Lívia Motta & Paulo Romeu Filho (organizadores)
-excerto-
A Princesa e o Violinista
- direcção: Guto Bozzetti, 2008
(Audiodescrição Mil Palavras) |
Roteiro: Letícia Schwartz e Cristina Gonçalves | Narração: Felipe Mônaco
Índice:
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No filme "Náufrago", lançado em 2000 nos EUA, cujo nome original é "Cast Away", Chuck Noland (personagem principal vivido por Tom Hanks), em uma de suas costumeiras viagens a negócio pela Federal Express (FedEx), empresa em que trabalha como
inspetor, sofre um acidente, que o deixa preso em uma ilha completamente deserta por 4 anos. Com sua noiva (Helen Hunt) e seus amigos imaginando que ele morrera no acidente, Chuck precisa lutar para sobreviver, tanto física quanto
emocionalmente, a fim de que um dia consiga retornar civilização. Totalmente isolado, faz de um rosto por ele pintado em uma bola, seu grande amigo Wilson. Dirigido por Robert Zemeckis, o filme deixa latente a importância da comunicação
para os seres humanos através dos diálogos e interação de Chuck com a bola.
Por mais que garantíssemos alimentação e conforto físico para uma pessoa, se
a isolássemos do convívio com outros seres, em pouco tempo ela apresentaria sintomas de ansiedade. A necessidade de falar com alguém, como é
demonstrado no filme, é uma das características dessa ansiedade. Durante
algum tempo, isso poderia ser atenuado por um monólogo, em pensamento ou
em voz alta, e mesmo pela criação de interlocutores imaginários. Mas, com o
prolongamento da situação, a fala e o próprio pensamento tornar-se-iam
desconexos e a pessoa perderia o autocontrole. Se a situação não fosse
corrigida a tempo, haveria uma desagregação psicológica, acompanhada de
descontrole orgânico. A solução seria muito fácil... bastaria retirá-la do
isolamento.Deste modo, podemos facilmente concluir que, tão importante quanto
alimentar-se, dormir e tomar banho é comunicar-se. Na verdade, é impossível
viver em sociedade sem se comunicar. Imagine-se em um lugar fechado, com
uma pessoa desconhecida, com quem estivesse proibido de se comunicar, e
com ordem de se ignorarem mutuamente... Não demoraria muito para concluir
que seria impossível ignorar a presença do outro. Os menores gestos
passariam a ser observados atentamente. Cada qual procuraria interpretar o
comportamento do outro e atribuir-lhe um sentido. Não demoraria muito para
que cada um começasse a orientar suas atitudes em função das do outro.
Haveria então, por mais que se desejasse evitar, comunicação entre ambos. Os gestos e o comportamento dos dois passariam a ser mensagens, mesmo
involuntárias, e cada um estaria convertido em receptor e emissor dessas
mensagens.Desde que nascemos, somos cercados por signos linguísticos que nos
permitem inúmeras possibilidades comunicativas. Elas começam a se tornar
reais a partir do momento em que, pela associação e imitação, iniciamos o
processo de formulação de nossas mensagens (Muito rapidamente, um recém
nascido aprende que, para receber atenção é preciso chorar). Sons, gestos,
imagens, e tudo mais à nossa volta faz parte da vida moderna, compondo
mensagens de toda ordem, transmitidas pelos mais variados canais, como a imprensa, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, o cinema, os cartazes de
propaganda, os desenhos, a música e tantos outros. Em todos, a linguagem
tem papel fundamental, seja em sua forma oral, seja através de seu código
substitutivo escrito. E, através dele com o mundo que nos cerca é
permanentemente atualizado. Daí, entendermos que toda a nossa vida em
sociedade supõe um problema de comunicação e intercâmbio que se realiza
fundamentalmente por meio dela, a maneira mais comum de que dispomos
para tal. Assim, a linguagem é o suporte uma dinâmica social, que
compreende, além das relações diárias entre os membros de uma comunidade,
as atividades intelectuais, que vão desde o fluxo informativo dos meios de
comunicação de massa, até suas vidas cultural, científica e literária.
Muitos estudiosos e pensadores modernos afirmam que o período que estamos
vivendo é caracterizado por mudanças rápidas e radicais. Essas mudanças são
impulsionadas pela evolução tecnológica, principalmente nas áreas de
informática e comunicações. Cada vez mais são usados mecanismos de
interação em que o uso da visão é imprescindível. Não precisamos recuar
muitas décadas para nos depararmos com uma realidade na qual a imaginação
era fortemente estimulada, haja vista, serem o livro, o jornal e o rádio os
principais meios de comunicação na época. Ainda estão claras em minha mente, as
palavras do meu avô... “nos sentávamos em volta do rádio, e ninguém dava um
pio! Nos emocionávamos com os galãs das rádio-novelas. Não perdíamos
também o Repórter Esso e os jogos da seleção Brasileira. O som ia e voltava,
mas ficávamos imaginando as jogadas e era uma emoção. Quando chegou a
televisão, muitas coisas perderam a graça...”.
Como bem coloca o trabalho de
conclusão de curso de Flávia Affonso Mayer e Luiza Sá Guimarães (Diagnóstico de Comunicação para a Mobilização Social: promover autonomia
por meio da Audiodescrição):
Antes da fotografia, do cinema e da televisão, os livros e a
cultura oral dos contadores de histórias permitiam que a
imaginação criasse as imagens. Hoje, em tempos de
globalização, busca-se o frisson da “experiência real”, a
sensação de interatividade, de ser simultaneamente ator e
espectador em eventos de todas as naturezas ao redor do
mundo. O ímpeto de imaginar o que nunca foi visto ou o
que não se pode ver vem se perdendo.
Ante este cenário hegemônico, precisamos considerar a situação das
pessoas com dificuldade de compreensão, analfabetos, bem como idosos, que,
além das limitações físicas e sensoriais, por vezes, advindas da idade, durante
toda vida, foram estimulados a “imaginarem” e criarem suas conexões mentais
sobre a informação que recebiam. Podemos considerar, ainda, situações em
que a prática de atividades profissionais não permitem o uso da visão, como
motoristas e domésticas, que tinham e têm, no rádio, por exemplo, um
companheiro inseparável, uma vez que, não precisam interagir visualmente com este canal de comunicação, ficando assim livres para realizar suas tarefas.
Neste sentido, a busca pela igualdade de oportunidades suscita a discussão
sobre a diversidade, que torna latente o direito que os diferentes indivíduos ou
grupos sociais têm de estarem incluído na sociedade. Tal direito impõe o
desafio de se encontrarem mecanismos que garantam a efetividade do acesso
à informação e à cultura, oferecendo produtos acessíveis às pessoas que, de
alguma maneira, não possam se valer dos meios de comunicação visual.
Nesse contexto, nasce a audiodescrição. Ela surge como uma tecnologia
assistiva que busca suprir a lacuna deixada pela comunicação visual, para
aqueles que dela não conseguem tirar proveito. No atual estado da arte dos
meios de comunicação, não há dúvidas de que a ausência da audiodescrição
cria uma situação de desconforto. Inúmeros são os momentos em que
sentimos falta de um detalhamento do que está acontecendo. Seja na
televisão, teatro, cinema ou mesmo nas descrições de gráficos e figuras de um livro, ou imagens de uma página da internet, ela é fundamental para a
participação efetiva das pessoas com deficiência na interação com a
sociedade. Uma pessoa cega que assista, sozinha, ao filme "Náufrago", por
exemplo, sem o recurso da audiodescrição, certamente terá um nível de
compreensão muito abaixo do mínimo necessário, haja vista que a maior parte
do mesmo não possui qualquer diálogo.
Como já citado, a comunicação é uma necessidade básica do ser humano. Se
considerarmos a audiodescrição um recurso que, dada a evolução das
tecnologias, torna-se imprescindível, é impossível imaginar a vida diária sem
ela, sob pena de gerarmos, guardando as devidas proporções com os
exemplos e situações citadas acima, grande ansiedade, além do próprio
prejuízo causado pela falta de compreensão do que nos cerca, provocado pela
sua ausência. Se a tendência das interfaces são tornarem-se cada vez mais
dependentes do sentido da visão, tão mais importante será preocupar-se com
tecnologias assistivas e recursos para suprir a lacuna deixada por estas para
quem não tem possibilidade de usar este sentido.
Até o século XIV, as pessoas com deficiência ficavam nos asilos para que
pudessem ser protegidas, pois não se acreditava que pudessem se
desenvolver, em função da sua "anormalidade". A partir de então, educadores
interessados começaram a instruir, de maneira particular, crianças com
deficiência. Inicialmente eram filhos de famílias bem sucedidas
financeiramente. Muito tempo se passou até que começaram a surgir as
primeiras instituições especializadas. Foi na França, no ano de 1760, que foi
criado o Instituto Nacional de Surdos-Mudos e, em 1784, foi criado o Instituto
dos Jovens Cegos. Com a criação desses institutos, a educação das pessoas
com deficiência foi se desenvolvendo e, graças a essas iniciativas, a
participação desse público cresceu na sociedade moderna e é, hoje, uma
realidade.Com o acesso ao trabalho, as pessoas com deficiência passam a poder
adquirir os produtos que lhes permitem melhor qualidade de vida.
Diferentemente de uma época em que dependiam do assistencialismo para
sobreviver, hoje já possuem autonomia inclusive para intervir efetivamente no
planejamento e desenvolvimento de produtos e serviços que sejam de seu
interesse. Afinal, de assistidos, passam à condição de assistentes para aqueles
que desejam fazer de suas necessidades um negócio lucrativo. Deste modo,
como usuários do produto “audiodescrição”, formam um mercado de
consumidores que compartilham uma necessidade similar: a necessidade e o
direito de acesso à informação.Abraham Harold Maslow, em sua mais conhecida obra – A Teoria a Respeito
da Hierarquia das Necessidades Humanas –, explica e prevê os
comportamentos das pessoas em relação à satisfação das suas necessidades.
Resumidamente, a teoria afirma que as necessidades humanas estão
dispostas hierarquicamente, desde as necessidades básicas (alimentação,
abrigo, segurança etc.), afetivas (aceitação, relacionamentos), chegando às
necessidades de realização (status, reconhecimento). Segundo Maslow, a
satisfação das necessidades de um nível mais baixo conduz o indivíduo a
buscar a satisfação das necessidades do próximo nível, ou seja, as
necessidades e desejos criam nas pessoas um estado de desconforto que é
aliviado pela aquisição de produtos e serviços que os satisfazem.
As pessoas com deficiência, por mais que, infelizmente para uma parte
significativa da sociedade ainda não seja um fato, já atingiram uma condição de
desconforto ao serem privadas de audiodescrição. O salto para o próximo
nível, que é o direito, não só social, mas também legal, de igualdade de acesso
aos mais variados canais de comunicação, é o avanço natural nessa “cadeia
de desejos”, e a audiodescrição, com toda certeza, tem papel fundamental
neste processo. Portanto, audiodescrição, antes de ser vista como uma ação
de responsabilidade social, pode, nos dias de hoje, sem sombra de dúvidas,
ser encarada como um negócio que tem um nicho de mercado bem definido e
público pronto para o consumo.Embora no Brasil o movimento pela audiodescrição só tenha conquistado
visibilidade nos últimos anos, datam de mais de 3 décadas suas primeiras
iniciativas. Contudo, se considerarmos que audiodescrição é o relato de
acontecimentos impossíveis de serem percebidos somente pelos diálogos e
sons do que está sendo transmitido, poderíamos dizer que, muitas das
transmissões radiofônicas, de certo modo, já nos ofereciam uma forma de
audiodescrição. A narração de uma partida de futebol no rádio, por exemplo,
não deixa de ser uma audiodescrição do que acontece dentro do campo.
Contudo, seu significado para os “amantes” do futebol, não aconteceu de um
instante para o outro. Somente quando o rádio estava prestes a completar 9 anos de existência no
país, é que foi realizada a primeira transmissão de uma partida de futebol. Narrada pelo locutor Nicolau Tuma da Rádio Educadora Paulista em 19 de
julho de 1931, a partida entre as seleções de São Paulo e do Paraná no
Campo da Floresta, na capital paulistana, guarda pouca semelhança com o
formato de narração atualmente empregado. Até aquele momento, as
transmissões futebolísticas se resumiam a boletins informativos acerca dos
jogos, sendo Tuma, o primeiro profissional a irradiar uma partida de futebol em
sua totalidade. Como este esporte ainda era incipiente no Brasil, ele
aproveitava para, durante a transmissão, explicar as regras do jogo.
Com a evolução do rádio e do próprio futebol no Brasil, surgiram inúmeros
narradores, que inovaram na maneira de audiodescrever os acontecimentos de
uma partida. Surgiram então, estilos e jargões que se consagraram, criando
assim uma cultura nos ouvintes, que, além de adquirirem suas preferências por
um ou outro profissional, também se acostumaram a decodificar as mensagens
transmitidas de forma a entenderem com maior exatidão o que de fato estava
se passando dentro de campo, não precisando mais, inclusive, que as regras
do futebol fossem explicadas. Qualquer amante das transmissões futebolísticas
no rádio sabe que, por exemplo, sempre que o narrador aumenta a intensidade
da voz e acelera o ritmo da transmissão é um perigo de gol, ou sempre que
existe uma grande defesa do goleiro, o narrador aumenta o tom de voz,
estendendo a frase que indica a ação deste.
Fazendo uma análise fria da situação, não há nada que justifique esta
alteração na voz do narrador. Bastaria que os fatos fossem descritos de
maneira clara para que a informação fosse compreendida por todos. No
entanto, os jargões e o estilo, além de estimularem a imaginação do ouvinte,
dão subsídios para que o narrador consiga agregar elementos que lhe
permitam uma quantidade maior de informação em um tempo menor. É
importante reforçar que esses jargões só fazem sentido porque tanto o receptor
quanto o emissor conhecem perfeitamente o código.
Aí está, certamente, o maior desafio da audiodescrição. Devido ao pouco
estímulo oferecido aos produtos audiovisuais graças à falta de acessibilidade,
as pessoas com deficiência, em sua grande maioria, não desenvolveram uma
cultura para o teatro, cinema ou televisão. Despertá-las para estes “novos
canais de comunicação” é preponderante para torná-las consumidoras de
produtos audiodescritos. A audiodescrição, além de promover a acessibilidade,
tem um papel educativo expressivo, na medida em que possibilita aos seus
consumidores, em particular às pessoas com deficiência visual, o acesso à
linguagem cinematográfica, teatral, dentre outras. Por outro lado, encontrar a
melhor maneira de se audiodescrever um evento, seja ele um filme, um
espetáculo de dança, música ou peça teatral tem sido um grande desafio para
audiodescritores e pessoas que necessitam deste serviço. Dilemas como: encontrar a melhor maneira de descrever um fato, em que momento, com mais ou menos interpretação, ser ou não sucinto, quando sobrepor uma fala ou música, são questões
ainda bastante discutidas. Se de um lado temos os roteiristas com um tempo limitado para encontrar os melhores termos para
descrever, por exemplo, uma cena, de outro, temos as pessoas usuárias desse
serviço que, com suas individualidades, dificultam o trabalho, uma vez que
possuem preferências e culturas diferentes. Enquanto uns são mais curiosos,
preferindo o máximo de detalhes possíveis, outros adotam uma postura mais
objetiva, dando preferência a uma audiodescrição mais sucinta.
Embora para a criação de um roteiro e locução de um produto audiodescrito
seja necessário um conjunto de regras a serem seguidas em âmbito geral, não
há dúvidas de que cada meio artístico tem suas especificidades. Definir tais
regras, mais do que um profundo estudo que já está sendo realizado pelos
envolvidos na causa, terá papel fundamental para o desenvolvimento de uma
cultura de consumo do produto audiodescrição. Guardando as devidas
proporções e especificidades, é preciso que, assim como nas narrações
futebolísticas do rádio, emissores e receptores decodifiquem as mensagens de
maneira clara. Para isso é imprescindível que, cada vez mais, sejam oferecidos
eventos com audiodescrição. É fundamental também, a criação de
mecanismos que garantam uma evolução harmoniosa entre os mais diversos
segmentos da audiodescrição, para que o movimento ganhe força e coesão,
tratando o assunto de maneira ampla, ficando somente as especificidades de
cada segmento como algo a ser tratado particularmente.
Infelizmente, esse serviço no Brasil ainda é privilégio de poucos. Somente nos
grandes centros é possível encontrar eventos audiodescritos, bem como, ainda
é irrisória a quantidade de produtos disponíveis no mercado nacional com este
recurso. Enquanto a audiodescrição não estiver presente nos principais meios
de comunicação de massa, como novelas, filmes, dentre outros, será muito
difícil encontrar respostas aos tantos questionamentos formulados nos últimos
anos, e que são imprescindíveis para o seu desenvolvimento, tanto em nível
técnico quanto prático. Somente com a popularização desta tecnologia assistiva é que será possível formar uma massa crítica que reflita mais
claramente as expectativas de todos aqueles que desejam que a
audiodescrição realmente cumpra seu papel de informar e incluir a todos que dela necessitam.
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Gostaria de relatar aqui quatro momentos, cronologicamente ordenados, da
minha história pessoal e profissional, que foram acontecendo simultaneamente
à evolução da audiodescrição no Brasil. Serão os momentos de intersecção de
meu caminho com a evolução da audiodescrição e que vão desde uma
iniciativa incipiente na Universidade, na qual lancei intuitivamente a idéia desse
recurso de acessibilidade, à discussão em nível governamental com o objetivo
de uma melhor estruturação do perfil profissional especializado para o
audiodescritor. No entanto, preciso, antes, fazer um resgate de meu percurso
dentro da deficiência visual – cegueira adquirida aos 24 anos de idade – desde
quando ela se apresentou, quais as primeiras dificuldades e inquietações, até a
volta ao convívio social, abandonado durante o processo de recuperação.
Não nasci cego, mas após um acidente automobilístico ao final de 1988, sofri
descolamento total da retina do olho esquerdo e parcial da retina do olho
direito. Mesmo após inúmeras cirurgias, a partir de 1996 passei a não enxergar
mais. Esse período de oito anos foi conturbado: o famoso mergulho interno
buscando respostas, conformação e sobrevivência. A difícil aceitação da
deficiência, a tentativa de dar a volta por cima, obviamente permeada pela
vontade de desistir de tudo e assim por diante. Enfim, reações humanas
comuns para uma pessoa que vive em um mundo no qual nada foi pensado
para aqueles que apresentem uma condição diferente da “normalidade”, da
“homogeneidade”. Daí por diante, a pergunta que não quer calar é sempre a
mesma: “E agora, o que fazer?”.Continuar vivendo foi a resposta. Vivendo agora em um mundo inapropriado
para aquela condição que havia adquirido, buscando cotidianamente superar
limites, superar algumas barreiras, contornar outras com dificuldade, parar
diante de muitas. Continuar vivendo e iniciar um difícil aprendizado para a
elaboração de algumas perdas irreversíveis, mas, ao mesmo tempo, a
constatação do nascimento de uma indignação necessária diante de outras
perdas que não precisariam ter ocorrido, e que poderiam ser revertidas caso a
sociedade fizesse a sua parte, como eu passei a fazer a minha. Afinal, acredito
que a inclusão é uma via de mão dupla: a pessoa com deficiência dá um passo
em direção à sociedade e a sociedade dá um passo em direção à pessoa com
deficiência.
1.º Momento: A audiodescrição e a inclusão na Universidade
Em 2002, ingressei no curso de Psicologia da Universidade São Marcos, em São Paulo, onde mais tarde aconteceria o primeiro contato com o recurso da
audiodescrição. Desde o início das aulas comecei a perceber que o mundo que
encontrava a minha volta era totalmente diferente daquele que eu havia
deixado em 1988. O mundo agora era inacessível, incompreensível para minha
nova condição de pessoa cega. Como exemplo desta minha constatação, cito a
questão da leitura, uma das minhas paixões. Eu sabia que, na Universidade
São Marcos, existia uma biblioteca com aproximadamente 150 mil exemplares
à disposição de todos os alunos, menos para mim, que precisava de livros em
um formato mais acessível, por exemplo, o formato texto digital.
No entanto, isso era apenas mais uma das facetas desse novo mundo inóspito,
inacessível e ininteligível ao qual fui lançado naquele momento. Como desfrutar
do prazer de assistir a bons filmes, tanto em home video quanto nos cinemas?
Confesso que, enquanto enxergava normalmente, não ia ao teatro com muita
freqüência, costumava eventualmente acompanhar uma peça ou outra. Porém,
após o advento da cegueira, gostando ou não de atividades culturais, tais como
leitura, televisão, cinema, teatro, home video, a partir daquele momento eu
estava excluído de todas elas, leitura, televisão, cinema, teatro, home vídeo.
Enfim, qualquer uma passou a ser, para mim, inacessível de uma hora para
outra.Antes de ingressar na Universidade São Marcos, percebia-me bastante
conformado com a exclusão e inacessibilidade. Nunca havia refletido de modo
a imaginar que a situação não deveria ser daquele jeito; minha compreensão
era a de que eu ficara defeituoso e isso me explicava, de maneira cabal, a falta
de capacidade para interagir com aqueles produtos e serviços. A resposta era
óbvia: eu estava errado e a sociedade, não. Portanto, eu estava fora e tinha
que me conformar com aquele fato. Assim, minha revolta não era com o mundo
externo e, sim, comigo mesmo: eu tinha fraquejado, me tornado uma pessoa
incapaz.Ocorre que esse período de letargia intelectual passou quando se iniciou o
primeiro dia de aula. Justifico “letargia intelectual”, uma vez que sempre fui uma
pessoa bastante crítica e obstinada pelo que queria na vida, virtudes essas que
haviam permanecido em uma espécie de latência durante o tempo necessário
para a recuperação daquele estado depressivo no qual a deficiência havia me
jogado.A partir daquele momento, começaram minhas cobranças por melhores
condições de acessibilidade a tudo que era oferecido aos alunos “normais” e
que não era pensado para um aluno com outra condição humana. Passei a
questionar a inexistência de livros na biblioteca, a falta de preparo dos
professores e coordenadores para a diversidade dos alunos, as condições arquitetônicas desfavoráveis dos prédios, a inacessibilidade de laboratórios,
entre outros recintos dos campi.Convidei outros estudantes com deficiência da Universidade e, juntos,
articulamos, a partir de então, a montagem de um grupo a fim de fortalecermos
nossas reivindicações comuns, dando origem ao CONSCEG, Conselho de
Alunos Cegos e Amigos. Esse grupo teve papel fundamental na transformação
da Universidade São Marcos, a partir de 2004, em uma das instituições
superiores de ensino mais acessíveis de São Paulo, pois se constituiu em um
grupo organizado e reconhecido como parceiro pela Universidade para as discussões sobre os problemas que afetavam a inserção dos alunos com
deficiência.Um dos resultados mais importantes da ação do CONSCEG foi a produção de
um livreto nomeado Guia Legal – dicas e truques para professores. Tratava-se
de um livreto com informações sobre como minimizar os estranhamentos entre
professores e alunos com deficiência visual. Esclarecia as limitações e as
possibilidades mútuas, informava sobre as tecnologias, a respeito de
equipamentos e ajudas técnicas disponíveis para potencializar a funcionalidade
desses alunos, tudo escrito de maneira muito simples, clara e objetiva.
Naquela época, não tínhamos noção do conceito de audiodescrição, nem ao
menos sabíamos que essa técnica já era uma prática aplicada em outros
lugares do mundo como uma ferramenta efetiva para inclusão e acessibilidade
de pessoas com deficiência visual a determinados conteúdos audiovisuais. No
entanto, preocupava-nos sobremaneira a exclusão nos momentos de exibição
de filmes ilustrativos durante as aulas, fosse por parte de professores ou dos
outros colegas de sala nos momentos de apresentação de seus trabalhos.
Com o objetivo de enfrentar essa situação, recomendamos que cada professor
se encarregasse de promover a acessibilidade ao aluno com deficiência visual
nos momentos de exibição de algum material audiovisual. Para isso ele deveria
sentar-se ao lado do aluno e se oferecer para narrar, em voz baixa, as cenas,
descrevendo o contexto, as imagens, tentando dar uma noção global para um
melhor entendimento do enredo. Apresento, a seguir, um pequeno trecho do
Guia, no qual introduzimos alguns princípios da audiodescrição, mesmo sem
saber que estávamos fazendo isso:
(...)
-
- A substituição do videocassete por aparelho DVD é recomendável, pois facilita sua
utilização na opção de dublagem em português.
-
- Pode ser que o aluno dv já esteja bem adaptado aos colegas e estes prontamente se
ofereçam para a descrição do filme. Isto já resolve a situação. Um procedimento correto
por parte do professor é oferecer para o aluno a sua contribuição, fazendo uma narração
sucinta do filme, do que está acontecendo; um contexto geral da obra, os pontos de
maior interesse, sem a necessidade de traduzir todas as falas. Esta descrição pode ser
feita em tom baixo, no fundo da sala de aula, para que não atrapalhe o restante da
turma.. (...)
Foi gratificante saber da própria Professora Lívia Maria Villela de Mello Motta,
um dos maiores expoentes da audiodescrição no Brasil, que sua entrada nesse
universo teve, de alguma maneira, a influência do CONSCEG. Disse-nos ela
que uma de suas alunas do curso de inglês na Laramara, Jucilene Braga,
pediu-lhe para assistir, com ela, a um filme necessário para a elaboração de
um trabalho na faculdade, apontando para as dificuldades que enfrentava para
realizar tal tarefa sem a ajuda de colegas ou outras pessoas, e alertando para a
necessidade que tinha de saber o que estava se passando na tela no momento
da exibição de filmes ou trabalhos dos colegas. A Jucilene foi uma das
fundadoras do CONSCEG, uma participante ativa, que nos ajudava a
disseminar as idéias do grupo em qualquer lugar que estivessemos presentes,
sempre procurando explicitar essas necessidades diferenciadas de inclusão e
acessibilidade, oferecendo subsídios para que tudo acontecesse de maneira efetiva.
2.º Momento: A audiodescrição na televisão: cobrando com bom humor
Em 2005, estreou a novela "América", escrita por Gloria Perez e exibida em horário nobre pela Rede Globo de Televisão. A obra abordava a deficiência
visual em um de seus núcleos temáticos, com os atores Marcos Frota e Bruna
Marchesini, interpretando respectivamente, os personagens cegos Jatobá e
Flor. Para subsidiar a escritora sobre a realidade das pessoas com essa deficiência, sua pesquisadora, Giovana Manfredini, tentava contato com
pessoas cegas atrás de informações sobre o seu cotidiano.
Como as coisas na Internet voam, logo chegou aos meus ouvidos que existia
uma pesquisadora em busca de informações sobre o universo das pessoas
com deficiência visual. Assim, não tardei a tentar contato com ela, na verdade
com o objetivo primordial de mostrar à autora da novela as dificuldades de
acesso aos livros e a toda forma de leitura impressa pelas pessoas com
deficiência. Tinha esperança de que uma vitrine em horário nobre divulgasse
de forma maciça aquela exclusão vergonhosa e aviltante, mobilizando o debate
nacional em torno da questão.Qual não foi minha surpresa quando recebi o convite da Giovana para
participar de um fórum virtual na Internet criado por ela mesma –
deficientesvisuaisinamerica@yahoogrupos.com.br – que iria discutir a forma de
abordar a deficiência visual na novela. Conforme os debates aconteciam no
fórum, as polêmicas surgiam, a idéia da audiodescrição foi levantada de
maneira mais concreta e começou a tomar corpo.
Não era possível admitir uma novela que abordasse a temática da deficiência
visual sem levar em conta seus telespectadores com deficiência visual. Por
isso solicitávamos que a autora introduzisse o recurso da audiodescrição nas
cenas da novela. No entanto, jamais conseguimos que, ao menos, um capítulo
tivesse sido gravado com audiodescrição. Mesmo com todos os apelos e
reivindicações, paradoxalmente, a Rede Globo não promoveu a acessibilidade
para cegos em uma novela que justamente abordava a temática da cegueira.
Todavia, durante o tempo em que a novela e o fórum ficaram no ar, sugeri aos
outros participantes do CONSCEG, que mostrássemos à emissora quais os
efeitos danosos que uma cena sem audiodescrição poderia causar na
imaginação de alguém que não está enxergando a tela. Convidei a todos para
que escrevessem aquilo que haviam imaginado da cena na novela. Dei o nome
de "No mundo da imaginação" para essa proposta e partimos para a ação. O resultado não poderia ter sido mais grotesco e, ao mesmo tempo, divertido.
Dediquei-me, realmente, a assistir alguns capítulos com um gravador à mão e
sempre que se exibia uma cena na qual não existiam diálogos, apenas música
ou sons irreconhecíveis, eu anotava e depois tentava imaginar o que havia
acontecido naquele ponto. E como eu dizia ao grupo da Internet, tentava
preencher as lacunas com a minha imaginação fértil. Dessa maneira, foi
surgindo um verdadeiro besteirol virtual que acabou fazendo sucesso entre os
internautas participantes do fórum, e a coisa extrapolou os limites do grupo. A
Rede SACI publicava cada capítulo lançado e a novelinha paralela "No mundo
da imaginação" foi tomando proporções que não me permitiam mais parar, pois
diversas pessoas mandavam mensagens perguntando quando sairia o capítulo
seguinte.Apresento, abaixo, uma das cenas imaginadas, que vai perder um pouco a
graça pelo fato de ficar descolada da cena real da novela, mas já dá para se
perceber por onde foi que trafeguei nessa irônica e bem humorada forma de
protesto e reivindicação pela audiodescrição na televisão. Lembrando que eu
incluía, também, a imaginação dos comerciais exibidos nos intervalos da novela:
NOVELA AMÉRICA - CAPÍTULO DO DIA 21 DE JUNHO DE 2005
Cena 1:
Era a mãe da Flor, a Islene, e o namorado, o Feitosa, ele diz que vão visitar um jardim
sensorial.Começa a tocar uma música de velório.
Lacuna.
A Flor dá um gritinho de dor.
Lacuna.
Falam pra Flor a respeito de peixes.
Lacuna.
Continuam tocando música de velório e dá-lhe mais música de velório.
PREENCHENDO AS LACUNAS
Agora retirando a música melosa e choronomica, vamos ver se
consigo adivinhar. Posso imaginar que a Flor estivesse passando a mãozinha
sobre as diversas plantas que estavam por ali. Mas como tinha
aquela música de velório, acredito que deveria ter algum defunto
sendo velado por lá também, e por isso, a Flor dá aquele gritinho de
susto, porque passou a mãozinha por sobre a cara gelada do
presunto.Como o velório prosseguia, eles saíram de lá e foram para um mercado de
peixe onde o Feitosa comprou um quilo de sardinha para comerem
depois do passeio... fritas a milanesa com limão! Hummmmmmmmm.
Fiquei até com vontade de comer umas iscas de peixe na praia
grande! (praia grande!) Puts! Coisa de pobre mesmo!!
Tenho certeza que se fosse a Dona Giovanna ela iria comer camarão
em Copacabana! Isso sim é ser gente fina!! E a cena acaba! Ufa!
Gio! Pede pra Glória botar audiodescrição na novela do Jatobá!
Um dos lados interessantes dessas novelinhas é que elas fizeram sucesso
também em Brasília, dentro do Ministério das Comunicações, onde uma amiga,
Denise Granja, na época Assessora Jurídica do Ministério e atualmente
Presidente do CONADE, Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas
Portadoras de Deficiência, recebia e redistribuía os capítulos aos colegas do
Ministério. Certa vez me confidenciou que, recebendo em audiência os
dirigentes da Rede Globo de Televisão, procurou demonstrar-lhes a
importância da audiodescrição. Tendo esgotado sua capacidade para explicar
e percebendo que ainda estava difícil para o grupo compreender a finalidade
do recurso, chamou-os até a sua sala e mostrou-lhes alguns capítulos da
novelinha. Segundo ela, o resultado foi uma sucessão de gargalhadas e, por
fim, a constatação do grupo: se era daquele jeito que as pessoas com
deficiência visual entendiam as coisas, então estava bem complicado e algo
deveria ser feito.
3.º Momento: A audiodescrição e o apoio do Governo do Estado de São Paulo
Em Março de 2008, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos das
Pessoas com Deficiência, dentro do Governo de São Paulo, mostrando
novamente a preocupação do Governador José Serra com esse segmento
social, uma vez que quando exerceu o cargo de Prefeito da Capital do Estado,
já havia criado a Secretaria Municipal das Pessoas com Deficiência e
Mobilidade Reduzida. Na ocasião fui convidado pela Secretária titular da pasta,
Dra. Linamara Rizzo Battistella, para integrar a equipe da Secretaria e levar
para lá as demandas reprimidas do segmento de pessoas com deficiência
visual. Os objetivo eram a construção e a implementação de políticas públicas
direcionadas a esse público em especial, assim como a garantia da
consolidação dos direitos das pessoas com deficiência de maneira geral em
todo o Estado de São Paulo.Obviamente que a necessidade da audiodescrição estava no pacote de
preocupações da Secretaria. No entanto, eram tantas as demandas do público
com deficiência, que acabamos tendo que priorizar determinadas urgências
que pipocavam aqui e ali, deixando outras, apesar de igualmente importantes, um pouco para depois em virtude da falta de condições técnicas e humanas
para cuidarmos de tudo ao mesmo tempo.
Todavia, a luta por direitos das pessoas com deficiência no Brasil assemelha-se
a um carrossel de emoções, pois ao mesmo tempo que damos um passo
para frente, surge algum movimento contrário nos obrigando a dar dois ou três
passos para trás. Assim, no final do ano de 2008, pegou-nos de surpresa a
notícia da publicação da Portaria 661/08, do Ministério das Comunicações, que,
em desconformidade com o Decreto 5296/04, suspendia o início da
implantação da audiodescrição nas televisões brasileiras. Novamente, o
segmento precisou se articular em torno daquela nova agressão aos seus
direitos à cidadania.Dentre outras, uma das alegações para a publicação da Portaria 661/08 foi que
no Brasil não existiam profissionais formados em número suficiente para
atenderem à demanda das televisões obrigadas a se adaptarem àquele
recurso de acessibilidade. Mesmo sendo essa alegação apenas uma cortina de
fumaça para ocultar os verdadeiros motivos para a publicação da Portaria e
que não cabe abordar aqui, prontamente a nossa Secretaria se colocou ao lado
das pessoas com deficiência na luta contra a violação de seus direitos,
inicialmente promovendo, em 2008, o 1.º Encontro Nacional de
Audiodescritores, realizado em São Paulo, no espaço da Pinacoteca do
Estado.Ademais, nesse meio tempo, a Secretaria já vinha mantendo contato com o
governo espanhol, agendando nossa visita com o objetivo de conhecer as
políticas públicas destinadas à acessibilidade, à reabilitação e inclusão,
adotadas naquele país. Tínhamos como metas inteirarmo-nos da legislação
espanhola em relação às pessoas com deficiência, obtermos conhecimento de
novas ajudas técnicas disponíveis e estabelecermos contatos para atividades
de cooperação técnica em áreas de interesse mútuo.
O roteiro dessa viagem precisou sofrer alteração de última hora ao ser
inserido, como instituição de visitação obrigatória, o CESYA, CENTRO
ESPAÑOL DE SUBTITULADO Y AUTODESCRIPCIÓN, vinculado à Universidade Carlos III, objetivando conhecer as atividades do centro,
estabelecer contatos para atividades de cooperação técnica no campo da
audiodescrição, bem como na capacitação e definição de competências de um
audiodescritor. Durante a visita soubemos que o CESYA estabeleceu um
convênio com a Academia de las Artes y las Ciencias Cinematograficas de
Espanha, auxiliado pela legislação, que determina que as salas de cinema
estejam preparadas para receber filmes acessíveis.
Nesse sentido, uma experiência realmente marcante que vivemos na Espanha,
ao conhecermos o trabalho do CESYA, foi ter tido o privilégio de podermos assistir à exibição do filme "Quem quer ser um milionário", ganhador de sete
Oscars em Hollywood em 2009, que acabara de ser lançado em circuito comercial na cidade de Madrid, totalmente acessível para pessoas com
deficiência visual e auditiva. Fomos convidados de honra do CESYA para a
exibição, que ocorreu em um cinema central da cidade, em uma sessão
também aberta ao público sem deficiência, ou seja, uma sessão de cinema
realmente inclusiva.Foi extremamente gratificante estar naquela sala de cinema junto com tantas
outras pessoas com e sem deficiência, todas assistindo ao mesmo filme e no
mesmo momento, cada uma tendo sua especificidade atendida e podendo
desfrutar do prazer e da emoção daquele entretenimento. Confesso que mesmo com a barreira do idioma, dublado e audiodescrito em espanhol, consegui ter uma compreensão ampla da trama podendo discuti-la com meu colega de Secretaria que não
possuí deficiência visual.
4.º Momento: A Audiodescrição e a busca pela profissionalização
Como discutido, a audiodescrição não chegou a ser implantada no Brasil com o forte argumento de falta de profissionais qualificados para exercerem essa profissão. Objetivando, pois, eliminar qualquer tipo de barreira, a
Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência de São Paulo deu início, em 2009, a um projeto que visa à criação de Curso de Especialização Lato Sensu,
dentro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Dessa
forma, pode se tornar realidade a formação de profissionais qualificados e
preparados para exercerem a profissão de audiodescritor com a qualidade que essa ferramenta necessita.
Para a concretização do projeto, fui encarregado de montar um grupo que
reunisse especialistas de diversas áreas do conhecimento humano,
acadêmicos, artistas, intelectuais, representantes de instituições para pessoas
com deficiência visual, entre outros. Tal grupo terá como função criar as condições necessárias para que o curso seja efetivamente implantado,
reconhecido, de modo a qualificar o maior número possível de pessoas que
irão, efetivamente, exercer essa profissão tão importante para a garantia de
inclusão e acessibilidade às pessoas com deficiência.
Este grupo vem se reunindo periodicamente e já temos praticamente uma
grade curricular montada, com um espaço dentro da USP para a montagem de
um estúdio com todo o equipamento necessário para o desenvolvimento das
disciplinas. Caminhamos, assim, com muita motivação e empenho para
alcançarmos nossa meta e construirmos um curso que certamente vai se tornar
uma referência para todo o Brasil.
Em suma, esses foram alguns dos momentos nos quais atuei, direta ou
indiretamente, para que a audiodescrição fosse mais difundida e compreendida
pela sociedade brasileira. Mantenho um site na Internet – www.livroacessivel.org – em que conto um pouco de cada uma das lutas que
encampo, reivindicando uma sociedade mais justa e igualitária: a luta pelo livro
acessível, pela Universidade acessível e pela televisão acessível, esta última diretamente relacionada com o recurso da audiodescrição. Espero que o visitem e que nos ajudem a realizar esse sonho.
Referências
ϟ
Panorama
O Festival "Assim Vivemos" – Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência é um
festival de cinema temático que exibe filmes que apresentam questões relativas às
deficiências de um modo geral. Trata-se do primeiro festival de cinema no Brasil a
reunir e apresentar ao público um panorama atualizado e completo do que se produz
no mundo sobre este tema. Por ser um festival internacional, os filmes são estrangeiros em sua maioria, falados nas mais diversas línguas.
Desde a sua primeira edição em 2003, um dos pressupostos do "Assim Vivemos" foi o de
disponibilizar os recursos de acessibilidade em todas as sessões. Não parecia lógico aos
realizadores, Lara Pozzobon e Gustavo Acioli, exibir filmes sobre deficiências sem que
todas as pessoas, independentemente de suas necessidades, tivessem acesso às
sessões. Os recursos que foram disponibilizados foram a audiodescrição para pessoas
com deficiência visual, as legendas com indicações de ruídos (Closed Caption) para as
pessoas com deficiência auditiva, intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) em
todos os debates e palestras, e ambiente acessível para cadeirantes e pessoas com
mobilidade reduzida.
O fato de o festival ser internacional, com filmes falados em diversas línguas, trouxe
um dado de complexidade para a produção da acessibilidade para as pessoas cegas:
como essas pessoas não estão aptas a lerem as legendas, as quais contêm as
traduções dos diálogos dos filmes, tais informações também deveriam estar contidas
no contexto sonoro da audiodescrição. Ou seja, no caso dos filmes estrangeiros do
Festival, a audiodescrição tradicional – contendo apenas a descrição das cenas e sendo inserida nos espaços entre as falas dos personagens – não era suficiente, pois esta atende a produtos nacionais ou previamente dublados em português.
Para o pleno entendimento dos filmes estrangeiros por parte das pessoas cegas, fazia-se necessário incluir as falas dos personagens, traduzidas para o português, junto com as informações contendo as descrições.
A opção de realizar uma dublagem tradicional foi descartada por alguns motivos. Em
primeiro lugar, a logística de recebimento dos filmes em um festival de cinema
internacional é naturalmente complexa, o que faz com que não haja tempo hábil,
impossibilitando a antecedência necessária para a produção da dublagem tradicional.
Em segundo lugar, no caso do "Assim Vivemos", todos os filmes são exibidos com os
recursos de acessibilidade, o que significa um volume de aproximadamente 32 filmes,
entre curtas e longas, em cada edição do festival. O terceiro e principal motivo é que a
dublagem tradicional suprime completamente a voz original do personagem, ficando a
voz do dublador sobreposta à voz original. Desta forma, perde-se parte importante dos
significados da obra.
Os filmes apresentados no Festival "Assim Vivemos" são, na sua maioria, documentários
que retratam a vida de pessoas com deficiência e todas as questões que as envolvem. Nesse caso, percebemos que a voz original dos personagens, que muitas vezes contam
suas próprias histórias, traz em si aspectos e informações importantes. A forma de
falar, o ritmo e a entonação com que contam suas histórias pessoais revelam nuances
de personalidades e sentimentos. Outro fator importante é que, no caso
principalmente de documentários, a língua original, assim como o ambiente onde
vivem os retratados, os objetos que utilizam e a maneira como se relacionam,
contextualizam a história e nos ajudam a compreender melhor suas realidades.
Portanto, para deixar a voz original dos personagens presente, a solução encontrada
foi realizar o voice over dos diálogos, falas ou narrações, recurso já utilizado em canais
de televisão sempre que se faz necessária a tradução simultânea em produtos
estrangeiros não dublados.O recurso do voice over consiste na sobreposição da voz do ator/narrador à voz
original do personagem, fazendo com que o espectador ouça tanto o som original
quanto a tradução. Normalmente, a tradução fica em primeiro plano e a voz original ao
fundo.Desta forma, no caso do Festival "Assim Vivemos", consideramos audiodescrição a
junção da descrição das cenas com o voice over. Os atores audiodescritores realizam
tanto a descrição das cenas quanto o voice over de todas as falas e diálogos. Esse
trabalho é feito ao vivo e transmitido via fones de ouvido para cada usuário. A
audiodescrição é recebida pelos fones enquanto o universo sonoro original do filme é transmitido pelo sistema de som da sala. Assim, o usuário tem autonomia para regular
o volume do conteúdo acessível, o que não ocorreria caso o som do filme também
fosse transmitido para os fones. Com tal estrutura, a sessão transcorre normalmente,
sem nenhuma interferência para o público em geral, ou seja, temos uma sessão
inclusiva, em que pessoas com e sem deficiência visual podem assistir ao mesmo filme
sem qualquer tipo de interferência.
Produção da audiodescrição e voice over
O roteiro de audiodescrição para os filmes do Festival "Assim Vivemos" é feito a partir da
lista de diálogos do filme, previamente traduzida para o português. Normalmente, essa
tradução é feita para a legendagem e é essa mesma tradução que o audiodescritor
roteirista utiliza. A descrição das cenas obedece às mesmas regras da inserção da
audiodescrição em produtos nacionais ou dublados, ou seja, entra nos espaços entre
as falas dos personagens, nos silêncios, nas pausas e em alguns momentos sobre a trilha sonora musical. As falas e os ruídos importantes devem ser preservados. A
diferença desse roteiro para o roteiro de um produto nacional é que ele irá conter
também todas as falas dos personagens. Desta forma, o roteiro final consiste nas
descrições inseridas entre as falas dos personagens.
Exemplos de roteiros:
1 - Filme nacional:
As falas da personagem estão no roteiro apenas como referência e não precisam estar necessariamente completas. Neste caso, o ator audiodescritor lê apenas a audiodescrição e utiliza-se das falas apenas
para localizar suas entradas e saídas.
2 - Trecho do roteiro de audiodescrição para o filme "Incuráveis", de Gustavo Acioli:
AD: Através de uma antiga porta de madeira entreaberta, aparece um quarto
simples iluminado por um abajur. A mulher se ajeita olhando-se em um
espelho.Mulher: Não repara a bagunça, ta?
AD: Ela apanha uma roupa no chão.
Mulher: Fica à vontade.
(barulho da porta)
AD: Ela fecha a porta. O homem de pé observa através da janela. O ambiente
é banhado por uma luz azulada.Mulher: Eu podia botar uma música pra gente.
AD: Ela caminha em direção ao banheiro.
Mulher: Mas o vizinho...já veio aqui reclamar uma vez.
AD: Levanta o vestido e senta no vaso sanitário.
3 - Filme Estrangeiro:
Neste caso, as falas dos personagens precisam estar completas e identificadas, pois também serão lidas pelos atores audiodescritores.
Trecho do roteiro de audiodescrição e voice over para o filme "Los Olvidados" de Luis Buñuel.
AD: Um grupo de jovens de diferentes idades faz uma brincadeira em um
terreno urbano desocupado entre prédios. Ao fundo um prédio em ruínas. Em primeiro plano um muro de pedras e madeira improvisado. Eles brincam
de tourada. Um garoto está montado nas costas de outro e outro faz de
conta que é o touro. Ele corre com a cabeça baixa em direção a um garoto
que sacode uma camisa. Um rapaz bebe em uma caneca enquanto outro diz:
Rapaz 2- Não se esqueça dos outros!
AD: O rapaz que bebia passa a caneca e pergunta:
Rapaz 1- Quem quer um cigarro?
AD: Todos se aproximam. Ele distribui os cigarros. Um garotinho observa
montado em cima de um poste. O rapaz oferece cigarros a ele e pergunta:
Rapaz 1- Você fuma?
AD: E o garotinho responde:
Garotinho- Não, me faz tossir.
AD: Oferece para outro que responde:
Garoto- Não gosto.
AD: O rapaz diz:
Rapaz 1- Tão grande e tão bobo. Maricas!
AD: O garoto diz:
Garoto- Eu preciso ir trabalhar.
AD: E um menino:
Menino- Só tolos trabalham.
AD: O garoto diz:
Garoto- Pena, vejo vocês depois.
voice over
Depois de o roteiro estar pronto, contendo a audiodescrição e todas as falas dos
personagens, inicia-se o período de ensaios. Diferente da audiodescrição feita em
produtos nacionais ou dublados em português, em que apenas uma voz é necessária,
na audiodescrição com voice over são necessárias, no mínimo, duas vozes.
No Festival "Assim Vivemos", utilizam-se duas vozes, uma masculina e outra feminina. Em um primeiro momento, os atores assistem e estudam a obra, em seguida dividem
os personagens. Normalmente, o ator audiodescritor fica responsável pelos
personagens masculinos e a atriz audiodescritora pelos femininos. Porém, cada
situação deve ser avaliada e analisada particularmente e não é incomum, por exemplo, se há diálogos frequentes entre duas mulheres ao longo do filme, que se decida que a
voz masculina faça uma das mulheres e a feminina, a outra. Esse recurso facilita a
diferenciação entre os personagens. Em um segundo momento, decide-se quem fará a
audiodescrição; normalmente opta-se pela voz feminina quando o volume de
personagens masculinos é maior e vice e versa.
Para que o resultado fique satisfatório, o passo seguinte é a realização de ensaios. Um
diretor coordena os ensaios e orienta os atores em relação a entonação, volume, ritmo
e intenção. Preferencialmente, atores profissionais realizam esse trabalho, pois estes
se utilizam de técnicas vocais e expertises da formação de ator. Estão treinados para
mudar o tom de voz e o ritmo de fala em questão de segundos. Além disso,
conseguem ter uma percepção geral da cena e, portanto, realizam sua intervenção de
maneira que a presença do audiodescritor fique o mais integrada possível à obra
original.
O ator audiodescritor não “imita” exatamente o tom e o ritmo da fala do personagem,
mas se aproxima do modo de falar do personagem, de modo que fique clara a
associação. Como a fala original do personagem está audível ao fundo, não é
necessário que o audiodescritor grite, por exemplo, quando o personagem está
dizendo algo gritando, mas sim que imprima na voz a mesma intensidade e força do grito. Se o audiodescritor está fazendo voice over de uma voz infantil, não é necessário
que ele imite completamente, apenas que ele aproxime sua voz da voz infantil. Desta
forma, quando o audiodescritor está fazendo voice over, usa seu conhecimento de
atuação para “entrar e sair” dos personagens, anulando a sua personalidade e maneira
de falar própria para dar lugar às formas de expressão vocal dos personagens.
O voice over exige consciência vocal plena, rapidez e capacidade de variação de vozes,
ritmos e volumes, além de rapidez na orquestração dessas capacidades, já que muitas
vezes o ritmo dos diálogos é rápido. A entonação deve ser discreta, pois nunca se
pode perder de vista que o “ator principal” é a voz original do personagem no filme. O voice over, neste caso, funciona como um suporte de compreensão. A entonação
semelhante à do personagem original funciona para que o resultado sonoro como um
todo fique harmônico, caso contrário o resultado causará distanciamento e
desconforto. Outra competência importante para o ator audiodescritor que realiza o voice over em filmes estrangeiros é a familiaridade com línguas estrangeiras, pois
muitas vezes os personagens citam nomes próprios, lugares ou expressões que permanecem na língua original; além disso, o conhecimento da língua ajuda o
audiodescritor a perceber profundamente a cadência da fala de cada personagem,
saber em qual palavra ou expressão o personagem está dando ênfase ou se está
sendo irônico, para depois reproduzi-la.
Outra competência importante para o ator audiodescritor é perceber a dinâmica sonora
do filme. Por isso, deve conhecer a obra previamente. Sabendo em que momentos do
filme deve falar mais baixo ou mais alto, produzirá um resultado agradável e orgânico
aos ouvidos. Em uma cena de briga, por exemplo, a audiodescrição pode fica mais
intensa, enquanto que em um momento mais silencioso deve ser feita de maneira mais
sutil.
A audiodescrição funciona como um complemento que levará ao usuário as informações que estão contidas nas imagens (descrições) e nas falas (voice over). Este
recurso é um complemento e não deve nunca competir com o filme; os personagens
principais são os personagens originais e suas histórias. O audiodescritor, portanto,
deve ser discreto quando está fazendo a descrição assim como quando está fazendo o voice over. O tom de voz da audiodescrição deve ser neutro, discreto e agradável. No
caso do voice over, o tom deve ser um pouco mais carregado de intenções; porém
como explicado anteriormente, este deve acompanhar o tom de voz original e não se
transformar no personagem. Esta é uma diferença sutil que modifica o resultado final,
tornando o conjunto de informações sonoras organizado, de modo que cada
informação tenha seu momento para ser revelado.
No Festival "Assim Vivemos", a dupla de atores audiodescritores realiza a audiodescrição
ao vivo, ou seja, simultaneamente à exibição do filme. Os atores audiodescritores
ficam em uma cabine com isolamento acústico, montada dentro da sala de cinema ou
dentro da cabine de projeção. É importante que os atores tenham boa visibilidade da
tela. Se isso não for possível por questões da arquitetura da sala, um monitor em
sincronismo com a imagem da tela do cinema deve ser montado dentro da cabine,
para que os atores acompanhem o filme simultaneamente aos espectadores na sala.
Através de fones de ouvido, os atores audiodescritores recebem o som do filme e
através de microfones individuais, suas vozes são captadas e transmitidas para os
fones de ouvido dos usuários. Os usuários da audiodescrição recebem fones de ouvido
individuais e um receptor, pelo qual podem regular o volume da transmissão.
Programa "Assim Vivemos"
Em 2009, o Festival "Assim Vivemos" tornou-se também um programa de televisão
chamado Programa "Assim Vivemos", exibido nacionalmente na TV Brasil. Para o
Programa "Assim Vivemos", foram selecionados os filmes de curta-metragem exibidos ao
longo das edições do festival, na sua maioria filmes estrangeiros. Assim como no
Festival, os recursos de acessibilidade eram pressupostos do programa. Começou-se a
pensar, então, nas questões técnicas que envolviam a transmissão da audiodescrição
na televisão, já que os recursos para as pessoas com deficiência auditiva, que são a
janela com a tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais e as legendas com
indicações de ruídos, já estavam tecnicamente estabelecidos. Nos países em que a
audiodescrição já está sendo veiculada em canais de televisão, a transmissão se dá
através da tecnologia SAP (Second Audio Program), disponibilizada pela tecla
secundária de áudio, encontrada na maioria dos televisores. Os usuários, então,
podem optar por assistir ao programa com audiodescrição, da mesma forma que se
pode optar por assistir a um filme com o som original em alguns canais no Brasil.
Na ocasião do início da exibição do Programa "Assim Vivemos", a TV Brasil não dispunha
da tecnologia de transmissão SAP em todo o território nacional. Por essa razão, optou-se
pela transmissão aberta da audiodescrição, audível a todos. Mesmo sabendo que a
audiodescrição não é indicada para os videntes, por gerar informações redundantes,
ou seja, a descrição do que está sendo visto, decidiu-se pela transmissão aberta
porque esta seria a única opção. Além disso, por se tratar de uma novidade no Brasil, daria a oportunidade para que todos os brasileiros conhecessem e se familiarizassem
com esse recurso.
Tínhamos, então, o desafio de realizar as gravações da audiodescrição e voice over dos
curtas-metragens. Depois de preparar e revisar os roteiros, a equipe de audiodescrição
foi para um estúdio de gravação profissional. Ao contrário do Festival "Assim Vivemos",
cuja logística da produção e o espaço físico disponível permitem apenas uma dupla de
atores audiodescritores, a gravação em estúdio permite que mais vozes sejam
inseridas em um único filme. Em estúdio não existe a obrigação de se gravar tudo ao vivo: pode-se gravar e regravar cada passagem até que o resultado fique satisfatório.
Normalmente, grava-se uma voz por vez, o que possibilita que as vozes sejam
gravadas em momentos diferentes e que a interação e a dinâmica entre a
audiodescrição e o voice over sejam manipuladas depois da gravação. Deste modo, a distribuição dos personagens entre os atores pode ser feita de forma menos rígida,
comportando quantas vozes forem necessárias, dependendo do número de
personagens de cada filme. Ainda assim, os atores costumam desempenhar mais de
um personagem por filme, sem prejuízo da qualidade do resultado final, visto que o
ator domina técnicas para variar a voz e diferenciar personagens.
Seguindo a experiência do Festival, no Programa "Assim Vivemos" optou-se pelo voice
over sobreposto à voz original dos personagens nos filmes de língua estrangeira. Nosso
desafio foi o ajuste dos volumes para que o universo sonoro original dos filmes ficasse
presente, mas sem “brigar” com o som gravado contendo a audiodescrição e o voice
over. Para tal, optamos por baixar o volume do som original nos momentos em que
entra a audiodescrição ou voice over e retornar ao nível normal quando não está
acontecendo audiodescrição ou voice over. Dessa forma, este trabalho de mixagem
que ocorre após a gravação do conjunto de informações sonoras, representa um
estágio fundamental para a realização da audiodescrição com qualidade. Seja em
produtos estrangeiros ou nacionais, a audiodescrição simplesmente “colada” ao som
original do produto resulta em um universo sonoro não harmônico, onde os dois sons
competem entre si, tornando o todo incompreensível e cansativo. O ajuste de volumes
é um trabalho que exige sensibilidade e conhecimento das necessidades do usuário da
audiodescrição. Assim, o universo sonoro contendo o som original do filme mixado ao
novo som criado, que contém audiodescrição e voice over, resulta em um todo
agradável aos ouvidos.
Considerações Finais
A tecnologia e o conhecimento devem estar a favor da melhor forma de inserir a
audiodescrição e o voice over em produtos de língua estrangeira, lembrando sempre,
que o objetivo principal é fornecer informação enquanto o conteúdo sonoro original é
preservado na sua essência. A audiodescrição com voice over disponibiliza um
ferramental completo para a acessibilidade de pessoas com deficiência visual para
qualquer produto audiovisual estrangeiro, visto que este recurso rompe a barreira da
língua. Trata-se de um recurso sem precedentes, que põe à disposição do usuário a
possibilidade de adquirir conhecimento e entretenimento com as mais variadas
produções audiovisuais.
ϟ
A concepção do projeto
O Blind Tube foi concebido em uma reunião em que pensávamos em
alternativas para a expansão dos nossos projetos relacionados com o Festival
"Assim Vivemos", Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência, em conexão
com as iniciativas da Educs [produtora Web especializada em educação à distância e desenvolvimento web] na internet. Na ocasião, Graciela Pozzobon,
Pedro Marinho, da Educs, e eu chegamos à ideia de um site específico para a
exibição de filmes com acessibilidade. Iniciamos uma pesquisa na internet, cujo
resultado foi a constatação de que o nosso site seria o primeiro desse tipo.
Posteriormente, pesquisas mais aprofundadas em sites em língua inglesa,
espanhola, francesa e italiana, assim como consultas a pessoas ligadas à
acessibilidade no Brasil, Espanha, Alemanha, Austrália e Inglaterra, deram
conta de que estávamos realmente criando um projeto inédito no mundo. Longe de provocar nossa vaidade, a constatação do ineditismo nos trouxe
ainda mais o sentido de responsabilidade pela criação de um bom exemplo.
Exemplo da possibilidade relativamente simples de proporcionar a pessoas
com deficiências sensoriais o acesso a filmes variados. A partir de então, a
equipe da Educs estudou as normas e as formas de acessibilidade na internet,
orientada por Marco Antônio de Queiroz um consultor que criou e atualmente coordena dois sites totalmente acessíveis e de grande visitação. Construímos o
Blind Tube quase ao mesmo tempo em que entrávamos em contato com as
noções básicas da acessibilidade, sempre aprendendo à medida que
trabalhávamos na sua construção. Constantemente, a nossa falta de
experiência tirou o site dos parâmetros ideais da acessibilidade, e todas as
vezes que recebíamos alertas de usuários, a equipe técnica se apressava para
entender e resolver as distorções.
Desde o início, tínhamos como pressuposto que o site deveria seguir as
normas que levavam ao desenho universal, isto é, ele deveria ser acessível ao
maior universo possível de pessoas, tanto para aquelas com deficiência visual,
baixa visão ou outros tipos de visão subnormal, quanto para pessoas surdas e
com deficiência auditiva. Mas não apenas para estes. Também tínhamos a
tarefa de deixar o site navegável por pessoas com mobilidade reduzida.
Assim, seguimos as normas de acessibilidade para que todos os usuários
pudessem navegar no ambiente do site, e, nos filmes, colocamos dois recursos
de acessibilidade: a audiodescrição (AD) e as legendas Closed Caption (CC).
Sabemos que o recurso da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) também é
necessário para uma boa parte dos surdos que não tem conhecimento ou
fluência na Língua Portuguesa, mas para colocá-lo precisaríamos investir uma
verba que estava além das nossas possibilidades. Esse será o próximo passo
do projeto: acrescentar uma janela de LIBRAS simultânea à exibição dos
filmes. A propósito, o programa "Assim Vivemos", da TV Brasil, também
produzido por nós, conta com os três sistemas, disponíveis simultaneamente: AD, CC e LIBRAS. Já no Blind Tube, a colocação de LIBRAS nos filmes, assim
como a expansão da capacidade virtualmente infinita do site, estão
condicionadas à obtenção de parcerias e patrocínio.
O conceito
Do ponto de vista da seleção dos filmes, nossa ideia é exibir um conjunto
variado, com estéticas, temas e abordagens diferentes, dando uma amostra do
que se produz no Brasil em curta-metragem. A opção por filmes curtos foi
pautada por quatro motivos: porque temos um grande apreço por esse formato, já que iniciamos nossa vida profissional produzindo curtas; porque temos
facilidade de acesso aos detentores dos direitos autorais dos filmes; porque os
curtas geralmente não têm um distribuidor comercial que possa impedir ou
discordar desse tipo de distribuição gratuita e, por fim, porque a banda virtual
necessária para a exibição de um filme curto na internet é menor que a banda
exigida por um longa-metragem.Ainda sobre a seleção dos filmes, é importante lembrar que nossa intenção ao
criar o Blind Tube é proporcionar diversão e lazer cultural com acessibilidade,
ou seja, a ideia é mostrar filmes que não tratem do tema da deficiência, e sim
de temas gerais. Essa opção parece ter confundido um pouco as pessoas em
um primeiro momento. Justamente porque entendemos que a acessibilidade
deva estar em espetáculos de todos os tipos, temas e estéticas, no teatro, na
dança, no cinema comercial, etc, é que criamos o Blind Tube. Por outro lado, já
acumulamos a experiência de dirigir o Festival "Assim Vivemos" desde 2003 e
neste, sim, o conceito primordial é justamente exibir filmes de qualidade sobre
o tema da deficiência, sempre com acessibilidade.
Com exceção de alguns trailers de filmes americanos, tudo o que encontramos
na internet com algum tipo de acessibilidade gira em torno do tema da
deficiência. Era disso que precisávamos nos distanciar, para mostrar com
maior clareza, para a sociedade, instituições e produtores, que é urgente a
ampliação do leque de opções culturais com acessibilidade. Tirar essa questão
de seu círculo fechado e separar o tema da deficiência da necessidade de
acessibilidade: esta é a tarefa a que nos propomos no projeto. Uma observação talvez se faça necessária neste momento: a presença do filme "Cão
Guia" no Blind Tube pode parecer contraditória, já que o filme trata de uma
personagem cega. O filme está lá por vários motivos: porque é uma ficção e
porque foi concebido e produzido como um filme sobre o amor, o poder e as dificuldades de relacionamento comuns a todas as pessoas, em primeiro lugar.
Em segundo, porque foi esse filme que nos levou, Graciela Pozzobon, Gustavo
Acioli [roteirista e diretor do filme Cão Guia e curador, junto com Lara Pozzobon, do Festival "Assim
Vivemos" e do programa "Assim Vivemos"] e eu, a entrar em contato com pessoas e instituições ligadas às
pessoas com deficiência. E por ele é que fomos levados a conhecer o festival
sobre deficiência de Munique, pioneiro no mundo, que inspirou diretamente o
Festival "Assim Vivemos". Por tudo isso, o filme é simbólico na nossa trajetória e, portanto, não poderia ficar de fora.
A audiodescrição
A AD feita para os filmes presentes no Blind Tube seguiu critérios e normas
estabelecidos pela equipe coordenada por Graciela Pozzobon, em sua
experiência acumulada ao longo da produção dos roteiros e da execução da
AD nas quatro edições do Festival "Assim Vivemos" e em outros projetos
especificamente com filmes brasileiros. Esses critérios e normas, inicialmente
intuídos e construídos a partir do diálogo intenso com as pessoas cegas que
compareceram às primeiras edições do festival, revelaram-se, mais recentemente, estar inteiramente em consonância com as normas
internacionais. Essa coincidência ficou clara quando começaram a surgir
publicações, sites e eventos internacionais sobre a AD.
Em 2003, quando começamos, não havia bibliografia disponível nem exemplos
divulgados no Brasil ou no exterior, a partir dos quais pudéssemos nos guiar. Mesmo no festival de Munique (Wie wir leben), do qual participei em 2001 e
2003, a transmissão feita para os fones não era propriamente o que
entendemos hoje por audiodescrição. Era apenas um voice over feito ao vivo,
por dois atores, em inglês ou em alemão, conforme a nacionalidade do filme.
Era útil tanto para os cegos quanto para os videntes estrangeiros, convidados
do festival, como nós. Da mesma forma, no festival francês Rétour d’Image,
também sobre deficiência, realizado em Paris em 2003, do qual participei como
convidada, apresentando nosso filme Cão Guia, a AD não estava disponível em todas as sessões, embora houvesse outras acessibilidades sofisticadas,
como as legendas CC usadas nos filmes, feitas com um posicionamento
especial para cada personagem.Uma norma fundamental da AD, embora subliminar, é a relativização da maior
parte de suas normas. Por exemplo: quando dizemos que a descrição das
cenas nunca pode se sobrepor aos diálogos e aos ruídos importantes do filme,
estamos enunciando uma norma válida e correta. Porém, há casos em filmes em que uma cena longa ou mesmo uma sequência inteira é completamente
ocupada por diálogos e ruídos importantes. Nessas situações, provavelmente
será necessário informar na AD o contexto ou algum detalhe da imagem, e,
portanto, é preciso avaliar qual é o diálogo ou ruído menos crucial na cena, e cobri-lo com uma rápida e sucinta descrição. Claro que isso acontecerá apenas
quando considerarmos que tal descrição é absolutamente imprescindível. E,
felizmente, essa situação não é muito comum. Tendo consciência disso,
entende-se que a criação do roteiro de AD exige antes de tudo uma constante negociação de prioridades.
Ao lado de todas as características básicas de clareza e síntese do texto,
compreensão do conteúdo do filme e consciência de sua forma narrativa, é
fundamental observar que no texto da AD não se pode interpretar nem julgar
nada, apenas descrever objetivamente aquilo que está na imagem. Todos sabemos que a objetividade, mesmo na imprensa, é sempre relativa, por mais
que se busque, um pouco mais ou um pouco menos conscientemente, alcançá-la.
Na AD, a objetividade de cada audiodescritor certamente irá variar, e
também será fortemente variável a avaliação daquilo que é necessário
descrever. As infinitas possibilidades de “como” e com que palavras descrever
a imagem completam a complexa condição que levará sempre à pluralidade de
estilos e formas de AD, por mais que um mesmo conjunto de regras seja
respeitado por todos os audiodescritores.
Não há uma tradução de um poema igual à outra, aproximadamente pelos
mesmos motivos. São muitas as ênfases possíveis e inúmeras as negociações,
que, por sua vez, são de várias naturezas. É fascinante ler várias traduções
diferentes de poemas clássicos. Em cada uma, haverá o esforço de transpor,
da melhor maneira possível, o entendimento que aquele tradutor tem da obra
original. Esse entendimento já é o primeiro filtro, que irá diferenciar cada um
dos tradutores. Diversos outros filtros serão inevitavelmente acionados ao
longo da tarefa.Diz o precioso ditado italiano: ”Traduttore, traditore” (Tradutor, traidor.). Está
próximo dessa condição o audiodescritor: em sua tarefa, também é necessário
transpor, traduzir as imagens em palavras, mas a equivalência total é
literalmente impossível. Mais que isso, a consciência da delicadeza e da
complexidade da tarefa é fundamental para alcançar uma postura
despretensiosa em relação à sua própria missão. Como tradução
intersemiótica, isto é, tradução entre elementos de natureza diferente, imagem e linguagem verbal, a AD se insere nesse universo mapeado e bastante
estudado da tradução propriamente dita.
No entanto, não se pense que tamanha complexidade e pluralidade de
possibilidades resultam em uma ausência de normas ou na impossibilidade de
determiná-las. Pelo contrário, é fácil detectar o que se pode chamar de erro ou
o que se pode considerar uma inadequação na AD. Entretanto, a avaliação de
um trabalho de AD deve levar em conta a obra que está sendo audiodescrita.
Muitos supostos erros, apontados apressadamente, serão nada mais que a
obediência ao estilo, ao conceito ou à dicção do filme. Por exemplo, se o filme
não deixa claro na imagem um determinado detalhe, a AD não tem o direito de
acrescentar essa informação que não está presente. Isso seria uma deturpação
do sentido da cena, por incompreensão da obra e do caráter ambíguo e
polissêmico que é próprio da arte. A AD não tem, pois, o direito de explicar o
que não está claro no filme. O usuário de AD deve entender o filme e ao
mesmo tempo ficar com as mesmas dúvidas que os videntes ficaram, considerando a dubiedade e a multiplicidade de sentidos presentes nas obras
de arte.Um detalhe importante a ser observado na produção da AD é o uso que cada
filme faz dos silêncios. Há que se respeitar o ritmo do filme, deixando o
espectador que usa o recurso da AD compreender a respiração dos silêncios,
tanto quanto o espectador vidente. É claro que os silêncios são geralmente ricos em imagens, o que torna irresistível o uso desse tempo para descrições.
Mas eventualmente a cena é contemplativa, sem uma saturação de imagens, e
isso deve ser entendido e respeitado no roteiro da AD. Nesse caso, o silêncio
também será eloquente para o usuário da AD, constituindo um elemento
narrativo importante. Também a quantidade de detalhes a serem descritos é sempre algo a ser dosado de acordo com a duração das pausas e também
com o bom senso. É inevitável que alguns espectadores queiram mais detalhes
e outros prefiram uma descrição mais econômica. Por isso, há que se
encontrar um equilíbrio entre todas as exigências e necessidades da obra,
assim como um meio-termo em relação à quantidade de informações. Na maior
parte das vezes, a qualidade da descrição resolve o problema da quantidade. Por isso, a precisão vocabular e a concisão textual são fundamentais na AD.
Outro elemento importante a ser estudado é a simultaneidade das imagens
com sua descrição. Na medida do possível, as informações devem ser
veiculadas simultaneamente; porém, mais uma vez é preciso relativizar a regra.
Há muitos casos em que a descrição da cena só pode ser feita um pouco antes
ou um pouco depois do desenrolar da cena, justamente porque nela há um
diálogo. Se essa falta de simultaneidade não compromete a compreensão do
filme, nem antecipa alguma surpresa importante da cena (caso em que a antecipação seria inaceitável) é melhor colocar a AD fora da hora exata do que
não utilizá-la. No entanto, é evidente que se há forma de encaixar a descrição
exatamente junto com sua imagem, não há razão para não o fazer.
É conveniente que o audiodescritor conheça a linguagem cinematográfica, para
saber avaliar quando um procedimento formal do filme será importante para a
compreensão da narrativa. Pode – ou não – ser determinante para o
entendimento de uma cena o fato de que a câmera está em determinada
posição. Isso deve ser ressaltado, se realmente for importante para a narrativa. Uma regra da AD que raramente precisará ser relativizada é a de não
apresentar o personagem antes que o filme o faça. Assim, se aparece no início
do filme uma mulher que não temos como identificar, nem sabemos seu
parentesco com os outros personagens, não podemos definir algo que só mais
adiante se revelará. Apenas no momento em que o filme revelar sua
identidade, seu nome ou sua relação com os outros personagens é que a AD terá o direito de fazê-lo. Antes disso, será preciso descrevê-la usando alguma
de suas características ou apenas como “uma mulher”. Caberá ao
audiodescritor encontrar a designação mais adequada: menina, moça, jovem,
mulher, senhora, etc. Relativizações dessa regra talvez possam ser admitidas
em séries de TV, seriados ou telenovelas, nos quais os personagens se
repetem e são previamente conhecidos pelos espectadores.
Outro aspecto do trabalho que exige grande sutileza do audiodescritor, dessa
vez, especificamente daquele que coloca a voz na AD, é o que se refere à
neutralidade da voz e sua relação com o tom a ser utilizado. Cada filme, ou,
mais precisamente, cada cena de um filme, tem um ritmo específico, uma atmosfera que contém um complexo de sentidos e emoções. Esse ritmo e essa
atmosfera devem ser rigorosamente respeitados e acompanhados pelo tom da
AD. Ela deve ser sempre neutra, não se sobrepondo ao filme nem jamais
competindo com ele, mas tal neutralidade não pode ser confundida com uma
fala robótica, sem intenção ou sem pontuação.
Se a AD tiver a entonação de uma típica gravação de números isolados, em
que não há relação de entonação entre eles, não haverá modo de o espectador
aderir à emoção do filme. Nesse caso de equívoco crasso, a AD, pretendendo
neutralidade, acabará por chamar mais a atenção por sua artificialidade. Por
outro lado, é importante lembrar que não é a AD que produz a emoção do filme, mas sim o próprio filme, com suas características originais, sua trama,
diálogos, música e ruídos.O ponto de equilíbrio da cadência e do tom da voz da AD sem dúvida é
delicado, e sua busca deve ser pautada pela exigência de neutralidade, porém,
necessariamente imbuída da atmosfera da cena. Dessa forma, a AD pode ser
neutra e, ao mesmo tempo, conter alegria, ironia, ou ainda tristeza, ou mesmo medo, mas sempre com tamanha sutileza que ela se integre ao filme sem ser
percebida.Talvez essa seja uma forma de enunciar a meta maior da AD: mesmo sendo
imprescindível, ter uma forma tão natural e integrada à obra, que se torne
quase imperceptível. Não falo da invisibilidade do audiodescritor, de sua tarefa,
ou dessa tecnologia assistiva, falo comparativamente da perfeição de uma tradução que se parece com um texto original, ou seja, que faz esquecer que
houve uma transposição entre línguas e um violento jogo de negociação de
prioridades. Falo de um filme assistido com o recurso da AD, que parece ter
sido realmente visto pelo espectador cego, quando sua experiência foi a de recriar em seu imaginário todas as imagens descritas. A AD deve ser
imperceptível em sua concretude, para que aquilo que ela cria, a imagem
verbalizada para ser imaginada, isto sim, seja percebido como o complemento
perfeito do filme.
As perspectivas do Blind Tube
Com seu conceito basilar de integração e acessibilidade para todos, a vocação
natural do Blind Tube é a internacionalização. Assim ele foi pensado desde o
primeiro momento e assim faremos quando obtivermos o apoio necessário para
implementar as novas áreas em língua estrangeira, inicialmente inglês e
espanhol.Para tanto, aproveitando nossa experiência na produção de AD intercalada
com voice over em filmes estrangeiros, faremos as seguintes expansões na
exibição dos filmes: nos filmes brasileiros, colocaremos AD e CC em língua
inglesa e espanhola, para que o público desses idiomas possa assistir aos
nossos filmes. E, para atender aos interesses do nosso público brasileiro,
convidaremos filmes de língua inglesa para constar no site, e neles
colocaremos AD e CC em português (e também em espanhol e em sua própria língua original), e assim por diante com os filmes em língua espanhola,
cruzando todas as combinações.Dessa forma, o entretenimento proporcionado pela exibição de filmes será
enriquecido pelos acervos de outras nacionalidades, o que sem dúvida será
fonte de uma ampliação de horizontes e de quebra de barreiras para todos,
tanto as da acessibilidade quanto as culturais.
ϟ
Minha incursão ao trabalho desenvolvido com cinema e filosofia na
audiodescrição de filmes deu-se por meio do curso de filosofia, na Unicamp,
em 1999, quando estudei a Carta sobre os Cegos, escrita no século XVIII
pelo filósofo francês Denis Diderot. Com Voltaire e Rousseau, Diderot foi uma das figuras seminais do Século das Luzes e da fermentação
cultural que levou à Revolução Francesa. Sua obra e suas ideias, não menos que as do autor de Candide
ou do Contrato Social, encontram-se na base não só do movimento do Racionalismo francês ilustrado,
como do processo de toda a modernidade filosófica, política, científica, literária e artística.
A "Carta sobre os Cegos" impressionou-me e
me encantou de tal maneira que, nos 10 anos seguintes, meu trabalho e
estudos versariam sobre questões referentes à maneira pela qual o homem
constrói seu conhecimento por meio dos sentidos, e ao modo como a pessoa
cega ou com deficiência visual elabora o juízo de suas percepções.
Em 2000, fui convidada pela então coordenadora técnica do Centro Cultural
Louis Braille de Campinas, Eduarda Leme, para fazer o “Cinema Narrado” –
atualmente o que se denomina audiodescrição [neste trabalho, também nomeada AD], prática que ela já desenvolvia
há alguns anos – para pessoas com deficiência visual [neste trabalho, também tratado como pessoas com DV ou, simplesmente, PcDV] e cegueira. Esse
recurso de acessibilidade permite-nos auxiliar a pessoa com deficiência visual
a melhor compreender a narrativa e o enredo por meio de descrições orais das
cenas dos filmes.Como professora de história do cinema, achei estimulante, pois seria um modo
de – ao mesmo tempo – desconstruir e roteirizar oralmente cada planosequência,
no sentido de descrever o cenário, as pessoas e suas expressões,
o vestuário, os movimentos de câmera, os deslocamentos espaciais e
temporais, enfim, toda a estrutura de um filme, e o mais desafiador ainda: fazer
tudo isso ao vivo, no momento da exibição do filme (na época não tínhamos
recursos para realizar a audiodescrição gravada).
A escolha dos filmes era feita a partir de temas, país, gênero ou simplesmente
pelo interesse em um determinado filme ao qual as PcDV não teriam condições
de assistir no cinema. A falta de condições refere-se ao fato de que a maioria
dos filmes dessa seleção era de produção europeia, asiática, iraniana, enfim,
não tinha sido exibida com dublagem nos cinemas, com o agravante de ser
dificilmente encontrada nas locadoras.
A formação desse novo público espectador foi um grande desafio para o Ponto
de Cultura, pois, na época, muitos usuários do Centro Cultural Braille não
tinham o hábito de assistir a filmes – nem mesmo na televisão – e, assim
sendo, não participavam das sessões anteriores de audiodescrição de filmes. Tal comportamento revela o quanto a ausência da AD na televisão brasileira
leva muitas pessoas com DV a uma situação de exclusão cultural e social.
A maneira pela qual os filmes foram apresentados, audiodescritos e debatidos
foi um fator determinante, tanto para desmistificar a ideia de que filmes não são
para as PcDV, quanto para despertar nessas pessoas o interesse e a adesão
às atividades. A partir do aumento do número de pessoas presentes às
sessões com AD, constatamos que a falta de oportunidade e acessibilidade
aos bens culturais não permite ao indivíduo sequer conhecer suas
potencialidades, o que pode levá-lo a uma vida segregada e excluída da
sociedade.
A audiodescrição no Ponto de Cultura Cinema em Palavras
Na prática da AD, o audiodescritor deve tentar ser o mais neutro possível, para
possibilitar que a pessoa com deficiência visual possa formar a sua própria
opinião a respeito de determinado filme. Não se pode, porém, ignorar o fato de
que é por meio do complexo sentido da visão do audiodescritor que esse novo
tipo de espectador irá dar significado à sua percepção.
Não é o olhar que engana, mas o juízo que se faz das percepções, que vêm
por meio dos sentidos. Faço dessa reflexão meu objeto de estudo: uma
investigação sobre a maneira pela qual um indivíduo constrói seu
conhecimento por meio dos sentidos.
Devemos então, tentar fornecer, isentos das impressões pessoais, elementos
visuais que ajudem a PcDV a obter uma melhor compreensão do filme. Na área
do cinema, um dos maiores críticos franceses, André Bazin (1991, p. 6), afirma
que “a função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que
não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade
dos que o leem, o impacto da obra de arte”. O importante não é julgar o filme,
mas dar elementos para que o espectador possa avaliá-lo.
Assim, uma nova questão se levanta: a da forma e do conteúdo. Quando
discorro sobre um conteúdo, o faço utilizando-me necessariamente de uma
forma. Assim como não há conteúdo sem forma, não há descrição sem um
ponto de vista qualquer que seja.Evidentemente, a AD colabora para que as PcDV se reconheçam em uma obra
cinematográfica, assim como um crítico, ao fazer a leitura de um filme, pode
revelar ao próprio diretor aspectos desconhecidos. O cineasta Luis Buñuel
comentou certa vez sobre o crítico Andre Bazin: “Bazin revelou-me certos
aspectos de minha obra que eu mesmo ignorava”. (BAZIN, 1991, contracapa)
Nesse sentido, considero a audiodescrição como uma forma de leitura
reveladora que evoca em seu público uma multiplicidade de sensações e
sentimentos capaz de gerar uma revolução sensitiva muito necessária para a
formação do gosto cinematográfico. Certamente não é somente o
audiodescritor e seu modo de traduzir as imagens que influenciarão a PcDV,
mas a própria linguagem da AD que, por si só, revoluciona os sentidos. São
frequentes os depoimentos de PcDV afirmando que, depois de assistirem um
filme com AD, não querem mais vê-lo sem ela.
Na área em que atuo – a da história e teoria do cinema – é frequente
analisarmos, dentre outras coisas, a maneira pela qual um diretor constrói e
representa uma ideia por meio de uma sequência fílmica. O modo como um
diretor mostra determinada cena não será necessariamente o modo como o
espectador irá enxergá-la. Do mesmo modo, durante a AD da cena, a PcDV
também fará, por sua vez, uma leitura própria da descrição ouvida. Poderíamos
chamar esta descrição, em última instância, de interpretação? Certamente.
Como exemplo, cito a AD de uma sequência: uma mulher chora no alto de uma
montanha. O vento sopra em seus cabelos. Ela está vestida com uma roupa
branca que contrasta com o fundo escuro de um céu carregado de nuvens
cinza. A câmera está fixa um pouco abaixo da mulher.
Essa mesma cena pode ser representada por outro diretor de outra maneira: a
mulher estaria com uma roupa neutra, nem clara nem escura, e o céu poderia
estar com nuvens brancas ou mesmo um céu azul límpido.
Para muitos diretores de filmes de arte, não comerciais, esses detalhes fazem parte da
estética do filme, na qual a articulação dos planos estabelece um conceito, uma
relação simbólica da imagem elaborada. Neste caso, a AD teria que encontrar
um modo de descrever a palavra não dita. Será que um audiodescritor,
despreocupado com questões teóricas do cinema de arte, focaria sua
descrição na roupa clara que contrasta com o céu escuro? Falaria da posição
da câmera, onde está o olhar pretendido? Ou tudo isso seria irrelevante, pois
pertenceria à categoria da subjetividade?
No curso sobre roteiro que ministrei no Ponto de Cultura para PcDV, essa
discussão estava sempre presente, pois fazia parte do entendimento da
linguagem fílmica. É necessário, portanto, informar às PcDV que os
audiodescritores podem descrever, ou não, um determinado aspecto do filme
sem deixarem, por isso, de ser objetivos. Existe uma diferença entre o órgão
olho e o olhar. É fato que, ao descrever uma cena de modo detalhado, o
ouvinte pode identificar-se com o sentido do filme e, a partir dessa percepção,
começar a se interessar por determinados aspectos que antes não lhe
chamavam a atenção. A isso chamo “formação de público”.
Durante os seis primeiros anos em que trabalhei no Centro Cultural Braille de
Campinas fazia AD semanais de filmes, durante todo o ano. Certamente eu
não tinha tempo para assistir a todos previamente, pois trabalhava em dois
empregos e cursava a faculdade de filosofia, mas os usuários queriam um filme
novo a cada semana; então, nesse período, fiz AD de um modo que hoje nem
consigo entender como foi possível. Com essa prática, desenvolvi a
capacidade de concentração e síntese necessárias para a AD. Muitas vezes,
os familiares estavam presentes e aquele era o momento em que aprendiam a
fazer a AD em casa para seus filhos.
Nunca aquelas pessoas viram tantos filmes brasileiros, italianos e
principalmente iranianos, pois nestes, os diálogos são pausados e a
montagem, quase em tempo real, como no neorealismo italiano, o que permite
que façamos uma boa descrição das cenas e paisagens. Mas também fizemos
outras AD ousadas, como em todos os filmes sobre Harry Potter e em Senhor
dos Anéis. Os usuários mais jovens já haviam lido os livros, o que, segundo
eles, facilitava bastante a compreensão. Diziam que, mesmo na AD roteirizada,
a maneira de cada audiodescritor descrever a cena era diferente e era bom
assistir ao mesmo filme com diferentes pessoas audiodescrevendo, ou mesmo
comigo, em outra versão.No processo de roteirização para AD de um filme, o audiodescritor percebe a
imagem de modo próprio, abstrai sua ideia e parte para a árdua tarefa de
descrevê-la de modo objetivo e claro.
Uma preocupação constante em minha reflexão sobre a audiodescrição de
filmes para pessoas com deficiência visual é a questão do “ponto de vista”
atrelada à questão da interpretação, pois, na história da filosofia, encontramos
teorias diversas a respeito desses temas. É muito diferente a maneira de fazer
AD de um filme comercial americano daquele de arte ou de autor, ou
simplesmente um filme de produção independente. Para isso, tem-se que, a
priori, saber diferenciar esses tipos e dar a eles o tratamento a que se
designam.Portanto, no modo como eu entendo o conceito do olhar, é impossível a
existência de um olhar simplesmente neutro, pelo mesmo motivo que considero
ser impossível, por exemplo, para uma pessoa com deficiência visual discorrer,
de uma forma neutra, sobre qualquer coisa que conhece pelo tato.
Na nova linguagem da AD, o relato objetivo do audiodescritor representa uma
leitura da imagem. (Existem cursos de formação de audiodescritores que levam
o título de “Tradução visual”). Até que ponto uma tradução pode ser neutra?
A AD não é uma transcrição fonética, não é uma verdade absoluta, mas é uma
leitura, sim, de um indivíduo diante de uma cena; portanto, não pode ser uma
descrição universal. Denis Diderot afirmou que “o olhar engana, o tato não”. Ao
se interpretar tal frase, pode-se reconhecer que não é o olhar que engana, mas
o juízo que se faz das percepções, as quais nos vêm através de todos os
sentidos que possuímos. Cada um percebe de modo próprio, porque seus
sentidos lhe fornecem sensações e informações que são processadas de modo
diverso. Por isso, cada um estabelece um juízo diferente sobre as coisas, como
o gosto e o prazer, por exemplo.Uma das polêmicas está no questionamento: existe realmente um modo neutro
de fazer a audiodescrição? Do ponto de vista filosófico, não. Do ponto de vista
prático, sim, pois existe todo um aparato técnico com normas que possibilitem
a descrição clara e objetiva, mas que, como em toda obra, permitam
discussões.Durante os debates, frequentemente deparamo-nos com opiniões diferentes e,
por vezes, até contraditórias, tamanha a complexidade dessa questão. Não
vejo problema algum no fato de os audiodescritores terem conceitos diferentes
a respeito da AD; pelo contrário: vejo riqueza e diversidade que, juntas,
compõem um pensar mais profundo e complexo, tornando a AD ainda mais
instigante, necessária, legítima e urgente. Ignorar sua importância nos meios
de comunicação e postergá-la devido à sua complexidade é uma atitude
ignorante e covarde.Todas essas questões são fundamentais em minhas investigações no Ponto de
Cultura Cinema em Palavras, não somente pelo fato de minha formação ter
sido em filosofia, mas também porque meu trabalho no ensino de história do
cinema versa sobre análises da construção do roteiro. E a audiodescrição de
filmes representa um processo, em parte, inverso, pois desconstruímos o filme
já pronto para o reescrevermos de forma fragmentada em um novo roteiro de
descrições orais das cenas.Certa vez, em 2007, na 2ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do
Sul da qual participei como audiodescritora, durante o debate com André
Costa, diretor do filme "Casas de morar e demolições", ele relatou o prazer de
ouvir a AD de seu filme. Assim como Buñuel, ele percebeu um novo viés de
análise a partir de certas descrições das imagens. Isso é magnífico na AD, pois
ficou claro, naquele dia, que essa nova linguagem estava declarando para as
PcDV, videntes, e para os próprios diretores, aquilo que há tempos já era
sabido na análise literária: não há uma única interpretação possível. Por mais
que se tente ser objetivo, direto, claro, estamos sempre em território de diálogo:
na terra fértil da linguagem, seja ela qual for.
Paralelamente às exibições com audiodescrição, julguei fundamental levar a
"Carta sobre os Cegos" para o pequeno, porém seleto grupo que participava das
sessões de audiodescrição no Centro Cultural Braille de Campinas. Juntos,
fizemos uma revisão comentada da "Carta sobre os Cegos" em pontos
considerados fundamentais para uma compreensão – aproximada, ao menos –
do universo dos cegos que, segundo eles, é o mesmo dos que veem (o
resultado desse trabalho foi apresentado em seminário no COLE – Congresso
de Leitura do Brasil, realizado na UNICAMP, em julho de 2005).
A Carta sobre os Cegos é um estudo no qual Denis Diderot discute, entre
outras coisas, a maneira pela qual um cego congênito pode adquirir
conhecimento quando começa a enxergar depois de ter feito uma operação de
cataratas. A investigação sobre o modo como o cego reconhecerá os objetos e
a importância dos sentidos como fonte de conhecimento são algumas das
questões estudadas pelo filósofo. Nessa leitura, ressalto algumas passagens e
comparo as respostas do cego de Puilsaux às de outros cegos entrevistados:
alguns cegos de nascença; outros que perderam a visão ainda crianças; ou
que a perderam recentemente.Essa discussão permitiu a nós, videntes, confrontar o pensamento de Diderot
ao das pessoas com deficiência visual. Aprendemos aquilo que somente os
olhares não-videntes puderam perceber. Nesse sentido, a leitura crítica da
"Carta sobre os Cegos" foi uma experiência singular, uma leitura do mundo.
Acrescentar as reflexões e os estudos filosóficos ao projeto inicial de narrar
filmes foi o modo encontrado para suprir, então, a carência de equipamento
digital dos usuários do Centro Cultural, permitindo-lhes, desse modo, ter
acesso a literaturas inexistentes em braille e adquirir novos parâmetros culturais, estéticos e morais. No período de 2000 a 2004 trabalhei como voluntária e ainda não havíamos participado do edital do MinC de projetos para Pontos de Cultura, que nos proporcionou o equipamento digital adequado para as
sessões de cinema.Depois dessa primeira experiência, desenvolvi diversos estudos e li textos de
outros filósofos para o grupo de usuários do Centro Cultural, a saber: o Tratado
sobre o belo e os Ensaios sobre a pintura, ambos de Denis Diderot, textos a
partir dos quais discutimos a maneira pela qual podemos construir uma
argumentação precisa acerca do conceito do belo para aqueles que não vêem.
Cândido, de Voltaire, foi outra leitura conjunta na qual investigamos as
metáforas óticas presentes. A partir dessas duas leituras, tentei estabelecer
algumas relações entre o pensamento de Voltaire e Diderot e escrevi "Uma
relação entre a Carta sobre os Cegos e Cândido", pois a questão da
interpretação do olhar estava presente na Carta, assim como em Cândido. As
duas obras apresentam metáforas óticas, por exemplo, no capítulo I: “(...) havia
um jovem rapaz ao qual a natureza lhe concedera as virtudes mais doces. Sua
fisionomia anunciava sua alma.” Nesse momento, Voltaire dá um sentido
figurado às qualidades de Cândido, valendo-se de outras palavras para
designar algo que para ele tem um mesmo significado. O conceito de “ternura”
é expresso pelas palavras “virtudes mais doces”; e a expressão “uma
fisionomia que anunciava sua alma” pode significar que seu rosto delatava sua
bondade.Essas co-relações também dependem das percepções e, consequentemente,
os juízos formulados são decorrentes delas para serem utilizados em
metáforas, referindo-se a situações, objetos, pessoas, ou até mesmo a si
próprio. Os sentidos são como fontes do conhecimento, modificam o modo de
ver as coisas, produzem verdades relativas.
Com a inclusão da leitura filosófica ampliamos para outras esferas a atividade
de audiodescrição, transformando-a em uma oportunidade para discutir não
somente a linguagem cinematográfica, mas também os conceitos construídos
pelas pessoas com deficiência visual a esse respeito, as concepções das
PcDVs e, também, com a possibilidade, ainda, de fomentar uma possível
reconstrução desses conceitos, ou seja: a partir desses novos parâmetros,
pude munir-me e re-construir a cada dia uma nova linguagem, não “de termos”,
mas conceitual, no intuito de realizar com mais desenvoltura a audiodescrição
de filmes.A utilização do cinema como ferramenta de inclusão social é eficaz porque a
linguagem cinematográfica possui uma carga dramática e cômica essencial
para atingir diferentes gostos, retrata a cultura dos países, revela sua arte e
sua política e, conjugada à filosofia, ajuda a pessoa com deficiência visual a
refletir, a reconstruir seus conceitos e a ampliar seus interesses. Ao debater
sobre os filmes, as pessoas interagem, exercitam sua argumentação e
adquirem mais segurança para compartilhar suas experiências de um modo
mais igualitário.
O problema da audiodescrição simultânea de um filme ainda não visto
Muitas vezes, por falta de conhecimento das pessoas, nós, audiodescritores,
somos convidados para fazer a AD simultânea de um filme repentinamente,
com pouco ou nenhum prazo para preparar o roteiro, ensaiar e gravar, em um
evento onde estarão presentes pessoas com deficiência visual.
Temos então de abstrair nossas impressões e tentar sintetizar a descrição de
modo objetivo. Esforçar-nos para sermos objetivos ou tentar não fazer a
narração de forma subjetiva, numa sessão de audiodescrição simultânea
improvisada, é muito difícil, pois a subjetividade está intrínseca ao
estabelecimento de nossos juízos sobre todas as coisas.
Devemos, sim, concentrar-nos para não deixar escapar do verbo aquilo que
nossa razão e nossa sensibilidade dizem-nos ao mesmo tempo. O mais
complexo é explicar às pessoas com deficiência visual que, apesar de
possuirmos uma visão eficaz, enxergamos coisas diferentes. Um objeto pode
estar diante de mim sem que eu o enxergue. Por isso, quando narro pela
segunda ou terceira vez um mesmo filme, as PcDV dizem: "Bell, você não falou
isso da outra vez!”; respondo: “É porque não vi!" e eles retrucam: "Mas você é
cega?" E eu: "Não, mas o olho não dá conta de absorver todas as
informações!”.Por isso, deve-se tentar evitar tais sessões improvisadas de AD, mas para isso,
a sociedade precisa reconhecer o trabalho do audiodescritor. A ausência de
políticas públicas de acessibilidade cultural sempre foi um entrave na vida das
pessoas com deficiência no Brasil. Felizmente, em 2004, numa proposta
inovadora do Ministério da Cultura, a Secretaria de Programas e Projetos
Culturais lançou edital para formação de Pontos de Cultura com o objetivo de
propagar e preservar a diversidade cultural de cada região do Brasil, assim
como realizar um intenso programa de inclusão social e digital. Ocorreu um
grande mapeamento das instituições e grupos que já desenvolviam atividades
culturais em suas regiões. Nas palavras de Célio Turino, secretário de
programas e projetos culturais do MinC e idealizador do projeto Cultura Viva:
o objetivo é “desesconder o Brasil”, acreditar no povo,
potencializar o que já existe. (...) Ao fomentar o
protagonismo das comunidades, o Ponto de Cultura dá a
sua contribuição para o restabelecimento das energias
vitais da vida. E cultura é vida.Espalhados por todo o Brasil, os Pontos de Cultura são centros de atividades
culturais comunitários que formam artistas e desenvolvem atividades diversas e
onde a cultura aparece como ação viva, como prática social, política e como
direito do cidadão. Atualmente, em 2010, contamos com 740 Pontos de
Cultura, espalhados de Norte a Sul e de Leste a Oeste do Brasil, em 26
estados e no Distrito Federal, num total de 273 municípios.
Aproveitando essa oportunidade, desenvolvemos então um projeto que
contempla o cinema e a filosofia como ferramentas de inclusão social, assim
como de inclusão digital – uma demanda antiga do Centro Cultural Braille. Para
isso, foi necessária a instalação de um laboratório de informática com
programas específicos para pessoas com deficiência visual e foram oferecidos
cursos de introdução à informática para todos os usuários. Também
organizamos um espaço com aparelho multimídia para desenvolver as sessões
de audiodescrição de filmes, abertas para a comunidade.
Acredito que algumas das bases do alicerce que sustenta um indivíduo, com
deficiência ou não, são a identidade e a autonomia intelectual, que só podem
ser constituídas a partir da possibilidade de comunicação e da liberdade de se
relacionar com o mundo. Um indivíduo cuja natureza o tenha privado de um
sentido e o Estado, por sua vez, não garanta seus direitos, não pode cumprir
seus deveres, nem, portanto, tornar-se cidadão. Entretanto, no percurso da
cidadania devem estar garantidas a autonomia intelectual e a possibilidade da
PcDV ter uma vida social digna com justas oportunidades para obter o que lhe
é de direito: relacionar-se com o mundo em sua plenitude.
O “Cinema em Palavras” tem sido uma referência importante para esclarecer
algumas ideias equivocadas da sociedade em relação à participação das PcDV
em espetáculos audiovisuais. Durante as sessões de cinema, palestras e aulas
com audiodescrição, percebemos que essas ideias decorrem de algo muito
corriqueiro: a falta de convivência. A primeira coisa importante a se reconhecer
é o fato de que, assim como nós, videntes, temos um modo próprio de
perceber e conceituar as coisas, as pessoas com deficiência visual também o
têm e, por isso, não se pode generalizar a respeito de suas possíveis respostas
de modo uniforme. Alguns têm muita facilidade para apreender, outros menos,
e outros, grande dificuldade.Em segundo lugar, deve-se perceber que as pessoas com deficiência visual
constroem seu conhecimento a partir dos mesmos conceitos e referências
visuais daqueles que veem, mas o fazem de modo próprio: com suas
experiências, através de todos os sentidos que possuem, como o tato, o olfato,
a audição etc. As dificuldades para a pessoa com deficiência visual apreender
o que está sendo exibido não decorrem da falta de referências visuais, mas da
maneira pela qual estas lhes foram transmitidas de modo a formar seus
conceitos. É a falta de conceitos suficientemente elaborados que pode dificultar
a apreensão dos elementos fílmicos, assim como das ideias de um modo geral.
Essa falta, aliás, pode comprometer do mesmo modo a compreensão de uma
pessoa que enxerga.O “Cinema em Palavras” é a oportunidade de construirmos, videntes e cegos,
um novo conhecimento. É importante ressaltar o quanto a sociedade também
ganha nesse relacionamento, que nos fornece novos parâmetros para que
possamos redimensionar os valores de vida. Todos só têm a ganhar.
O filósofo grego Platão afirmou que “um olho que queira ver-se tem que ter
olho para o outro”. Parece fácil pensar que conhecemos as coisas do mundo e
sabemos quem somos, mas para conhecermos a nós mesmos precisamos do
outro que nos reflita e nos dê a dimensão real de quem somos. Para mim, estar
diante de um cego é estar diante de meus próprios limites e de uma infinitude
de possibilidades e saberes: suas experiências, não as vivi, e sobre seus
saberes, ainda tenho muito a apre(e)nder.
Referências Bibliográficas
-
BAZIN, André. O Cinema – Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
-
DIDEROT, Denis (1749). Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem. In
GUINZBURG, J. Diderot: Obras I – Filosofia e Política. São Paulo: Perspectiva,
2000.
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Autores:
I. Laercio Sant'Anna - Bacharel em Administração de Empresa, trabalha há 22 anos como analista de sistemas na Empresa de
Tecnologia da Informação e Comunicação (Prodam), onde é responsável pelo site sobre Acessibilidade
Digital, prestando consultoria e suporte a produtos específicos para pessoas com deficiência,
acessibilidade à Internet/Intranet da PRODAM e da Prefeitura de São Paulo. Participou das comissões da
ABNT para a criação das normas de acessibilidade para a internet e caixas automáticos de bancos. Foi
membro da comissão de unificação do braille para informática nos países de língua portuguesa. Participou
no desenvolvimento do acesso ao Bradesco Internet Banking para pessoas com deficiência visual.]
II. Naziberto Lopes de Oliveira é psicólogo clínico graduado pela Universidade São Marcos, pós-graduado
em psicoterapia winicotiana e psicoterapia breve pelo IPPESP, Instituto Paulista de Psicologia, Estudos
Sociais e Pesquisas, Consultor Técnico na Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência
de São Paulo, Coordenador do MOLLA – Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis – no Brasil e
idealizador do site www.livroacessivel.org .
III. Graciela Pozzobon Costa - Atriz profissional graduada em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e pela Casa das Artes de Laranjeiras, dedica-se desde 1998 à atuação e desde 2003 à atividade de
criação de roteiro e gravação de audiodescrição em produtos audiovisuais e cênicos. Coordena a produção de audiodescrição em diversos projetos entre eles o Festival "Assim Vivemos", o Programa "Assim Vivemos" e o portal Blind Tube. Possui vasta
experiência na produção de roteiros de audiodescrição em produrtos nacionais e estrangeiros e já realizou narração de audioderscrição ao vivo e gravada em diversos projetos. Dedica-se também a formação de novos audiodescritores já tendo
ministrado cursos no Brasil e no exterior.
IV. Lara Pozzobon - Doutora em Literatura Comparada, Mestre em Literatura Brasileira (UERJ) e produtora de cinema, teatro
e festivais. Produziu os premiados curtas de ficção Cão Guia, Numa Noite Qualquer, Nada a Declarar e
Mora na Filosofia; e o longa-metragem Incuráveis, da Lavoro Produções. Dirige o Festival Assim
Vivemos, Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência, desde sua primeira edição. Concebeu o
Blind Tube, Primeiro Portal de Entretenimento Acessível e colabora em diversos projetos culturais com
acessibilidade. Produziu todas as mostras de cinema e peças de teatro da Lavoro Produções, além do
Programa "Assim Vivemos", da TV Brasil (2009-2010).
V. Bell Machado - Bacharel em Filosofia pela Unicamp e professora de História do Cinema no MIS (Museu da Imagem e
do Som) de Campinas. Fez a audiodescrição ao vivo na 1.ª e na 2.ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na
América do Sul, em 2006 e 2007. Coordena desde 2005 o Ponto de Cultura Cinema em Palavras do
Centro Cultural Braille, onde realiza audiodescrição de filmes e desenvolve, desde 2000, estudos
filosóficos sobre a construção do conhecimento por meio dos sentidos. É’ agente cultural do Projeto Cine
BR em Movimento, iniciativa da Petrobras, desde 2005.
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Descrição da capa:
a capa, criada pela designer Aracy Bernardes, com fundo ocre e tons que vão do vinho ao marrom, é ilustrada por metade de um rosto com destaque para olho e parte da boca no lado direito, três imagens desfocadas, sobrepostas e transparentes do meio para o lado esquerdo superior, um fluxo de letras saindo da boca da pessoa sobre fotos descoloridas de praia e flor na parte inferior.
O título: Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras e os nomes dos organizadores: Lívia Maria Villela de Mello Motta e Paulo Romeu Filho, estão
escritos com letras pretas sobre fundo ocre na parte superior e inferior da capa.
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excerto da obra:
'Audiodescrição: transformando imagens em palavras'
Lívia Maria Villela de Mello Motta, Paulo Romeu Filho (organizadores)
São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010.
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9.Set.2011
publicado
por
MJA
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