cegas de nascença, ao utilizarem esse dispositivo pela primeira vez e mesmo sem nenhum treinamento, obtêm uma acuidade “visual” (teste de Snellen) de 20/860 (equivalente a 1/43). Em seguida, com apenas nove horas de treinamento (utilizando estímulos visuais bidimensionais diferentes dos que compõem o teste de Snellen), os dois grupos de pessoas são de novo submetidos ao teste de Snellen. A acuidade visual dobra, então, de valor: 20/430 (equivalente a 1/22) (SAMPAIO; MARIS; BACH-Y-RITA, 2001).

Outros estudos em laboratório mostraram que bebês de três meses de vida podiam aprender a utilizar facilmente esse tipo de dispositivo (SEGOND; WEISS; SAMPAIO, 2007), ou ainda que adultos podiam teleguiar um robô situado em um local diferente do qual se encontravam utilizando somente as informações visuais captadas pela câmera TV do robô, que eram então transformadas em informações táteis (SEGOND; WEISS; SAMPAIO, 2005).

Do ponto de vista metodológico, discussões recentes têm enfatizado a necessária complementaridade entre métodos de terceira e primeira pessoa para o estudo da cognição. Varela e Shear (2001) reuniram trabalhos que apresentam desenvolvimentos atuais de métodos de primeira pessoa que envolvem estratégias bem definidas para o acesso à experiência vivida e que ultrapassam a mera auto-observação. Uma parte dessas estratégias envolve a participação de uma segunda pessoa, cujo papel é guiar o processo de acesso à experiência. Estudos na área de deficiência visual têm buscado produzir dados em primeira pessoa por meio de abordagens em segunda pessoa (KASTRUP, 2007, 2008). Por meio desse procedimento, a voz é dada aos próprios deficientes visuais, criando a possibilidade de que, com suas falas, sua experiência seja socialmente compartilhada.

Um dos desafios dos métodos de primeira pessoa é não trazer apenas representações prévias e opiniões dos sujeitos sobre seu funcionamento cognitivo, mas fornecer dados sobre a dimensão qualitativa da experiência presente, que é inacessível aos métodos de terceira pessoa, especialmente dotados para o acesso a dados quantitativos e aspectos comportamentais.

Do ponto de vista científico, os métodos de terceira e primeira pessoa produzem dados distintos e de valor complementar. Essa abordagem metodológica original foi utilizada em uma pesquisa sobre aprendizado da utilização da substituição sensorial visuotátil por pessoas com deficiência visual (KASTRUP; SAMPAIO; DE ALMEIDA; CARIJÓ, 2009). Tratou-se de uma investigação inédita que combinou o método experimental tradicional, com ordem predefinida de apresentação dos estímulos visuais (a serem captados pela microcâmera do TVSS colocada na cabeça e decifrados pela língua ao explorar a matriz de microeletrodos), ao método clínico pedagógico, em que os investigadores modificam esse protocolo em função do feedback fornecido pelos voluntários e da entrevista de explicitação, realizada no início e no final do treino.

Os resultados obtidos a partir dos dados quantitativos, de terceira pessoa, mostraram que o desempenho inicial parece ser um bom indicador das capacidades de aprendizagem. Os dados em primeira pessoa complementaram os de terceira, ao detalhar a dimensão de experiência do processo de aprendizagem. Dentre as dificuldades surgidas durante o treinamento, o método clínico-pedagógico permitiu superar algumas, enquanto outras se mostraram mais resistentes. As principais dificuldades foram relativas ao acoplamento sensório-motor, ao movimento da cabeça e ao não cumprimento de certas expectativas em relação à qualidade da experiência. Ficou evidenciado que a prática é condição necessária, embora muitas vezes insuficiente. Faz-se necessária uma prática acompanhada de perto por uma segunda pessoa que assuma uma postura clínico-pedagógica e leve em consideração a experiência vivida pelo usuário. Realizada dessa maneira, tal prática pode criar melhores condições para o desenvolvimento de estratégias de superação de dificuldades próprias ao aprendizado de uma nova tecnologia de percepção para pessoas com deficiência visual, o que pode vir a contribuir, no futuro, para a ampliação do território existencial de uma pessoa com deficiência visual e para sua participação mais efetiva na vida social. Uma pesquisa recente, utilizando um TVSS de tecnologia distinta (pneumático), confirmou a importância do papel exercido pela aprendizagem do dispositivo, possibilitando a percepção de indícios propriamente visuais por cegos congênitos (SEGOND; WEISS; SAMPAIO; KAWALEC, 2013).

Apesar dos encorajantes resultados obtidos com o TVSS, limitações de caráter prático e/ou tecnológico não permitiram que, até então, os deficientes visuais adotassem, cotidianamente, esses aparelhos que deveriam facilitar seu deslocamento. A informação transmitida por esse dispositivo é por demais complexa para que a pessoa cega consiga interpretar as múltiplas informações oriundas de ambiente natural durante a locomoção. Outras limitações são certa sensação de intumescimento na língua e o alto custo do dispositivo (em torno de US$ 10.000).

Com a intenção de superar essas limitações, pesquisadores da Universidade de Tóquio desenvolveram, recentemente, um dispositivo por meio do qual a pessoa com deficiência visual torna-se capaz de detectar a presença de obstáculos distais sem que esse processo interfira com a audição nem que implique a interpretação de uma informação complexa: o radar tátil (RT).

Emissores e receptores passíveis de serem fixados em diferentes regiões do corpo transmitem, de forma discreta e eficaz, por estimulação tátil, as mais variadas informações a respeito do espaço circundante. De acordo com estudos preliminares (CASSINELLI; RYNOLDS; ISHIKAWA, 2006a, 2006b) e demonstrações funcionais apresentadas durante a 11a edição do salão científico “Laval Virtual” (Laval/França, abril de 2009), esse promissor dispositivo está não apenas apto a orientar os indivíduos cegos em seus deslocamentos no espaço externo, como também a lhes proteger melhor o corpo, sobretudo a cabeça.

Desdobrando-se em módulos relativamente simples, ele possibilita uma utilização fácil, de estética aceitável (os sensores/estimuladores podem ser facilmente ocultos sob um chapéu ou um boné) e de baixo custo de fabricação. É composto por vários módulos idênticos, que exploram e amplificam paralelamente as capacidades da pele. Cada módulo funciona como minibengalas, como pelos artificiais de longo alcance, ou seja, antenas capazes de transformar informações distais, como as visuais e as auditivas, em informações proximais, como a tátil, ao estimular a região da pele localizada abaixo do captor do módulo. Dessa forma, cada módulo produz estimulações locais (outras configurações mais complexas também são possíveis), correlacionando a direção e a proximidade do obstáculo captado.
 


      
Exemplo de um dos primeiros protótipos, ainda bastante rudimentar, sob a forma de uma faixa para pôr em torno da cabeça.
 

No caso do telêmetro infravermelho, ele está apto a captar estímulos localizados a 80 cm; no caso do ultrassonoro, está apto a captar estímulos localizados a uma distância bem maior. Avalia-se que, para obter uma locomoção segura, o pedestre cego deva antecipar estímulos distais localizados a uma distância de 1,5 m. Os cegos que utilizam o RT percebem e reagem (“evitamento”) aos obstáculos da mesma forma como os insetos detectam, por meio de suas antenas, e os mamíferos, por meio de seus pelos especializados ou fibrilas, os estímulos situados no espaço externo.

Sempre que um objeto adentra o campo espacial do usuário do RT, ele recebe uma estimulação vibratória que lhe permite interpretar, intuitivamente, o ângulo de sua aproximação. Como consequência, o sujeito cego tenta se livrar automaticamente da estimulação, afastando o corpo da posição e da trajetória do objeto externo. Esse mesmo princípio de funcionamento permite que sujeitos detectem os estímulos não só para evitá-los, mas também para localizá-los e interagir com eles. Esse recurso revela-se particularmente útil, sobretudo no caso de crianças pequenas, pois as ajuda a descobrir os estímulos presentes no ambiente circundante e a agir sobre eles. Essa possibilidade é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança cega.

Cada módulo do radar tátil contém um sensor de proximidade infravermelha (SHARP GP2D12), de alcance máximo de 80 cm. A estimulação vibrotátil utiliza um motor vibrador em miniatura off-axis, facilmente encontrado no comércio (Chongqing Linglong Electronic Mobile Phone Vibrator Motor C1226-56L28). O estímulo tátil tem origem na variação simultânea da amplitude e da rotação, diretamente proporcional ao alcance captado pelo módulo infravermelho: os objetos que se encontram mais próximos produzem vibração mais forte; os mais distantes, vibração mais fraca.

Com a inclusão de sensores ultrassonoros, o alcance espacial do sistema RT foi aprimorado e aumentado. Além disso, a inclusão de um sistema de chaves permitiu que o sujeito cego possa optar por diferentes alcances de ação: um, permitindo-lhe detectar estímulos localizados no espaço corporal proximal, e outro, permitindo-lhe detectar estímulos localizados no espaço extracorporal, distal. Por outro lado, o sujeito também pode, invertendo as funções de ativação, detectar tanto estímulos quanto a ausência de estímulos, ou seja, os espaços vazios. Essa última função é extremamente útil no caso de o cego necessitar encontrar caminhos livres de obstáculos quando se locomove em meio a uma multidão de pessoas.

Em uma pesquisa recente, avaliou-se o impacto do uso do radar tátil no grau de ansiedade que a atividade locomotora autônoma costuma desencadear em sujeitos cegos. Observou-se, tanto nas avaliações subjetivas (entrevistas semidiretivas) quanto nas objetivas (inventário IDATE), uma diminuição no grau de ansiedade que a locomoção autônoma desperta, bem como o aumento dos sentimentos de segurança e independência dos sujeitos testados com o uso do radar tátil (JOFFILY; SAMPAIO; CASSINELLI; LIMA; GUSMÃO, 2013).


4. Conclusão

Mesmo que o radar tátil se apresente como uma promissora ferramenta para estimular a autonomia de pessoas com deficiência visual, convém lembrar o fato já bem conhecido por engenheiros, educadores e terapeutas: os esforços para o desenvolvimento e a utilização de tecnologia assistiva para pessoas com deficiência são muitas vezes fadados ao fracasso. Ideias brilhantes, associadas a implementações tecnológicas de alta qualidade, resultam frequentemente em dispositivos que não são utilizados pelo público-alvo de pessoas com deficiência.

Alguns protótipos não ultrapassam a fase experimental. Quanto aos produtos especializados, testados e comercializados, observa se um rechaço, acarretando o abandono definitivo por parte das pessoas com deficiência, que se situa em torno de 30% (PHILLIPS; ZHAO, 1993).

Estudos que analisam esse problema sugerem, para corrigi-lo, a implicação das pessoas com deficiência em toda as fases decisivas da produção e escolha de uso de tais dispositivos (RIEMER-REISS; WACKER, 2000). Todavia, o envolvimento das pessoas com deficiência deve ser acompanhado por profissionais capacitados, com um conhecimento múltiplo, que pode ser classificado em três setores de conhecimento:

  • as grandes categorias de tecnologia assistiva, os conceitos, o histórico, a legislação, os contextos de aplicação, os critérios de classificação, a metodologia de avaliação, noções básicas de desenho universal;

  • as características comuns, bem como as específicas, da(s) deficiência(s). Isso requer a abordagem das representações histórico-sociais da deficiência, dos modelos de adaptação psicossocial à deficiência, das necessidades físicas e psicológicas (sobretudo cognitivas e emocionais) ligadas aos diferentes tipos de deficiência etc.;

  • as noções subjacentes ao aconselhamento pessoal na perspectiva da entrevista motivacional (MILLER; ROLLNICK, 2002), ancoradas na psicologia cognitiva, bem como na psicologia positiva, que permitirão que o indivíduo seja o ator de seu próprio movimento de mudança (adaptação à tecnologia assistiva), determinando, ele próprio, o rumo e a meta a serem atingidos. Nesse enfoque, o papel do profissional que acompanhará esse processo é delicado e paradoxal, já que ele deverá guiar e ser guiado, em uma dialética sutil, porém com regras específicas.

 

NOTAS DE RODAPÉ

1  As técnicas modernas de imagem cerebral permitiram mostrar que as atividades cognitivas elaboradas, como a leitura ou a criação de imagens mentais, ativam, tanto nas pessoas cegas quanto nas pessoas com visão normal, a zona cerebral occipital, responsável pelo processamento das informações visuais (SAMPAIO, 1989a, 1989b, 1991, 1994a).

2  Filósofos, psicólogos e especialistas em neurociências do século XXI reconhecem o grande valor heurístico da “Questão de Molyneux” para a ciência contemporânea.



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Eliana Sampaio | Psicóloga, doutora em Psicologia pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales (CNRS), Paris (1986), pós-doutourada pela University of Madison-Wisconsin, EUA (1992), livre-docente “Habilitation à diriger des recherches” pela Université Paris V (1994). Atualmente, é professora titular da cátedra “Handicap” do Conservatoire National des Arts et Métiers, Paris. Endereço: 292, Rue Saint Martin (case 1D4P30) 75003, Paris, França. E-mail: eliana.sampaio@cnam.fr

 

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FERRAMENTAS COGNITIVAS E TECNOLÓGICAS PARA A INCLUSÃO SOCIAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL
autora: Eliana Sampaio
Outubro 2013
FONTE: Revista IBC

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25.Out.2014
publicado por MJA