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 Sobre a Deficiência Visual

Cognição Motora em Deficientes Visuais:

- importância da visão no controle das acções -

Luís Aureliano Imbiriba
 

Hipótese de plasticidade intermodal no córtex visual de deficientes visuais em função da privação visual
Hipótese de plasticidade intermodal no córtex visual de deficientes visuais em função da privação visual.

 

INTRODUÇÃO

Movimento é a maneira que temos para interagir com o mundo. Todas as nossas comunicações, incluindo fala, gestos, sinais e a escrita, são mediadas pelo sistema motor (Wolpert et al., 2001). Dessa maneira, pensando o controle de movimentos de um ponto de vista chauvinista, pode-se admitir que o cérebro humano serviria para produzir movimentos. Em conseqüência, os processos cognitivos e sensoriais podem ser vistos como padrões de atividade neural que serviriam para subsidiar os comportamentos motores futuros.

A hipótese corrente no controle de movimentos, baseada principalmente em modelos computacionais das ações, propõe a existência de um modelo inverso (ou planejador) que seleciona um comando motor apropriado para um movimento desejado. O comando motor então é enviado aos músculos e, em paralelo, uma cópia eferente do comando é enviada para um modelo preditivo interno. O modelo preditivo estima o efeito provável do comando motor e o “feedback” sensorial permite a comparação com a informação sobre o movimento real (Wolpert et al., 1996; Haggard, 2005). Portanto, esse modelo prevê uma grande importância para a etapa de preparação das ações, ou seja, quando a representação de determinado movimento é evocada endogenamente, o indivíduo acessa as representações internas da ação.

A simulação mental de movimentos corresponde a um processo dinâmico no qual o sujeito acessa o planejamento de determinada ação, mas essa representação pode envolver a contribuição de diferentes estratégias para a ação imaginada (representações visuais e/ou somato-motoras). Por exemplo, quando solicitado a simular mentalmente um determinado movimento, o voluntário pode se “sentir” ou se “ver” realizando o movimento. Alternativamente, ele também pode se colocar no lugar de outra pessoa, como se estivesse assistindo ao movimento sendo executado (Decety, 1996).

Em indivíduos com visão, a informação visual parece ser bastante importante nas representações das ações. Entretanto, pouco se sabe sobre a influência da perda ou da ausência durante longo tempo da informação visual sobre o controle de movimentos e sobre as representações corporais. A deficiência visual ocasiona várias limitações funcionais na vida diária do portador. Este problema tem impacto social, econômico e de saúde pública, atingindo cerca de aproximadamente 161 milhões de pessoas no mundo todo: destas, perto de 37 milhões são completamente cegas e 124 milhões possuem baixa visão (Resnikoff et al., 2004).

As principais causas das deficiências visuais no mundo são ocasionadas por catarata (~43% dos problemas visuais graves), glaucoma (~15%), tracoma (~11%), deficiência de vitamina A em crianças com menos de cinco anos (~6%), oncocerciase (~1%) e outros problemas (~24%) como: retinopatia diabética, degeneração macular relacionada à idade, trauma ocular e neuropatia óptica (Resnikoff et al., 2004; Thylefors et al., 1995).

Nos deficientes visuais, os ajustes necessários para interagir com o ambiente não implicam somente mudanças nas modalidades sensoriais restantes (como o tato e a audição), mas também envolvem as áreas cerebrais antes dedicadas à visão. Estas áreas de processamento visual parecem não ser silenciadas pela privação visual, mas são recrutadas de uma maneira compensatória para uma outra função sensorial – esta característica é definida como plasticidade inter-modal ou modo-cruzado (Hamilton et al., 1998; Kujala et al., 2000; Bavelier & Neville, 2002; Bach-y-Rita & Kercel, 2003; Théoret et al., 2004). Entretanto, as modificações no controle dos movimentos provocadas pela perda da visão parecem pouco exploradas na literatura, mas podem permitir explorar estratégias úteis para o aprendizado motor em deficientes visuais.


ALTERAÇÕES NEUROFISIOLÓGICAS OCASIONADAS PELA CEGUEIRA

Estudos sobre as mudanças comportamentais em indivíduos com cegueira periférica (isto é, ocasionada por problemas oculares) permitem investigar as mudanças funcionais compensatórias e como ocorre a reorganização cerebral após a privação sensorial. Há um considerável interesse, nos estudos em deficientes visuais, sobre as adaptações neurofisiológicas e o desempenho perceptual auditivo e, principalmente, tátil, pelo uso da leitura em Braille. Entretanto, pouco se sabe sobre as alterações no controle de movimentos em cegos, embora a visão seja de grande importância no desempenho de tarefas motoras (Milner & Goodale, 1995).

Em geral, acredita-se que a perda da visão pode ser de algum modo compensada pelos sentidos restantes e essa compensação estaria baseada na reorganização cerebral ou também por aspectos atencionais. Entretanto, supõe-se um pior desempenho dos deficientes visuais durante a realização de tarefas visuo-espaciais, pela forte influência visual na construção das representações espaciais. Para tarefas auditivas, por exemplo, dois modelos teóricos para explicar o desenvolvimento auditivo em função da cegueira congênita foram propostos: o modelo de déficit e o modelo de compensação (Easton et al., 1998). O modelo de déficit propõe que a informação não-visual é codificada em um sistema de referência visuo-espacial. Desta forma, por exemplo, indivíduos com perda da visão apresentariam prejuízo no processamento auditivo-espacial. O modelo compensatório propõe que, na ausência da informação visual aferente, áreas perceptuais não-visuais tornar-se-iam altamente desenvolvidas, possibilitando um desempenho superior ou igual ao dos indivíduos com visão normal.

Algumas controvérsias são observadas em relação ao desempenho de indivíduos cegos na avaliação da capacidade auditiva e tátil. Uma possível diferença nos trabalhos refere-se ao desempenho de indivíduos que ficaram cegos precocemente, o que indicaria habilidade cerebral para compensar a perda da entrada visual. Em relação à percepção sensorial de estímulos auditivos, o mais provável é que cegos não tenham a capacidade auditiva superior aos sujeitos normais per se, mas, preferencialmente, usem adequadamente as pistas disponíveis para um melhor processamento auditivo espacial (Lewald, 2002).

Estudos de limiares auditivos e somatosensoriais em cegos, determinados, respectivamente, por testes audiométricos e limiar tátil absoluto, não evidenciam diferenças entre cegos e videntes. Assim, não se pode pensar em mudanças compensatórias decorrentes das condições patológicas, pois raramente há diferenças perceptuais absolutas (Bavelier et al., 2002). Entretanto, em tarefas mais complexas há vantagens compensatórias, principalmente comparando cegos congênitos e tardios (Lessard et al., 1998; Röder et al., 2004).

A idéia de uma capacidade auditiva superior em cegos precoces tem sido fortalecida pelos trabalhos com tarefas de habilidade para localização de som (Lessard et al., 1998), sugerindo a presença de compensação funcional em resposta à ausência da informação visual. Segundo os autores, tais mecanismos devem ocorrer em estruturas auditivas, como o colículo inferior ou no córtex auditivo primário, e o córtex visual não usado, que também poderia ser recrutado para auxiliar as funções auditivas.

O melhor exemplo do sistema de substituição sensorial é a leitura em Braille pelos cegos, onde a informação, usualmente adquirida visualmente (leitura), é, em vez disso, adquirida através da exploração tátil. Neste contexto, a informação sensorial tátil é de grande relevância pela discriminação de pontos em relevo, pois necessita de grande acurácia e da transformação desse código espacial em informações significativas. Estudos utilizando esta tarefa indicam que os cegos não possuem maior sensibilidade tátil, mas usam a informação disponível de maneira mais eficiente, em parte devido à experiência prática (Théoret et al., 2004).

Desta maneira, há uma hipótese que a prática freqüente de leitura em Braille, em deficientes visuais, está associada com mudanças plásticas no córtex somatosensorial em duas fases distintas: uma fase inicial ou transiente, caracterizada por um rápido e dramático aumento da representação cortical, provavelmente devido ao desmascaramento de conexões existentes e mudanças na eficácia sináptica, e a segunda fase caracterizada por um período mais estável refletindo mudanças estruturais nos vários níveis neuronais (Hamilton et al., 1998). Enfim, como no desempenho de tarefas auditivas, é evidente que diferentes tarefas e populações (tardios ou congênitos) podem ter diferentes comportamentos compensatórios decorrentes da cegueira.

Alguns estudos mostram que, em deficientes visuais, áreas comumente associadas com o processamento da informação visual são recrutadas de maneira inter-modal compensatória, o que poderia explicar o desempenho superior das capacidades não-visuais em cegos (Merabet et al., 2005; Theoret et al., 2004). Desde o trabalho pioneiro de Wanet-Defalque et al. (1988), foi demonstrado que há ativação no córtex occipital durante tarefa tátil em deficientes visuais, sugerindo que esta área cortical participaria das múltiplas representações do espaço (Uhl et al., 1991; Sadato et al., 1996; Cohen et al., 1997; Sadato et al., 2002; Sadato et al., 2004). Esse recrutamento de áreas visuais em tarefas de processamento da informação tátil também foi verificado em indivíduos normais vendados, o que refletiria a ativação das conexões existentes entre as áreas primárias somestésica e visual, mesmo em indivíduos com o sistema visual intacto (Merabet et al., 2007; Sathian et al., 2002).

Cohen et al. (1997) relataram atividade no córtex visual em tarefas discriminativas táteis em cegos congênitos ou precoces, mas não nos cegos tardios (perda da visão após os 14 anos de idade). Sadato et al. (2002) mostraram os mesmos resultados, isto é, maior atividade no córtex visual primário (V1) em cegos precoces (antes dos 16 anos), menor atividade em cegos tardios e ativação semelhante nas áreas extra-estriadas em ambos os grupos. Entretanto, Burton et al. (2002) mostraram ativação em V1 durante leitura em Braille em cegos tardios e precoces e Buchel et al. (1998) descreveram ausência de ativação do córtex visual primário em cegos congênitos e, surpreendentemente, atividade em V1 em cegos tardios. A proposta de Buchel et al. (1998) é que a ativação em V1 em cegos tardios estaria relacionada com a imagética visual associada com a experiência visual prévia, pois há evidências que a percepção visual e a imagética mental visual estão baseadas em vários substratos neuro-anatômicos similares (Kosslyn et al., 2001; e Kaski, 2002). Esses resultados discrepantes fortalecem a necessidade de mais estudos sobre plasticidade inter-modal em função da idade de início da cegueira.

Em resumo, vários estudos apontaram determinada capacidade do sistema nervoso central para alterar a sua organização funcional em resposta à condição sensorial alterada. Usando técnicas de mapeamento da atividade cerebral, há evidências de alta taxa metabólica e fluxo sanguíneo aumentado no córtex occipital de sujeitos cegos congênitos (figura 1), evidenciando que as áreas cerebrais desprovidas da informação sensorial específica não sofrem processos degenerativos extensivos, mas, ao invés disso, mantêm sua atividade (Wanet-Defalque et al., 1988; Veraart et al., 1990; Uhl et al., 1991; Sadato et al., 1996, Röder et al., 1996; Cohen et al., 1997; Gizewski et al., 2003; Sadato et al., 2004; Merabet et al., 2005). Desta forma, um melhor entendimento de como o cérebro se adapta à perda da visão e quais são as conseqüências funcionais para as informações sensoriais restantes poderão ajudar na compreensão, aumentar o entendimento do processo de reabilitação e, possivelmente, refletir em uma melhor qualidade de vida para os deficientes visuais.
 

Hipótese de plasticidade intermodal no córtex visual de deficientes visuais em função da privação visual
Figura - Hipótese de plasticidade intermodal no córtex visual de deficientes visuais em função da privação visual.


A) Na condição normal, o córtex occipital recebe predominantemente as informações visuais, mas há também a possibilidade do processamento de outras informações (por exemplo, tato e audição).

B) Após a privação visual, o córtex visual seria recrutado no processamento de outras informações sensoriais após as mudanças neuroplásticas (setas largas) (extraído de Merabet et al., 2005).


SIMULAÇÃO MENTAL EM DEFICIENTES VISUAIS

Estudos realizados em portadores de deficiência visual (PDV) contradizem a idéia de que a visão normal seja essencial para que ocorra a imagética visual. Se esta é baseada na experiência visual, sujeitos cegos desde o nascimento, portanto sem experiências visuais prévias, deveriam ser incapazes de gerar e processar imagens com conteúdo visual. Porém, sabe-se que cegos congênitos têm conhecimento substancial do mundo, incluindo idéias complexas sobre perspectiva, profundidade e avaliações visuo-espaciais. Este conhecimento pode ter origem háptica (Kerr, 1983) ou, como no caso do conceito de cores, através da linguagem. É importante ressaltar que a aquisição de conhecimento nos PDV é necessariamente distinta da aquisição de sujeitos com visão normal. Enquanto os sujeitos normais são capazes de utilizar a imagética visual para representar mentalmente objetos, os cegos devem se basear em outras modalidades sensoriais tais como o tato, a audição e a cinestesia, ou ainda, nas representações semânticas dos objetos (Zimler et al., 1983). Além disso, a etiologia (Kaski, 2002) e o tempo decorrido após a perda visual (Hollins, 1985) parecem ser críticos para a investigação dos processos de simulação mental. Estes dois fatores definitivamente têm um papel na determinação de quais circuitos serão ativados durante a realização de uma tarefa de simulação mental no caso dos PDV.

No caso da simulação mental envolvendo a localização de objetos no espaço, a partir de uma variedade de tarefas, mostrou-se que cegos congênitos têm a habilidade de processar representações mentais do espaço preservadas, apresentando desempenhos similares ou tempos de reação mais lentos em relação aos sujeitos normais (Zimler et al., 1983; De Beni et al., 1988; Vanlierde et al., 2004). Os resultados apontam para a possibilidade de que estes sujeitos estejam utilizando estratégias não visuais, possivelmente menos eficientes, para a realização das tarefas mentais. A existência de um sistema visual íntegro pareceria, portanto, não ser uma condição sine qua non para a realização de certos tipos de simulação visuo-espaciais. Kerr (1983) mostrou que os cegos são capazes de acessar detalhadamente as suas imagens mentais e que eles demoram mais inspecionando imagens de objetos pequenos em comparação com objetos maiores, exatamente como os sujeitos normais. Novamente, estes dados sugerem que propriedades funcionais da imagética visual não são visuais per se, mas espaciais, podendo ser evocadas a partir de diferentes modalidades sensoriais.

Recentemente, mostrou-se que cegos tardios e videntes, mas não os cegos congênitos, têm o desempenho prejudicado durante uma tarefa de discriminação tátil em que é solicitado ao voluntário que cruze as suas mãos através da linha média do corpo. Esse fato sugere um papel crítico da visão na infância modulando o esquema corporal (Röder et al., 2004). Desta maneira, parece que a privação visual precoce afeta as representações corporais, ou seja, com a visão presente, os estímulos táteis são remapeados em coordenadas definidas externamente, prejudicando o desempenho quando há conflito com os códigos centrados no corpo (determinados primariamente pelas informações somatomotoras). Nos cegos congênitos, esse conflito parece não existir (Röder et al., 2004; Röder et al., 2007).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para uma ação simulada mentalmente ser acessada e sentida como uma ação real, ela precisa ser baseada nas mesmas representações dos movimentos reais (Jeannerod, 2005). Desta forma, a utilização de estudos baseados na simulação mental de movimentos parece ser uma estratégia útil para entender o processo de planejamento motor, bem como os aspectos representacionais do movimento em deficientes visuais precoces e tardios.

Como o portador de deficiência visual representa para si mesmo um determinado movimento? Como cegos congênitos compreendem o espaço e as ações realizadas no espaço extra-pessoal? Na ausência da visão, a construção da imagem corporal deveria basear-se principalmente em informações provenientes dos outros sentidos, tais como o tato, a propriocepção e a audição, ou ainda, nas representações semânticas do corpo (Zimler et al., 1983). O tempo decorrido após a perda visual (Hollins, 1985; Buchel et al., 1998) parece ser crítico para a investigação dos processos de reorganização cortical plástica induzidos pela perda da visão e, possivelmente, também se reflete no controle dos movimentos. Além disso, pouco se sabe sobre as modalidades sensoriais utilizadas pelos portadores de deficiência visual na simulação mental de movimentos, bem como o papel da experiência visual nestes processos de simulação mental. Estas são questões fundamentais para o entendimento dos processos de representação das ações humanas e os mecanismos de adaptação cerebral após a perda da visão.


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Luís Aureliano Imbiriba
Prof. Adjunto na Escola de Educação Física e Desportos e Doutor em Neurofisiologia – Instituto de Biofísica
na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: Revista Científica Perspectivas online

 

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12.Mai.2010
publicado por MJA