
Blind Girl - Beatrice
Offor - óleo sobre tela -1906/1917
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RESUMO |
O desenvolvimento da escrita ortográfica
pela criança é
uma ferramenta importante para a expressão e organização do seu
pensamento através do texto escrito. A revisão textual contribui de
forma significativa neste desenvolvimento ao possibilitar que a criança
reflita sobre as escolhas lingüísticas que realiza ao escrever. No entanto,
se o aprendiz percebe o erro como evidência de seu fracasso em
aprender, a revisão da própria produção pode ser uma experiência
dolorosa. Este trabalho descreve o processo de revisão de texto realizado
por uma criança cega, explorando a importância da realização
de atividades de natureza metalingüística e do fazer-de-conta para o
domínio da escrita ortográfica no sistema Braille, desenvolvimento
da auto-estima e reconstrução de paradigmas sobre o aprender.
O domínio das convenções ortográficas tem um papel importante no
aprimoramento das habilidades textuais da criança, uma vez que
o emprego de tais convenções facilita a comunicação escrita entre
os usuários de uma determinada língua (Morais, 2000). As normas ortográficas
auxiliam a inteligibilidade do texto, possibilitando desta forma
a comunicação através da escrita. O ato de ler não é possível sem que
ocorram concomitantemente os processos de decodificação e compreensão
do texto escrito. Neste sentido, o domínio do sistema de escrita é
imprescindível tanto para o entendimento do texto lido como para a clareza
do texto escrito.
A aquisição da escrita ortográfica não é resultado direto da exposição
da criança ao material impresso, mas do aprendizado significativo da
natureza e organização do sistema de escrita pela criança. Assim, a reflexão
acerca das palavras e de sua grafia é fundamental para o desenvolvimento
da escrita ortográfica como uma ferramenta para a expressão e organização
do pensamento através do texto escrito.
A revisão de textos
pode contribuir de forma significativa neste desenvolvimento ao possibilitar
que o aprendiz reflita sobre as escolhas lingüísticas que realiza ao
escrever. Descrevemos neste trabalho o processo de revisão de texto realizado
por uma criança cega, explorando a importância da realização de
atividades de natureza metalingüística e do fazer-de-conta para o domínio
da escrita ortográfica no sistema Braille, desenvolvimento da autoestima
e reconstrução de paradigmas sobre o aprender.
Habilidades metalingüísticas e escrita ortográfica
O desenvolvimento de competências metalingüísticas é essencial
ao processo de aquisição de uma ortografia alfabética. São essas habilidades
que possibilitam a construção da escrita e seu manuseio de forma
reflexiva e funcional. Segundo Gombert (1992), a metalinguagem
está inserida no campo da metacognição, diferenciando-se das outras habilidades
deste construto por não ser seu objeto de estudo uma função
cognitiva, como exemplo a metamemória, mas a própria linguagem. A
metalinguagem se refere, portanto, à reflexão sobre a linguagem e à manipulação
intencional de seus componentes (Correa, 2004).
Mesmo para escritores experientes, a primeira versão de um texto
raramente é satisfatória (Garcez, 2002). Parte fundamental do processo
de escrita é fazer releituras e reescritas. Na revisão textual é possível ao
autor rever a organização das idéias e as escolhas lingüísticas que realizou.
No entanto, a revisão de textos não é algo espontâneo, principalmente
para a criança, porque requer que tomemos o texto como objeto
de nossas operações cognitivas. O trabalho de revisão de um texto assume,
portanto, um caráter metalingüístico à medida que se fundamenta
em uma reflexão sobre a estrutura do texto tanto no que se refere à sua
coerência como à sua composição escrita. No processo de revisão de texto
somos, então, confrontados com a propriedade e adequação de nossas
escolhas, e desta forma com nossos erros. Neste sentido, os erros são meios
através dos quais podemos avançar em nosso conhecimento, reorganizando
nossos esquemas cognitivos. Segundo Swenson (1991), para que
uma criança cega mergulhe no processo de letramento e desenvolva uma
escrita funcional e reflexiva é importante que ela passe pelo mesmo processo
de produção textual que os adultos, realizando rascunhos e diversas
revisões de seu texto até sua versão final.
O processo de revisão de texto em Braille
As letras em Braille são formadas a partir da combinação de seis
pontos que compõem o que é chamado de cela Braille. A cela é formada
por duas colunas e três linhas de pontos. A localização dos pontos é dada
de cima para baixo, primeiramente na coluna da esquerda e posteriormente
na coluna da direita e são denominados respectivamente pontos
números 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

Cada combinação de pontos em relevo forma,
portanto, determinada letra ou sinal de pontuação. A letra c, por exemplo,
é formada pelos pontos 1 e 4, como mostra a Figura a seguir.
Por serem formadas a partir da combinação de seis pontos, as letras em Braille são bem mais semelhantes entre si do que as letras do sistema impresso, o que torna o
sistema Braille mais difícil de ser
aprendido (Pring, 1994). Como os pontos devem ficar em relevo, a escrita
na reglete é realizada da direita para a esquerda, para que quando a
folha seja virada as letras estejam em relevo, sendo lidas então da esquerda
para a direita. Quando a criança encontra-se em processo de aquisição
da língua escrita através do sistema Braille ela comete muitos erros
nos pontos, seja por haver confundido a seqüência de pontos de determinada
letra, seja por ter escorregado o punção na hora de escrever. Sendo
assim, além da existência de erros relacionados à escrita da língua portuguesa,
há também erros de outra ordem, relativos ao domínio do
próprio sistema.
Como a escrita das letras em Braille é padronizada, os instrumentos
utilizados possuem especificidades que dificultam a correção de erros.
Não é possível inserir nenhuma letra a mais no meio de uma frase,
como fazemos tranqüilamente na escrita em tinta, quando, por exemplo,
apagamos a palavra incorreta e a reescrevemos em um tamanho reduzido.
O oposto também não é possível, já que ao apagarmos uma letra
excedente em Braille sobra um espaço em branco no meio da palavra.
Além disso, caso queiramos trocar uma palavra por outra, mesmo que
esta tenha o mesmo número de letras, será necessário apagar a palavra
indesejada de forma impecável para que a escrita por cima dela fique
legível. Além do mais, o desejo de escrever algo por cima ou de inserir
um ponto antes omitido em uma letra demanda do escritor o conhecimento
da linha do texto e da frase em que se está o erro, para que, ao
recolocar o papel na reglete, o escritor possa encontrar o erro, já que o
papel fica virado ao avesso no ato da escrita. A técnica de revisão em
Braille é, portanto, bastante complexa. No caso do sistema Braille,
onde há dificuldade, especialmente para as crianças, em apagar palavras
e frases e reescrever por cima de forma legível, a revisão terá inicialmente
sua maior ênfase nas formas gráficas, ou seja, nos aspectos ortográficos
da língua.
Aprendizagem e subjetividade
O conceito que fazemos de nós mesmos é um processo complexo
que se dá ao longo de nossas vidas relacionado à cultura em que vivemos
e às interações sociais que estabelecemos em nossa experiência cotidiana
(Durkin, 1995). A capacidade de tomarmos consciência de quem somos,
de nossos sentimentos, características e potenciais é constituída no contexto
das relações que estabelecemos ao longo de nosso desenvolvimento
em um processo de apropriação e construção conjunta de significações
acerca de nós mesmos e do mundo em que vivemos (Salgado, Pereira &
Jobim e Souza, 2005). A avaliação que a criança faz sobre si mesma nos
diferentes contextos em que atua contribui de forma diferenciada para o
desenvolvimento de sua auto-estima. De modo geral, o conceito que a
criança faz de si mesma tende a se correlacionar com seu desempenho
nos contextos de sua experiência que mais valoriza.
O impacto exercido pela escola na vida da criança vai além daquele
semelhante ao seu desenvolvimento intelectual. Nas relações estabelecidas
com seus professores e pares quando da participação em atividades
conjuntas na escola, a criança pode construir/reconstruir uma representação
para si própria e para suas ações (Cole & Cole, 2004).
As concepções
que as crianças possuem acerca de suas competências como aprendizes
relacionam-se à maneira como compreendem suas dificuldades de
aprendizagem e as de seus colegas, como também ao entendimento das
diversas formas e recursos que possuem para superá-las. Correa e MacLean
(1999) analisaram as narrativas de crianças ao final da classe de alfabetização
acerca do aprender a ler e a escrever.
As crianças que foram bem sucedidas
na classe de alfabetização produziram um número significativo
de histórias relatando o sucesso de um personagem que, como elas, aprendeu
a ler e a escrever e tornou-se motivo de alegria e orgulho para pais e
professores. Por outro lado, a maioria das crianças que encontraram dificuldade
durante o processo de alfabetização simplesmente descreveu a
rotina escolar ou o tipo de atividade realizada pelo protagonista da história
como forma de evitar expressar através dele sua própria experiência
de aprendizagem ou de demonstrar seu aprisionamento a uma seqüência
de atividades inexpressivas para ela. O sucesso no aprendizado foi
percebido pelas crianças como promovendo suas capacidades intelectuais.
As histórias que narraram o insucesso do personagem em aprender a
ler e a escrever sugerem que as crianças perceberam o insucesso como
relacionado às suas características. De forma geral, a criança não aprende
porque é preguiçosa ou incapaz, não tendo se esforçado o suficiente para
aprender, tornando-se, como conseqüência, pouco inteligente.
As vivências escolares têm papel fundamental para a constituição
do sujeito, seus valores, atitudes, sua forma de ver o mundo e a si mesmo.
Os anos escolares iniciais formarão a base das relações que a criança
terá com a escola e com o seu próprio processo de aprendizagem. Tais
conceitos afetam, conseqüentemente, a forma como as crianças irão lidar
com suas experiências seguintes (Pajares & Schunk, 2001). Neste sentido,
a aprendizagem torna-se significativa para o sujeito quando as experiências,
ao invés de limitar o seu desenvolvimento, sua curiosidade e
crença em si mesmo, os expandem. Para isso, é importante levarmos em
conta as capacidades cognitivas dos aprendizes bem como seus interesses,
sentimentos e valores (Mogilka, 2003).
A aprendizagem ocorre de forma efetiva quando há uma implicação
do aprendiz em sua relação com o objeto de conhecimento. É
necessário, portanto, um sujeito ativo na construção de seu próprio conhecimento,
já que a finalidade última de cada intervenção pedagógica
deve ser contribuir para que o aprendiz desenvolva a capacidade de
realizar aprendizagens significativas por si mesmo (Coll, 1994).
A aquisição da língua escrita é uma importante conquista para a
criança, pois representa sua iniciação efetiva no processo de escolarização.
O domínio da escrita é fundamental para que a criança seja bem-sucedida
em sua trajetória escolar já que todo saber formal veiculado na escola
é realizado, primordialmente, por meio da leitura e da escrita. É nesta
importante fase que o aprendiz se depara de forma mais intensa com a
presença de erros em suas produções.
Em realidade, o erro está presente em qualquer processo de aprendizagem,
dentro ou fora da escola. Contudo, o erro não é comumente visto
como parte integrante e imprescindível do processo de aprendizagem. Ao
contrário, é tomado tanto como evidência da incapacidade da criança,
quanto como empecilho ao próprio aprender. De acordo com esta perspectiva,
a presença do erro é tida como pedagogicamente indesejável, devendo
ser, portanto, evitado. Por sua vez, os aprendizes, a cada vez que
se deparam com seus erros, os tomam como sinal de seu fracasso em
aprender. Sendo assim, há que se evitar olhá-lo ou expô-lo. Ao contrário,
sendo o erro inerente ao aprender, sua ocorrência deveria deflagrar um
processo de tomada de consciência que envolveria olhar para esse erro,
refletir sobre ele e aprender com ele. Assim, o erro deveria ser tomado
em seu sentido construtivo, tornando-se algo sobre o qual devemos pensar
e não evitar.
Aprendizagem e desenvolvimento da criança cega
A ação autônoma e o reconhecimento de sua competência são importantes
para o desenvolvimento da criança cega. Conforme argumentam
Cobo, Rodríguez e Bueno (2003), raramente, em seu cotidiano, a
criança cega tem a oportunidade de presenciar uma pessoa visonormal
errando. Entretanto, as pessoas não costumam dizer o quanto, quando e
como erram às crianças cegas. Assim, é possível para a criança cega imaginar
que os visonormais raramente erram. Como conseqüência, a criança
cega pode tornar-se bastante exigente para consigo própria e, então,
intolerante com seus próprios erros (Cobo, Rodríguez & Bueno, 2003).
A criança cega em processo de aquisição da língua escrita utilizando
o sistema Braille se depara com uma dupla dificuldade. O aprendiz
deficiente visual é lembrado no dia-a-dia pelo que não pode, pelos seus
limites, o que por si só já traz conseqüências para o desenvolvimento de
sua auto-estima, dependendo da forma como os adultos em seu contexto
social lidam com suas diferenças. Soma-se a isto, na situação escolar,
os obstáculos encontrados no aprendizado da língua escrita pelo sistema
Braille, um código de escrita tátil que, por suas peculiaridades, torna-se
mais complexo do que o sistema impresso. Desta forma, o sistema Braille
por suas características incita uma maior propensão a erros, além da dificuldade
que é para o aprendiz apagar os erros de sua produção escrita.
Assim, a criança cega que encontra dificuldades neste aprendizado experimenta
uma dupla exclusão. É fundamental, portanto, que a criança
cega estabeleça uma relação positiva com o erro para que sua ocorrência
não afete o conceito que faz de si mesma como aprendiz.
Revisão de texto e reescrita de paradigmas sobre o aprender
Tatiana (nome fictício) tinha 11 anos ao iniciar sua participação
nas Oficinas de Leitura e Escrita, projeto de pesquisa-intervenção realizado
com auxílio da FAPERJ e do CNPq. Tatiana estudava em uma classe
especial de uma escola municipal do Rio de Janeiro há quatro anos e, no
ano seguinte, iria para uma classe regular na mesma escola. Ela apresentava
dificuldade em compreensão de textos e no domínio da escrita ortográfica,
o que comprometia muito o entendimento de seu texto. A partir
das observações realizadas acerca do desenvolvimento de Tatiana em leitura
e escrita, foram iniciadas atividades de compreensão de histórias,
para que, posteriormente, em função do seu progresso em leitura, fosse
enfatizado o desenvolvimento do conhecimento ortográfico por meio da
produção de texto (Nicolaiewsky, 2004). Dadas as dificuldades de
Tatiana com o domínio do sistema de escrita, foram iniciadas atividades
de revisão de texto como forma de desenvolver a sua escrita em busca de
uma maneira de agir mais reflexiva com relação à própria escrita. Uma
vez que Tatiana não dominava como fazer as correções em Braille, foram
seguidas as orientações de Swenson (1991) e sugerido a Tatiana que marcasse
os diferentes erros com diferentes adesivos para sua referência, redigindo
as palavras modificadas em outra folha, que seria, então, anexada
ao texto como uma forma de errata. Tatiana se mostrou bastante apreensiva
com esta proposta, ficando descontente com a quantidade de adesivos
colocados em seu texto, afirmando que havia “errado tudo”, pedindo
para não mais utilizarmos os adesivos. Esta não foi a primeira vez que
Tatiana expressava sua intolerância e frustração com os próprios erros. Era
comum a Tatiana, ao ler sua produção escrita, parar em determinados
erros, dando a clara impressão de que havia percebido que algo estava
errado, e mesmo assim seguir adiante como se nada tivesse acontecido.
A revisão de texto é uma tarefa metalingüística para a qual o debruçar
sobre o próprio erro é fundamental. No entanto, esta não era uma
atividade possível a Tatiana em função do que o erro representava para
ela. Tatiana percebia o erro como uma comprovação de seu fracasso. Desta
maneira, lidar com seus próprios erros era para ela doloroso e insuportável.
Deparamo-nos, assim, com um impasse: Tatiana não conseguiria
continuar o seu processo de aprendizado se não entrasse em contato
com seus próprios erros, e entrar em contato com seus erros significava
para a menina uma experiência frustrante.
Como Tatiana apresentava bastante dificuldade em fazer a revisão
de seu texto devido à ansiedade que sentia em relação aos próprios erros,
lançamos mão de uma adaptação da técnica de inversão de papéis,
freqüentemente utilizada na clínica da Gestalt-terapia. Esta técnica consiste
em propor que o indivíduo se coloque no lugar de outra pessoa, de
forma a propiciar uma maior conscientização de seus sentimentos e pensamentos
e, a partir de um novo olhar, ser possível agir e explorar diversas
alternativas de forma segura, já que o indivíduo se encontra em uma
relação acolhedora (Polster & Polster, 2001). Assim, Tatiana precisaria experimentar
estar em outro papel, daquele que ensina, o que lhe permitiria
lidar com o erro com uma implicação afetiva menor. A partir de uma
nova perspectiva, Tatiana estaria experimentando novas formas de se relacionar
com o erro. Foi proposto a Tatiana, então, ajudar uma criança
imaginária com a revisão de seu texto. As dificuldades de escrita desta
criança imaginária eram bem similares as de Tatiana. Desta forma,
Tatiana não precisaria entrar em contato com os próprios erros, mas com
os erros de um outro, o Rodrigão, como ela espontaneamente o nomeou.
Lançando mão desta atividade, propiciamos também que, neste momento,
Tatiana projetasse no outro, o Rodrigão, aquilo que ela não conseguia
aceitar em si mesma: seus sentimentos relacionados ao fracasso. Assim
sendo, Tatiana poderia, com maior facilidade, entrar em contato com os
erros, já que seria mais fácil lidar com aquilo que lhe incomoda quando
isto é apontado no outro.
Em um primeiro momento foi realizado o jogo dos erros onde,
em diversos pares de frases, Tatiana, por comparação à frase-alvo, deveria
marcar o erro na frase escrita pelo Rodrigão, explicando a razão de sua
marcação. Neste tipo de atividade, na qual existe a possibilidade de comparação,
a frase correta serve de apoio, o que facilita a descoberta do erro.
Nosso papel foi o de estimular em Tatiana seu interesse e curiosidade, ajudando-a sem, no entanto, fornecer-lhe diretamente a resposta. Esta atitude de respeito do
facilitador pelo tempo do aprendiz é fundamental para que o aprendizado aconteça de forma significativa. Assim como na prática psicoterápica é um desserviço ao cliente
fazer algo por ele, retirando- lhe assim sua responsabilidade e privando-o da experiência de aprendizagem e do estímulo resultante de fazer algo por si próprio (Fagan &
Sheperd, 1980), estes mesmos princípios podem ser aplicados às situações didáticas e atividades psicopedagógicas em geral. Dessa forma, propiciar uma reintegração de sua
atenção e conscientização no que
está fazendo permite que a criança possa encontrar suas próprias soluções
através de suas dificuldades (Fagan & Shepherd, 1980).
Em um segundo momento, foram trazidas frases do Rodrigão para
revisão. Cada frase continha apenas um erro que devia ser encontrado e
corrigido. A produção de apenas um erro por frase, nesta etapa, tornava
a tarefa mais fácil, à medida que Tatiana já não contava com o apoio de
uma frase-modelo. Este tipo de atividade foi interessante porque neste
caso o objetivo do jogo era o de encontrar algo que durante toda sua
trajetória escolar Tatiana se esforçou por esconder. Encontrar os erros na
produção do Rodrigão, refletir sobre eles e corrigi-los possibilitou a
Tatiana vislumbrar outra maneira de se lidar com o erro.
As correções nas produções escritas eram feitas de duas formas.
Tatiana reescrevia a palavra corretamente em uma etiqueta e a colávamos
por cima (após apagar os pontos da palavra errada), ou reescrevia a frase
na etiqueta caso a palavra corrigida não coubesse no meio da frase. Optamos
por propor as correções desta forma porque, como explicado anteriormente,
o aprendiz iniciante em Braille geralmente encontra uma dificuldade
dupla: a) apagar os pontos de forma que a reescrita fique legível
e b) achar o local certo na frase para realizar a correção já que o papel
fica virado ao contrário na hora de escrever. Tatiana realizou tais atividades
com interesse e entusiasmo. A diferença em sua forma de lidar com
o erro do outro foi tão significativa que ela pediu para que fosse levada
“mais revisão” nos próximos encontros, “para ficar craque”, o que foi feito
por mais algumas vezes, intercalando-se as atividades de revisão e a
leitura de histórias.
Foi proposto, posteriormente, que Tatiana escrevesse “como o
Rodrigão”, ou seja, que fizesse erros propositadamente em sua escrita.
Esta atividade é também conhecida como tarefa de erro intencional. A
habilidade de errar intencionalmente revela o conhecimento que o aprendiz
já tenha construído sobre as convenções da escrita (Morais, 2000;
Meireles & Correa, 2006). Nosso objetivo, neste caso, não foi só o de
examinar o conhecimento de Tatiana, mas, principalmente, o de propiciar
que o erro fizesse parte da escrita de forma essencialmente lúdica, já
que errar não era apenas permitido, mas demandado. Assim sendo, na
tarefa de erro intencional, o aprendiz recebe a “permissão” de errar, já
que errar faz parte da própria atividade. A tarefa de erro intencional é,
portanto, uma atividade de natureza metalingüística, em que a criança
tem a oportunidade de refletir sobre as diversas possibilidades de transgressões
na escrita. Esta foi uma experiência tão importante que Tatiana
fez questão de fazer o maior número de transgressões possíveis, sentindo
grande satisfação durante a realização da tarefa.
Lançamos mão, também, da atividade em que Tatiana era a professora,
trazendo para correção frases que havia escrito na tarefa de erro
intencional. Dessa forma, Tatiana teria a chance de explicar suas próprias
transgressões. Tatiana se interessou bastante pela atividade. Ela ia lendo
cada frase, dizendo o que estava errado para que a facilitadora, que
fazia o papel do Rodrigão, reescrevesse as frases. Durante a realização da
atividade, Tatiana ia dizendo à facilitadora frases como: “Vai escrever tudo
certinho, você é inteligente”, “Se escrever empastelado (sem espaços entre
palavras) não dá pra entender” e “Muito rápido você erra, escrita é
hora séria”.
De fato, o caráter lúdico de uma atividade permite que a criança
experimente outras formas de solucionar problemas (Kishimoto, 1998;
Vygotsky, 1994). Além disso, brincar de fazer-de-conta possibilita que a
criança explore o seu mundo, aprenda sobre ele e elabore seus sentimentos
acerca do mesmo, além de experimentar novas formas de ser
(Oaklander, 1980). De fato, a inserção do fazer-de-conta nas atividades
psicopedagógicas supracitadas permitiu que Tatiana experimentasse o
contato com o erro de uma nova forma, reconfigurando seus sentimentos
e idéias sobre ele.
A promoção de um contexto onde a criança possa fazer escolhas e
se mostrar de forma mais plena possibilita um desenvolvimento emocional
e cognitivo mais integrado. Dessa forma, as brincadeiras contribuem
para o desenvolvimento de recursos cognitivos e afetivos (Pedroza, 2005;
Zanella & Andrada, 2002). Em um contexto lúdico, os aprendizes passam
a demonstrar mais interesse e curiosidade, expressando seu saber e
deparando-se, também, com o seu não-saber como condição possível, e
não como um obstáculo, para o conhecimento.
A atitude de respeito do facilitador em relação à criança em aprendizagem,
com aceitação plena de suas características e crença em suas
potencialidades, fundamenta-se nos preceitos da relação dialógica
(Aguiar, 2005; Hycner, 1995). Tal forma de agir é importante para o
estabelecimento de uma relação construtiva, na qual, a partir do momento
em que a criança se sente amada e respeitada, a criança também
é capaz de se aceitar, podendo estar mais atenta à forma como se relaciona
com o mundo. Somente por meio desse tipo de relação, onde há uma
aceitação genuína, é possível estabelecer um processo de aprendizagem
realmente significativo (Elias, 2000; Rogers, 1961), já que, através da
relação estabelecida entre o aprendiz e o educador, a criança se perceberá
como sujeito ativo em seu próprio processo de aprendizado. Tatiana, por
exemplo, demonstrou cada vez mais curiosidade e vontade de aprender,
pedindo que fossem levados diferentes gêneros de textos além de histórias
para as Oficinas de Leitura e Escrita: letras de música, uma biografia
de Louis Braille e mesmo frases com mentiras para marcar o dia 1 de
abril, Dia da Mentira.
A partir desta mudança de paradigma em relação ao erro, foi possível
a Tatiana realizar, de forma mais sistemática, a revisão de seus próprios
textos, sem a ansiedade presenciada anteriormente. As atividades
acima descritas permitiram que Tatiana se tornasse mais atenta às suas
dificuldades, não apenas durante a revisão de seus textos, mas também
durante a escrita inicial dos mesmos. Aos poucos, o uso de etiquetas foi
descontinuado em favor das formas convencionais de correção da grafia
em Braille. Para isso, foi preciso levar Tatiana ao entendimento de quando
era necessário retirar ou adicionar determinado ponto para alcançar a
grafia convencional de determinada palavra ou expressão. A prática dessas
técnicas de revisão é fundamental para uma melhor compreensão do
sistema Braille. Tatiana foi, aos poucos, compreendendo a lógica desse
tipo de correção e, ao final do ano letivo, já era capaz de perceber com
facilidade quais pontos estavam faltando e quais estavam em excesso na
sua produção prejudicando a inteligibilidade de seu texto escrito.
Considerações finais
Os resultados observados na produção de Tatiana foram extremamente
significativos. Pôde-se perceber que suas habilidades na leitura e
escrita utilizando o sistema Braille se desenvolveram visivelmente. Tatiana
passou a apresentar uma atitude mais reflexiva na revisão de sua produção
escrita, escolhendo a melhor forma de correção para cada caso e realizando-
a com grande autonomia. Mais ainda, compreendeu que um dos
maiores objetivos da escrita é a comunicação, podendo, a partir de então,
tomar para si o ato de escrever, realizando-o de forma mais responsável,
consciente e atenta a partir do domínio de suas escolhas lingüísticas. Esta
mudança significativa na relação que ela estabeleceu com sua produção
escrita possibilitou uma transformação na compreensão que tinha de seu
próprio aprendizado, instigando seu interesse em aprender mais. Tais
mudanças, como a própria reconceitualização do erro, acarretaram, conseqüentemente,
em uma melhora significativa em sua auto-estima.
Tatiana passou a acreditar em suas potencialidades e a se perceber como
alguém capaz de aprender cada vez mais. A ida à classe regular, que anteriormente
era imaginada com grande grau de ansiedade, pôde ser experimentada
de forma mais tranqüila e confiante, ao afirmar que estava
“indo muito bem” e que “iria passar de ano”.
O percurso realizado por Tatiana nas Oficinas de Leitura e Escrita
guarda em si vários ensinamentos quer sobre o domínio do sistema de
escrita como fundamento das práticas de letramento de crianças cegas,
quer da intrincada relação entre aprendizagem e construção da subjetividade.
Atividades de caráter metalingüístico aliadas ao fazer-de-conta auxiliam
o domínio das convenções do sistema de escrita como instrumento
para o desenvolvimento da habilidade de produção textual através do
desenvolvimento de uma atitude mais implicada e reflexiva com a própria
escrita. A realização de tais atividades em um contexto dialógico permite
o entendimento das dificuldades encontradas como possibilidades
de reconstrução e aprimoramento do conhecimento.
Finalmente, a relação
que a criança cega estabelece com seu processo de aprendizagem exerce
enorme influência no desenvolvimento de sua auto-estima e na constituição
de si mesma como sujeito de seu aprender. As situações de
aprendizagem organizadas para a criança cega funcionam, dessa forma,
como contextos de interação a partir dos quais a criança escreve, revisa e
reescreve sua história de aprendizagem.
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ESCRITA ORTOGRÁFICA E REVISÃO DE TEXTO EM BRAILLE: UMA HISTÓRIA
DE RECONSTRUÇÃO DE PARADIGMAS
SOBRE O APRENDER
autoras:
Clarissa de Arruda Nicolaiewsky [Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).] &
Jane Correa [Doutora em Psicologia e docente do Instituto de Psicologia da UFRJ.]
publicação:
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 229-244, maio/ago. 2008
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20.Out.2013
publicado
por
MJA
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