-
O António vê muito mal, é quase cego! - Disse a mãe, na
secretaria da escola, no dia em que foi matriculá-lo para
frequentar o Jardim de Infância, que fica três ruas abaixo
da sua casa. Não tinha a certeza de que ficaria ali.
Haviam-lhe dito que teria de ir para uma Escola que dista
quase meia hora de sua casa. Tinha feito os três anos,
havia um par de meses, e tentava imaginar tudo aquilo
que o seu filho iria agora enfrentar, interrogando-se sobre
se a escola estaria preparada para o receber e se os
professores saberiam como ensiná-lo. E ele, como é que
se iria adaptar?
-
Quando chega o momento da entrada no Jardim de
Infância ou na Escola, é natural que os pais de crianças
com deficiência se sintam inseguros. De entre as
questões que mais os sobressaltam, em geral, estão a
eventualidade do seu filho não vir a receber o apoio
adequado, ser maltratado por colegas ou ficar em
desvantagem em relação aos seus pares nas diversas
situações de interação e de aprendizagem.
O mesmo acontece com os professores que vão receber
um aluno com deficiência visual na sua turma. O primeiro
impacto pode ser difícil, pois exigirá uma adaptação quer
por parte dos próprios, quer por parte dos colegas.
Tentaremos abordar algumas das principais questões
que preocupam tanto os pais como os professores,
traçando algumas diretrizes básicas para que a inclusão
de alunos com deficiência visual seja melhor
compreendida e facilitada.
A importância da socialização - É consensual que a
escola é o melhor para a criança, sempre! O ser humano
aprende com os seus pares e, nesta convivência, o
cérebro é estimulado. O fato de a criança estar exposta a
esse estímulo, mesmo que não consiga os mesmos
resultados que as outras crianças, faz e, dessa forma,
vai-se estruturando conceptualmente quer em relação ao
ambiente que a rodeia, quer na construção das relações
sociais e afetivas.
Relativamente à criança com baixa visão ou cegueira, o
processo de socialização é, naturalmente, mais
complexo que o da criança normovisual, pois, embora
percorrendo as mesmas etapas, pode ser seriamente
afetado não por fatores intrínsecos à cegueira, mas por
parte da sociedade, o que pode constituir um obstáculo
grave à inclusão plena da criança cega no seu meio
social. Tendo em conta esta realidade, a criança virá a
considerar-se capaz ou incapaz, na medida em que os
outros a considerarem uma coisa ou outra e também na
medida em que, ao agir, toma consciência da sua eficácia
ou ineficácia. O educador atento intervirá reforçando e
estimulando os aspetos positivos, corrigindo os
negativos, mas evitando sempre atitudes quer punitivas,
quer superprotetoras, pois estas são bloqueadoras,
induzindo ou reforçando a inibição na criança, bem como
a expectativa de dependência. Ao desenvolver uma
autoimagem positiva, a criança tenderá a agir, torna-se
eminentemente ativa e, nessa atividade, procurará o
contacto dos outros porque sente e sabe que pode ser
aceite por eles.
É, pois, evidente que se a criança deficiente visual
beneficiar de uma educação em conjunto com crianças
que veem, estarão lançadas as raízes da construção de
um conceito positivo de si própria. Se, pelo contrário, for
educada numa escola especial para cegos, constrói uma
imagem de si própria em que a sua deficiência se destaca
como elemento de diferenciação entre o grupo a que
pertence e os outros. Este facto dificultará
posteriormente a sua integração na sociedade.
Chapman e Stone (1988), citados em Dias (1995),
afirmam, a propósito da educação das crianças com
deficiência visual: “A integração das crianças deficientes
visuais em escolas regulares tem um significado
particular nos termos da integração social e, no
desenvolvimento emocional e social, assume particular
relevo”.
Como princípio, defendemos o benefício da
escolaridade realizada em conjunto, crianças
normovisuais e com deficiência visual, orientada por
educadores com formação adequada. Esta fará salientar
o que de comum existe entre todas as crianças, pois as
diferenças atenuam-se e são os elementos comuns que
passam a ocupar o primeiro plano da imagem de si
próprio, que a criança deficiente visual elabora a partir
das suas relações com o meio humano estimulante e
dinâmico que a escola lhe proporciona. Este facto vai ser
facilitador e determinante para o sucesso da sua
integração social.
Por outro lado, são largamente reconhecidos os ganhos
para os seus pares que veem. Ter um amigo cego ou com
baixa visão, obriga os colegas da turma a ficarem mais
sossegados - afinal, eles sabem que escutar é essencial
para ele. O silêncio em sala de aula acaba por beneficiar
todos, desenvolvendo-se igualmente o espírito de
colaboração - é comum que se estabeleça uma rotina entre os
colegas para ajudarem o seu companheiro com
deficiência visual. Além dessa estratégia estimular a
aprendizagem de todos, a colaboração e a solidariedade
são trabalhadas diariamente. Aliás, estudos comprovam
que alunos que estudam com colegas com deficiência
também aprendem mais. E por que é que isso acontece?
Porque, se a escola se compromete em procurar
soluções alternativas para os processos de
ensino-aprendizagem,
todos os alunos acabam por beneficiar.
Mas quais os modelos de intervenção educativa mais
adequados às necessidades da criança com deficiência
visual? Começamos por identificar as quatro áreas
básicas no seu desenvolvimento:
-
Estabelecimento de
laços afetivos;
-
Desenvolvimento Percetivo-motor;
-
Aquisição da linguagem;
-
Conceito do Eu e noção de
objeto.
(1) Como ser sociável que é, o bebé reage a seres
sociáveis, reage a estímulos, provoca, adapta-se ao
outro e reage ao outro. No caso do bebé cego, este
indicador - interesse e exploração - tem que ser muito
motivado, pois a ausência do sentido da visão isola-o das
primeiras solicitações do mundo exterior, impedindo-o
das vivências naturais.
(2) Deve-se iniciar o bebé a gatinhar com um brinquedo
que role, ajudá-lo a empurrá-lo para a frente e para trás;
empurrá-lo para a frente, com o adulto a apoiar os pés do
bebé com as mãos, e tentar que ele o vá apanhar
gatinhando, incutindo no bebé o desejo de explorar e
manipular tudo o que o rodeia; ajudar o bebé a pôr-se de
pé; colocar os pés do bebé em cima dos do adulto, pegarlhe
debaixo dos braços e andar; colocar uma corda
esticada ao longo das paredes do quarto, à altura da sua
cintura, ajudá-lo a caminhar e mais tarde a correr. Se
houver fontes sonoras nos cantos do quarto, não só será
um incentivo para ele andar, como também uma
referência que vai ajudá-lo a orientar-se.
(3) Quanto à aquisição da linguagem, a criança com
deficiência visual, particularmente a criança cega,
apoiando-se preferencialmente num universo sonoro,
bastante cedo vocaliza, também de um modo
preferencial, a mãe. A aquisição da linguagem oral das
crianças cegas processa-se de modo semelhante à das
crianças normovisuais. Mas sendo a linguagem, uma
componente da organização sensoriomotora
intimamente relacionada com o estabelecimento de laço
afetivos, por vezes, nas crianças cegas, o atraso no
desenvolvimento da linguagem, pode verificar-se como
consequência da pobreza de experiências. É importante
encorajar os diálogos verbais entre os pais e a criança -
mesmo no período pré-verbal - designar sempre as
pessoas, objetos e ações que rodeiam a criança.
(4) Assim, progressivamente, se vai estruturando o “eu”
infantil, primeiro conhecendo os limites do seu próprio
corpo, para depois chegar à distinção do conhecimento
de si próprio e do outro. Algumas crianças cegas
manifestam dificuldades entre o emprego do Eu e do Tu,
bem como em distinguir o apontar as partes do seu
próprio corpo e do corpo do outro, para o que é
indispensável muito treino.
*
O contributo do Jardim de infância - Feitas as aquisições
básicas dos primeiros anos de vida, quando chega ao
jardim de infância, a criança alarga o seu universo
limitado, até aí, ao núcleo familiar. Apartir dos três anos
a
criança aceita brincar com outras crianças, sai do seu
espaço pessoal, confinada a si própria e às pessoas com
quem interage, para se aventurar no espaço dessas
crianças. O jardim de infância desempenha um
contributo importante a este nível, pois proporciona à
criança com deficiência visual vivências que favorecem a
sua estruturação.
No âmbito da motricidade, a realização de atividades
motoras grossas e finas, é de extraordinária importância.
Como foi referido antes, o desenvolvimento motor está
na base do desenvolvimento cognitivo e da linguagem,
sendo também particularmente importante o equilíbrio e
a postura. Com o objetivo de promover experiências
nesta área deve-se ensinar a criança a distinguir os sons,
ajudando-a a reconhecer um som e orientar-se na sua
direção, para mais tarde poder identificar, procurar e
encontrar uma fonte sonora: à direita, à esquerda, em
cima, em baixo; ter a noção da sua posição relativamente
ao local onde os objetos se encontram ou de onde os
sons provêm; obedecer corretamente a ordens; o que
deve fazer das suas mãos quando anda, corre ou salta,
sobe ou desce escadas, adquirindo equilíbrio e ritmo.
Feitas estas aprendizagens a criança cega descobre
como utilizar da melhor forma os seus sentidos,
adquirindo independência nas atividades da vida diária e
a sua curiosidade por tudo o que a rodeia, aumentará. No
entanto, para que a criança possa explorar em
segurança, terá que ser iniciada nas técnicas básicas de
Orientação e Mobilidade (OM), com ou sem bengala, e
que são fundamentais para uma deslocação
independente. As vantagens são extraordinariamente
significativas:
-
Beneficia a maneira de andar e a postura.
-
Promove o movimento - sente-se mais confiante,
segura e ativa.
-
Favorece a exploração do meio ambiente e
desenvolve conceitos.
-
Influencia as atitudes - as crianças estão mais abertas
às inovações e menos preocupadas com as opiniões dos
outros pelo que a bengala passa rapidamente a ser um
objeto de uso comum da criança e os colegas a
encararão com naturalidade.
-
Facilita a autonomia - a capacidade de andar sozinha,
torna a criança muito independente; ao saber deslocarse
sozinha sente-se confiante e será apreciada pela
sociedade em geral.
O processo de OM não deve ser confundido com a
aprendizagem exclusiva do uso da bengala, uma vez que
envolve muitas outras estratégias e recursos. OM é uma
atividade motora e pode ser definida como um processo
amplo e flexível, composto por um conjunto de
capacidades motoras, cognitivas, afetivas e sociais e por
um elenco de técnicas apropriadas e específicas, que
permitem ao aluno conhecer, relacionar-se e deslocar-se
de forma independente e natural nas mais diversas
estruturas, espaços e situações do ambiente. A criança
estará pronta para aprender a técnica de bengala, quando
reúne dois requisitos:
(1) conseguir pegar na
bengala
(2) e ter equilíbrio suficiente para andar sem
apoios físicos.
Outra atividade característica do jardim de infância é
o
jogo, a partir do qual se estabelece a comunicação livre
dentro do grupo. O jogo social tem a sua primeira
expressão no jogo entre os pais e a criança, sendo depois
desenvolvido entre as próprias crianças. A grande
importância que se lhe atribui, para o desenvolvimento da
criança, deve-se ao facto de facilitar a comunicação,
tanto ao nível da linguagem verbal como do próprio
contacto físico, que para a criança cega é a forma mais
apropriada de conhecer o outro. A criança fica mais
sociável e vai criando amizades dentro do grupo. Em
síntese, é necessário que a criança com deficiência
visual cumpra, no jardim de infância, um programa
adequado ao nível do treino tátil, auditivo e olfativo, que
tenha experiências de contacto com o braille, através da
utilização de etiquetas com o seu nome, livros escritos
em Braille, da criação de um ambiente verbal, da
realização de experiências cada vez mais ricas
(situações de vida diária e jogo). É particularmente
importante que ela desenvolva:
1-
Capacidades motoras - desenvolvimento da
coordenação física geral, motricidade grossa e fina,
coordenação da manipulação dependente de um
estímulo táctil.
2-
Capacidades da linguagem - para aprender a ler, a
criança tem que estar apta a partilhar ideias,
pensamentos e experiências através da linguagem
falada, estimular experiências orais e conceptuais
planificadas para desenvolver a capacidade de
comunicação com intenção e fornecer um bom nível de
informação. A compreensão da linguagem falada é um
requisito básico para o ensino do braille, pois a sua
leitura
exige a associação de um símbolo abstrato encontrado
na página, com os sons que a criança já ouviu pronunciar.
3-
Capacidades discriminativas e percetivas - a
discriminação e perceção são os pré-requisitos mais
importantes da leitura. Sendo o jogo uma forma natural
da criança agir, é também a sua maneira de trabalhar e
aprender o que necessita, para participar na vida em
sociedade. Todos os conhecimentos que a criança cega
adquiriu através do jogo, constituem-se como alicerces
fundamentais para as aprendizagens futuras.
Efetivamente, as atividades do jardim de infância são tão
ricas e diversificadas que, quando bem orientadas, uma
criança cega poderá começar a sua escolaridade com
um nível idêntico à criança que vê.
Antes de terminar, gostaríamos de referir algumas das
condições indispensáveis para a participação dos alunos
cegos ou com baixa visão na escola, nomeadamente
quando iniciam os processos formais de aprendizagem
da leitura e da escrita. Estes alunos necessitam,
obrigatoriamente, de materiais especiais (adaptados)
que possibilitem a aprendizagem, como livros em braile
ou ampliados, a máquina de escrita braile ou folhas e
cadernos com pautas largas. As fichas de trabalho ou de
avaliação também devem ser adaptadas.
A escola deve
providenciar esses materiais, solicitando-os, por
exemplo, ao Centro de Recursos da Educação Especial
(DSEEAS), da Direção Geral de Educação. Outra
alternativa passa pela solicitação de uma avaliação do
aluno, à equipa do Centro de Recursos TIC para a
Educação Especial (CRTIC), cuja área geográfica de
intervenção, abranja a Escola em que o mesmo se
encontra, para atribuição de produtos de apoio (máquina
de Braille Perkins, computadores, software leitor de ecrã,
cubarítmo, lupas, etc.).
Ainda que seja possível e, na opinião de muitos,
preferível, que os alunos com deficiência visual
frequentem as Escolas da sua área de residência, o que
acontece, de facto, é que, nessa circunstância,
dificilmente conseguem os recursos humanos e
materiais necessários à sua plena inclusão e
aprendizagem. Assim, de modo a conseguir-se uma
melhor gestão de recursos, em Portugal, foi criada uma
rede de escolas de referência para a inclusão de alunos
cegos e com baixa visão, com vista a concentrar os meios
humanos e materiais que possam oferecer uma resposta
educativa de qualidade a estes alunos. Por essa razão, a
maioria das crianças cegas ou com baixa visão são
encaminhadas para estas Escolas que, em muitos casos,
ficam bastante afastadas da sua zona de residência. São
os serviços municipais que, por solicitação das Escolas,
asseguram o seu transporte, obrigando à sua
permanência na escola, por vezes, muito para além do
seu horário letivo, enquanto esperam para regressar a
casa. Tendo em conta esta realidade, os horários destes
alunos devem, sempre que possível, contemplar os
apoios necessários complementares a uma educação
integral com vista ao desenvolvimento da sua autonomia
e facilitadores da sua inclusão escolar e social. Os treinos
de orientação e mobilidade, atividades de vida diária, ou
de atividades físicas adaptadas devem estar
contemplados neste horário extracurricular.
A entrada ou regresso do aluno com deficiência visual na
ou à escola remeter-nos-ia para um conjunto vasto de
reflexões que não couberam neste espaço. Um destes
dias recuperaremos algum deste tempo para
continuarmos esta partilha. LB
ϟ
Margarida Loureiro é Docente de Educação Especial, especializada em
Problemas de Visão. Assessora Técnico Pedagógica na
Pró-Inclusão–Associação Nacional de Docentes de
Educação Especial
fonte: Revista Louis Braille – Revista especializada para a
área da deficiência visual, n.º 19 (2016)
Δ
7.Set.2017 publicado
por
MJA
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