Aires da Mata Machado Filho
Jesus cura um cego -
azulejos séc. XVIII no Convento de São Paulo, Serra d'Ossa,
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PRIMEIRA PARTE: O cego e a cegueira
I - O conceito da cegueira
II - Efeitos da cegueira
III - Metodologia dos cegos
SEGUNDA PARTE: Solução do problema
I - Nota predominante
II - Papel da educação dos cegos na ordem física
III - Educação intelectual
IV - Educação moral
V - Educação artistica
VI - Valor económico, social e político da educação dos cegos
VII - O que há no Brasil em favor dos cegos
VIII - Esbôço de um plano nacional de educação dos cegos
PRIMEIRA PARTE
O cego e a cegueira
I - O CONCEITO DA CEGUEIRA
Muitas vezes o cego em seu caminho ouve dizer ao vidente, que por acaso
o encontra "Tão moço, e cego!" É como se dissesse: "Tão moço e na idade
em que tudo são luzes, envolto nas trevas; tão jovem ainda e, na quadra
em que se concebe e realiza, condenado á inação; na manhã da vida, e com
a noite na alma..."
Vencendo o temor natural, não do cego, mas da cegueira, que há no
subconsciente da pessoa que vê, temor este que lhe vem á tona do
espírito, quando se lhe depara um órfão da visão, o vidente detém o cego
e o interroga como vive, plenamente convencido de que sua existéncia sem
a vista é um milagre. Se o cego, instruído e cortês, dá ao curioso
interlocutor uma idéia sumária da vida dos que não vêem, se lhe fala que
é professor, músico ou afinador de pianos, que cultivou o espírito em um
colégio, graças a uma educação especializada, o vidente, atónito,
boquiaberto, passa a considerar o cego um ente á parte com uma
mentalidade sui generis, com um modo de vida exclusivamente seu,
insulado em um mundo próprio, dentro do próprio mundo.
Exagerados ambos, cada qual em seu sentido mais imperfeito, estes
conceitos são igualmente prejudiciais. Note-se, porém, que o primeiro
deles prevalece, em regra.
Para a generalidade dos videntes, o cego é incapaz de qualquer ato
mental ou físico. São raros os que dele fazem uma idéa perfeita, porque,
para isto, é preciso lidar com o cego, sem preconceitos, e observá-lo. O
próprio Valentin Haüy, cuja influéncia realizadora e única na evolução
dos cegos adiante mostrarei, escreveu a Luiz XIV: "Nous ne pretendons
pas mettre jamais le plus habile de nos aveugles en concurrance d'aucun
genre, même avec le plus mediocre des savants ou des artistes
clairvoyants".
As relações passageiras com algum cego instruído podem desfazer
momentaneamente os efeitos da primeira impressão. Depressa, porém, a
imagem do cego mendigo vem substituir a do cego ativo e trabalhador.
Estas falsas idéas, que hoje, mercê de Deus, já vão desaparecendo, são
partilhadas até pelos que tomam sôbre os ombros a séria responsabilidade
da palavra escrita. A Literatura tem-se limitado a bordar variações, não
raro de beleza peregrina, sôbre o velho tema do preconceito. Aliás, isto
é natural, pois que, sendo o homem o centro, o fóco da obra de arte, a
sua projeção nessa tem que ser marcadamente intensa.
Na Mitologia e na Literatura antiga dos gregos a cegueira é sempre um
símbolo. Haja vista a representação do Amor e da Fortuna. Êsse último
simbolismo ressalta de "Pluto", comédia de Aristófanes. A cegueira, como
representação da miséria humana, vem no "Edipo Rei" de Sófocles. Na
antigüidade, o único escrito que contribuiu para evidenciar as
possibilidades intelectuais dos cegos foi uma página de Cicero do "5.º
Livro ad Tusculanos". Mas o grande escritor latino contentou-se com a
citação de cegos ilustres, sem nada adiantar no terreno psicológico.
A Idade Média abriu ao cego, de para em par, as portas da Literatura.
Mas, de que maneira deplorável! Naqueles tempos de religiosidade intensa
a mendicidade rendia mais do que hoje. Ainda não havia meios de
aproveitar com eficiéncia as energias dos indivíduos com anormalidades
físicas. Nem os conhecimentos de então, nem a organização social
permitiam outro expediente de aliviar a coletividade do pêso dos
mendigos, a não ser os asilos, que começaram a ser fundados pela Igreja
Católica. A mendicidade degrada e avilta. E toda esta sujeira moral
sobrenada repugnante, na Literatura da época.
A cura do cego de Jericó e a conversão de Longino constituíram no século
XV assunto dos "mistérios", última moda do tempo nas Letras.
O século XVIII imprimiu novo cunho ao movimento literário, a cuja frente
se colocaram os filósofos, aos quais a cegueira, desde logo, seduziu.
Foi então que veio a lume, entre outros livros, a "Lettre sur les
Aveugles" por Diderot, em que, a par de reflexões profundas e verdades
incontestáveis, ha tambem lamentáveis erros. Nesse trabalho o autor
observa o notável matemático cego Sounderson. A exposição do senso do
obstáculo que os cegos possuem; as idéas expendidas sôbre o possível
aproveitamento pedagógico do tato, que, certo, influiram no espírito de
Haüy; a antecipação de muitos anos no lembrar um método de educação para
os cegos-surdos-mudos, deram á sua obra grande interesse. Os erros em
que incidiu foram originários da doutrina do sensualismo que êle e
Condillac fundaram, segundo a qual a inteligéncia é uma resultante das
impressões sensoriais. Ora, concluem Diderot e seus adeptos: "Sendo a
vista o mais precioso, o mais aplicado dos sentidos, o indivíduo que não
vê será completamente diverso dos outros." Que concepção acanhada da
vida humana!
Se nas épocas precedentes não se atingiu a verdade, ninguém contará com
ela no Romantismo.
No "Gracien" de Lamartine, o cego aparece envolvido no manto da
inocéncia, e por êle se sacrificam os mais queridos afetos.
Na obra de Vitor Hugo o cego surge em "l'Homme qui rit" e em uma página
sublime dos "Miseráveis". Pode-se-lhe ver o pensamento integral,
majestosamente lindo na ressonáncia sem par de suas antíteses, mas,
inverídico, no que tange á psicologia, condensado nestes versos de "Les
Contemplations":
"L'aveugle voie dans l'ombre un monde de clarté;
"Quand l'oeil du corps s'éteint, l'oeil de l'esprit s'ilumine".
Aí está uma fórma comum do preconceito: a elevação dos cegos sôbre os
outros homens.
A cegueira que isola vem em "Grillon du foyer", de Dicmen; a cegueira
que torna impotente ressai de "Les Aveugles", drama simbólico de Maurice
Maeterlink.
Tudo isto muito belo, muito romanticamente belo!
Nos tempos que correm, com os últimos progressos pedagógicos dos não
videntes, o cego aparece na Literatura tal qual êle é. Os livros, a
principio, não passam de tratados de educação dos cegos. A guerra,
porém, que empobrecendo as fileiras dos exércitos, enriqueceu as nossas
fileiras, volveu definitivamente para a cegueira as cogitações dos
espíritos cultos. De então para cá, os livros a seu respeito se
multiplicaram. A ter de citar poucos, prefiro não citar nenhum, e êles
são muitos.
Mas, onde as causas dêsses julgamentos falsos, expressos pela palavra
falada e escrita? Tudo se explica á luz da psicologia. O vidente quando
pensa na cegueira, imagina-se sem vista, e portanto sem ação. É que,
vivendo quasi exclusivamente pela vista, êle despreza, por lhe não serem
necessárias, muitas propriedades dos outros sentidos, das quais, no
entanto, o cego é forçado a servir-se. A causa do preconceito, por ser
psíquica, é difícil de desarraigar. Tanto é natural a pena que se tem do
cego, como a admiração excessiva pelo pouco que êle acaso faça.
II - EFEITOS DA CEGUEIRA
A cegueira, que é exclusivamente um mal ocular, não impede absolutamente
um completo desenvolvimento das faculdades mentais.
Em verdade, há casos de degenerescéncia mental, pois que a cegueira, ás
vezes, vem acompanhada de alguma enfermidade cerebral. Mas cumpre
acentuar mui fortemente que tais enfermidades é que causam a cegueira, e
que essa nunca motiva aquelas.
A côr, a luz, o belo físico e a beleza panorámica são as únicas noções
inacessiveis aos cegos porque resultam de impressões puramente visuais.
Todos os outros conhecimentos, porém, lhes podem ser fornecidos pela
ação dos sentidos que possuem perfeitos. Demais, essas idéas
inacessiveis apenas o são para os cegos de nascença, em menor numero,
aliás. Além disso, elas não são concepções intelectuais de sorte que não
tolhem, de maneira alguma, a formação mental dos cegos. Quem já leu
Castilho, cego desde 6 anos, não póde pôr em dúvida o muito que consegue
a memória, pois que os 6 anos de vida como vidente, lhe bastaram para
formar uma idéa perfeita das belezas estéticas da natureza, que tanto
colorido lhe dão ás descrições perfeitas.
A cegueira oferece oportunidade ao emprêgo de certa propriedade tátil
denominada sensação de rugosidade. A este respeito, tudo está
sintetizado em uma frase de Pierre Villey, um dos vultos mais notáveis
entre os cegos cultos, professor da Universidade de Paris e da Faculdade
de Letras de Caen, autor de magistrais reflexões sôbre a obra de
Montaigne e de vários livros sôbre o cego e a cegueira, os quais
mereceram recentemente da Academia Francesa um prêmio de 3.000 francos.
Eis como define a vista e o tato: "A vista é um tato a grande distancia,
com a sensação da côr a seu favor; o tato é uma vista de pequeno
descortino, faltando-lhe a côr, e tendo para compensar, a sensação da
rugosidade. (Le Monde des Aveugles).
Note-se, de passagem, que não é a vista, senão o tato, que distingue o
homem dos outros animais.
Sem desprezar as sensações elementares que nos vêem ao cérebro através
do olfato e do paladar, passo a estudar o sentido da audição.
É inegável a ação preponderante do ouvido na formação mental da criança
cega ou vidente. A linguagem se forma das impressões auditivas. A
conversação não existiria sem o ouvido. Ouvindo, aprende-se muito mais
do que vendo. O ouvido é mais intelectual do que a vista, porque a
audição leva idéas ao cérebro, e os olhos levam imagens. Montaigne, que
sabia muito bem o valor da palavra oral como fonte de conhecimentos,
escreveu: "Je consentirais plutôt de perdre la vue que l'ouïe".
É que, como muito acertadamente disse Aristóteles: "A vista é a
faculdade mais importante para as necessidades animais; mas, no que
respeita á atividade intelectual, nenhuma se iguala ao ouvido". A
observação dos fatos corrobora esta asserção.
Com efeito, no trabalho manual, o surdo é mais desembaraçado do que o
cego; ao contrario, no trabalho intelectual, o cego que ouve leva de
vencida o vidente surdo. Vem ainda a pêlo dizer que a sensação do
obstáculo, este pressentir do perigo que intercepta a passagem ao cego,
que o povo explica como um dom especial da Providencia, e psicólogos
bisonhos querem que seja milagre de um imaginário sexto sentido, não
passa de uma impressão auditiva.
Sem a vista, embora, o indivíduo póde adquirir todas as idéas
necessárias a um pleno desenvolvimento intelectual.
Ainda vou mais longe: a deficiéncia visual priva o homem de certos
divertimentos fúteis, razão por que o cego encontra um gozo completo nas
distrações intelectuais. Por isso, é que nêle se desenvolve facilmente o
poder de concentração, o amor á reflexão e á leitura. Em conclusão:
respectivamente á vida espiritual, o cego é, até certo ponto, superior
ao vidente. As dificuldades que, por vezes, lhe embaraçam a cultura são
de ordem meramente material.
Todavia, a cegueira reduz o raio de ação do homem. Reduz, mas não anula,
como pensam muitos. Neste terreno, como em tudo mais, muito póde a fôrça
de vontade e a educação. Sem falar em todos os cegos brasileiros que
ganham a vida por si, notabilizando-se, não raro, em sua profissão,
citarei os nomes de alguns cegos estrangeiros, cuja vida intensa serve
para comprovar o que afirmei, linhas atrás.
Démonet possue em Vichy uma fábrica de pianos, que êle mesmo fundou,
donde já saíram milhares de instrumentos. O primeiro prêmio em França do
concurso comemorativo do centenário da morte de Schubert, organizado
pela firma norte-americana Columbia Phono, foi conquistado pelo ex-aluno
do Instituto de Cegos de Paris, Guillemoteau.
Ettore Fornasa, de Vicenza, é diretor de uma tipografia e de duas
revistas para uso dos cegos e de uma escola de música. Caso típico é o
de Chopier que, depois de sair da escola, tentou várias profissões
exercidas comumente pelos cegos, adotando, depois, a de mercador de gado
em sua aldeia natal. Filho de magarefe, familiarizou-se desde a infáncia
com os bois, e é de ver a precisão com que calcula, pelo tato, a idade,
o pêso e o rendimento em carne, da rês.
Fala-nos o "Times Weekly" de uma jovem cega que, tendo entrado aos 18
anos como datilografa para o Ministerio do Trabalho, na Inglaterra,
exérce hoje, com 22 anos de idade, as altas funções de chefe do Gabinete
do Ministro.
O Brasil não fica mal em cotejo com os países estrangeiros.
Nossa galeria de cegos notáveis apresenta individualidades de grande
valor, documentação expressiva deste meu pobre estudo.
Entre os mortos mencionarei: Antonio Lisbôa Fagundes da Silva, erudito
professor, que lecionou francês no Instituto Benjamin Constant e
matemáticas em aulas particulares, a alunos da Escola Militar, autor de
excelente gramática francêsa, poeta e jornalista; Augusto José Ribeiro,
fecundo e primoroso vate; Cesario Lima, orador eletrizante e mavioso
poeta; José Cerqueira, artista do piano, que teve a honra de tocar a
quatro mãos, com Gottschalk; Francisco Gurgulino de Souza, poderosa
organização de artista, habil executor de piano e organista exímio,
poeta de cantantes carmes, autor de músicas em que ciéncia e inspiração
maravilhosamente se completam e de um ótimo compéndio de harmonia.
Constitue esta pleiade fulgurante, gloriosa tradição do magistério, do
Instituto Benjamin Constant.
Entre os vivos, por não ferir modestias, nem me arriscar a omissões
involuntarias, deixo de me referir a professores de valor, artistas de
grande merito, compositores e executores, a poetas e a jornalistas.
Apontarei, apenas, o nome de Mauro Montagna, o decano do magistério, do
Instituto Benjamin Constant, meu venerado mestre, a quem tributo aqui
respeitosa homenagem.
Fundou êle a Sociedade Protetora dos Cegos e uma Escola Profissional
para cegos adultos, de que foi diretor. É autor de dois mapas animados,
um da America do Sul, que figurou em destaque na Exposição Nacional de
1922 e outro do Districto Federal, meticulosos trabalhos de geógrafo, em
que a ciéncia corre parelhas com a engenhosidade.
É tambem de sua autoria preciosa coleção de mapas em relêvo do Brasil e
seus Estados, para uso das escolas de cegos.
III - METODOLOGIA DOS CEGOS
Para compreensão da tese que sustento, cumpre-me estudar, de relance
embora, a marcha evolutiva dos cegos, através dos processos de leitura e
escrita.
Antes da existéncia ou difusão dêstes, cegos houve que se notabilizaram,
graças a seus dotes geniais, valendo-se de sistemas de leitura, escrita
e calculo inteiramente individuais, cujo éco longinquo, mal chegou até
nós. Entre esses citarei os seguintes, sem me referir a Homero e outros
cegos dos tempos heróicos: Dídimo, de Alexandria (século IV), filósofo e
teólogo, o primeiro de que há notícia; Nicaise, de Maline ou de Verdun;
Fernand Bruges, Pierre Dupont, de Paris (fim da Idade-Média); Ultrich
Schomberg (1601-1648), cego desde 2 anos e meio que, segundo Leibnitz,
ensinava matemáticas e filosofia em Koenigsberg; no século XVIII,
Sounderson o grande matemático, assaz conhecido professor da
Universidade de Oxford na vaga do celebre Newton, e Moyse, professor de
física e química; Penjon (comêço do século XIX), outro matemático;
Caraval, de França, e Blacklock, da Inglaterra, ambos poetas.
Em 1784, o diplomata francês Valentin Haüy, observando que um cego a
quem dera esmola tinha reconhecido pelo tato o valor da moeda, notou que
no uso dêsse sentido é que estava a chave do problema da educação dos
cegos. Nessa base, ideou um sistema constituído de letras do alfabeto
usual, em relêvo, formadas de linhas lisas. Conquanto o alfabeto Haüy
apresentasse graves inconvenientes, o seu autor teve o mérito enorme de
dissipar a bruma que envolvia os cegos. A complexidade do desenho dos
caracteres, a dificuldade que tem o tato de perceber linhas lisas, o
volume extraordinario dos livros e a impossibilidade da escrita, tais
eram as desvantagens do sistema, as quais impulsionaram a evolução dos
processos de leitura encaminhando-a á substituição da linha lisa pela
pontuada, até atingir a perfeição, no sistema de Luiz Braille.
Em 1809, veio ao mundo em Coupvray, perto de Paris, esse luzeiro dos
cegos, que imprimiu á obra social do grande Haüy o cunho genial que lhe
faltava. Aos 16 anos, (não admito precocidade igual a esta), ainda aluno
do Instituto dos Cegos de Paris, concebeu o sistema maravilhoso, que é
usado, ha mais de 100 anos, tal como lhe brotou do cérebro. Fazendo
todos os arranjos possíveis com 6 pontos, obteve 63 combinações com as
quais deu ao cego as letras, a música e os sinais matemáticos. O
Braille, pelo fato de diferir muito do sistema comum, não isola o cego
dos videntes. Por meio do sistema Ballu e outros processos e,
principalmente, por intermedio da datilografia, o cego pode comunicar-se
graficamente com êles.
A implantação oficial do Braille foi dificil, porque os diretores dos
institutos dos cegos, videntes pela maior parte, não se conformavam com
um alfabeto especial. Finalmente a oficialização veio em 1856.
No estrangeiro o Braille teve de lutar com o sistema Klein, nos países
onde se fala o alemão ou línguas similares, e contra o sistema Moon, nos
Estados Unidos. Mas o Klein foi derribado em um concurso, e o Moon foi
assimilado pelo Braille, sendo hoje empregado apenas, aliás com
vantagem, para os cegos adultos refractarios ao Braille, pela
dissemelhança entre êste e o sistema comum. O Braille, pois, é hoje
universalmente adotado.
O cego, bem exercitado, lê cêrca de 130 palavras por minuto, o que
corresponde á rapidez normal da leitura do vidente.
Os exemplos que virão abaixo bastam para mostrar quanto pode a educação
especializada. Nenhum caso impressiona tanto como o de Helena Keler, de
Boston, educada pela admiravel miss Sulivan. Aos 18 mêses ficou cega e
surda, antes de saber falar. Vinte dias depois do início dos estudos,
miss Sulivan, fazendo-lhe um sinal nas mãos quando ela tateava alguma
cousa, deu-lhe a entender que as idéas são susceptiveis de
representar-se por sinais. Colocando os dedos nos lábios do interlocutor
ela lia facilmente as palavras emitidas. Com um mês e meio de estudo,
aprendeu o Braille. Imitando os movimentos faríngeos da língua e dos
lábios de miss Sulivan, aprendeu a falar e apropriando-se dessas
vibrações, "ouve" tudo que se lhe diz. (Permita-se-me o verbo). Conhece
não só o francês, o inglês e o alemão, mas tambem o latim e o grego,
necessarios ao curso universitário que fez brilhantemente. Hoje em dia,
é um dos vultos eminentes da humanidade culta, autora de várias obras
muito traduzidas. Vive feliz, entre os livros, dedicando-se ao estudo.
Não resisto á tentação de citar uma frase sua, em que transparece o
encantamento de uma felicidade suprema: "Sinto-me tão feliz que quereria
viver eternamente; é que há tanta cousa bela que aprender."
Laura Brigdman, cega, surda, muda, sem olfato nem paladar, conseguiu,
todavia só por meio do tato, possuir alguma instrução, que poderia ter
sido ampliada.
Se a educação especializada consegue tudo isso de individuos tão
mutilados fisicamente, que não poderá ela fazer dos que têm a vista,
somente a vista, prejudicada? Dêles fará homens que, ao invés de pêso
morto, de toma-lugares, de parasitas, poderão colaborar para o
progresso. Convenho que o mundo marchará sem o concurso do cego. Mas, si
êle pode marchar com o mundo, por que deixá-lo atrás?
O aproveitamento dos cegos cabe perfeitamente no programa da civilização
moderna; tanto assim é, que os países mais adiantados é que solucionaram
o problema dos cegos. É que o progresso precisa ser ramificado e
homogéneo. A árvore mais formosa é aquela cujos galhos, tronco e ramos
guardam entre si uma harmonia perfeita, uma proporcionalidade completa.
SEGUNDA PARTE
Solução do problema
I - NOTA PREDOMINANTE
Esquematizados, de ligeiro, os aspétos mais frisantes do problema,
colhe-se que o mal da cegueira não reside na cegueira em si, mas na sua
errónea conceituação, geradora de idéas falseadas e de lamentáveis
atitudes.
Reformado o juizo pela vitória da razão sôbre o sentimentalismo, e
orientado este através da meta conducente á verdadeira felicidade dos
cegos, impõe-se, á evidéncia, a conclusão de que a educação integral,
vasada nos moldes de uma pedagogia científica, é o único remédio
infalivel contra a cegueira incurável.
De fato, a educação é, literalmente, imprescindivel aos que não vêm.
Ao vidente analfabeto é possível satisfazer ás necessidades materiais da
vida quotidiana, e até ás suas aspirações mentais, de latitude
naturalmente exígua. Entretanto, o cego, que não passar pela escola,
confinará fatalmente as diretrizes de sua vida á alternativa inelutavel
dêste dilema: ou a mendicidade ambulante, estendendo a mão á caridade
pública, ou a mendicidade doméstica, como eterno beneficiado
improdutivo. Vivendo no seio da família, o dulçor do aféto dos seus,
jámais disfarçará a inferioridade de sua triste condição, se é que a
ganáncia criminosa de pais desnaturados lhe não explorem a enfermidade
em vergonhosa mercáncia.
É que, não descabe nunca acentuá-lo, a escola que prepara o vidente para
a vida, ao cego prepara-o para outra vida; pois lhe creia á existencia
condições essencialmente diversas. Liberta-o da invalidez física e
intelectual, redime-o, corrige até uma falha da própria natureza, ergue
da escuridão o homem que não vê.
Por isso, fôrça é reconhecer no problema dos cegos, fundamentalmente
educativo, títulos que lhe conquistam lugar de indisputavel preeminencia
nas cogitações próprias do seculo da pedagogia, nomeadamente entre os
apóstolos de sã brasilidade, reunidos em torno da bandeira da
"Associação Brasileira de Educação".
II - PAPEL DA EDUCAÇÃO DOS CEGOS NA ORDEM FÍSICA
Antes de mais, visa a educação física sistematizar a natural
substituição dos sentidos. Trata-se, em suma, de alargar as quatro
janelas perfeitas de que dispõe o cego, a fim de que a cámara
maravilhosa em que a idéa desabrocha e o raciocínio se expande, receba
de fóra a luz suficiente, matéria-prima das misteriosas transformações.
Vem aqui a pêlo notar que uma educação física metodizada,
inteligentemente conduzida desde a infáncia, dá ao cego um andar seguro
(corrigindo-lhe essa vacilação nos passos que tão nitidamente o
sublinha) graças ao desenvolvimento do senso de orientação e do senso do
obstáculo, mediante exercícios adequados. Não há negar o alcance prático
dessa conquista.
A vacilação, como a morosidade no andar, aliada á quietude de um olhar
apagado, sugere a idéa de incapacidade física e até intelectual.
Revigora falsos conceitos, e traz á tona a imagem pungitiva do cego
mendigo, que geralmente existe no espirito do vidente.
A importáncia da educação do aparelho sensorial, posta de manifesto por
Mme. Montessori, cresce de ponto em se tratando dos cegos.
Cumpre familiarizar a criança cega com todas as fórmas tateáveis,
fazendo-a imaginar pela analogia e pela reprodução miniatural, aquelas
que se lhe não acham ao alcance da mão. A aquisição dessas noções
elementares indispensáveis, bem como de outras semelhantes, tambem
imprescindiveis, que o vidente consegue espontaneamente, abrirá caminho
plano á futura educação intelectual.
Mais do que o vidente, por conseguinte, o cego precisa de um estágio
pre-escolar em jardim da infáncia, condicionado, é claro, ás
necessidades que lhe são peculiares.
Na medida das reduzidas possibilidades que a falta de espaço lhe
proporciona, o Instituto S. Rafael procura colimar êsse escopo.
A educação física propriamente dita deve ser esmeradamente cuidada em
estabelecimentos de cegos. É que a cegueira, em regra, desestimula ao
movimento intensivo, ginástica natural indispensável.
Importa tambem não descurar dos jogos desportivos, já largamente
praticados na Inglaterra e nos Estados-Unidos, como na Itália.
Praticamente, um dos principais fins da educação física e da educação
sensorial é adestrar os cegos para os trabalhos manuais, a que me
referirei agora, perfunctoriamente.
Tal ensino não deve limitar-se a prepará-los para o exercício das
profissões clássicas dos cegos: empalhação, fabrico de vassouras,
espanadores e artigos similares, encadernação, afinação, etc., em regra
pouco lucrativas, salvo quando um privilégio os põe ao abrigo da
concorréncia, como acontece alhures.
Cuida-se agora, em toda parte, de aumentar nesse particular as
possibilidades de renda. Novas profissões têm sido ensaiadas com bom
êxito.
Por outro lado, dedicam-se os privados da visão, subsidiariamente a
pequenos comércios, como na França e nos Estados-Unidos, onde muitos
vivem de vender jornais, cigarros e outras miudezas, atividade essa que,
aliás, já foi tentada entre nós.
Demais, é fácil verificar que em toda a grande ou pequena indústria há
trabalhos ao alcance dos cegos, bastando apenas que se dissipe a névoa
de preconceitos que tolda, por vezes, a mentalidade dos industriais.
Todavia, na Alemanha, são êsses obrigados por lei a empregar em suas
fábricas certa percentagem de cegos. Note-se de passagem, que é de
grande releváncia o papel das associações em favor dos cegos, as quais
lhes devem conseguir, organizar e proteger o trabalho.
Nas escolas é de mister visar, primeiramente, o aprendizado do ofício,
sem preocupações estritamente industriais.
Importa, além disso, não desenvolver demasiado esse ramo do ensino em
detrimento dos outros. Nesse particular vem muito a propósito a máxima
de Romagnoli: "First men, then workmen".
III - EDUCAÇÃO INTELECTUAL
O ensino primário é indispensável, e mister se torna fazê-lo
obrigatório.
A classe dos cegos não é singular. Como entre os videntes, só uma
minoria privilegiada disporá dos dotes necessários a um desenvolvimento
intensivo da cultura intelectual. Entretanto, as humanidades são
seguidas por grande número dêles e vários se habilitam a altos estudos
nas Universidades, fato que já não causa estranheza em países mais
adiantados do que o nosso.
Não é justo, pois, por um preconceito incompatível com a época atual, ou
pior ainda, em obediéncia a imposições de uma burocracia ôca, seja
impedido aos cegos o ingresso ás academias que êles podem cursar, como a
Escola de Direito e a prometida Faculdade de Educação, Ciéncias e
Letras.
É verdade que o Instituto S. Rafael e o Instituto Benjamin Constant
ministram instrução primária e secundária; dominando no primeiro o
critério indiscutivelmente preferível da especialização em música,
ofícios ou humanidades, conforme a vocação revelada, concluidos que
sejam os dois primeiros anos do curso secundário, que constituem o curso
complementar.
A desejada eficiéncia da cultura intelectual depende precipuamente de
uma biblioteca constituida de livros escritos no sistema Braille.
As iniciativas neste terreno têm sido, infelizmente, até aqui mal
sucedidas. Fio que a semente em boa hora lançada na Biblioteca Nacional
pela benemeréncia da Viscondessa de Cavalcanti, e que, apesar do
ambiente, já vingou e vai crescendo, possa em breve frutecer
opulentamente em magnífica realização.
Meia hora dos lazeres de senhoras e senhoritas, que facilmente
aprenderão o sistema Braille, bastará a erguer êsse soberbo monumento de
cultura. É um meio fecundo de que o vidente dispõe para ajudar os cegos
a se auxiliarem mutuamente, consoante a recomendação do Cap. Fraser.
Em Paris, a Biblioteca Braille conta hoje mais de cem mil volumes. Além
de algumas tipografias, enriquece-a quotidianamente um benfazejo
exército de quatro mil copistas.
A Argentina, que só mui recentemente começou a cuidar da educação dos
cegos, muito depois do Brasil, já possue, para vergonha nossa e para
nosso estímulo, rica biblioteca Braille e magnífica revista.
Em tudo isto está implícito um apêlo ao coração e á inteligéncia da
mulher brasileira, a cujo devotamento os cegos confiam a concretização
dêsse ideal.
Observarei por último, neste capítulo que é condição sine qua non do
desejado progresso da educação dos cegos a preparação dos professores e
diretores, já na cultura e na pedagogia gerais, já na pedagogia
especializada e em todos os assuntos concernentes ao cego e á cegueira.
Nêsse sector da pedagogia dos cegos constitue padrão de glória e seguro
paradígma a "Escola de Métodos para educação dos cegos", em Roma,
superiormente dirigida por Augusto Romagnoli, cego e doutor em Filosofia
pela Universidade de Bolonha.
IV - EDUCAÇÃO MORAL
Mormente em país como o nosso de genuina formação católica, em que pese
ao anacronismo de educadores laicizantes, são acordes os maiores
pedagogistas em fazer descansar sôbre a moral católica o majestoso
edifício da formação do homem.
E a educação dos cegos naturalmente se enquadra na abrangéncia dêsse
princípio.
Diz o professor Romagnoli no excelente trabalho apresentado á
Conferéncia Internacional dos Cegos, reunida em Abril dêste ano em Nova
York: "Na minha opinião, o mais sério problema na educação dos cegos é a
formação do caráter. O cego deve ser especialmente dotado pelos dons que
constituem a luz interior e que compensam a fala da luz exterior,
dando-lhe serenidade, amabilidade e outras qualidades que atraem o
auxílio dos que vêem... A religião é sem dúvida o maior coeficiente; a
leitura de bons livros, a regular frequéncia das igrejas, atos de
desinteresse são tambem auxílio valioso".
É de notar que o Instituto S. Rafael foi dos primeiros estabelecimentos
em incluir o ensino religioso em seu programa, antecipando-se á sábia
lei Antonio Carlos sôbre o assunto.
É de mister dar aos cegos uma noção exata do que podem conseguir e do
que lhe não está ao alcance, a fim de evitar a afoiteza como o desánimo.
Ha principalmente dois perigos sérios que os ameaçam. Derivam ainda da
errónea conceituação da cegueira. É a vaidade que póde causar um
julgamento de sua capacidade como superior á realidade, ou o
esmorecimento que póde ocasionar o menosprêzo de suas possibilidades.
Importa saturar o espírito do cego de uma bem entendida solidariedade de
classe, que não vise isolá-lo da comunhão social, mas antes integrá-lo
nela.
A vitória das nossas reivindicações depende da confraternização de
indivíduos e associações em tôrno do ideal comum. É imperativo de ordem
biológica. A êle não logrará esquivar-se classe fraca como a dos cegos,
esmagada, ademais, sob uma secular montanha de preconceitos...
V - EDUCAÇÃO ARTISTICA
O ensino da música reclama o maior desvelo.
Desde o jardim da infáncia, cumpre se lhe dedique atenção, a fim de
acordar a vocação que, latente, existe na criança.
Através do curso deve dar-se á música um desenvolvimento completo.
Não se trata de fornecer ao "pobre cego" um doce derivativo, uma
distração inocente destinada a minorar a "dôr da cegueira".
Claro que êle, como o vidente, tambem se embala na estesia da arte. Mas
a música, além de constituir complemento indispensável de sua cultura,
servir-lhe-á certamente como meio de vida.
Na música, sente-se o cego inquestionavelmente á vontade, porque nela
reina soberano o sentido da audição.
Entretanto, corre por aí, á guisa de axioma, certa afirmativa que devo
contraditar.
Muitos estão convencidos de que todo o cego "dá para música" e de que os
cegos "não dão sinão para música".
Não é verdade. Como entre os videntes, é vário o pendor dos que não
vêem.
Na música, o preconceito lhes tolhe menos o progresso, e menos intensa é
a concorréncia. Vem daí o falso pressuposto.
Posta a questão em seus devidos termos, é muito para desejar que
particulares e governantes facilitem aos cegos o exercício de profissões
em que a música prevaleça, ensejando-lhes, por exemplo, o ingresso ao
magisterío, como professores de música em estabelecimentos públicos.
Não deve, porém, cifrar-se á música a educação artistica.
Entre o material escolar devem incluir-se moldes de gesso das obras
primas da escultura, modelos de tétos abobadados, capitéis e outros
motivos arquitetónicos, de sorte que as crianças, adquiridos os
elementos fundamentais, se habilitem a, mais tarde, graças ás impressões
táteis e auditivas, interessarem-se por êsses prazeres estéticos, pelo
menos ao ponto de serem nêles iniciadas, podendo assim compreender o
interesse que despertam nos videntes.
São ainda recomendáveis desenhos em relêvo de monumentos cujas
reproduções permitam aos cegos a observação do respectivo porte,
situação e mais característicos, bem como medalhões que interessem os
alunos pelas várias figuras e pelas diferentes expressões dos
semblantes, de acôrdo com as emoções.
"No prazer revelado pelos nossos alunos cegos (diz Romagnoli) em tatear
e reproduzir tais coisas, por mais toscamente que seja, no papel ou no
gesso, está a garantia segura de que este ensinamento lhes é útil."
VI - VALOR ECONOMICO, SOCIAL E POLÍTICO DA EDUCAÇÃO DOS CEGOS
Resta-me ainda tocar êsses pontos, de corrida como tenho feito, por me
conformar á índole do presente estudo.
A educação fornece aos cegos meios para ganhar a vida. Graças a ela
é-lhe dado exercer êsse direito insonegável, uma de suas reivindicações:
ganhar a vida com o suór do proprio rosto.
Assim, o cego, elevado moralmente por se libertar da mendicidade, deixa
de ser um pêso morto, e entra na vida ativa como algarismo significativo
na grande soma dos valores sociais.
É, pois, um cidadão como qualquer outro que deve entrar na posse plena
de todos os direitos políticos, de cujo livre exercício não é lícito
privar a quem de bom grado cumpre todos os deveres.
Nos grandes centros de civilização, os cegos votam e são elegíveis,
principalmente depois da Guerra, e não vivem, como entre nós, em eterna
minoridade deprimente.
Deve o Estado, como é de lei na Inglaterra, considerar "o cego adulto
como um cidadão e a criança cega como um cidadão em potencia."
A situação jurídica dos cegos é, pois, materia que deve entrar nas
cogitações da proxima Constituinte. Esperemos.
VII - O QUE HÁ NO BRASIL EM FAVOR DOS CEGOS
Desde 17 de setembro de 1854, data inaugural do "Imperial Instituto dos
Meninos Cegos", hoje "Benjamin Constant", trata-se, entre nós, de
instruir os que não vêem.
A diligéncia de José Alvares de Azevedo, cego educado no Instituto de
Paris, a influéncia do médico do Paço, Xavier Sigaud, e o interesse de
D. Pedro II pelo progresso cultural do Brasil foram as forças que
tornaram possível a fundação do quási centenário Instituto, dois anos
antes de oficializado o Braille na propria França, berço de seu genial
inventor.
Só muito mais tarde, a 2 de setembro de 1926, no govêrno Melo Viana, foi
fundado em Belo-Horizonte o "Instituto S. Rafael".
Pode citar-se ainda em S. Paulo o "Instituto Padre Chico", agora em seus
primeiros passos.
Visando organizar e proteger o trabalho dos cegos, contam-se no Rio, a
"Liga de Auxilios Mutuos dos Cegos no Brasil", a "Sociedade Protetora
dos Cegos" e a "União dos Cegos no Brasil", e em S. Paulo, a "Sociedade
Promotora de Trabalho para os Cegos".
Todas essas associações têm prestado á causa dos cegos assinalados
serviços, mas carecem de comunhão de vistas e unidade de ação.
Os três Institutos existentes não bastam para instruir os 33.000 cegos
brasileiros, ainda que cifrem á infáncia sem vista a sua atividade,
afastando de seu raio de ação o sério e urgente problema da educação e
reeducação dos cegos adultos, que pedem cuidados especiais em
estabelecimentos á parte.
Apesar dos esforços diuturnos de cegos e videntes bem intencionados, o
"Instituto Benjamin Constant" evolve penosamente, sofrendo, de contínuo,
as consequéncias da falta de compreensão dos governos no concernente á
possibilidade e á utilidade da educação dos cegos.
Contudo lá pudemos estudar, os que, na medida de nossas forças, vamos
terçando armas na imprensa, na cátedra e na tribuna, pela emancipação
dos cegos do Brasil.
O "Instituto S. Rafael", desveladamente dirigido pelo prof. José Donato
da Fonseca, teve que superar nos primeiros tempos, embaraços de vária
ordem.
Hoje, porém, tendo já comemorado o seu quinto aniversario, apresenta
progresso devéras consideravel, relativamente ao curto período de
existencia.
Funcionam já com eficiéncia demostrada em exposições e em provas
públicas anuais e obecendo, tanto quanto permitem as circuntáncias, a
uma reta orientação pedagógica, os seguintes cursos: o primário, a
primeira série do curso secundário, os cursos de solfêjo e de harmonia,
aulas de piano, canto e violino, violoncelo, instrumentos de sôpro,
aulas de ginástica e jogos desportivos, de datilografia, modelagem,
Jardim da Infáncia, trabalhos de agulha, oficinas gráficas, que fornecem
ao Instituto os livros didáticos, e, finalmente, as de encadernação,
empalhação, vassouras, escôvas, etc., e a de marcenaria.
Todavia, está seriamente ameaçado de estancar-se todo êsse progresso
promissor, a que apenas me pude referir em sêca enumeração.
Assim que, em um velho edifício adaptado, com capacidade no máximo para
cincoenta alunos, vivem internados sessenta e poucos, mal acomodados
higiénica e pedagogicamente, sem embargo dos cuidados da administração,
enquanto trinta pretendentes á matrícula, com seus requerimentos
indeferidos, e vítimas de clamorosa injustiça, não conseguem entrar para
o Instituto, que não dispõe de espaço para os receber!!!
Baldadas têm sido campanhas pela imprensa, como sem resposta ficaram até
hoje as reiteradas reclamações do diretor em vários relatórios
consecutivos...
Estatística optimista, baseada no recenseamento de 1920, estima em 6.000
o número de cegos em Minas. Dêsse dado ressalta a insuficiéncia de um só
Instituto, ainda que fosse vasto e bem aparelhado, para atender ás
múltiplas necessidades dos cegos no grande Estado.
Tal fato é, aliás, observado em todos os Estados do Brasil.
Pior ainda é a situação dos cegos no norte do país, distante dos
Institutos existentes e onde, paradoxalmente, mais elevado é o
coeficiente de cegueira, segundo as estatísticas.
Urge, pois, o estabelecimento e a execução de um plano nacional de
educação dos cegos, que abranja os vários aspetos sucintamente indicados
ao longo deste desprentensioso trabalho.
Tal como ideei, deve basear-se na confederação das escolas e na sua
especialização em determinados ofícios.
Por conformá-la á nossa configuração geografica, que alarga perspectivas
e crêa necessidades e possibilidades peculiares a cada região, penso que
as escolas devem federar-se, em cada estado, em tôrno de um Instituto
Central.
Correspondencias, visitas e reuniões periódicas nacionais vincularão
entre si todas as instituições, e um Conselho Nacional em contacto com a
Repartição Internacional dos Cegos com séde em Paris, resolverá, de
acordo com as associações e os Institutos autónomos, as questões de
ordem geral.
VIII - ESBÔÇO DE UM PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DOS CEGOS
Á guisa de conclusão deste trabalho ofereço, como diretriz, o esbôço de
um plano, que é para desejar mereça o exame esclarecedor da IV
Conferencia Nacional de Educação.
Haverá na Capital de cada Estado uma escola superior de Ciéncias e
Letras e de Música, com um Jardim da Infáncia e um Curso Primário
anexos. O Curso de Ciéncias e Letras, independente do outro, terá por
fim o preparo especializado de professores, diretores,
assistentes-tecnicos para os institutos de educação dos cegos e de
futuros candidatos á Universidade.
Em igualdade de condições, os portadores dos diplomas expedidos pela
secção de música poderão lecionar a matéria de sua especialidade em
qualquer estabelecimento de instrução.
Os cursos anexos servirão como campo de pratica aos futuros professores.
Pelo interior de cada Estado, de acordo com as necessidades locais,
traduzidas nos coeficientes de cegueira, serão fundadas escolas
regionais.
Em cada uma dessas escolas o ensino primário deve ser ministrado
compulsoriamente a todos os cegos em idade escolar, além de elementos de
música teorica e instrumental e um ou dois ofícios, nos quais cada
escola regional deverá especializar-se.
Os alunos que revelarem vocação especial para mais altos estudos serão
encaminhados ao Instituto Central.
A manutenção do Instituto Central e das escolas regionais incumbirá, em
ação simultanea, á União, ao Estado, ao Município, ás pensões dos alunos
contribuintes e a uma associação em prol dos cegos, que deve existir em
cada Estado.
Enquanto êsse sistema educacional não estiver estabelecido em todas as
unidade da Federação, todas as escolas deverão ser franqueadas a
qualquer cego brasileiro, devendo o Govêrno de seu Estado natal custear
as despesas de sua viagem até a escola mais próxima.
Cerro com grande optimismo essas ligeiras considerações. A hora que
passa é de verificações amargas e verdades sem rebuços, mas é tambem de
renovação integral e de emenda aos erros do passado. Tudo é lícito
esperar do espírito novo que a Revolução gerou.
Ao govêrno do meu país, a todos que nesta terra têm, na pena, a arma de
sua inteligéncia realizadora, aos membros deste magno certame, antologia
viva e fecunda de nosso escól intelectual, eu êrgo o confiante apêlo de
todos os que não vêem e clamam por claridade nessa terra de luzes.
ϟ
EDUCAÇÃO DOS CEGOS NO BRASIL
Aires da Mata Machado Filho
Os Amigos do Livro
Belo-Horizonte
1931
Δ
6.Fev.2015
publicado
por
MJA
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