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 Sobre a Deficiência Visual

A Expressão Corporal, o Teatro e o Deficiente Visual

Marlíria Flávia Coelho da Cunha

 Borboleta-esfinge cega, que exibe olhos falsos nas asas para intimidar predadores - foto de George-Grall
A Borboleta-esfinge cega - exibe olhos falsos nas asas para intimidar os predadores

Resumo | Este artigo pretende analisar a contribuição que o teatro pode oferecer nas vivências e experiências sensório-motoras da pessoa deficiente visual. Descreve ainda a Análise Activa, de Stanislavski, com as adaptações necessárias, como um dos métodos teatrais que podem auxiliar neste processo.
 

1 – Introdução

Recentes estudos afirmam que mesmo o cego congénito, que não possui pistas visuais, pode exibir emoções na face e, portanto, ser tão expressivo quanto o vidente. Afirmam ainda que os padrões de desenvolvimento da criança cega são os mesmos de uma criança que não possui deficiência visual [1] (Castanho,1996).

A visão é o sentido que integra e sintetiza todos os outros sentidos, e a falta dela limita, mas não incapacita o indivíduo. É através dos sentidos remanescentes, do constante interagir com o outro e com o espaço ao seu redor, que a criança cega constrói a imagem de si e do mundo [2]. Seu desenvolvimento se dá através de vivências, experiências. Uma criança cega que recebe diversos tipos de estímulos desde o seu nascimento consegue adaptar-se com maior facilidade à sua deficiência e desenvolver uma melhor relação de interatividade com o outro e com os ambientes que a cercam.

Neste estudo, pretende-se analisar a importância do teatro, mais especificamente do método criado por Stanislavski, para o favorecimento de vivências e experiências sensório-motoras fundamentais à criança cega e relatar, a título de exemplificação do método, uma experiência com um grupo de alunos do Instituto Benjamin Constant.


2 – O método de Stanislavski

foto: Constantin Stanislavski (1863-1938)


Constant Stanislavski viveu na Rússia, na primeira metade do século XX. Este grande actor e director foi ainda o fundador do Teatro de Arte de Moscovo. Era já um homem maduro quando se dedicou a transmitir ao mundo os seus conhecimentos e estudos sobre a arte do actor. Inovador e dinamizador, Stanislavski veio arejar o teatro moderno, despojando-o de seus artificialismos e convenções. Em lugar de um mero fantoche que repetisse mecanicamente as falas com a inflexão que o director determinasse, o actor, no método de Stanislavski, “passou a ser um ser vivo, independente e participante, capaz não apenas de ‘dizer’, mas de ‘viver’ a cena” (Stanislavski, 1994).

No início de seu trabalho no teatro, Stanislavski usava o método tradicional, do “decorar” e representar o texto. Mesmo assim, já trazia inovações que se baseavam nas suas pesquisas enquanto actor e posteriormente como director. No fim de sua vida, dedicou-se ao método que denominou Análise Activa. O método da Análise Activa parte do princípio de que o actor deve analisar um texto, logo no seu início, não sentado em uma cadeira e discutindo passivamente o seu conteúdo, mas ativamente, ou seja, encenando-o:

“Eis como abordo um novo papel (...) sem qualquer leitura, sem qualquer conferência sobre a peça, os actores são convocados a ensaiá-la. (...) E tem mais: Pode-se ensaiar uma peça que ainda não foi escrita. (...) Tenho uma peça na cabeça. Vou contar-lhes o enredo em episódios, e vocês o interpretarão. Observarei o que disserem e fizerem em sua improvisação e anotarei as coisas mais acertadas. De modo que, unindo nossos esforços, escreveremos e interpretaremos uma peça que ainda não existe” (Stanislavski, 1990, p. 225).

Esta teoria, no início do século XX, numa época em que o teatro privilegiava o texto, e as estrelas das companhias monopolizavam o cenário teatral, até mesmo na Rússia, era bastante surpreendente. Mas, para um melhor entendimento deste método, façamos um resumo do plano de trabalho descrito pelo próprio Stanislavski (1990), em “A criação de um papel”.

Acredita o autor que a primeira leitura deva ser feita por uma só pessoa e acompanhada em silêncio pelos actores. Esta leitura oral da peça não seria feita por um actor ou director, mas por alguém acostumado à literatura: “Uma pessoa treinada em literatura, que estudou as qualidades básicas das obras literárias, é capaz de apreender instantaneamente a estrutura que levou o dramaturgo a escrever” (Stanislavski, 1990, p.22). E esta leitura, denominada de “leitura branca”, deveria ser simples e clara, sem entonações ou ênfases desnecessárias que pudessem influenciar na impressão que o actor tivesse da peça.

Após a primeira leitura, os actores devem contar o enredo, sem detalhes excessivos. Esta parte é fundamental para que o director perceba se a peça foi assimilada.

O terceiro momento é representar o enredo, ou seja, improvisar a história da peça. Se esta for muito grande, pode-se improvisar parte por parte. Na improvisação, as falas são inventadas, o texto é vivenciado e não envolve ainda emoção, não exige sentimento ao actor. Ele deve apenas se ater aos factos da história, realizar as ações correspondentes ao seu personagem. Ações que, por não estarem impregnadas de sentimentos por enquanto, são chamadas de “ações físicas”.

O quarto momento é representar improvisações versando sobre o passado e o futuro das personagens. O presente é o que acontece na peça e, portanto, já foi vivenciado. Stanislavski propõe que nesta fase dos ensaios o actor pense e improvise “de onde foi que eu vim, aonde é que estou indo, que aconteceu entre os períodos em que eu estava em cena?” Estas improvisações fazem parte do laboratório da peça [3] e servem para que o actor tenha a compreensão de todos os estímulos que movem as atitudes de seu personagem.

O quinto momento é a definição do superobjetivo (o tema, o assunto que a peça aborda) e a divisão da peça em unidades dramáticas. As unidades dramáticas correspondem, de modo simplificado, a pequenas cenas. Geralmente inicia-se com a entrada de um novo personagem e termina com a saída deste ou de outro. Estas unidades devem receber um título que as exemplifique. Após essa divisão, elas devem ser relatadas pelos actores e improvisadas, uma a uma, a fim de que sejam entendidas separadamente.

Em cada uma destas unidades, o actor deve se ater às ações físicas, ou seja, às ações que a personagem realiza. O objetivo do personagem em cena irá demonstrar a maneira com que estas ações serão realizadas. Da mesma forma, o objetivo do personagem em cada unidade influenciará a criação de outras ações que não estão descritas na peça. Stanislavski nos oferece um exemplo: Na peça “A desgraça de ter espírito”, de Griboyedov, o personagem Chatski deseja, ao regressar de uma viagem ao exterior, rever sua amada Sofia. Este é o seu objetivo em uma das unidades dramáticas.

Stanislavski passa a descrever as ações necessárias para realizar este objetivo: “(...) a carruagem pode entrar. Mas o criado a detém, chega à janela e me saúda (...) tenho de falar com ele, ser agradável, trocar saudações (...) salto da carruagem. Qual é a primeira coisa que devo fazer? Devo despertar o porteiro sonolento. Agora seguro a corda da campainha, dou-lhe um puxão, espero, torno a tocar. (...) Agora o porteiro me cumprimenta, com uma espécie de relincho de cavalo. Devo dizer-lhe “como vai”, ser amável com ele, trocar cumprimentos” (Stanislavski, 1990, p. 71).

O desejo de apressar o encontro com Sofia ditará a forma com que estas pequenas ações serão realizadas e assim surgem, espontaneamente, as primeiras ações psicológicas. As ações psicológicas, segundo Stanislavski, surgem das ações físicas e não o contrário.

Stanislavski diz que o actor não pode sofrer por sofrer, chorar por chorar, é necessário que tenha um objetivo. E que este objetivo se manifeste através da ação: “Quando o actor sente passivamente o seu papel, sua emoção permanece dentro dele, não há um desafio à ação interior nem à exterior. Mesmo para projetar um estado passivo em termos teatrais, temos de fazê-lo ativamente. (...) A ação indolente, lerda, ainda assim é ação” (Stanislavski,1990, p.76) Depois destas improvisações o actor já se encontra pronto para realizar outras leituras do texto, “decorá-lo” por assim dizer, embora Stanislavski jamais tenha usado tal palavra. Mas agora o texto tem sentido para o seu intérprete e este praticamente já o “decorou”, através da prática, da análise Activa:

“A vida é ação. Por isso é que a nossa arte vivaz, que brota da vida, é preponderantemente Activa. Não é sem motivo que nossa palavra drama é derivada da palavra grega, que significa ‘eu faço’. Em grego, isto se refere à literatura, à dramaturgia, à poesia, e não ao actor e sua arte. Ainda assim, temos muito direito de nos apropriar dela.” (Stanislavski, 1990, p. 62).


3 – A expressão corporal e o deficiente visual

Os Parâmetros Curriculares Nacionais da área de Arte afirmam que “o ato de dramatizar está potencialmente contido em cada um, como uma necessidade de compreender e representar uma realidade (...). A dramatização acompanha o desenvolvimento da criança como uma manifestação espontânea, assumindo funções e feições diversas, sem perder jamais o caráter de interação e de promoção de equilíbrio entre ela e o meio ambiente”. Afirmam ainda que “toda ação humana envolve a atividade corporal (...). A ação física é necessária para que a criança harmonize de maneira integradora as potencialidades motoras, afetivas e cognitivas (Secretaria de Educação Fundamental, 1997, p.83)”.

Se a atividade física como também o ato de dramatizar é inerente e essencial ao desenvolvimento da criança, por que excluir o deficiente visual desta experiência? E como o método de Stanislavski, a princípio elaborado para actores videntes, pode contribuir neste processo? E mesmo, como adaptá-lo à realidade das nossas crianças?

O relato da experiência realizada no Instituto Benjamin Constant e a discussão sobre a mesma fazem-se necessários para auxiliar nestas reflexões e enfatizar a importância deste trabalho para o deficiente visual.


3.1 - O início do trabalho

Nos meus primeiros anos de trabalho no Instituto Benjamin Constant, dois factos foram marcantes e acabaram por nortear a minha pesquisa na área de expressão corporal de deficientes visuais. O primeiro relacionava-se a um material sobre cegueira que tive a oportunidade de consultar. Era um material muito antigo e continha a informação de que os deficientes visuais não eram capazes de ter uma expressão facial própria, eram “inexpressivos”. O segundo, que defendia uma teoria similar à primeira, colhi numa palestra na qual afirmava-se ser necessário ensinar aos deficientes visuais gestos simples, como dar tchau balançando a mão, mandar beijinhos, entre outros. Estes factos pareceram-me bastante intrigantes. Afinal, que tipo de expressividade se deseja de um deficiente visual? A expressividade dele, a maneira como reage e expressa seus sentimentos, ou a cópia perfeita das emoções e reações de um vidente? Em suma, queremos que tenha a sua própria expressividade ou que seja a xerox das pessoas que enxergam?

Durante pelo menos dez anos, conheci deficientes visuais que eram extremamente expressivos, alguns muito mais do que vários videntes que conhecemos. A expressão facial não é atributo somente das pessoas que enxergam. Os deficientes visuais, digamos, com uma expressão facial extremamente pobre, costumam apresentar falta de estimulação adequada. São pessoas que não possuem, em geral, consciência do próprio corpo, além de apresentarem déficit em outras áreas psicomotoras. Um deficiente visual que receba todo o tipo de estímulo desde a sua infância pode encontrar o caminho para desenvolver a sua própria expressividade.

Quanto aos gestos copiados dos videntes, eles são mesmo necessários? Fazem parte das necessidades reais da pessoa cega? Para estabelecer uma comunicação com os videntes, o cego precisa usar desses gestos estereotipados? Estes gestos são rótulos estabelecidos durante muito tempo, clichês que se solidificaram ao longo dos anos,e portanto nada impede que sejam substituídos por outros; desde que um gesto seja compreendido por seu receptor, ele estabelece a comunicação e pode se tornar um novo código.

Não que a aprendizagem destes gestos tradicionais seja condenável. Acredito, entretanto, que a mesma deva partir da necessidade e do desejo do próprio deficiente visual.Não algo imposto e encarado como imprescindível a sua vida. É uma informação a mais, que pode ser utilizada ou não.

E partindo da sua necessidade, do seu desejo, esse gesto estereotipado deixa de ser algo vazio, sem significado e objetivo, e passa a ter um sentido, um contexto. É como decorar um texto ou mesmo as datas históricas. Se não tem sentido, o aluno apenas “decora” para a prova e depois esquece. Para decorar um texto ou datas históricas ou o que quer que seja é necessário que isto tenha um sentido, esteja dentro de um contexto que o justifique.


3.2 - Os ensaios com o método da Análise Activa

3.2.1 - Os primeiros encontros

Desde os primeiros contatos com meus alunos deficientes visuais¹, percebi que, no geral, tinham facilidade em “decorar” textos e falas, mas que, nem sempre, possuíam a mesma facilidade em expressar aquilo que falavam com o corpo. Algumas crianças não haviam tido experiências concretas suficientes e tinham a tendência de reproduzir informações e sons que simplesmente não conheciam de facto. Por exemplo: o som de um gato era facilmente reproduzido, mas quando era pedido para que representassem o gato andando, dormindo, comendo, apareciam as dificuldades. Alguns não sabiam sequer como era um gato (de pêlo, de pena? Anda de quatro ou é um bípede?).

O material lido, a palestra a que assisti, a experiência com os adultos e a observação da necessidade destas crianças me fizeram optar por destinar uma parte maior do meu tempo ao trabalho com a expressão corporal. A expressão vocal só seria aceita aliada a uma atitude corporal. Por conseguinte, as improvisações e montagens de peças apresentariam um trabalho maior do corpo em relação ao espaço.

Toda a vivência corporal-vocal realizada na sala necessitava antes ser explorada de todas as formas possíveis. O número de brinquedos, miniaturas e materiais que os alunos traziam para pesquisa triplicaram na minha sala. Era uma forma de garantir a exploração de tudo o que seria vivenciado nos jogos dramáticos e nas improvisações. A minha preocupação era que os alunos conhecessem aquilo que iriam representar, usando todos os seus sentidos, e o fizessem, não segundo a imagem que eu tinha daquele objeto, mas sim com a imagem que tinham criado sobre o mesmo. E quando utilizo aqui a palavra imagem, não me refiro somente a uma imagem visual. Imagem pode ser visual, tátil, auditiva, olfativa e até mesmo gustativa. Imagem no sentido da noção que se tem de algo com que se estabeleceu uma relação, da referência que se tem de um objeto, portanto, imagem mental².

O método da Análise Activa, que favorece o entendimento do texto através da vivência corporal, dando independência ao actor na criação de movimentos e gestos, surgiu como a melhor possibilidade para atender a estas necessidades.


3.2.2 - A montagem de “O mágico de Oz”

Em 2003, ao decidir montar “O mágico de Oz”, escolhi um grupo de alunos que estudavam comigo, cuja idade variava de sete a quinze anos. Isto porque a peça necessitava de apenas oito actores e eu trabalho com, aproximadamente, quarenta crianças. Por ser um trabalho com texto, sistemático, exigia um certo grau de maturidade dos actores, além de uma disponibilidade para os ensaios, em geral, três vezes por semana. Os alunos deveriam ainda desejar e assumir um compromisso de se dedicar e não faltar aos ensaios. Talento não era um critério obrigatório, já que, como diz a grande atriz Fernanda Montenegro, 2% no actor é talento e 98% dedicação.

No primeiro contacto do elenco com o texto, ao invés de uma “leitura branca”, realizada por uma pessoa ligada à área de literatura, preferi ler eu mesma a peça. Os actores-mirins só ouviam. A leitura foi bem teatral: repleta de entonações, inflexões e intenções. Isto porque, ao trabalhar com crianças, eu precisava conquistá-las, ou seja, criar nas mesmas o desejo de representarem não uma peça qualquer, mas aquela peça. Precisava de que, desde o primeiro momento, o meu elenco entrasse no mundo mágico de Oz.

Após a leitura, discutimos um pouco sobre a peça. Essa discussão não partia de uma análise fria da peça, mas procurava respeitar o “se” proposto por Stanislavski. Por exemplo, ao interrogar os alunos/actores-mirins sobre o que acontecia na peça, também indagava se, como Dorothy, a protagonista da peça, já haviam desejado ou sonhado estar em outro lugar. Que lugar havia sido esse, o que havia acontecido. Se gostariam de viver num lugar diferente, enfim... Também perguntava dos limites de cada um. O espantalho achava que não tinha cérebro. “E você, se considera incapaz em alguma coisa? Já houve algo que você pensasse ser incapaz de realizar e depois conseguiu?”. Eram perguntas que nós levantávamos com a proposta de que os actores mirins analisassem a peça colocando-se no lugar dos personagens.

Fizemos um esboço também do objetivo principal da peça. Todos concordaram que este objetivo maior que abordaríamos era que, embora todos tenhamos nossas limitações, ou pensemos que somos incapazes de algo de vez em quando (como o espantalho, o homem de lata e o leão), costumamos ter, dentro de nós, as condições para superar os nossos limites.

Após essa análise, cada actor escolheu, livremente, o personagem que desejaria interpretar. Fizemos uma recapitulação da sequência da peça e todos foram para o meio da sala (ainda não ensaiávamos no teatro) e começaram a improvisar a história. Como directora, me pus apenas a observar o que faziam.

A improvisação não foi totalmente fiel ao texto, e nem eu desejava isto. Minha intenção era perceber as cenas ou momentos com que os actores se identificavam mais, pois estes constavam na improvisação, e o quanto da peça havia sido compreendido pelos mesmos.

Dividi sozinha o texto em unidades dramáticas, uma vez que esta tarefa seria muito longa e exaustiva para ser realizada com o grupo, e, nos ensaios seguintes, dispunha-me a ler cada uma destas unidades, discutir com eles os acontecimentos e improvisá-las uma a uma. Durante esta fase, os alunos se revezavam nos papéis. A mesma unidade era repetida trocando-se os actores de papéis. Todos vivenciavam todos os personagens, criando a compreensão não apenas de um, mas de todos os envolvidos.

Nesta fase, realizámos ainda “laboratório” dos personagens. Como directora, trouxe os materiais que representavam o corpo dos mesmos: palha, leão de pelúcia e um robot feito de lata de leite condensado pela mãe de um dos alunos. As crianças exploraram estes materiais. Eu procurava instigá-las na pesquisa através de perguntas do tipo: “como é o corpo do espantalho? A palha é mole? Dura? Experimentem colocar a palha em pé. Ela fica? Qual a diferença da palha para o pêlo ou para a lata?” Esta experiência com materiais concretos é fundamental para que a pessoa cega crie a imagem mental do personagem a ser representado, uma vez que ela não possui referências visuais que possam trazer à tona neste momento, tais como lembranças de filmes sobre a história, fotos e desenhos.

Depois desta exploração, os alunos voltaram ao centro da sala e, desta vez, todos juntos e ao mesmo tempo, foram convidados a improvisar o modo de andar, de falar, de parar, de cada um destes personagens. Ao som de uma música suave, eu dizia: “vamos andar pela sala... faz de conta (“se”) que o seu corpo é muito mole, todo feito de palha... como você andaria?” Outras ações eram propostas. O mesmo era realizado com os outros personagens.

A minha preocupação era sempre incentivar a pesquisa corporal sem oferecer movimentos prontos, que fizessem parte apenas da minha concepção. Foi desta forma que surgiu naturalmente uma voz robotizada para o homem de lata, criação de um dos alunos, e um leão hilário, que saltitava em cena, criação de outro.

Após terem vivenciado a peça, era hora de finalmente levarem o texto para casa e “decorarem”. Na verdade, o ato de “decorar” já havia sido praticamente realizado quando ouviam, discutiam e realizavam cena por cena (unidades). Por isso, me abstive de fazer as “leituras de mesa”, tão comuns no teatro tradicional. Minha intenção era que apenas lessem em casa o texto digitado em Braille, com toda a calma, e tivessem contacto com as palavras e o ritmo do mesmo.

Partimos então para os ensaios no teatro do Instituto Benjamin Constant (IBC). De início, foi pedido aos alunos-actores que explorassem o palco, as coxias e a plateia, livremente, sozinhos e com parceiros. Muitos nunca haviam subido ao palco, limitando-se a assistir aos espetáculos. Depois começámos os ensaios.

As marcações das cenas que haviam surgido espontaneamente passaram a ser solidificadas. A participação do professor-director se tornou maior. Agora era necessário que os alunos memorizassem de onde entrariam, por onde sairiam e suas posições no palco em cada momento. Isso tornaria possível a segurança e independência em cena. Afinal, durante as apresentações, não haveria adultos para “guiá-los”.

O texto - a palavra - ganhou importância. Era preciso entender a intenção de cada fala, dar ênfase a algumas palavras-chave, que forneciam informações importantes sobre a peça e/ou sobre o personagem. Também era necessário dizer este texto de modo claro, com a dicção, a entonação e a impostação de voz corretas. Em alguns momentos, punha-me no meio da plateia e procurava ouvir os actores e, assim, saber se falavam alto e de modo compreensível.

Alguns movimentos e gestos que não haviam surgido espontaneamente foram então sugeridos, a fim de enriquecer a expressão corporal dos actores. Numa cena da peça, Dorothy, a protagonista, e a Bruxa-Boa, despedem-se dizendo “tchau”. Sugeri que fizessem o movimento do “tchau” do modo tradicional, da forma como é conhecido. Uma das pequenas atrizes, cega congénita, imediatamente perguntou como era este gesto. Pus a sua mão sobre a minha e realizei o movimento junto com ela. A atriz-mirim põe-se então a realizar o gesto sozinha e, aos poucos, o mesmo perdeu seu caráter mecânico e foi incorporado, como se sempre houvesse sabido como fazê-lo.

Este gesto-cliché, também denominado de “carimbo” por Stanislavski, só pôde deixar de ser vazio ao ganhar um sentido, ser plenamente justificado no contexto do espetáculo. Desta forma, o aluno pôde apropriar-se do gesto, tornando-o seu, e dar-lhe o seu próprio ritmo e expressividade.

Nos últimos ensaios, perfeitamente identificados com a peça e com seus personagens, os actores representavam totalmente soltos pelo palco, e ainda criavam “cacos” [4]. No dia da estréia no teatro do Instituto Benjamin Constant, os actores-mirins se arrumaram, maquiaram e, em roda, durante alguns minutos, fizeram exercícios de relaxamento e exercícios vocais que auxiliariam na encenação.

Durante a apresentação, os actores, que conheciam o palco e as suas marcações, se locomoviam com total desenvoltura e segurança pelo mesmo.

A exploração e o trabalho intensivo num espaço específico - o teatro - favoreceu o desenvolvimento da orientação espacial e da independência do grupo. Esta independência tornou possível a compreensão das formas de locomoção, não somente naquele espaço, mas também em outros. A peça foi apresentada também na Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO), para alunos de graduação em Teatro, e na Pontifícia Universidade Católica (PUC), durante um congresso sobre cidadania. Nestes espaços, a princípio estranhos, onde os actores-mirins sequer ensaiaram uma única vez, e que exploraram durante poucos minutos antes da apresentação, o grupo se apresentou com igual desenvoltura, demonstrando bastante consciência corporal e espacial, além de segurança e independência.


4 – Conclusão

A partir desta experiência, podemos destacar que toda e qualquer criança precisa de ações físicas para estabelecer contacto com o outro e com o mundo, identificando-se como integrante deste meio. Desta forma o jogo teatral, ora espontâneo, ora com regras, a expressão corporal, as dramatizações, podem proporcionar condições que favoreçam este crescimento pessoal.

Assim, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, a escola deve viabilizar o acesso do aluno às atividades teatrais, pois estas “proporcio-nam experiências que contribuem para o crescimento integrado da criança sobre vários aspectos. (...) Compartilhar uma atividade lúdica e criativa baseada na experimentação e na compreensão é um estímulo para a aprendizagem” (Secretaria de Educação Fundamental,1997, p. 87).

Para o deficiente visual, esta aprendizagem se torna fundamental. Os objetivos e vantagens que advém do Teatro são muitos, mas podemos destacar a possibilidade de explorar objetos e espaços, desenvolver a consciência corporal, vocal e a construção da identidade, através da noção e diferenciação do eu e do outro. Contribui assim para a independência e o desenvolvimento da auto-estima da pessoa deficiente visual, que tantas vezes se sente “tolhida” e dependente de colegas videntes.

O método da Análise Activa, proposto por Stanislavski, não é apresentado como o método definitivo e a única possibilidade de estimular o contacto físico e as experiências sensoriais na pessoa deficiente visual. Ele apresenta-se como mais uma opção para o professor que deseja estimular a expressividade em seus alunos através da linguagem teatral.

Espera-se que o estudo deste método e a exemplificação da adaptação do mesmo com pes-soas deficientes visuais, possa servir para futuras pesquisas na área da Educação Especial.

 

Notas

1  - Alunos cegos e de baixa visão.
2 - A imagem mental de um objeto é formada através das informações que a criança cega recebe do mesmo, mediante percepção tátil, auditiva, cinestésica, olfativa ou gustativa. Estas informações são processadas pelo Sistema Nervoso Central, mais especificamente pelo córtex cerebral, integradas a outras informações já armazenadas e finalmente memorizadas em um esquema/imagem mental (Bruno, 1993, p.25).
3  - Laboratório são exercícios e jogos teatrais que servem como experiência e vivência dos assuntos abordados na peça.
4 - Termo utilizado na linguagem teatral que se refere às “falas” que não fazem parte do texto, mas são criadas pelo ator durante os ensaios e/ou encenações.


Referências Bibliográficas

  • BRUNO, M. M. G. O desenvolvimento integral do portador de deficiência visual: da integração precoce à integração escolar. São Paulo: Laramara, 1993.
  • CASTANHO, A. R.S.P. A face de crianças deficientes visuais: expressões de emoções e percepção social de seus sorrisos. 1996. 97 p. Tese (Doutorado em Psicologia experimental) Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. Brasília: MEC/SEF, 1997.
  • STAES, Ade M. L. Psicomotricidade – educação e reeducação. São Paulo: Manole, 1984.
  • STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do actor. 11.ª ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
  • STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. 4 ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.
  • STOKOE, Patrícia e HARF, Ruth. Expressão Corporal na pré-escola. 2.ª ed.. São Paulo: Summus editorial, 1992.
     


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Marlíria Flávia Coelho da Cunha é professora de Alfabetização e ensina Teatro no Instituto Benjamin Constant. É graduada em Português-Literatura e em Artes Cênicas pela UNI-RIO (Universidade do Rio de Janeiro). Pós-graduada em Alfabetização de deficientes visuais (UNI-RIO / IBC), possui duas especializações em Arte-Educação (Escolinha de Artes do Brasil e TEAR).tc "(Angela Arruda, 1998\:18)"

 

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6.Nov.2013
publicado por MJA