Vera Ferraz & Lúcia Filgueiras

Este texto discute uma experiência realizada com crianças
deficientes visuais utilizando a pré-bengala em aulas de
Orientação e Mobilidade (O.M.) no Instituto Benjamin Constant.
Trata-se de uma experiência inovadora, pois não há consenso entre
professores de deficientes visuais sobre a adoção da bengala nas
classes de educação infantil e ensino fundamental. Alguns
professores alegam que, utilizada por crianças, a bengala ou
similar pode causar acidentes ou danos a pessoas ou ao próprio
ambiente. As opiniões são, muitas vezes, preconceituosas, sem
levar em consideração os benefícios que podem ser obtidos por meio
de um processo de aprendizagem conduzido de modo cuidadoso. O
assunto é controvertido e são poucas as instituições que atendem
crianças cegas que adotam o ensino da bengala. Acreditando que os
benefícios do uso da pré-bengala justificam sua introdução,
realizamos uma experimentação com uma pré-bengala, utilizada de
modo lúdico, com crianças de classes de alfabetização, com o
intuito de verificar seus efeitos no aprendizado das técnicas
básicas de O.M. e na vida cotidiana dessas crianças.
Diversos autores indicam uma introdução precoce da bengala.
Felipe (2004) afirma:
-
"Quanto mais cedo melhor. As vivências pré-bengala devem ser
trabalhadas tão logo a criança adquira marcha independente sem
apoio. A partir do momento que ela consegue segurar e manter a
bengala à frente do corpo, introduzem-se manipulações semelhantes
as técnicas diagonal, varredura e deslize". (Felipe, 2004, p. 45)
No nosso caso, optamos por um trabalho lúdico utilizando um
patinho, brinquedo similar a uma bengala, fazendo com que, desse
modo, as crianças pudessem assimilar as diversas técnicas do
caminhar independente.
Orientação e mobilidade
A Orientação e Mobilidade é uma disciplina que tem como
objetivo principal ensinar pessoas deficientes visuais a se
locomoverem com segurança. Juntamente com Atividades de Vida
Diária, constitui o diferencial da grade curricular desse grupo
de crianças. Atividades de Vida Diária é uma disciplina onde são ensinadas tarefas do cotidiano como
dar laços, encher copos de água, abotoar e desabotoar, entre outras
tarefas. O deficiente visual necessita aprender essas tarefas formalmente na escola, tendo em vista que, pela falta de modelos
onde se espelhar, não assimila atitudes corriqueiras do cotidiano.
Para uma pessoa cega, a capacidade de se locomover no
espaço, ou seja, sua mobilidade, é considerada pela maioria dos
autores como a maior de todas as dificuldades. Fraiberg e Freedman
(1964) e Hatwell (2003) referem-se à movimentação no espaço como
um dos maiores problemas a serem superados pelo indivíduo cego.
Por este motivo, a inclusão da O.M. como disciplina curricular
torna-se indispensável para as crianças deficientes visuais.
Quanto antes a pessoa cega ou de baixa visão tiver acesso a este
conhecimento, mais cedo alcançará autonomia no seu caminhar e,
consequentemente, segurança ao se locomover. Neste sentido é que
propomos a adoção da pré-bengala, bengala para crianças, já que
esta permite a detecção de obstáculos, inclinações do solo,
depressões e outras características do espaço.
Segundo Mariño e Figueiredo (1988), a O.M. pode ser definida
como a capacidade de deslocamento intencional de uma parte a outra
a partir de estímulos internos e externos. Esta capacidade implica
e depende do conhecimento do meio (orientação), do domínio de
habilidades motoras (mobilidade) e do desejo de se mover. A
orientação mobiliza a percepção tátil, auditiva e olfativa para
conhecimento da posição dos objetos do meio circundante. Por meio
da percepção não visual, ela vai construir seu mapa mental.
O uso do brinquedo como pré-bengala
O uso da bengala por crianças pode ser introduzido de forma
lúdica durante as aulas de O.M., criando a oportunidade delas se
locomoverem de forma mais livre e independente, expandindo seu
ambiente de vida. Ao utilizarmos um brinquedo, conferimos às aulas
de O.M. um aspecto menos rígido, amenizando seu caráter
disciplinar. Além da aquisição do conhecimento sobre o espaço e a
correção da postura, as aulas são momentos de brincadeira, algo
tão importante para todas as crianças, tanto as que enxergam como
aquelas que nada veem. Por isso, o ato de brincar e a opção pelo
lúdico são o fio condutor nas aulas de O.M. para crianças,
constituindo o ponto fundamental de nossa metodologia.
Para Vygotsky (1989), o desenvolvimento da criança não pode
ser pensado sem que se considere a questão da ação e é neste
contexto que se situa o conceito de brincar. O brincar é uma
importante forma de comunicação e é por meio dela que a criança
pode experimentar seus desejos e seu cotidiano de forma simbólica.
-
"No início da idade pré-escolar, quando surgem os desejos que não
podem ser imediatamente satisfeitos ou esquecidos e permanece
ainda a característica do estágio procedente de uma tendência para
a satisfação imediata desses desejos, o comportamento da criança
muda. Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar
envolve-se num mundo ilusório e imaginário, onde todos os desejos
não realizáveis tornam-se reais, e esse mundo ilusório é o que
chamamos de brinquedos." (Vygotsky, 1991, p. 106)
De acordo com Vygotsky (1984), no início do desenvolvimento
do brincar, a atividade da criança pequena depende diretamente de
objetos concretos e das ações que eles permitem. Mas, aos poucos
os objetos perdem sua força determinante e a criança começa a agir
independente daquilo que se vê. Quando um gesto ou uma palavra
transforma um objeto em outro ou uma ação em outra, produz novos
sentidos. Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere-se
especificamente à brincadeira de “faz de conta”, como brincar de
casinha, de escolinha ou brincar de andar a cavalo usando um cabo
de vassoura. A brincadeira de “faz de conta” é uma situação em que
a criança é levada a agir num mundo imaginário. No caso de brincar
de dirigir um ônibus, a situação é definida pelo significado
estabelecido pela brincadeira – os bancos do ônibus, o motorista,
os passageiros – e não pelos elementos concretamente presentes –
as cadeiras da casa, por exemplo.
Ao brincar de carrinho com uma peça de madeira de um jogo de
construção, a criança se relaciona com o significado em questão (o
carrinho) e não com a peça do jogo que tem nas mãos. Esta serve
como uma representação de uma realidade ausente e ajuda a criança
a começar a separar o significado dos objetos concretos. Isto
contribui para ela se libere dos limites e da determinação das
situações. O brinquedo provê, assim, uma situação de transição
entre a ação da criança com os objetos concretos e suas ações com
os significados produzidos. Sendo assim, as ações com o brinquedo
se dão a partir dos significados construídos para os objetos,
contribuindo claramente para o desenvolvimento da criança
(Oliveira, 1974). Deste modo, é esperado que a escola, e
principalmente a educação infantil (pré-escola), promova situações
lúdicas, onde o brinquedo seja utilizado com uma função
pedagógica, reconhecendo seu papel na aprendizagem. Pensando nesta
direção, o brincar com a pré-bengala adquire seu sentido no
aprendizado do caminhar com segurança, autonomia e liberdade,
expandindo o ambiente de vida da criança com deficiência visual.
Na visão sócio-histórica de Vygotsky, a brincadeira e o jogo
são atividades típicas da infância, nas quais a criança recria a
realidade usando sistemas simbólicos. São atividades sociais e
inseridas em um contexto. O brincar é também uma atividade humana
criadora, na qual imaginação, fantasia e realidade se combinam na
produção de novas possibilidades de interpretação, de expressão e
de ação das crianças, assim como de novas formas de construir
relações sociais com outros sujeitos, crianças e adultos. No
processo da educação infantil, o papel do professor é de suma
importância, pois é ele quem cria os espaços de aprendizagem,
disponibiliza materiais, participa das brincadeiras, ou seja, faz
a mediação da construção do conhecimento. Por meio de brincadeiras
de “faz de conta", ele pode avaliar certas dificuldades e também
propor estratégias de superação das mesmas.
No caso do ensino de O.M. para a criança deficiente visual,
o deslocamento espacial, que às vezes é carregado de ansiedade,
através da brincadeira pode assumir um caráter lúdico e prazeroso.
Ao empurrarem carrinhos, seja de boneca ou de outro tipo, poderão
perceber que aquela brincadeira supre uma de suas necessidades, ou
seja, elas podem caminhar protegidas, evitando colisões. O
carrinho vai à frente de seu corpo, antecipando obstáculos ou
desníveis do solo, entre outras surpresas do caminho.
O brinquedo é importante para qualquer criança em
desenvolvimento, seja ela dotada ou não de visão. A criança que
dispõe de visão busca espontaneamente os objetos e é atraída por
eles. A criança que não enxerga necessita de uma estimulação
especial para se movimentar e conhecer o seu entorno. Ela precisa
ser estimulada por outras fontes sensoriais, principalmente táteis
e sonoras, para se movimentar e explorar o mundo a sua volta.
Bruno (1993a), em seu livro O desenvolvimento integral do portador
de deficiência visual, da intervenção precoce à integração
escolar, ressalta como brincar amplia o mundo da criança com
deficiência visual.
-
"O brincar se dá quando a criança, ao interagir com o meio,
sente-se produtora de ação, o que lhe dá prazer. Isto ocorre bem
cedo, quando a criança adquire os primeiros esquemas de ação para
interagir, surgindo assim os esquemas lúdicos ou imitativos. A
imitação nasce com a repetição ativa ao imitar e repetir aquilo
que desperta o interesse e lhe dá prazer." (p. 46-47)
Como para qualquer criança, para a criança deficiente visual
brincar é uma importante atividade. A brincadeira evita que ela se
isole e podemos ajudá-la a brincar e a descobrir como são os
objetos, como eles funcionam, como estão dispostos no espaço e
qual a relação entre eles, estimulando suas percepções táteis
auditivas, olfativas e gustativas. Todo o seu corpo deve estar em
ação. Movimentações corporais são extremamente importantes,
principalmente aquelas que estimulam a criança a descobrir o seu
corpo e o ambiente a sua volta. Por exemplo, com brincadeiras
atrativas e prazerosas como empurrar cadeiras, carrinhos de
bonecas e outros, proporcionamos ao mesmo tempo divertimento e uma
forma lúdica de realizar atividades de O.M. Desta forma,
contribuímos para o desenvolvimento, estimulando-a também a
descobrir o mundo por meio do brinquedo.
A orientação e a mobilidade na deficiência visual
Martin e Bueno (2003b) definem a orientação como um processo
cognitivo que permite instaurar e adequar a posição que a pessoa
ocupa no espaço por meio de informação sensorial. A mobilidade, no
sentido amplo, é a habilidade de deslocar-se de um lugar para
outro. Para que a mobilidade seja bem ajustada, ela deverá ser
realizada de maneira segura, independente e eficaz. Ambos os
conceitos estão interligados, pois um não pode ser entendido sem o
outro.
No livro Psychologie Cognitive de La Cécite Precoce, Hatwell
(2003) destaca que a ausência da visão tem influência sobre o
desenvolvimento postural e motor da pessoa cega. A visão responde
em grande medida pela estabilização corporal e pelo equilíbrio,
bem como atua na iniciação e controle dos movimentos. A cegueira
afeta a postura porque esta é organizada a partir das percepções
proprioceptivas e vestibulares e da visão. Na falta da visão, o
deficiente visual depende da informação do próprio corpo e do
sistema vestibular para manter a postura e o equilíbrio. Além
disto, a pessoa cega encontra dificuldade para caminhar e manter
seu equilíbrio durante o movimento, sobretudo pela falta da
pré-visão. Seu caminhar requer uma intensa atividade cognitiva,
pois, além de se preocupar com a sua mobilidade, é preciso estar
atento ao caminho, ou seja, à sua orientação espacial.
De acordo com Hatwell (1993), a cabeça abaixada é uma das
características da postura da pessoa cega. Outra possibilidade é
olhar para o alto. Ambas as posturas da cabeça são causadas pela
ausência da mirada e pelo não alinhamento na altura dos olhos.
Para localizar um som, os cegos tendem a virar a orelha direita
para essa fonte sonora. Durante um diálogo, é comum que uma pessoa
cega posicione a cabeça lateralmente em relação à pessoa com quem
está conversando. Quando este posicionamento é adotado durante a
locomoção, a cabeça e o corpo ficam em planos diferentes, o que
afeta a postura global e a manutenção de uma trajetória retilínea.
A criança com deficiência visual pode ter seu desenvolvimento
afetado por tais particularidades geradas pela falta de visão, mas
estas podem ser atenuadas através de estimulação adequada. O
treino nas técnicas de O.M. visa um melhor desenvolvimento
postural, que trará por certo efeitos positivos para sua
orientação e deslocamento espacial.
A principal dificuldade ocasionada pela cegueira é a
ausência de pré-visão, ou seja, a capacidade de antecipar a
presença de objetos no espaço. A pessoa cega presta atenção às
informações sensoriais atuais e recorre também a conhecimentos
anteriores disponíveis em sua memória. Por exemplo, fazendo
regularmente um determinado caminho, a pessoa sabe quais
obstáculos, desníveis no solo e outras características do trajeto
serão encontrados e, com este conhecimento, ela poderá se desviar
quando necessário. Sendo assim, a ausência da pré-visão pode ser
fonte de uma forte ansiedade, pois os riscos de colidir com um
obstáculo e de perder seu caminho são, muitas vezes,
consideráveis. No entanto, deve-se lembrar que as diferenças
individuais são muito significativas, podendo atenuar ou acentuar
determinadas características.
As condições perceptivas e cognitivas da locomoção autônoma
em grandes espaços devem responder a vários critérios: a
segurança, a eficácia que permite atingir a meta proposta, o
conforto que torna o deslocamento agradável, a harmonia dos
movimentos e a independência física das pessoas com ausência de
visão. A nosso ver, a O.M. pode ser um meio de promover todos
esses aspectos.
Nossa experiência utilizando a bengala como instrumento lúdico
Introduzimos, em 2004, a atividade de Orientação e
Mobilidade nas classes do primeiro ano do ensino fundamental no
Instituto Benjamin Constant. O trabalho com a pré-bengala foi
iniciado no sentido de verificar se eram pertinentes ou não as
ideias contrárias ao uso da pré-bengala, ou mesmo da bengala
tradicional adequada à estatura da criança. Optamos por um
trabalho lúdico, fazendo com que as crianças assimilassem diversas
técnicas do caminhar independente utilizando um brinquedo similar
a uma bengala. A ideia foi buscar um brinquedo que desempenhasse
as funções da bengala: percepção tátil, à distância, de
referências espaciais e detecção de obstáculos.
Para estas funções
podem ser utilizados brinquedos como carrinhos de madeira,
carrinhos de boneca ou raquetes feitas de bambolê. Em nossa
experiência, o material lúdico utilizado como pré-bengala
consistiu num bastão de madeira com uma haste e duas rodinhas, que
tinha, em sua extremidade inferior, um patinho de madeira que,
quando empurrado, produzia um estímulo sonoro com o bater de suas
asas. Nossa ideia foi introduzir a bengala evitando o caráter
estigmatizador que normalmente a acompanha. A expectativa era de
que a pré-bengala fosse encarada como uma espécie de prolongamento
do corpo para a captação das informações do espaço, ou
simplesmente como um objeto que ajuda na locomoção. No caso,
procuramos evitar a rejeição da bengala devido à representação
social negativa que ela ainda possui, ligada à desvalia da pessoa
cega.
Utilizamos a pré-bengala conjugada com estratégias lúdicas
durante o caminhar com o propósito de favorecer o deslocamento da
criança com autonomia e independência o mais cedo possível,
evitando que ela venha a se machucar com quedas e colisões. De
forma lúdica, estimulamos a coordenação dos movimentos, a
locomoção e a organização postural, ao mesmo tempo em que
procuramos despertar o interesse pelo próprio deslocamento
espacial, aguçando a curiosidade da criança para a exploração de
espaços desconhecidos.
Durante o trabalho estivemos atentas para que a criança
permanecesse com a cabeça alinhada na altura dos olhos. Buscamos
também favorecer a formação dos conceitos de lateralidade, noção
de posição e de sentido, bem como o desenvolvimento da orientação
espacial e coordenação motora global. Mas o mais importante era a
atmosfera lúdica do trabalho, favorecida pelo uso do brinquedo.
Tudo começava com um convite a “levar o patinho para passear”.
Em nosso estudo, de caráter piloto e experimental,
trabalhamos com duas crianças. Uma delas, aqui denominada C1,
tinha a idade de seis anos e era cega congênita. A outra,
denominada C2, tinha sete anos, estava em processo de perda da
visão, possuindo uma visão bastante reduzida. As
brincadeiras/treinos ocorreram duas vezes por semana, com duração
de cinquenta minutos. O início do trabalho ocorreu em 2007 e
finalizou no ano seguinte. Como orientação metodológica da
pesquisa, utilizamos a observação participativa realizada durante
as aulas. As atividades foram registradas num diário de campo.
Foram também realizadas entrevistas com as crianças e suas
respectivas mães (aqui denominadas M1 e M2) ao final do trabalho,
cujo objetivo foi fazer uma avaliação de seus efeitos na vida
cotidiana das crianças.
Dentre os objetivos a serem alcançados na experiência,
podemos destacar como os mais importantes:
-
utilizar a
pré-bengala aprendendo, através da brincadeira, a caminhar de
maneira independente com a maior segurança possível;
-
propiciar
um ambiente de aprendizagem onde a criança deficiente visual
utilizasse de forma adequada e eficiente a informação proveniente
de todos os sentidos de que ela dispõe para orientar-se de maneira
eficaz no espaço.
Caminhar empurrando o brinquedo/patinho tinha
também como objetivo fazer com que essas crianças descobrissem
novos espaços do local, no caso, sua escola (IBC), e como se
desviar dos obstáculos, fazendo-as sentirem-se mais seguras para
se locomover. Durante as aulas, não houve a preocupação de ensinar
técnicas específicas, mas ensinar como a pré-bengala, mesmo sendo
um brinquedo, podia atuar como um instrumento de percepção
importante no seu deslocamento.
Durante as primeiras brincadeiras treinos, foi solicitado às
crianças que percorressem o trajeto da sala de aula até o
banheiro. Elas deveriam sair da sala de aula, atravessar o
corredor passando em frente às portas das diversas salas que
servem como pontos de referência, até encontrar a porta do
banheiro. Iniciamos o trabalho utilizando somente o tato, passando
as mãos na parede e fazendo o rastreamento para reconhecimento do
espaço. Depois desse reconhecimento preliminar do ambiente,
passamos então a dar maior atenção à proteção superior e à
proteção inferior do corpo. Nesse momento, surgiu uma pequena
dificuldade, pois a proposta era caminhar sem tocar com as mãos
nas paredes. Passamos, então, a utilizar a pré-bengala, fazendo-as
caminhar e repetir o mesmo percurso com a companhia do patinho.
Posteriormente, partimos para um novo trajeto, mais
complexo, que tinha como ponto inicial o primeiro andar do IBC,
mais precisamente o refeitório, e como ponto final a nossa sala de
aula, que fica no segundo andar. O trajeto envolvia caminhar pelo
corredor, encontrar as escadas e subir, para então acessar o
segundo piso, onde se encontram as salas de aula. Durante esse
trajeto, passávamos por vários obstáculos, como pilastras, portões
e vãos, dentre outros. Para que este trajeto fosse concluído, foi
necessário que os alunos percorressem o caminho e memorizassem
diversas pistas no ambiente e, posteriormente, elaborassem um mapa
mental do mesmo. Este não é um trajeto fácil e as crianças o
repetiram diversas vezes até que pudessem memorizá-lo.
Cabe destacar que ao longo do trabalho pudemos perceber uma
melhora progressiva no caminhar das crianças. Foi possível
perceber que, com os treinos consecutivos, elas foram adquirindo
uma maior confiança nos deslocamentos, em decorrência das
informações que a pré-bengala/patinho lhes proporcionava,
principalmente quando eram detectados obstáculos antecipadamente,
evitando colisões ou tropeços. Vale sublinhar também que, durante
todo o treino, não ocorreu nenhum episódio de utilização da
pré-bengala com outro fim que não o de orientar o caminhar. Para
isso, foi feito um trabalho de conscientização tanto com as
crianças como com seus pais. Foi dito aos responsáveis que, sempre
que pudessem, deveriam lembrar aos seus filhos que a bengala serve
para ajudá-lo a caminhar e não para bater nos colegas ou nos
objetos.
Durante as entrevistas, as crianças (C1 e C2) relataram sua
experiência, bem como suas mães (M1 e M2.
O trabalho enfrentou dificuldades no inicio, como relatou
esta mãe.
-
M2: "Mesmo usando a pré-bengala, ele se deslocava com muita
insegurança. Não conseguia concentração para as instruções que
estavam sendo dadas."
Uma das crianças (C2) tinha certo preconceito tanto com a
bengala como com a cegueira. Muitas vezes mencionava que
enxergava, mesmo sabendo que não conhecia os caminhos da escola. A
mãe afirmou que, antes do aprendizado com a pré-bengala, a criança
tinha bastante dificuldade de se locomover sozinha na escola.
-
M2: "Ela tinha medo principalmente de descer as escadas sozinha,
de ir até o refeitório, ela só ficavam comigo lá embaixo (no
térreo da escola), lanchando o que eu trazia. Ela descia e ficava
comigo lanchando, ficava ali na praça, não saía e ficava ao meu
redor. Era muito apegada a uma coleguinha dela, mas, quando ela
não vinha para a escola, aí é que ela não saía mesmo."
Foi relatada pela mãe a existência prévia de uma certa
resistência da criança em relação ao uso da bengala.
-
M1: "Eu lembro que no inicio ele apresentava uma resistência de
usar, ele ficava meio assim, porque nem sei... Acho que é meio
normal, porque percebo que várias crianças têm isso. Acho que eles
têm um pouco de vergonha... de andar com um instrumento na mão,
diferente das outras crianças."
A ideia era que a pré-bengala se constituísse em um recurso
lúdico e, ao mesmo tempo, um estímulo para que ela se motivasse no
deslocamento. Parecia que uma das crianças (C2) não gostava da
pré-bengala, pois não se considerava cega. Como tinha percepção de
luz, se movimentava de maneira rápida, mas, em diversos momentos,
sua visão era insuficiente e ela esbarrava nos objetos. Ela não
revelava insegurança para se locomover, todavia sua orientação não
era muito boa. Parece que o patinho, ou seja, a forma da
pré-bengala, diferente da bengala tradicional, tornou-a menos
resistente ao uso desse instrumento para se locomover.
Com as aulas treino-brincadeira, esta situação foi se
amenizando e a criança passou a conhecer melhor a escola.
-
C2: "As aulas e a pré-bengala me ajudaram a conhecer o colégio.
Hoje eu já conheço o colégio e não preciso nem usar a bengala.
Para mim, que enxergo um pouco, a bengala não ajuda tanto, mas,
quando eu perder toda visão total vai ajudar."
O processo foi descrito por uma das crianças como produzindo
a experiência de conhecer novos espaços dentro da escola.
-
C1: "A tia hoje foi comigo até o refeitório, hoje a gente passeou
no pátio interno, passei pela Cantina do Zezinho."
Uma outra fala indica o desejo de ter as aulas, lembrando a
ocorrência de reclamações quando a criança considerava que algo
estava atrapalhando o trabalho.
-
M1: "Ele reclamava às vezes um pouco do trânsito, porque tem gente
na frente, que tem gente que não sai da frente, que tem gente que
não respeita a aula, que ele está passando, porque tem o trânsito,
tem gente que fica na frente e que não sai."
O relato desta mãe também deixa isto claro, indicando como o
treino favoreceu à mãe e à filha, que hoje circula de forma mais
autônoma, dando também liberdade para a mãe.
-
M2: "Ela ficou mais esperta, eu fiquei mais tranquila. Você
percebeu que este ano eu não estou mais no colégio, ela está
andando sozinha e segura. E eu posso ficar despreocupada e fazer
as minhas coisas."
Surgiram relatos de que a atividade melhorou de forma
progressiva e que, aos poucos, se fez presente fora das aulas. A
criança parecia gostar de andar em casa com a pré-bengala.
-
M2: "Bem, já foi um processo de independência, assim, isso foi uma
coisa clara para mim e para o meu marido. Ele começou a brincar em
casa."
Nesta fala, aparece indicado como as aulas de orientação e
mobilidade ampliaram para a criança seu conhecimento do mundo e,
inclusive, como ela já consegue guiar outras pessoas.
-
M2 relatou a fala do filho: "Por que eu já conheço outros
caminhos, caminhos que eu não sei muito bem, para lá... lá na
frente... lá no futuro, eu vou poder andar sozinho sem depender de
ninguém."
O relato também demonstra o desejo de independência e de
autonomia:
-
C2: "Já sei guiar, agora eu ajudo ao meu amigo. Como ele não tinha
orientação e mobilidade, eu o ajudava com as coisas que eu já
sabia."
Considerações Finais
Pelas experiências narradas, o aprendizado antecipado da
Orientação e Mobilidade com a introdução da pré-bengala com
crianças cegas apresenta resultados relevantes e promissores,
tanto no seu cotidiano escolar como em sua vida fora da escola,
tornando-as mais seguras em seus deslocamentos. Percebemos que a
motricidade dessas duas crianças apresentou melhoras, bem como a
postura, o controle de tronco e da cabeça, proporcionando melhores
condições para o seu caminhar. O estudo sugere que as técnicas de
O.M. aprendidas no espaço educacional possibilitam às crianças
deficientes visuais a utilização de um dispositivo importante que
os levará a exercer mais cedo sua independência, autonomia e
cidadania.
Por intermédio das experiências vividas, as duas crianças
apresentaram um comportamento mais seguro, o que, em princípio,
parece de grande ajuda para se locomoverem com agilidade no
futuro, quando caminharem sozinhas nas ruas da cidade ou em
espaços desconhecidos. A O.M. parece repercutir também em outros
aspectos do desenvolvimento da criança, abrindo mais cedo um canal
entre o não ver e o sentir. Neste sentido, concordamos com Martin
e Bueno (2003), que a aplicação das técnicas de orientação e
mobilidade favorece o desenvolvimento psicomotor e, juntamente com
a antecipação do uso da bengala, possibilitam acesso a atividades
sócio-culturais na família, na escola e na comunidade, numa
perspectiva inclusiva.
Na experiência que realizamos, o brincar facilitou a
aceitação da bengala estilizada pelas crianças e nos faz prever
uma melhor aceitação da bengala no futuro. Quando a criança
percebe que a bengala lhe ajuda em seus deslocamentos, parece que
a resistência é minimizada. Através da experiência realizada
parece possível concluir que a inclusão precoce da pré-bengala é
bem vinda, desde que realizada de modo cuidadoso e lúdico. Não se
percebeu nenhuma intenção das crianças no sentido de utilizar a
pré-bengala para outros fins que não o de auxiliá-las em seus
deslocamentos. Nosso estudo analisou o desenvolvimento do trabalho
realizado com duas crianças. Outros estudos devem ser realizados
no futuro que testem o uso com outras crianças, contemplando os
diferentes perfis e o amplo espectro de casos no âmbito da
deficiência visual. Enfim, entendemos que, quanto antes a criança
tiver acesso às técnicas de O.M., bastante favorecida pelo uso da
pré-bengala, mais cedo ela andará com maior segurança, amenizando
o que é considerado como uma de suas maiores dificuldades causada
pela deficiência visual, ou seja, o domínio do espaço.
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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Livraria Martins
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ϟ
A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do
deficiente visual
autoras: Vera Regina Pereira Ferraz & Lúcia Maria Filgueiras
in
Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual
Organizadoras: Marcia Moraes e Virgínia Kastrup
15.Out.2012
publicado
por
MJA
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