-excerto-

Mutilados de Guerra - Otto Dix, 1920
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Disse mais o SENHOR a
Moisés: “Fala a Aarão e ordena-lhe: Nenhum dos
teus descendentes, em qualquer geração, se aproximará para
apresentar ofertas de pão a seu Deus, se tiver alguma
mácula. Pois nenhum homem pode apresentar ofertas de
alimento, caso tenha algum defeito: seja cego, aleijado, com
defeito na face ou de corpo deformado; ninguém com uma perna
ou braço quebrado; ninguém que seja corcunda ou anão;
ninguém que tenha doença nos olhos ou que tenha sarna ou
qualquer outra doença de pele; e ninguém que seja castrado.
Nenhum descendente do sacerdote Aarão que tiver algum
defeito poderá apresentar oferendas queimadas a Yahveh; se
nele houver alguma mácula, tem defeito, por isso não poderá
aproximar-se para oferecer o pão de seu Deus." E Moisés
disse isso tudo a Aarão, a seus filhos e a todos os filhos
de Israel ! [Levitico: 17-21]
índice
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Para uma visão global
De acordo com a "História da Vida Privada", os romanos
expunham ou
afogavam as crianças deficientes. "É necessário separar o bom
do que não
serve para nada", dizia Séneca. Existia também, em Roma, a
prática pagã de
mostrar publicamente os deficientes, como prova de que a
cólera dos deuses se
manifestava através deles.
Estas práticas romanas são herdadas dos gregos, que as
estabelecem a partir da
concepção da sociedade mitológica, constituída por seres
perfeitos, fortes e
belos. É edificante o mito de Hefesto, que nasceu coxo e foi
deitado fora pela mãe.
Em Esparta, todos os fracos eram eliminados. Mas essas
práticas têm paralelismo
na atitude expressa no Antigo Testamento em relação aos
deficientes-
considerados seres impuros e desprezíveis, portadores de
marcas de culpa.
A deficiência como expressão de uma maldição surge na
"Crónica Breve de
St. Cruz de Coimbra". D. Teresa, depois de ser presa por seu
filho, Afonso
Henriques, lança-lhe esta maldição: "E porque me meteste nos
meus pés ferros,
quebradas sejam as tuas pernas com ferros". Reza a mesma
crónica que a
maldição se cumpriu: "Depois disto, pelo mal e pelo pecado que
fez a sua mãe em
prendê-la, quebrou-lhe uma perna em Badajoz, que havia tomado
aos mouros". O
rei ficou deficiente, não tendo mais montado a cavalo, andando
numa "carreta"",
acrescenta a crónica. A figura de Afonso Henriques surge ainda
envolta noutra
lenda. Em "A Guerra até 1450", de Teresa Amado, afirma-se:
"Predestinado desde
o nascimento, Afonso Henriques é alvo, aos cinco anos, de uma
intervenção divina
que, através de um sonho de Egas Moniz, seu aio, cura a
deficiência que lhe tolhia
as pernas".
A repulsa que os deficientes causam, de raiz pagã e
hebraica, é camuflada na
Idade Média pela caridade cristã. Jacques le Goff, em "O Homem
Medieval",
conclui isso mesmo: "A caridade para com os doentes andava a
par com o medo
do contágio e a aversão e desprezo para com os aleijados".
Compreender-se-á
assim o esforço feito pelas autoridades para que a instituição
"esmola" estivesse
essencialmente ao serviço dos deficientes. Eram protegidos,
segundo os preceitos
cristãos, mas mantidos fora do convívio dos normais. Baquero
Moreno, na obra
já citada, dá conta de várias medidas oficiais deste tipo. Uma
circular de Afonso
IV, de 1349, estabelece que a esmola deve ser para "os velhos
e mancos e cegos
e doentes e outros que não têm corpos para fazer nenhum
serviço". Uma postura
do concelho de Lisboa, do século XV estabelece uma espécie de
junta de saúde
para atestar sobre essas condições. Mas D. Duarte, em 1445, já
admite que alguns deficientes podem trabalhar e por isso não devem pedir esmola
("posto que em
alguma parte dos membros corporais sejam minguados, pero com
toda essa
míngua podem fazer algum mester ou obra de serviço").
As fontes consultadas não nos permitem avaliar o fenómeno da
marginalização
dos deficientes na Idade Média em toda a sua extensão. Para
além do seu
inaproveitamento laboral, interessaria conhecer: a frequência
dos espaços
públicos, as relações familiares, as atitudes dos outros, a
constituição de família,
o direito à propriedade, etc. O afastamento dos deficientes do
trabalho, na Idade
Média, não seria, só por si, uma forma de discriminação como
hoje se entende,
mas sim o afastamento do convívio dos outros em geral. A
dignificação da pessoa
pelo trabalho é muito recente. Segundo Pierre Jacquard, em
"História Social do
Trabalho", "para a alma hebraica, como para a grega, o
trabalho apresenta-se
essencialmente como um castigo e um sofrimento". A
glorificação do trabalho
surge apenas com o triunfo do protestantismo, sobretudo com o
Calvinismo.
Podemos avaliar a exclusão global da partilha dos benefícios
do progresso,
como hoje diríamos, pelo direito à herança de Morgadios. Maria
de Lurdes Rosa,
no trabalho atrás referido, verifica que, pelo menos a partir
de 1336, os deficientes
são excluídos da doação de morgadio, nomeadamente
"defeituosos, coxos,
cegos, paralíticos, mudos, defeituosos das pernas, mancos,
aleijados dos
membros". A exclusão da herança, que implicava a eliminação da
qualidade de
chefe de família, assentava no prejuízo que resultaria para a
administração dos
bens, segundo apurou a autora. A salvaguarda da imagem do
chefe de famllia era
a grande preocupação, cujos traços de beleza e perfeição devem
estar em
harmonia com a superioridade social, de acordo com os modelos
da literatura
genealógica e cavaleiresca, conclui a autora. Este pequeno
trabalho é um dos raros
exemplos comprovadores da viabibilidade de elaboração da
história da
marginalização dos deficientes.
A repulsa pelos deficientes, camada de fundo da nossa
cultura, tapada por uma
de supertície - a caridade cristã -, está pronta a
manifestar-se quando o vemiz estala.
Nietzsche, que nutria um autêntico fascínio pela cultura
grega antiga, faz, em
o "Anticristo", a apologia do homem forte e defende a
eliminação dos fracos:
"Morram os fracos e os falhados: primeiro princípio do nosso
amor pelos
homens. E que os ajudem mesmo a desaparecer!". Os princípios
filosóficos de
Nietzsche tiveram a sua aplicação prática no nazismo, que,
como refere Stefan
Kühl, em "The Nazi Connection", em nome da necessidade de
defender a
"superioridade da raça alemã, milhares de elementos indignos
de viver - pessoas
com deficiências físicas ou mentais, ou de uma idade muito
avançada - foram
"despachadas" (isto é, foram mortas).
Com a fundação do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, no
final do século
XV, inicia-se a era da centralização da assistência, apoiada
pelo poder real. De
como é feita essa assistência pouco sabemos. Do século XVI ao
século X1X não
encontrámos elementos sobre a marginalização ou integração dos
deficientes. Só
com a expressão dos movimentos dos trabalhadores é que as
alusões aos
deficientes reaparecem. No volume V da "História de Portugal",
de José Mattoso,
é referido o aparecimento das associações de socorros mútuos,
depois de 1870,
para protegerem os trabalhadores na incapacidade por acidente
ou doença. Estas
associações virão ocupar o espaço das confrarias medievais. O
espírito de
entreajuda é o mesmo, mas o princípio da caridade é
substituído pelo da
solidariedade, que se desenvolve no plano horizontal e
pressupõe a reciprocidade.
A Igreja, no "Catecismo da Igreja Católica", aprovado por João
Paulo II em 1993,
reformula o conceito de caridade em termos próximos da
solidariedade: "A
caridade exige a generosidade, o bem-fazer e a correcção
fratema. É benevolente,
suscita a reciprocidade, é desinteressada e liberal, é amizade
e é comunhão".
Nos tempos modernos, depois de se considerar que o homem se
afirma e
valoriza através do trabalho, o acesso dos deficientes a este
é fundamental. Sobre
o que se tem passado neste domínio também pouco sabemos.
Dispomos apenas de
uma conclusão da Conferência Intemacional de Mutilados de
Guerra, realizada em
Paris, em 1917; segundo José Pontes, em "Mutilados de Guerra",
nestes termos:
"É de urgência destruir o preconceito, vulgarizado antes da
guerra, de que toda a
mutilação correspondia a um direito à mendicidade". Os
deficientes são, nesta
conferência, entendidos como uma força de trabalho a
aproveitar.
A história recente dos deficientes terá sido, em muito, a
história do direito ao
trabalho. Mas sobre isso os elementos consultados primam pela
omissão.
Com a intenção de darmos um contributo para essa história,
lembramos aqui
um documento inédito, porque não publicado no lugar a que se
destinava. Trata-se do despacho do Ministério da Educação n" 84/MEC/86,
assinado pelo ministro,
que não chegou a ser publicado no Diário da República por
causa dos protestos dos
sindicatos. O despacho procura regulamentar as "condições
físicas e psicológicas"
em que os professores se podem efectivar. Para isso, os
professores são submetidos
a exames médico-pedagógicos, que visam "a detecção de
condições físicas ou
psíquicas do funcionamento individual dos candidatos que
comprometam
gravemente ou impeçam o exercício das actividades específicas
da docência e a
indispensável assiduidade ou que possam constituir risco para
a saúde física ou
mental dos alunos". Enumera a seguir as situações de
incompatibilidade, desde
a cegueira total ou parcial, passando pela ausência total ou
parcial dos membros
superiores ou inferiores, "apesar da utilização de próteses",
até deformações graves.
A avaliar por este diploma, que tem no canto superior
direito "Publique-se no
Diário da República", a data (15-4-1986), "O Chefe do
Gabinete" e uma
assinatura ilegível, a história da marginalização dos
deficientes parece mais circular
do que linear. Recuando 646 anos, ou seja, ao diploma de
Afonso IV anteriormente
referido, basta-nos colocar no sítio onde se lê "as esmolas
devem ser só para"
(segue-se a lista de deficientes) as palavras "não podem ser
professores" para
acharmos essa circularidade, ou, talvez, a coerência de
sempre. A maior
coincidência estará ainda no facto de os deficientes, na Idade
Média, terem o
exclusivo da esmola para serem colocados à margem da
comunidade que,
presume-se, se sentiria incomodada com eles no seu seio, e o
facto de, neste
diploma dos nossos dias, se assumir expressamente que os
professores deficientes
podem "constituir risco para a saúde mental dos alunos".
Mas a questão não estará apenas no protagonismo. Estará
também na densa
auréola mística que envolve esta temática. É que o deficiente
é, bem mais do que
a mulher, um "mistério e uma fonte de tabu". As deficiências
como manifestações
da vontade do além dificilmente se ajustam ao rigor de análise
objectiva da
História. Como se pode, deste modo, reconhecer motivações
sociais nas lutas dos
deficientes? Seja como for, o certo é que a História, com esta
atitude de
alheamento, torna-se-se numa das mais poderosas barreiras
culturais da integração,
porque legitima, por omissão, as atitudes discriminatórias,
que vêm do fundo da
nossa cultura e afloram na interacção social do quotidiano.
O Estatuto da Personagem Deficiente na Literatura
Decidimos fazer uma visita à sociedade da ficção e ver como
vivem por lá
as personagens deficientes. Esta incursão não é motivada por
simples curiosidade.
Pensamos que o estatuto dessas personagens não é estranho ao
das pessoas
deficientes. Existe uma interrelação e uma interinfluência
que, se entendidas,
lançarão alguma luz sobre o fenómeno real da marginalização. A
literatura,
como instrumento cultural de primeira importância, espelha e
enforma os
comportamentos humanos. No caso dos deficientes, pode ter uma
de duas funções: apropriação e reprodução dos estereótipos sociais da
marginalização;
problematização desses estereótipos. Determinar qual delas é
mais acentuada é
concluir sobre o papel que a literatura, como poderoso meio de
cultura,
desempenha na definição social do estatuto das pessoas com
deficiência. Ou seja,
a literatura pode ser ou não uma baireira da integração social
dos deficientes.
Certa literatura moderna pretende prescindir do real como
fonte de alimentação.
Mas o irreal, mesmo que o outro lado do real, pressupõe este,
e o universo do
romance é sempre povoado por humanos, mesmo transfigurados e
por isso mesmo
talvez mais humanos. Não foi, no entanto, a este tipo de
literatura que recoiremos
para tentar determinar alguns contoroos da imagem dos
deficientes traçada pela
pena dos escritores ao longo dos tempos. Analisámos apenas
obras com histórias
verosímeis, povoadas de personagens moldadas das pessoas
viventes.
Foram lidas trinta e três obras, de vinte e seis autores
portugueses, e dezoito
de dezassete autores estrangeiros. Todas elas tratam, de uma
foima ou de outra, da
temática dos deficientes. A selecção destas cinquenta e uma
obras, de diferentes
épocas e correntes literárias, não assentou em qualquer
critério prévio. Isto
porque não se dispôs de uma relação de obras com esta
característica. É essa
relação que agora se pretende elaborar. O levantamento feito
não foi exaustivo.
Deverá ser continuado, para podermos ter, muito especialmente
da literatura
portuguesa, uma visão completa, para podermos traçar com rigor
a imagem que
aí se dá das pessoas com deficiência.
Não é, pois, exaustiva a lista de obras agora divulgada, tal
como não é acabada
a análise que fazemos. É apenas a abertura desta área de
interesse que nós
pretendemos. Se conseguirmos motivar especialistas e leitores
comuns para
reflectirem sobre o lugar que as personagens portadoras de
deficiência ocupam nas
micros-sociedades da ficção, teremos atingido o nosso
objectivo. Teremos
conseguido um alargamento da reflexão sobre a questão da
marginalização dos
deficientes e conseguiremos, por via disso, reduzir os
obstáculos da sua integração.
Da Visão Mitológica ao Universo Literário
As raízes da literatura encontram-se no mito, nessas
histórias sagradas e
exemplares, fornecedoras de modelos para o comportamento
humano. A cultura
ocidental, nascida na Grécia, é edificada com essas histórias
hoje aparentemente
chocantes, porque passadas pelo crivo do racionalismo, mas na
realidade
subjacentes a muitas atitudes actuais. Os membros da sociedade
mitológica, os
deuses, surgem na obra de Homero, como seres poderosos, fortes
e belos. Há uma excepção, o deus Hefesto, que é coxo. A "Ilíada" revela a
atitude da mãe face ao
filho deficiente. São do próprio Hefesto estas palavras,
dirigidas a Tétis, que o
visita na sua oficina de ferreiro:
"É sem dúvida uma deusa
temida e venerada que
se encontra na minha casa, a que me salvou, quando as dores me
apoquentaram,
após a longa queda desejada por minha mãe de olhos de cadela,
que pretendia
esconder-me porque eu era coxo". Entre o mito e a realidade há
uma relação
estreita, pois na Grécia, como depois em Roma, a prática de
exposição ou
abandono dos recém-nascidos deficientes era corrente.
Ainda na "Ilíada", é o próprio narrador que revela a sua
atitude em relação aos
deficientes, ao se referir ao deus Hefesto desta forma: "Tendo
dito, o ser
monstruoso, enorme, ergueu-se da sua bigorna coxeando".
O mito, pela sua exemplaridade, terá, pois, sido responsável
por práticas
sociais que hoje, na aparência, se repudiam, mas que subjazem
às atitudes. A
literatura ocupou o lugar do mito e reproduziu comportamentos
enraizados.
Se colocarmos o Antigo Testamento no mesmo plano, pois nos
conta histórias
exemplares do início do mundo e do homem, também aí
encontramos a primeira
matéria-prima cultural dos comportamentos humanos em relação
aos deficientes.
Sobre as leis relativas aos sacerdotes, "o Senhor disse a
Moisés: Fala a Aarão
dizendo: nenhum dos teus descendentes, de geração em geração,
se sofrer de
alguma deformidade poderá oferecer o pão do seu Deus. Porque
quem tiver
alguma defomüdade não poderá ser admitido: um cego ou coxo
com o nariz
esmagado ou com os membros desiguais, um aleijado de pé ou
de mão, um
corcunda ou um anão, aquele que tiver uma névoa no olho ou a
sarna, um darto
ou os testículos esmagados. Homem algum da raça do sacerdote
Aarão, que tiver
alguma deformidade, se apresentará para oferecer sacrifícios
ao Senhor. Atingido
por alguma deformidade não pode apresentar-se para oferecer o
pão do seu Deus".
Este impedimento do acesso dos deficientes ao espaço
prestigiado da época,
que é o sagrado, teve repercussões por todos os tempos. A nota
de rodapé
sobre esta passagem, ao tentar dar uma explicação lógica,
confirma a discriminação
dos deficientes: "O texto alude às irregularidades ou defeitos
físicos que podem
tornar o sacerdote desprezível ou ridículo aos olhos do povo".
Já no nosso
tempo, a personagem de "Manhã Submersa", de Vergílio Feireira,
não consegue
ver-se livre do seminário por falta de vocação, mas é mandado
embora pela falta
de dois dedos, na sequência da explosão de um foguete.
Os espaços prestigiados hoje já não se limitam ao sagrado, e
o certo é que os
deficientes têm aí o acesso condicionado, em alguns casos
também por
regulamentação legal.
O romance nasce na Idade Média directamente do mito do
amor-paixão
"Tristão e Isolda". A personagem encarregada de espiar e
denunciar os amores de Tristão e Isolda contrasta com a força e beleza do herói.
Era um anão corcunda.
À deformidade física juntam-se os traços morais ("o aleijão,
que era mau e
invejava a felicidade dos amantes, não se fez rogado") e
metafísicos ("conhece a
arte da magia, lê o futuro nos sete planetas e no curso das
estrelas"). Esta a
concepção de uma personagem triplamente aberrante com todos
os ingredientes
necessários para, como oponente, receber a antipatia do leitor
que, como convém,
deve estar sempre ao lado do herói. A deficiência física
passa, a partir daqui, a
ser um ingrediente ao serviço da funcionalidade narrativa.
O romance "O Nome da Rosa", de Humberto Eco, cuja acção se
passa na
Idade Média, revela-nos a flgura do anticristo. Trata-se de um
frade responsável
pela biblioteca duma abadia que impede o acesso ao tratado da
comédia de
Aristóteles, por considerar, num rasgo de excesso de zelo
cristão, que a alegria
e o riso são coisas vis. Para evitar a difusão da mensagem de
Aristóteles sobre a
alegria de viver, o frade envenenou as folhas do livro. Quem o
consultasse
morreria. A caracterização psicológica da personagem é
suficiente para obter a
antipatia do leitor. Mas a aversão é acentuada através de um
traço físico - a
cegueira. Assim, a maldade do frade fica mais realçada. A
cegueira é ingrediente
necessário para a concepção desta personagem demoníaca. A
deficiência é
tradicionalmente uma ligação ao domínio do obscuro, do mágico.
Começa logo
por ser assim em "Tristão e Isolda".
A deficiência como marca do castigo, expressão da culpa e
consequente
marginalização do seu portador aparece nos textos mais
antigos. No Antigo
Testamento, no Livro dos Reis, Ozias, por causa do seu
orgulho, é punido com a
lepra e expulso do templo do Senhor. Em nota de rodapé, ao
procurar dar uma
explicação lógica, mais uma vez se confirma a discriminação
dos deficientes: "O
rei é castigado com a lepra, doença que tornava as pessoas
impuras e as obrigava
a viver separadas do Santuário e do convívio social".
Da Grécia antiga chega este mesmo entendimento da
deficiência como
punição, ou melhor, como autopunição. Édipo, depois de tomar
consciência do seu
horrendo crime (matou o pai e casou com a mãe), vazou os olhos
com um alfinete,
para não mais verem os males que sofrera e as desgraças que
tinha causado. A
cegueira é aqui a expressão visível do ponto de viragem na
tragédia, ou seja, a
queda do herói. A sua funcionalidade narrativa é inequívoca:
inspira mais
fortemente o horror e a piedade no público. A cegueira marca o
momento da
passagem do homem forte (o que venceu a esfinge) e poderoso
(casou com a viúva
do rei, como prémio) ao homem fraco (vence-se a si próprio) e
sem poder (parte
para o exílio).
A punição através da mutilação é realçada na "Crónica de D.
João I", de
Fernão Lopes, nos fins do século XIV uma obra com
características históricas e literárias. O rei, encontrando-se em campanha com o seu
exército, manda
decepar seis moços por terem ido à erva sem a sua autorização,
de nada valendo
a intercedência de Nuno Álvares Pereira. A deficiência como
expressão da culpa,
culturalmente marcada, contribui para fazer dos deficientes
seres estranhos de que
naturalmente as pessoas se afastam.
Confluência de Culturas
Da Grécia antiga e do Antigo Testamento recebemos uma
herança que é a base
da nossa cultura em matéria de deficientes. O racionalismo
socrático não terá
anulado a tendência discriminatória da visão mitológica,
tê-la-á apenas recalcado.
Do mesmo modo, o Novo Testamento não terá destruído o sentido
de impureza e
de culpa da deficiência, apenas lhe terá sobreposto a visão do
sofrimento
purificador.
No Novo Testamento, segundo S. João, perante um cego de
nascença, os
discípulos interrogaram Jesus sobre "quem pecou, este ou os
seus pais, para que
nascesse cego". Jesus respondeu: "Nem ele nem seus pais; mas
foi assim para que
se manifestassem nele as obras de Deus". E dito isto, Jesus
restitui-lhe a visão. A
deficiência deixa de ser a consequência de alguma coisa para
ser um meio para
atingir um fim. E esse fim pode ser a salvação eterna ou,
ainda na terra, a
eliminação da própria deficiência.
Eça de Queirós, no fnal do século XIX, no conto "Suave
Milagre", apresenta
a deficiência como caminho mais curto de acesso a Deus. Quando
os ricos e
poderosos procuravam Jesus em vão, a "um filhinho único, todo
aleijado",
duma viúva pobre da Galileia, bastou o desejo forte de o ver e
logo este aparece
e diz: "Aqui estou".
De qualquer modo, a deficiência continua a ser entendida
como uma marca
do mal, já que o aperfeiçoamento do indivíduo pode eliminá-la,
seja através da fé,
seja através da prática do bem. A literatura popular fixou
situações destas,
como se verifica no romance "A Fé do Cego" (recolha de
David-Pinto Correia):
Nossa Senhora pediu a um cego, que guardava um maçanal, uma
maçã para o
menino. O menino comeu a maçã e o cego começou a ver.
O proteccionismo cristão, misturado com a rejeição do Antigo
Testamento,
forjou um estatuto social estranho, já que estes dois pólos se
repelem. As obras
literárias com personagens deficientes darão conta desta
tensão.
Para além da herança greco-romana e judaico-cristã,
determinantes de formas
de encarar os deficientes heterogéneas e de difícil
compreensão, há ainda que
considerar outras heranças. O romance "As Brumas de Avalon",
de Marion Zimmer Bradley, um "best seller" recente, dá-nos uma ideia do
estatuto dos
deficientes na sociedade matriarcal céltica, na Bretanha, no
tempo do rei Artur.
Kevin é uma personagem que ficou deficiente na luta contra os
invasores
romanos (mãos e pernas aleijadas, cicatrizes nas pernas).
Personagem sensível
(músico), é, no entanto, repudiado pelas mulheres, que evitam
até que ele as olhe.
A literatura popular, cadinho das várias influências
antigas, define o lugar da
personagem deficiente no amor. É exemplo a história de "A Bela
e o Monstro". A
bela, em reconhecimento da riqueza dada à família pelo
monstro, dispensa-lhe a
sua amizade. Quando este se transfoima num belo rapaz,
apaixona-se por ele e
casam-se.
Valorização Romântica das Personagens Deficientes
A religiosidade profunda e o espírito cavalheiresco da Idade
Média
contribuíram para a definição de um estatuto marginal marcante
dos deficientes.
O romantismo, na primeira metade do século XIX, procurou
valorizar o exotismo
daquela época, criando algumas personagens deficientes que são
figuras de
grande dimensão da literatura universal. Os deficientes sobem
ao primeiro plano
da literatura. A figura maior é Quasimodo, no romance "Nossa
Senhora de Paris",
de Victor Hugo. A acção passa-se no século XV e a personagem
central é o sineiro
da igreja de Nossa Senhora de Paris, Quasimodo, figura
repelente, objecto de
chacota, papa dos loucos. É assim descrita: "Uma cabeça
foimidável, eriçada de
uma cabeleira ruiva; entre os dois membros uma bossa enorme
que, com o
movimento, fazia vulto por diante; um sistema de coxas e de
pernas tão
singularmente descambadas que apenas se podiam aproximar pelos
joelhos e que,
vistas de frente, pareciam duas lâminas recuivas de foices,
unidas pelo cabo; pés
largos, mãos monstruosas.
(...) Não tentaremos dar ao leitor uma ideia desse nariz
tetraedro, dessa boca
recurva como uma ferradura; desse pequenino olho esquerdo
obstruído por uma
sobrancelha ruiva, e áspera como tojo, enquanto o olho direito
desaparecia
completamente sob uma enorme verruga; dessa dentadura
desordenada, aqui e
além brechada como as ameias dum forte; desse lábio caloso,
por sobre o qual
avançava um desses dentes como uma presa de elefante; desse
queixo fendido; e
principalmente da fisionomia diluída sobre tudo isto; desse
misto de malícia, de
estranheza e de mágoa". É assim dado o retrato físico,
completado pela surdez
adquirida a tocar os sinos.
Na tradição literária, o herói é sempre forte, belo e
corajoso. Quasimodo parece
à partida estar excluído desse papel, porque não tem o
predicado da beleza. Tem, no entanto, os outros dois: "E com toda essa disformidade, não
sei que ar de forte,
todo ele vigor, agilidade e coragem; estranha excepção à
eterna regra que
pretende que a força, do mesmo modo que a beleza, resulta da
harmonia". Esta
excepção cria uma personagem fora do vulgar, que, no centro de
toda a acção, se
eleva moralmente acima de galãs e intelectuais. Contra tudo e
contra todos,
defende a dama do seu amor não correspondido, que é
perseguida, a cigana
Esmeralda. O herói aparente do romance, o capitão Febo, forte
e belo, obtém o
amor da protagonista, mas não a protege, porque é covarde;
Quasimodo, o
verdadeiro herói, forte e corajoso, protege-a, mas não obtém o
seu amor, porque
é feio.
Quasimodo é considerado uma manifestação das forças do mal.
Mas porque se
vê "escarnecido, espezinhado, repelido. Ao crescer só
encontrara à volta de si o
ódio. Deitou-lhe a mão. Adquiriu a malvadez geral." O amor à
cigana neutralizou
parte desse ódio. Quando se refugia com ela na igreja,
diz-lhe: "Faço-vos medo.
Sou muito feio, não é verdade? Não olheis para mim, ouvi-me
só".
Nesta obra romântica é feito um esforço excepcional para, no
universo
ficcional, dar um lugar de destaque ao deficiente, tocando os
limites da afirmação
social verosímil, projectando-se mesmo para o domínio do
inverosímil ou
utópico. De facto, esta figura fisicamente repelente, embora
moralmente nobre, não
tem direito ao amor, em vida. Mas tem-no depois da morte,
quando a deficiência
já não é obstáculo: dois anos após o enforcamento, os dois
esqueletos foram
encontrados abraçados.
Em Portugal, o romantismo, nomeadamente o da primeira
geração, até
meados do século XIX, também valorizou as personagens
deficientes. A pena de
Alexandre Herculano moldou uma figura de grande relevo. O Bobo
é personagem
fulcral do romance com o mesmo nome, cuja acção decorre no
início do século
XII, em Guimarães, no ambiente da luta entre Afonso Henriques
e sua mãe.
Fisicamente, é assim caracterizado: "Era um vulto de pouco
mais de quatro pés de
altura; feio como um judeu; barrigudo como um cónego de
Toledo; imundo como
a consciência do célebre arcebispo Gelmires, e insolente como
um vilão de
beetria". O anão deformado, que era tratado com desprezo na
corte de D.
Teresa, toma o partido de D. Afonso Henriques e é, dentro do
castelo, o
verdadeiro artífice da vitória. É, de facto, a personagem
central e mola
impulsionadora da acção. Mas não é protagonista, é um herói
adjuvante; garante
a obtenção do objectivo duma história que não é sua; é
impulsionador da acção,
mas não é seu beneficiário. O amor de Egas e Dulce e a vitória
do infante a si se
devem, mas ele não recebe os louros dessa vitória, nem o amor
o bafeja.
Também nunca são criadas expectativas sobre a sua realização
pessoal. Estão
tacitamente assentes os limites da sua condição.
O Bobo de Alexandre Herculano fica abaixo da estatura do
Quasimodo de
Víctor Hugo, mas é, na literatura portuguesa, uma das raras
personagens,
desprezíveis pela sua condição física, valorizadas e
dignificadas.
E ainda Alexandre Herculano, nas Lendas e Narrativas, em "A
Abóbada", que
dignifica uma personagem deficiente. No início do século XV o
arquitecto do
Mosteiro da Batalha, Afonso Domingues, cego e é substituído
por um mestre
estrangeiro. Lamenta-se o arquitecto português: "El-rei não
foi ingrato, dizeis vós,
venerável prior, porque me concedeu uma tença!? Que a guarde
em seu tesouro,
porque ainda às portas dos mosteiros e dos castelos dos nobres
se reparte pão por
cegos e por aleijados (...). Os milhares de lavores que tracei
em meu desenho eram
milhares de versos; e porque ceguei arrancaram-me das mãos o
livro, e nas páginas
em branco mandaram escrever um estrangeiro! Loucos! Se os
olhos corporais
estavam mortos, não o estavam os do espírito". A abóbada da
casa do capítulo,
construída sob a orientação do mestre estrangeiro, caiu
momentos antes de ser
inaugurada pelo próprio rei. D. João I logo ali reconduziu o
arquitecto cego, que
orientou os trabalhos de reconstrução. Esta valorização
romântica dos fracos, vista
de hoje, é de perfeita actualidade quanto ao pretendido
reconhecimento das
capacidades dos deficientes e do seu direito ao trabalho.
Estas obras não são suficientes para caracterizar, nesta
perspectiva, toda uma
corrente literária. Seria interessante um estudo profundo do
romantismo, a sua
caracterização definitiva, as causas e os reflexos, não só na
produção literária
posterior como nos comportamentos sociais em relação aos
deficientes.
Personagens Deficientes Estáticas
Se bem estudado o romantismo, talvez pudéssemos concluir, ao
contrário de
Eça de Queirós, que as leituras românticas tinham efeitos
benéficos. Neste
domínio, talvez mais benéficos que as suas próprias obras, em
que, no afã de
retratar e denunciar a realidade, o escritor não dá realce a
questões de grande
dimensão humana, como a dos deficientes. Na sua obra, salvo
melhor procura, para
além do conto "Suave Milagre", já referido, encontramos apenas
mais uma
personagem deficiente, e o enfoque narrativo não é feito nela.
Trata-se do conto
"No Moinho", que trata da história de Maria da Piedade, uma
mulher bela,
considerada "uma senhora-modelo", cujo "marido, mais velho que
ela, era um
inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de
espinha". Era de uma
dedicação extrema ao marido e aos filhos, até conhecer Adrião,
um primo do
próprio marido, com quem passou a antever "para além da sua
existência ligada
a um inválido, outras existências possíveis". Passa a
alimentar a sua imaginação com leituras: "O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da
imagem de Adrião e
alargou-se a um ser vago que era feito de tudo o que a
encantava nos heróis de
novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha,
sobretudo, a força".
Acabou por se fazer amante do praticante de farmácia, que "lhe
pede dinheiro
emprestado para sustentar uma Joana (...)". Temos uma
personagem com um
percurso dinâmico, que vai da dedicação à família, passando
pela aventura
amorosa e devaneio, até à degradação, com um fim moralista.
Mas está ausente o
percurso interior do marido, ou seja, as suas reacções. Essa
condição de
personagem estática e vazia constitui um traço que Eça imprime
à imagem dos
deficientes na literatura.
As personagens deficientes estáticas e objecto da reacção
dos outros são as
mais frequentes. Até na poesia surgem como seres inertes duma
paisagem
humana contemplada. Cesário Verde, o poeta realista dos finais
do século XIX, dá
conta, no poema "Em Petiz", das suas atitudes face aos
deficientes.
Primeiro, um
sentimento de terror: "Pois eu, que no deserto dos caminhos, /
Por ti me expunha
imenso, contra as vacas; / Eu, que apartava as mansas das
velhacas, / Fugia com
terror dos pobrezinhos!". Depois, um sentimento de pena: "Hoje
entristeço.
Lembro-me dos coxos / Dos surdos, dos manhosos, dos manetas. /
Sulcavam as
calçadas, as muletas; / Cantavam no pomar os pintarroxos!"
Esta atitude contemplativa é de ontem e de hoje. A
literatura sobre a guerra
colonial, salvo raras excepções, acompanha os feridos até ao
hospital, incapaz de
os seguir no percurso posterior, quando ficam deficientes.
Entre essas excepções
estão autores que são eles próprios deficientes militares,
como Ferreri, Calvinho
e Sá Flores. Em "Fizeram de mim Soldado", Jaime Ferreri,
acompanha um
punhado de militares, desde a incorporação até ao regresso à
terra, onde a
condição de deficiente faz deles homens desenraizados.
Calvinho, no livro de
poemas "Trinta Facadas de Raiva", fala dos que "vinham
partidos / e mais partidos
ficaram / nos hospitais com grades / onde os arrecadaram". Sá
Flores, no livro
também de poemas "Canto à Revolução", interpreta o desejo dos
deficientes de
guerra - "uma vida igual / à de qualquer cidadão".
"Autópsia de um Mar em Ruínas", de João de Melo, é a epopeia
do fim do
Império: canta o esforço de homens de quinhentos anos, nos
limites da sua
resistência, que se negam a ser heróis numa guerra que não
reconhecem; é o drama
desses homens apegados à vida que se lhes escapa entre tiros e
granadas, sem
sentido nem lógica. Dos que tombam, há os mortos e os feridos,
e ponto fmal. Mas
muitos feridos não acabam no hospital; a sua epopeia e o seu
drama continuam,
num esforço sem glória para unir os pedaços da vida
estilhaçada, para reocuparem
na sociedade o lugar que já lá não está. Este último
capítulo da epopeia final está
em branco; ainda nenhum grande escritor ousou escrevê-lo.
Um outro livro sobre a guerra colonial, "Depois da Guerra",
de Luís Rosa,
deixa também no desconhecido o destino dos militares feridos.
Apenas entreabre
uma janela, quando um soldado diz para o alferes, no Hospital
de Bissau: "Meu
alferes, nunca mais sou homem". E o alferes reflecte: "Homem
na sua singeleza
de gente de aldeia de Trás-os-Montes, homem era homem válido,
de fazer
coisas. Homem de amar e lavrar a terra. Homem de dançar no
terreiro com as
moças. Homem rijo".
A acção do romance de Lídia Jorge, "A Costa dos Murmúrios",
passa-se em
Moçambique no tempo da guerra colonial. Dá a conhecer os
reflexos do
ambiente de guerra nos militares e suas famílias, mas os
feridos graves e
deficientes estão ausentes. Apenas um militar ostenta uma
cicatriz no peito, mas
mantém-se operacional. Esta passagem atesta a atitude
dominante sobre a
ocultação das mortes e dos deficientes de guerra: "Era uma
questão de justiça - se
se omitia a morte e o sofrimento dos soldados portugueses
atingidos em combate,
porque razão se havia de alarmar as pessoas mais sensíveis com
a notícia e morte
voluntária de uns negros ávidos de álcool".
José Cardoso Pires, autor contemporâneo, dá-nos essa personagem estática no seu
extremo e, por isso mesmo, com um sentido crítico. No conto "Os Caminheiros", um
cego pedinte é objecto de transação sem que ele, ao lado, tenha qualquer reação.
No romance "Delfim", do mesmo autor, surge uma personagem
sem uma mão que nunca é vista por dentro, apenas segundo a
focalização
contraditória dos patrões, um casal jovem. Trata-se de um
expediente narrativo
para dar a dimensão e o sentido da relação dum casal da
burguesia rural abastada.
De qualquer modo, o autor, na construção da narrativa,
aproveita-se dum tique
cultural (o deficiente sem vida interior) que desta forma
acaba por reproduzir.
Numa história muito conhecida, "Heidi", de Johanna Spyri, a
criança
deficiente, Clara, é plana, pouco mais que uma figura de
plástico ligada a uma
cadeira de rodas. Heidi, pelo contrário, é uma personagem
densa, com vida interior
rica, capaz de operar mudanças nela própria e nos outros,
inclusivamente em Clara,
cuja recuperação é obra sua.
A Deficiência como Signo Narrativo de Degradação
José Cardoso Pires, em "O Delfim", utiliza a deficiência
como elemento
narrativo produtivo: a falta da mão do criado é índice sempre
presente do falso
equilíbrio familiar dos patrões, da fragilidade real de um
casal aparentemente forte.
A falta da mão do criado é a falta desse equili brio. A
própria revelação do final trágico é feita ao engenheiro através da mão que falta ao
criado: bêbado, entra no
quarto "às arrecuas, procura tactear o corpo da mulher e
apalpa um braço que
acaba subitamente".
Este valor simbólico da deficiência surge noutras obras
portuguesas de
autores contemporâneos, dando expressão à vertente do
desespero na literatura
deste século. É o caso do romance "Vindima", de Miguel Torga,
onde o regresso
do hospital do vindimador de mão amputada coincide com a
degradação da vida
do patrão. Tal como o céu carregado indicia a trovoada que
destrói a vindima, o
regresso do deficiente indicia a perdição dos filhos do patrão
- o suicídio do filho
e a filha desonrada.
No romance "A Engrenagem", de Soeiro Pereira Gomes, a
amputação da pema
dum trabalhador é traço que acentua a caracterização da
personagem colectiva-
os operários de uma fábrica mal remunerados e depois
desempregados. O
quadro neorrealista atinge a sua expressão mais nítida neste
operário coxo,
desempregado, que se faz ladrão.
Vergílio Ferreira, cujos romances têm vindo progressivamente
a reflectir o
declínio da vida, recorre, nos últimos, à deficiência como
índice dessa degradaçáo.
O romance "Em Nome da Terra" tem como protagonista um homem da
terceira
idade, viúvo, que a filha deposita num lar. A incapacidade da
personagem, que é
o próprio narrador, para se prender ao mundo que deixa fora do
lar, é acentuada
pela sua deficiência física - uma perna amputada. A falta da
perna é a referência
suprema do narrador no presente degradado, em contraste com o
passado
radiante, que tem como referência inesquecível as pernas belas
da ginasta, da que
viria a ser sua mulher. No seu último romance, "Na tua Face",
Vergílio Ferreira faz
surgir a deficiência com um peso ainda mais esmagador. A
cegueira da mulher e
a ligação da filha a um biamputado das pernas esmagam o
presente real do
narrador, que contrasta com um passado utópico,
permanentemente visualizado
através da imagem fresca e bela, parada no tempo, da mulher do
seu amor
platónico. Mas no final, do reencontro real com essa mulher,
agora com a cara
deformada pela velhice, fica apenas o fllho dela, deficiente
mental. As duas linhas
narrativas convergem na degradação vital, simbolizada pelas
personagens
deficientes presentes.
O ambiente de decadência numa certa burguesia afectada nos
seus privilégios
pelo 25 de Abril é realçado por deficiências várias no romance
"Auto dos
Danados", de António Lobo Antunes: empregado "zarolho",
"chofer coxo", um
"cego a farejar com os óculos", "sorteio de cegos", uma
"anormal" (deficiente
mental), uma "poltrona de inválida", "um armário sem uma perna
coxeava" (...).
Todos estes elementos são simbólicos, com a sua produtividade
narrativa.
Vitorino Nemésio, de forma requintada, utilizou, no seu
romance "Mau
Tempo no Canal", o valor simbólico da deficiência, para dar
maior densidade à
intriga, sem fazer deficiente qualquer das personagens de
relevo. O amor
verdadeiro de Margarida e João Garcia é inviabilizado por
razões de diferenças
sociais das familias. No seu último encontro, o anel dela, em
forma de serpente a
que falta uma das esmeraldas que faziam de olhos, é motivo de
diálogo.
Margarida faz um casamento de conveniência, sem amor. O noivo
mandou
reparar o anel, colocando duas esmeraldas novas nos olhos da
serpente. Depois do
casamento, Margarida arrancou os olhos à serpente e deitou-a
ao mar. A serpente
cega pode simbolizar o amor verdadeiro (porque o amor é cego),
mas pode
também simbolizar a inviabilidade desse amor.
Da literatura de viagens deduziu-se a figura do "pirata de
perna de pau, olho
de vidro e cara de mau". É essa figura que está presente na
"Ilha do Tesouro", de
Robert Louis Stevenson. O tesouro escondido na ilha é
procurado pelos bons e
pelos maus. Os primeiros são respeitáveis e perfeitos cidadãos
com o apoio das
autoridades. Os segundos são bandidos, fora da lei, que têm o
seu estatuto mais
bem caracterizado através da deficiência - um é cego e outro
não tem uma perna.
A deficiência, conotadora dos maus, ajuda o leitor a tomar
posição.
Em Camilo Castelo Branco, na novela "O Cego de Landim", a
deficiência não
só conota o mal como é geradora deste. Um idealista
republicano, depois de cegar,
iluminado pela "lâmpada do ódio", transforzna-se num burlão,
cometendo todo o
tipo de tropelias.
Personagens Deficientes Dinâmicas
A literatura, quando utiliza a deficiência apenas como
índice de conotações
negativas, espelha e reproduz os tiques sociais da rejeição
dos deficientes. Nesta
medida, funciona como barreira da sua integração social. Mas
também pode
funcionar como demolidora das barreiras, quando, como fizeram
alguns
românticos, eleva as personagens deficientes à altura da
pessoa, com toda a sua
complexidade, revelando a sua dimensão interior.
Neste último caso, as obras são menos numerosas. De autores
portugueses
consagrados, para além de Alexandre Herculano, registámos
apenas, no limitado
levantamento feito, dois contemporâneos: José Saramago e
Miguel Torga.
José Saramago, no "Memorial do Convento", criou a figura
picaresca de
Baltasar Sete-Sóis, que perdeu uma mão em combate com os
espanhóis e protagonizou, a partir daí, as mais extraordinárias aventuras.
A falta da mão
condicionou a sua vida futura; melhor, foi a falta da mão que
o encaminhou para
esse percurso heróico e trágico. Personagem dinâmica, coexiste
com a sua
amputação, sem se alhear dela ou sem a alienar. Com ela vive e
sobrevive, sem
passar a ser especialmente diferente por causa dela. São os
outros que reparam nele
como ser diferente, pela falta da mão e pelas aventuras. São
os outros que o
conduzem ao desfecho trágico: acaba queimado pela inquisição,
que depura a
sociedade dessa anormalidade pelo fogo.
Miguel Torga, no conto "O Regresso", apresenta uma
personagem deficiente
com a densidade psicológica que não encontramos no romance
"Vindima".
Trata-se de um soldado vindo da guerra, de regresso à aldeia,
coberto de
cicatrizes, meio cego e sem uma mão. "À distância de um tiro
de espingarda" pára
e debate-se, dividido - o que partiu e o que regressa, o mesmo
para ele, mas não
para os outros: "Que poderia esperar agora? Que o aceitassem
de braços abertos,
ressuscitado num outro ser, estranho e desfigurado?". A
abordagem de um
miúdo, a perguntar-lhe quem é, agudiza ainda mais o conflito:
"No segredo da sua
intimidade podia somar as duas metades da alma dividida; mas
não havia
morada na terra para esse aborto de vida". Acaba por decidir:
"Sou um pobre (...)
- disse então humildemente, a evidenciar o coto do braço e a
órbita vazia".
Na literatura estrangeira referenciámos, além da "Nossa
Senhora de Paris", de
Victor Hugo, mais quatro obras deste tipo: "O Músico Cego", de
Vladimiro
Korolenko, "Moby Dick", de Nerman Melville, e dois livros de
contos de Mia
Couto ("Estórias Abensonhadas" e "Cada Homem é uma Raça"). Na
primeira
temos o percurso de um cego de nascença, onde a personagem é
vista por
dentro e por fora. Superprotegido em criança, consegue
encontrar o caminho da
sua afirmação apenas na sociedade dos iguais - um grupo de
cegos pedintes - aí
regressando sempre que necessita de restabelecer o seu
equilíbrio psíquico. É
revelado, sobretudo, o cego que os outros não vêem, a parte de
dentro.
A personagem central de "Moby Dick" é o capitão dum navio,
sem uma pema
(cortada pela baleia branca - Moby Dick - que dá o nome à
obra). A revolta e
desejo de vingança fazem do deficiente um herói, sulcando os
mares à procura da
baleia, que, temida e identificada com a força do mal, é
invencível. O capitão
sucumbe numa luta final com o animal, numa morte trágica.
Por fim, mas porventura o mais importante, os contos de Mia
Couto - "O Cego
Estrelinho", "Noventa e Três", "O Padre Surdo", "A Rosa
Caramela", "A
Princesa Russa" e "O Pescador Cego" , que representam uma fina
aragem
purificadora do espaço bafiento das personagens deficientes.
Em encontro
público realizado na sede da ADFA, em 17 de Março deste ano,
tivemos o
privilégio de ter presente o escritor moçambicano, de língua
portuguesa, Mia Couto, e também a oportunidade de o questionar directamente
sobre a concepção
das suas personagens deficientes - personagens centrais dos
contos, protagonistas
de estatura humana completa e vida inteira, talvez maior
ainda, por causa da
riqueza acrescentada da experiência como deficientes. Ouvimos,
da boca do autor,
que não são fruto de qualquer artifício literário; que são
assim, não sabe porquê.
Acrescentou, entretanto, que o conceito de deficiente, como o
de velho, não é, no
interior de Moçambique, exactamente igual ao da cultura
ocidental. A sua
literatura alimenta-se de um outro imaginário, bem diferente
do judaico-cristão.
Basta ver o Cego Estrelinho, maior por dentro do que por fora,
com o universo
mais pequeno que a sua imaginação, inventor de felicidade para
si e para a sua
companheira: "Tinha sido em tais paisagens que ela dormira
antes de ter
nascido". A densidade dramática da Rosa Caramelo é ímpar, uma
rapariga
"corcunda marreca", que, à noite, conuivia com as estátuas e
se despe no
cemitério, no funeral dum enfermeiro, enfrentando os
circunstantes: "E agora:
posso gostar? Ou deste também sou proibida?".
Conclusão
Em termos de análise literária, poderíamos dizer que
encontrámos dois tipos
de personagens deficientes, as planas e as modeladas. As
primeiras, mais
frequentes, são deduzidas dos preconceitos sociais e confirmam
os estereótipos
dominantes. São personagens que não valem por si, mas pela
deficiência que têm.
São, no universo ficcional, indiciadoras de situações
degradantes. Espelham, na
literatura, a imagem real dominante das pessoas deficientes.
Uma imagem
rígida, sem questionamento possível, esboçada nas primeiras
histórias da
humanidade e cimentada pelas sucessivas camadas culturais. As
personagens
modeladas, mais raras, são seres com vida própria no universo
da ficção,
imprevisíveis e surpreendentes, porque são humanas e evoluem
conforme as
circunstâncias. Não valem apenas pela deficiência, embora esta
tenha o seu peso
específico na interacção com as outras personagens. Têm
densidade psicológica,
uma vida interior rica e fogem às classificações rígidas e
estereotipadas.
A literatura, ao utilizar as personagens deficientes
emblemáticas, normalmente
ao serviço da funcionalidade narrativa, está a confirmar as
ideias preconcebidas
e dominantes sobre as pessoas deficientes. Constitui-se,
assim, numa barreira
cultural da integração social, porque perpetua, em quem lê
essas obras, os
estereótipos sociais, impedindo a abertura à avaliação de cada
caso individual. A
literatura contribui, deste modo, para que, por detrás da
parte, se esconda o todo, ou seja, se reduza a complexidade da pessoa a um único traço -
a deficiência de
que é portadora.
Quando, pelo contrário, concebe personagens com vida
interior, a literatura põe
em questão os preconceitos e põe em causa a barreira cultural
da integração em
que tradicionalmente se constituiu. Os leitores vêem deste
modo os estereótipos
sociais abalados, abrindo-se no seu espírito um espaço de
apreciação pessoal. Aí
surgirá necessariamente o todo em primeiro plano, ou seja, a
complexidade da
pessoa, de que a deficiência é apenas um traço. Ao permitir às
personagens com
deficiências o acesso ao estatuto de protagonista, a
literatura, que, de qualquer
modo, figura a realidade, está a reconhecer aos deficientes
reais o estatuto de
cidadãos inteiros.
Infelizmente, como constatado, a literatura é, neste
domínio, mais um meio de
confirmação da mentalidade dominante, do que uma via do seu
questionamento.
Como importante fonte alimentadora do imaginário colectivo, em
matéria de
deficientes funciona como travão da integração social. Uma
forte vaga literária
renovadora do nosso imaginário ainda não se vislumbra, mas
certamente porque
no plano do real também não há, quanto ao acesso dos
deficientes à cidadania
plena, alterações sensíveis. É que as mentalidades condicionam
a realidade, mas
também são afectadas pela alteração desta. Começar por uma
nova prática
social seria um bom ponto de partida. Viriam depois novas
atitudes. E a literatura,
nesse jogo dialéctico, não ficaria de fora.
O Estatuto da Personagem Deficiente no Cinema
Falar de cinema, inserido no contexto da deficiência e nas
suas formas de
tratamento, não poderia coincidir com melhor momento do que o
presente,
dado que se celebra este ano o Centenário da primeira
realização cinematográfica.
Procurar, ao longo destes 100 anos, o que foi feito no
domínio do cinema
relativamente às pessoas deficientes não é tarefa fácil. Com
este trabalho a
ADFA pretende dar um contributo novo e original para o
conhecimento sobre as
diferentes formas de abordagem da deficiência pela indústria
cinematográ ica, sem pretender abranger um repertório exaustivo. É uma base de
trabalho para a
constituição de um ficheiro de audiovisuais, organizado por
temas e tipos de
deficiências abordados e protagonizados por personagens
portadoras de deficiência.
De forma sistemática, foram feitas pesquisas junto do
Instituto Português de
Cinema, do Pelouro da Cultura da CML, em revistas
especializadas em Sétima
Arte, e dos adidos culturais das diversas embaixadas,
designadamente: americana,
inglesa e francesa, entre outras. O Instituto Português de
Arte Cinematográfica a
Audiovisual respondeu-nos, por escrito e laconicamente, que:
"Tanto quanto é do nosso conhecimento não há filmes
portugueses sobre a
temática da deficiência apoiados financeiramente por este
Instituto.
Desconhecemos que outras organizações estatais ou particulares
tenham abordado
a temática em questão, em termos fílmicos."
Das duas uma: ou o dito Instituto nem sequer considera
merecedora de
classificação a palavra "deficiente", ou tem os seus arquivos
muito mal
organizados. Como não queremos acreditar na segunda hipótese,
concluímos que
esta temática não merece a mais pequena atenção por parte
daquele organismo, o
que, aliás, não nos admira, uma vez que essa se tem vindo a
revelar a regra geral.
Ao iniciarmos esta investigação íamos conscientes de que
não seria fácil reunir
os meios humanos necessários a uma investigação com a
qualidade e objectividade
que o projecto exigia; no entanto, dada a influência que o
cinema tem, sobretudo
porque quase todos os fllmes são passados na televisão e
existem em versão vídeo,
o seu impacto na formação/deformação das mentalidades é muito
grande.
Um dos problemas que se colocou foi o de encontrar critérios
de selecção dos
filmes a serem analisados e definir prioridades, tendo em
conta que, na fase da
investigação, fomos confrontados com a inexistência de
qualquer base de dados
nacional que nos facilitasse o trabalho, conforme poderá ser
comprovado pelos
contactos oficiosos que foram efectuados, todos eles sem
respostas satisfatórias
que nos pudessem dar uma resposta conclusiva.
A opção acabou por recair no cinema de ficção americano, que
aborda
basicamente temas com maior impacto comercial e bem conhecidos
do grande
público, sendo o mais disponível nos circuitos comerciais. Não
desanimámos com
esta dificuldade; enchemo-nos de coragem e acreditámos nos
nossos objectivos,
apesar do trabalho correr o risco de só contemplar filmes
americanos. Não
hesitámos e, estrategicamente, aceitámos realizar um Ciclo de
Cinema, iniciativa
que o GEDA organizou e que contou com a participação da
Associação
Portuguesa de Surdos, do Instituto Jacob Rodrigues e do Lar
Militar.
Estas sessões tiveram por objectivo analisar a forma como o
cinema pode
influir negativa ou positivamente na criação de barreiras
culturais à integração das
pessoas deficientes, ouvindo, depois de visionados os filmes,
a opinião de
pessoas com deficiência semelhante à dos protagonistas.
Numa destas sessões - "Filhos de Um Deus Menor" -, em que
participaram
pessoas surdas, o debate do filme foi acompanhado por uma
intérprete de língua
gestual.
Temos, no entanto, a intenção de contemplar o cinema
europeu, e muito em
particular o cinema português, numa outra altura, com uma
iniciativa semelhante,
apesar de ele ser extremamente deficitário na temática das
pessoas deficientes. Por
outro lado, a adopção de outros critérios ou outras eventuais
soluções, colocava
alguns entraves, não só por não ser possível encontrar no
mercado vídeos,
como também pelo desfasamento temporal das produções
cinematográficas. As
experiências vivenciadas pelo conjunto dos elementos da equipa
de trabalho e de
outros associados da ADFA pesou também no critério de escolha.
Houve grande diversidade de filmes sugeridos: "O Regresso
dos Heróis", de
H. Ashby; "O Homem Elefante", de D. Lynch; "A Criança
Selvagem", de
Truffaut; "Deram-lhe Uma Anna", de D. Trumbo; "Nascido a 4 de
Julho", de
Oliver Stone; "Perfume de Mulher", de Martin Brest; "Filhos de
Um Deus
Menor", de Randa Haynes; "É a Minha Vida Depois de Tudo", de
John Badham;
"O Trabalhador Miraculoso", de Alan Penn; "Encontro de
Irmãos", "Asas da
Liberdade", "A Máscara", "O Meu Pé Esquerdo", "Despertares",
"Mentes Que
Brilham", "O Rei Pescador", "Voando Sobre Um.Ninho de Cucos",
"Nas Asas da
Imaginação", "O Regresso de Henry", "Eduardo Mãos de Tesoura",
"Forest
Gump", "As Horas de Maria", "Vale Abraão", "A Caixa" - estes
dois últimos de
Manoel de Oliveira - etc. Todos eles foram subdivididos por
tipo de deficiências.
Os diferentes filmes seleccionados para o Ciclo abordam a
deficiência
motora (paraplégicos e amputados dos membros), a deficiência
visual e a
auditiva, por serem, sobretudo, estas as áreas sobre as quais
incide a nossa
investigação.
Por sua vez, atendendo à especificidade do universo que
encerram, foram
objecto da nossa análise, numa primeira fase, filmes que
abordavam temas
sobre a pessoa deflciente militar, os quais nos mereceram
tratamento privilegiado.
Neste sentido, foram visionados e debatidos os seguintes
filmes:
-
"Regresso dos Heróis", realizado por Hall Ashby, com
interpretação de Jonh
Voight e Jane Fonda, ambos os actores vencedores de óscares
com as respectivas
representações;
-
"Nascido a 4 de Julho", realizado por Oliver Stone, com
interpretações de
Tom Cruise e William Dafoe;
3."Perfume de Mulher", realizado por Martin Brest, com
interpretação de A1
Pacino;
4."Filhos de um Deus menor", realizado por Randa Haynes e
interpretado por
William Hurt e Marleen Maltin, tendo esta conquistado, com
este trabalho, o óscar
para melhor actriz em 1987.
O filme "O Regresso dos Heróis" resume-se numa mensagem
afirmativa e
positiva do protagonista, encarnando a imagem do anti-herói,
portador de uma
grande deficiência (paraplegia) resultante do acidente em
combate na guerra do
Vietname; no entanto, deve-se salientar que todo o enredo se
centra numa
experiência pós-traumática do acidente e na sociedade
americana. O aspecto mais
relevante, contido na mensagem deste filme, está no facto da
grande deficiência
e do "handicap" não serem, de modo algum, barreiras para uma
notável
demonstração de utilidade social.
Que ilações a retirar? Sem dúvida, que a integração social e
a consequente
reabilitação das pessoas deficientes passa necessariamente
pela cultura e formação
das mesmas (e, portanto, não se deve esgotar na realização dos
bens materiais ou
atribuição de reformas chorudas, subsídios de compensação e
elevados salários),
bem como por óptimas estruturas sem barreiras arquitectónicas,
facilitadoras de
boa acessibilidade e mobilidade.
Relativamente aos aspectos relevantes abordados na sequência
do debate sobre
este filme, realça-se a contribuição de deficientes militares
internados no Lar
Militar no enriquecimento das intervenções, tendo-se notado
alguma insatisfação
dos mesmos relativamente à forma disvirtual como a sexualidade
das pessoas com
paraplegia é abordada neste filme, continuando a ser um tema
tabu na sociedade,
quer seja portuguesa ou não. Vai-se convidar, no futuro
próximo, especialistas na
matéria, de forma a satisfazer os anseios e necessidades que
ficaram patentes nas
reacções dos participantes.
Mais reacções negativas foram surgindo, nomeadamente no que
se refere ao
tema central do filme. Ou seja, o deficiente deve ser encarado
de forma positiva
mas sem se fazer dele um super-herói, porque se o cinema tem
uma função
pedagógica, por um ládo, este filme aparece, por outro, como
um deslumbramento,
em que uma pessoa cheia de vida, amor, carinho e
sensibilidade, vai da revolta à
paixão, o que, para o comum dos mortais, é uma revelação e,
sob ponto vista
sexual, é até anti-pedagógico.
As Guerras São Todas Iguais
Não obstante, nem tudo foi negativo. Houve intervenções de
manifesta
importância, como aquela que nos fez reflectir sobre as
guerras: As guerras são
todas iguais. Quem é que peipetua a memória das guerras? São
as imagens das
pessoas deficientes . Por outro lado, este filme é uma
completa reviravolta na
cinematografia. O probLema é abordado de uma forma subtil e
dicotómica entre
nós e os outros, na medida em que, por vezes, a forma como os
outros nos vêem,
pode transformar-nos nisso mesmo.
O filme "Nascido a 4 de Julho" vem na esteira do
anteriomiente referido, dado
que foca o mesmo palco de guerra, ou seja, o Vietname.
Contudo, o mito da trilogia "Deus, Pátria e Família", sempre
presente, é de
certo modo posto em causa nas dúvidas que o protagonista tem;
preparado para ser
herói numa sociedade competitiva e produtora de potenciais
vencedores, ao
regressar aos EUA, numa cadeira de rodas, por ter sido ferido
em combate, vai
encontrar dificuldades de inserção social de toda a ordem:
quer políticas e
religiosas, quer sociais e familiares, e, após todo um
trajecto de crescimento pessoal
e tomada de consciência, torna-se num dos principais agentes
da desmistificação
do sistema americano através da luta pelos direitos dos
deficientes de guerra
americanos.
Duas décadas separam estes dois filmes, e é relevante como a
forma de
pensamento mudou neste período.
"O Regresso dos Heróis", influenciado pelo movimento
humanista dos finais
de 60, aborda o problema da deficiência de uma forma mais
humanitária,
realçando a utilidade social das pessoas deficientes, enquanto
"Nascido a 4 de
Julho", realizado na era dos "yuppies", pouca ou nenhuma
importância dá aos
aspectos sociais, porque numa sociedade competitiva só dos
vencedores e dos bem
sucedidos é que reza a história.
"Perfume de Mulher", conta a história de um veterano de
carreira militar - um
coronel reformado - que ficou cego no decorrer de exercícios
de instrução.
Encontra-se desiludido com a vida e pretende suicidar-se. Para
o efeito elabora um
plano que consiste em instalar-se num dos melhores hotéis do
mundo, durante um
fim de semana, ter relações sexuais com uma "mulher de
primeira" e conduzir um
Ferrari, após o que daria um tiro na cabeça. Para executar
este plano "aproveita"
a companhia de um estudante universitário, contratado pela
familia para o
acompanhar durante a sua ausência. O estudante, por sua vez,
encontra-se numa
situação difícil, onde se joga o seu futuro: foi testemunha de
uma "partida" feita
por colegas seus ao reitor da universidade; se não os
denunciasse, seria expulso.
Com a relação das personagens vai-se criando uma simbiose
entre os
problemas de ambos: o estudante evita que o cego se suicide,
estimulando as suas
capacidades restantes; este, em contrapartida, num discurso
sublime, efectuado na
universidade, realçou os altos valores morais do jovem, que se
negava a ser delator.
Apesar do filme ser um drama romântico, permite-nos apreender
que alguém
consegue ultrapassar todos os obstáculos sociais que lhe são
colocados: a
marginalização por parte da família, que o rejeita de uma
forma envergonhada,
subtil e bem educada, onde, por vezes, o verniz estala com as
atitudes
impertinentes e agressivas do marginal que as rejeita (assim,
ele já pode ser
acusado de ser uma pessoa que não corresponde às normas
estabelecidas e, desta
fonna, é também deficiente nas suas relações sociais). Neste
jogo de causa/efeito,
o filme vai em crescendo, mostrando aos olhos do espectador
atento esta forma
subtil de rejeição - como diria Foucaut, "assume a forma de
partilha rigorosa entre
a exclusão social e uma reintegração espiritual".
O Mundo do Silêncio em Debate
"Filhos de um Deus Menor", embora bem intencionado, não
transmite a
realidade do mundo dos surdos; é fantasioso e, embora seja
melhor do que nada,
a verdade é que, enquanto não forem as pessoas surdas a
realizar este tipo de filme,
o resultado será sempre o mesmo.
Uma outra conclusão foi a de que os filmes com personagens
deficientes estão
a ter grande aceitação pelo público. Será que existe alguma
razão especial para as
pessoas ditas normais gostarem de ver os "aleijados" como
protagonistas?
Talvez, e enquanto assim for cairá dinheiro no bolso dos
produtores. Mas
contribuem eles, de facto, para inverter a imagem negativa que
se tem das
pessoas deficientes? É algo que não é linear.
Neste filme, o papel do professor é o da pessoa que está
entre os dois
mundos: o das pessoas ouvintes e, por profissão, no das
pessoas surdas. Debate-
se com o problema de a sua companheira ter o direito de não
falar, o que ele
racionalmente aceita, mas na prática não suporta, acabando por
se criar um
conflito.
No debate sobre o filme, um jovem participante afirmou que
os surdos só se
deveriam relacionar com outros surdos, pois que sem um
intérprete é impossível
a interacção. Colocou-se a questão da universalização da
linguagem gestual e o
facto de ela dever ser ensinada nas escolas a todos os alunos. Um outro jovem afirmou que quando fala com as pessoas, elas
pensam que ele
é uma pessoa estúpida, que é um parvo, acabando por ficar
isolado dos grupos.
Quanto ao filme foi dito que, se bem que ele já tenha
aparecido em 1988, as
mentalidades continuam as mesmas no que concerne às pessoas
surdas.
"Filhos de um Deus Menor" foi considerado um pouco
fantasioso. É a
imagem daquilo que as pessoas ouvintes desejam que os surdos
sejam e façam,
mas não uma análise correcta do "mundo do silêncio", porque
não foi feito por
pessoas surdas, apesar de a actriz principal o ser.
Existe uma cena no filme onde, num diálogo entre a personagem
surda e a sua
mãe, se fica a saber que o pai tinha saído de casa por não
suportar a filha; a mãe,
por sua vez, considerou-a responsável por ter fcado sem marido
e odiou-a a partir
daí. Conclui-se que a educação tem de começar pela própria
família, e se os pais
não disponibilizam algum do seu tempo para tirarem um curso de
língua gestual,
para melhor dialogarem com os seus filhos, o fosso aumenta,
num mundo onde o
próprio diálogo está cada vez mais ausente.
Uma mãe de uma surda, que estava presente, afirmou que
também muitos
técnicos não estavam bem educados/formados, pois ela própria
foi aconselhada por
uma professora a não deixar a filha aprender a língua gestual,
porque dessa forma
nunca aprenderia a falar. Um técnica de língua gestual
considerou que esta era uma
posição errada.
Por acréscimo, e por sentirmos que o Ciclo não contemplou
nenhuma
realização portuguesa, vamos por obrigação realçar o filme "A
Caixa", realizado
por Manoel de Oliveira, com interpretação de Luís Miguel
Cintra.
Por tratar-se de uma realização recente (1994) e não estar
disponível no circuito
comercial dos vídeos, não nos foi ainda possível incluí-la
neste ciclo; no entanto,
tendo sido visionado nas salas de cinema, permite-nos fazer a
sua abordagem.
Este filme retrata, de forma irónica e através de uma crítica
mordaz, uma época
importante de um passado, tão presente, em que a deficiência
era sinónimo de
incapacidade, e a única forma de sobrevivência que os
deficientes tinham era a
mendicidade legalizada.
No caso vertente deparamo-nos com um deficiente visual em
torno do qual
cirandava uma mão cheia de parasitas ociosos, que sobrevivia à
custa da sua
mendicidade.
Na época era oficiosamente atribuída aos invisuais uma
caixa, com cadeado
e tudo, para mendigar. Tudo era rigorosamente controlado pelo
sistema
estabelecido. Esta violência social, de carácter completamente
desumano, é
subtilmente explorada pelo realizador através de um humor
inteligente levado ao
pormenor; por exemplo, as caixas dos cegos traziam todas a
inscrição "ABLE"-
que, paradoxalmente, na língua inglesa significa "CAPAZ".
CONCLUSÃO
As pessoas deficientes são, de uma maneira geral, utilizadas
para potenciar a
expressividade narrativa e a imagem da decadência na sociedade
ocidental, dos
usos e costumes; enfim, da moral e da ética que se pretende
criticar no enredo do
filme. Aqui, os deficientes são muitas vezes apresentados como
alcoolizados,
agressivos, tarados sexuais.
Felizmente, nalgumas séries televisivas já começam a
aparecer personagens
deficientes apresentadas como pessoas normais, exercendo,
dessa forma, um efeito
pedagógico positivo. São, no entanto, uma excepção à regra.
"O Regresso dos Heróis" foi dos filmes que maior impacto
teve na opinião
pública.
Foi sentida a necessidade de serem desencadeados esforços
para a realização
de um filme português que retratasse a experiência face à
Guerra Colonial e suas
consequências.
Foi também proposto um desafio aos produtores e cineastas
portugueses no
sentido de produzirem um filme português sobre este tema, com o
argumento a ser
promovido através da ADFA. Para o efeito irão ser
desencadeados todos os
esforços ao nosso alcance para satisfazer a vontade dos
associados da ADFA, em
particular, e de todos os deficientes em geral, para a
promoção e realização de um
filme sobre as consequências da Guerra Colonial nos militares
deficientados nas
três frentes de guerra.
Os novos meios de comunicação - que se estão a expandir a
uma velocidade
alucinante - estão a operar transformações sociais que
ninguém, de bom-senso,
poderá sequer imaginar. Mas esta mesma velocidade poderá
permitir que as
atitudes perante as pessoas deficientes possa mudar mais
rapidamente em 10 ou
20 anos do que "outrora" num século. Por outro lado, se não
forem os próprios
deficientes e as suas organizações a tomarem em mãos esta
tarefa, ninguém o fará
por eles. Neste negócio, onde correm "milhões", todos os meios
são considerados
justificáveis para atingir elevados níveis de audiência, mesmo
que para tal tenha
de se fazer correr sangue, esfarrapar caras, mutilar corpos,
criar mutantes
horripilantes com esgares nauseabundos, vozes horrendas e
gritos lancinantes que
percorrem a sala com os mais sofisticados meios de
visualização tridimendisional,
com som vindo de trás, da frente, de cima e dos lados. Som que
penetre a
assistência para lá do simples choque epidérmico, que
substitua os orgasmos já
impossíveis, para penetrar bem fundo no inconsciente dos
adultos, e muito
mais no das crianças, que com 12 anos vêm filmes para maiores
de 16 - com o
beneplácito sorriso dos pais que, no fim do filme, ternamente
afagando a cabeça
dos meninos, lhes vão dizendo como o herói, belo e másculo (de
preferência louro
e de olhos azuis), como o Batman, venceu as forças horrendas
do mal.
O desconhecimento das técnicas de "marketing" e dos
progressos científicos,
é um das mais perigosas armadilhas que se colocam, na
actualidade, à humanidade;
aquilo a que alguns já chamam de "analfabetismo científico". A
este respeito, Carl
Sagan, na sua recente obra "O Mundo Assombrado pelos Diabos",
considera que
há um processo de estupidificação galopante, em que o não
saber nada é
considerado virtude. Este eminente cientista considera que as
crianças nascem
inteligentes mas são durante toda a vida submetidas a um
processo constante de
estupidificação. Se isto é verdade ou mentira não o sabemos,
mas preocupa-nos!
Não iremos aqui cair nas teorias que assentam nas velhas e
enferrujadas premissas
de que o homem nasce bom, a teoria do "Bom Sevalgem", ou mau,
com dizia
Voltaire. Se assim pensarmos o nosso pensamento ficará sempre
"coxo", precisará
sempre destas muletas ou de outras dos grandes "Papas" da
ciência.
A complexidade da natureza humana é hoje estudada, fazendo
recurso às
quânticas, com uma profundidade até há poucos anos considerada
impossível e que
diariamente nos espanta. Psiquiatras, psicólogos, terapeutas
do comportamento
humano, químicos, físicos, astrónomos, matemáticos, etc.,
etc., trabalham para as
grandes produtoras de filmes para atingirem os seus
objectivos. Não é, no
entanto, com pessimismo que encaramos todas estas evoluções;
preocupa-nos a
sua correcta ou incorrecta aplicação, nesta época onde já é
perigoso falar-se em
"politicamente correcto", pois esses conceitos são
manipulados, destorcidos, e o
que ontem era um conceito eticamente justo, será amanhã um
termo gasto.
É urgente, é imperioso, que os deficientes, a quem as novas
tecnologias
proporcionam uma cada vez maior igualdade em termos de
capacidade de
produzir, saibam, eles próprios, caminhar no árduo caminho de
banir essa
mentira, milenariamente alicerçada no mais profundo das
mentalidades dos
seres humanos, que é a de que eles são seres inferiores e
maus. Se assim for, se os
deficientes souberem utilizar o cinema a seu favor, ele será
sem dúvida um
instrumento insubstituível, e do qual não poderão prescindir,
para a sua atirmação
como cidadãos de corpo inteiro.
Os deficientes sempre ocuparam lugar especial no imaginário
colectivo.
Partimos do princípio de que essa arrumação no nosso
imaginário tem uma relação
directa com aquilo que costumamos designar marginalização, e
agora estamos
também a aprender a designar exclusão social. As designações
acabam por
reproduzir fielmente os conceitos, e neste caso também: o
neologismo - exclusão
social -, pretensamente eufemístico, procurando chocar menos,
trai-nos, pois, mais
do que colocar à margem, exclui, ou seja, afasta totalmente.
As palavras obrigam-nos sempre a revelar o que queremos esconder.
Admitimos que a exclusão se faz primeiro na mente dos
outros. Isto em
oposição ao psicologismo puro, que aponta como causa da
marginalização o
trauma da deficiência, independentemente dos comportamentos
dos outros.
Estamos actualmente a fazer uma reflexão na ADFA sobre as
causas da exclusão
e orientamos a nossa procura numa perspectiva social,
acreditando que elas se
situam essencialmente nas atitudes estereotipadas, inscritas
no património
cultural não-explicitado e não-aprendido, mas eficientemente
transmitido.
Consideramos os comportamentos marginalizadores das pessoas
com
deficiências acentuadas a parte visível daquilo que designamos
"barreiras
culturais". Os comportamentos são de facto visíveis, mas
aquilo que os determina
não o é. Temos dificuldade em entender que uma pessoa
destituída de alguma parte
física ou sensorial desencadeie sentimentos tão estranhos nos
outros como
piedade ou repulsa, mas isso de facto acontece. É à procura do
porquê destas
atitudes que nós andamos.
Achamos que as causas dos comportamentos marginalizadores
dos deficientes
são muito fortes e de difícil erradicação. Dito doutra forma,
as barreiras culturais
da integração social são muito sólidas e de difícil
destruição. São tão fortes quanto
irracionais; serão parte dum edifício cultural com alicerces
míticos e que resistiu
às investidas do racionalismo.
O papel da Imprensa na determinação
da imagem dos deficientes
A imagem que as pessoas têm dos deficientes parece ser mais
inata do que
adquirida. Não é, contudo, imutável; tem vindo, ao longo dos
tempos, a sofrer
alterações nos seus contornos, se bem que, no essencial,
talvez pouco tenha
mudado. Existem meios que determinam a mudança ou preservação
dessa
imagem. A imprensa é um deles. Ela pode contribuir para
melhorá-la, mas
também pode ser o meio privilegiado de confirmação e
reprodução das imagens
herdadas.
Procurámos, numa análise da imprensa em alguns momentos
deste século,
encontrar dados que nos permitam determinar que tipo de imagem
tem sido
veiculada pelos jomais. Tomámos como objecto de análise o
"Diário de Notícias",
um jornal que, desde a sua criação, se manteve sempre como um
dos periódicos
de maior expansão. Tomámos como referência as duas últimas
guerras em que
Portugal esteve envolvido, e que necessariamente produziram
deficientes, - a
Grande Guerra (de 1914 a 1918) e a guerra colonial (de 1961 a
1974). Fomos ler
todas as edições deste jornal dos anos de 1918 e 1919,
imediatamente após a
guerra, contando encontrar aí referências a deficientes
militares. Na
impossibilidade de analisar todas as edições até à
actualidade, fizemos uma leitura
por amostragem: os anos de 1928, 1938,1948, 1958,1968 (de 10
em 10 anos,
portanto), 1974 e 1975 (imediatamente após o 25 de Abril) e
1993 e 1994 (o
momento actual).
Em 11 de Agosto de 1993, o "Diário de Notícias" reproduzia o
seu editorial de
cem anos antes - 1893. Salientamos duas curtas passagens: "Na
civilização
espartana o surdo-mudo teria uma existência condenada como
inútil, como
incapaz de atingir a perfectibilidade intelectual (...) mas
quantos milhares de anos
não decorreram sem que o homem atentasse na desgraça destes
infelizes e sem que
procurasse de algum modo remediá-la". Inútil, incapaz,
desgraça, infeliz são traços
carregados de uma imagem que, embora de mutabilidade
reconhecida, é
reproduzida pelo jornal no final do século XIX.
No século XX, nas edições analisadas do mesmojomal, nunca
deparámos com
um editorial a debruçar-se sobre esta questão. A omissão é por
si ilustrativa de um
traço significativo, porventura o que, durante décadas, melhor
definiu a imagem
dos deficientes. Não Ihes fazer referência é a confirmação de
uma realidade
humana e social excluída do crepitar quotidiano da vida. O
silêncio deixa em
liberdade absoluta os nossos fantasmas ancestrais para
reeditarem, na interacção
social, práticas rituais de rejeição.
A Imagem do Mutilado da Grande Guerra
Em 1918 Portugal saía de uma guerra que produziu deficientes - os chamados
mutilados de guerra. Vamos ver as referências que lhes são
feitas no "Diário de
Notícias", no último ano de guerra, imediatamente a seguir e
posteriormente, já
que essas pessoas continuaram a existir e, a partir de dada
altura, num abandono
absoluto, como viemos a constatar em 1974 com a criação da
ADFA.
Durante todo o ano de 1918 existem apenas três curtas
notícias sobre
mutilados de guerra. Uma, em 19 de Junho, sobre nova junta,
para os julgar aptos
para o serviço do país. A segunda, de 13 de Setembro, revela a
decisão de o
próprio "Diário de Notícias" oferecer colocação a dois
mutilados de guerra. A
última, de 15 de Setembro, realça o esforço do Dr. Aurélio
Ferreira para manter
um instituto em que nada falte na "reeducação dos soldados que
tiveram a
infelicidade de ficarem estropiados ou mutilados".
Em 1919 foram encontradas também três notícias. A primeira,
de 29 de Julho,
com o título "colocação de mutilados", dá a conhecer que, por
ordem do ministro
da guerra, "foi feito convite aos mutilados de guerra para
desempenharem o cargo
de porteiros, fiéis de armazém e ordenanças no parque de
material aeronáutico".
As duas outras notícias, de 26 de Outubro e 27 de Novembro,
revelam a
nomeação de uma comissão para "estudar o assunto que trata das
pensões a
conceder aos mutilados de guerra".
Em 1928 encontramos também três referências aos mutilados de
guerra. Em
24 de Agosto é transcrito o código dos inválidos de guerra
aprovado pelo
governo, onde são estabelecidas as suas pensões. Em 4 de
Novembro, é noticiada
uma recepção solene aos "grandes mutilados de guerra" na
Escola Militar. Em 6
de Novembro, surge a notícia da deslocação de mutilados de
guerra ao "Diário de
Notícias" para agradecerem a "propaganda" que este jornal tem
feito em prol da
obra dos padrões da Grande Guerra e das cerimónias do 10"
aniversário do
armistício.
Nõs anos de 1938, 1948, 1958 e 1968 não surge qualquer
referência aos
deficientes da Grande Guerra. No entanto, eles continuavam a
existir e numa
situação de acentuada e progressiva marginalização.
Durante a vida dos designados mutilados de guerra
distinguimos, assim, através
desta análise do "Diário de Notícias", dois períodos
distintos: um, até 1928, em
que estes defcientes têm existência na opinião pública; outro,
a partir daí, em que
desaparecem. Note-se que a fronteira entre esses dois períodos
coincide
sensivelmente com o fim da Primeira República e o início do
Estado Novo.
No primeiro período, o jornal contribui, através dos poucos
textos publicados,
para a caracterização da imagem dos mutilados de guerra, com
os seguinte traços:
pessoas com direito a uma reparação moral e material, por
parte do Estado, pelos
danos sofridos ao serviço da Nação, reeducáveis, com acesso ao
trabalho,
embora em profissões menores (porteiros, fiéis de armazém,
ordenanças), e
com uma capacidade mínima de acção colectiva. Uma imagem
globalmente
positiva, isto é, de pessoas com uma relativa garantia de
reinserção social.
No segundo período, através da omissão, o "Diário de
Notícias" terá
contribuído não só para o apagamento desta imagem
tendencialmente positiva,
como para o ressurgimento duma outra sempre latente, do
deficiente inactivo,
carenciado e infeliz. Imagem que correspondia à realidade, já
que o Estado Novo,
em 1938, viria a revogar praticamente todos os direitos do
código dos inválidos,
deixando pouco mais que o direito ao funeral gratuito, tal era
a consciência que o
legislador tinha de lançar a partir daí estas pessoas na
pobreza absoluta e na
indigência.
A imagem dos deficientes não militares
Durante estes 50 anos (de 1918 a 1968), a imagem dos
deficientes não
militares não é exactamente coincidente com a dos mutilados de
guerra. Ela é
caracterizada por uma omissão inicial e depois pela definição
progressiva de alguns
contornos. Assim, nos anos de 1918 e 1919 não surge qualquer
referência. Em
1928 surge uma: Em 1938 surgem duas notícias, sobre a
realização do I
Congresso Nacional de Desastres no Trabalho, onde são
analisados aspectos
relativos à recuperação de "inferiorizados". Em 1948 há apenas
uma notícia, sobre
a realização de um "curso de reabilitação e adaptação de
inválidos em Inglaterra".
Em 1958 surgem quatro pequenas notícias: sobre um "doente
mental, onze
anos enclausurado, em condições desumanas" pela própria
família; sobre um
esclarecimento da Procuradoria Geral da República acerca de
doentes mentais
perigosos; sobre a concepção, nos Estados Unidos, de "uma
máquina portátil que
permitirá aos cegos ler livros impressos em caracteres
braille"; sobre a atribuição
de dez mil contos, por parte de um particular, a uma fundação
para "socorrer e
recuperar deficientes motores". Em 1968 ocorrem treze
referências a deficientes
não especificamente militares, também sob a forma de pequenas
notícias.
Realçamos: uma semana dedicada à "criança diminuída mental",
promovida pela
Associação dos Pais das Crianças Diminuídas Mentais;
"Associação dos Cegos
do Norte de Portugal" - continua a aumentar o número de
sócios; "próteses acima
dojoelho do tipo de contacto total" feitas no Alcoitão; "com
reabilitação não há
deficientes" - lema de campanha do serviço de reabilitação
profissional; "com o
patrocínio do "Diário de Notícias", o Lyon's chama a atenção
para um problema
nacional (crianças deficientes motoras)" numa campanha de
angariação de
fundos; "campanha nacional de reabilitação de deficientes
físicos"; "três
paraplégicos representam, sobre cadeira de rodas, "A Ceia dos
Cardeais"; "os
diminuídos físicos são réus inocentes do julgamento da
sociedade" - afirma o
director do Centro de Reabilitação Profissional.
É notório o crescendo de referências em 1968, ano que
politicamente marca
a passagem do período duro do Estado Novo para a primavera
marcelista.
Certifica-se um grande salto quantitativo e qualitativo no
domínio das notícias sobre
reabilitação. Daqui resulta a acentuação dum traço da imagem
dos deficientes:
pessoas menos incapazes com mais reabilitação. A iniciativa
destas actividades
parte mais da comunidade do que das estruturas do Estado.
Surge mesmo uma
associação de pais de crianças deficientes a desenvolver
acções públicas. A
sociedade parece mobilizar-se no sentido de corrigir a imagem
tradicional do
deficiente marginalizado, procurando potenciar as suas
capacidades restantes e
encará-lo como mais válido. O "Diário de Notícias", ao
divulgar as novas
iniciativas do domínio da reabilitação, está a contribuir para
a alteração da
imagem dos deficientes, porque difunde junto da opinião
pública uma nova forma
de os encarar, obrigando as pessoas a questionar os conceitos
estabelecidos. Desse
confronto resultará uma imagem corrigida.
É de notar, entretanto, que a mensagem chega aos leitores
sob a forma de breve
notícia. Até este momento, nestes 50 anos, o trabalho
jornalístico de grande fôlego,
como a reportagem ou artigo de opinião, nunca surgiu. A
pequena notícia pode
beliscar as barreiras culturais da integração, mas os seus
alicerces não são
abalados. Acresce ainda que as iniciativas tomadas pertencem a
entidades
públicas ou privadas, podendo o traço negativo do
proteccionismo anular os
positivos já referidos e a imagem do deficiente resultar
inalterada: Efectivamente,
nestes 50 anos, a imagem dos deficientes, para o mal e para o
bem, é sempre
recortada pelos outros. Eles são sempre objectos passivos de
todas as
caracterizações. Até aqui ainda não vimos a imprensa veicular
a forma como eles
próprios pretendem ser encarados.
A imagem dos deficientes da Guerra Colonial
No período que acabámos de analisar situa-se já a segunda
guerra em que
Portugal esteve envolvido neste século, e tomada aqui como
referência - a
guerra colonial, de 1961 a 1974. Seria de esperar que no ano
de 1968 o "Diário
de Notícias" fizesse frequentes e aprofundadas referências à
situação dos
milhares de deficientes militares que directa ou
indirectamente a guerra tinha já
produzido.
Verificámos que, após a Grande Guerra, foi dada pública
forma mínima às
diligências sobre a reparação humana e material dos mutilados
de guerra. E
verificámos como depois a sua imagem se perdeu nos
subterrâneos da consciência
colectiva. Verifiquemos agora como é que a imagem pública dos
Deficientes das
Forças Armadas emerge no "Diário de Notícias" neste ano de
1968, o sétimo da
Guerra Colonial. Neste ano em que o Hospital Militar e seu
Anexo, de tão cheios
transbordavam, em regime ambulatório, os deficientes para o
Depósito Geral de
Adidos, o Depósito de Indisponíveis e a casa de cada um.
Vejamos então: das 14
pequenas notícias sobre deficientes nas suas páginas de 12
meses, há uma única
sobre deficientes militares, disfarçados de doentes e feridos,
em iniciativa
caritativa. Assim, dia 12 de Fevereiro, num cantinho, com este
título: "Militares
doentes e feridos em combate almoçaram hoje em Benavente a
convite de
Hermínia Silva". E mais nada. Descansava o País, porque
publicamente os
deficientes militares não existiam. A estupefacção vinha
quando as pessoas se
deparavam connosco - "coitadinho, tão novinho e assim!" -,
arrumando-nos logo
na prateleira disponível do seu imaginário.
Passemos adiante, porque aqui estão por ler muitos romances
não escritos,
estão por ver muitos filmes não realizados, e o 25 de Abril
vem já aí. A arte em
Portugal não quis profanar o templo dos nossos cultos míticos
e continua a venerar
silenciosamente as sagradas imagens dos deficientes
segregados.
Numa certa perspectiva militar, a guerra não produz
deficientes; na guerra há
baixas humanas e há material abatido à carga. O destino dos
instrumentos de
guerra obsoletos, em termos militares, deixa de contar. Na
batalha ou depois dela
não há deficientes, talvez por força de uma lei muito
primitiva. O que há é mortos
e vencidos, por um lado, e vivos e vencedores, por outro. Na
grande batalha que
confirma a independência de Portugal, em 1385 (batalha de
Aljubarrota),
magistral e pormenorizadamente descrita por Fernão Lopes, no
encarniçado dos
combates, na fuga dos vencidos, no saque dos vencedores, na
contemplação do
campo juncado de cadáveres, não encontramos o quadro da
evacuação e assistência dos feridos, da situação dos deficientes. Estes
não existem, não têm
espaço previsto nas leis da guerra.
Numa guerra muito mais antiga - a Guerra de Tróia, a lei dos
deuses
determinava que o guerreiro só tinha dois estados possíveis -
vivo e incólume, ou
morto. Na "Ilíada", a epopeia grega que descreve esta guerra,
Eneias, o herói
troiano, sofre um ferimento que o tornaria deficiente. É
socorrido pela própria mãe,
a deusa Afrodite, e depois miraculosamente liberto da
deficiência por Latona e
Artemis. Regressa incólume ao combate. Naquela sociedade de
heróis e deuses,
deficiente é que o divino Eneias não podia ficar.
Na nossa última guerra do império, no final de décadas de
obscurantismo,
adoptámos com toda a naturalidade as leis da nossa tradição
mais longínqua e
demos guarida aos ecos profundos dos tempos míticos. Só que
não tínhamos lá
os deuses para nos salvarem, e a prova é que ainda estamos cá
muitos com as
nossas deficiências bem visíveis.
As mudanças que o 25 de Abril proporcionou
O obscurantismo cultivado com mestria pelo Estado Novo
assentava no
arreigamento das pessoas às crenças mais retrógradas, fazendo
de questões
humanas e sociais como a dos deficientes um tabu.
Pressupor-se-ia então que a
liberdade reconquistada em 25 de Abril de 1974 seria o toque
mágico para a
destruição dos tabus, para o arejamento das mentalidades, para
o predomínio da
razão sobre os preconceitos.
Analisámos com toda a atenção as edições do "Diário de
Notícias" dos 12
meses subsequentes ao 25 de Abril (de Maio de 1974 a Abril de
1975).
Procurámos determinar os efeitos da liberdade na imagem dos
deficientes agora
difundida pela imprensa.
Verificámos, em primeiro lugar, que o número de referências
a deficientes
aumentou consideravelmente. De 14 em 1968, passamos para 79
nestes 12
meses de 1974-75 - quase seis vezes mais. Em quantidade o
salto foi, pois, muito
significativo.
Nos primeiros dois meses de liberdade o "Diário de Notícias"
publica com o
mesmo alheamento um "fait divers" sobre um "mutilado de guerra
mortalmente
agredido à navalhada" e notícias demolidoras de todo o
edifício conceptual sobre
os deficientes, como esta (em 16 de Maio), com o título
"Militares feridos
recebidos pela Junta": depois de noticiar a audiência num
curto parágrafo, indica no segundo: "Quando se retirou, essa comissão divulgou
o seguinte
comunicado (...)". E transcreve, de forma rotineira, como se
nada de novo
estivesse em causa, um documento arrasador das barreiras da
integração, com
traços carregados de uma nova imagem dos deficientes.
Tratava-se da primeira
posição pública da ADFA, onde anunciava coisas novas deste
género:
-
a denúncia do ostracismo e marginalização a que os
Deficientes das Forças
Armadas haviam sido votados;
- a determinação de destruir a imagem do deficiente
"desgraçado e coitadinho";
-
a disponibilidade para participar activamente na
"emancipação de Portugal
para a liberdade";
- o pedido de "extinção de todo e qualquer organismo de
índole caridosa, a que
não reconhecemos qualquer representatividade";
- o pedido de reconhecimento de representatividade dos
deficientes agora
organizados.
O jornal não só não realçou a importância destes novos
princípios, como
deixou passar, sem destacar, o facto - novo - de serem os
próprios deficientes,
organizados, a indicarem os caminhos da sua integração.
Oito dias depois (24 de Maio), o "Diário de Notícias"
transcreve nova
exposição da ADFA dirigida à Junta de Salvação Nacional, onde
reafirma os seus
princípios e solicita a adopção de medidas para o
aproveitamento das capacidades
dos Deficientes das Forças Armadas na "construção de um
Portugal renovado";
exige a criação de estiuturas govemamentais para tratamento
dos deficientes, onde
a ADFA deverá ser ouvida; pede a extinção da Liga dos
Combatentes, por nada
ter feito para a resolução dos problemas dos deficientes
militares.
Em 31 de Maio, ainda rotineiramente, o jornal transcreve uma
relação de vinte
e duas reivindicações, apresentadas pela ADFA ao ministro da
Defesa Nacional,
sem destaque nem comentários, muito embora, de forma cada vez
mais clara, se
redesenhasse uma nova imagem dos deficientes em Portugal. Aí
se exigia, por
exemplo, "que a palavra "inválido" seja banida da terminologia
dos deficientes".
Contrastando com estas três notícias sobre a ADFA, na edição
de 5 de
Junho, surge uma notícia muito bem enquadrada, com o título:
"Para que cumpra
a sua verdadeira missão - a Liga dos Combatentes vai ter nova
comissão
administrativa". A ADFA obteve aqui uma dupla primeira
resposta às suas
exigências: pede a extinção da Liga dos combatentes, um
instrumento usado no
Estado Novo para marginalizar os deficientes, e a Junta de
Salvação Nacional
decide "vivificá-la"; procura difundir uma nova imagem dos
deficientes, e o "Diário de Notícias" parece deliberadamente apostado na
confirmação da
imagem antiga.
Este papel do jornal parece confirmado em 21 de Junho,
através da cobertura
da tomada de posse do novo presidente da Cruz Vermelha. A ADFA
tinha
denunciado a pemiciosa caridadezinha da secção auxiliar
feminina da Cruz
Vermelha. Nesta cerimónia, o ministro da Defesa tece um
elevado elogio a estas
senhoras, salientando que nunca esquecerão a sua acção "todos
os que nas
horas amargas ou difíceis tiveram alguém que os acompanhasse
nas suas dores e
nos seus sofrimentos". Evidentemente que nesta perífrase
eufemística estão
mencionados os Deficientes das Forças Armadas. A ADFA
denunciava as
organizações caritativas, e o ministro da Defesa lavrava-lhes
um louvor público,
bem divulgado pelo "Diário de Notícias". Era a segunda
resposta à ADFA.
Decididamente, as barreiras eram muito fortes.
Mas nestes dias da revolução tudo se precipitava muito
rapidamente. Em 24
de Junho, em reportagem sobre uma Assembleia Geral da ADFA no
Pavilhão dos
Desportos, em Lisboa, o "Diário de Notícias" muda radicalmente
o seu
posicionamento. Mostra em fotografias centenas de deficientes
e apresenta em
texto o ambiente e determinação observados; integra no
trabalho as anteriores
posições da Associação. A partir daqui uma nova imagem começa
a impor-se,
repetidamente veiculada pelo próprio "Diário de Notícias" nos
meses seguintes.
Os traços são nítidos: os deficientes organizados como
sujeitos da sua própria
integração; negação da caridade e do proteccionismo;
valorização e aproveitamento
das suas capacidades.
Em 23 de Novembro de 1974, a ADFA, perante a falta de
resposta às suas
reivindicações, decide, em Assembleia Geral, tomar o Palácio
da Independência
e fazer uma manifestação a São Bento. O "Diário de Notícias"
não deu cobertura
a estes acontecimentos, mas a acção da ADFA esteve na base dos
primeiros
grandes trabalhos jornalísticos sobre deficientes militares,
assinados por Manuel
Barão da Cunha e publicados em 14 e 25 de Novembro.
Os trabalhos jornalísticos de grande alcance sobre
deficientes surgem agora já
com alguma frequência. Um deles, de reflexão aprofundada sobre
o abandono a
que o salazarismo votou os inválidos da Grande Guerra, também
assinado, é
publicado em 3 de Fevereiro de 1975. Diz o articulista: "Outra
não menos grande
injustiça do salazarismo é a que atinge, em toda a sua crueza
e frialdade, a honra
da nação, ao lançar à margem da lei os mutilados e inválidos
de guerra (...)"
O espaço dedicado a deficientes especificamente não
militares é preenchido
sobretudo por pequenas notícias e cartas à redacção a expor
situações pessoais
difíceis. O sentimento de importância da actuação conjunta,
para alteração da
marginalização, não veio para os deficientes não militares
simultaneamente
com o 25 de Abril. Só em 28 de Janeiro de 1975 surge no
"Diário de Notícias" uma reportagem sobre uma acção colectiva: trinta e oito
deficientes das Oficinas
de Reabilitação Profissional do Porto são recebidos pelo
secretário de Estado da
Previdência Social. É precisamente neste trabalho jornalístico
que se conhece a
única opinião, durante um ano, de um membro do governo sobre
os deficientes:
"nos últimos 48 anos houve, por parte do Estado, uma completa
ausência de
política de reintegração social dos defcientes", afim rou na
altura o Dr. Santa Clara
Gomes.
O esboço da acção colectiva dos deficientes civis, para
acentuar o traço da
participação na imagem que na altura se pretendia impor, surge
por iniciativa da
ADFA. Em 17 de Fevereiro de 1975, o "Diário de Notícias"
publica uma
reportagem sobre uma reunião, na Sede da ADFA, promovida por
esta, com
deficientes civis. É por esta forma tornada pública a análise
aprofundada aí
realizada, destacando-se uma proposta, a aprovar numa reunião
seguinte, sobre a
criação de uma única associação para deficientes civis e
militares.
Durante os 12 meses que estão a ser considerados, as 79
ocorrências sobre
deficientes correspondem ao espaço de aproximadamente 6
páginas de jornal.
Vinte e seis dessas ocorrências são especificamente sobre
Deficientes das Forças
Armadas (cerca de 35 por cento do espaço total). O espaço
dedicado
especificamente a deficientes não militares é de dez por cento
do total. As
notícias sobre deficientes em geral e sobre iniciativas
governamentais ocupam o
restante espaço. Não há dúvida que durante este período,
sobretudo pela actuação
da ADFA e através do "Diário de Notícias", a opinião pública
dispôs de
elementos novos para a transformação da imagem do deficiente
passivo, miserável
e infeliz, objecto do proteccionismo particular, numa imagem
do deficiente
activo, empenhado na sua realização individual e afirmação
social.
A Imagem Embaciada da Actualidade
Do primeiro ano da revolução demos um salto de 18 anos para
a actualidade.
Prosseguimos o trabalho de análise do mesmo jornal, agora de
1993. Por
gentileza do Secretariado Nacional de Reabilitação tivemos
acesso aos recortes dos
textos publicados pelo "Diário de Notícias", sobre
deficientes, neste ano.
A primeira constatação é de carácter quantitativo. O número
de ocorrências é
claramente superior à média registada nos anos do Estado Novo,
mas é inferior à
do primeiro ano pós-25 de Abril. Temos agora 69 ocorrências,
em comparação
com as 79 dos 12 meses considerados de 1974 e 1975.
Entretanto, em termos de
espaço, existirá uma maior ocupação - cerca de 20 páginas,
contra 6 páginas. Há,
contudo, a considerar a mudança de formato do jornal, agora
com páginas de
menor dimensão (tablóide). E, de todas as referências a
deficientes, 25 tratam do
caso dos hemodialisados de Évora e dos hemofílicos infectados
com o vírus da
SIDA, muito politizadas e pouco centradas na problemática da
deficiência.
Estes textos ocupam cerca de 8 páginas. Restam, assim, no ano
de 1993, 44 textos
especificamente sobre deficientes, num espaço de 12 páginas.
Ocorrências específicas sobre Deficientes das Forças Armadas
encontramos
apenas três, em contraste com as 26, em igual período de
1974-75. Estes três textos
ocupam cerca de nove por cento do espaço total dedicado a
deficientes, em
contraste com os cerca de 35 por cento de 1974-75, ou seja,
quatro vezes
menos. Das três ocorrências, duas dizem respeito à nova sede
da ADFA (uma delas
sobre a inauguração) e a terceira é sobre a formação
profissional. Na primeira,
uma reportagem de 10 de Fevereiro, há três aspectos a realçar:
as novas
instalações da ADFA, sem barreiras arquitectónicas; a
realização em Portugal de
uma conferência mundial sobre de icientes, ainda durante este
ano; o agravamento
da desagregação familiar e profissional dos deficientes
militares. Em nova
reportagem, em 22 de Março, a propósito das acções de formação
profissional da
ADFA, também destinadas a deficientes civis, é dada uma imagem
de deficientes
militares integrados profissionalmente com algum sucesso,
tendo "activado
faculdades escondidas". A notícia sobre a inauguração da sede
da ADFA, em 20
de Novembro, consta essencialmente do anúncio, por parte do
primeiro-ministro,
presente na cerimónia inaugural, da preparação de um novo
plano nacional de reabilitação. É salientada depois a ideia de "reconciliação
nacional", a que
aludiram o primeiro-ministro, o presidente da Câmara Municipal
de Lisboa e o
presidente da ADFA, sem explicitação do sentido contextual
desta expressão.
Definimos a imagem dos deficientes militares veiculada pelo
"Diário de
Notícias" em 1974-75 e verificámos que ela era moldada pelo
querer e fazer dos
próprios, forjada pelo seu protagonismo. Dezoito anos depois,
é de difícil
caracterização a imagem dos Deficientes das Forças Armadas
veiculada pelo
mesmo jornal. É, no mínimo, desfocada, tendendo para o
apagamento. Dos
destroços de uma imagem dos deficientes que já foi fulgurante,
emerge agora o
proteccionismo estatal.
É, de facto, o Estado, com os seus serviços e os organismos
por ele tutelados,
que ocupa a maior fatia deste espaço jornalístico. As
iniciativas dos serviços
oficiais sobre deficientes, sobretudo mentais, surgem em 10
ocorrências, ocupando
cerca de 35 por cento do espaço total. É interessante
verificar que, em 1974-75,
o espaço ocupado pelas referências aos Deficientes das Forças
Armadas era
precisamente de cerca de 35 por cento. Há aqui uma deslocação
de protagonismo
dos Deficientes das Forças Armadas para o Estado,
caracterizada por uma
curiosa geometria, reveladora da troca de papéis neste palco
da deficiência. Em
termos de imagem dada pela imprensa resulta, pois, o traço
"proteccionismo", que
favorece o reaparecimento da imagem tradicional.
Mas o proteccionismo do Estado, e também das boas vontades
privadas, de
algum modo sustenta a imagem do deficiente válido. Em
reportagem de 4 de
Dezembro, o "Diário de Notícias" veicula expressões
significativas do Secretário
Nacional de Reabilitação, Dr. António Charana, como "mudanças
de atitudes" e "quebrar tabus e barreiras, revolucionar mentalidades".
A acção organizada dos deficientes civis, que em 1974-75 mal
se esboçava,
surge agora com algum realce, deixando entender que a actual
imagem dos
deficientes não está a ser moldada apenas pelo outros, mas que
existe ainda um
papel reservado aos próprios. A APD (Associação Portuguesa de
Deficientes)
surge em 7 ocorrências, ocupando pouco mais de meia página,
mas com bastante
significado. É praticamente a única voz de protesto e denúncia
por parte dos
deficientes. Denúncia, publicada em 27 de Maio, da não
regulamentação do
financiamento das associações de deficientes; denúncia, em 4
de Agosto, da
situação dos insuficientes renais; denúncia, em 21 de
Setembro, da existência de
um milhão de deficientes marginalizados em Portugal. Estas
denúncias são
reforçadas pela UCNOD (União Coordenadora Nacional dos
Organismos de
Deficientes), em notícia de 25 de Novembro, que,
significativamente, tem como
título "Deficientes Exigem Reposição de Direitos".
Para embaciar ainda mais a actual imagem dos deficientes, o
"Diário de
Notícias" tanto dá guarida às notícias acentuadoras do
estatuto desviante dos
deficientes, seja o aberrante, o insólito ou o prodígio, como
a artigos assinados, de
alguma reflexão (apenas dois), com passagens elucidativas como
esta, de 3 de
Janeiro, da autoria de Humberto Vasconcelos: "A sociedade
modema, talvez para
limpar a consciência do que não faz por eles, teve a
delicadeza de Ihes mudar o
nome: chama deficientes auditivos aos surdos".
Prosseguimos a nossa leitura do "Diário de Notícias" em
1994, durante os
primeiros cinco meses. Os resultados são semelhantes aos de
1993: o número de
ocorrências mantém-se reduzido ( 19); os Deficientes das
Forças Armadas estão
agora totalmente ausentes; há intervenção pública de uma
associação de
deficientes (APD) em Maio, de que se destaca uma manifestação
em cadeiras de
rodas, para evidenciar as barreiras de acesso ao emprego, à
educação e à cultura;
predomínio das iniciativas oficiais, com destaque para a
realização do primeiro
inquérito nacional à deficiência; algumas referências ao
estatuto desviante do
deficiente.
Esta imagem baça da actualidade permite distinguir cada vez
com mais
nitidez os deficientes como sujeitos nulos do processo de
integração; quase
espectadores ausentes dum espectáculo que só existe porque
eles são personagens.
E poderíamos ir mais longe no paradoxo.
Conclusão
A imprensa informa e forma a imagem dos deficientes em cada
momento. Na
leitura feita deparámos sobretudo com as notícias breves, com
algumas rápidas
reportagens e pouquíssimos artigos de opinião. Não deparámos
com o trabalho
longo de aprofundamento. Com esse trabalho, a imprensa
prestaria um serviço
semelhante ao das organizações de deficientes: descobündo o
que a rotina da vida
deixa tapado; obrigando a um esforço de racionalização dos
fantasmas
subteirâneos; enfim, obrigando a quebrar o tabu. A ausência
dessa problematização
cria o vazio, onde continuam a alimentar-se as raízes da
marginalização. É
sobretudo por omissão que a imprensa não ajuda a causa dos
deficientes.
Para exemplificar este tipo de jornalismo urgente,
referimos, a terminar, um
trabalho de Luísa Schmidt, publicado na Revista do "Expresso"
de 19 de Junho
de 1993, com o título "As Rodas da Pouca Sorte". A autora, com
fina ironia, parte
de uma tese: "ou os deficientes portugueses são invisíveis ou
a sociedade anda cega", e isto porque constata que é raro encontrá-los no
espaço público. Num
trabalho de investigação, acaba por negar esta tese, ou seja,
nem eles são
invisíveis nem a sociedade anda cega, apenas andam escondidos,
não frequentam
o espaço público dos normais cidadãos porque Ihes faltam os
meios fundamentais,
desde as próteses aos transportes e o próprio emprego.
A ausência social dos deficientes é, de facto, um sinal
interior de pobreza desta
era da competitividade. Na sua base está o alheamento e a
dessolidariedade, mas
é muito cómoda - os deficientes são arrumados no domínio do
inexistente, e ficam
em sossego as consciências da sociedade de sucesso.
A Imagem dos Deficientes na Imprensa
Esta é a segunda vez, no decurso deste projecto, que
abordamos o tema da
imagem dos deficientes na imprensa. No colóquio de 23 de
Novembro de 1994,
realizado na sede da ADFA, demos conta do conteúdo do "Diário
de Notícias",
desde o fim da Primeira Guerra Mundial ( 1918) até à
actualidade, relativamente
à temática da deficiência. Embora não tenha sido feita uma
análise exaustiva de
todos os números deste jornal no período abrangido, ou seja,
76 anos (foram vistos
10 anos completos, mas espaçados), foi possível obter os
traços fundamentais da
imagem pública dos deficientes neste século. Imagem que não é
estática,
conforme verificámos, revelando variações a que as próprias
mudanças sociais e
políticas não são alheias.
A imprensa reflecte essa imagem pública dos deficientes, mas
também
contribui para a sua caracterização, por referência e pela
fozma como refere, ou por
omissão. Pode funcionar como instrumento de confirmação e
reprodução da
imagem dos deficientes herdada, quando realça e valoriza
práticas marginalizantes
e quando omite actividades ou iniciativas inovadoras. Por
outro lado, pode pôr em
causa essa imagem, quando analisa e questiona a situação dos
deficientes. Pode
assim a imprensa funcionar como um obstáculo real da
integração social dos
deficientes ou pode contribuir para a demolição das barreiras
culturais da
integração.
O insólito e o profundo
Depois do último colóquio continuámos a leitura atenta do
"Diário de
Notícias", nomeadamente de 1 de Dezembro de 1994 a 31 de Maio
de 1995.
Vamos dar conta dessa leitura e procurar caracterizar a imagem
dos deficientes que
dela se depreende. O espaço dedicado a esta temática ainda não é o ideal, mas
aumentou
consideravelmente em relação a 1993. Durante estes seis meses
foram publicados
52 textos relacionados com deficientes, num espaço que recobre
cerca de 20
páginas. Mas 50 por cento, ou seja, 10 páginas, não são
especificamente
centradas na temática dos deficientes. É o caso, por exemplo
da infecção dos
hemofílicos pelo vírus da SIDA, que adquiriu contornos
políticos e ocupa
bastante espaço jornalístico.
É tradicional os textos sobre deficientes se circunscreverem
sobretudo ao "fait
divers", pelo insólito, pelo aberrante, pelo prodigioso. Neste
período encontrámos
casos desses, mas não com frequência desproporcionada. É
exemplo a greve de
fome de um deficiente de Barcelos, que proporciona um
mini-folhetim através de
minúsculas notícias. O profundo significado da atitude de
desespero de um
cego a quem é negado o trabalho prometido não é objecto da
merecida reflexão.
Nesta linha estão as pequenas notícias sobre o peditório de
uma associação de pais
de crianças deficientes (edição de 17 de Maio), a exposição de
cerâmica da autoria
de jovens com deficiência mental ( 19 de Abril) ou exposição
de tapeçaria feita por
deficientes ( 11 de Março). É o curioso que é noticiado, como
umas pinceladas do
colorido humano estático e imutável: lá estão os deficientes
no seu canto com as
habilidades insuspeitáveis de alguns.
Mas este tipo de notícia, no período analisado, não é
predominante. Predomina
antes o trabalho de grande fôlego, assinado, com juízos e
opiniões, que questiona
e põe em causa ideias dominantes, preconceitos. A visita de um
grupo de
deficientes às instalações da companhia de dança de Lisboa
poderia ter sido
objecto, na edição de 22 de Maio, de uma curta notícia sobre o
exotismo, mas não,
mereceu uma reportagem assinada, de quase uma página. Da
curiosidade
desviante de que se poderia revestir um grupo de mongolóides a
dançar, até ao
registo, por exemplo, das palavras do director da Companhia de
Dança de
Lisboa, vai a distância que separa a confirmação da exclusão
dos deficientes do
seu reconhecimento como simplesmente pessoas: "Eles estão a
ser recebidos como
todos os outros grupos de crianças que nos têm visitado. O
programa é
exactamente o mesmo, não fizemos qualquer distinção".
O impedimento da inscrição de alunos com certo tipo de
deficiências em
alguns cursos superiores tanto pode surgir num jornal como
mera curiosidade,
como tratado ampla e profundamente. Foi este último caminho
que o "Diário de
Notícias" seguiu. Num trabalho de investigação assinado,
ocupando uma página,
procura-se condenar esta atitude marginalizadora,
salientando-se, inclusivamente,
o seu carácter inconstitucional.
Aquilo que poderia ser também mera curiosidade em canto de
página - a edição
de uma gramática da língua gestual portuguesa - é objecto de
amplo tratamento e
oportunidade para esclarecer sobre o muro que a comunicação
verbal levanta entre
os surdos e os que ouvem. Este assunto ocupa duas páginas, bem
merecidas, uma
na edição de 20 de Dezembro e outra na de 14 de Fevereiro.
Ainda como pequena notícia poderia surgir a publicação de
uma portaria do
Ministério do Emprego que enumera as deficiências que os
candidatos a
inspectores de trabalho não podem ter, que vão da falta de um
membro ou qualquer
segmento deste, até um tumor benigno ou estado alérgico. O
jomal poderia até não
considerar isso merecedor de notícia. Estaria dessa forma a
sancionar uma
medida governamental marginalizadora dos deficientes. Procedeu
de forma bem
diversa e contribui para impedir que esta barreira oficial da
integração se
consolide. Na edição de 29 de Março dedica quase uma página ao
assunto,
procurando dar conta das repercussões desta medida, de que se
salienta a opinião
da Ordem dos Médicos ("tais critérios são nazis e
anticonstitucionais").
Por fim, seria compreensível considerar a questão da
sexualidade dos
deficientes chocante e passar ao lado das conclusões dum
seminário internacional
sobre paralisia cerebral. Mas não, na edição de 19 de Março o
assunto é realçado,
e o trabalho jornalístico é valorizado com declarações como
esta, de uma
psicóloga: "Não há uma sexualidade para os ditos normais e
outra para os
deficientes. Estes têm necessidades e desejos iguais".
A voz dos deficientes
A análise do "Diário de Notícias" de 1993 e primeiros meses
de 1994
revela-nos o predomínio de referências a iniciativas oficiais
no domínio da
deficiência. Isso levou-nos a afirmar, no colóquio de 23 de
Novembro, que, "em
termos de imagem dada pela imprensa, resulta o traço
proteccionismo, que
favorece o reaparecimento da imagem tradicional". Nesse mesmo
período
verifica-se a presença, com relativo peso, dos deficientes
organizados. No
referido colóquio dizíamos que isso "deixa entender que a
imagem dos deficientes
não está a ser moldada apenas pelos outros, mas que existe
ainda um papel
reservado aos próprios".
No período agora analisado, a presença do Estado e dos
organismos por ele
tutelados é menor. Por outro lado, a voz dos deficientes é
mais expressiva.
Na edição de 3 de Dezembro de 1994, a propósito das
comemorações do dia
internacional da pessoa deficiente, é dado um tratamento
especial a esta temática,
colocando lado a lado declarações do Secretário Nacional de
Reabilitação e do
presidente da UCNOD. O responsável oficial da reabilitação
faz um balanço
positivo do realizado nos últimos dez anos, enquanto o
responsável da organização
de defcientes considera que no SNR "se fazem muitos estudos
e pouco mais". No
quadro positivo traçado pelo Secretário Nacional de
Reabilitação surge um
aspecto menos conseguido - "a dificuldade em conseguir
manter os postos de
trabalho, apesar dos benefícios que são dados às empresas
que contratem
deficientes". Na edição de 4 de Dezembro é dedicada meia
página ao I Parlamento
Nacional de Deficientes, organizado pela UCNOD, publicando a
denúncia feita
da situação dos deficientes e as críticas ao governo.
Na edição de 4 de Maio, um trabalho de quase uma página tem
como base
declarações da Direcção da APD, a denunciar a marginalização
dos deficientes e
a chamar a atenção para a sua força política, porque a votar,
eles e as suas familias,
são cerca de três milhões. Em caixa é reproduzida a definição
de deficiente
aprovada em Bruxelas, em Outubro de 1994: "Uma pessoa
deficiente é uma pessoa
de corpo inteiro, colocada em situação de desvantagem
ocasionada por barreiras
físicas e ambientais, económicas e sociais, que a pessoa, por
causa das suas
especificidades, não pode transpor com as mesmas prerrogativas
dos outros
cidadãos. Estas barreiras são, muitas vezes, reforçadas por
atitudes
marginalizadoras da sociedade". Ao divulgar o conteúdo desta
nova e inovadora
definição, o jomal está a desempenhar uma função pedagógica,
está a dar a ver aos
ditos normais as pessoas deficientes de outra forma, ou seja,
está a contribuir para
a correcção da imagem fixada. Pena é que a lição se tivesse
ficado pelo sumário,
porque esta nova definição merecia um artigo de fundo.
O protagonismo dos deficientes não surge ainda com o realce
desejável,
embora bem tratado jornalisticamente. A intervenção pública
circunscreve-se
praticamente à UCNOD e à APD. A ACAPO também é referida, mas
apenas a
propósito do lançamento de uma nova revista em braille, a
"Espiral". Os
deficientes das Forças Armadas estão presentes apenas através
de uma pequena
notícia sobre um grupo que exige a passagem das graduações a
promoções. A
ADFA, como organização, não tem existência neste espaço
informativo. Terá,
entretanto, mas já fora do período que estamos a tratar,
direito a uma página, a
propósito das comemorações do 10 de Junho.
Outras abordagens
Para além do "Diário de Notícias", nestes seis meses, de 1
de Dezembro de
1994 a 31 de Maio de 1995, lemos também com atenção o
"Público" e o
"Correio da Manhã". O espaço dedicado à temática dos
deficientes é superior no
"Correio da Manhã" e inferior no "Público". O estilo também é
diferente nos três
diários.
O "Correio da Manhã", por exemplo, faz uma maior cobertura
da realidade,
dando mais realce ao facto novo relacionado com os
deficientes. Por isso, o
número de textos que publica é mais elevado (72). Os espaços
maiores não são
ocupados com trabalhos de investigação e reflexão, mas com
grandes notícias de
pequenos acontecimentos. É o caso, por exemplo, da adaptação
de uma estação de
metro em Lisboa, de molde a os cegos se poderem orientar.
Dedica, na edição de
29 de Dezembro, uma página inteira a este assunto, com o
ante-título "Que Bom
Lembrarem-se de Nós" e o título "Cegos já Podem Orientar-se na
Estação do Metro da Avenida". Ao deixar escondida por trás desta notícia
a preocupante
questão da mobilidade, o jornal faz ressaltar uma imagem do
deficiente
beneficiário e agradecido da benevolência de quem pode e
manda. Não
questionando o estilo jornalístico, a imprensa pode assim
legitimar a ideia
dominante sobre os deficientes.
O "Público", com 48 textos, faz uma cobertura menor do mundo
da deficiência
do que o "Correio da Manhã" e mesmo do que o "Diário de
Notícias". Guarda os
grandes espaços para situações com maior significado político.
Reserva, por isso,
um espaço maior à questão das indemnizações dos hemoflicos e a
outras, como
a falta de verbas para o ensino especial, a que dedica quase
uma página, na edição
de 2 de Janeiro. Mas também surgem trabalhos de fundo,
assinados, e bem
centrados na problemática da marginalização, como é o caso da
publicação da lista
de deficiências impeditivas da candidatura a inspector de
trabalho, na edição de
15 de Março.
Conclusão
Foram analisados três jornais diferentes, todos com um grau
de atenção às
pessoas com deficiência e àquilo que lhes diz respeito, embora
privilegiando
perspectivas diferentes. Cada um com o seu estilo, cada um
contribuindo, de forma
diferente, para o abalo ou consolidação dos preconceitos sobre
as pessoas com
deficiência.
De 1993 para 1995 verificou-se uma considerável mudança no
tratamento da
temática da deficiência pelo "Diário de Notícias", tanto na
frequência como na
forma. Nota-se agora uma maior abertura. Passa-se da pequena
notícia para o
trabalho de maior profundidade e sobe-se o tom da voz dos
próprios deficientes
organizados. Parece pretender-se escavar a imagem dos
deficientes e encontrar-
-Ihe as raízes. Se se trata de uma evolução consistente e
continuada, ou se, pelo
contrário, é casual e efémera, não sabemos. Só o
prosseguimento da análise no-lo dirá. De qualquer modo, esta variação é por si
significativa. Um jornal de
grande influência na opinião pública, ao revelar maleabilidade
na abordagem de
um assunto tradicionalmente considerado tabu, está desde logo
a contribuir
para a destruição desse tabu. É o mesmo que dizer que um
jornal de grande
alcance, ao tratar de forma diversificada, mesmo que
incoerente, a temática dos
deficientes, está a beliscar a imagem destes, herdada e bem
conservada no
imaginário colectivo. Está a dar, deste modo, um passo
importante para a correcção dessa imagem. E é o que de mais urgente há a fazer -
a alteração da
imagem das pessoas com deficiência, para que elas passem a ser
para os outros
aquilo que realmente são e não a ideia preconcebida que delas
se tem.
A imprensa pode, pois, confirmar na mentalidade dos leitores
a imagem do
deficiente irremediavelmente à margem, e aí funciona como uma
barreira
cultural da integração social, porque legitima e reproduz os
valores dominantes
neste domínio. Pelo contrário, pode inquietar essa
mentalidade, dando da pessoa
com deficiência uma ideia nova, para uma nova imagem, e aí
abandona o seu
tradicional papel de barreira cultural. Pela leitura feita,
parece-nos que estamos
numa fase de transição e que, por isso, a causa da integração
poderá ser bem
defendida na imprensa.
ϟ
excerto de 'As Barreiras Invisíveis da Integração' Autor: António Joaquim Lavouras Lopes
Editor: Associação dos Deficientes das Forças Armadas
Local e data de edição: Lisboa, 1995
10.Jun.2016 publicado
por
MJA
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