Homens cegos - foto de Aleksey Myakishev,
1995
1. Significado e
Importância do Sistema Braille
Ler e escrever, permitindo a apropriação
individual da língua escrita e de todo o enorme potencial sociocultural que ela
representa, constituem aquisições intelectuais de valor inestimável na assimilação de
informações e experiências significativas, na compreensão do mundo envolvente e na
comunicação entre o sujeito e esse mesmo mundo.
1.1. Criação do Sistema Braille e sua
Natureza
Até ao aparecimento do Sistema Braille na
primeira metade do Séc. XIX, os indivíduos cegos encontraram vedado o acesso à leitura
devido a barreiras de ordem perceptivo-sensorial não raro erradamente interpretadas como
resultantes de limitações de ordem cognitivo-intelectual por filósofos e pensadores de
inequívoca respeitabilidade. Caberia à célebre tríade francesa constituída por
Valentin Haüy, Bartier de la Serre e Louis Braille o conjunto de contributos que
removeriam os obstáculos até aí intransponíveis, possibilitando a criação de um
sistema de leitura/escrita assente no tacto e absolutamente adequado às suas
características psicofisiológicas.
Na realidade, o Sistema Braille, cuja primeira
versão foi publicada em 1829 após alguns anos de experimentação e aperfeiçoamento,
consubstanciou uma dupla revolução conceptual face aos procedimentos anteriormente
adoptados: Em primeiro lugar, substituiu o traço, que não se acomoda às
características fisiológicas do tacto, pelo ponto, facilmente percebido e interpretado
pelos cerca de setecentos mil receptores disseminados por toda a superfície da pele; por
outro lado, numa prodigiosa intuição antecipatória relativamente às descobertas da
moderna Psicofísica, encontra-se perfeitamente ajustado de modo a que cada símbolo não
exceda jamais o âmbito perceptivo correspondente à polpa de um só dedo.
De facto, o dimensionamento adoptado torna o
carácter Bralile suficientemente grande de forma a que a componente perceptiva envolvida
não constitua uma barreira adicional susceptível de acarretar excessivas dificuldades no
processo de descodificação e um consequente aumento indesejável do número de erros de
identificação, e suficientemente pequeno para caber na área mais sensível da polpa do
dedo sem necessidade de movimentos laterais ou verticais de confirmação que
constituiriam inevitavelmente um sério obstáculo a uma leitura minimamente rápida e
fluente.
1.2. Actualidade e Valor
Essencial do Braille
Esta perfeita adequação "ergonómica" e
psicofisiológica, paralelamente a uma incrível simplicidade, facilidade de utilização,
sistematização, coerência lógica e grande equilíbrio geral, conferem ao Braille uma
incontestável actualidade e significado sociocultural e fazem dele um instrumento de todo
insubstituível na vida pessoal, social e profissional dos deficientes visuais, como é
devidamente realçado num importante documento de trabalho publicado em Agosto de 1998
pela parceria UNESCO/IFLA. Segundo o referido documento, o Braille é reconhecidamente o
único meio "natural", "universal" e indispensável
de leitura para as pessoas privadas de visão, e confere àqueles que o usam como sistema
original de leitura/escrita e o utilizam intensivamente, maior capacidade para desenvolver
hábitos de leitura estáveis, ascender a graus superiores de formação académica e
obter maior sucesso profssional.
Por seu turno, a Conferência Iberoamericana
del Braille, realizada em Buenos Aires em Setembro de 1999, salientou a importância
fundamental do Braille no reforço da identidade pessoal, auto-estima, autonomia e
integração social dos indivíduos cegos, considerando o livre exercício desse sistema
"um direito que deve proteger-se e tornar-se acessível a todos".
175 anos após a sua criação, e a despeito dos
inestimáveis contributos das novas tecnologias, o Sistema Braille continua a impor-se
como a ferramenta fundamental para a verdadeira alfabetização e um recurso
indispensável na educação das crianças deficientes visuais. Ajustando-se perfeitamente
às características estruturais, fisiológicas e psicológicas da percepção táctil, os
símbolos Braille são apreendidos enquanto totalidades significantes e transmitidos como
imagens unitárias e coerentes ao cérebro, constituindo-se como um código essencialmente
paralelo ao utilizado na leituratescrita vulgar. Nesta medida, afigura-se primordial que o
ensino/aprendizagem do Braille permaneça como espinha dorsal dos curricula das crianças
e jovens deficientes visuais, seja qual for a estrutura educativa em que estejam
inseridos.
1.3. O Fenómeno de
"Desbraillizaçãa" e suas Principais Causas
A natureza indiscutivelmente irrefutável dos
pressupostos psicopedagógicos acima delineados não impede que venhamos a assistir a um
movimento surdo de crescente "desbraillização", que ameaça converter a
próxima geração de indivíduos cegos em autênticos analfabetos funcionais, ouvintes
talvez hábeis, mas incapazes de aceder à língua escrita que constitui a chave para um
conhecimento baseado numa efectiva compreensão e interpretação do mundo actual, em que
a comunicação e o acesso a uma informação cada vez mais complexa, variada e abundante
assumem um papel absolutamente prioritário.
Se parece legitimo admitir como uma das causas
desta crescente "desbraillização" o generalizado e nunca excessivamente
denunciado fenómeno de iliteracia que vai ganhando foros de problema mundial, não
podemos deixar de identificar dois outros aspectos que se nos afiguram fulcrais na génese
do fenómeno de "desbraillização". Por um lado, o galopante recurso ao suporte
sonoro e às novas tecnologias que, representando um excelente pretexto para justificar a
indiscutível falta de preparação de técnicos e professores no domínio da pedagogia do
Braille, contribuem, sob o ponto de vista psicológico, para acentuar e reforçar
decisivamente a não aceitação da cegueira enquanto característica desviante e
potencialmente segregadora, e, em última análise, a recusa mais ou menos assumída do
Braille enquanto instrumento estigmatizante, gerador de angústia e ansiedade, causa de
frustrações, conflitos e situações traumáticas que se acentuam num regime de ensino
integrado. Por outro lado, há que realçar as ainda insuficientemente avaliadas
consequências de um sistema educativo que sempre menosprezou as questões ligadas à
especificidade do Braille enquanto código de leitura/escrita com características
próprias, e a consequente deficiência de formação de professores neste sector
fundamental.
2. Influência do
Contexto/Sistema Educativo em que se Enquadra o Ensino/Aprendizagem do Braille
O tipo de estrutura organizativa em que tem lugar o
ensino/aprendizagem do Braille merece uma abordagem particular, na medida em que
influencia decisivamente quer a situação psico-emocional e psicossocial do aluno, quer
as circunstâncias primordiais em que o processo ocorre, uma vez que condiciona
indubitavelmente os recursos materiais disponíveis (livros, material didáctico,
equipamentos de compensação, etc.) e os próprios recursos humanos intervenientes no
processo. Dadas as profundas diferenças que marcaram a evolução do chamado Ensino
Especial nos diferentes países, cingir-nos-emos mais estritamente à situação
portuguesa, procurando salientar os aspectos que se nos afiguram de maior relevância.
2.1. A Escola Especial
A escola especial, que entre nós dominou o
panorama educativo no que respeita ao ensino dos cegos até cerca de finais da década de
60, representava por excelência uma estrutura segregada, em que os alunos deficientes
visuais eram retirados do seu meio familiar e social natural e circunscritos a um ambiente
fechado e artificialmente homogéneo, em cujo âmbito se relacionavam exclusivamente com
outras crianças portadoras da mesma deficiência.
Nestes estabelecimentos, o Braille, se não era
abordado com grande rigor pedagógico, gozava pelo menos da força que lhe advinha de uma
intensa tradição tiflológica e do exemplo poderoso constituído por professores e
alunos, utentes conscienciosos e por vezes fervorosos do sistema, sendo portanto algumas
insuficiências pedagógicas facilmente compensadas pelo contacto com bons leitores. Por
um lado, cada aluno não era psicologicamente forçado a praticar um código de
leitura/escrita diferente do dos seus companheiros, logo o Braille não revestia um
carácter propriamente estigmatizante; por outro lado, a escola armazenava um corpus
constituído por uma série de saberes acumulados e reunia com certa facilidade um stock
de equipamentos e materiais didácticos que favoreciam o ensino/aprendizagem do Bralile.
Este tipo de modelo organizativo, segregado,
monolítico, fechado sobre si mesmo e eminentemente ligado a uma perspectiva assistencial
e obsoleta, seria inevitavelmente posto em causa pela evolução sociopolítica que veio
alterar radicalmente os conceitos e práticas educativas vigentes e que culminaria com a
chamada democratização do ensino e daria lugar à moderna "escola para todos".
2.2. Do Ensino
Integrado à Escola Inclusiva
Por ruptura completa e radical com as estruturas
precedentes e sem que delas bebesse quaisquer experiências e ensinamentos
técnico-pedagógicos, nem mesmo nas áreas em que o seu mérito se afigurava mais ou
menos indiscutível, sucedeu o chamado ensino integrado, correspondendo dalgum modo à
assunção da responsabilidade pelo ensino dos deficientes visuais por parte do
Ministério da Educação, que até aí o havia encarado como do âmbito da Assistência
ou da iniciativa de instituições privadas de cariz filantrópico.
No novo modelo organizativo, os professores,
normovisuais com um conhecimento recente do Braille, não eram seus utilizadores directos,
não existia já uma tradição tiflológica enquadradora da leitura táctil, e os alunos
deixaram de usufruir da influência benéfica proporcionada pelo exemplo tangível de
outros praticantes do mesmo sistema de leitura. Potencialmente integrados no seu meio
familiar e social, os estudantes deficientes visuais passaram a confrontar-se com modelos
realistas e diversificados do mundo envolvente, mas, em contrapartida, viram-se condenados
a estranha condição de "únicos", não dispondo mais da influência
psicologicamente equilibradora proporcionada pelo constante intercâmbio relacional com
parceiros portadores de idêntico handicap, e usando um código de
leitura/escrita não partilhado por colegas nem professores, logo com um potencial
estigmatizante dificilmente tolerável e compatível com a construção de uma
personalidade ajustada e harmoniosa.
Ao defender-se, como princípio fundamental, a
integração de cada aluno deficiente visual no estabelecimento escolar mais próximo da
respectiva residência, optou-se consequentemente por um modelo de apoio educativo assente
em professores itinerantes que, dispersando-se por uma determinada área geográfica mais
ou menos ampla, passaram a assegurar um acompanhamento naturalmente intermitente e
variável em função do número de escolas abrangidas e da quantidade de alunos
correspondente. Como é óbvio, a este apoio itinerante inevitavelmente de baixa eficácia
correspondeu um reduzido nível de investimento por parte das próprias escolas e
respectivo corpo docente, facilmente compreensível se pensarmos que se poderiam passar
vários anos sem que um novo aluno com idêntica deficiência voltasse a frequentar o
mesmo estabelecimento de ensino. Nesta fase, os professores de apoio educativo,
agrupando-se de modo a conjugar as diferentes valências de formação necessárias,
integravam as chamadas Equipas de Educação Especial, que dispunham de uma certa
autonomia para gerir os respectivos recursos materiais e humanos de forma a atender os
alunos deficientes abrangidos pela sua área de intervenção.
Entretanto, a evolução de certos conceitos
psicopedagógicos e dos correspondentes princípios de política educativa, a par da
crescente tendência generalista, associaram-se a condicionantes de ordem económica e
administrativa e a factores de índole pessoal relacionados com a disponibilidade e
conveniência dos próprios professores, dando origem a uma progressiva transformação
que culminaria com uma nova estrutura organizativa consubstanciada no vínculo do
professor de apoio educativo a uma única escola, da qual passou a constituir um recurso
fixo, responsável por todos os casos de Ensino Especial nela assinalados. A despeito de
uma certa distinção teórica entre deficiências de "alta incidência" e
"baixa incidência", a prática adoptada neste modelo privilegiou uma actuação
de tipo essencialmente generalista, agravando ainda mais a ausência de um apoio
pedagógico específico adequado às necessidades educativas especiais inerentes a cada
aluno. Extinguindo as referidas Equipas de Educação Especial, a nova modalidade vem ao
encontro do moderno conceito de escola inclusiva, em que a responsabilidade pela resposta
adequada a cada aluno recai primordialmente sobre o estabelecimento que ele frequenta, mas
que, em última análise, tende a ignorar as necessidades educativas particulares
associadas às mencionadas "baixas incidências", que, como a deficiência
visual, dão origem a quadros psico-educacionais vincadamente diferenciados e exigem a
intervencão de docentes devidamente preparados para responder ao currículo específico
que delas emerge.
É verdade que se tomaram algumas medidas no
intuito de corrigir este grave problema estrutural, passando nomeadamente pela abertura de
vagas expressamente destinadas a docentes especializados na deficiência visual que possam
assegurar, circunstancialmente, o apoio educativo aos alunos relativamente aos quais o
professor de Ensino Especial colocado na escola, de formação mais generalista, não se
encontre habilitado a proporcionar um acompanhamento pedagógico adequado. Todavia, esta
estratégia político-administrativa esbarra com obstáculos de diversa ordem, resultantes
de toda uma intrincada rede de causas e efeitos que seria fastidioso pormenorizar, mas que
urge modificar quanto antes.
A estas limitações de ordem estrutural acrescem
graves problemas no que respeita a equipamentos e materiais didácticos, nomeadamente a
carência permanente e aparentemente irresolúvel de livros e manuais escolares, cuja
impressionante diversidade inviabiliza uma resposta minimamente atempada por parte dos
centros produtores.
Não cabendo aqui alargar-nos em análises
detalhadas no que se refere às consequências psicoeducativas destes diversos factores,
não podemos deixar de sublinhar que a implementação de um processo de
ensino/aprendizagem do Braille minimamente satisfatório implica, sem margem para
dúvidas, a presença diária de um professor de apoio devidamente preparado e, em nossa
opinião, um domínio básico do sistema Braille por parte do professor da classe, pelo
menos ao nível dos primeiros graus de ensino, sem o que a situação psico-educacional do
aluno cego carecerá de sentido humano. Dispensamo-nos de salientar a já mencionada
necessidade psico-emocional de uma inter-relação significativa com indivíduos com
idêntico handicap, referenciais imprescindíveis para uma consistente busca de
equilíbrio e harmonia pessoal, e a assinalada carência de materiais pedagógicos
adequados, certamente indispensáveis a uma participação minimamente eficaz do aluno nas
actividades lectivas em que se pretende integrar e a um consequente sucesso escolar
consentâneo com as suas reais capacidades.
2.3. Formação de
Professores
Os professores de apoio
incumbidos de garantir o acompanhamento educativo exigido pelas novas estruturas
organizativas não adquiriram, nem durante os cursos de especialização que começaram a
ministrar-se entre nós na segunda metade da década de 60, nem através de uma
convenientemente programada formação em exercício, uma preparação suficientemente
sólida e consistente no domínio da pedagogia do Braille, limitando-se a pautar a sua
prática educacional neste sector por alguns princípios e técnicas de duvidosa
fundamentação científica, inspirados em contributos mais ou menos esporádicos como os
trazidos na altura pela professora americana Jeanne R. Kenmore.
Cumpre-nos acrescentar que os primeiros
professores de apoio do Ensino Especial, insuficientemente esclarecidos quanto aos
processos envolvidos na leitura táctil e regendo-se por pressupostos pedagógicos algo
duvidosos e inconsistentes, mas para quem, de qualquer modo, o Braille representava um
vector preponderante da respectiva intervenção educativa, acabam de entrar na fase da
reforma ou estão prestes a atingir a idade de aposentação. Para os substituir,
perfila-se uma segunda geração de professores, formados pelas novas Escolas Superiores
de Educação, lançados no ensino de deficientes visuais sem terem por vezes aprendido
uma letra de Braille ou que contaram nos seus curricula algumas escassas e
insignificantes horas a ele dedicadas, não conhecendo o sistema, ignorando por completo
quaisquer aspectos de ordem pedagógica com ele relacionados e, o que se nos afigura ainda
mais dramaticamente inaceitável, colhendo dos correspondentes cursos de especialização
a ideia subliminar, quando não absolutamente explícita, de que o Braille pouco ou nada
interessa aos alunos cegos ou deve, porventura, ser reduzido à condição de mera
curiosidade histórica!
Não esqueçamos, por outro lado, que as
possibilidades abertas pelos novos meios informáticos de produção, que vieram permitir
aos professores de apoio educativo transcrever textos para os respectivos alunos
recorrendo a um teclado comum de computador e a uma simples impressora Braille,
representam, sem margem para dúvidas, um novo factor de "desbrailização",
aumentando inevitavelmente o grau de afastamento destes docentes relativamente a um
código de que já são, à partida, meros utilizadores indirectos.
Para corrigir este panorama preocupante que
ameaça difundir-se de maneira incontrolável, parecenos imprescindível modificar
quanto antes a organização curricular que preside aos cursos de especialização
ministrados pelas Escolas Superiores de Educação, invertendo a tendência marcadamente
generalista e descaracterizadora que os tem vindo a dominar e conferindo-lhes uma
orientação que contemple as reais necessidades dos alunos deficientes visuais e os
vários aspectos que integram o seu currículo específico. Representando indubitavelmente
a matéria central desse mesmo currículo, o Braille não poderá deixar de ocupar um
espaço fulcral em todo o programa de formação de professores especializados em
deficiência visual, devendo ser abordado numa perspectiva multidimensional enquadrada no
âmbito do que Filipe Oliva tem designado como Braillologia, e que constituiu o objecto de
uma sua recente comunicação apresentada à Conferência Iberoamericana del Braille,
realizada em Buenos Aires em Setembro de 1999.
3. Leitura/Escrita do
Braille: Alguns Aspectos Mais Relevantes
As modernas perspectivas psicológicas encaram a
leitura e a escrita como partes integrantes de um mesmo processo interactivo entre
pensamento e linguagem, representando a compreensão do texto a assimilação mais
adequada possível do seu significado a partir dos conhecimentos e experiências
adquiridos pelo sujeito. Comprovou-se, neste particular, que o processo de desenvolvimento
das estruturas cognitivas na criança deficiente visual é perfeitamente similar e
paralelo ao verificado na criança normovisual, dependendo o respectivo ritmo de
evolução das condições pedagógicas de compensação que favoreçam a sua correcta
interacção com a realidade envolvente.
3.1. Condicionalismos da Leitura Táctil
Face à Leitura Visual
Entretanto, a verificação
deste importante paralelismo ao nível dos processos mentais subjacentes, em nada diminui
a importância primordial que assume o reconhecimento de que a leitura táctil assenta em
mecanismos perceptivos totalmente diversos daqueles em que repousa a leitura visual.
3.1.1. O Carácter
Braille Como Unidade de Percepção
Enquanto que na modalidade visual os olhos procedem
por pequenos "saltos", captando por cada imobilização um certo fragmento de
texto que constitui a unidade de percepção, a leitura táctil pressupõe um movimento
regular e sem golpes bruscos, processando-se essencialmente de forma sequencial. Aliás, a
natureza inerente ao funcionamento dos próprios receptores sensoriais tácteis implica a
necessidade de uma deslocação contínua sobre a fonte de estimulação, condição sem a
qual não se verifica um efectivo reconhecimento.
Esta importante especificidade do sentido do tacto
tem como consequência lógica que o carácter constitua a unidade
percepção na leitura do Braille, como comprovaram amplamente as investigações
de Nolan e Kederis, e que uma maior lentidão e imprecisão surjam como uma primeira
limitação tendencial inerente ao sistema.
3.1.2. Velocidade de
Leitura
No que respeita a velocidade de leitura,
observou-se uma incidência de variabilidade muito superior à verificada na modalidade
visual, apontando-se habitualmente como satisfatório um valor de 70 a 100 palavras por
minuto, ou seja, entre um terço e metade da velocidade considerada "padrão"
para a leitura de textos a tinta. Julgamos conveniente referir, porém, que parece
absolutamente possível alcançar "performances" bem mais elevadas: Pierre
Henri, por exemplo, assinala que um bom leitor adulto pode atingir cerca de 200 palavras
por minuto, e McBride, recorrendo a técnicas de leitura rápida inspiradas em programas
testados para a leitura visual, obteve nas experiências que promoveu os impressionantes
valores de 710 e mesmo de 855 palavras por minuto em leitura silenciosa, ainda que o rigor
e fiabilidade dos procedimentos adoptados suscitem certa contestação.
Os dados provenientes dos nossos próprios estudos
indicam, sem margem para dúvidas, que os melhores leitores alcançam, na leitura em voz
alta de textos "à primeira vista", velocidades compreendidas entre as 150 e as
200 palavras por minuto, aproximando-se assim dos resultados apontados como
referência para a modalidade visual. É forçoso salientar, todavia, que apenas os
leitores mais dotados se encontram em condições de atingir níveis de rendimento desta
dimensão, e que, indubitavelmente, o conseguem à custa de um muito maior grau de
perseverança, intenso exercício e disposições particulares especialmente propícias
para a leitura táctil.
3.1.3. Acréscimo de
Esforço e Fadiga
Esta última ideia conduz-nos directamente a um
outro importante condicionalismo inerente à leitura do Braille. Referimo-nos a um
significativo acréscimo de esforço e fadiga que envolve um duplo registo (físico e
psíquico), e que decorre primordialmente dos elevados padrões de exigência mental e
perceptivo-motora implicados no processo de leitura táctil. Pesquisas levadas a cabo
sugerem que a identificação de um "b" em Braille acarreta um dispêndio de
energia equivalente ao necessário para ler um carácter vulgar de diâmetro igual à
cabeça de um alfinete!
Em nossa opinião, a própria organização
perceptiva da pessoa cega, de que se acha ausente a visão, enquanto sentido unificador
por excelência, pressupõe uma sobrecarga adicional e permanente de esforço e fadiga na
realização das tarefas, e a consequente necessidade de um intervalo de tempo superior
para concluir a mesma unidade concreta de trabalho. Esta lentidão tendencial dos
indivíduos cegos, a que não é certamente alheio o marcado sedentarismo que muitas vezes
caracteriza o seu "modo de estar", encontra-se amplamente confirmada por dados
psicométricos diversos e parece associar-se a um frequente défice de maturidade
neuromuscular e sensório-motora.
3.2. Métodos e
Técnicas de Leitura
Como atrás explicitámos, a
percepção táctil é fragmentada, analítica e sequencial por natureza e o carácter
constitui, por consequência e como foi experimentalmente demonstrado, a unidade de
percepção na leitura do Braille.
3.2.1. Inadequação dos
Métodos de Matriz Globalizante
Não obstante a enorme popularidade granjeada em
todo o mundo pelos métodos de tipo global no ensino da leitura vulgar não deixou imunes
os professores de deficientes visuais, que procuraram transpô-los de forma linear e
mecânica para o domínio do Braille, ignorando pura e simplesmente as profundas
diferenças funcionais que distinguem inquestionavelmente os sentidos da visão e do
tacto.
Um inquérito levado a cabo nos Estados Unidos em
1965 permitiu estabelecer que cerca de dois terços dos docentes adoptavam
preferencialmente métodos de carácter global na iniciação à leitura do Braille. Em
Portugal, este tipo de prática pedagógica foi largamente difundido a partir dos
primeiros cursos de especialização para professores da deficiência visual e, mais
particularmente, após a já mencionada visita ao nosso país da conhecida professora
americana Jeanne R. Kenmore, que influenciou profunda e decisivamente os conceitos
psico-educativos que viriam a prevalecer no chamado ensino integrado.
Os inumeráveis testemunhos que tivemos
oportunidade de recolher levam-nos a supor que este tipo de princípios e técnicas
continua largamente a prevalecer no ensino dos cegos em Portugal, a despeito do
descrédito generalizado dos métodos globalizantes clássicos relativamente à leitura
visual e dos diversos estudos que comprovam o carácter eminentemente analítico da
leitura táctil.
3.2.2. Vantagens do
Emprego Exclusivo dos Dois Indicadores
Acresce sublinhar que vários investigadores,
nomeadamente J. S. Lappin e E. Foulke, concluíram que a utilização dos indicadores de
ambas as mãos representa a combinação de dedos que proporciona uma leitura mais rápida
e eficaz. Aliás, estes dados experimentais são claramente reforçados pela opinião
expressa pelos melhores leitores cegos, unânimes em defender e praticar o emprego
exclusivo dos dois indicadores, incontestavelmente os dedos que ergonomicamente melhor se
prestam a uma leitura bimanual e que possibilitam a adopção de uma postura perfeitamente
"natural e descontraída" das mãos. O uso de mais dedos, para além de implicar
o exercício simultâneo do mesmo tipo de função e uma sobrecarga inútil e
potencialmente geradora de ambiguidade e confusão sensorial, obriga inevitavelmente, em
função das correspondentes diferenças de comprimento, a alinhá-los de tal forma que a
respectiva área mais sensível perde o contacto com os caracteres escritos.
3.2.3. Independência e
Coordenação das Mãos
Por outro lado, e como assinala J. Lorimer, parece
indiscutível que os melhores leitores são aqueles que alcançam idênticos níveis de
eficácia com cada uma das mãos e as sabem usar em perfeita associação e
sincronia. As duas mãos deverão funcionar independentemente, percorrendo a direita
aproximadamente duas vezes mais texto que a esquerda. Mousty demonstrou, através de uma
série de estudos, que a velocidade de leitura bimanual assim obtida é, em média, 34,6
por cento mais rápida que a resultante da leitura unimanual efectuada com a melhor das
mãos. Entretanto, apesar do sentido uniforme e por demais convincente destas
observações experimentais, verifica-se que a maioria dos cegos depende total ou quase
exclusivamente de uma única mão para ler, sendo a direita a mais frequentemente
utilizada. Nos leitores mais hábeis, a pressão exercida pelos dedos revela-se constante
e fraca, tendendo nitidamente a intensificar-se à medida que se sentem menos à vontade
(Kusajima e outros).
Consideramos imprescindível salientar que o
domínio destas técnicas e, nomeadamente, a aquisição de independência e coordenação
na utilização das mãos não surgem espontaneamente no decurso do processo de
aprendizagem, afigurando-se-nos absolutamente essencial a atribuição de um lugar de
maior relevância ao respectivo ensino e aperfeicoamento, no âmbito das práticas
pedagógicas de iniciação e desenvolvimento da leitura do Braille.
3.3. Algumas Variáveis
que Influenciam a Leitura Táctil
Os diferentes estudos
disponíveis e os dados provenientes da nossa própria experiência profissional
permitem-nos distinguir dois grandes grupos de variáveis que parecem influenciar
significativamente a eficácia da leitura do Braille.
3.3.1. Variáveis Comuns
Intrínsecas às Distintas Modalidades de Leitura
Desempenhando um papel de importância comprovada
no que respeita à leitura de textos a tinta, a capacidade intelectual do indivíduo
parece constituir uma variável ainda mais detemminante no caso do Braille. Segundo Nolan
e Kederis, o nível mínimo de inteligência necessário para aceder à leitura táctil é
significativamente superior ao requerido pela modalidade visual, existindo aparentemente
uma mais pronunciada variabilidade de eficácia em conformidade com as diferenças de QI
registadas.
Por seu turno, a aptidão verbal e o nível de
desenvolvimento da linguagem assumem igualmente uma maior preponderância, uma vez que as
características inerentes à leitura do Braille vem conferir um papel fundamental à
capacidade do indivíduo para aproveitar indícios contextuais ou estruturas gramaticais e
antecipar sequências de letras conhecidas ou finais de palavras familiares. As
disparidades entre as crianças cegas nesta área revelam-se mais significativas que as
verifcadas entre as crianças normovisuais do mesmo grupo etário, o que poderá acarretar
profundas implicações no plano pedagógico-didáctico.
Obviamente que a prática pessoal de leitura, por
um lado, e a atitude do sujeito, a respectiva personalidade e, principalmente, as
motivações capazes de o incitar a progredir mais rapidamente, por outro lado, se
comportam como factores verdadeiramente determinantes quanto ao nível de eficácia
atingido no domínio do Braille, como parece depreender-se, nomeadamente, dos resultados
dos programas de leitura rápida implementados por McBride e já atrás referidos.
3.3.2. Variáveis Mais
Exclusivamente Relacionadas com a Leitura do Bralile
Começaremos por mencionar a
notória importância evidenciada pelas capacidades perceptivas e psicomotoras. Nolan e
Morris, por exemplo, comprovaram a existência de uma certa correlação entre a aptidão
para distinguir diferentes texturas e o número de erros de identificação cometidos na
leitura táctil. Com efeito, a forma e orientação do carácter, a posição relativa e a
maior ou menor densidade dos pontos que o integram pressupõem distintos graus de
dificuldade perceptiva, dando eventualmente origem a erros de inversão, substituição,
alinhamento vertical ou horizontal, etc.
O nível de desenvolvimento da
acuidade táctil, que depende, em larga medida, do adquado treino e estimulação
proporcionados ao sujeito e do momento da sua vida em que ocorre um efectivo investimento
no tacto enquanto canal sensorial alternativo e prioritário, constitui, sem dúvida, uma
condição básica de particular relevância para um bom domínio do Braille e, como tal,
deverá ser alvo de um trabalho específico convenientemente planificado e organizado numa
fase de tipo propedêutico.
Se a idade em que se contrai a cegueira e o
correspondente grau de ajustamento e aceitação revelado pelo indivíduo e pelo seu meio
social mais imediato representam importantes factores susceptíveis de condicionar o
sucesso da aprendizagem do Braille, estamos plenamente convictos que a idade de
iniciação na leitura táctil constitui, ela sim, a variável que de forma mais
consistente e determinante influencia essa aprendizagem. Na verdade, numerosos estudos e
investigações demonstraram a existência de uma elevada correlação entre a idade de
iniciação no Braille e a posterior evolução da eficácia da leitura, muito embora tal
correlação não denote uma simples interdependência linear e directa e justifique,
consequentemente, uma cuidadosa análise por parte de técnicos e especialistas.
Baseando-se em resultados de diferentes trabalhos
experimentais, que atribui a razões ligadas ao desenvolvimento perceptivo e psicomotor,
J. Lorimer concluiu, por um lado, que as crianças cegas só se encontram aptas para
iniciar uma verdadeira aprendizagem do Braille entre os 6 e os 8 anos; e, por outro lado,
que os respectivos progressos se afiguram relativamente lentos até aos 9, revelando
apenas um apreciável domínio dos mecanismos da leitura táctil por volta dos 11 anos.
Em certa conformidade com esta conclusão de J.
Lorimer, os nossos próprios dados experimentais levam-nos a supor que as presumíveis
condições básicas para a aprendizagem do Braille se apresentam especialmente propícias
e praticamente estáveis desde os 6 até cerca dos 10/11 anos, verificando-se
aparentemente a sua brusca e extremamente acentuada deterioração a partir dos 12/13 anos
(Alberto Mendonça e Vitor Reino, 1992/93). Mesmo quando demonstram características
pessoais particularmente favoráveis, como um bom nível intelectual e um alto grau de
motivação e perseverança no trabalho, os alunos iniciados depois desta idade parecem
patentear maiores dificuldades e alcançam performances de leitura nitidamente
inferiores às conseguidas por aqueles que começaram mais cedo.
As implicações pedagógico-didácticas
decorrentes da influência determinante da variável idade de iniciação na leitura
táctil afiguram-se-nos de uma importância absolutamente fundamental e justificariam, por
si só, a modificação de certas práticas médicas e educativas que tendem a retardar
todo o processo de aprendizagem do Braille, nomeadamente no caso de cegueiras
progressivas, partindo do princípio falacioso de que a qualidade de utilização do
sistema em nada fica comprometida pelo facto de a correspondente iniciação sofrer algum
tempo de atraso.
Também no que respeita a jovens e adultos mais
velhos, diversos estudos, como os efectuados por Gray e Todd, demonstraram a presença da
referida correlação entre a idade de iniciação no Braille e o futuro nível de
eficácia da leitura, parecendo que o número de pessoas capazes de aprender o sistema e
dominá-lo suficientemente para conseguir ler com algum proveito decresce acentuadamente
depois dos 29 anos.
Gostaríamos porém, e à guisa de conclusão, de
sublinhar que, embora sugerindo uma quebra mais ou menos sensível da probabilidade de uma
posterior utilização minimamente satisfatória, nenhuma investigação nos permite com
segurança desaconselhar a aprendizagem do Braille a partir de qualquer idade
pré-estabelecida e, cremo-lo sinceramente, a influência de complexos factores de
natureza psicossocial e motivacional pode por vezes operar resultados excepcionais em
certos contextos particulares.
FIM
Vítor Reino
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"Ensino/Aprendizagem do Braille".
Vítor Reino (2000)
In Actas do Colóquio
"O Braille que Temos, o Braille que Queremos".
Lisboa: Biblioteca Nacional.
Δ
publicado
por
MJA
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