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 Sobre a Deficiência Visual

O Ensino de Física a Alunos Cegos ou com Baixa Visão

Eder Pires de Camargo
 

 
RESUMO | O ensino de física para alunos cegos apresenta barreiras naturais quando os métodos tradicionais são utilizados em sala de aula. Este artigo apresenta uma alternativa para estimular o aprendizado de física por parte de alunos cegos.


É possível ensinar física a alunos cegos ou com baixa visão? Minha vivência pessoal e meus estudos indicam que sim, principalmente se alguns cuidados forem tomados. Em primeiro lugar, é preciso criar ou adaptar equipamentos que emitam sons ou possam ser tocados e manipulados. Isto é necessário para que o aluno consiga observar o fenômeno físico a ser estudado. Em segundo lugar, o professor deve evitar o uso de gestos, figuras e fórmulas que somente podem ser vistos. Isso significa que o professor deve usar materiais de apoio em braile, gráficos em relevo, calculadora falante e, quando preciso, tocar nas mãos dos alunos para apresentar-lhes alguma explicação.

Para auxiliar os professores de física que possuem em sua sala de aula alunos cegos ou com baixa visão, apresento neste artigo três atividades para o ensino do conceito de aceleração.

Quando elaborei essas atividades, procurei tomar o cuidado para que o aluno com deficiência visual participasse ativamente, quer dizer, observasse os fenômenos, as explicações do professor e, principalmente, apresentasse suas interpretações. Tenho verificado que é muito importante que o aluno com deficiência visual fale aquilo que já sabe e que está aprendendo. Por isso, sugiro aos professores que incentivem seus alunos a falar sobre o assunto trabalhado em classe. Para tanto, organizem momentos de debates entre os alunos, valorizem suas idéias e interpretações, procurem compreendê-las e procurem se fazer compreendidos. Na seqüência, apresento as atividades.
 

Atividade 1:
o atrito e o conceito de desaceleração

Esta atividade tem por objetivo dar ao aluno com deficiência visual condições de:

a) Compreender o atrito como resultado do contato e do deslizamento de uma superfície sobre outra.

b) Observar tatilmente o comportamento do movimento de blocos de madeira sobre superfícies de diferentes polimentos.

Para atingir os objetivos apresentados, utilize os seguintes materiais:


Kit 1

- Três superfícies, sendo uma áspera como uma lixa, outra bem lisa, e uma outra com um polimento intermediário;
- Blocos de madeira em formato de paralelepípedo, de mesmas superfícies e diferentes massas. Sugiro usar blocos de madeira com massas de 100g, 300g, e 500g.
 


Foto 1. Blocos de diferentes massas sobre as superfícies.

 

Kit 2

- Uma superfície de apoio enrugada;
- Um objeto com a superfície de apoio enrugada. Tanto a superfície quanto o objeto, devem permitir ao aluno com deficiência visual observar com o tato suas saliências.

Para construir as superfícies enrugadas, utilizei pequenas pedras. Pode-se, por exemplo, utilizar pedras de asfalto. Cole as pedras nas superfícies como indicado na Foto 2.

 


Foto 2. Bloco enrugado sobre a superfície enrugada.  

 

Kit 3

(a) Um pedaço de cabo de vassoura de 30 cm de comprimento, fixo perpendicularmente a uma pequena tábua de 30 cm de comprimento por 20 cm de largura. Este objeto representa uma reta normal a uma superfície;


Foto 3. Representação de uma reta normal à uma superfície.  
 

(b) Três pedaços de madeira de 5 cm de largura por 15 cm de comprimento, fixos paralelamente a uma pequena tábua de 30 cm de comprimento por 20 cm de largura. Este objeto representa retas paralelas.


Foto 4. Representação de retas paralelas.

 

A condução da atividade

Pode-se conduzir a atividade em quatro etapas.

Etapa de experimentação. Nesta etapa, siga os seguintes procedimentos:

(a) Separe os alunos em grupos de 4 alunos e distribua para cada grupo o Kit 1;

(b) Leia para seus alunos o problema central da atividade;

(c) Solicite aos alunos para que empurrem os diferentes blocos de madeira em diferentes posições sobre as superfícies lisas e ásperas, e para que percebam tatilmente o que ocorre com o movimento desses blocos nas diferentes superfícies.

Questões centrais da atividade (1):

- Quais são os principais fatores que influenciam o movimento do bloco? O “peso” do objeto é importante? Seu formato é importante? Ambos são importantes? Como podemos descobrir?
- Como se pode notar no problema central, utilizei o termo “peso” em vez de “massa”. Tomei esta decisão porque a idéia de peso é mais comum aos alunos do que a de massa. Mas, ao longo da atividade, o professor poderá ir esclarecendo aos alunos os significados desses conceitos físicos.

Etapa de discussão de problemas: Organize um debate entre os grupos para que eles apresentem suas opiniões sobre aquilo que observaram.

Etapa de exposição de modelos: Para explicar aos alunos a relação entre o atrito e a aceleração, faça-os tocar nos materiais do Kit 2. Em seguida, diga a eles que as superfícies dos referidos materiais representam superfícies ao nível atômico ampliadas. Explique-lhes que o atrito surge devido a irregularidades existentes entre as superfícies em contato. Complemente suas explicações lendo aos alunos o texto sobre o atrito.

Etapa de avaliação: Leia aos alunos a questão avaliativa da atividade e ouça suas respostas.

Questão avaliativa: Como uma pessoa, em repouso sobre a superfície gelada e muito lisa de um lago, poderia alcançar a margem?

É importante não considerar as respostas dos alunos como definitivas. Eles poderão estar modificando suas formas de pensar em momentos fora da aula. Para isto, procure fazer anotações sobre pontos principais das respostas dos alunos. Utilize essas anotações para comparar as respostas dos alunos apresentadas na primeira atividade com as respostas apresentadas nas atividades seqüentes. Por exemplo, a ativ. 2 aborda novamente o tema da aceleração. Verifique se nesta atividade seus alunos utilizarão conhecimentos elaborados por eles ou apresentados por você na atividade 1.


Texto sobre o atrito

Para iniciarmos o movimento de um bloco que está apoiado sobre uma superfície, sentimos uma certa resistência. Geralmente, assim que o movimento do bloco se inicia, essa resistência diminui. Isto ocorre porque quando fazemos a superfície de um corpo escorregar sobre a de outro, cada corpo exerce sobre o outro uma força paralela às superfícies. Essa força é denominada força de atrito. A força de atrito sobre cada corpo tem sentido oposto ao seu movimento em relação ao outro corpo, e dessa forma as forças de atrito se opõem ao movimento, nunca o favorecem.

Em nosso dia a dia, o atrito exerce uma função fundamental. O início do movimento de um carro, por exemplo, só é possível porque existe uma força na direção e no sentido do movimento do mesmo. O processo é basicamente o seguinte: a queima do combustível no motor provoca o movimento de pistões, que é transmitido para as rodas e, consequentemente, para os pneus.

Estes, através de uma força de contato, empurram o chão para traz, e o chão, empurra o carro para frente. Sem a força exercida pelo chão, o carro não sairia do lugar e os pneus deslizariam sobre o asfalto. Se não houvesse o atrito, ou seja, se tudo fosse muito liso e escorregadio, caminhadas, corridas, passeios de carro, de ônibus etc., se tornariam quase impraticáveis.

Segurar um punção ou mesmo ler um texto em braile seriam tarefas complexas. O que diferencia uma determinada superfície de outra é a natureza dessa superfície, bem como sua condição de polimento e de lubrificação.

Entretanto, como representado no Kit 2, ao nível atômico, mesmo a superfície mais cuidadosamente polida está longe de ser plana. Portanto o atrito depende do grau de polimento dos materiais que formam os objetos e da lubrificação entre eles. Se as superfícies de contato forem polidas e lubrificadas, a intensidade dos contatos nas uniões será menor, diminuindo a força de atrito.

Dessa forma, para atenuar os efeitos do atrito, costuma-se colocar lubrificantes entre as duas superfícies, pois, os óleos diminuem os números de uniões entre as mesmas.



Atividade 2:
queda dos  objetos

Esta atividade possui dois objetivos:

(a) Dar condições para que o aluno com deficiência visual ouça e perceba tatilmente a queda de um objeto.
(b) Dar condições para que o aluno com deficiência visual calcule a velocidade e a aceleração de queda do objeto.

Para atingir os objetivos apresentados, construa um artefato para que seus alunos possam notar por meio da audição e do tato a aceleração de um objeto durante sua queda. Sugiro um equipamento elaborado em meu doutorado e que denominei: “Interface sonora para queda dos objetos”.

Esse equipamento permite que alunos com deficiência visual percebam auditiva e tatilmente a queda de um disco dentro de um tubo. Além disto, o artefato registra em relevo o movimento de queda do disco. Este registro permite aos alunos fazer cálculos de velocidade e aceleração da queda. Para construir o artefato mencionado, utilize os seguintes materiais:

a) Tubo de PVC de 1,8 m de altura com 102 mm de diâmetro interno.


Foto 5. Tubo de PVC do artefato: interface sonora para queda dos objetos.
 

b) Sensores magnéticos para alarme.

c) Um disco metálico e um imã.
 


Foto 6. Disco metálico preso à fita de papel.


d) Chapa dobrada.

e) Bobina, oscilador e potenciômetro.

f) Fita de papel para marcador de tempo. Utilize um pedaço de fita de papel de 2 m de comprimento com marcações em alto relevo de 1 cm. Essas marcações, feitas ao longo de toda fita, têm por objetivo fazer com que o aluno com deficiência visual obtenha as distâncias entre os pontos marcados na fita de papel pelo marcador de tempo.



Foto 7. Fita de papel com as marcas superiores e as marcas feitas pelo vibrador (marcas centrais).
 

g) Um fio de nylon de aproximadamente 3 m de comprimento. Esse fio tem por objetivo retirar o disco de dentro do tubo após a queda do mesmo. Além disso, ele pode ser utilizado para controlar com as mãos a velocidade de queda do disco.

 

Para montar o artefato, perfure o tubo a cada 15 cm e, nesses furos, coloque os sensores magnéticos para alarme. No topo do tubo, coloque uma chapa dobrada por onde o papel (fita para marcador de tempo) passará durante a queda do disco. Ainda no topo do tubo prenda a bobina com o oscilador e o potenciômetro e ajuste a freqüência mais adequada de impacto para a agulha que perfurará o papel enquanto o disco cai dentro do tubo.

Este equipamento permitirá que o aluno com deficiência visual observe auditivamente a queda do objeto dentro do tubo. Permitirá também que se realizem análises quantitativas do movimento de queda.  


Para conduzir a atividade, siga os seguintes passos:

(a) Separe os alunos em grupos de no máximo três pessoas. Cada grupo de alunos deverá realizar o experimento de deixar cair o objeto dentro do tubo, ouvindo dessa forma a queda do mesmo. Em seguida, os grupos de posse da fita de papel poderão seguir os passos descritos abaixo.

(b) Escolha uma unidade de tempo qualquer. Quando apliquei a atividade em uma sala de aula com alunos com deficiência visual, escolhi como unidade de tempo cinco batidas do vibrador.
Denominei cada batida de tique. Assim, minha unidade de tempo ficou sendo “cinco tiques”. Depois, os grupos deverão numerar a fita de papel com intervalos inteiros de unidade de tempo. Para tanto, reforce com a ajuda de um instrumento pontiagudo as marcas escolhidas e deixadas na fita de papel pelo marcador de tempo. É preciso que se reforce as marcas para que os alunos com deficiência visual consigam percebê-las bem. Se esta atividade for aplicada em uma sala de aula que tenha alunos com e sem deficiência visual, os colegas videntes poderão auxiliar seus colegas com deficiência visual nesta tarefa.

(c) Solicite aos alunos para que, com o auxílio das marcas de 1 cm em relevo, meçam o comprimento de cada intervalo numerado na fita de papel.
Aproveite este momento para fazer algumas perguntas a seus alunos: Esses comprimentos são iguais? Por quê? A diferença entre cada intervalo consecutivo é constante? Qual é o significado físico desses comprimentos?

(d) Solicite aos alunos para que calculem a velocidade média em cada intervalo, e o valor da variação da velocidade em cada intervalo consecutivo. Para isto, instrua-os para subtraírem o valor da velocidade média, em um intervalo de tempo, pelo valor da velocidade média no intervalo anterior. Repita este procedimento em vários intervalos e compare os resultados. Neste momento, você pode apresentar aos alunos a questão: A variação da velocidade foi constante?

(e) Solicite aos alunos para que calculem a aceleração em cada intervalo. Para isso, instrua-os a dividir a variação da velocidade pelo intervalo de tempo correspondente a essa variação (cinco tiques).

Para os cálculos, os alunos poderão utilizar uma calculadora falante ou o material em braile. Quando apliquei esta atividade em uma sala de aula com alunos com deficiência visual, notei que eles faziam bem os cálculos e decoravam os valores obtidos. Mas isso pode não acontecer com seus alunos. Se for preciso, ajudeos com os cálculos e com os registros dos valores. Mais uma vez, o professor deve incentivar a participação dos alunos videntes nos cálculos e no registro dos valores, no caso de se trabalhar com uma classe que tenha alunos com e sem deficiência visual. É muito importante o contato entre eles nas atividades em sala de aula.


Avaliação

Depois dos alunos terem realizado as medidas e cálculos anteriormente mencionados, leia para eles a seguinte questão avaliativa:
- Como seriam as marcas deixadas por um vibrador em uma fita de papel presa a um objeto que se move com velocidade constante?  

Para finalizar, organize um debate entre os alunos sobre a questão avaliativa.

Aproveite o debate para observar a compreensão dos alunos sobre o fenômeno gravitacional. Procure observar se as aprendizagens obtidas na atividade (a) foram utilizadas pelos alunos durante este debate. Lembrese, o processo de aprendizagem não é uniforme, e muitas vezes ocorre em momentos de reflexão fora da sala de aula. Proporcione problemas interessantes para que seus alunos pensem durante a semana ou entre uma atividade e outra. Isto é algo muito importante para a qualidade da aprendizagem de seus alunos.



Atividade 3:
problemas com muitas respostas - posição de encontro

Esta atividade tem por objetivo trabalhar um problema com muitas possibilidades de respostas. Este problema apresenta um evento sonoro que descreve uma possível colisão entre um trem e um carro. Como o professor vai notar, as soluções do problema exigem a análise do fenômeno físico envolvido, a formulação de hipóteses e a realização de várias tentativas e aproximações. Utilize os seguintes materiais durante a realização desta atividade:

a) Rádio para tocar CD ou fita.
b) A gravação do evento sonoro (em CD ou fita cassete).

Evento sonoro: Um carro se aproxima de uma ferrovia. O motorista nota por meio do som do apito e das rodas do trem o movimento do mesmo. Conseguirá o motorista do carro frear o veículo para que não haja colisão?
[Este evento sonoro foi gravado em um estúdio e está disponível para download em http://www.fc.unesp.br/pos/ciclos/index.htm . Deve clicar em download e depois no arquivo audio9.mp3].


Para conduzir esta atividade, siga os procedimentos descritos:

a) Separe os alunos em grupos de quatro e apresente-lhes a gravação do evento sonoro.
b) Proporcione aos alunos um momento de reflexão e discussão sobre a questão do evento: “Conseguirá o motorista do carro frear o veículo para que não haja colisão?”
c) Proporcione um momento para o debate entre os grupos. Como esta atividade apresenta um problema com muitas possibilidades de respostas para uma possível colisão entre um carro e um trem, ela pode proporcionar aos alunos condições para a realização de um estudo qualitativo acerca da posição de encontro de veículos. Incentive seus alunos a apresentar respostas sobre o evento sonoro. Valorize as respostas de todos os alunos. Organize essas respostas; se for o caso, destaque as diferenças entre as respostas, promova momentos de reflexão entre os alunos. Após um certo tempo de discussão faça sínteses, inclusive para chegar a situações físicas mais específicas como o movimento com aceleração constante.

Se houver dúvidas sobre algum ponto das atividades, não deixe de entrar em contato comigo pelo e-mail camargoep@dfq.feis.unesp.br

 

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O Ensino de física para alunos cegos ou com baixa visão
in Física na Escola, v. 8, n.º 1, Maio 2007
[Suplemento da Revista Brasileira de Ensino de Física]
Eder Pires de Camargo
[Departamento de Física e Química - Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista]
Fonte: http://www.sbfisica.org.br/fne/Vol8/Num1/v08n01a08.pdf

 

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22.Set.2008
publicado por MJA