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 Sobre a Deficiência Visual

Educação dos Cegos no Brasil

Aires da Mata Machado Filho


Jesus cura um cego - azulejos séc. XVIII no Convento de São Paulo, Serra d'Ossa,

 

PRIMEIRA PARTE: O cego e a cegueira
I - O conceito da cegueira
II - Efeitos da cegueira
III - Metodologia dos cegos
SEGUNDA PARTE: Solução do problema
I - Nota predominante
II - Papel da educação dos cegos na ordem física
III - Educação intelectual
IV - Educação moral
V - Educação artistica
VI - Valor económico, social e político da educação dos cegos
VII - O que há no Brasil em favor dos cegos
VIII - Esbôço de um plano nacional de educação dos cegos

 


PRIMEIRA PARTE

O cego e a cegueira
 

I - O CONCEITO DA CEGUEIRA

Muitas vezes o cego em seu caminho ouve dizer ao vidente, que por acaso o encontra "Tão moço, e cego!" É como se dissesse: "Tão moço e na idade em que tudo são luzes, envolto nas trevas; tão jovem ainda e, na quadra em que se concebe e realiza, condenado á inação; na manhã da vida, e com a noite na alma..."

Vencendo o temor natural, não do cego, mas da cegueira, que há no subconsciente da pessoa que vê, temor este que lhe vem á tona do espírito, quando se lhe depara um órfão da visão, o vidente detém o cego e o interroga como vive, plenamente convencido de que sua existéncia sem a vista é um milagre. Se o cego, instruído e cortês, dá ao curioso interlocutor uma idéia sumária da vida dos que não vêem, se lhe fala que é professor, músico ou afinador de pianos, que cultivou o espírito em um colégio, graças a uma educação especializada, o vidente, atónito, boquiaberto, passa a considerar o cego um ente á parte com uma mentalidade sui generis, com um modo de vida exclusivamente seu, insulado em um mundo próprio, dentro do próprio mundo.

Exagerados ambos, cada qual em seu sentido mais imperfeito, estes conceitos são igualmente prejudiciais. Note-se, porém, que o primeiro deles prevalece, em regra.

Para a generalidade dos videntes, o cego é incapaz de qualquer ato mental ou físico. São raros os que dele fazem uma idéa perfeita, porque, para isto, é preciso lidar com o cego, sem preconceitos, e observá-lo. O próprio Valentin Haüy, cuja influéncia realizadora e única na evolução dos cegos adiante mostrarei, escreveu a Luiz XIV: "Nous ne pretendons pas mettre jamais le plus habile de nos aveugles en concurrance d'aucun genre, même avec le plus mediocre des savants ou des artistes clairvoyants".

As relações passageiras com algum cego instruído podem desfazer momentaneamente os efeitos da primeira impressão. Depressa, porém, a imagem do cego mendigo vem substituir a do cego ativo e trabalhador.

Estas falsas idéas, que hoje, mercê de Deus, já vão desaparecendo, são partilhadas até pelos que tomam sôbre os ombros a séria responsabilidade da palavra escrita. A Literatura tem-se limitado a bordar variações, não raro de beleza peregrina, sôbre o velho tema do preconceito. Aliás, isto é natural, pois que, sendo o homem o centro, o fóco da obra de arte, a sua projeção nessa tem que ser marcadamente intensa.

Na Mitologia e na Literatura antiga dos gregos a cegueira é sempre um símbolo. Haja vista a representação do Amor e da Fortuna. Êsse último simbolismo ressalta de "Pluto", comédia de Aristófanes. A cegueira, como representação da miséria humana, vem no "Edipo Rei" de Sófocles. Na antigüidade, o único escrito que contribuiu para evidenciar as possibilidades intelectuais dos cegos foi uma página de Cicero do "5.º Livro ad Tusculanos". Mas o grande escritor latino contentou-se com a citação de cegos ilustres, sem nada adiantar no terreno psicológico.

A Idade Média abriu ao cego, de para em par, as portas da Literatura.

Mas, de que maneira deplorável! Naqueles tempos de religiosidade intensa a mendicidade rendia mais do que hoje. Ainda não havia meios de aproveitar com eficiéncia as energias dos indivíduos com anormalidades físicas. Nem os conhecimentos de então, nem a organização social permitiam outro expediente de aliviar a coletividade do pêso dos mendigos, a não ser os asilos, que começaram a ser fundados pela Igreja Católica. A mendicidade degrada e avilta. E toda esta sujeira moral sobrenada repugnante, na Literatura da época.

A cura do cego de Jericó e a conversão de Longino constituíram no século XV assunto dos "mistérios", última moda do tempo nas Letras.

O século XVIII imprimiu novo cunho ao movimento literário, a cuja frente se colocaram os filósofos, aos quais a cegueira, desde logo, seduziu.

Foi então que veio a lume, entre outros livros, a "Lettre sur les Aveugles" por Diderot, em que, a par de reflexões profundas e verdades incontestáveis, ha tambem lamentáveis erros. Nesse trabalho o autor observa o notável matemático cego Sounderson. A exposição do senso do obstáculo que os cegos possuem; as idéas expendidas sôbre o possível aproveitamento pedagógico do tato, que, certo, influiram no espírito de Haüy; a antecipação de muitos anos no lembrar um método de educação para os cegos-surdos-mudos, deram á sua obra grande interesse. Os erros em que incidiu foram originários da doutrina do sensualismo que êle e Condillac fundaram, segundo a qual a inteligéncia é uma resultante das impressões sensoriais. Ora, concluem Diderot e seus adeptos: "Sendo a vista o mais precioso, o mais aplicado dos sentidos, o indivíduo que não vê será completamente diverso dos outros." Que concepção acanhada da vida humana!

Se nas épocas precedentes não se atingiu a verdade, ninguém contará com ela no Romantismo.

No "Gracien" de Lamartine, o cego aparece envolvido no manto da inocéncia, e por êle se sacrificam os mais queridos afetos.

Na obra de Vitor Hugo o cego surge em "l'Homme qui rit" e em uma página sublime dos "Miseráveis". Pode-se-lhe ver o pensamento integral, majestosamente lindo na ressonáncia sem par de suas antíteses, mas, inverídico, no que tange á psicologia, condensado nestes versos de "Les Contemplations":

"L'aveugle voie dans l'ombre un monde de clarté; "Quand l'oeil du corps s'éteint, l'oeil de l'esprit s'ilumine".

Aí está uma fórma comum do preconceito: a elevação dos cegos sôbre os outros homens.

A cegueira que isola vem em "Grillon du foyer", de Dicmen; a cegueira que torna impotente ressai de "Les Aveugles", drama simbólico de Maurice Maeterlink.

Tudo isto muito belo, muito romanticamente belo!

Nos tempos que correm, com os últimos progressos pedagógicos dos não videntes, o cego aparece na Literatura tal qual êle é. Os livros, a principio, não passam de tratados de educação dos cegos. A guerra, porém, que empobrecendo as fileiras dos exércitos, enriqueceu as nossas fileiras, volveu definitivamente para a cegueira as cogitações dos espíritos cultos. De então para cá, os livros a seu respeito se multiplicaram. A ter de citar poucos, prefiro não citar nenhum, e êles são muitos.

Mas, onde as causas dêsses julgamentos falsos, expressos pela palavra falada e escrita? Tudo se explica á luz da psicologia. O vidente quando pensa na cegueira, imagina-se sem vista, e portanto sem ação. É que, vivendo quasi exclusivamente pela vista, êle despreza, por lhe não serem necessárias, muitas propriedades dos outros sentidos, das quais, no entanto, o cego é forçado a servir-se. A causa do preconceito, por ser psíquica, é difícil de desarraigar. Tanto é natural a pena que se tem do cego, como a admiração excessiva pelo pouco que êle acaso faça.


II - EFEITOS DA CEGUEIRA

A cegueira, que é exclusivamente um mal ocular, não impede absolutamente um completo desenvolvimento das faculdades mentais.

Em verdade, há casos de degenerescéncia mental, pois que a cegueira, ás vezes, vem acompanhada de alguma enfermidade cerebral. Mas cumpre acentuar mui fortemente que tais enfermidades é que causam a cegueira, e que essa nunca motiva aquelas.

A côr, a luz, o belo físico e a beleza panorámica são as únicas noções inacessiveis aos cegos porque resultam de impressões puramente visuais.

Todos os outros conhecimentos, porém, lhes podem ser fornecidos pela ação dos sentidos que possuem perfeitos. Demais, essas idéas inacessiveis apenas o são para os cegos de nascença, em menor numero, aliás. Além disso, elas não são concepções intelectuais de sorte que não tolhem, de maneira alguma, a formação mental dos cegos. Quem já leu Castilho, cego desde 6 anos, não póde pôr em dúvida o muito que consegue a memória, pois que os 6 anos de vida como vidente, lhe bastaram para formar uma idéa perfeita das belezas estéticas da natureza, que tanto colorido lhe dão ás descrições perfeitas.

A cegueira oferece oportunidade ao emprêgo de certa propriedade tátil denominada sensação de rugosidade. A este respeito, tudo está sintetizado em uma frase de Pierre Villey, um dos vultos mais notáveis entre os cegos cultos, professor da Universidade de Paris e da Faculdade de Letras de Caen, autor de magistrais reflexões sôbre a obra de Montaigne e de vários livros sôbre o cego e a cegueira, os quais mereceram recentemente da Academia Francesa um prêmio de 3.000 francos.

Eis como define a vista e o tato: "A vista é um tato a grande distancia, com a sensação da côr a seu favor; o tato é uma vista de pequeno descortino, faltando-lhe a côr, e tendo para compensar, a sensação da rugosidade. (Le Monde des Aveugles).

Note-se, de passagem, que não é a vista, senão o tato, que distingue o homem dos outros animais.

Sem desprezar as sensações elementares que nos vêem ao cérebro através do olfato e do paladar, passo a estudar o sentido da audição.

É inegável a ação preponderante do ouvido na formação mental da criança cega ou vidente. A linguagem se forma das impressões auditivas. A conversação não existiria sem o ouvido. Ouvindo, aprende-se muito mais do que vendo. O ouvido é mais intelectual do que a vista, porque a audição leva idéas ao cérebro, e os olhos levam imagens. Montaigne, que sabia muito bem o valor da palavra oral como fonte de conhecimentos, escreveu: "Je consentirais plutôt de perdre la vue que l'ouïe".

É que, como muito acertadamente disse Aristóteles: "A vista é a faculdade mais importante para as necessidades animais; mas, no que respeita á atividade intelectual, nenhuma se iguala ao ouvido". A observação dos fatos corrobora esta asserção.

Com efeito, no trabalho manual, o surdo é mais desembaraçado do que o cego; ao contrario, no trabalho intelectual, o cego que ouve leva de vencida o vidente surdo. Vem ainda a pêlo dizer que a sensação do obstáculo, este pressentir do perigo que intercepta a passagem ao cego, que o povo explica como um dom especial da Providencia, e psicólogos bisonhos querem que seja milagre de um imaginário sexto sentido, não passa de uma impressão auditiva.

Sem a vista, embora, o indivíduo póde adquirir todas as idéas necessárias a um pleno desenvolvimento intelectual.

Ainda vou mais longe: a deficiéncia visual priva o homem de certos divertimentos fúteis, razão por que o cego encontra um gozo completo nas distrações intelectuais. Por isso, é que nêle se desenvolve facilmente o poder de concentração, o amor á reflexão e á leitura. Em conclusão:

respectivamente á vida espiritual, o cego é, até certo ponto, superior ao vidente. As dificuldades que, por vezes, lhe embaraçam a cultura são de ordem meramente material.

Todavia, a cegueira reduz o raio de ação do homem. Reduz, mas não anula, como pensam muitos. Neste terreno, como em tudo mais, muito póde a fôrça de vontade e a educação. Sem falar em todos os cegos brasileiros que ganham a vida por si, notabilizando-se, não raro, em sua profissão, citarei os nomes de alguns cegos estrangeiros, cuja vida intensa serve para comprovar o que afirmei, linhas atrás.

Démonet possue em Vichy uma fábrica de pianos, que êle mesmo fundou, donde já saíram milhares de instrumentos. O primeiro prêmio em França do concurso comemorativo do centenário da morte de Schubert, organizado pela firma norte-americana Columbia Phono, foi conquistado pelo ex-aluno do Instituto de Cegos de Paris, Guillemoteau.

Ettore Fornasa, de Vicenza, é diretor de uma tipografia e de duas revistas para uso dos cegos e de uma escola de música. Caso típico é o de Chopier que, depois de sair da escola, tentou várias profissões exercidas comumente pelos cegos, adotando, depois, a de mercador de gado em sua aldeia natal. Filho de magarefe, familiarizou-se desde a infáncia com os bois, e é de ver a precisão com que calcula, pelo tato, a idade, o pêso e o rendimento em carne, da rês.

Fala-nos o "Times Weekly" de uma jovem cega que, tendo entrado aos 18 anos como datilografa para o Ministerio do Trabalho, na Inglaterra, exérce hoje, com 22 anos de idade, as altas funções de chefe do Gabinete do Ministro.

O Brasil não fica mal em cotejo com os países estrangeiros.

Nossa galeria de cegos notáveis apresenta individualidades de grande valor, documentação expressiva deste meu pobre estudo.

Entre os mortos mencionarei: Antonio Lisbôa Fagundes da Silva, erudito professor, que lecionou francês no Instituto Benjamin Constant e matemáticas em aulas particulares, a alunos da Escola Militar, autor de excelente gramática francêsa, poeta e jornalista; Augusto José Ribeiro, fecundo e primoroso vate; Cesario Lima, orador eletrizante e mavioso poeta; José Cerqueira, artista do piano, que teve a honra de tocar a quatro mãos, com Gottschalk; Francisco Gurgulino de Souza, poderosa organização de artista, habil executor de piano e organista exímio, poeta de cantantes carmes, autor de músicas em que ciéncia e inspiração maravilhosamente se completam e de um ótimo compéndio de harmonia.

Constitue esta pleiade fulgurante, gloriosa tradição do magistério, do Instituto Benjamin Constant.

Entre os vivos, por não ferir modestias, nem me arriscar a omissões involuntarias, deixo de me referir a professores de valor, artistas de grande merito, compositores e executores, a poetas e a jornalistas.

Apontarei, apenas, o nome de Mauro Montagna, o decano do magistério, do Instituto Benjamin Constant, meu venerado mestre, a quem tributo aqui respeitosa homenagem.

Fundou êle a Sociedade Protetora dos Cegos e uma Escola Profissional para cegos adultos, de que foi diretor. É autor de dois mapas animados, um da America do Sul, que figurou em destaque na Exposição Nacional de 1922 e outro do Districto Federal, meticulosos trabalhos de geógrafo, em que a ciéncia corre parelhas com a engenhosidade.

É tambem de sua autoria preciosa coleção de mapas em relêvo do Brasil e seus Estados, para uso das escolas de cegos.


III - METODOLOGIA DOS CEGOS

Para compreensão da tese que sustento, cumpre-me estudar, de relance embora, a marcha evolutiva dos cegos, através dos processos de leitura e escrita.

Antes da existéncia ou difusão dêstes, cegos houve que se notabilizaram, graças a seus dotes geniais, valendo-se de sistemas de leitura, escrita e calculo inteiramente individuais, cujo éco longinquo, mal chegou até nós. Entre esses citarei os seguintes, sem me referir a Homero e outros cegos dos tempos heróicos: Dídimo, de Alexandria (século IV), filósofo e teólogo, o primeiro de que há notícia; Nicaise, de Maline ou de Verdun; Fernand Bruges, Pierre Dupont, de Paris (fim da Idade-Média); Ultrich Schomberg (1601-1648), cego desde 2 anos e meio que, segundo Leibnitz, ensinava matemáticas e filosofia em Koenigsberg; no século XVIII, Sounderson o grande matemático, assaz conhecido professor da Universidade de Oxford na vaga do celebre Newton, e Moyse, professor de física e química; Penjon (comêço do século XIX), outro matemático; Caraval, de França, e Blacklock, da Inglaterra, ambos poetas.

Em 1784, o diplomata francês Valentin Haüy, observando que um cego a quem dera esmola tinha reconhecido pelo tato o valor da moeda, notou que no uso dêsse sentido é que estava a chave do problema da educação dos cegos. Nessa base, ideou um sistema constituído de letras do alfabeto usual, em relêvo, formadas de linhas lisas. Conquanto o alfabeto Haüy apresentasse graves inconvenientes, o seu autor teve o mérito enorme de dissipar a bruma que envolvia os cegos. A complexidade do desenho dos caracteres, a dificuldade que tem o tato de perceber linhas lisas, o volume extraordinario dos livros e a impossibilidade da escrita, tais eram as desvantagens do sistema, as quais impulsionaram a evolução dos processos de leitura encaminhando-a á substituição da linha lisa pela pontuada, até atingir a perfeição, no sistema de Luiz Braille.

Em 1809, veio ao mundo em Coupvray, perto de Paris, esse luzeiro dos cegos, que imprimiu á obra social do grande Haüy o cunho genial que lhe faltava. Aos 16 anos, (não admito precocidade igual a esta), ainda aluno do Instituto dos Cegos de Paris, concebeu o sistema maravilhoso, que é usado, ha mais de 100 anos, tal como lhe brotou do cérebro. Fazendo todos os arranjos possíveis com 6 pontos, obteve 63 combinações com as quais deu ao cego as letras, a música e os sinais matemáticos. O Braille, pelo fato de diferir muito do sistema comum, não isola o cego dos videntes. Por meio do sistema Ballu e outros processos e, principalmente, por intermedio da datilografia, o cego pode comunicar-se graficamente com êles.

A implantação oficial do Braille foi dificil, porque os diretores dos institutos dos cegos, videntes pela maior parte, não se conformavam com um alfabeto especial. Finalmente a oficialização veio em 1856.

No estrangeiro o Braille teve de lutar com o sistema Klein, nos países onde se fala o alemão ou línguas similares, e contra o sistema Moon, nos Estados Unidos. Mas o Klein foi derribado em um concurso, e o Moon foi assimilado pelo Braille, sendo hoje empregado apenas, aliás com vantagem, para os cegos adultos refractarios ao Braille, pela dissemelhança entre êste e o sistema comum. O Braille, pois, é hoje universalmente adotado.

O cego, bem exercitado, lê cêrca de 130 palavras por minuto, o que corresponde á rapidez normal da leitura do vidente.

Os exemplos que virão abaixo bastam para mostrar quanto pode a educação especializada. Nenhum caso impressiona tanto como o de Helena Keler, de Boston, educada pela admiravel miss Sulivan. Aos 18 mêses ficou cega e surda, antes de saber falar. Vinte dias depois do início dos estudos, miss Sulivan, fazendo-lhe um sinal nas mãos quando ela tateava alguma cousa, deu-lhe a entender que as idéas são susceptiveis de representar-se por sinais. Colocando os dedos nos lábios do interlocutor ela lia facilmente as palavras emitidas. Com um mês e meio de estudo, aprendeu o Braille. Imitando os movimentos faríngeos da língua e dos lábios de miss Sulivan, aprendeu a falar e apropriando-se dessas vibrações, "ouve" tudo que se lhe diz. (Permita-se-me o verbo). Conhece não só o francês, o inglês e o alemão, mas tambem o latim e o grego, necessarios ao curso universitário que fez brilhantemente. Hoje em dia, é um dos vultos eminentes da humanidade culta, autora de várias obras muito traduzidas. Vive feliz, entre os livros, dedicando-se ao estudo.

Não resisto á tentação de citar uma frase sua, em que transparece o encantamento de uma felicidade suprema: "Sinto-me tão feliz que quereria viver eternamente; é que há tanta cousa bela que aprender."

Laura Brigdman, cega, surda, muda, sem olfato nem paladar, conseguiu, todavia só por meio do tato, possuir alguma instrução, que poderia ter sido ampliada.

Se a educação especializada consegue tudo isso de individuos tão mutilados fisicamente, que não poderá ela fazer dos que têm a vista, somente a vista, prejudicada? Dêles fará homens que, ao invés de pêso morto, de toma-lugares, de parasitas, poderão colaborar para o progresso. Convenho que o mundo marchará sem o concurso do cego. Mas, si êle pode marchar com o mundo, por que deixá-lo atrás?

O aproveitamento dos cegos cabe perfeitamente no programa da civilização moderna; tanto assim é, que os países mais adiantados é que solucionaram o problema dos cegos. É que o progresso precisa ser ramificado e homogéneo. A árvore mais formosa é aquela cujos galhos, tronco e ramos guardam entre si uma harmonia perfeita, uma proporcionalidade completa.


SEGUNDA PARTE

Solução do problema

I - NOTA PREDOMINANTE

Esquematizados, de ligeiro, os aspétos mais frisantes do problema, colhe-se que o mal da cegueira não reside na cegueira em si, mas na sua errónea conceituação, geradora de idéas falseadas e de lamentáveis atitudes.

Reformado o juizo pela vitória da razão sôbre o sentimentalismo, e orientado este através da meta conducente á verdadeira felicidade dos cegos, impõe-se, á evidéncia, a conclusão de que a educação integral, vasada nos moldes de uma pedagogia científica, é o único remédio infalivel contra a cegueira incurável.

De fato, a educação é, literalmente, imprescindivel aos que não vêm.

Ao vidente analfabeto é possível satisfazer ás necessidades materiais da vida quotidiana, e até ás suas aspirações mentais, de latitude naturalmente exígua. Entretanto, o cego, que não passar pela escola, confinará fatalmente as diretrizes de sua vida á alternativa inelutavel dêste dilema: ou a mendicidade ambulante, estendendo a mão á caridade pública, ou a mendicidade doméstica, como eterno beneficiado improdutivo. Vivendo no seio da família, o dulçor do aféto dos seus, jámais disfarçará a inferioridade de sua triste condição, se é que a ganáncia criminosa de pais desnaturados lhe não explorem a enfermidade em vergonhosa mercáncia.

É que, não descabe nunca acentuá-lo, a escola que prepara o vidente para a vida, ao cego prepara-o para outra vida; pois lhe creia á existencia condições essencialmente diversas. Liberta-o da invalidez física e intelectual, redime-o, corrige até uma falha da própria natureza, ergue da escuridão o homem que não vê.

Por isso, fôrça é reconhecer no problema dos cegos, fundamentalmente educativo, títulos que lhe conquistam lugar de indisputavel preeminencia nas cogitações próprias do seculo da pedagogia, nomeadamente entre os apóstolos de sã brasilidade, reunidos em torno da bandeira da "Associação Brasileira de Educação".


II - PAPEL DA EDUCAÇÃO DOS CEGOS NA ORDEM FÍSICA

Antes de mais, visa a educação física sistematizar a natural substituição dos sentidos. Trata-se, em suma, de alargar as quatro janelas perfeitas de que dispõe o cego, a fim de que a cámara maravilhosa em que a idéa desabrocha e o raciocínio se expande, receba de fóra a luz suficiente, matéria-prima das misteriosas transformações.

Vem aqui a pêlo notar que uma educação física metodizada, inteligentemente conduzida desde a infáncia, dá ao cego um andar seguro (corrigindo-lhe essa vacilação nos passos que tão nitidamente o sublinha) graças ao desenvolvimento do senso de orientação e do senso do obstáculo, mediante exercícios adequados. Não há negar o alcance prático dessa conquista.

A vacilação, como a morosidade no andar, aliada á quietude de um olhar apagado, sugere a idéa de incapacidade física e até intelectual.

Revigora falsos conceitos, e traz á tona a imagem pungitiva do cego mendigo, que geralmente existe no espirito do vidente.

A importáncia da educação do aparelho sensorial, posta de manifesto por Mme. Montessori, cresce de ponto em se tratando dos cegos.

Cumpre familiarizar a criança cega com todas as fórmas tateáveis, fazendo-a imaginar pela analogia e pela reprodução miniatural, aquelas que se lhe não acham ao alcance da mão. A aquisição dessas noções elementares indispensáveis, bem como de outras semelhantes, tambem imprescindiveis, que o vidente consegue espontaneamente, abrirá caminho plano á futura educação intelectual.

Mais do que o vidente, por conseguinte, o cego precisa de um estágio pre-escolar em jardim da infáncia, condicionado, é claro, ás necessidades que lhe são peculiares.

Na medida das reduzidas possibilidades que a falta de espaço lhe proporciona, o Instituto S. Rafael procura colimar êsse escopo.

A educação física propriamente dita deve ser esmeradamente cuidada em estabelecimentos de cegos. É que a cegueira, em regra, desestimula ao movimento intensivo, ginástica natural indispensável.

Importa tambem não descurar dos jogos desportivos, já largamente praticados na Inglaterra e nos Estados-Unidos, como na Itália.

Praticamente, um dos principais fins da educação física e da educação sensorial é adestrar os cegos para os trabalhos manuais, a que me referirei agora, perfunctoriamente.

Tal ensino não deve limitar-se a prepará-los para o exercício das profissões clássicas dos cegos: empalhação, fabrico de vassouras, espanadores e artigos similares, encadernação, afinação, etc., em regra pouco lucrativas, salvo quando um privilégio os põe ao abrigo da concorréncia, como acontece alhures.

Cuida-se agora, em toda parte, de aumentar nesse particular as possibilidades de renda. Novas profissões têm sido ensaiadas com bom êxito.

Por outro lado, dedicam-se os privados da visão, subsidiariamente a pequenos comércios, como na França e nos Estados-Unidos, onde muitos vivem de vender jornais, cigarros e outras miudezas, atividade essa que, aliás, já foi tentada entre nós.

Demais, é fácil verificar que em toda a grande ou pequena indústria há trabalhos ao alcance dos cegos, bastando apenas que se dissipe a névoa de preconceitos que tolda, por vezes, a mentalidade dos industriais.

Todavia, na Alemanha, são êsses obrigados por lei a empregar em suas fábricas certa percentagem de cegos. Note-se de passagem, que é de grande releváncia o papel das associações em favor dos cegos, as quais lhes devem conseguir, organizar e proteger o trabalho.

Nas escolas é de mister visar, primeiramente, o aprendizado do ofício, sem preocupações estritamente industriais.

Importa, além disso, não desenvolver demasiado esse ramo do ensino em detrimento dos outros. Nesse particular vem muito a propósito a máxima de Romagnoli: "First men, then workmen".


III - EDUCAÇÃO INTELECTUAL

O ensino primário é indispensável, e mister se torna fazê-lo obrigatório.

A classe dos cegos não é singular. Como entre os videntes, só uma minoria privilegiada disporá dos dotes necessários a um desenvolvimento intensivo da cultura intelectual. Entretanto, as humanidades são seguidas por grande número dêles e vários se habilitam a altos estudos nas Universidades, fato que já não causa estranheza em países mais adiantados do que o nosso.

Não é justo, pois, por um preconceito incompatível com a época atual, ou pior ainda, em obediéncia a imposições de uma burocracia ôca, seja impedido aos cegos o ingresso ás academias que êles podem cursar, como a Escola de Direito e a prometida Faculdade de Educação, Ciéncias e Letras.

É verdade que o Instituto S. Rafael e o Instituto Benjamin Constant ministram instrução primária e secundária; dominando no primeiro o critério indiscutivelmente preferível da especialização em música, ofícios ou humanidades, conforme a vocação revelada, concluidos que sejam os dois primeiros anos do curso secundário, que constituem o curso complementar.

A desejada eficiéncia da cultura intelectual depende precipuamente de uma biblioteca constituida de livros escritos no sistema Braille.

As iniciativas neste terreno têm sido, infelizmente, até aqui mal sucedidas. Fio que a semente em boa hora lançada na Biblioteca Nacional pela benemeréncia da Viscondessa de Cavalcanti, e que, apesar do ambiente, já vingou e vai crescendo, possa em breve frutecer opulentamente em magnífica realização.

Meia hora dos lazeres de senhoras e senhoritas, que facilmente aprenderão o sistema Braille, bastará a erguer êsse soberbo monumento de cultura. É um meio fecundo de que o vidente dispõe para ajudar os cegos a se auxiliarem mutuamente, consoante a recomendação do Cap. Fraser.

Em Paris, a Biblioteca Braille conta hoje mais de cem mil volumes. Além de algumas tipografias, enriquece-a quotidianamente um benfazejo exército de quatro mil copistas.

A Argentina, que só mui recentemente começou a cuidar da educação dos cegos, muito depois do Brasil, já possue, para vergonha nossa e para nosso estímulo, rica biblioteca Braille e magnífica revista.

Em tudo isto está implícito um apêlo ao coração e á inteligéncia da mulher brasileira, a cujo devotamento os cegos confiam a concretização dêsse ideal.

Observarei por último, neste capítulo que é condição sine qua non do desejado progresso da educação dos cegos a preparação dos professores e diretores, já na cultura e na pedagogia gerais, já na pedagogia especializada e em todos os assuntos concernentes ao cego e á cegueira.

Nêsse sector da pedagogia dos cegos constitue padrão de glória e seguro paradígma a "Escola de Métodos para educação dos cegos", em Roma, superiormente dirigida por Augusto Romagnoli, cego e doutor em Filosofia pela Universidade de Bolonha.


IV - EDUCAÇÃO MORAL

Mormente em país como o nosso de genuina formação católica, em que pese ao anacronismo de educadores laicizantes, são acordes os maiores pedagogistas em fazer descansar sôbre a moral católica o majestoso edifício da formação do homem.

E a educação dos cegos naturalmente se enquadra na abrangéncia dêsse princípio.

Diz o professor Romagnoli no excelente trabalho apresentado á Conferéncia Internacional dos Cegos, reunida em Abril dêste ano em Nova York: "Na minha opinião, o mais sério problema na educação dos cegos é a formação do caráter. O cego deve ser especialmente dotado pelos dons que constituem a luz interior e que compensam a fala da luz exterior, dando-lhe serenidade, amabilidade e outras qualidades que atraem o auxílio dos que vêem... A religião é sem dúvida o maior coeficiente; a leitura de bons livros, a regular frequéncia das igrejas, atos de desinteresse são tambem auxílio valioso".

É de notar que o Instituto S. Rafael foi dos primeiros estabelecimentos em incluir o ensino religioso em seu programa, antecipando-se á sábia lei Antonio Carlos sôbre o assunto.

É de mister dar aos cegos uma noção exata do que podem conseguir e do que lhe não está ao alcance, a fim de evitar a afoiteza como o desánimo.

Ha principalmente dois perigos sérios que os ameaçam. Derivam ainda da errónea conceituação da cegueira. É a vaidade que póde causar um julgamento de sua capacidade como superior á realidade, ou o esmorecimento que póde ocasionar o menosprêzo de suas possibilidades.

Importa saturar o espírito do cego de uma bem entendida solidariedade de classe, que não vise isolá-lo da comunhão social, mas antes integrá-lo nela.

A vitória das nossas reivindicações depende da confraternização de indivíduos e associações em tôrno do ideal comum. É imperativo de ordem biológica. A êle não logrará esquivar-se classe fraca como a dos cegos, esmagada, ademais, sob uma secular montanha de preconceitos...


V - EDUCAÇÃO ARTISTICA

O ensino da música reclama o maior desvelo.

Desde o jardim da infáncia, cumpre se lhe dedique atenção, a fim de acordar a vocação que, latente, existe na criança.

Através do curso deve dar-se á música um desenvolvimento completo.

Não se trata de fornecer ao "pobre cego" um doce derivativo, uma distração inocente destinada a minorar a "dôr da cegueira".

Claro que êle, como o vidente, tambem se embala na estesia da arte. Mas a música, além de constituir complemento indispensável de sua cultura, servir-lhe-á certamente como meio de vida.

Na música, sente-se o cego inquestionavelmente á vontade, porque nela reina soberano o sentido da audição.

Entretanto, corre por aí, á guisa de axioma, certa afirmativa que devo contraditar.

Muitos estão convencidos de que todo o cego "dá para música" e de que os cegos "não dão sinão para música".

Não é verdade. Como entre os videntes, é vário o pendor dos que não vêem.

Na música, o preconceito lhes tolhe menos o progresso, e menos intensa é a concorréncia. Vem daí o falso pressuposto.

Posta a questão em seus devidos termos, é muito para desejar que particulares e governantes facilitem aos cegos o exercício de profissões em que a música prevaleça, ensejando-lhes, por exemplo, o ingresso ao magisterío, como professores de música em estabelecimentos públicos.

Não deve, porém, cifrar-se á música a educação artistica.

Entre o material escolar devem incluir-se moldes de gesso das obras primas da escultura, modelos de tétos abobadados, capitéis e outros motivos arquitetónicos, de sorte que as crianças, adquiridos os elementos fundamentais, se habilitem a, mais tarde, graças ás impressões táteis e auditivas, interessarem-se por êsses prazeres estéticos, pelo menos ao ponto de serem nêles iniciadas, podendo assim compreender o interesse que despertam nos videntes.

São ainda recomendáveis desenhos em relêvo de monumentos cujas reproduções permitam aos cegos a observação do respectivo porte, situação e mais característicos, bem como medalhões que interessem os alunos pelas várias figuras e pelas diferentes expressões dos semblantes, de acôrdo com as emoções.

"No prazer revelado pelos nossos alunos cegos (diz Romagnoli) em tatear e reproduzir tais coisas, por mais toscamente que seja, no papel ou no gesso, está a garantia segura de que este ensinamento lhes é útil."


VI - VALOR ECONOMICO, SOCIAL E POLÍTICO DA EDUCAÇÃO DOS CEGOS

Resta-me ainda tocar êsses pontos, de corrida como tenho feito, por me conformar á índole do presente estudo.

A educação fornece aos cegos meios para ganhar a vida. Graças a ela é-lhe dado exercer êsse direito insonegável, uma de suas reivindicações:

ganhar a vida com o suór do proprio rosto.

Assim, o cego, elevado moralmente por se libertar da mendicidade, deixa de ser um pêso morto, e entra na vida ativa como algarismo significativo na grande soma dos valores sociais.

É, pois, um cidadão como qualquer outro que deve entrar na posse plena de todos os direitos políticos, de cujo livre exercício não é lícito privar a quem de bom grado cumpre todos os deveres.

Nos grandes centros de civilização, os cegos votam e são elegíveis, principalmente depois da Guerra, e não vivem, como entre nós, em eterna minoridade deprimente.

Deve o Estado, como é de lei na Inglaterra, considerar "o cego adulto como um cidadão e a criança cega como um cidadão em potencia."

A situação jurídica dos cegos é, pois, materia que deve entrar nas cogitações da proxima Constituinte. Esperemos.


VII - O QUE HÁ NO BRASIL EM FAVOR DOS CEGOS

Desde 17 de setembro de 1854, data inaugural do "Imperial Instituto dos Meninos Cegos", hoje "Benjamin Constant", trata-se, entre nós, de instruir os que não vêem.

A diligéncia de José Alvares de Azevedo, cego educado no Instituto de Paris, a influéncia do médico do Paço, Xavier Sigaud, e o interesse de D. Pedro II pelo progresso cultural do Brasil foram as forças que tornaram possível a fundação do quási centenário Instituto, dois anos antes de oficializado o Braille na propria França, berço de seu genial inventor.

Só muito mais tarde, a 2 de setembro de 1926, no govêrno Melo Viana, foi fundado em Belo-Horizonte o "Instituto S. Rafael".

Pode citar-se ainda em S. Paulo o "Instituto Padre Chico", agora em seus primeiros passos.

Visando organizar e proteger o trabalho dos cegos, contam-se no Rio, a "Liga de Auxilios Mutuos dos Cegos no Brasil", a "Sociedade Protetora dos Cegos" e a "União dos Cegos no Brasil", e em S. Paulo, a "Sociedade Promotora de Trabalho para os Cegos".

Todas essas associações têm prestado á causa dos cegos assinalados serviços, mas carecem de comunhão de vistas e unidade de ação.

Os três Institutos existentes não bastam para instruir os 33.000 cegos brasileiros, ainda que cifrem á infáncia sem vista a sua atividade, afastando de seu raio de ação o sério e urgente problema da educação e reeducação dos cegos adultos, que pedem cuidados especiais em estabelecimentos á parte.

Apesar dos esforços diuturnos de cegos e videntes bem intencionados, o "Instituto Benjamin Constant" evolve penosamente, sofrendo, de contínuo, as consequéncias da falta de compreensão dos governos no concernente á possibilidade e á utilidade da educação dos cegos.

Contudo lá pudemos estudar, os que, na medida de nossas forças, vamos terçando armas na imprensa, na cátedra e na tribuna, pela emancipação dos cegos do Brasil.

O "Instituto S. Rafael", desveladamente dirigido pelo prof. José Donato da Fonseca, teve que superar nos primeiros tempos, embaraços de vária ordem.

Hoje, porém, tendo já comemorado o seu quinto aniversario, apresenta progresso devéras consideravel, relativamente ao curto período de existencia.

Funcionam já com eficiéncia demostrada em exposições e em provas públicas anuais e obecendo, tanto quanto permitem as circuntáncias, a uma reta orientação pedagógica, os seguintes cursos: o primário, a primeira série do curso secundário, os cursos de solfêjo e de harmonia, aulas de piano, canto e violino, violoncelo, instrumentos de sôpro, aulas de ginástica e jogos desportivos, de datilografia, modelagem, Jardim da Infáncia, trabalhos de agulha, oficinas gráficas, que fornecem ao Instituto os livros didáticos, e, finalmente, as de encadernação, empalhação, vassouras, escôvas, etc., e a de marcenaria.

Todavia, está seriamente ameaçado de estancar-se todo êsse progresso promissor, a que apenas me pude referir em sêca enumeração.

Assim que, em um velho edifício adaptado, com capacidade no máximo para cincoenta alunos, vivem internados sessenta e poucos, mal acomodados higiénica e pedagogicamente, sem embargo dos cuidados da administração, enquanto trinta pretendentes á matrícula, com seus requerimentos indeferidos, e vítimas de clamorosa injustiça, não conseguem entrar para o Instituto, que não dispõe de espaço para os receber!!!

Baldadas têm sido campanhas pela imprensa, como sem resposta ficaram até hoje as reiteradas reclamações do diretor em vários relatórios consecutivos...

Estatística optimista, baseada no recenseamento de 1920, estima em 6.000 o número de cegos em Minas. Dêsse dado ressalta a insuficiéncia de um só Instituto, ainda que fosse vasto e bem aparelhado, para atender ás múltiplas necessidades dos cegos no grande Estado.

Tal fato é, aliás, observado em todos os Estados do Brasil.

Pior ainda é a situação dos cegos no norte do país, distante dos Institutos existentes e onde, paradoxalmente, mais elevado é o coeficiente de cegueira, segundo as estatísticas.

Urge, pois, o estabelecimento e a execução de um plano nacional de educação dos cegos, que abranja os vários aspetos sucintamente indicados ao longo deste desprentensioso trabalho.

Tal como ideei, deve basear-se na confederação das escolas e na sua especialização em determinados ofícios.

Por conformá-la á nossa configuração geografica, que alarga perspectivas e crêa necessidades e possibilidades peculiares a cada região, penso que as escolas devem federar-se, em cada estado, em tôrno de um Instituto Central.

Correspondencias, visitas e reuniões periódicas nacionais vincularão entre si todas as instituições, e um Conselho Nacional em contacto com a Repartição Internacional dos Cegos com séde em Paris, resolverá, de acordo com as associações e os Institutos autónomos, as questões de ordem geral.


VIII - ESBÔÇO DE UM PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DOS CEGOS

Á guisa de conclusão deste trabalho ofereço, como diretriz, o esbôço de um plano, que é para desejar mereça o exame esclarecedor da IV Conferencia Nacional de Educação.

Haverá na Capital de cada Estado uma escola superior de Ciéncias e Letras e de Música, com um Jardim da Infáncia e um Curso Primário anexos. O Curso de Ciéncias e Letras, independente do outro, terá por fim o preparo especializado de professores, diretores, assistentes-tecnicos para os institutos de educação dos cegos e de futuros candidatos á Universidade.

Em igualdade de condições, os portadores dos diplomas expedidos pela secção de música poderão lecionar a matéria de sua especialidade em qualquer estabelecimento de instrução.

Os cursos anexos servirão como campo de pratica aos futuros professores.

Pelo interior de cada Estado, de acordo com as necessidades locais, traduzidas nos coeficientes de cegueira, serão fundadas escolas regionais.

Em cada uma dessas escolas o ensino primário deve ser ministrado compulsoriamente a todos os cegos em idade escolar, além de elementos de música teorica e instrumental e um ou dois ofícios, nos quais cada escola regional deverá especializar-se.

Os alunos que revelarem vocação especial para mais altos estudos serão encaminhados ao Instituto Central.

A manutenção do Instituto Central e das escolas regionais incumbirá, em ação simultanea, á União, ao Estado, ao Município, ás pensões dos alunos contribuintes e a uma associação em prol dos cegos, que deve existir em cada Estado.

Enquanto êsse sistema educacional não estiver estabelecido em todas as unidade da Federação, todas as escolas deverão ser franqueadas a qualquer cego brasileiro, devendo o Govêrno de seu Estado natal custear as despesas de sua viagem até a escola mais próxima.

Cerro com grande optimismo essas ligeiras considerações. A hora que passa é de verificações amargas e verdades sem rebuços, mas é tambem de renovação integral e de emenda aos erros do passado. Tudo é lícito esperar do espírito novo que a Revolução gerou.

Ao govêrno do meu país, a todos que nesta terra têm, na pena, a arma de sua inteligéncia realizadora, aos membros deste magno certame, antologia viva e fecunda de nosso escól intelectual, eu êrgo o confiante apêlo de todos os que não vêem e clamam por claridade nessa terra de luzes.

 

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EDUCAÇÃO DOS CEGOS NO BRASIL
Aires da Mata Machado Filho
Os Amigos do Livro Belo-Horizonte
1931  

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6.Fev.2015
publicado por MJA