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 Sobre a Deficiência Visual

O Aluno Deficiente Visual na Escola: lembranças e depoimentos

Katia Regina Moreno Caiado
 

  

APRESENTAÇÃO por Mara Regina Lemes De Sordi
CAPITULO UM: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INCLUSÃO DO ALUNO DEFICIENTE NA ESCOLA REGULAR
- O ideário liberal e o neoliberal: alguns pontos para reflexão
- Educação para todos e a escola inclusiva
- Retomando o contexto brasileiro
- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96
- Plano Nacional de Educação, 2001
CAPITULO DOIS: O TRABALHO PEDAGÓGICO COM O ALUNO CEGO
CAPITULO TRËS: DEPOIMENTOS ORAIS: A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA
CAPITULO QUATRO: ENTREVISTAS TEXTUALIZADAS
CAPÍTULO CINCO: LEMBRANÇAS DA ESCOLA: UMA REFLEXÃO POSSÍVEL
- O direito à educação especial pública
- A relação entre educação especial e trabalho
- Os serviços educacionais especializados
- A função da palavra na ausência da visão
- A pobreza na raiz da exclusão escolar
CONSIDERAÇÕES FINAIS  |  ANEXOS
1. Indicadores Sociais
2. Glossário
REFERËNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  |  NOTAS  |  SOBRE A AUTORA

 

APRESENTAÇÃO

A inclusão do aluno deficiente na escola regular é o eixo deste trabalho. E essa opção de iluminar a reflexão sobre a inclusão - na perspectiva do aluno cego - revela, uma vez mais, a necessidade de (re)aprendermos a olhar a realidade escolar, de modo que enxerguemos, por dentro, a trama que envolve a questão da inclusão do aluno deficiente. Quanto mais se tem falado em inclusão nas atuais reformas educativas, mais a exclusão se configura como produto de uma sociedade de desiguais a ser equacionado.

Como manter acesa a utopia de incluir pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial ou deficiência em uma sociedade que não resolveu sequer (se é que pretende fazê-lo) a questão da inclusão das pessoas "normais"? Uma sociedade cuja lógica de funcionamento se assenta na exclusão só poderá construir, na contradição, políticas de inclusão conseqüentes. Logo, o presente livro traz luzes sobre o problema, simultaneamente inscrevendo-se na defesa radical do direito social da inclusão dos deficientes e rejeitando, com igual radicalidade, as formas dissimuladas de inclusão que garantem integração condicionada às especificidades apresentadas pelo individuo e não assegurada por condições socialmente construídas.
A luta pela inclusão dos deficientes e o direito ao convívio social igualitário são temas tratados com rigoroso cuidado nesta obra.

A autora, cuja trajetória de vida é marcada pela luta contra diferentes tipos de discriminação e pela combativa militância em favor de uma concepção ampliada de cidadania, construiu sua história de educadora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), constituindo-se em referência marcante nos diferentes espaços institucionais, tendo em sua participação as marcas da criticidade, autenticidade e independência intelectual.

No curso de educação especial, intencionalmente, concentrou seus esforços de pesquisadora e ganhou estatura de educadora. Com estudantes/profissionais da área potencializou as reflexões sobre a deficiência, recuperando o significado de educação inclusiva e problematizando a função social da escola. No movimento docente, igualmente se mostrou combativa na defesa de uma universidade determinada a cumprir seu papel de possibilitadora de uma transformação social. Dessa sua história de vida, absolutamente coerente com os valores que defende, Katia extraiu a força necessária para reunir elementos provocativos tanto à reflexão acadêmica quanto ao debate político sobre a educação inclusiva.

Quem são os estudantes portadores de necessidades especiais, que apoio especializado lhes é oferecido para promover sua real inclusão nos processos de ensino-aprendizagem oferecidos pela escola regular? Como entender os avanços da legislação em relação ao deficiente? Essas perguntas perpassam todo o trabalho desenvolvido e buscam entender a questão a partir da realidade do deficiente visual. Uma instigante retomada das questões políticas e econômicas, que caracterizam e afetam o atual momento histórico, introduz o leitor em um novo olhar sobre o desafio da inclusão do deficiente na escola regular. Mesmo reconhecendo os avanços propiciados pela Constituição de 1988, o texto vai desvelando que a contradição básica de uma sociedade que naturalizou até a exclusão dos ditos "normais" não poderia resolver por meio de decreto a questão do deficiente. Sem que se questione o papel da escola, sem que se conteste sua função de qualificar para o trabalho e ajudar o deficiente a ser economicamente ativo, pouco teremos avançado na complexa questão da inclusão.

A autora assim se posiciona:

[...] a pessoa deficiente nunca foi efetivamente contemplada pelas políticas sociais e educacionais e que nossa prática educacional em educação especial foi construída no paradigma da educação não-formal e segregada. Penso, também, que discutir a universalização da educação, o direito de todos à cidadania e, coerentemente, lutar pelo principio da inclusão do aluno deficiente no ensino regular é um desafio político que exige organização, produção de conhecimento, reflexão da realidade e, nesse sentido, a modalidade de educação especial deve ser construída, conquistada. A educação especial precisa ser pensada em relação com a educação, porém, estar relacionada não significa perder o que lhe é próprio, negar seu percurso histórico. Neste momento político em que a pessoa deficiente ainda não é entendida como cidadã, com direitos, em que a educação especial é marcada, historicamente, pela institucionalização, em que a educação especial não pertence à educação regular enquanto prática pedagógica efetiva, entendo que ela deve ter destaque na lei ao mesmo tempo em que ganha espaço nos textos e contextos do ensino regular [p. 27].

Assumindo que as práticas pedagógicas revelam concepções de homem, educação e por conseguinte contém também concepções de educação especial e do aluno deficiente, este trabalho busca, por meio de depoimentos orais temáticos de pessoas cegas, valer-se de suas vozes para recuperar memórias e desvendar os intricados caminhos percorridos para poder ter acesso a um bem supostamente universal: a educação. Assim, Edson, Emmanuelle, Marcos, Eliana, Miriam e Fabiana nos ensinam a "ensinar" os deficientes visuais e nos emocionam ao generosamente trazerem à tona suas memórias na luta pela inclusão escolar/social. Escancara-se, por meio de seus depoimentos, a falta de condições objetivas das escolas para possibilitar a inclusão, a falta de preparo teórico-metodológico dos professores para acolher o deficiente, respeitando sua diferença e enaltecendo sua condição humana, que não comporta nenhum indicio de inferioridade em relação a qualquer outro homem. Igualmente nos coloca frente a frente com pessoas que com seu compromisso político e ético fizeram a diferença em sua trajetória escolar e de vida.

Dar voz aos excluídos da escola porque as pessoas deficientes estão, historicamente, fora da escola e na condição de excluídos - eles pouco, ou nunca, falam. Alguém, geralmente, fala e decide por eles. Em nome deles, muitas vezes, definem-se políticas, abremse serviços, organizam-se cursos e congressos. Nesse sentido, aqui se busca conhecer o que eles têm a contar sobre suas vidas, suas experiências, seus anseios; quais as lembranças que carregam da escola que freqüentaram, do relacionamento com os professores, com os colegas; e sobre essas marcas, busca-se conhecer o que pensam da escola inclusiva [p. 44].

Este é o compromisso político da autora.
Refletir sobre a escolaridade do aluno cego é refletir sobre as diferentes trajetórias que esses alunos podem percorrer em nosso país, a partir das condições sociais que estão colocadas para sua família. E, gostemos ou não, estas estão diferente e perversamente distribuídas.

Importante afirmar que não se quer negar a deficiência e muito menos minimizar a marginalização social que sofrem as pessoas que estão fora dos padrões aceitos socialmente. Não, a cegueira em si é uma condição limitadora, porém as histórias de vida podem revelar que indivíduos reais percorrem diferentes caminhos sociais, mesmo partilhando da mesma condição biológica [p. 46].

No trecho acima a autora, com indiscutível propriedade, ressaltou o assunto. O que nos desafia a tomar uma posição clara em relação ao problema da inclusão dos alunos na escola regular, especialmente os deficientes. E isso não pode ser resolvido pela ótica da responsabilização familiar ou da ideologia do mérito individual. Isto posto, só posso manifestar minha enorme gratidão e profundo orgulho por poder prefaciar uma obra que reúne qualidade técnica e política, indispensáveis numa época em que parece que a questão das diferenças foi superada pelo discurso da eqüidade. Aprendi com Katia a olhar o deficiente visual e a realidade dos deficientes em geral sob uma outra ótica. Nos diálogos que a vida nos possibilitou, fui aprendendo a recuperar a sensibilidade para um problema social que me fora ocultado pela segregação imposta (ainda que dissimuladamente) aos deficientes. Lendo seus escritos, aprendi a ver esta realidade e agradeço por ter me devolvido a visão. Eu que, ingenuamente, pensava enxergar...

Mara Regina Lemes De Sordi
Docente do programa de pós-graduação em educação da PUC-Campinas.
 



CAPÍTULO UM

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INCLUSÃO DO
ALUNO DEFICIENTE NA ESCOLA REGULAR

[...] nenhuma batalha pedagógica pode
ser separada da batalha política e social.
MANACORDA
 

Falar do direito à educação da pessoa deficiente 1 é falar de um conflito histórico e inerente à sociedade capitalista, que é o conflito da exclusão social. Neste estudo, pretende-se analisar o direito à educação da pessoa deficiente no paradoxo dessa exclusão.

Pode-se afirmar que o sistema capitalista é excludente em sua raiz, dada a exploração do trabalho humano e a apropriação dos bens produzidos coletivamente por uma determinada classe social, detentora do controle dos meios de produção. Para sustentar-se no poder e perpetuar a exploração, essa classe cria mecanismos políticos e jurídicos que lhes asseguram esse lugar. Muito embora essa trajetória não seja linear, e sim resultado de conflitos e lutas, o que temos presenciado é um avanço inegável do poder econômico e político daqueles que detém os meios de produção. Expressão concreta desses conflitos pode ser analisada no papel que o Estado contemporâneo assume com as políticas sociais, ora reveladas no Estado assistencial (welfare state), ora no Estado mínimo.

Como Estado assistencial, com a função de assegurar os direitos civis, políticos e sociais e pressionado pelo movimento reivindicatório dos trabalhadores, o Estado vinha implementando políticas sociais com ações nas áreas da saúde, da previdência e assistência social, da cultura, das comunicações e da educação. Porém, a partir da década de 1980, com o recuo das lutas socialistas, o Estado mínimo vai ganhando contorno visível e os direitos sociais passam a ser questionados enquanto função pública.

Neste estudo, busco analisar a política educacional brasileira recente e referente ao direito à educação da pessoa deficiente. Assim, o recorte é feito a partir da Constituição Brasileira de 1988, porque em nosso país, quando se fala da inclusão 2 do aluno deficiente no ensino regular, geralmente, o marco é a Constituição Brasileira promulgada em 1988. Muito embora nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases - LDB -, a lei n. 4.024, art. 88, de 1961, já anunciasse que "a educação de excepcionais deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade", será a Constituição de 1988 que afirmará, claramente, no art. 208, que o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência deve se dar preferencialmente na rede regular de ensino. Sem dúvida alguma, esse marco é histórico e deve ser compreendido no contexto da redação da lei.

Até esse momento, em nosso país, a inclusão do aluno deficiente no ensino regular era um discurso muito distante das práticas sociais na área da educação especial. Experiências isoladas e individuais de inclusão já aconteciam, principalmente entre famílias que insistiam no acesso de seus filhos à escola regular. Neste estudo, há exemplos dessa vivência, mas são situações isoladas, pontuais, mesmo com legislações que já apontavam possibilidades de atendimento especial na rede regular, caso da resolução SE n. 247/86, no estado de São Paulo. Ainda assim, a prática social efetiva na área da educação especial estava centrada em instituições especializadas de caráter filantrópico 3 e, mais do que isso, é importante lembrar que a maioria das pessoas deficientes não recebia atendimento educacional algum, como afirmam documentos oficiais (Brasil, 1994, 2001).

Se a prática social efetiva era de exclusão ou benemerência, como entender o texto constitucional que afirmava a educação especial como um direito social?

Há elementos no contexto político brasileiro e internacional que nos ajudam nessa reflexão. No inicio da década de 1980, após 20 anos de ditadura militar, os movimentos operário e social renascem no país e reivindicam direitos políticos, civis e sociais. Em janeiro de 1984 acontece o primeiro comício das Diretas, com 300 mil pessoas presentes na Praça da Sé, na cidade de São Paulo, e um ano depois, no dia 15 janeiro de 1985, é eleito, no Congresso, Tancredo Neves contra Paulo Maluf, o representante da ditadura. Tancredo Neves morre antes de assumir a presidência e em seu lugar toma posse o vice-presidente, José Sarney. Várias medidas políticas são tomadas, incluindo a liberdade de criação de partidos políticos, o que vai favorecer um amplo debate na Assembléia Constituinte, eleita e composta por grupos conservadores e progressistas. Em 5 de outubro de 1988 é promulgada a Constituição Brasileira, cujo texto consolida várias conquistas de direitos e por isso é conhecida como a Constituição Cidadã.

Assim, entendo que a redação constitucional do direito à educação do aluno deficiente no ensino regular, direito registrado no art.º 208, expressa a luta do movimento social no país, que era a luta pelo direito de cidadania para todos. Ainda que forças conservadoras no Congresso tenham lutado contra o direito público de uma educação especial inclusiva no ensino regular, esse direito foi grafado como vitória das forças progressistas.

Em outros países, a discussão sobre os direitos do homem à educação e á educação inclusiva era presente e já avançada. Santos (1995) afirma que, na Europa, a década de 1970 é referência para as iniciativas legais que institucionalizam práticas integracionistas à pessoa deficiente, como resultado de um processo histórico marcado pelas "duas Grandes Guerras Mundiais, o fortalecimento do movimento pelos Direitos Humanos e o avanço científico" (p. 22). Sobre as guerras, a autora aponta o número expressivo de pessoas que retornam com alguma deficiência e as conseqüentes ações de reintegração social; além disso, em função das guerras, a escassez de mão-de-obra exige que novas forças de trabalho ingressem no mercado, o que também favorece os programas de integração. Quanto aos movimentos de luta pelos direitos humanos, a partir da década de 1960, coloca-se o direito à integração como um direito humano; com isso, os programas integracionistas superam objetivos como os de suprir mão-de-obra para o país. Sobre os avanços científicos, há uma mudança de paradigma na análise das minorias, que não são mais vistas como intrinsecamente incapazes, mas como vitimas da falta de acesso aos direitos sociais. Nesse contexto, o movimento de integração avança na Europa e na América do Norte e, sem dúvida, encontra espaço no movimento social nacional, que tem uma história de luta registrada pelos direitos de cidadania de todos, mesmo circunscrito a uma sociedade, desde sua origem, elitista, agrária, dependente e autoritária.

No Brasil, onde nunca se viveu um Estado de bem-estar social, em 1988 temos a primeira constituição que nos assegura os direitos sociais. Nesse mesmo período, nos países centrais, o capitalismo anunciava uma nova fase de expansão e reestruturação. Nesse novo modelo econômico e político prega-se o Estado mínimo, a serviço da nova ordem capitalista e da lógica do mercado e não mais um Estado que assegure os direitos sociais. O ideário liberal renasce forte; renasce como o novo liberalismo. Nesse ponto, acredito ser necessário um recorte para, brevemente, conceituar o liberalismo e o neoliberalismo, para depois tecer reflexões sobre as políticas educacionais que emergem no contexto neoliberal com a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia (1990) e a conseqüente Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: acesso e qualidade, em Salamanca, na Espanha, em 1994; e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9.394/96 e o conseqüente Plano Nacional de Educação, de 2001.


O ideário liberal e o neoliberal: alguns pontos para reflexão

O mundo moderno constituiu-se a partir da ascensão ao poder da nova classe social, a burguesia, que na luta contra o antigo regime impõe uma nova visão de mundo. Burguesia e camadas populares, subjugadas pelo poder absoluto do monarca, sem participação política, sem direito à livre expressão e à propriedade, unem-se pela liberdade contra a nobreza feudal. Liberdade individual de religião, de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de participação no poder político, de iniciativa econômica para o indivíduo (Bobbio, 1994, p. 702).

Na Inglaterra, em 1688, e depois na França, em 1789, a burguesia assume o poder contra o poder absoluto do rei, confiscando terras, ampliando o mercado nacional e externo, reduzindo a ingerência do Estado na economia.

Hobsbawm (1977, p. 255) aponta que o principal tema desse momento era "a natureza da sociedade e a direção para a qual ela estava se encaminhando ou deveria se encaminhar". Dentre os pensadores da época duas correntes se constituíam: os que acreditavam no progresso e os que não acreditavam. A discussão sobre o progresso coloca-se como inevitável num momento em que o conhecimento científico e o controle do homem sobre a natureza aumentavam diariamente. Assim, refletir sobre a vida, a natureza, as relações humanas nesse contexto é buscar explicações racionais e científicas, é abandonar os dogmas e explicações religiosas, é assumir um referencial racionalista e secular, ou seja, o homem tem capacidade para compreender tudo e resolver todos os problemas pelo uso da razão, sendo contra a tendência obscurantista das instituições. Hobsbawm (1977, p. 259) aponta que os pensadores da época acreditavam que o caminho para o avanço da humanidade passava pelo capitalismo e que a produção e a riqueza das nações aumentariam e, assim, com o progresso da produção viria o progresso das artes, das ciências e da civilização em geral.

Dentre esses pensadores, John Locke, referência do pensamento liberal clássico, afirmava que o direito à vida e à liberdade, assim como aos bens necessários à sua conservação, é direito natural e, portanto, de todos os homens. Ia além ao afirmar que os bens são adquiridos por meio do trabalho (Chaui, 1995, p. 401). Locke (1999) considerava que a essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias e que a liberdade existe como exercício de posse. Dessa concepção, a conseqüência lógica resulta em que a participação política na Idade Moderna fique restrita aos homens de posse, apenas aos que detém propriedades que foram adquiridas a partir do esforço individual, por meio do trabalho; esses poderão votar e serem eleitos para participação política. Assim, assalariados e mulheres estavam excluídos do poder político, pois só tinha cidadania quem fosse livre e independente. Ser livre e independente significava ser proprietário, e para ser proprietário era necessário trabalhar incansavelmente e poupar para adquirir bens, pois se todos são iguais, todos têm a missão de trabalhar e todos têm o direito à propriedade privada. Portanto, os pobres são culpados por sua condição inferior.

Na Idade Média, a propriedade e o poder político eram herdados. Contra essa tradição, opunham-se os liberais que reivindicavam o fim do poder por herança, a distinção entre público e privado, a não-intervenção do Estado na economia e sim sua tutela para o livre exercício da propriedade, da palavra e da iniciativa econômica. Nessa medida, as classes populares que apoiaram a burguesia, enquanto classe revolucionária, em busca dos direitos do homem, das luzes, da liberdade, da igualdade, da construção de uma sociedade nova, justa, livre e feliz, são alijadas do poder. Para Hobsbawm (1977), essa é a revolução da revolução, ou poderíamos considerar o "golpe" na revolução, uma vez que ao assumir o poder político, a burguesia não quer mais mudanças e passa a reprimir as classes populares revolucionárias, desarmando o povo que ela própria armara, prendendo, torturando e matando os chefes populares e encerrando, pela força, o processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre Estado e sociedade [Chaui, 1995, p. 405]. Estado que não deve intervir nos assuntos econômicos, pois a iniciativa econômica deve ser do individuo, Estado que precisa estabelecer novos e restritos limites de ação.

Porém, os movimentos populares prosseguem em busca de melhores condições de vida e de participação política. O avanço do capitalismo engendra lutas mais acirradas contra o poder da burguesia, não mais classe revolucionária e sim classe conservadora, que luta para manter seus privilégios e o controle político; desses movimentos sociais de caráter político-social, surgem novas teorias políticas, as teorias socialistas. Os governos liberais vão sendo pressionados, cada vez mais, pelos movimentos sociais, que se acirram à medida que as contradições do capitalismo vão ganhando perversidade ainda maior. Com o objetivo de abrandar a luta por justiça social, num momento em que trabalhadores e classes populares estão amparados em concepções marxistas e experiências revolucionárias, o liberalismo vai entrando em sua segunda fase, o Estado-Providência (Santos, 1996, p. 85), quando o crescimento do Estado se justifica na criação do "Estado do bem-estar ou, Estado assistencial como Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito político" (Bobbio, 1994, p. 416). Estado dos direitos e bem-estar social que é o mesmo Estado repressor e violento na coerção brutal contra os trabalhadores que se organizaram contra as classes capitalistas, como afirma Bruno (1996, pp. 13-15). É sempre bom lembrarmo-nos disso, tendo em vista que muitos discursos atuais defendem, como um fim, a manutenção ou (re)construção do Estado assistencialista, sem colocar para análise o real papel do Estado moderno/contemporâneo: a manutenção do sistema capitalista.

Na luta pela manutenção desse sistema e pela ampliação da exploração do trabalho ressurge o ideário liberal, a partir da década de 1980, agora intitulado "neo-liberalismo". Para Anderson (1998), o neoliberalismo é uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. Teóricos neoliberais argumentam que o igualitarismo promovido pelo bem-estar destrói a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual depende a prosperidade de todos, sendo a desigualdade um valor positivo e imprescindível. O autor afirma que "trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo á sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional" (p. 22). O ideário neoliberal que se concretiza na deflação 4, na desregulamentação, no desemprego e na privatização é essencialmente anticomunista.

Oliveira (1998) aponta que, no Brasil, o ideário neoliberal tem atacado as bases da esperança que se construiu a partir da organização popular expressa nos movimentos sociais, colocando o medo da mudança como camisa-de-força no movimento sindical. No Brasil, não chegamos nem a ter um Estado de bem-estar social; temos uma legislação trabalhista que confere algumas garantias aos trabalhadores, mas estamos longe do patamar mínimo de cidadania expresso no direito à educação, à saúde, às pensões e aposentadorias, ao transporte público e à habitação popular. A participação financeira do Estado no fornecimento desses serviços sociais vem diminuindo drasticamente e sendo transferida ao setor privado. Nessa lógica, o melhor Estado é o Estado mínimo, no qual se reduz todo o gasto público que não é investimento, ou que atrapalhe a iniciativa privada. Passa-se a imagem de que as atividades do setor público ou estatal são ineficientes, improdutivas e antieconômicas, um desperdício social, ao passo que o setor privado é visto como eficiente, efetivo, produtivo, menos burocrático e, portanto, mais adequado às exigências do mundo moderno (Torres, 1995).

As idéias liberais expressam os interesses econômicos do capital, porém a presença do Estado, até meados da década de 1980, garantiu um certo controle sobre a hegemonia capitalista. Como conseqüência das lutas dos trabalhadores e da ameaça comunista houve avanços nos direitos sociais. Porém, hoje, com o recuo das experiências socialistas, com a força do capital que se impõe cada vez mais, os avanços científicos na área das comunicações, da informática, da robótica e com os novos métodos de produção, com os quais os empresários maximizam os lucros e dispensam milhares de trabalhadores, o Estado é agora pressionado pela burguesia a reduzir seu papel e a retirar os benefícios trabalhistas e assistenciais. Exemplo concreto dessa ofensiva está expresso na campanha pela revisão da legislação trabalhista em nosso país.

Estado mínimo é, agora, a "nova" palavra de ordem, amplamente divulgada. Aliás, Herbert Spencer (1820-1903), filósofo positivista inglês, em sua obra O homem contra o Estado, publicada em 1884, já combatia a ingerência do Estado, inclusive na área da saúde e do ensino público (Abbagnano, 1998, p. 777).

Nereide Saviani (1997, p. 14) aponta que o neoliberalismo tem um ideário que se sustenta na defesa do Estado mínimo, na ênfase ao mercado e ao individuo desvinculado de suas organizações (partidos, sindicatos, associações). Sua base de sustentação está na defesa da desestatização, que é o desmonte das propriedades estatais e públicas; da desregulamentação, que é a redução da interferência do Estado nas atividades econômicas e sociais dando liberdade às forças de mercado, e da desuniversalização, que é a particularização dos direitos e benefícios sociais em que cada indivíduo investe, por exemplo, na sua aposentadoria ou em um programa de saúde.

Um dos pilares desse projeto é a privatização dos direitos sociais. Conquistas trabalhistas em educação, saúde e moradia vão sendo desmontadas, no Brasil, por medidas provisórias e leis aprovadas em um Congresso cuja maioria vota com a lógica neoliberal. Num exercício muito didático, Chaui (2000) convida o leitor a questionar o projeto político do governo brasileiro, ao apontar as últimas conseqüências a que chega esse modelo:

[...] o neoliberalismo, ao desmantelar o sistema produtivo e a economia com ênfase no mercado interno, destruiu as formas de organização, luta e participação política dos trabalhadores e, ao privatizar os direitos sociais, sob a forma de serviços prestados por terceiros ou pela iniciativa privada, despolitizou a sociedade civil e deslocou para a mendicância e a delinqüência milhões de pessoas que, outrora, seriam ativistas de movimentos sindicais, sociais, e populares, lutando e conquistando direitos econômicos, sociais, políticos e culturais.

Assim, longe de referências políticas reais para nortear a luta contra a exploração e as injustiças sociais, com as altas taxas de desemprego e o desaparecimento de numerosos campos profissionais, o movimento dos trabalhadores recua e pouca força tem para lutar contra as propostas de esfacelamento da organização sindical. Nesse quadro, temos, assustadoramente, vivido este novo milênio. É nesse contexto que se organiza a educação, e nela a educação especial, já que, no projeto neoliberal, os objetivos no plano educacional estão vinculados à formação de uma força de trabalho com um nível mais alto de conhecimento, apta e flexível para acompanhar as exigências das novas tecnologias. Nereide Saviani (1997, p. 15) enumera esses objetivos manifestados em documentos e discursos oficiais:

[...] maior rentabilidade do ensino básico, com ênfase na matemática, nas ciências exatas, na linguagem, na informática; seleção e avaliação de profissionais (promoção, demissão, pagamento, conforme mérito); majores exigências para acesso ao ensino superior; reestruturação dos gastos públicos (aumento do número de alunos por sala e por professor, não investimento em infra-estrutura e salário); recursos só para os mais pobres (mas com apelo á colaboração da comunidade); reforma do sistema educacional (descentralização/municipalização); um novo conceito de público, desvinculado de estatal e de gratuito (responsabilidade da sociedade civil, da comunidade).

No Brasil, após a promulgação da Constituição em 1988, os governos que se sucederam, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, aliados às forças políticas conservadoras, implantam um projeto político-econômico vinculado aos interesses do grande capital internacional. Nesse quadro político, o sistema educacional realinha-se aos interesses ditados pela economia e, acredito, nesse processo encontramos elementos para a análise do conflito: inclusão/exclusão na educação especial.


Educação para todos e a escola inclusiva

A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em março de 1990, é apontada por Oliveira (2000, p. 105) como "o grande marco na formulação de políticas governamentais para a educação desta última década". O documento final da Conferência declara as posições que devem nortear as bases dos planos decenais de educação, principalmente para os países com altos índices populacionais. O documento afirma a necessidade de se garantir educação básica para todos como condição sine qua non para o desenvolvimento.

A seguir, em 1993, a Declaração de Nova Déli reafirma o compromisso dos governantes presentes com a oferta da educação básica com eqüidade às populações de seus países. Oliveira (idem, ibidem) afirma que o conceito de eqüidade é repetido em vários documentos como o "grande principio orientador das políticas educacionais propostas para os países pobres mais populosos do mundo". A autora analisa qual é o conceito de eqüidade que se revela nos documentos das agências de financiamento de projetos nas áreas sociais, e mostra que o conceito utilizado encerra a visão de educação como formadora de recursos humanos para o capital.

Freitag (1986, p. 28) afirma que a concepção de educação como formadora de capital humano vai justificar os investimentos e as interferências do Estado na educação, uma vez que ela é vista como promotora de desenvolvimento para o país. Nesta perspectiva, é colocado que tanto o Estado quanto o individuo se favorecem, pois é pelo estudo que o individuo tem novas chances de emprego e melhoria de salário e de vida e, com isso, a nação desenvolve-se e cresce. Porém, numa abordagem crítica, essa lógica se rompe, uma vez que no capitalismo o salário é bem menor que o valor que o trabalhador cria no tempo pelo qual vendeu sua força de trabalho. Sua maior produtividade face à sua maior qualificação não beneficia a ele, aumentando gradativamente seu salário, mas ao seu empregador que se apropria da diferença, a mais valia [Freitag, 1986, p. 32].

Portanto, afirma a autora que "a política educacional que adota essa concepção garante o crescimento da taxa de lucro para as empresas" (idem, p. 28). Assim, o conceito de eqüidade encontrado por Oliveira (2000) nos documentos internacionais que declaram a educação como um direito humano - conceito dissimulado em preocupações humanitárias -, na verdade traz a concepção de educação como um investimento necessário para garantir o avanço e a expansão capitalista.

Um outro conceito estrutural presente nesses documentos é o conceito de qualidade e eficiência. Em Gentili e Silva (1996), diferentes autores discutem como esse conceito foi apropriado pela lógica neoliberal. Silva (p. 170) demonstra que qualidade é um conceito presente, e discutido no movimento docente enquanto bandeira de luta "vinculada ao combate às desigualdades, às dominações e às injustiças de qualquer tipo" e agora incorporado ao discurso neoliberal "a partir de uma ótica econômica, pragmática, gerencial e administrativa".

Nessa linha de raciocínio é produzido o texto Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas especiais, documento final da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, realizada em junho de 1994, em Salamanca, na Espanha. O prefácio do documento reafirma o compromisso expresso na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, de Jomtien, a contribuição no intuito de "dar às escolas maior eficácia educativa" (1997, p. 5).

Na Conferência de Salamanca estiveram presentes representantes de 92 governos e 25 organizações internacionais. O governo brasileiro não esteve presente, mas a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (COROE), vinculada à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, manifestou apoio, publicou e divulgou amplamente o documento aprovado. O informe final dessa Conferência (1995) reafirma o compromisso com a educação para todos, reconhece a necessidade e a urgência de o ensino ministrado no sistema comum de educação ser para todas as crianças; proclama que a escola inclusiva proporciona uma educação efetiva à maioria das crianças e melhora a eficiência e, certamente, a relação custo-beneficio de todo o sistema educativo e realça como uma das áreas prioritárias a preparação dos jovens com necessidades educativas especiais. Estes devem ser ajudados a passar por uma correta transição da escola para a vida adulta, e, nesse sentido, a escola inclusiva deverá "ajudá-los a ser economicamente ativos e dotá-los com as aptidões necessárias para a vida adulta" (Brasil, 1997, p. 42).

Interessante notar que o documento conceitua a expressão necessidades educativas especiais (NEE), referindo-se "a todas as crianças e jovens cujas necessidades decorrem de sua capacidade ou de suas dificuldades de aprendizagem"; o que significa que o conceito de NEE abrange crianças com deficiência e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos ou marginalizados [idem, p. 18].

É importante destacar que esse documento equipara-se completamente aos princípios da Educação para Todos, e o conceito de eqüidade presente é o conceito presente na perspectiva da educação enquanto instrumento de investimento para o capital. Nesse sentido, a proposta de uma escola para todos deve admitir também o contingente que, historicamente, foi deixado de fora da escola regular, mas que hoje é reconhecido como potencial para o trabalho. Portanto, a escola deverá ajudá-los a ser economicamente ativos. Assim, o Brasil inscreve-se na ordem social como um país dependente, com dirigentes políticos comprometidos com os interesses dos grandes grupos econômicos, com um movimento sindical frágil e um grande potencial de mão-de-obra que precisa ser qualificada para atrair investidores. Nesse cenário, a escola tem um papel fundamental, o papel de qualificar para o trabalho.


Retomando o contexto brasileiro

Comparato (1999, p. 15) afirma que, em dez anos de existência, a Constituição de 1988 sofreu 25 emendas, o que lhe tirou toda a força interior. Nossa história recente ilustra o movimento com o qual o Brasil vai se alinhando, cada vez mais, com a nova ordem econômica. Fernando Henrique Cardoso (FHC) assume as regras do Consenso de Washington 5 e conduz seu governo na lógica da reestruturação capitalista: desregulamentação, privatização, desuniversalização.

Netto (1999) faz uma análise critica do Governo FHC em que demonstra, com dados estatísticos, que as políticas sociais nas áreas de educação, saúde, trabalho, assistência e previdência são contidas ou reduzidas ano após ano nesse governo. A vigência das políticas sociais está subordinada à orientação do capital. A privatização dos serviços essenciais desresponsabiliza o Estado e abre mercado para o capital. Na área da assistência, a sociedade civil é convocada a participar de parcerias de solidariedade, muitas vezes, numa visão filantrópica, caritativa, e não de direito social. Nesse contexto, passo a refletir sobre o texto referente à educação especial expresso na LDB e, a seguir, no Plano Nacional de Educação.


Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96
 

Em 1 de janeiro de 1995 assume o Governo FHC, e em dezembro de 1996 é aprovada a Nova LDB, após oito anos de tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado, longo debate e enfrentamento de dois projetos de LDB: um com ampla participação popular e um articulado com o governo. Dermeval Saviani (1997) apresenta o trajeto de todo o processo de enfrentamento desses dois projetos com base no cenário político do país, demonstrando como o projeto do senador Darcy Ribeiro vai "aperfeiçoando-se e sintonizando-se com as linhas da política educacional do governo de FHC" (idem, p. 161). Esse projeto foi aprovado sem vetos, com o apoio do Ministério da Educação e do Desporto (MEC) e da iniciativa privada.

Ao mesmo tempo em que os projetos estavam em discussão, a educação especial, na forma de capitulo, aparece pela primeira vez no Substitutivo Jorge Hage, o projeto democrático. Esse novo texto é resultado do amplo trabalho de discussão do Grupo Especial de Trabalho da LDB, sob coordenação de Florestan Fernandes e do relator Jorge Hage. Na forma como o capítulo da educação especial se apresentava, em junho de 1990, seria praticamente o mesmo texto aprovado na lei 9.394, com exceção do §4º do art. 85 que foi suprimido: "o educando em condições de integrar-se ao Ensino Regular tem assegurada matrícula no ensino público básico". Sem dúvida, a supressão de um parágrafo que assegurava o direito de matrícula ao ensino público básico fala por si.

Interessante é o destaque que Dermeval Saviani faz do substitutivo sobre os recursos para escolas particulares. O autor afirma "que o que se esperava da LDB era que encontrasse algum mecanismo que reduzisse, o máximo possível, a abertura para a transferência de recursos públicos para escolas privadas prevista do art. 213 da Constituição" (1997, p. 69). Porém, o substitutivo acena com a possibilidade de concessão de bolsa de estudo aos alunos carentes, se houver falta de vagas nas escolas públicas. Desse modo, ficam garantidas verbas públicas, na educação especial, às instituições especializadas privadas com caráter filantrópico, o que, sem dúvida, compromete a possibilidade de se garantir o direito público à educação especial e a própria garantia de vagas nas escolas públicas regulares. A educação especial como um direito público sofre, assim, uma grande derrota, a qual abre espaço para as "parcerias" que serão propostas no Plano Nacional de Educação. Parcerias que se colocam em toda área dos direitos sociais, uma vez que no projeto neoliberal o Estado não mais é responsável pela universalização da política social.

A educação especial na Lei 9.394 é objeto de discussão no capítulo V e, pela primeira vez, o assunto é tratado num capítulo autônomo. Ë inegável que o tema ganhou destaque, se comparado com a apresentação nas duas leis anteriores. Na lei 4.024 / 61, título X:

"Da educação de excepcionais", os art. 88 e 89 indicam que "a educação de excepcionais deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação". Na lei 5.692/71, o art. 9º do capítulo 1, que trata das disposições comuns ao ensino de 1º e 2º grau, afirma que os alunos que apresentam "deficiências físicas ou mentais" deverão receber tratamento especial no ensino de 1º e 2º grau, conforme as normas fixadas pelos Conselhos de Educação.

A educação especial na lei 9.394: alguns destaques para reflexão

Muito embora o capítulo da educação especial aprovado na LDB seja praticamente o mesmo texto que encontramos no "Texto substitutivo Jorge Hage" (Saviani, D., 1997, p. 102), há pontos que merecem uma maior reflexão:

1. Sobre a definição do alunado da educação especial (ad. 58): o texto constitucional (1988) fala em portadores de deficiência, e a LDB (Brasil, 1996b) amplia essa categorização, na medida em que fala sobre o educando portador de necessidades especiais. Quem seriam, então, os portadores de necessidades especiais? O documento de Salamanca (Brasil, 1997) abrange todos aqueles com dificuldades de aprendizagem; a Política Nacional de Educação Especial (Brasil, 1994) classifica o alunado da educação especial como: os portadores de deficiência (mental, visual, auditiva, física, múltipla), portadores de condutas típicas (problemas de conduta) e portadores de altas habilidades (superdotados); o Plano Nacional de Educação (Brasil, 200 la) afirma que os portadores de necessidades especiais são as pessoas com necessidades especiais na aprendizagem, cuja origem está na deficiência física, sensorial, mental ou múltipla ou em características como altas habilidades, superdotação ou talentos; a resolução n. 2/2001 considera que são educandos com NEE os que apresentam dificuldades acentuadas de aprendizagem, dificuldades de comunicação e os com altas habilidades. Afinal, a pergunta permanece: quem é o alunado da educação especial? Essa questão é muito importante se considerarmos que a partir dessa delimitação serão organizados, dentre outros, planejamentos para ação, definição de orçamentos e políticas de formação de professores.

2. Sobre a condicionalidade no oferecimento de apoio especializado (art. 58,§1º): afirma que "haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial". A expressão quando necessário é muito preocupante, pois deixa em aberto uma questão que é inerente à própria condição desse alunado. Exatamente pelas peculiaridades da clientela da educação especial, é necessário que haja oferta permanente de serviços de apoio especializados na escola regular para que esse alunado possa se incluir na escola. Entendo que os alunos deficientes precisam de condições efetivas e especiais para atender às suas necessidades educativas especiais. Caso contrário, onde estaria o "especial" da educação? Isso implica condições criadas e asseguradas socialmente por meio da organização do trabalho pedagógico. Por exemplo: como ter um aluno com deficiência visual incluído na escola regular se não houver textos em braile 6, em fitas gravadas, em material ampliado? Como ter um aluno com deficiência auditiva incluído na escola regular se não houver condições de comunicação garantidas? Como ter um aluno com deficiência múltipla incluído na escola regular se não houver adaptações de mobiliário, acesso e utilização de modernas tecnologias? Ainda mais, para incluir o alunado denominado especial, as escolas precisam do professor especializado presente nos programas escolares, oferecendo apoio pedagógico ao aluno e acompanhamento efetivo aos demais profissionais da escola, para que a representação da deficiência, enquanto incapacidade, se altere. Quando a lei diz se necessário, mostra que o Estado não assume o serviço de apoio como necessário. E Quais os critérios que nortearão essa decisão e quais as verbas destinadas para algo que ainda não é, talvez venha a ser?

3. Sobre a condicionalidade da oferta de vaga pública às condições do aluno (art. 58, §2º): afirma que "o atendimento será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular"; é preciso evidenciar que o princípio da integração fica balizado nas condições que a pessoa deficiente tenha de usufruir esse "direito". A integração fica condicionada às possibilidades da pessoa e não assegurada por condições que são socialmente construídas. No principio liberal, meritocrático, reafirma-se, também, a concepção neoliberal da nova lei para a educação especial. No texto constitucional, o direito à educação é universal enquanto direito à humanização e à promoção do homem. Na nova lei, esse direito fica balizado às condições específicas dos alunos. Como um direito social, não seria o inverso? O Estado tem o dever de criar condições para que todas as crianças e jovens em idade escolar tenham acesso à escola e permaneçam nela. Seria inconstitucional não reafirmar a integração do aluno deficiente como um direito, porém foi possível reafirmar deixando essa responsabilidade não para o poder público. Assim, a possibilidade da integração nas classes comuns de ensino regular é dada, exclusivamente, em razão das condições específicas dos alunos. Reveladores são os dados dos censos escolares dos últimos três anos (INEP, 2002) quanto às matrículas na educação básica, por exemplo, na educação especial, no estado de São Paulo: em 2001 a rede privada deteve 54,9%; em 2000 e em 1999 não houve alteração, mantendo-se em 51%, o que revela que houve um aumento de alunos da educação especial matriculados na rede privada no ano de 2001.


Plano Nacional de Educação, 2001
 

O Plano Nacional de Educação é indicado na Constituição, art. 214:

A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à:
I - erradicação do analfabetismo;
II - universalização do atendimento escolar;
III - melhoria da qualidade de ensino;
IV - formação para o trabalho;
V - promoção humanística, científica e tecnológica do país.

E reafirmado na LDB, art. 87, § 1º:

A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos.

Interessante notar que a LDB vai remeter o compromisso do Plano Nacional de Educação com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos e não menciona os eixos norteadores propostos na Constituição, e já citados anteriormente, que são: erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade de ensino, formação para o trabalho, promoção humanística, científica e tecnológica do país.

A Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, foi promovida pelo Banco Mundial, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Miranda afirma que

desde o início da presente década, algumas perspectivas de políticas sociais orientadas para as exigências do estágio atual do capitalismo para a América Latina têm sido delineadas por organismos internacionais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e agências da Organização das Nações Unidas (ONU), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Comissão Econômica para América Latina e Caribe da UNESCO (CEPAL) e o [Fundo das Nações Unidas para a Infância:] UNICEF [1997, p. 38].

As proposições desses organismos, concernentes à nova ordem mundial, são a condição para obtenção de financiamentos para educação. Sobre os princípios do Banco Mundial, Lauglo (1997, p. 30) afirma que "a teoria do capital humano é influente na análise que o Banco faz de política educacional e social. Vê a educação como um investimento na futura produtividade do trabalho, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo que procura educação".

Assim, entender a proposição da LDB de que o Plano deve estar em sintonia com a Declaração Mundial de Educação para Todos é compreender quais são os compromissos que a política educacional assume no país. Saviani (1998, p. 3) afirma que "a principa1 medida de política educacional decorrente da LDB é, sem dúvida alguma, o Plano Nacional de Educação", pois ao se acompanhar o elenco de ações e metas propostas no Plano e colocadas como prioridades do governo e de plataformas eleitorais, pode-se avaliar a política educacional que efetivamente se concretiza, ou se propõe.

O Plano Nacional de Educação, lei n. 10.172, publicado no Diário Oficial da União em 11/1/2001, assim como a LDB, também teve duas propostas de textos apresentadas na Câmara: uma proposta do MEC e a outra da oposição, construída com base em ampla discussão popular e democrática.

Vale ressaltar que na proposta apresentada pela oposição, cujo texto foi aprovado no II Congresso Nacional de Educação (CONED), realizado em Belo Horizonte, em 1997, a educação especial não aparecia como capítulo autônomo, o tema aparecia diluído nos outros capítulos, quando pertinente. Na proposta do MEC, a educação especial já aparecia como capítulo autônomo, como anteriormente afirmado.

O destaque, ou o não-destaque, do assunto tem sido matéria controversa entre os profissionais e pesquisadores da área. Para alguns, a defesa da inclusão exige que a modalidade educação especial seja tratada dentro dos diferentes níveis de ensino, negando-se uma especificidade a ser considerada no todo.

Não partilho desse pensamento, pois entendo que o assunto merece destaque na política educacional, uma vez que a pessoa deficiente nunca foi efetivamente contemplada pelas políticas sociais e educacionais e que nossa prática educacional em educação especial foi construída no paradigma da educação não-formal e segregada. Penso, também, que discutir a universalização da educação, o direito de todos à cidadania e, coerentemente, lutar pelo princípio da inclusão do aluno deficiente no ensino regular é um desafio político que exige organização, produção de conhecimento, reflexão da realidade e, nesse sentido, a modalidade de educação especial deve ser construída, conquistada. A educação especial precisa ser pensada em relação com a educação, porém, estar relacionada não significa perder o que lhe é próprio, negar seu percurso histórico. Neste momento político em que a pessoa deficiente ainda não é entendida como cidadã, com direitos, em que a educação especial é marcada, historicamente, pela institucionalização, em que a educação especial não pertence à educação regular enquanto prática pedagógica efetiva, entendo que ela deve ter destaque na lei ao mesmo tempo em que ganha espaço nos textos e contextos do ensino regular.

A educação especial no Plano Nacional de Educação:
alguns destaques para reflexão

1. O diagnóstico:

• reafirma o direito constitucional;
• enaltece a sabedoria da legislação que condiciona a inclusão às condições do aluno deficiente;
• aponta as tendências recentes na área (classe comum, sala de recursos, sala especial e escola especial);
• reafirma o objetivo de atendimento com qualidade;
• apresenta dados quantitativos que revelam a histórica exclusão escolar e o descompromisso público.

2. As diretrizes:

• definem o alunado da área como sendo as pessoas com necessidades especiais na aprendizagem cuja origem está nas deficiências física, sensorial, mental ou múltipla ou em características como altas habilidades, superdotação ou talentos;
• afirmam a necessidade de uma política pública "explícita e vigorosa" que reconheça a pessoa especial enquanto cidadã, com direito à escola inclusiva;
• reorientam o trabalho das escolas especializadas como o de apoio aos programas de integração;
• sinalizam a necessidade de criação de vagas para EE em todos os níveis de ensino;
• apontam a urgência da intervenção, da articulação e da cooperação nas áreas da educação, saúde e assistência;
• priorizam a formação de recursos humanos para todos os níveis de ensino;
• reclamam o estabelecimento de parcerias entre Estado e sociedade civil para o cumprimento das diretrizes;
• alertam para os encaminhamentos inadequados de alunos com "dificuldades comuns de aprendizagem, problemas de dispersão de atenção ou de disciplina" para os serviços de educação especial;
• estabelecem o mínimo equivalente de 5% dos recursos vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino.

3. Os objetivos e metas:

Coerente com a diretriz de se estabelecerem parcerias entre Estado e sociedade civil, os objetivos e metas afirmam a necessidade de parcerias nas áreas de: estimulação precoce (meta 1), atendimento à deficiência severa (meta 6), criação de material didático para deficientes visuais (meta 9), ensino da língua brasileira de sinais (Libras) (meta 11), fornecimento e uso de equipamentos de informática (meta 14), qualificação profissional e colocação no mercado de trabalho (meta 17).

Mesmo após enumerar todas as necessidades de parcerias com a sociedade civil, há o destaque expresso na meta 27 que diz: "assegurar a continuidade do apoio técnico e financeiro às instituições privadas sem fim lucrativo com atuação exclusiva em educação especial, que realizem atendimento de qualidade, atestado em avaliação conduzida pelo respectivo sistema de ensino".

Saviani, ao analisar a proposta governamental do Plano Nacional de Educação, chama a atenção para o descompromisso da União, revelado pelo anúncio do Estado apenas como colaborador na maioria das metas propostas. O autor aponta que essa análise não é apenas quantitativa, mas, principalmente, qualitativa, ou seja, as metas que cabem prioritariamente à União "se restringem, via de regra, a atividades como elaboração de documentos, definição de diretrizes, estabelecimento de normas e organização de sistemas de informações" (1998, p. 87).

Por fim, cabe ressaltar, ainda, que o Plano aprovado:

1. conceitua o alunado da educação especial como aquele com necessidades especiais de aprendizagem decorrentes de deficiências físicas, sensoriais e mentais, assim como de superdotação. Alerta ainda para os inadequados encaminhamentos de alunos à educação especial. Essa ressalva é muito importante na medida em que na Declaração de Salamanca o conceito necessidades educativas especiais (NEE) abrangia crianças com deficiência e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos ou marginalizados [Brasil, 1997, p. 18]. Como no Brasil o termo necessidades especiais já se confunde com deficiência, essa diferenciação me parece bastante importante, pois evita os rótulos e estigmas colocados em alunos sem deficiência alguma, além do que, resguarda os parcos recursos orçamentários destinados à educação especial;

2. destaca a educação especial em todos os níveis de ensino;

3. aponta a necessidade da formação de pessoal especializado em educação especial, em níveis de graduação e pós-graduação. Tarefa especialmente indicada às universidades públicas;

4. define o percentual de 5 ou 6% dos recursos vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino.

Assim, a leitura cuidadosa da legislação em vigor e a análise do contexto social revelam que a educação especial deve continuar como responsabilidade da sociedade civil. Sem dúvida, a legislação que aponta a possibilidade de o aluno deficiente ser incluído em todos os níveis do ensino regular favorece as famílias que ocupam um lugar social que permite o acesso aos serviços e recursos especializados em educação, saúde, transporte.

Prova disso tem sido o crescente número de alunos deficientes no ensino superior. Universidades públicas e privadas têm recebido um maior número de alunos nos mais diferentes cursos de graduação e pós-graduação.

As crianças e jovens em idade escolar, cujas famílias têm acesso restrito aos bens e serviços sociais, a depender de suas condições individuais, conforme afirma a legislação, talvez encontrem uma vaga no ensino fundamental e dali comecem a percorrer os conhecidos e possíveis caminhos do fracasso escolar. Não se pode negar que o movimento de inclusão trouxe visibilidade para a pessoa deficiente, uma vez que sua condição ganhou mais espaço no debate acadêmico e no debate público. Num país onde, na década de 1990, houve denúncia de crianças deficientes enjauladas como bichos, esse avanço não é desprezível (ver, por exemplo, Nascimento, 1998).

Na legislação atual, a pessoa deficiente ganhou o status de cidadã. Hoje, olha-se para ela como alguém com direitos e capacidades. Resta o movimento social avançar ao patamar da conquista desses direitos.

E aqui cabe o conceito de conflito, a reflexão sobre a ação do homem na construção da história. Se por um lado vou desvelando a proposta da escola para todos, a escola inclusiva, como mais uma proposta que favorece, cria e mantém as condições gerais de produção capitalista, entendendo-se que, no sistema capitalista, os "estabelecimentos de ensino estão destinados à formação das novas gerações de trabalhadores, bem como as condições várias de existência das famílias de trabalhadores", como afirma Bernardo (1991, p. 159), por outro lado penso que essa mesma instituição encerra lutas e conflitos. Se há propostas de trabalho amparadas num conceito de qualidade total que favorece a manutenção de uma sociedade cindida na exploração do trabalho, também há na escola hoje, práticas sociais que resistem a essa proposta e se baseiam em um conceito de qualidade que sinaliza uma ferramenta de luta para a superação dessa mesma exploração. Porque dentro da escola há conflito, há educadores que lutam, individual e/ou coletivamente, por uma proposta educacional crítica e politicamente comprometida com uma sociedade justa e solidária, sem exploração do trabalho. E, também, há conflitos fora da escola; assumindo-se que o conflito é o elemento estruturante das relações sociais entre capitalistas e trabalhadores, conflitos enquanto lutas coletivas e individuais relevadas em revolta e resistência dos trabalhadores (BRUNO, 1996, pp. 104-105).

A partir do ano 2000, presenciamos várias manifestações populares, em diversos países, contra o modelo neoliberal, contra o capitalismo. As noticias de movimentos sociais espalhados pelo mundo são cada vez mais freqüentes; manifestações anticapitalistas são organizadas na Europa e nas Américas.

No Brasil, em janeiro de 2002, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, aconteceu o 20 Fórum Social Mundial, com a presença de representantes de vários países que se propuseram a questionar os ditames neoliberais e a discutir alternativas para uma outra ordem social. Esse fórum foi um encontro de grupos da sociedade civil para debater propostas que apresentassem um contraponto às decisões do Fórum Econômico Mundial, cujos participantes, banqueiros, empresários e líderes políticos, reuniram-se em 2002 em Nova York, na sua 32ª reunião, para debater os rumos da economia internacional. Em outubro de 2001, ainda em Porto Alegre, realizou-se o 1º Fórum Mundial de Educação, com o objetivo de ser um espaço de diálogo entre todos os que neste mundo globalizado levam adiante projetos de educação de cunho popular, de enfrentamento com o neoliberalismo, seja nas esferas públicas, governamentais ou não, comunitárias e de pesquisa.

Sem a ingenuidade de pensar que o debate de um fórum possa engendrar uma nova política econômica, mas compreendendo que a organização, a denúncia e a pressão têm papel constituinte no movimento histórico, entendo que o conflito se desvela.
 



CAPÍTULO DOIS

O TRABALHO PEDAGÓGICO COM O ALUNO CEGO
 

Na escuridão percebi
o valor enorme das palavras.
GRACILIANO RAMOS
 

Analisar as possibilidades que o aluno cego tem para estudar no ensino regular exige a reflexão sobre algumas das práticas pedagógicas que, historicamente, têm sido construídas na educação da pessoa deficiente visual.

As práticas pedagógicas revelam as concepções que o educador tem sobre o homem, sobre a sociedade, sobre a educação. As práticas pedagógicas com o aluno deficiente demonstram, também, as concepções do educador sobre o conceito de deficiência e educação especial, embora nem sempre o educador tenha consciência das concepções que fundamentam seu trabalho.

Assim, ainda que rapidamente, compreender o percurso histórico das concepções que engendram as diferentes práticas sociais no campo da educação pode ser um caminho interessante de estudo para a reflexão sobre o trabalho pedagógico, expressado no cotidiano escolar. Neste estudo, nosso foco está na educação dos cegos. Vygotsky (1995) considera que a evolução histórica da concepção de deficiência visual compreende três estágios principais: um período místico, um período biológico-ingênuo e um período científico. Apresentarei as principais idéias presentes em cada período, entremeando-as com as contribuições de outros autores e, quando possível, exemplos de dados desta pesquisa.

O período místico compreende a Antigüidade, a Idade Média e uma parte significativa da História Moderna. Registros e manifestações da cultura popular revelam que, no imaginário coletivo desse período, a cegueira é considerada uma grande desgraça, assim como um dom extraordinário. Se, por um lado, a pessoa cega é vista como desamparada e indefesa, por outro lado lhe é conferida a possibilidade de visão interior. A perda da visão biológica lhe concede a predisposição a uma luz espiritual só a ela acessível. Nesse sentido, o homem cego compõe a categoria dos profetas do futuro, pois é aquele que tem a visão interna despertada. Dom filosófico, poderes proféticos, proximidade de Deus são capacidades provenientes de uma alma supersensível, de forças espirituais que habitam o enigma da cegueira. Essa foi a concepção de cegueira predominante nesse longo período histórico.

Suchodolski (2000), ao analisar a história do pensamento pedagógico, afirma que para os filósofos gregos o espírito do homem trazia sua essência. Platão compreende essa essência como uma cópia do mundo das idéias, ao passo que para Aristóteles ela é substância fundamental e apriorística. Nas duas concepções a educação deveria reavivar virtudes inatas. No cristianismo, a essência do homem revela-se num espírito que, imagem e semelhança de Deus, está afastado do criador em conseqüência do pecado original, daí a necessidade da educação contemplativa e mística. Nessa direção, pode-se pensar que o homem cego vai ser aquele que não se "distrai" olhando para fora de si, com o empírico ou o mundano. O homem cego tem o privilégio de olhar para dentro de si, de mergulhar em sua essência e, assim, reencontrar-se com o mundo inteligível das idéias, da substância primeira do humano ou reaproximar-se de Deus, de quem se afastou no pecado original. Lima (2000, p. 4) alerta para a visão mística, que atribui "sexto sentido" e poderes sobrenaturais aos cegos, e que ainda é encontrada nos dias atuais. O autor entende que essa atitude que atribuí aos cegos "habilidades extraordinárias e uma capacidade de tudo poder fazer por si sós, sem a ajuda de outrem, colabora para a execração daqueles indivíduos, já que não propicia ou limita situações de socialização entre eles e as pessoas portadoras de visão normal".

Nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, uma das participantes alerta para a presença dessa concepção mística ainda hoje, quando a pessoa deficiente visual é vista como incapaz ou extraordinariamente dotada. Às vezes, alguém vai me guiar e me segura muito forte, como se eu não tivesse equilíbrio, ou então, a pessoa fala alto, pois pensa, até inconscientemente, que sou deficiente auditiva, ou então, uma pessoa vai explicar alguma coisa e diz tudo nos mínimos detalhes como se eu não soubesse das coisas. Ë uma confusão muito comum, e até muito sutil, as pessoas pensarem que temos algum outro tipo de deficiência, mesmo que não pensem de maneira tão explícita. Penso que o professor também é suscetível a essas confusões, dada a cultura que a sociedade impôs, então, esse tipo de confusão pode levá-lo a uma certa insegurança quanto à aprendizagem do deficiente. Há o professor que acredita que o deficiente visual não aprende porque é um deficiente global e, outros, que acreditam que porque ele não tem visão, desenvolveu uma inteligência extraordinária. Às vezes, as pessoas procuram esse lado meio sensacional, de achar que o deficiente é uma pessoa extraordinária, mas há pessoas muito diferentes, inclusive dentro da categoria da deficiência [FABIANA].

O período biológico ingênuo, próprio do Iluminismo, século XVIII, tem sua origem marcada num momento de grande desenvolvimento da ciência. As novas relações sociais e econômicas, que surgem com a ascensão da burguesia, possibilitam e estimulam descobertas e avanços científicos. O homem, agora no centro do mundo, é dono do tempo e de uma razão natural, e não mais divina. Com isso, não há lugar para explicações místicas, o homem está livre de um destino predeterminado e, portanto, ele precisa ser esclarecido, "iluminado", para que uma sociedade melhor possa ser construída. Assim, o pensamento filosófico recupera as tradições laicas e racionalistas do mundo antigo e considera o homem ser pensante cuja natureza é racional. Duas fortes correntes filosóficas marcam o racionalismo desse período: o inatismo e o empirismo. O inatismo, ou racionalismo idealista, afirma que o conhecimento verdadeiro se dá no ato reflexivo, e que o homem traz, na razão, princípios e idéias inatas. O empirismo, ou racionalismo empirista, afirma que o único conhecimento possível e válido é aquele que se tem por intermédio de idéias formadas com base nas impressões sensíveis (SUCHODOLSKI, 2000).

Na luta contra o obscurantismo místico que, segundo alguns, marcou os séculos anteriores, os iluministas apregoam a necessidade de esclarecer as amplas camadas populares, ideal que se alia aos interesses econômicos e políticos do capitalismo em vias de consolidação.

Deste ângulo, a educação passa a ser um ideal que deve ser compartilhado com todos. Na educação especial, um estudioso português, Jacob Pereira (1715-1780), cria uma metodologia para ensinar linguagem a surdos. Jean Marc Itard (1774-1838), médico francês, desenvolve um trabalho pioneiro com o menino selvagem de Aveyron, o Victor, que apresentava sério atraso de desenvolvimento, atribuído por ltard ao longo período em que viveu sozinho na floresta, sem experiências de exercício intelectual. Valentin Haüy (1745-1822), pedagogo francês, organizou a instrução do deficiente visual em instituições especiais na França e na Rússia; na instituição francesa, Louis Braille (1809-1852) foi aluno e depois professor. Ponto comum entre esses três educadores, além de acreditarem na capacidade de aprendizado da pessoa deficiente, é que acreditam também que essa aprendizagem se dá com o auxilio e a estimulação dos sentidos remanescentes.

Assim, Jacob Pereira vai ensinar os surdos com base na sensação tátil-visual; seu discípulo, o abade Deschamps, registra um curso intitulado "Como substituir o ouvido pela visão". Itard desenvolve um intenso programa de estimulação sensorial para compensar a insensibilidade demonstrada por Victor (PESSOTTI, 1984). Valentin Haüy inventou as letras em relevo para instrução dos cegos, a partir do que Louis Braille desenvolveu seus caracteres. Assim, a educação pelos sentidos marcou os primeiros relatos da educação especial.

A educação pelos sentidos está fundamentada numa concepção filosófica que afirma a crença inabalável na razão humana. Para os empiristas, a gênese do conhecimento é a experiência sensível, responsável pelas idéias da razão e pelo controle da atividade racional.

John Locke (162 1-1704), filósofo inglês, empirista, concebe a mente humana como uma tábula rasa, papel em branco, que aos poucos vai sendo ocupada pelos dados da experiência. Para ele, a experiência é a única fonte das idéias, sendo entendida como a síntese entre sensação e reflexão. A sensação é recebida pelos órgãos dos sentidos e a reflexão é operação mental. Pelos órgãos dos sentidos a mente recebe várias e distintas percepções das coisas. As sensações recebidas pelas "idéias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e todas as idéias que denominamos de qualidades sensíveis" são fonte do conhecimento que, juntamente com as operações mentais, possibilitam o entendimento humano. Para Locke, os sentidos retiram dos objetos externos as percepções que são levadas para a mente (L0CKE, 1999, pp. 57-58).

Com base nessas idéias, no período biológico ingênuo, alguns estudiosos do desenvolvimento humano "anormal" supõem que a ausência de um órgão sensorial pode ser compensada com o aumento do funcionamento dos outros órgãos sensoriais. Assim, a posição de que a cegueira pode ser compensada pelo desenvolvimento de outros órgãos sensoriais traz o fundamento filosófico empirista de que o conhecimento humano se dá pela experiência sensível. Nesse contexto, a educação do cego passa a priorizar a educação dos sentidos intactos. Sem dúvida o passo dado foi gigantesco. Do abandono às forças sobrenaturais, a pessoa deficiente agora passa a ser educada. As práticas pedagógicas são registradas, sobre elas se reflete e se produz conhecimento. Vygotsky (1995, p. 77) aponta que, assim, a cegueira deixa de ser encarada, apenas, como um defeito. Entende-se que ela pode ser compensada por outros órgãos dos sentidos, e isso significa que ela engendra novas forças, novas funções.

Pesquisas posteriores apontadas pelo autor (idem, p. 76) revelaram a falsidade da afirmação de que a cegueira pode ser compensada por outros órgãos dos sentidos. Porém, a idéia de que ela pode gerar novas forças será retomada em uma outra perspectiva, no século XX. Entretanto, ainda hoje, é muito comum ouvirmos profissionais defenderem que a educação da pessoa cega deve priorizar a estimulação e integração dos canais sensoriais remanescentes. Nessa perspectiva, o homem é concebido como indivíduo biológico, e está no desenvolvimento da audição, do olfato, do paladar e, principalmente, do tato a possibilidade de a pessoa cega conhecer o mundo. Com base nesses fundamentos, a educação, muitas vezes, circunscreve-se apenas a treinamento sensorial, cognitivo, comportamental, articulatório, a treinamento das atividades da vida diária, da escrita, a treinamento para o mundo do trabalho.

É inegável o avanço de concepção que há entre o período místico e o período biológico ingênuo, com a passagem de uma educação mística e idealista para uma educação que se volta para os objetos e fatos da realidade.

Porém, se as concepções místicas engendraram uma pedagogia ocupada com a essência humana, ao passo que as concepções centradas no homem engendraram uma pedagogia ocupada com a existência humana, até aqui, filósofos e educadores deixaram de considerar a historicidade da vida humana enquanto cultura, processo e movimento (SUCHODOLSKI, 2000).

Para Vygotsky (1995), esse é o salto que o período científico traz para a reflexão sobre a educação da pessoa cega. Numa nova abordagem teórica, o homem não é mais concebido apenas como indivíduo biológico. Ele, agora, é indivíduo social e histórico e é a partir das relações entre os homens e da ação dos homens sobre a natureza, pelo trabalho, que o individuo internaliza conhecimentos.

O período científico caracteriza-se a partir da Idade Moderna. À medida que a pessoa cega tem acesso à educação sistemática, revela-se sua capacidade de aprendizagem. Isto instiga, cada vez mais, a análise científica dos processos de desenvolvimento humano relativos à cegueira.

Com um referencial materialista histórico, Vygotsky (1995) aponta, em seus estudos sobre a cegueira, que a educação sistemática é um marco para a ciência na área, pois, a partir daí, surge a possibilidade de se verificar que a cegueira provoca no individuo um processo de compensação a esse comprometimento. Compensação essa compreendida como um processo social, e não orgânico, como foi atribuído no período anterior. Nessa perspectiva teórica, entende-se que a aprendizagem humana se dá com base na convivência social, na apropriação das atividades historicamente engendradas pelos homens, pela internalização dos significados sociais. Assim, o homem conhece o mundo pela atividade simbolizada nas relações sociais. Toda atividade humana é constituída de significados que são mediados, de um homem para o outro, pela linguagem, que é o sistema simbólico básico de comunicação de todos os grupos humanos. Entre as várias linguagens que representam o real, a palavra é ímpar.

Os sentidos, localizados em órgãos sensoriais, têm um papel fundamental na apropriação do empírico, do real. Porém, os sentidos humanos não são entendidos como puro aparato biológico individual, e sim concebidos como sentidos sociais, visto que o homem enxerga, ouve e sente aquilo que outro homem lhe apontar para ver, ouvir, sentir, dentre as possibilidades do seu tempo e lugar social. Desse modo, a construção dos sentidos é tarefa histórica, cultural e social. Não se nega que, biologicamente, a cegueira é muito limitadora, porque ela impede a pessoa de se locomover, explorar novos espaços e receber informações visuais. Porém, socialmente, ela não é limitadora, porque a pessoa cega, pela palavra, pela comunicação com o outro, apropria-se do real ao internalizar os significados culturais. Numa ilustração singela, pode-se afirmar que, mesmo sem a percepção visual das cores dos objetos, a pessoa cega apreende os significados sociais atribuídos às cores, como por exemplo: o preto é luto, o vermelho é uma cor quente, o branco representa a paz.

Porém, essa limitação biológica gera um conflito. Se de um lado, o processo de humanização impulsiona o indivíduo para o convívio social, de outro lado, a limitação biológica, de mobilidade e de recepção visual, dificulta os processos sociais. O novo significado da compensação mostra que esse conflito engendra forças para superação dos obstáculos. Assim, a luta contra as limitações da cegueira e suas conseqüências, compreendida numa abordagem social e histórica, revela a necessidade de se empreenderem ações em três dimensões: a prevenção da cegueira, enquanto produção social, dadas as péssimas condições de vida das camadas populares; ações educacionais que coloquem fim ao isolamento da pessoa cega e ao limite entre a escola especial e a escola regular; o acesso ao trabalho criador em contraposição ao trabalho explorado, humilhante, assistencial.

Com essas considerações, Vygotsky revela que a superação da cegueira depende de um novo projeto político, bem como da constituição de uma nova sociedade. Projeto político revolucionário que, como afirma Schaff (1967, p. 9), deve "transformar o mundo desumano, em que dominam os objetos, num mundo dos homens, num mundo de homens livres, que formem conscientemente o seu destino e para os quais o bem supremo seja o próprio homem".

 


 


CAPÍTULO 3

DEPOIMENTOS ORAIS:

A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA


[...] todo indivíduo é não somente a síntese das
relações existentes, mas também da históriadestas
relações, isto é, o resumo de todo o passado.
Gramsci


Como procedimento metodológico de pesquisa, escolhi trabalhar com depoimentos orais temáticos, uma modalidade da história oral. Como professora de graduação em curso de formação de professor para a educação especial, diversas vezes tive a oportunidade de convidar pessoas deficientes e seus familiares para conversarem com os alunos. Com essa atividade aprendi a força dos depoimentos orais enquanto recurso pedagógico, pois a discussão teórica dos conteúdos arrolados nas disciplinas ganhava os significados complexos e múltiplos que a vida traz. O exercício colocava-se nesse movimento: partir dos textos acadêmicos e ir para os depoimentos e depois reencontrar novos textos acadêmicos que discutissem as novas questões que os depoimentos suscitaram... Claro, ficava evidente que o drama da vida é maior e mais complexo do que o texto produzido, como já apontava Calvino (1998). Sim, nesse procedimento de ouvir o drama/a trama da vida ficava claro o quanto o texto acadêmico reduzia a vida em alguns tópicos de análise. Porém, também ficava claro que o texto acadêmico dava "luz" para olhar entranhas, estabelecer relações, trazer novas indagações. Parceiros, então: depoimentos de vida e análise teórica da trama histórica em que essa vida/depoimento se deu. Essa "força" metodológica fui intuindo, re-elaborando, re-fazendo em minha atividade profissional.

Há uma extensa literatura sobre as possibilidades de trabalho com depoimentos orais na pesquisa social. Histórias de vida, histórias temáticas, biografias, depoimentos orais são fontes primárias utilizadas em pesquisas que buscam o resgate da memória coletiva. Vários autores identificam essa opção metodológica como uma opção política, ou seja, dar voz aos excluídos. Fonseca (2000, pp. 155-156) afirma que embutido na História Oficial há o silêncio do pobre, do negro, da mulher e principalmente dos excluídos da escola, ou seja, as "histórias" da História sempre foram sendo consideradas apenas a partir dos interesses daqueles que dispõem do poder, privilegiando o estudo dos grandes homens, fatos, datas, principais feitos e episódios ocorridos que não explicam o processo histórico concreto [...] a História Oral possibilita desvelar a retaguarda dessas referidas seleções e relato dos fatos oficialmente eleitos, fazendo emergir o subjacente, o subjetivo, o oculto, o obscuro que também "fizeram" história, portanto são legítimos e por isso merecem vir à tona, dando maior concretude à História.

No entanto, embora a defesa da autora acima citada seja contundente, é importante assinalar que essa opção política não é intrínseca à metodologia da história oral, pois a mesma metodologia que tem sido utilizada para dar voz aos excluídos da história oficial também tem sido recurso metodológico para legitimar a voz do poder. Thompson, pesquisador considerado o "pai" da história oral na Inglaterra, tem desenvolvido e defendido projetos com gestores do mercado empresarial e financeiro, afirmando que "a história oral pode ajudar sua empresa a criar uma identidade, dar aos funcionários um sentimento de conforto e lealdade e ajudá-los a entender os processos de mudanças" (2000, p. 14).

Gattaz (1998, p. 22) afirma que "o nascimento da moderna história oral deu-se em 1948 quando o jornalista e historiador Alan Nevins iniciou suas primeiras gravações com 'americanos significantes', fundando o 'Oral History Research Office' na Universidade de Columbia, em Nova York", muito embora as fontes orais estivessem presentes em trabalhos realizados desde o século XIX. Assim, segundo a autora, a história oral surge comprometida com a história das elites, comprometida com os "notáveis" que buscam registrar seus feitos e pensamentos; porém, rapidamente se difunde para outros países e outras disciplinas. Quase ao mesmo tempo, na Itália, sociólogos e antropólogos, "próximos de partidos de esquerda, utilizam a pesquisa oral para reconstruir a cultura popular". A partir dai nasce uma outra história, "que dá voz aos povos sem história, iletrados, que valoriza os vencidos, os marginais e as diversas minorias, operários, negros, mulheres" (JOUTARD, 1998, p. 45).

Pode-se afirmar que há diferentes tendências políticas entre os pesquisadores oralistas. Tendências que podem priorizar as elites e os notáveis, assim como as populações sem história, "dando voz aos vencidos". Os diferentes interesses presentes nessas tendências revelam os compromissos políticos da ciência, pois a pesquisa não é neutra, ela expressa uma visão de mundo.

No Brasil, segundo Gattaz (1998, p. 23) e Ferreira (1998, p. 19), os primeiros trabalhos nessa abordagem datam do período de 1970, quando o país ainda vivia sob Regime Militar. Nesse período, na universidade há forte censura aos trabalhos acadêmicos voltados às camadas populares. Assim, alguns pesquisadores brasileiros, influenciados pela experiência americana, são incentivados, com verbas da Fundação Ford, a registrar a memória dos grandes líderes políticos nacionais. Com o final do Regime Ditatorial Militar, que "funcionou como um forte elemento de inibição para a abertura e consolidação de programas de entrevistas" (FERREIRA, 1998, p. 21), só a partir dos anos de 1990 é que aparecem alguns trabalhos com nos grupos socialmente excluídos como: "os índios, os imigrantes os favelados ou as crianças de rua" (GATTAZ, 1998, p. 27).

Os debates sobre os interesses subjacentes a cada uma dessas tendências têm aparecido nos congressos e publicações sobre história oral. A socialização da produção científica revela que crescem os estudos cuja opção é dar voz aos excluídos, e também crescem os registros de memória das elites que solicitam projetos de história oral com fins de marketing para as grandes empresas (FERREIRA & AMADO, 1998, pp. 26-28).

Conclui-se que o percurso metodológico em si, como técnica, não se compromete politicamente. O compromisso político revela-se na concepção de mundo que o pesquisador expressa, nas perguntas que faz, no diálogo que mantém com o conhecimento socialmente produzido. Assim, a história de vida é um procedimento metodológico que pode ser utilizado para dar voz aos oprimidos, ou continuar dando voz aos opressores, como nos revelam numerosos trabalhos científicos que utilizam essa metodologia.

Neste estudo, trabalhar com a história de vida foi uma opção política de dar voz aos excluídos da escola e uma opção científica metodológica de estudar um indivíduo real, constituído socialmente, produto e criador da história, indivíduo que pertence a um grupo social, que vive em relações. Dar voz aos excluídos da escola porque as pessoas deficientes estão, historicamente, fora da escola e na condição de excluídos - eles pouco, ou nunca, falam. Alguém, geralmente, fala e decide por eles. Em nome deles, muitas vezes, definem-se políticas, abrem-se serviços, organizam-se cursos e congressos. Nesse sentido, aqui se busca conhecer o que eles têm a contar sobre suas vidas, suas experiências, seus anseios; quais as lembranças que carregam da escola que freqüentaram, do relacionamento com os professores, com os colegas; e sobre essas marcas busca-se conhecer o que pensam da escola inclusiva.

Estudar um indivíduo real é uma opção metodológica que se recusa a trabalhar sobre uma idealização de homem, de educação (especial), de escola. Visa sim, a conhecer as determinações sociais que engendraram a narrativa daquela vida e, então, refletir sobre as determinações sociais que no tempo presente tecem novas vidas. Opção científica metodológica que busca pensar um homem concreto, que se relaciona numa determinada sociedade, que sofre as limitações do seu tempo e lugar social; um homem criativo e construtor desse mesmo tempo que o limita e que ele, dialeticamente, transforma. Toma-se, assim, a história de vida como uma unidade de análise reveladora da relação entre o social e o indivíduo. História de vida que expressa as possibilidades históricas concretas de aquela vida se constituir.

Como pesquisadora, quero ouvir a voz do aluno deficiente visual e tentar compreender o texto que emerge dessas tramas tão cotidianas reveladas na história de vida de sujeitos reais, numa tentativa de trazer o indivíduo inteiro para o diálogo da pesquisa, e de compreender esse sujeito na complexidade das múltiplas determinações de seu tempo e lugar social. Indivíduo que não é constituído apenas por um aparato biológico, e sim um indivíduo que faz parte de uma sociedade, marcado por um tempo, por um lugar social.

Em síntese, a tentativa de estudar um homem real é o que justifica a opção metodológica deste estudo. Na educação especial, muitas vezes, temos reduzido o homem a um corpo e, nesse corpo, a uma ausência biológica, a um erro genético e, assim, vamos tecendo explicações e propostas com base na falta de visão ou audição, na pouca inteligência, no comprometimento motor. Neste estudo, entende-se o aparato biológico como um dos componentes constituintes do homem. Constituição que é histórico-social, pois o homem se faz na realidade à medida que a transforma e por ela é transformado. Schaff (1967, p. 65) afirma que "o homem, além de um produto da evolução biológica das espécies, é um produto histórico, um produto de certa forma mutável nas diversas etapas da evolução da sociedade, conforme pertença a uma ou outra das classes e camadas da mesma sociedade".

Por isso, entendo que refletir sobre a escolaridade do aluno cego é refletir sobre as diferentes trajetórias que os alunos cegos podem percorrer em nosso país, a partir das condições sociais que estão colocadas para sua família. Não se descola o aluno cego de sua história de vida. História marcada pelo tempo vivido, pelo lugar social ocupado. Muitas vezes a discussão sobre a inclusão dos alunos deficientes na escola regular é feita baseando-se em um aluno genérico, aistórico. Partir da deficiência como única categoria explicativa da exclusão tem, no meu entender, alterado o olhar e congelado a análise numa idealização. Importante afirmar que não se quer negar a deficiência e muito menos minimizar a marginalização social que sofrem as pessoas que estão fora dos padrões aceitos socialmente. Não, a cegueira em si é uma condição limitadora, porém as histórias de vida podem revelar que indivíduos reais percorrem diferentes caminhos sociais, mesmo partilhando da mesma condição biológica. Buscam-se aqui, por meio da análise das narrativas de vida, elementos que possibilitem a reflexão sobre as relações sociais que determinaram a inclusão/exclusão escolar do aluno cego.

A construção dos depoimentos

- Os critérios para selecionar os entrevistados. Contatei pessoas com idade mínima de 18 anos, com perda total de visão anterior ao início da alfabetização, que se tivessem alfabetizado em braile e estudado no ensino regular. Tive uma grande preocupação de selecionar pessoas que me falassem de diferentes lugares sociais, e os indicadores sociais coletados revelam esses lugares. Além disso, que evidenciassem disponibilidade e interesse para participar do estudo.

- Os contatos para encontrar pessoas para entrevistar. Para encontrar pessoas que reunissem todos esses critérios, conversei com uma professora que atua na área da deficiência visual há vários anos em Campinas. Organizamos uma lista de nomes de pessoas que potencialmente poderiam ser entrevistadas. A participação dessa professora foi fundamental para a escolha dos entrevistados, uma vez que ela tinha acesso efetivo às histórias de várias pessoas cegas na cidade e pôde me sugerir diversos contatos. Com a lista de nomes organizada, a professora fez os contatos necessários com o objetivo de mediar minha aproximação, apresentando-me e verificando o interesse que teriam em participar do estudo. À medida que as pessoas contatadas se dispuseram a conversar comigo, telefonei para esclarecer as dúvidas e marcar o encontro para gravar os depoimentos. Consegui agendar sete encontros. Interessante assinalar que, no contato para agendar os encontros, todos os entrevistados demonstraram interesse no objetivo da pesquisa, afirmaram disposição e desejo de participar de um estudo sobre inclusão e apontaram que tinham o que falar sobre o tema.

- As entrevistas. Entrevistei três pessoas em casa, três no local de trabalho e uma na escola. Uma das entrevistas não foi considerada para este estudo, pois, durante o encontro, foi revelado que a perda de visão havia sido um processo progressivo. Assim, embora este processo tenha se iniciado aos sete anos e a própria pessoa se considerasse cega desde então, ela não foi alfabetizada em braile e só se tornou cega aos 18 anos. Durante todas as entrevistas, permanecemos sozinhos no local em que se realizava a gravação. Inicialmente, eu esclarecia novamente os motivos do meu interesse de estudo, garantia sigilo da identidade e pontuava o uso acadêmico das gravações. Quatro entrevistados pediram-me uma cópia da fita gravada. Após esses esclarecimentos, eu ligava o gravador e dava início à conversa; sem perguntas pontuais, eu solicitava que a pessoa falasse da sua infância, das lembranças da escola, da sua família, buscando acolher "um relato de vida", como denomina Bonazzi (1998, p. 238).

Nessa perspectiva, a entrevista não deve buscar algumas informações apenas, deve, sim, permitir que o entrevistado construa um discurso, uma narrativa que fale da vida emaranhada, contraditória e caótica que é a vida cotidiana. Tentei conduzir a entrevista de forma que eles falassem livremente das lembranças; não invadi, confrontei ou interroguei, como alerta Bourdieu (1997, p. 717). Procurei falar muito pouco, deixei quase sempre que conduzissem o rumo das lembranças. Não houve digressões. Os relatos foram densos e claros. Minhas intervenções eram mais para espelhar uma fala conduzindo assim para que falassem mais sobre aquele assunto. Solicitei a todos que trouxessem lembranças desde a infância, que falassem das escolas, do tempo vivido e do presente.

Provocados por mim a lembrarem do passado, trouxeram uma memória constituída por fatos subjetivos, mas que foram produzidos socialmente se considerarmos que "a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo" (BOSI, 1995, p. 54). Ao lembrarem, ao falarem sobre as marcas que os constituíram únicos, os entrevistados, na realidade, falam de um tempo que foi construído por homens reais, falam de um lugar social que foi ocupado nas relações estabelecidas entre esses homens reais. Então, os fatos relatados de sua vida, sua memória individual, trazem o germe de uma memória social, se analisarmos esse relato enquanto parte de uma totalidade formada por múltiplas e complexas determinações.

Ao final do depoimento, quando me perguntavam se estava bom, ou se eu queria saber mais alguma coisa, eu então perguntava se eles queriam dizer alguma coisa para uma professora do ensino regular que estava recebendo um aluno cego na classe pela primeira vez; fiz essa pergunta para todos.

Antes de sair de casa para cada conversa, eu me preparava silenciosamente. Sempre me preocupei com o fato de que as lembranças poderiam trazer dor para os participantes e que eu, na condição de pesquisadora, não poderia ajudá-los nesse processo. Portanto, minhas intervenções deveriam revelar meu respeito, sem invadir, sem ser fria. Eu não era amiga, tampouco terapeuta. Como educadora, eu pedia suas lembranças emprestadas em nome de um projeto de escola, em nome de um projeto político de sociedade.

- A transcrição das entrevistas. Eu mesma transcrevi todas as fitas. Em média, conversei uma hora com cada um deles. Para cada hora gravada, levei cerca de sete horas para a transcrição. Quis pessoalmente transcrever para entranhar-me na fala, reviver a entrevista e pontuar adequadamente a escrita. Relembrar, ouvindo novamente cada conversa. Ouvir e digitar possibilitaram-me um mergulho mais profundo em cada depoimento. Eu voltava a fita, voltava o texto na tela do computador e ia relembrando a entrevista traçando paralelos entre cada história gravada, traçando paralelos com a história da educação e com a vida política do nosso país. Terminada a transcrição, uma aluna da graduação em pedagogia (habilitação em formação de professor para educação especial) fez a revisão do material, ouvindo novamente todas as fitas ao mesmo tempo em que lia o texto já transcrito e, assim, corrigia qualquer omissão, dando-me maior segurança para iniciar o trabalho de análise e textualização.

É inegável que o processo de transcrição de entrevistas coloca o desafio de transformar a linguagem oral em escrita, dada a importância dessa tarefa enquanto um procedimento que assegura a formação de um corpo documental a ser trabalhado pelo pesquisador, como afirma Gattaz (1996, p. 135).

Esse desafio levou-me à reflexão sobre: a) a multiplicidade de elementos que compõem os significados na linguagem oral, como: a voz, a pronúncia, a entonação, o ritmo, os silêncios, as emoções reveladas na linguagem dos gestos, da mímica e de toda postura corporal; b) a constituição social dos significados revelados nas palavras.
Pesquisadores que trabalham com entrevistas, depoimentos orais e histórias de vida têm publicado preocupações pertinentes aos procedimentos de construção e organização dos dados. Nesse mentido, Thompson (1998) e Queiroz (1991) afirmam que é o próprio pesquisador quem deve transcrever as fitas. Os autores concordam que, mesmo o trabalho sendo moroso e solitário, o pesquisador-entrevistador é a pessoa mais indicada para trabalhar o texto, buscando preencher a lacuna existente entre a abundância de reursos da linguagem oral para a secura do texto escrito. Queiroz afirma que "ouvir e transcrever a entrevista constitui um exercício de memória em que toda a cena é revivida: uma pausa do informante, uma tremura de voz, uma tonalidade diferente, uma risada, a utilização de determinada palavra em certo momento, reavivam a recordação", possibilitando ao entrevistador enriquecer o documento (1991, p. 82). Thompson afirma que "a palavra falada pode facilmente ser deformada ao ser passada para o papel [...] existe desde logo perda inevitável do gesto, ou expressão facial, do tom e do ritmo" daí é fundamental que o transcritor esteja "interessado nas fitas e ser especialmente capaz na arte essencial de transformar as pausas orais em pontuação escrita" (1998, p. 292).

Espera-se, assim, que o distanciamento entre a linguagem oral e a escrita diminua com a transcrição feita pelo pesquisador-entrevistador. Um recurso interessante nesse processo é sinalizar, na transcrição literal, as informações complementares, indicando as emoções vividas e os movimentos corporais. Essas marcas sinalizadas no texto indicam que não são expressões orais e sim parte do contexto, o que garante que o texto conserve a máxima fidelidade à gravação.

Terminada a transcrição literal e contextual, o próximo passo é lapidar o texto, retirando os erros gramaticais, as digressões, as repetições, os cortes de frases ou de idéias e as gírias próprias da linguagem informal. Nesse momento, retiram-se as marcas que sinalizam indicadores da linguagem não-verbal, que se incorporam aos significados que o texto revela.

Nesse sentido, Bourdieu afirma que "transcrever é necessariamente escrever, no sentido de reescrever" (1997, p. 710), o que Meihy (1998) e Gattaz (1996) vão chamar de transcrição, ou seja, partindo da transcrição literal o pesquisador confere ao texto uma organicidade compreensível. Um exemplo belíssimo desse trabalho foi feito por Ecléa Bosi (1995) em Memória e sociedade: lembranças de velhos.

Porém, há diferentes posições entre os pesquisadores sobre como apresentar a entrevista ao leitor; posições que vão desde apresentar a transcrição literal até a construção de um relato literário, como aponta Bonazzi (1998, p. 241). Um procedimento que confere fidelidade à voz do entrevistado é o de solicitar-lhe que faça uma leitura do texto final que o pesquisador elaborou a partir da entrevista transcrita. Nessa leitura, o entrevistado deve ter a liberdade de propor alterações que podem ser incorporadas ao trabalho.

Assim, do exercício de transcriação, no qual a entrevista já foi trabalhada, passa-se para a fase final de preparação do texto que será publicado. É o processo de textualização, em que a narrativa deve ser clara, coerente, e que "o entrevistado identifique-se no texto, reconhecendo-se nos seus temas de preferência ou no próprio ritmo da narrativa", como afirma Gattaz (1996, p. 139).

Ainda sobre os desafios da transcrição, acredito ser importante a reflexão sobre a constituição social dos significados revelados nas palavras. Vygotsky (1984) afirma que a constituição do homem é entendida como um processo social no qual o individuo se humaniza à medida que internaliza os significados transmitidos por mediação dos sistemas simbólicos estabelecidos pelo grupo social. Bakhtin (1988) adverte que esses sistemas simbólicos não são neutros, eles estão imersos em valores ideologicamente tecidos na trama da vida cotidiana. Significados e valores que, entranhadamente, são transmitidos por meio das instituições e dos grupos culturais com os quais o individuo interage.

Portanto, o pesquisador-entrevistador sempre participa da construção dos significados. Participa quando, durante a entrevista, na posição de observador-participante, ele vai escolhendo e conduzindo o fluxo das memórias do entrevistado, ou quando, durante as transcrições, ele recria o texto oral e/ou, ainda, quando durante a textualização, ele sinaliza com títulos, subtítulos ou faz a apresentação do entrevistado. Para Bourdieu, não é possível negar que "o sexo, a idade, a posição de origem social, a situação profissional afetam muito diretamente a maneira de coletar os dados e de interpretá-los" (1997, p. 717). Tentando minimizar a participação do pesquisador na criação dos significados, ele afirma que nas transcrições que faz, nunca substitui uma palavra por outra (idem, p. 710).

A meu ver, o procedimento de não trocar nenhuma palavra proferida durante a entrevista é um bom caminho para preservar os significados socialmente aceitos. Porém, as palavras trazem, além do significado socialmente aceito, os sentidos marcados na história de vida de cada um de nós. Em síntese, os significados ultrapassam a unidade semântica da palavra e encontram-se no drama da vida revelado na narrativa, expressado nos significados ideológicos da palavra. No drama da vida de cada individuo estão marcados os sentidos ideológicos das palavras, porque a vida se constitui nas relações sociais e é nessa dimensão que as palavras se revestem de significados. Como exemplo, o significado da palavra carvão no dicionário é "combustível sólido de cor negra, resultante da combustão incompleta de matérias orgânicas e que encerra uma proporção elevada de carbono" (FERREIRA, 1999), significado esse muito diferente do sentido que essa palavra encerra na vida do dono e na do empregado da carvoaria (LURIA, 1986, p. 44). Assim sendo, pode-se pensar sobre o sentido de ser cego e ocupar um lugar social que possibilite acesso aos recursos educacionais desde o nascimento e o sentido de ser cego e ocupar um lugar social que não permita esse acesso. Assim, o fato de o pesquisador não trocar as palavras do entrevistado não soluciona todas as dificuldades de significação da transcrição.

Por conseguinte, penso que, na pesquisa, o pesquisador deve apresentar claramente o marco teórico do trabalho, os caminhos das abstrações que fez, as escolhas para os cortes do real, assumir que tem uma visão de mundo marcada ideologicamente (Löwy, 1993) e que sabe que a revela no fazer científico.

- A textualização das entrevistas. Com a transcrição pronta, iniciei o processo de transcriação e textualização. A intenção era encontrar um equilíbrio entre "a máxima fidelidade ao discurso e a necessidade de torná-lo acessível ao leitor", como sinaliza Bonazzi (1998, p. 242). A textualização consistiu em tirar as expressões próprias da linguagem oral, as repetições, e criar um texto orgânico, com estrutura e coerência lógica. Após esse processo, os textos foram impressos em braile e reapresentados para os entrevistados Nesse momento havia a possibilidade de se corrigir qualquer inadequação da passagem da linguagem oral para a escrita. Após leitura da entrevista textualizada em braile, foi solicitado que o entrevistado rubricasse cada folha, autorizando a publicação da entrevista na tese. Dá-se assim a "textualização legitimada", como aponta Gattaz (1996, p. 139).

- Os indicadores sociais. Houve uma preocupação em escolher pessoas que me falassem de diferentes lugares sociais. Porém, essa escolha foi feita de maneira informal, com base no conhecimento que a professora, que me auxiliou nos contatos com as pessoas cegas, tinha sobre a história de vida de cada uma delas. A partir do momento em que iniciei as primeiras análises, percebi que precisava de dados mais confiáveis que expressassem esse lugar social. Assim, partindo da leitura do livro de Jannuzzi (2001), Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes e dados de aplicações organizei uma lista de questões referentes às características econômicas e familiares (ver Anexos - Indicadores Sociais) e solicitei que os entrevistados a respondessem. Esses dados aparecem no texto de apresentação de cada uma das entrevistas textualizadas.

- A construção das categorias. O procedimento de organização dos conteúdos provoca um processo fértil de reflexão que, por sua vez, suscita a busca de novas bibliografias, novos questionamentos e nova leitura e organização dos dados. Durante o processo de leitura e releitura das entrevistas, quando buscava apreender os significados e as relações do fenômeno, identifiquei três momentos decisivos neste trabalho:

1º momento - com o texto transcrito foi imediata a constatação te que, nos depoimentos, falaram:

• sobre a vida fora da escola, falaram das brincadeiras da infância, do relacionamento familiar, do primeiro amor, do isolamento social, do trabalho, do futuro;
• sobre a vida escolar, falaram dos diferentes modos de ingresso na escola e dos diferentes percursos escolares, indo da instituição especializada à escola regular e ao supletivo; contaram dos relacionamentos com colegas e professores, da organização do trabalho pedagógico, dos recursos especiais;
• sobre opiniões quanto à integração do aluno cego na rede regular, expressaram como pensam a integração do aluno cego no ensino regular, falaram sobre a mediação pedagógica, a desmistificação da deficiência visual, a necessária organização pedagógica.

De posse dessa primeira estrutura de classes, fui organizando os depoimentos de cada participante, tentando apreender o que os revelavam. Nesse processo, foi fundamental ter como reia os objetivos da pesquisa como critério norteador para a identificação de aspectos significativos para análise, porque os significados são inúmeros e as possibilidades de traçar caminhos de organização dos conteúdos vão multiplicando-se.

2º momento - à medida que organizava e reorganizava essas classes e criava e recriava subclasses, fui descobrindo que havia outra possibilidade de organização:

1. a escola é excludente e elitista - as falas revelam os preconceitos vividos, a má formação dos professores, o difícil acesso à rede escolar, a difícil permanência na escola, os processos de avaliação da aprendizagem;
2. a mediação se dá pela palavra - as falas revelam a mediação pedagógica em sala, a falta de material em braile para estudo, a função do estudo com os colegas, a necessária nomeação do mundo real, ainda que durante as atividades táteis e perceptivas, e a escuta como recurso de estudo;
3. a efetiva construção da escola inclusiva faz parte de um novo projeto de sociedade - revelam as falas sobre a necessidade da solidariedade como um valor a ser cultivado ambiente escolar, a necessidade da organização social para a conquista dos direitos sociais, a importância da escola preparar para a vida e para o trabalho, o direito que o aluno cego tem à vaga e à permanência na escola; o direito que o aluno cego tem aos recursos educacionais especiais.

3º momento - recuperando o objetivo de estudar a integração do aluno deficiente visual no ensino regular, e já mais atenta para os conteúdos revelados entre os conflitos expressos nas diferentes trajetórias de vida, diferentes perspectivas educacionais, diferentes valores sociais, reorganizei o material nas seguintes classes:

1. o direito à educação especial pública;
2. a relação entre educação especial e trabalho;
3. os serviços educacionais especializados;
4. a função da palavra na ausência da visão;
5. a pobreza na raiz da exclusão escolar.

 


 


CAPÍTULO QUATRO

ENTREVISTAS TEXTUALIZADAS


Apresentação: Edson

Edson nasceu em 1968, no interior do Paraná, na cidade de Maringá. Sua mãe teve rubéola durante a gestação e ele nasceu cego. Foi o terceiro filho entre quatro irmãos. Seu pai, hoje falecido, era mestre-de-obras e sua mãe nunca trabalhou fora de casa.

Quando ele tinha 15 anos, a família mudou-se para Campinas e aí surgiu, pela primeira vez, a oportunidade de iniciar os estudos e conviver com outras pessoas, além dos familiares. Antes disso, em casa, Edson acompanhava os acontecimentos do mundo pelo rádio.

Já em Campinas, logo aprendeu locomoção e ficou independente para transitar pela cidade. Alfabetizou-se em braile, numa instituição especializada para pessoas deficientes visuais, e completou o ensino fundamental e médio no curso supletivo. Sempre sem livros e textos, ouvia as aulas com atenção, fazia anotações e tirava dúvidas com os colegas, nos conteúdos em que tinha mais dificuldade. Gostava de estudar em grupo também, porque além de receber ajuda, colaborava com os colegas nas matérias de português e inglês e fazia novas amizades.

A única vez que tentou cursar o ensino regular, numa escola estadual, no centro da cidade, encontrou a escola pública quase abandonada; os professores faltavam, não havia professor na sala de recursos, os alunos estavam desinteressados, não havia material para as aulas na escola. Assim, preferiu ficar em casa estudando pelo Telecurso.

Hoje, mora com a mãe e o irmão caçula numa casa própria no bairro Jardim San Martin, na região norte da cidade. A casa é simples e tem um banheiro, que é suficiente para os três. Os aparelhos domésticos que foram comprando facilitam as tarefas domésticas que a mãe realiza. O rendimento da família chega a 10 salários mínimos.

Edson trabalha na seção braile da Biblioteca Municipal de Campinas durante o dia e, à noite, é massagista do Círculo Militar. Pensa, em completar um curso superior. Depois do trabalho e nos dias de folga, ainda encontra tempo para fazer esportes no clube da prefeitura, estudar teoria musical num curso por correspondência, tocar violão e ouvir música pelo rádio. Aliás, há cinco rádios em sua casa, todos funcionando!

Entrevista: Edson 8

Aos 15 anos fui para a escola especial. Ir para a escola foi uma transformação na minha vida.

Entrei na escola especial aos 15 anos de idade. Comecei a estudar na escola comum com 16 anos, no supletivo. Eu era dos mal novos da classe, porque a maioria dos alunos tinha, no mínimo, 30 anos. O supletivo foi muito positivo para mim, aproveitei muito. Foi o primeiro contato que tive com pessoas não deficientes. Fora do ambiente familiar, foi na escola que, pela primeira vez, tive contato com um grupo grande de pessoas. Isso dá um horizonte novo, por isso eu acho que devemos entrar na escola cedo, o quanto mais cedo melhor. Penso que se eu tivesse começado na época certa, teria sido melhor, eu aproveitaria bem mais.

Mas, aos 15 anos, fui para a escola especial e comecei a aprender o braile, passei por todo aquele processo de habilitação. Para a escola comum, fui aos 16 anos. A própria instituição me encaminhou. Antes disso, eu não tinha tido nenhum contato com a escola. Meus pais eram meio ciganos, mudávamos muito, nós morávamos em cidades pequenas. Passei os últimos anos da minha infância em Curitiba, mas, mesmo assim, morávamos longe da cidade e não havia muito recurso mesmo. Só comecei a estudar depois que viemos para Campinas. Ficamos mais próximos da escola e aí pude começar os estudos.

Antes de ir para a escola, eu ajudava muito em casa. Eu tinha um irmão bebê e por isso eu dava uma "força" para minha mãe. Nas horas livres, eu gostava de ouvir música, ouvir rádio e alguns programas na televisão. Nunca fui fã de televisão, mas, procurava preencher o tempo de uma forma instrutiva que me trouxesse informações e algum conhecimento. De certa forma, deu para aproveitar bem esse tempo. Fora da família, eu tinha um contato restrito com outras pessoas.

Aí, aos 15 anos, fui para a escola especial. Ir para a escola foi uma transformação na minha vida. São horizontes novos que se abrem. No momento em que você conhece outras pessoas que passaram pelo mesmo que você passou e conseguiram ter uma profissão, ter um caminho certo na vida, isso lhe dá uma perspectiva nova e você passa a desejar coisas maiores. Há, realmente, uma mudança muito grande e você se conscientiza mais do seu potencial, daquilo que você pode fazer. Conscientiza-se das suas limitações tame não se pode esquecer disso. De uma forma geral, são horizontes novos que se abrem e que nos dão uma perspectiva nova de vida. Foi um crescimento social que, até então, eu não tinha tido. Um convívio pleno dentro da sociedade é muito importante.

Eu quis estudar e a minha família me deu o maior apoio e me incentivou. Eles se preocupavam com minha locomoção na rua, mas conforme fui saindo e aprendendo, eles foram se sentindo seguros também. Jamais gostei de depender dos outros; sempre gostei de me "virar" sozinho, por isso já fiz logo todo o processo de locomoção e, em três meses, eu já estava independente. Dai para frente não parei mais. Ninguém me segura!

Na escola, o difícil era ter material para estudar. Acho que a partir do momento em que o pessoal começar a participar mais das escolas comuns, a abertura vai acontecer. Penso que agora já existe um acesso maior ao material didático do que na minha época. Isso também facilita a integração, porque a partir do momento em que você tem um material didático semelhante ao dos seus colegas de classe, fica muito fácil o entendimento. Na maior parte das vezes, os livros que eu usava na escola nem sempre eram os mesmos que o professor utilizava, isso quando eu utilizava algum livro. Na maior parte das vezes, eu acompanhava a aula de ouvido e tentava pegar aquilo que era passado na sala, assimilando o máximo que podia e, quando dava, eu estudava com os colegas que tinham os livros. Isso porque, se mandasse gravar alguma coisa, ou transcrever para o braile, muitas vezes, quando o material ficava pronto, já havia terminado o ano. Era uma loucura. Muito difícil mesmo. Mas, os colegas ajudavam e eu sempre me entrosei com o pessoal da classe. Isso foi super bom, porque além de fazer muita amizade, deu para acompanhar praticamente no mesmo nível. Nos últimos tempos, inclusive, foi uma troca, porque em algumas matérias eu tinha muita facilidade, pegava bem de ouvido. Nas matérias ligadas às humanas, como português e inglês, eu os ajudava e eles me ajudavam naquilo que eu tinha dificuldades, como na matemática, por exemplo. A matemática foi sempre uma dificuldade por eu não ter acesso à lousa. Mas, aprendi muita coisa e consegui ter essa integração "legal" porque os colegas de classe me ajudavam, mas eu também os ajudava bastante. Não ficava só "nessa" de receber a força e não dar minha contribuição. Eu fazia também a minha parte. Até ajudava nas "colinhas" de vez em quando...

Com os professores também sempre tive um relacionamen bom. O primeiro passo era colocar as minhas dificuldades, porq a maior parte das vezes, os professores que eu tive nunca tinh dado aulas para um deficiente, então, o pessoal não sabia como dar com esta nova situação. Eu chegava e explicava direitinho co seria; que minhas provas seriam em braile ou orais. Fiz muita prova oral, mas há matéria que não pode ser oral, como matemática por exemplo. No começo, muitas vezes, minha presença na classe causava um impacto no professor, se ele nunca tinha tido um aluno deficiente. Eles ficavam sem saber o que fazer, sem saber que atitude tomar.

Acho que o professor tem que encarar o aluno cego da maneira mais normal possível, sem nenhuma restrição, sem fazer nenhuma diferença; talvez o professor precise explanar com mais detalhes o conteúdo, mas não há segredo, é mais uma questão de segurança. Olha um exemplo: quando falei com a professora de química, no 1º colegial, a respeito do meu material que seria um pouco diferente, ela disse que me daria um trabalho. Eu disse que não queria fazer trabalho, eu queria ter acesso à mesma matéria que o pessoal teria, porque se eu quisesse fazer um vestibular, precisaria desse conteúdo. Ai, eu a senti bastante insegura com relação a como me ensinar, mesmo eu dizendo que não tinha segredo algum e que se eu não conseguisse visualizar alguma coisa, eu pediria que me explicasse mais uma vez, mas, mesmo assim, ela se sentiu ainda bem insegura. Para minha sorte, ela logo entrou de licença. Nós ficamos quase três meses sem professor, mas, depois, veio outro professor que foi muito bom e conseguiu passar o conteúdo sem problemas. Outro exemplo é de uma professora de matemática que não gostava de dar explicações, mas o problema não era só comigo, a classe toda reclamava. Eu já sabia que ela era fechada, então, procurei me entrosar mais com os colegas. Peguei o conteúdo com eles e deu para tirar boas notas e passar "numa boa".

As transcrições das provas eram feitas com o apoio do Centro Louis Braille, mas procurei não depender muito da entidade. Quando o professor aceitava, eu mesmo ditava para ele o que eu tinha feito na prova. Era uma mão-de-obra muito grande pegar a prova, levar lá no Centro, esperar a transcrição e, aí, trazê-la para o professor de novo. Nesse caso, geralmente tinha que vir alguém da entidade buscar a prova, porque eu não podia levá-la, então, na medida em que eu podia simplificar isso, eu simplificava.

Bom, entrei, aos 15 anos, no Centro Cultural Louis Braille, depois fui para o supletivo Humberto de Campos e fiz até a 8ª série. O 2° grau eu fiz por um outro tipo de supletivo que é por eliminação de matérias. Estudava as matérias separadamente e fazia os exames do estado. Não havia aula. Eu estudava em casa, pegava livros ou alguns programas no Telecurso, na televisão. Na medida do possível, procurava tirar minhas dúvidas com os colegas que sabiam alguma coisa, principalmente em exatas. Matemática e física foram matérias em que eu tive as maiores dificuldades. De escola comum, cursei os oito anos no supletivo. Só a 1ª série do colegial fiz no ensino regular, no Carlos Gomes, mas a 2ª e a 3ª fiz pelo sistema de eliminação de matéria. Mudei de sistema porque foi uma época meio conturbada na escola. Não havia professor na sala de recurso e o aproveitamento em sala de aula também estava muito complicado; das 25 aulas da semana, eu estava aproveitando 10 aulas apenas; a situação da escola estava crítica. O problema não era só a falta de professor na sala de recursos, mas a estrutura da escola que deixava muito a desejar. Os professores faltavam muito, não havia material, havia muito aluno desmotivado que não estava a fim de estudar e só fazia bagunça, e muito barulho na sala de aula. Havia um grupinho interessado, mas a maioria do pessoal não estava querendo levar nada a sério. Mesmo assim, eu acho que foram muitos os momentos positivos. O próprio ambiente que a gente tinha de sala de aula era um ambiente gostoso, pois além de estudarmos em grupo, nós saíamos juntos. Às vezes, matávamos aula e íamos para o barzinho tomar alguma coisa - há várias lembranças positivas. Hoje em dia, às vezes, estou andando pela rua e alguém me pára e diz que estudou comigo no Carlos Gomes ou no Humberto de Campos. Não há mais uma amizade muito próxima porque cada um mora de um lado da cidade, e quando a gente termina o curso vai cada um para o seu lado, mas estou sempre revendo alguém. Isso é muito bom e fica como uma coisa muito positiva da passagem na escola.

Além da escola, fiz outros cursos. Cursos profissionalizantes: curso de massagem, de informática e de operador de câmara escura. Estudo música também. Toco um pouquinho de teclado, de violão e faço curso de teoria musical braile por correspondência, na escola Hadley.

Acabei o colegial, mas ainda não consegui pensar na faculdade, porque estou trabalhando em dois lugares. De dia, aqui na biblioteca e, de noite, trabalho com massagem no Círculo Militar. Talvez, logo faça outro curso na área de massagem e relaxamento de que gosto muito. Já prestei um vestibular, há dois anos atrás, para sentir como era. Prestei letras, porque eu gosto muito de letras, gosto do inglês. Também tenho a opção da biblioteconomia, já que eu estou na área, ou a fisioterapia... Eu gosto de muitas coisas. A faculdade não está descartada. Acho que sempre que houver a oportunidade de estudar, devemos estudar.

Apresentação: Emmanuelle

Emmanuelle nasceu no dia 12 de outubro de 1978, em Lins, São Paulo. Meses após o nascimento, foi confirmado o diagnóstico de tumor maligno, retinoblastoma, nos dois olhos. O tratamento exigiu anucleação e, com isso, cegueira irreversível. Inicia o processo de estimulação precoce, ainda bebê, na cidade de Curitiba. A família muda-se para Campinas com a indicação de procurar uma professora especializada na área da deficiência visual, a professora Vilma Machado. Com um ano e oito meses, ela está matriculada numa escola regular, freqüentando a sala do maternal. Paralelamente ao trabalho da escola, continua os atendimentos com a professora especializada. Aos cinco anos, está alfabetizada em braile.

Emmanuelle estudou em diferentes escolas, particulares e públicas; sempre freqüentou o ensino regular. Com 23 anos, formouse em direito, na PUC-Campinas.
Seus pais tiveram dois filhos, um casal. Emmanuelle foi a primeira filha. O pai é médico e a mãe não completou o curso superior - tem curso técnico de enfermagem.
A família reside em apartamento próprio, no centro da cidade. O tamanho do apartamento é considerado suficiente pela família, que é formada por quatro pessoas. Há dois banheiros. No tempo livre, Emmanuelle faz trilhas e escaladas, pois gosta de contato com a natureza.

Entrevista: Emmanuelle 9

Minha família sempre me deu toda assessoria, mas há muito deficiente abandonado. Nós precisamos de uma associação forte, formada por uma diretoria séria, com estatuto. Uma associação que faça um trabalho de conscientização de luta pelos nossos direitos. Direito de estudar, de trabalhar.

Eu nasci cega. Aos seis meses e vinte dias de vida precisei fazer anucleação dos olhos por causa de tumor maligno. Um tumor em cada um dos olhos, retinoblastoma. Fiz quimioterapia, corri os cinco anos de risco, como qualquer pessoa que tem câncer corre.

Bom, fui para o maternal com um ano e oito meses, numa escolinha de ensino regular. Antes, já fazia estimulação precoce com a tia Vilma Machado. Na verdade, comecei a estimulação em Curitiba, porque eu morava lá. Depois, mudamos para Campinas com encaminhamento para a tia Vilma. Eu fazia estimulação três manhãs por semana e à tarde, escolinha normal, O Patinho Amarelo em Limeira. Minha mãe conta que, um dia, a tia Vilma foi à escolinha ver como eu estava me relacionando com as outras crianças e, nessa visita, ela teve plena consciência de que eu já sabia me defender porque, nesse dia, ela viu uma menina tentar pegar o meu lanche e viu, também, eu voar e bater nela. Sempre fui extrovertida. Minha mãe conta que nos primeiros dias de aula, a orientação da escola era para a mãe entrar com a criança até ela se acostumar; ela fez isso dois dias, depois conversou comigo, explicando-me que lá era escolinha de criança e que ela era adulta. Ela conta que eu contestei porque tinha adulto lá e ela respondeu que os adultos trabalhavam. Eu falei que estava tudo bem e que ela podia voltar para casa. Eu não me lembro de ter chorado, nunca.

Eu brincava muito. Nunca fui criança quietinha. Levei vários pontos. Um dia, eu estava no trepa-trepa e esqueci de pedir licença. Um amigo meu estava embaixo, bati nas costas dele e quebrei o nariz. Minha mãe pensava que eu não voltaria mais, pois fiquei um mês em casa, mas já voltei brincando. Eu deixava a professora louca.
Eu participava de tudo. Na dança da cadeira, nenhuma criança podia colocar a mão na cadeira, mas eu podia; pulava corda pelo som - eu ouvia bater a corda no chão e entrava; pulava elástico, pega-pega... Eu conhecia o espaço e sempre pedia para quem estivesse correndo que gritasse, ou fizesse algum barulho. Quando eu era pequena tinha menos medo, eu corria mesmo e não estava nem aí.

Eu sempre brinquei, graças à minha criação. Com dois anos, fui morar num sobrado com 13 degraus e a família toda achou um absurdo com medo que eu caísse, mas minha mãe disse que na vida eu ia encontrar muitos degraus e precisava aprender desde pequena para conseguir subir. Acho que essa filosofia de educação da minha mãe permitiu eu ser quem sou.

Fui alfabetizada em braile pela tia Vilma e aos cinco anos e meio, já sabia ler e escrever tranqüilamente. Porém, só entrei na 1ª série com sete anos, porque a tia Vilma achou que não era bom para uma criança entrar antes, por causa de prova, de obrigatoriedade. Acho que ela estava certa. Porém, o 1º semestre da 1ª série foi horrível para mim, porque eu já sabia tudo. A professora falava para fazer o c mas eu já sabia e isso me desinteressou muito. Quando entrou matéria nova foi mais estimulante, como é até hoje. A cartilha era Caminho suave, renovada e ampliada. Meus pais preparavam o material. Na lição do bebê, minha mãe pegou uma bonequinha de plástico, cortou tecido de fralda, colocou fraldinha na bonequinha e colou na cartilha. A estagiária, que ficava comigo na classe, na hora da atividade, descolava o bonequinho da cartilha e me dava na mão. Na lição do ninho de passarinho, a minha mãe me deu um ninho inteiro de passarinho na mão para eu sentir a textura do ninho, "a casinha do joão-de-barro", depois reproduziu o ninho na cartilha, bem pequeno. Na lição da árvore, eu vi a árvore. Ela cortou casca do tronco e colou um pedaço na cartilha. Foi todo um trabalho. A cartilha era visão e mente e ela fez tato e mente e tato em três dimensões. Para mim foi fantástico, porque eu não tinha noção daquilo no plano. No plano não dá para ter a realidade. Existe tua cartilha em braile, mas é só desenho. Minha mãe achou que dessa forma eu não teria noção da lição. Sempre, todo o material foi confeccionado pelos meus pais.

Meus pais não quiseram, e eu não tive, nada gravado até o 3º colegial. Eles falavam que eu tinha que ler para saber escrever, quando minha mãe lia para mim, ela me explicava como a palavra era escrita. Dias atrás, a professora de português jurídico se surpreendeu porque eu não tenho erros de ortografia e ela esperava que eu tivesse muitos erros. Bom, na 3ª série nós nos mudamos para Marília. Lá há UNESP, há sala de recurso. Estudei na Escola Estadual Amilcar Matei, havia sala de recurso e vários alunos deficientes. Fiquei lá um ano e meio, terminei a 4ª série, só que a escola não exigia muito de mim e me acomodei. Não fazia tarefa, foram os anos mais tranqüilos na minha vida escolar. Sabia que tiraria A e estava sossegada. Minha mãe fala que ninguém pode fazer corpo mole comigo, porque eu encosto. Todo aluno é assim, não é? Se ninguém cobra de você, você não faz, não adianta.

Em Marília, na UNESP, fiz locomoção e mobilidade. Na 5ª série, passei para o Colégio Cristo Rei, um colégio particular formidável. Quem repetisse um ano era convidado a se retirar da escola. Quando minha mãe decidiu me matricular nessa escola, três professoras da educação especial da UNESP, uma quase aposentando e com muita bagagem, falaram para ela não fazer isso, mas minha mãe insistiu e só lhes pediu que alguém fizesse ensino itinerante. Foi um doa melhores anos da minha vida. Foi fantástico! Entrei no colégio e não tive dificuldade para fazer amigos. Havia um mapa de sala e ninguém sentava no lugar que queria, as últimas carteiras eram ocupadas pelos melhores alunos e as primeiras pelos piores, a pressão são era enorme, porque todo mundo queria sentar na última fileira. No segundo bimestre confesso que estudei muito e tirei 10 em todas as matérias. Fui para a última carteira!

Nessa escola havia psicólogos para terapia e psicoterapia de grupo. Eu era a primeira aluna cega da escola. Era muito boa essa terapia de grupo. Aprendemos a lidar com problemas como "ficar". O grupo de terapia era formado pela metade da classe, meninas e meninos juntos. Era uma aula diferente. Podia-se fazer o que se quisesse, desde jogar almofada um no outro até sentar num canto e chorar; jogávamos o jogo da verdade. Cada aluno tinha um bloquinho tipo diário, super bom. O pessoal era selecionado. As aulas terminavam dia 15 de novembro, mas a recuperação seguia até 20 de dezembro. Ninguém queria ficar na recuperação. Todo mundo lutava para ser o melhor. Foi aí que aprendi: por que vou ficar na média se eu posso ser a melhor? Foi um ano muito bom. Minha mãe não precisava ir às reuniões, porque eram para alunos com nota vermelha. Minha mãe não conhecia nenhum professor. A professora itinerante, no meio do ano, admitiu que eu estava acompanhando e aí começou a fazer um trabalho melhor. Ela queria que eu fizesse faculdade em Marília. Ela dizia: "- Você é nossa esperança de faculdade!". Minha mãe, no final do ano, foi conhecer os professores e saiu chorando da reunião, porque todo mundo a abraçou. Acho que abri um espaço - quem quiser ir para lá, o espaço está aberto.

Depois, mudamos para Limeira. Cursei a 6ª série na mesma escola em que estudei no maternal. De escola foi tudo bem, mas foi o ano em que eu tive complexo de não enxergar; transição de adolescência; em termos de relacionamento, foi um ano mais difícil. Eu gostava de um garoto de 17 anos e, hoje, pensando bem, é óbvio que ele não olharia para uma garota de 12 anos, por mais linda e maravilhosa que ela fosse, mas, na época, eu achava que era porque eu não enxergava. Foi muito complicado. Eu emagreci 15 quilos em dois meses. Minha mãe fala que eu nunca tinha dado tanto trabalho. Em Limeira, não havia nenhum professor especializado, por isso meu pai batia as provas. Ele recebeu autorização da escola. A 6ª série foi muito fraca e, nesse ano, também, não precisei estudar. Aliás, "graças a Deus!", porque se precisasse não teria estudado.

Na 7ª série, voltei para o Colégio Batista, em Campinas. A coordenadora geral não queria me aceitar de volta e fez de tudo para eu sair da escola. Colocaram-me numa classe com outra aluna cega e o barulho de duas máquinas braile não é pedagógico mesmo. Minha mãe combinou que eu ficaria até a Semana Santa, se não acompanhasse, sairia da escola. Bom, na primeira prova de português caiu análise sintática. A professora sabia que eu não tinha tido esse conteúdo no outro colégio. Tirei quatro e meio - a primeira nota vermelha da minha vida. Eu despenquei, mas aquilo virou um desafio. Aprendi toda a análise sintática num sábado à tarde, com meu pai. Na outra prova eu tirei oito ponto três e foi a maior nota das duas 7as séries. A professora me chamou e perguntou: "- O que aconteceu?", e eu disse: "- Nada, só voltei ao normal". Ela ficou muito brava porque eles queriam que eu saísse do colégio. Bom, eu não tirei nenhuma nota vermelha no boletim e essa coordenadora teve que me engolir. Eu conquistei meu espaço. Hoje, quando visito o colégio, sou super querida.

No Batista, a tia Vilma continuava a transcrever as provas. No 1º colegial, um professor falou que eu faria gráfico e me tirou quatro pontos da prova porque eu não fiz um gráfico. Meus pais foram falar com esse professor, que afirmou minha capacidade de fazer o gráfico e que era conteúdo do vestibular. Também disse que não tinha dó de aluno. Aliás, até hoje, eu sempre falo para todos os professores que eu quero ser tratada como qualquer outra aluna. Ele disse para os meus pais que eu mesma queria ser tratada igualmente e seria tratada igualmente. Meus pais fizeram um tabuleiro quadriculado de papelão com os eixos x e y numerados; na intersecção eu colocava alfinete, passava a linha e ia montando a função, assim, eu fiz os três anos de colegial com gráfico. Esse professor e eu ficamos amigos, mas esse foi o professor que mais lágrimas tirou de mim. Ele fazia todo mundo aprender. Tirei 10 com ele numa prova de trigonometria. Adorei essa matéria. Meu colegial foi fantástico no relacionamento com os professores e com os colegas.

Houve um professor com quem eu tive problema. Ele exigia "decoreba" e falou que eu era uma aluna fraca, que não tinha condições para estar no colegial. Respondi que cheguei sem decorar. Aí ele falou: "- Quero ver se o que você escreve tem sentido". Eu me matei de estudar. Mas, a classe percebeu que ele não estava dando aula pana mim, porque ele falava apontando o mapa: "- O planalto tal fica aqui..."; os próprios alunos da classe reclamaram, sem eu saber. Foi super bonito. Ai mudou o professor. No 3º ano, ele voltou e nós continuamos não muito amigos, o que era direito dele. Ele só dava prova teste e a minha era dissertativa. Eu reclamava e ele perguntava: "- Você não quer UNICAMP?"

Ao terminar o colegial, recebi um presente muito grande quando um professor me disse: "- Obrigado, porque você me fez acreditar que não existem limites". O colegial foi bom, eu não tenho do que reclamar. Sempre faltou material, mas tive professores ótimos, que desenhavam a parábola na minha mão. A professora de química orgânica montava modelos de átomo com isopor. Exigiam desenhos nas provas e isso foi muito bom. Ninguém queria a perfeição extrema, porque é incoerente, e isso me ajudou muito no vestibular.

Entrar na universidade foi um trabalho do colégio, dos meus pais e meu. Mas, foi muita luta, não foi fácil, em certas ocasiões eu sentava e chorava porque não tinha material. O meu objetivo era a USP. Não passei por oito pontos. O problema do vestibular da USP é tempo. Não dá tempo para fazer as provas. Na PUC-Campinas também o tempo não é suficiente, é o mesmo tempo para todo mundo e nós precisaríamos entrar primeiro para poder ler, antes de começar a marcar o tempo para a prova. Na UNICAMP, os presidentes de sala explicaram os desenhos e os mapas e isso facilitou muito. Uma palavra global do professor sobre o gráfico dispensa você de olhar linha por linha. Ter o mesmo tempo no vestibular é uma injustiça.

Na faculdade, continuam as mesmas barreiras, não muda nada. Na PUC o trote foi muito "legal". Fui tratada com igualdade; no pedágio, quando o motorista não dava dinheiro, o veterano avisava que eu apanharia de bengala. Foi muito divertido. Agora, a insegurança dos professores continua a mesma. No começo, ninguém acredita em você, depois muda. O maior problema é a estrutura arquitetônica da PUC-Campinas, que é horrível, não há referência nenhuma naquele Pátio dos Leões. Meu pai, até hoje, entra comigo porque não há pontos de referência; o prédio é um labirinto e eu me sinto muito dependente. Continua faltando material, com todo o avanço da informática. Aliás, a informatização do ensino me preocupa muito, porque o Bill Gates só vê imagem. Eu fico burra em frente ao computador sem sintetizador de voz, porque é só mouse. O problema é que toda a tecnologia é muito cara no Brasil e não posso viver sem a impressora braile. No curso de direito tem-se que ler. Não há outro jeito, há textos que não adianta gravar, precisa-se ler. As provas, na maioria, são ditadas. Uma ou duas perguntas, eu respondo oralmente e o monitor escreve; há professor que faz prova oral. O professor de sociologia é muito especial. Adoro sociologia. Eu estava fazendo ciências sociais na UNICAMP, junto com o curso de direito da PUC, mas tranquei a matricula, eu adorava, mas eu não estava vivendo, só estudava.

Por tudo isso que passei, eu diria a um professor que terá, pela primeira vez, um aluno cego na classe, que ele não deve passar insegurança para o aluno, porque, muitas vezes, o aluno já está muito inseguro e se o professor demonstrar insegurança, fica muito difícil essa relação. Diria, também, que o professor deve falar, usar muito a voz. Não deve escrever na lousa a aula inteira, isso dá desespero, mesmo com outra pessoa ditando é melhor que o professor fale. O professor deve lembrar que, para aquele aluno, é audição e mente e não visão e mente e, quando possível, tato e mente. O professor não precisa ir até a carteira perguntar se o aluno está entendendo, mas, sim, perguntar se a classe está entendendo, pois o aluno que não estiver deve se manifestar. Há aluno deficiente que vai à delegacia de ensino para fazer só metade da prova, só que esse aluno terá, um dia, concurso vestibular e vai ter que fazer a prova inteira. Se precisar dar "bronca" tem que ser "bronca" de verdade, não pode deixar transparecer que tem dó. Nunca deve dar nota se o aluno não merecer e, se tiver que reprovar, deve reprovar. O professor deve agir com naturalidade e bom senso, ter confiança no aluno e mostrar para os pais que o aluno tem capacidade. Para mim, o certo seria ensinar o braile no magistério e na pedagogia. O professor deveria ser formado com uma noção mais aberta sobre o aluno cego, o aluno com visão reduzida. Sem noção alguma, o professor se assusta, quando se depara com um aluno cego na classe. Lembro-me de um professor de física que, quando me viu na classe, falou: "- O que eu vou fazer com você?", e eu disse: "- Calma, nós vamos trabalhar juntos...", eu o acalmei e, aos poucos, ele viu que não era um bicho-de-sete-cabeças. Mas, uma noção básica o professor precisa ter, porque se é um aluno que não tem voz ativa, ele pode desistir.

Bom, acredito que enfrento dificuldades menores do que há dez anos atrás e acho que as pessoas que estão vindo enfrentarão menos dificuldades do que eu, embora a falta de material continue muito séria. Passei todo o meu material de colegial para outro colega, porque isso é um impedimento para o cego estudar. Eu estudava em casa até quatro horas por dia, sem ter material: não havia apostila batida, nem livro, nem material de cursinho; isso dá um desespero enorme. Muitas pessoas desistem e eu não lhes tiro a razão, porque é muito difícil.

Minha família sempre me deu toda assessoria, mas há muito deficiente abandonado. Nós precisamos de uma associação forte, formada por uma diretoria séria, com estatuto. Uma associação que faça um trabalho de conscientização, de luta pelos nossos direitos. Direito de estudar, de trabalhar. Pense bem, onde eu poderia trabalhar hoje? Quem daria emprego para mim? Mesmo com o curso superior, acho que terei muitas barreiras a transpor até para fazer o estágio. Tenho consciência disso. Estou pedindo a Deus, desde já, amenizar um pouquinho essa situação. Se houvesse uma associação, acho que seria mais fácil.

Apresentação: Marcos

Marcos nasceu em 1948, em São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais, numa numerosa família de sete filhos, todos vivos. Sua mãe cuidava da casa e seu padrasto da lavoura.

Com sete anos, ingressou na 1ª série. Nasceu com catarata congênita e cego do olho esquerdo. Meses após entrar na escola, sofreu descolamento de retina no olho direito e, num processo gradativo, perdeu totalmente a visão. Sem nenhum recurso especializado na região, para voltar a estudar teve que ir para longe da família. Viveu cerca de sete anos em internatos para cegos, no estado de São Paulo. Na instituição se alfabetizou e completou o ensino fundamental. Em Campinas, já aos vinte anos, ingressou no supletivo e completou o ensino médio. Sempre sem livros, ou sequer apostilas, em braile, ele estudava com os colegas de classe. Logo percebeu que se destacava nas aulas pelas informações adquiridas do hábito de ouvir rádio. Era costume familiar ouvir todo dia o programa "A voz do Brasil".

Mora com a esposa e três filhos no bairro Vila União, próximo à rodovia dos Bandeirantes. Trabalha na seção braile da Biblioteca Municipal. Com uma renda familiar próxima a dez salários mínimos é possível pagar um plano de saúde e o financiamento da casa popular. Aliás, a casa já está bem equipada com eletrodomésticos e parece que o hábito de ouvir rádio permanece, pois há seis aparelhos na casa. Marcos acredita que, se tivesse um carro, poderiam passear mais.

Entrevista: Marcos 10

Eu sempre ouvia "A Voz do Brasil" e ficava bem informado, e debatia com o professor e com os colegas de classe.

Eu tenho 48 anos. Perdi a visão aos sete anos por descolamento de retina; quando isso aconteceu, eu estava na escola. Entrei na 1ª série aos sete anos e já não tinha visão de um olho; nasci com catarata congênita no olho esquerdo e só tinha visão no olho direito; no meio do ano eu me acidentei e perdi toda a visão, machuquei o olho sadio, o olho direito.

Depois disso, não fui mais à escola. Naquele tempo era impossível freqüentar a escola assim, hoje já há uma série de recursos, mesmo em cidade pequena. Na década de 50, nenhum professor, na minha cidade, conhecia o sistema braile. Então, fiquei quatro anos praticamente em casa. Com o descolamento de retina, a minha visão não desapareceu de imediato, havia momentos em que eu enxergava; ora enxergava, ora não enxergava nada. Isso é muito confuso para a cabeça de uma criança. Eu lamentava muito pela minha mãe, pelo sofrimento da minha mãe, mas não entendia porque ela sofria daquele jeito, se eu ainda enxergava um pouco. Lembro-me do meu último dia de escola. Foi no dia seguinte ao acidente. Fui à escola e na classe, eu sentava-me numa mesinha com três meninas. As meninas estavam escrevendo alguma coisa, só que eu olhava na lousa e não enxergava nada escrito. Eu perguntei para as meninas o que elas estavam fazendo e elas disseram que estavam copiando da lousa e eu disse que não enxergava nada e elas disseram: "- Então você está cego!". Levantei-me e fui até a lousa, e aí foi minha surpresa, porque realmente a lousa estava inteirinha escrita, só que as letras corriam e com aquela dança de letras eu não conseguia uma seqüência para tentar copiar. Então, falei para a professora o que me aconteceu e ela já me abraçou chorando. Esse foi meu último dia de escola.

Voltei para casa e demorou muito para que eu realmente ficasse cego. O que ocorreu comigo foi um negócio muito interessante, porque não sei a época em que fiquei cego. Isso ficou muito vivo em mim, porque eu conhecia os lugares em que sempre brincava e continuei a brincar; continuei a correr na rua. Aos poucos isso foi diminuindo, porque sempre acontecia algum acidente. Por exemplo, eu batia no poste, mas a impressão que eu tinha era a de enxergar o poste, eu via até a lâmpada do poste. Eu achava que era descuido meu, porque eu enxergava; então, se eu me cuidasse, aquilo não iria acontecer. No futebol, eu tinha a impressão de ver a bola; quando alguém chutava, eu via a bola. Era impressionante aquilo. Quando alguém chutava, eu via a bola; quando a bola subia, eu não a via mais. Bom, aí foi diminuindo a minha participação nas brincadeiras, porque eu fui ficando em uma situação mais difícil. Isso levou uns dois ou três anos. Mas, o dia exato em que eu fiquei cego, disso eu não tenho noção.

Eu me lembro de que nesse tempo em que fiquei "de molho", em que fiquei em casa fechado praticamente isolado do mundo, em instante algum eu deixei de pensar nas imagens que tinha visto. Fui uma pessoa que, de maneira extraordinária, não quis perder um minuto sequer daquilo que eu tinha visto. Quando a minha família se queixava e ainda se lamentava do que ocorrera comigo, aquilo me chateava demais. Eu não podia ver aquilo. Eles comentando com vizinho, comentando com visita. Foi sendo criado em mim um tal isolamento com relação à minha pessoa e à minha família que me acostumei a trocar a noite pelo dia. Cheguei ao ponto de ter a noite como o meu momento de prazer. Quando o pessoal dormia, era o momento em que me levantava e, às vezes, saía pela janela para brincar. Nesse momento, não havia ninguém me impedindo de fazer isso ou aquilo: "Menino você vai se matar, vai se machucar com isso!!" Diversas vezes, levantei-me da cama e fiquei até tarde da noite remoendo, sonhando com aquilo que eu seria e principalmente marcando data para voltar a enxergar. Todo mundo vivia em função disso na família e eu também queria muito enxergar de novo.

Assim, a visão faz parte de mim até hoje. Para mim tudo é luz, todo som tem uma imagem. Continuo a enxergar nos sonhos e sempre com aquele lembrete: um belo instante acontece e eu volto a enxergar! Isso me acompanha e é definitivo. Bom, mas eu só fui ver escola outra vez na adolescência. Fui para um colégio diferente, porque na minha cidade, eu sou de Minas Gerais, lá, não havia recurso, ninguém conhecia o braile. Quando fui para o colégio, fui para o internato, o Instituto Padre Chico, em São Paulo. Na verdade, foi ali que conheci crianças cegas. Eu nunca tinha tido contato com nenhuma criança cega.

Antes de ir para o Padre Chico, passei por uma outra instituição, em Ribeirão Preto, que é pertinho da minha cidade - São Sebastião do Paraíso. Lá me deram, de presente, um alfabeto numa tábua com uma folha de zinco, onde estava a ordem das letras que não se apagavam e me deram uma reglete e eu fui fazendo essa combinação e fui aprendendo o braile. Nessa instituição, foi a primeira vez que eu vi o braile e foi aí, também, que descobri que eu era cego. Nesse internato só havia adultos e eu estava com 12 anos e não tinha outra criança para dividir experiências, e isso me fazia uma falta terrível. Foi um problema sério. Até que um dia, resolvi não voltar depois das férias. E não voltei. Então, minha irmã, que morava em São Paulo, arrumou a vaga no Padre Chico. Lá, conheci o pessoal da minha idade e até com menos idade do que eu, pois havia alunos de quatro a 26 anos. Aí a vida foi outra e foi muito melhor, porque eu adquiri confiança e conheci o meu potencial. Fiquei seis anos no instituto. Lá havia escola comum, o curso primário e o ginásio. Também havia aulas de educação física e piscina. Foi o primeiro contato que tive com a educação física.

Quando saí do Padre Chico, vim para Campinas e fui para a escola comum. Fiz madureza, noturno. Ai sim, foi meu contato para valer, entrar numa classe onde eu era a única pessoa cega! Mas, não tive problemas. Já estava com vinte anos e não tive problema de ordem nenhuma. Achei normal o fato de chegar, entrar na classe e responder até mesmo a chamada! Interessante, eu estava com essa expectativa com relação à chamada, à apresentação dos alunos. Eu queria saber como seria: "- Como é que eu vou fazer?". Era uma coisa que eu me perguntava: "- E na hora da chamada? Será que vou responder?". Essa era uma indagação que eu trazia comigo mesmo: "- Será que eu vou responder?". Eu nunca me toquei que isso era uma tolice. Na primeira aula, acho que eu ainda estava pensando nisso e de repente o professor chamou meu nome, eu levantei a mão e disse: "- Estamos aí..." E você sabe que esse "estamos aí" foi um negócio fabuloso, porque explodiu a classe... Era todo mundo marinheiro de primeira viagem e todo mundo estava tímido, todos quietinhos e aí na hora em que eu falei "estamos aí" eu pus fogo na classe. O professor de imediato respondeu: "- Já estou de olho em você!", já marcou no ato. Dali em diante, a convivência com a classe foi fantástica.

Naquele tempo, era muito mais difícil estudar, porque não havia material nenhum. Não havia livro, era muito raro, principalmente aqui em Campinas. Por isso eu dependia muito de estudar em grupo. Passar as apostilas para o braile era "um Deus nos acuda", porque o trabalho é manual, é artesanal. Se fosse passar a apostila para o braile, ela só serviria para o próximo ano. Esse ano não daria para acompanhar a classe. A solução era estudar em equipe na casa dos colegas. Os grupos se reuniam não, em função da minha cegueira, todo mundo estudava junto. Isso foi no comecinho dos anos 70, a economia no Brasil estava mais estável, era aquele momento de euforia, a mulher não tinha ainda saído para trabalhar fora de casa e as meninas gostavam muito de estudar em equipe. Eu participava com o pessoal e com isso não tive problema de livro, já que estudava em grupo.

Eu era realmente bom em algumas matérias. Em certas matérias eu era "craque" e isso me ajudou demais na classe, porque os colegas me procuravam para debater. Para quem é cego, isso é muito importante. Eu era bom em matemática, adorava história, geografia e conhecimentos gerais. Essas matérias eram uma verdadeira "cachaça", porque eu era muito bem informado e isso me valeu muito, porque isso aproximava, puxava debate na classe. Eu sempre ouvia "A Voz do Brasil" e ficava bem informado, e debatia com o professor e com os colegas de classe. Porque informação nessa época era pelo rádio, o rádio jornal. Naquele tempo, quem tinha o hábito de ouvir "A Voz do Brasil" era extraordinariamente bem informado. Quem tinha paciência de ouvir, e eu tinha porque quando garotinho o pessoal em casa ouvia "A Voz do Brasil". Quem acompanhava o programa era um sujeito informado e com isso, nas aulas, eu tirava de letra! Na matemática eu era muito bom em cálculo e isso me aproximou muito da matemática, desde o primário nunca tive problemas com matemática, fazia parte de mim. Bom, fiz madureza, rapidinho, e terminei em dois anos.

Aí entrei para a universidade. Ah! Eu sonhava com jornalismo... Eu achava que jornalismo era o máximo, eu tinha uma expectativa incrível com relação à universidade. Passei no vestibular e, assim que entrei, veio a decepção. Eu achava que na universidade aprenderia a escrever, aquele negócio lindo, maravilhoso. Aí cheguei e vi aquele "balaio-de-gato". Nunca imaginei que universidade fosse aquilo. Entrei numa classe que não era classe, era um salão de carnaval, 120 alunos na sala! Um negócio incrível... Aparecia aluno que estava na 3ª série e vinha fazer prova com a gente e pedia cola! 3º anista e pedia cola! Fiquei deveras magoado, eu era deveras sentimental, era um romântico! Eu achava que a coisa não podia ser daquele jeito e me decepcionei. Cheguei a assistir aula em outras classes, em outras séries para ver como era, mas fiquei tão decepcionado que larguei a universidade e não voltei. Deveria ter continuado. A vida é isso, é o que nós estamos vivendo hoje e não o que eu sonhava, não é? Mas, também, havia aquela dificuldade com emprego. Toda semana havia debate na universidade sobre emprego na área da comunicação e só ouvi falar que não havia mais espaço para ninguém. Isso mexia com o 1º anista, eu pensava: "- Que eu vou fazer?". Se não teria emprego para os que enxergavam, e para mim? Aí, acabei desistindo. Fiquei um ano só, nem voltei para trancar matrícula.
Mas, sempre, aquelas aulas em que o professor falava e falava eram uma delícia! Muitas vezes, o professor fica preocupado com a cegueira do aluno. O drama do professor está em se preocupar com a cegueira. O professor não sabe o que é ser cego e não adianta querer saber, porque só sabe quem é. O aluno precisa é de que o professor compreenda isto: uma das dificuldades que nós temos é o professor que escreve muito. Há professor que escreve o tempo todo na lousa e não fala nada. Bom, aí eu fiquei fora! É a mesma coisa que você ligar uma televisão sem som. A televisão está em casa, você está assistindo, você está lendo a legenda, mas para mim é como se a televisão estivesse desligada. Agora, se o professor falar o tempo todo é uma delícia, porque ai eu estou participando da aula dele. Basta isso, ele não precisa se preocupar comigo, com a minha cegueira. Ele está dando o recado dele e pronto.

Apresentação: Eliana

Eliana nasceu no dia 18 de setembro de 1969, em Campinas, São Paulo. Nasceu cega, com atrofia no nervo óptico. Seus pais cursaram a universidade. Seu pai é engenheiro, está aposentado. Sua mãe, depois que os filhos cresceram, voltou a estudar. Fez o curso de pedagogia com habilitação na área da deficiência mental; hoje, leciona no município. O casal teve três filhos. Eliana é a mais velha e única menina.

A família sempre morou em casa própria. Reside num bairro próximo ao centro da cidade, Jardim Guanabara. Moram os pais com os três filhos numa casa com cinco banheiros. Possuem dois carros. Com três anos de idade, Eliana começou a freqüentar o Centro de Reabilitação, vinculado à Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, onde adquiriu independência na vida diária, fez curso de locomoção e aprendeu o sistema braile.

Do jardim-de-infância à 5ª série, estudou na escola estadual. No início, em classe especial para alunos deficientes visuais e, depois, na sala regular. A excessiva rotatividade do corpo docente na escola pública e as freqüentes faltas de professores levaram a aluna para a escola particular de ensino regular, na qual completou o ensino fundamental e médio. Sempre que necessário, teve professor particular. Seu pai criava os recursos didáticos que auxiliavam na compreensão dos conteúdos escolares.
Eliana ingressou no curso de filosofia da PUC-Campinas, sem ter certeza de que essa era a carreira que queria seguir. Desistiu da filosofia no final da primeira série.

Fez cursos na área da informática. Ingressou como servidora municipal e hoje trabalha na seção braile da biblioteca da cidade. Gosta muito desse trabalho. Em seu tempo livre, pratica natação e gosta de fazer caminhadas.

Entrevista: Eliana 11

O professor precisa entender que eu não enxergo a lousa, ele precisa falar. Precisa chegar até mim e explicar, falar!

Da minha infância, lembro-me de muitas coisas boas e de muitas outras que fui proibida de fazer, como correr e jogar futebol com as meninas. Mas, nem por isso deixei de brincar de correr. Caí e me machuquei como todo mundo quando pula o muro, bate o queixo, corta e vai para o hospital dar ponto. Tudo isso eu fiz porque sempre brinquei na rua. A minha mãe sempre incentivou: "- Quer brincar? Pode brincar, não tem problema!". Eu morava perto de supermercado, ela telefonava e avisava que eu estava indo! Morei sempre em casa; lembro-me de três casas. Na primeira, eu estava com quatro ou cinco anos, tínhamos uma vizinha que achava um absurdo a minha mãe deixar eu andar sozinha na calçada. Mesmo assim, quando a minha mãe me viu em cima do telhado da casa junto com o meu irmão, ela quase caiu das pernas. Para minha mãe foi um susto, mas para os vizinhos! Eles achavam que a minha mãe estava louca por deixar eu subir no telhado. Mesmo assim, ela falava: "- Deixa, ela tem que conhecer, eu fico assustada, mas ela tem que conhecer!". Eu queria conhecer de todo jeito como era o telhado da casa e subi, como todo mundo sobe, devagarzinho, pela torre. Conheci também o forro da casa. Meu irmão me levou, fomos de escada.

Eu me lembro de ir à escola desde pequena. Comecei no Centro de Reabilitação Gabriel Porto, com três ou quatro anos. Lá aprendi o básico. Trocar-me sozinha, amarrar o tênis. Não quis aprender a mexer na cozinha, mas, hoje, sinto falta. Por isso, não me peça um café porque eu não faço, não tenho coordenação para passar o café, morro de medo daquilo virar. Faz falta? Faz. Mas eu tenho como controlar isso. Se morar sozinha, eu compro uma cafeteira elétrica. Parece preguiça, mas eu considero isso um cuidado comigo, porque já tentei uma vez e virou, então, eu não faço de novo. O que sei de cozinha aprendi em casa com minha mãe. Sei fazer brigadeiro e faço no fogo mesmo! No centro de reabilitação também aprendi locomoção, aprendi a andar sozinha na rua. No começo achei que estava sendo perseguida, tinha aquela impressão horrorosa e parei o curso. Com 14 anos voltei para a locomoção, porque aonde eu ia, precisava levar meu irmão. Hoje, ando sozinha em Campinas inteira.

Comecei a aprender o braile no centro e na classe especial do Carlos Gomes, no jardim-de-infância. Fiquei muito tempo na classe especial. Essa classe era só para aluno deficiente visual. Eu não conseguia de jeito nenhum acompanhar as crianças da classe regular, eu não conseguia ficar na classe comum. A professora da classe especial tentou, muitas vezes, colocar-me na classe comum, eu não conseguia me adaptar, fazia muito barulho. Na classe especial, éramos sete e na classe regular, havia mais de trinta alunos. Foi difícil até quebrar essa barreira. Na classe regular, na hora do lanche todo mundo saia correndo e eu ficava ali sozinha porque a escola Carlos Gomes é enorme. Eu queria ir para a cantina, queria ir brincar com eles, mas eu não conseguia. A professora da classe especial não podia me ajudar, ela estava com a outra classe. Eu estava agora na classe comum e teria que fazer o que todo mundo da classe comum faz, porque foi opção minha estar ali. Eu venci essa barreira.
Eu sempre fui decidida. Na 4ª série, minhas notas eram baixas, só nota vermelha. No final do ano fui aprovada! Cheguei em casa e falei: "- Mas mãe! Como é que eu passei de ano? Só tirei nota baixa, a senhora viu a minha caderneta. Eu não passei de ano, eles me passaram de ano porque estão com dó de mim. Eu quero fazer de novo e vou fazer bem feito!".

Isso aconteceu numa época em que só trocavam de professor, até os alunos comuns sofreram muito, porque só trocavam de professor. Minha mãe foi lá e conversou com o diretor e fiz de novo e, aí, fiz bem feito. Por que ter dó? Só porque não enxerga? Ah! Não concordo com isso!

Na 6ª série, começou tudo de novo. Trocavam muito de professor, muito professor faltava. Pensei, vai ser mais um ano perdido, ou mudo de escola, ou perco mais um ano de colégio. Por isso fui para o Colégio Batista e reencontrei a Vilma, que tinha sido minha professora na classe especial, no Carlos Gomes e, agora, estava no Batista.

No Batista, só tive dificuldade no 1º ano do colegial. Tive muita dificuldade com os professores de matemática, física e química. Eles não sabiam me ensinar. Explicavam na lousa para todo mundo e eu pensava comigo mesmo: o que custa chegar aqui, pegar na minha mão e mostrar o desenho?

Um dia a professora de química chamou o meu pai e a minha mãe na escola. Eu falava para todo mundo que ela era uma bruxa e que todos iam repetir se não estudassem. Ela falou para o meu pai e para a minha mãe que podiam me tirar da escola porque eu não ia passar de ano. A partir desse dia, eu chegava da escola, descansava um pouco e já começava a estudar. Passei um ano sem assistir televisão. Meu pai chegava, jantava e já ia me explicar a aula daquele dia. Meu pai sempre fez para mim as figuras geométricas, mandou cortar na madeira. Desde criança ele sempre me mostrou como era o desenho, colou com palito, fez com barbante, mandou cortar na madeira todas as figuras geométricas, sempre me explicou. Em casa tive muita ajuda, muita ajuda mesmo. Por exemplo, "uma reta que no meio tem o zero, do lado direito são os números positivos e do esquerdo os negativos", esse conteúdo o meu pai me explicou e o professor de matemática não soube explicar. É um absurdo!

No Batista, a professora Vilma transcrevia os textos, as provas e dava aula para os pequenos. Ela trabalhava no colégio de manhã, se precisasse acho que ela ajudaria, mas os professores não a procuravam e nem eu.

O professor da classe comum que tem um aluno cego precisa saber, em primeiro lugar, que ser cego não é um bicho-de-sete-cabeças. Não precisa ter medo, deve lidar com ele como se fosse uma pessoa normal. Ele é normal, mas, desenho, ele não está vendo na lousa. O professor precisa entender que eu não enxergo a lousa, ele precisa falar, precisa chegar até mim e explicar, falar enquanto estiver escrevendo. Se não quiser falar, precisa colocar alguém do meu lado para ir ditando. Ao explicar na lousa, não adianta falar: "- Olha, aqui vocês fazem assim". Não adianta, precisa chegar perto e explicar, falar o que aconteceu, onde foi parar o x. Eu passei muita raiva de professor por isso, por que explicar longe e não perto de mim? O professor precisa tirar um tempo e ir explicar para o cego, pertinho dele. Isto é o suficiente. Por que a professora de química chamou minha mãe e falou para me tirar da escola porque eu não passaria de ano? Mas, eu estudei e fiz muita cola, como todo mundo faz, e passei de ano. Para mim, o primeiro colegial foi a maior dificuldade, como foi para muita gente. O segundo, já achei mais fácil, mudou a professora de química, foi outro professor de física. O de química me dava aula particular na casa dele e me explicava o conteúdo da semana. De física, o meu pai me explicava e fazia os desenhos.

Agora, eu tinha e tenho muita dificuldade para escrever. Eu troco muito as letras, escrevo com dois s e é com um s só, coloco x e é dois s, ç. Eu não leio muito e então tenho muita dificuldade. Eu falo que ainda vou fazer um curso para aprender a escrever direito. Para fazer uma redação, além de ter erro de português, eu não tenho idéias. Eu gostaria de fazer uma redação melhor e aprender a escrever melhor. As professoras de português, a não ser uma que me exigia muito, a maioria delas nunca ligou para os meus erros de português, para eu aprender a escrever direito. A professora que cobrava, pedia leitura de jornal toda semana. Ela estava certa em fazer isso. Eu perguntava para ela como eu leria jornal se não enxergo, mas ela respondia que pedisse para alguém ler o jornal para mim, para que eu pudesse escolher uma noticia. E tinha que levar a noticia copiada toda semana. Era muito chato! Mas valeu!

Depois do colegial, fui fazer filosofia na PUC. Cursei um ano, fiquei de dependência em duas matérias e nunca mais voltei para a faculdade. Logo surgiu o curso de programação em São Paulo, o curso do Dosvox e depois comecei a trabalhar.

Eu tenho crise convulsiva e preciso descansar depois de um certo número de horas de trabalho. Não posso ficar nervosa. Se acumula muita coisa, acabo tendo crise. Daí, falei para minha mãe que ou estudava, ou trabalhava. Trabalho não está fácil para ninguém, imagine para um deficiente!

Mas, na universidade acho que foi o ano de escola mais fácil que tive, porque era só copiar da lousa e estudar em casa. Sempre tinha um seminarista para ditar o que o professor escrevia na lousa. Minha única dificuldade foi com a falta de livros em braile. Não havia nada em braile, precisava bater tudo, e ai atrasava, ou então, teria que mandar gravar. Eu não gosto de texto gravado, porque lendo eu aprendo mais, eu não me distraio. Há quem goste, mas eu prefiro ler a ouvir.

Quando prestei o vestibular, achei que não passaria. Prestei para filosofia, mas poderia ser serviço social ou biblioteconomia. Eu não soube escolher. Hoje, prestaria vestibular para serviço social ou biblioteconomia. Se for possível, talvez, um dia, eu faça faculdade, mas não vou morrer por isso.

Hoje vou viver o presente. Vamos ver o que virá. Nem sei se continuarei morando aqui em Campinas, a cidade está muito violenta. Eu tenho até medo que os meus pais queiram mudar de cidade. O meu pai é engenheiro aposentado, mas a minha mãe ainda trabalha. Ela voltou a estudar depois que criou os três filhos. Minha mãe lutou muito e venceu. Ela fez o curso de professor para deficientes mentais e hoje trabalha com o maternal. Meus pais ainda não se mudaram porque eu trabalho aqui e adoro trabalhar na biblioteca braile.

Comecei na prefeitura no setor de informática do município. Eu não fazia nada no setor, cumpria a jornada de oito horas sentada numa cadeira. No curso de informática aprendi programas para trabalhar em banco. Cheguei na prefeitura e os programas eram todos diferentes. Eu queria uma transferência para a biblioteca, falei com o diretor e deu certo, graças a Deus! Eu adoro isto aqui!

Aqui sou mais aceita, as pessoas me consideram, não fico jogada num canto. Puxa vida, no setor de informática, fiquei jogada num canto, parecia uma coisa, não havia serviço, eu quase dormia. Aqui tenho bastante trabalho e se não há trabalho, posso ler ou ficar conversando. Há bastante usuário. À tarde enche de usuário, é uma delícia. Gosto deste emprego e, se voltasse para a universidade, acho que faria biblioteconomia. Não sei, por enquanto vou viver o presente!

Apresentação: Miriam

Miriam nasceu cega, com glaucoma congênito, no ano de 1972, em Campinas, São Paulo. Ela é a filha caçula da família. Seus pais tiveram quatro filhos, mas o primeiro morreu logo após o nascimento. Brincou sua infância num quintal espaçoso, com os irmãos e primos. Nas brincadeiras de rua, juntava com a molecada. Há vinte anos, as ruas do bairro Padre Anchieta eram sossegadas. O conjunto residencial ainda era longe do centro, perto da pista, na saída para Sumaré.

Ela freqüentou várias instituições especializadas antes de ingressar na escola regular na qual iniciou os estudos, aos 11 anos, na 3ª série. Apesar de sempre morar e estudar em Campinas, só na adolescência é que soube da existência da sala de recursos para alunos com deficiência visual que funciona, há mais de 50 anos, na Escola Estadual Carlos Comes.

Foi uma longa caminhada sem livros, sem recursos didáticos, com professores assustados diante da tarefa de ensinar uma aluna cega. Caminhada, muitas vezes, solitária, porque os professores mandavam reunir em grupo na classe e ela se via sozinha. Descobrir a existência de uma escola com sala de recursos foi uma alegria. Mesmo a escola estando na região central da cidade e os problemas com transporte se agravarem. No bairro era mais fácil estudar. No centro, quando tinha dinheiro para a gasolina, o pai trazia de carro, ou a mãe a acompanhava de ônibus.

Terminou o ensino médio com 24 anos e ingressou no curso de pedagogia da PUC-Campinas, mas ficou inadimplente e teve que trancar a matricula logo na primeira série. "Tudo custou muito", foi a síntese de algumas lembranças do tempo da escola. Hoje, mora com os pais na mesma casa da infância. O financiamento ainda não acabou, o pai está desempregado, venderam o carro. A mãe costura para fora e ela está trabalhando como telefonista. Por isso não tem mais tempo para passear, mas gosta de ir ao cinema, caminhar ao redor da Lagoa do Taquaral e sair para comer pizza.

Entrevista: Miriam 12

Um dia, eu soube que havia sala de recursos no Carlos Gomes. [...] Cheguei aqui e conheci a professora Hitomi, foi a minha luz!

Eu tive uma infância muito boa. Minha família sempre me tratou como uma criança absolutamente normal. Não tive maiores dificuldades com a família ou com os colegas de rua. Criança adora brincar na rua e eu brinquei bastante; todas as brincadeiras possíveis e impossíveis eu brinquei, tive amigas muito legais e o apoio da família. Não tinha aquilo de não poder fazer isto ou aquilo porque eu não enxergava. Não, com a minha família nunca teve disso, eles foram super abertos comigo. Desde os oito anos de idade, até hoje, moro no mesmo bairro. Dos oito aos 15 anos eu brinquei muito na rua. Aproveitei muito minha infância. Antes disso, eu morava numa avenida muito movimentada e não podia brincar na rua, pular amarelinha. Mas, eu brincava dentro de casa com os meus primos num quintal enorme, havia goiabeira, bananeira. Meu pai fez balança, gangorra, era muito espaçoso e meus irmãos nunca me excluíram de nenhuma brincadeira. Tenho uma irmã e um irmão mais velhos e eles brincavam muito comigo.

Quando nasci e a minha mãe descobriu que eu não teria a visão, ela procurou se informar sobre escola, sobre quais os recursos que eu teria e, então, aos cinco anos de idade, já entrei numa escola especial. Minha primeira escola foi o Instituto Terapêutico de Valinhos, uma escola especializada para deficiente auditivo, com uma classe especial para deficiente visual. Nesse instituto, fiquei até os seis anos, depois fui para o Centro Cultural Louis Braille e sai com dez anos para entrar no Instituto dos Cegos, onde estudei na sala especial.

Em 1984, aos 11 anos, entrei na 3ª série. Hoje em dia isso não acontece mais. O aluno cego entra na escola regular com sete anos, na 1ª série. Naquela época era mais difícil, e por isso eu entrei com 11 anos na 3ª série, na Escola Municipal São Martins, em Sumaré. As escolas que procurei, em Campinas, não me aceitaram. Eu não sabia da sala de recursos do Carlos Comes. Ela existe há mais de 50 anos e eu não tinha essa informação. Em Sumaré, o meu contato com a professora foi bom. Ela me dava muito apoio e a professora da sala especial ia uma vez por semana para fazer transcrição de prova e transcrição de trabalho.

A dificuldade começou no ano seguinte, na 4ª série, quando eu consegui transferência para a escola estadual do meu bairro. Aí foi um pouco mais difícil, porque o professor não aceitava, ele achava que eu deveria estar numa classe diferente, que ali não era lugar para mim. Mas, sempre fui rebelde, desde pequena eu sabia que tinha que conquistar o meu espaço na sociedade. Uma vez ele reclamou para a professora da sala especial dizendo que eu era muito rebelde. Não era questão de ser rebelde e, sim, de mostrar para ele o que eu tinha condições de fazer. Eu reclamava por atenção. Por exemplo, naquela época, o professor usava livro e a aula era na seqüência do livro. Hoje não, o professor passa mais texto na lousa, porque os alunos têm mais dificuldades para comprar livro, mas naquela época, não. Aí eu vivia reclamando na aula, porque ele fazia a leitura com o pessoal, dava a explicação e depois fazia anotação na lousa. Só que quando eu pedia para ele ditar para mim, ele dizia que não tinha tempo para ficar me orientando. Naquela época, não havia livro em braile, e gravação nem pensar, porque era difícil alguém gravar alguma coisa. Era só prestar atenção em classe e, sem querer me gabar, eu era uma ótima aluna. Eu tirava notas boas nas provas dele.

No ginásio também fiquei completamente sem recurso. Alguns professores me aceitavam, outros não. Às vezes, ao invés de fazer as perguntas para mim, perguntavam para o meu colega do lado. Eu me lembro como se fosse hoje, a professora chegou e disse: "- Para eu saber o nome de vocês, cada um escreve o seu nome nesta lista"; foi de carteira em carteira e, quando chegou na minha frente, eu tenho um pouco de percepção de luz, ela perguntou para a minha amiga do lado: "- Como ela se chama?". E um outro colega respondeu: "- Professora, ela fala, viu?". Às vezes, eu perdia a paciência. Uma vez essa professora me perguntou se eu sabia minha idade, e nesse dia eu respondi: "- Se eu não soubesse, como eu teria chegado na 5ª série?".

Tudo custou muito. Essa professora, ao invés de falar comigo, perguntava para o meu companheiro do lado; outros professores não gostavam de ditar, porque já tinham passado a matéria na lousa e agora ainda tinham que ditar; tive professor que no dia de prova me passou prova oral, porque ele não confiava na transcrição!

Na 5ª série, por um tempo, a professora do instituto foi á escola transcrever as provas, depois não foi mais e fui obrigada a fazer tudo oralmente. Isso me prejudicou muito. Tenho uma defasagem terrível em português.

Alguns professores conversavam comigo, perguntavam da minha vida, tinham um bom relacionamento comigo, mas chegava na hora das provas, de passar matéria nova, aí, não tinha conversa. Uma vez, na 6ª série, eu pedi para a professora de matemática voltar um pouquinho na explicação, era equação de segundo grau, eu estava entendendo a matéria, mas tive dúvida. A professora respondeu que não tinha obrigação de ensinar aluno que deveria estar na classe especial. Mas, muitos professores que me acompanharam da 5ª até a 8ª série foram excelentes comigo. Eles não sabiam como trabalhar comigo, mas não me discriminavam. Eles não tinham informação, não sabiam como me ensinar, faltava um curso para eles saberem como trabalhar com deficiente visual.

Minha maior dificuldade mesmo sempre foi com os professores de matemática. Nas outras disciplinas eu não tive tanta dificuldade; o problema estava na hora de transcrever prova, transcrever livro e na hora de reunir grupo.

Reunir em grupo era complicado. Os professores não se "tocavam" que eu podia fazer parte de um grupo. Na maioria das vezes eu fazia sozinha. Isso, às vezes, por preconceito do aluno. Até hoje eu não entendo, os alunos conversavam comigo, eles brincavam comigo, tinham um relacionamento super bom comigo, mas na hora de fazer a divisão dos grupos, eu sempre estava de fora. Isso no ginásio. Eu tinha uma companheira que ficava sempre do meu lado, junto comigo, às vezes ela deixava o grupo e ficava comigo e a gente fazia em dupla. Mesmo eles tendo um relacionamento bom comigo, eu não sei o que passava na cabeça deles.

Hoje, vejo que os meus problemas não foram tanto com professor, tive problemas, sim, vários que me fizeram até chorar. Mas, eu tinha muitos problemas com relacionamento em classe. Tínhamos amizade, mas quando eu explicava o que eu tinha capacidade de fazer, eles ouviam, mas não me deixavam participar. Quando eu conseguia entrar no grupo, não conseguia opinar, era como se a minha opinião não tivesse importância. A maioria desses alunos foi aprendendo comigo e, quando chegamos na 8ª série, eles já sabiam o que eu tinha capacidade de fazer.

Eu brigava muito por causa dos livros. Não havia os livros batidos ou gravados e eu tinha que prestar atenção só nas aulas. Você Já pensou ir da 5ª até a 8ª série sem livros, só prestando atenção na aula? Você fica na corda bamba, eu conseguia acompanhar, mas com muita dificuldade. Um dia, eu soube que havia sala de recurso no Carlos Comes. Foi no inicio do 4º bimestre, da 8ª série, em 1989. Cheguei aqui e conheci a professora Hitomi, foi a minha luz!

Não estou querendo colocar a Hitomi num pedestal, mas ela foi muito importante na fase crítica da minha vida, porque eu cheguei aqui em setembro, imagina? A minha mãe falou assim: "- É isso mesmo que você quer?", mas eu não tenho nada a perder. Naquele ano, eu estava com notas péssimas de matemática, notas péssimas de química e a professora, desesperada, não sabia o que fazer comigo, e nessa altura eu já pensava em vestibular, já pensava em colegial. Vivia pendurada no conselho. Geralmente, de matemática ia direto para o conselho. Só na 5ª série, consegui passar sem o conselho, porque era uma matemática que eu conseguia fazer tudo no cubaritimo, mas quando começou expressão e equação, se não houver um professor de recurso por trás, ou um professor que tenha a paciência de sentar perto de você para explicar, fica muito difícil. Eu sei que matemática é difícil e que demora a explicação. A matemática para quem enxerga é difícil, para quem não enxerga é fogo.

Fui para o Carlos Comes. Havia um pouco de preconceito, mas já não era tanto, porque quase todos os professores já tinham experiência com aluno deficiente na sala de aula. Comecei a freqüentar a sala de recursos com a Hitomi e os professores me passaram a matéria das provas do 4º bimestre para estudar. A primeira prova foi química e a Hitomi transcreveu tudo com uma semana de antecedência da prova! Tirei A, fiquei super feliz, chorei de felicidade. Encerrei o ano com boas notas, graças a Deus e à Hitomi, que me deu a maior força.

Aí, entrei no 1º ano do magistério e foi a minha cruz! O 1º semestre foi ótimo, mas a Hitomi precisou sair da escola para fazer o mestrado e a sala de recurso ficou sem professor e eu me vi abandonada de novo. A nova professora só fazia transcrição e não dava recurso. Ficou muito difícil.

Desanimei, fiquei super triste, porque é uma luta danada. Quando eu entrei, em 1989, o meu irmão me trazia de ônibus, porque ele trabalhava no banco perto da escola, e meu pai me buscava de carro. Depois eu aprendi locomoção e comecei a ir embora sozinha. No começo de 1990 eu ia e voltava sozinha. Mas, quando comecei a trazer minha máquina, foi aquele problema... Eu vinha com meu irmão, mas não dava para o meu pai vir me buscar todo dia, porque a gasolina era cara e não dava. Minha mãe tinha que vir me buscar de ônibus. Foi muito difícil.

Parei de estudar em 1991 e só voltei em 1994. Sai de Campinas, fui fazer um curso de telefonia em Santos, três meses, e voltei. Em 1992, a Hitomi voltou, para nossa felicidade! Começou a fazer um trabalho de culinária, eu comecei a participar e me deu vontade de fazer o colegial. Voltei a estudar no período da noite, tinha companhia de um vizinho, super amigo do meu irmão que tinha chegado em Campinas há pouco e queria estudar. No 2º colegial conheci uma turma excelente. Os alunos brigavam para me ajudar. Um passava carbono, o outro ditava. Também havia mudado muito o quadro de professores. Veio um professor de física e, eu que nunca tinha conseguido aprender física, com ele eu aprendi, porque ele teve paciência. Ele explicava a matéria e enquanto os alunos faziam os exercícios do livro, ele tirava as dúvidas, e como a maioria do pessoal é desinteressada e só conversava, eu aproveitava esse tempo e ele me explicava a matéria. Ele me explicava e eu não acreditava que estava entendendo a matéria. Na primeira prova já tirei um C! Mas, também, a Hítomi foi batendo a matéria e antes do professor dar conteúdo novo, eu já estava com tudo na mão. Quando começava matéria nova, eu já estava com a teoria na ponta da língua. Ele explicava e falava: "- E aí, entendeu, dona Miriam?", ele me chamava de dona Miriam, "- Entendi, professor!".

Mas, nesse ano, o que me deixou mais feliz mesmo é que o pessoal da classe estava perdido na matéria e eu consegui entender e consegui explicar para vários colegas. Dona Miriam explicando física!

Hoje em dia sou mais aceita nos grupos. Às vezes, eu chego na classe, o pessoal já montou o grupo, mas alguém me chama: "- Miriam você está no meu grupo!". Aqui no Carlos Comes o pessoal já é mais habituado, porque são muitos alunos deficientes visuais. Também a maioria trabalha, anda pelo centro, é um pessoal mais aberto, são pessoas com vontade de aprender. Ainda há preconceito dentro da classe e não são todos que conversam comigo, mas a maioria conversa e isso é muito importante. A convivência com os colegas não tem sido fácil. Na classe especial, a convivência foi melhor. Nós éramos muito unidos e não tive muita dificuldade. Quando fui para a escola comum, a minha classe era muito boa. Os alunos que estudavam comigo eram pessoas de baixa renda; os colegas de classe já trabalhavam com dez, 11 anos, um ajudava o pai na barraquinha de doce, o outro ajudava na horta, era um pessoal que ajudava muito os pais, um pessoal de muita luta. Eles me aceitaram muito bem, levavam-me para passear no intervalo. Para eles foi novidade ter um colega deficiente, para eles era diferente.

Quando fui para a 4ª série, com aquele professor que não me aceitava, os alunos já eram completamente diferentes. Eu entrei na escola e logo notei que era um pessoal de classe média, até comentei com a minha mãe. Desde o inicio, só três alunos me ajudaram, duas meninas e um menino que até hoje me encontram na rua e me cumprimentam. Só eles me ajudaram durante o ano todo e os outros nem conversavam comigo. Era uma dificuldade.

Mas acho que o professor pode ajudar muito, se ele já no primeiro contato não se afastar, chegar perto, perguntar o nome, perguntar como ele pode ajudar, facilita muito, porque o professor não sabe mesmo como trabalhar, então ele precisa dialogar com o aluno, sem medo, para não discriminar. Porque se o aluno deficiente visual está lá é porque ele tem capacidade, se ele chegou naquele grau de estudo é porque tem a capacidade de estar ali e assistir a aula.

O professor deve saber que o aluno deficiente visual só não enxerga, mas ele sente, fala e tem condições de responder às mesmas perguntas que os outros alunos. O professor não pode desistir, mesmo que o aluno não se manifeste e tenha medo do professor. O professor não deve desistir, porque o aluno é capaz e está ali para crescer, como os outros.

Apresentação: Fabiana

Fabiana nasceu no dia 9 de outubro de 1978, em Campinas. Nasceu cega, foi um bebê prematuro. Ela é a caçula e tem um irmão.

Seus pais cursaram a universidade. O pai é engenheiro mecânico e civil e a mãe é professora de português. Seu irmão cursa medicina. A mãe é professora na mesma escola onde Fabiana cursou da pré-escola ao ensino médio.

Fabiana sempre estudou em escolas particulares de ensino regular. Entrou no jardim-de-infância com três anos. Nessa idade, iniciou um programa de estimulação num centro especializado e logo foi alfabetizada em braile. Antes de entrar na 1ª série, já sabia ler. Aos sete anos começou a estudar piano.

Sua mãe aprendeu o braile e o manejo das novas tecnologias, o que lhe facilitou o acesso a todo o material para estudo. Sempre moraram em casa própria. Residem no Jardim Nossa Senhora Auxiliadora, um bairro próximo do centro. A casa é espaçosa e muito confortável, com quatro banheiros.

A família possui dois carros, o que facilita muito a correria de cursar duas universidades: psicologia na PUC-Campinas 13 e música na UNICAMP. Nas horas livres, Fabiana gosta de ler.

Entrevista: Fabiana 14

Há o professor que acredita que o deficiente visual não aprende porque é um deficiente global e outros que acreditam que porque ele não tem visão, desenvolveu uma inteligência extraordinária.

Aos seis anos de idade, entrei no Colégio Imaculada, na classe de alfabetização. Minha mãe sempre lecionou nesse colégio e por isso eu já conhecia todos os professores e todas as pessoas que lá trabalhavam. O ambiente do colégio era um ambiente familiar. Nessa época, eu já tinha começado a aprender o braile na Pró-Visão. Comecei na estimulação com três anos, com a preparação para as atividades cotidianas. Desde os três anos, eu estudava no jardim-da-infância e na Pró-Visão. Os três anos de jardim-da-infância fiz no Catatau.

Ao começar a alfabetização no colégio, eu, praticamente, já estava alfabetizada pela Pró-Visão. Estudei no Imaculada até o 3º colegial. Para isso, o apoio da família foi muito importante. É lógico que o fato da minha mãe já lecionar no colégio contribuiu na minha familiarização com o ambiente e contribuiu também para a motivação que os professores tiveram para se empenhar nesse trabalho. Eu acredito que os pais têm um papel de não deixar que se reforce a deficiência; acho que eles devem aceitar as limitações dos filhos e trabalhar com as habilidades que os filhos podem desenvolver; não acho válido o pai não aceitar as limitações do filho e achar que o filho pode fazer coisas além das limitações dele. É muito importante, também, o papel dos pais em incentivar a integração do filho com pessoas deficientes e pessoas não-deficientes.

A minha convivência com pessoas deficientes, que possuem as mais diversas realidades, sempre contribuiu para o meu amadurecimento. Acho que o contato com pessoas deficientes, num centro especializado, proporcionou-me desenvolver um valor mais humano, fez-me olhar mais para o esforço, a conduta da pessoa do que para o desempenho dela. É lógico que se eu não tivesse uma família que me apontasse esses valores, não adiantaria ir àquela instituição, mas eu acho que a instituição, também, tem um papel interessante nesse sentido.

Por outro lado, na escola não convivi com deficientes. No Imaculada não havia nenhum outro aluno deficiente. Minhas amigas que eram deficientes foram estudar no Colégio Batista, que já era um colégio que recebia outros alunos deficientes, embora poucos.

Ser a única aluna deficiente no colégio trouxe conflito também. As pessoas não sabem lidar com a situação, esperam de nós urna resposta que não temos. Por exemplo, quando o professor precisava explicar um conceito que dependia de ilustrações, de desenhos, de representação gráfica, de um pré-requisito visual, ele dizia que não sabia como fazer e esperava uma solução minha, mas eu também não sabia resolver isso e nem tão pouco sabia a matéria que ele estava dando. Então, como eu poderia apresentar uma solução? Eu vejo que, muitas vezes, as pessoas esperam que, porque sou deficiente, eu resolva o problema; acho que ser a única aluna deficiente no colégio agravou o problema.

Não havia relação entre a escola e a instituição. No colégio não havia sala de recursos. Quem me deu o apoio foi minha mãe, que aprendeu o braile. Embora ela não tenha nenhuma formação em educação especial, como professora regular de português da escola, ela pôde fazer o que a escola precisava, mas dependia dela esse tipo de apoio. Acontece que minha mãe não sabia física, matemática. Essas matérias estavam fora do conhecimento dela. A realidade era bastante nova para os professores, para minha mãe e para mim. A insegurança dos professores fez com que eles jogassem a solução para mim, não que eles não quisessem se empenhar, mas como eles não sabiam como responder, como viabilizar uma solução, eles esperavam de mim. Porém, no geral, na medida do possível, eles faziam o que estava ao alcance deles.

As lembranças da escola que não são boas estão relacionadas ao choque entre a minha realidade e a das outras pessoas. Em cada fase isso provocou um tipo de conflito nas relações. Por exemplo, quando eu era menor, as outras crianças tinham possibilidades de maior movimentação e eu precisava de uma atenção mais específica; isso atrapalhava o relacionamento e eu não conseguia me comunicar com elas e explicar o que estava acontecendo. Hoje, essa questão está em parte resolvida, porque existe a possibilidade de um diálogo maior, qualquer problema que eu tenha sobre a maneira das pessoas agirem eu posso perfeitamente chegar até elas, colocar este problema e as pessoas entenderem. Por outro lado, na infância, não há tanta consciência das diferenças entre as pessoas, das limitações. À medida que se vai crescendo, aumenta a consciência dessa limitação, a consciência sobre as diferenças entre as realidades de cada um. Acho que a adolescência foi o período que mais marcou esse diferencial entre as realidades e entre o que as pessoas fariam, ou não. Mas, ao mesmo tempo em que a infância vai passando, as brincadeiras infantis de ação também vão acabando e em seu lugar surgem atividades que exigem habilidades intelectuais, conhecimento, conceitos, e aí se pode perceber que estamos em pé de igualdade, ainda que sem a apreensão visual. Por isso, na adolescência, muito embora a consciência sobre as diferenças seja maior, também se atinge uma maior igualdade.
A experiência da faculdade tem sido muito diferente em relação à do colégio, porque eu sempre estudei num colégio em que a minha mãe dava aula, eu sempre conhecia tudo e na faculdade é um meio totalmente diferente. Eu me sentia protegida no colégio. Lá sempre fui a filha da professora Vera. Isso acontece com todos os filhos de professores. Não existia uma individualidade entre nós, sempre fui a filha da Vera. Na faculdade isso é um ponto positivo, porque eu sou eu, não fazem referência à minha mãe.

A faculdade é um meio bastante diferente. Os alunos não estão tão atentos aos outros. Isso faz a gente crescer, mas é difícil. É preciso adquirir independência em alguns setores em que não se amadureceu ainda. É um desafio! Estou no curso de mobilidade dentro da faculdade, para aprender a me localizar nos ambientes, ter independência.


O curso de psicologia foi acolhedor. Tanto a coordenação como os professores me acolheram bem. Isso dá uma certa segurança, uma estabilidade. Os alunos têm sido receptivos e interessados; penso que os alunos que procuram o curso de psicologia têm uma tendência mais humana, uma tendência a se relacionar, mesmo não se relacionando bem. Há uma tendência a buscar o relacionamento de forma mais afetiva, mais humana.

Além do curso de psicologia, também faço o curso de música na UNICAMP. Comecei a estudar [piano] aos sete anos, com uma professora que já tinha sido aluna da minha mãe no colégio. A musicografia em braile exige um pouco mais de conceitos musicais do que a escrita em tinta, pois, na partitura em tinta, as duas mãos são escritas uma em cima da outra. No braile ela é uma escrita horizontal; então, para entender qual parte corresponde a cada mão, você tem que ir pela leitura das figuras e pela contagem dos tempos. Em braile não há como ler e tocar com as duas mãos ao mesmo tempo. Primeiro, lê-se uma mão, depois lê-se a outra, até decorar a peça. Bom, em 1992 fui para o conservatório Carlos Comes, me formei o ano passado, em 1996, e prestei UNICAMP.

Levarei mais tempo para terminar a faculdade de música, mas eu quero as duas formações. Na UNICAMP eu assisto, apenas, a duas aulas e vou embora. Não tenho muito tempo para me relacionar com as pessoas. Sinto os professores acolhedores, estão entendendo a questão dos trabalhos. Por exemplo, eu tive que fazer um trabalho em história da arte que envolvia uma pesquisa bibliográfica grande, e não há biblioteca braile que disponha dessa bibliografia. Minha mãe teve que escanear alguns livros e imprimir em braile para que eu pudesse fazer o trabalho, mas a pesquisa ficou reduzida. Fiz o trabalho na medida em que pude fazer, com a bibliografia que eu tinha. Tentei fazer um trabalho o mais coerente, o mais rico possível no conteúdo. Acho que o professor entendeu essa redução da bibliografia e entendeu por que eu só pude entregar o trabalho em data bem posterior ao que ele pediu. Acho que tem que haver empenho e maleabilidade de ambas as partes, porque transcrever para o braile acaba sendo um limitador.

Até o ano passado, eu tinha o Dosvox, mas não tinha a impressora braile. Por isso minha mãe batia tudo na máquina braile. Praticamente tinha que copiar os livros. Alguns textos ela lia para mim, ou gravava a leitura, mas eu nunca gostei de estudar com gravação. Se não tiver jeito eu ouço, mas prefiro ler em braile, concentro-me mais em braile. Sempre preferi ler os livros impressos, se fosse possível. Neste ano, quando eu ainda não tinha a impressora, minha mãe gravou alguns textos da faculdade, textos de antropologia bastante densos e complicados de se entender, e foi difícil estudar com a gravação, pois eram textos que se precisava ficar voltando para entender os conceitos que o autor estava trabalhando. Se eu tivesse lido em braile, apreenderia os conceitos muito mais facilmente. O nosso nível de apreensão e nossa rapidez de leitura equivalem à rapidez de apreensão que um vidente tem em leitura à tinta. Até um vidente se concentra muito mais ao ler um livro do que ouvir uma pessoa falar o texto. Mas, o problema da impressão em braile é o volume do material, fica enorme. Também dificulta muito se o professor adota um texto que já é cópia. Ao escanear perde-se a qualidade, tem-se que corrigir muita coisa, então, é melhor digitar o texto antes de imprimir.

Bem, pensando no professor de ensino regular, de pré-escola, que recebesse um aluno com deficiência visual em sua classe, eu lhe diria para desenvolver habilidades com as quais a criança deficiente pudesse se relacionar com as outras crianças e estar atento para que ela não se isolasse dos coleguinhas. Ao professor do fundamental e médio, diria que não pense que o deficiente já sabe lidar com todas as situações, pois nós não sabemos. O processo de aprendizado deve ser compartilhado entre professor e aluno. Se o professor não sabe lidar com a situação e o aluno também não sabe, os dois juntos devem buscar a solução. Diria, também, que o professor não trate o deficiente como deficiente global. É comum essa confusão.

Às vezes, alguém vai me guiar e me segura muito forte, como se eu não tivesse equilíbrio, ou então, a pessoa fala alto, pois pensa, até inconscientemente, que sou deficiente auditiva, ou então, uma pessoa vai explicar alguma coisa e diz tudo nos mínimos detalhes como se eu não soubesse das coisas. É uma confusão muito comum, e até muito sutil, as pessoas pensarem que temos algum outro tipo de deficiência, mesmo que não pensem de maneira tão explícita. Penso que o professor também é suscetível a essas confusões, dada a cultura que a sociedade impôs, então, esse tipo de confusão pode levá-lo a uma certa insegurança quanto à aprendizagem do deficiente.

Há o professor que acredita que o deficiente visual não aprende porque é um deficiente global e, outros, que acreditam que por que ele não tem visão, desenvolveu uma inteligência extraordinária. Às vezes, as pessoas procuram esse lado meio sensacional, de achar que o deficiente é uma pessoa extraordinária, mas há pessoas muito diferentes, inclusive dentro da categoria da deficiência.

Penso que o professor também é responsável pela integração do deficiente com os outros alunos. Ele pode promover positiva ou negativamente essa integração, conforme sua conduta em classe a forma de se referir ao aluno deficiente. Pois, se o professor vai deixando claro para a classe que o deficiente não pode fazer uma série de coisas, a classe também pode ir estabelecendo essa conduta de que o deficiente é inferior. Cabe ao professor ir mostrando à classe, principalmente com alunos mais jovens, que o aluno deficiente é capaz de realizar os trabalhos na medida das limitações dele, assim como cada aluno realiza seus trabalhos na medida de sua limitação. Eu acho que o professor tem esse papel.

Sobre os recursos, penso que alguns deficientes supervalorizam os recursos. É lógico que ter recursos contribui para estudar, mas acho que esses recursos são um pouco construídos pela pessoa. Se o aluno assiste a uma aula sem livro, mas faz anotações, então ele pode construir o seu próprio material e eu sinto que algumas pessoas por não terem recursos se acomodaram. Não justifica a pessoa dizer que não vai prestar um vestibular porque não dispõe de livros. Acho que durante uma aula o aluno pode fazer uma série de anotações, uma série de apreensões daquilo que o professor está falando, uma série de registros, de forma a construir seu próprio material. Penso que os recursos só determinam, em parte, a possibilidade da pessoa ter uma formação. Ela própria pode construir seus recursos.

Sei que meu futuro será difícil. Não consigo pensar numa aplicação prática em que eu possa reunir as duas formações: música e psicologia. Mas pretendo me formar nas duas áreas e aliar a experiência da psicologia com a música. Pois, os dois cursos se complementam bastante, mais até do que eu pensava. A formação humana é um todo. É difícil pensar agora em uma aplicação prática entre as duas áreas, mas eu penso em atuar, como profissional, principalmente, na área da psicologia.

 


CAPÍTULO 5

LEMBRANÇAS DA ESCOLA
UMA REFLEXÃO POSSIVEL


Solamente los ciegos pueden tocar las palabras [...]
ALEX GRIJELMO


O direito à educação especial pública

Formalmente, a liberdade e a igualdade nos direitos de todos os homens foi proclamada em 1789, na França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nesse documento, consagrou-se o principio dos direitos naturais do homem, direitos que são anteriores à formação da sociedade, em contraposição à estrutura feudal que se baseava em privilégios. Porém, na consolidação do Estado burguês, com o ideário liberal, os direitos de cidadania são a expressão dos direitos dos proprietários.

Os direitos do cidadão podem ser classificados em direitos civis, políticos e sociais. Embora anunciados em 1789 como dever do Estado, apenas em 1942, na Grã-Bretanha, é que são "aprovadas providências no campo da saúde e da instrução, para garantir serviços idênticos a todos os cidadãos, independentemente da sua renda" (B0BBI0, 1994, p. 416).

Na verdade, a formação de um Estado de bem-estar só vai avançar a partir das grandes crises sociais originadas com as duas guerras mundiais, com a organização dos movimentos sociais e a implantação do socialismo, que passa a ser uma ameaça para os países capitalistas. Com isso, o Estado capitalista encontra no welfare state uma possibilidade de conter a organização dos trabalhadores. Hobsbawm (1995) afirma que os Estados de bem-estar só se vão desenvolver como tais a partir da Segunda Guerra Mundial, e que só em meados da década de 1970 é que os gastos com a seguridade social se tornaram a maior parte dos gastos públicos totais em países como Grã-Bretanha e Suécia. Dupas (1999, p. 91) apresenta uma tabela sobre as despesas de proteção social de países europeus (em percentagem do Produto Interno Bruto - PIB) que revela estabilidade de gastos entre o período de 1983 a 1992, o que contraria as previsões de que os Estados europeus estariam diminuindo o orçamento para os serviços sociais. Não é essa realidade que aponta Netto (1999) sobre o Brasil, quando no Governo FHC as reduções de gastos foram significativas nas áreas de educação, saúde, trabalho, assistência e previdência. Se entendermos que os direitos sociais são garantidos a partir do movimento social, da organização dos trabalhadores, pode-se entender que, embora a reestruturação atual do capitalismo apregoe o Estado mínimo, ainda assim, para manter o equilíbrio social os governos europeus não estão conseguindo diminuir os gastos com os direitos sociais conquistados.

No Brasil, a obrigação do Estado com os direitos sociais vai revelar-se na Constituição de 1988, quando o movimento social no país consegue marcar no texto constitucional a responsabilidade com a dívida social brasileira, histórica e secular, através do compromisso com os direitos sociais, criando, assim, "o arcabouço jurídico-político para implantar, na sociedade brasileira, uma política social compatível com as exigências de justiça social, eqüidade e universalidade" (NETTO, 1999, p. 77). Porém, nesse mesmo período, já se redesenhavam no mundo as mudanças no sistema capitalista, que levariam ao enfraquecimento do Estado e às propostas de Estado mínimo. No Brasil, após a Constituição "Cidadã" de 1988, os governos que sucedem assumem os interesses da nova ordem capitalista e, com isso, as verbas orçamentárias para gastos com o social são paulatinamente diminuídas.

Nessa lógica, Canziani - na direção da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Deficiente 15 (C0RDE), órgão autônomo, integrante, nesse período, da estrutura do Ministério da Ação Social - alardeava que ao considerar

[...] o núcleo familiar, cerca de 36 milhões de brasileiros estão diretamente envolvidos com a problemática da deficiência. O custo econômico para o Brasil, gerado pelos portadores de deficiência, é da ordem de 8 bilhões e 800 milhões de dólares por ano. Aplicando-se 1 bilhão de dólares por ano, num período de 10 anos, a economia seria de 17 bilhões de dólares. É importante, assim, que os recursos públicos sejam criteriosamente aplicados, otimizados, em programas de educação, saúde e ação social [...] [1992, p. 30].

Assim, as verbas públicas sociais são destinadas dentro da lógica do menor custo, e não do direito à vida, à educação, à saúde.

Nesse quadro, coloca-se a discussão sobre o direito à educação especial. A história da educação especial no Brasil revela seu caráter filantrópico, assistencial, e não caráter de direito. A análise comparativa dos textos constitucionais de 1946, 1967, 1969 (emenda constitucional n. 1) e 1988 revela que, apenas em 1978, com a emenda de n. 12, a educação especial é citada em artigo único com o seguinte texto: "é assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, especialmente mediante educação especial e gratuita". Depois, aparece em 1988, no art. 208, inciso III: "atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino" (BRASIL, 1996a).

O direito à educação de pessoas deficientes é muito recente em nossa legislação. Como prática social, a educação à pessoa deficiente aparece em nossa história com iniciativas tímidas e isoladas, sempre muito aquém da demanda social. Pois bem, quando esse direito é assegurado em lei, e assim cria a possibilidade de nortear uma prática social mais democrática, os atuais interesses econômicos exigem que o Estado assuma um novo papel, e, com isso, reduza gastos nas áreas sociais. Interesses econômicos que compõem os pilares da reestruturação capitalista, em seu novo ciclo de expansão mundial, e que têm exposto com enorme clareza a necessidade de uma educação que cumpra cada vez mais seu papel reprodutivista e mantenedor da ordem vigente.

Longe da formação que promove o homem, a educação, nesse modelo, visa a qualificar o trabalhador para o mercado de trabalho. As políticas educacionais dirigem esse processo baseando-se no receituário dos órgãos internacionais de investimento aos países periféricos. Nessa direção, Gentili (1996) afirma que à educação cabe dar as ferramentas para o indivíduo competir no mercado, dar as condições mínimas de empregabilidade, ou seja, garantir "a capacidade flexível de adaptação individual às demandas do mercado de trabalho" (idem, p. 25). Dentro dessa lógica, o autor afirma que a função social da educação é, assim, oferecer as ferramentas necessárias para o indivíduo competir no mercado e ter, ou não, emprego é um problema individual.

Diante disso, penso que, no bojo da discussão sobre a ausência do direito à educação especial, outros questionamentos se colocam, dentre eles: A luta pelo direito à educação se encerra na garantia da escolaridade? Não precisamos nos perguntar sobre qual tem sido a função dessa escola? Qual o papel que a educação tem exercido na reprodução da exclusão social? Bastam altos índices de inclusão do aluno deficiente no ensino regular ou podemos, com os altos índices, discutir os princípios, os fins e a função da educação?

Entendo que, ao discutir essas questões, podemos nos aproximar do debate colocado por educadores comprometidos com uma reflexão crítica sobre o papel da educação e, assim, politizar o movimento de inclusão do aluno deficiente no ensino regular. O direito à educação não se encerra no acesso e no sucesso escolar. Penso que ele deve ir além e discutir a função da educação.

Se a educação da pessoa deficiente não é um direito garantido pelo Estado, como essas pessoas estão estudando? Os depoimentos revelam que a educação especial é assumida pela família ou por instituições filantrópicas.

Esses foram os caminhos percorridos pelos entrevistados:

* As famílias que tinham recursos econômicos garantiram uma educação no ensino regular, mesmo na rede particular, e encontraram meios de conseguir os recursos didáticos especializados; veja-se:

Aos seis anos de idade, entrei no Colégio Imaculada, na classe de alfabetização [...] Os três anos de jardim-da-infância fiz no Catatau. Ao começar a alfabetização no colégio, eu, praticamente, já estava alfabetizada pela Pró-Visão. Estudei no Imaculada até o 3º colegial [...] No colégio não havia sala de recursos. Quem me deu o apoio foi minha mãe, que aprendeu o braile [...] Além do curso de psicologia, também faço o curso de música na UNICAMP. Comecei a estudar [piano] aos sete anos, com uma professora que já tinha sido aluna da minha mãe no colégio [...] em 1992 fui para o conservatório Carlos Gomes, me formei o ano passado, em 1996, e prestei UNICAMP [...] [FABIANA].

Na 5ª série, passei para o Colégio Cristo Rei, um colégio particular formidável. Quem repetisse um ano era convidado a se retirar da escola. Quando minha mãe decidiu me matricular nessa escola, três professoras de educação especial da UNESP, uma quase aposentando e com muita bagagem, falaram para ela não fazer isso, mas minha mãe insistiu e só lhes pediu que alguém fizesse ensino itinerante. Foi um dos melhores anos da minha vida. Foi fantástico! [EMMANUELLE].

• As famílias sem recursos econômicos para buscar o serviço educacional na rede particular e/ou sem acesso aos parcos serviços prestados pelo Estado dependem das instituições especializadas. Muitas vezes, esse ingresso se dá após vários anos em casa, sem estudo:

Aí, aos 15 anos, fui para a escola especial. Ir para a escola foi uma transformação na minha vida [...] são horizontes novos que se abrem e que nos dão uma perspectiva nova de vida. Foi um crescimento social que, até então, eu não tinha tido. Um convívio pleno dentro da sociedade é muito importante. [...] Antes de ir para a escola, eu ajudava muito em casa. Eu tinha um irmão bebê e por isso eu dava uma "força" para minha mãe [...] [EDSON].

Na década de 50, nenhum professor, na minha cidade, conhecia o sistema braile. Então, fiquei quatro anos praticamente em casa [...] Antes de ir para o Padre Chico, passei por uma outra instituição, em Ribeirão Preto, que é pertinho da minha cidade - São Sebastião do Paraíso. [...] Nessa instituição, foi a primeira vez que eu vi o braile e foi aí, também, que descobri que eu era cego. Nesse internato só havia adultos e eu estava com 12 anos e não tinha outra criança para dividir experiências, e isso me fazia uma falta terrível. Foi um problema sério. Até que um dia, resolvi não voltar depois das férias. E não voltei [MARCOS].

Vale a pena notar que os direitos sociais precisam ser garantidos em todas as áreas sociais. Por exemplo, mesmo com uma vaga na escola pública com serviço de apoio especializado, sem transporte adequado, o aluno talvez não consiga estudar:

Desanimei, fiquei super triste, porque é uma luta danada. Quando eu entrei, em 1989, o meu irmão me trazia de ônibus, porque ele trabalhava no banco perto da escola, e meu pai me buscava de carro. Depois eu aprendi locomoção e comecei a ir embora sozinha. No começo de 1990 eu ia e voltava sozinha. Mas, quando comecei a trazer minha máquina, foi aquele problema... Eu vinha com meu irmão, mas não dava para o meu pai vir me buscar todo dia, porque a gasolina era cara e não dava. Minha mãe tinha que vir me buscar de ônibus. Foi muito difícil [MIRIAM].

Se estudar é um direito do cidadão, interessante notar que apenas uma participante menciona a necessidade de organização coletiva para a conquista desse direito:

Minha família sempre me deu toda assessoria, mas há muito deficiente abandonado. Nós precisamos de uma associação forte, formada por uma diretoria séria, com estatuto. Uma associação que faça um trabalho de conscientização, de luta pelos nossos direitos. Direito de estudar, de trabalhar [EMMANUELLE].


A relação entre educação especial e trabalho

Para viver, o homem precisa transformar a natureza, o que o diferencia dos demais animais. Esse processo é o trabalho, enquanto atividade intencional, planejada e criadora.

Engels (s/d), ao refletir sobre a gênese da constituição do homem, ilustra como a espécie, ao transformar a natureza, também se transforma. Nesse processo, o corpo, como substrato biológico, humaniza-se, assim, pelo trabalho, o refinamento dos movimentos das mãos, o desenvolvimento fonoarticulatório, a plasticidade do cérebro, e a construção de signos e significados conferem singularidade a essa espécie que necessita, permanentemente, produzir sua existência.

Porém, não é possível falar do desenvolvimento do trabalho sem situá-lo historicamente e compreender como as relações entre os homens se modificam no processo de produção. Da caça à agricultura, da manufatura à indústria, da máquina a vapor à automação, a energia humana despendida no processo de trabalho possibilita a produção da existência humana.

Contudo, nem sempre o homem dispõe de sua energia ou força de trabalho. No modo de produção capitalista, a força de trabalho de um homem é vendida a quem detém os meios de produção, controla o processo produtivo e se apropria do produto da produção. Nessa relação, o salário pago pela força de trabalho é inferior ao valor que o trabalhador cria. A diferença entre o salário pago e o valor que ele criou é a mais-valia, da qual o capitalista se apropria em forma de lucro. Esse processo tem nas entranhas um conflito permanente, e só se concretiza porque se mantém pela opressão coercitiva e ideológica.

Assim, se na gênese a ação intencional e criadora pelo trabalho constituiu o homem, no sistema capitalista, o trabalho aliena, subjuga, aprisiona e domina. Se por um lado as forças coercitivas calam os trabalhadores pela força opressiva das armas e das leis, por outro lado as forças ideológicas criam consenso, submissão e, assim, participam da criação de condições para a produção econômica.

A escola, enquanto instituição social, está imersa e se constitui nessa trama histórica. As instituições sociais são criadas pelos homens e, portanto, não são neutras, respondem aos interesses econômicos e ideológicos que engendram as relações de existência humana.

Nesse sentido, a escola reproduz a formação de um homem que deve estar adaptado às condições históricas de trabalho do seu tempo e lugar social. Muito embora nessa escola também esteja presente o germe do conflito social, que pode impulsionar o movimento de participação e luta social, sua função, relevada nas políticas educacionais, é reproduzir e manter as relações sociais vigentes.

Pois bem, nesse quadro, como pensar a relação entre educação especial e trabalho?
Ora, na sociedade moderna, a pessoa deficiente esteve fora do mercado de trabalho porque:

  • historicamente esteve excluída do processo formal de educação;

  • sua força de trabalho pode encarecer o produto final por causa de seu ritmo, muitas vezes lento, da necessidade de treinamento e tutoria ou de adaptações arquitetônicas, de mobiliário e maquinário;

  • no imaginário social, a pessoa deficiente é incapaz. Mesmo qualificada, ela precisa desmistificar um rótulo secular de incapacidade. Goffman (1988, p. 43) afirma que mesmo quando "o estigmatizado consegue atravessar seus anos de escola ainda com algumas ilusões [...] a procura de trabalho o colocará, amiúde, frente ao momento da verdade". Que verdade? A verdade que revela o preconceito social existente e que questiona seu potencial. A verdade que lhe diz que para competir no mercado de trabalho ele tem mais barreiras que os demais, pois precisa provar sua capacidade, já que traz uma marca que socialmente o revela incapaz.

Os depoimentos revelam que os entrevistados sabem que sua condição lhes confere descrédito no mercado de trabalho, ainda que tenham o diploma do ensino superior.

Nós precisamos de uma associação forte [...] que faça um trabalho de conscientização, de luta pelos nossos direitos. Direito de estudar, de trabalhar. Pense bem, onde eu poderia trabalhar hoje? Quem daria emprego para mim? Mesmo com o curso superior, acho que terei muitas barreiras a transpor até para fazer o estágio. Tenho consciência disso. Estou pedindo a Deus, desde já, amenizar um pouquinho essa situação. Se houvesse uma associação, acho que seria mais fácil [EMMANUELLE].

Mas, também, havia aquela dificuldade com emprego. Toda semana havia debate na universidade sobre emprego na área da comunicação e só ouvi falar que não havia mais espaço para ninguém. Isso mexia com o 1º anista, eu pensava: "- Que eu vou fazer?". Se não teria emprego para os que enxergavam, e para mim? Aí, acabei desistindo. Fiquei um ano só, nem voltei para trancar matricula [MARCOS].

Porém, enquanto o mercado de trabalho está cada vez mais competitivo e restrito e os índices de desemprego e exclusão aumentam, o movimento social, ainda que timidamente, organiza-se na luta pela garantia de trabalho à pessoa deficiente e aos grupos intitulados de minorias. Nesse sentido, a legislação garante cotas de admissão em cargos públicos a afro-descendentes e a pessoas deficientes, aplica multas às empresas que descumprem a legislação e coloca a presença de trabalhadores deficientes na empresa como quesito positivo na avaliação da qualidade final dos produtos.

Na dinâmica desse processo, pesquisas acadêmicas recentes na área da educação especial têm discutido a profissionalização da pessoa deficiente (LANCILLOTTI, 2000), as trajetórias que percorrem no mercado de trabalho competitivo (COSTA, 2001), a organização de cooperativas (PEIXOTO, 2001), a relação entre as instituições especializadas e o mundo do trabalho (KHATER, 2000; PEIXOTO, 2001). Pesquisadores voltam-se para a compreensão das relações históricas entre educação especial e trabalho, avaliam programas institucionais na área da profissionalização, analisam depoimentos de trabalhadores deficientes. Esses estudos revelam que a pessoa deficiente adquire a condição de trabalhador, ou de um potencial trabalhador.

Na internet, há listas que divulgam ofertas de emprego para pessoas deficientes. Em fevereiro de 2002, a Rede Saci (projeto da rede de informações integradas sobre deficiências, fundada em 1990 numa iniciativa da Universidade de São Paulo: www.saci.org.br) divulgava 35 vagas de trabalho para pessoas deficientes, entre elas para: advogados, mensageiros, modelo, assistente social, telefonista, professor, vendedor. Vagas oferecidas em diferentes empresas, tais como: Banco do Brasil, Banco Safra, C&A Modas, Du Pont, Serpro, Editora Abril.

Uma rápida análise nessas diferentes vagas de trabalho desvela uma outra realidade. Há diferentes percursos escolares que levam a diferentes lugares no mundo do trabalho.

Há pessoas deficientes que, desde a infância, foram estudar numa escola especial e ali passaram toda sua vida escolar. Essa realidade é freqüente na área da deficiência mental. Normalmente, quando adultos, participam de programas de treinamento, ou de preparação para o trabalho em oficinas abrigadas, organizadas por essas instituições e, ali, desenvolvem atividades ocupacionais, tais como: jardinagem, padaria, cartonagem, limpeza, encadernação, artesanato em geral. Menos freqüente, mas ainda real, é o caso de crianças cegas que nasceram no interior do país e foram internadas em instituições especializadas existentes em centros urbanos e ali passaram sua vida. Na idade adulta, participam das oficinas gráficas, de encadernação, de montagem de vassouras e dos serviços gerais de escritório e manutenção.

Porém, os depoimentos deste estudo revelam diferentes percursos de vida escolar na escola regular e, conseqüentemente, diferentes percursos no mundo do trabalho. Muitas vezes, falamos em educação formal, como se no sistema capitalista essa educação fosse a mesma para todos os alunos, indistintamente do lugar social que ocupam.

Nos depoimentos, podemos identificar, basicamente, dois percursos de escolarização:

• a busca por uma escolarização que dê chances de competição no mercado de trabalho formal, ainda que isso seja entendido como uma possibilidade incerta;
• a busca por uma escolarização que garanta a sobrevivência, mesmo que isso signifique trilhar o difícil caminho do mercado informal, ou subemprego.

Ir à universidade é buscar qualificação para o trabalho, o que não significa, necessariamente, ter emprego.

Eu estava fazendo ciências sociais na UNICAMP, junto com o curso de direito da PUC, mas tranquei a matricula, eu adorava, mas eu não estava vivendo, só estudava [...] Pense bem, onde eu poderia trabalhar hoje? Quem daria emprego para mim? Mesmo com o curso superior, acho que terei muitas barreiras a transpor até para fazer o estágio. Tenho consciência disso. Estou pedindo a Deus, desde já, amenizar um pouquinho essa situação [EMMANUELLE].

Sei que meu futuro será difícil. Não consigo pensar numa aplicação prática em que eu possa reunir as duas formações: música e psicologia. Mas pretendo me formar nas duas áreas e aliar a experiência da psicologia com a música [...] eu penso em atuar, como profissional, principalmente, na área da psicologia [FABIANA].

Outro percurso de estudo é o dos cursos profissionalizantes, nos quais, talvez, a inserção no mercado de trabalhos mais simples seja garantida:

Além da escola, fiz outros cursos. Cursos profissionalizantes: curso de massagem, de informática e de operador de câmara escura [EDSON].

Parei de estudar em 1991 e só voltei em 1994. Saí de Campinas, fui fazer um curso de telefonia em Santos, três meses, e voltei [MIRIAM].

Para alguns, o acesso à universidade traz a esperança de ter uma profissão e, talvez, um emprego. Sonho que, muitas vezes, acaba logo no 1º semestre do curso. Para outros, os cursos profissionalizantes podem ser uma opção para trabalhos mais simples e, talvez, com isso, a garantia da sobrevivência. Esses dois distintos percursos escolares, ainda que muito simplificados aqui, pois cada um deles comporta nuanças específicas e interessantes para serem analisadas sob diferentes outros aspectos, demonstram que o aluno cego repete a caminhada de milhares de outros alunos em nosso país.

Com isso, há uma parcela da população que, embora assalariada, com a renda familiar consegue comprar os serviços de educação, saúde, transporte, mas uma outra significativa parcela dessa mesma população fica alijada desses direitos. A esses, muito cedo em suas vidas, a única alternativa será trilhar os caminhos da exclusão, os caminhos pela busca de alternativas de sobrevivência, apenas.

Por isso, mesmo com toda a relevância da produção acadêmica, das propostas de inserção da pessoa deficiente no trabalho e a recente oferta de empregos no mercado competitivo, há questões que ainda se colocam: a) Discutir o direito da pessoa deficiente ao trabalho é discutir o direito dessa pessoa ao trabalho explorado? b) Escola e trabalho que promovam ao homem a sua singularidade, como natureza pensante e criadora, não fazem parte de um outro projeto político de sociedade, projeto esse que se contrapõe, radicalmente, à exploração e à coisificação do homem?

Assim, penso que, se o projeto de inclusão estiver vinculado à discussão sobre um projeto político que questione o modelo econômico excludente, pensar a inclusão do aluno deficiente na escola regular é pensar, também, a construção de uma nova sociedade. É pensar num devir em que o trabalho para a existência humana seja um trabalho criador.

Essa não é uma questão pequena. Porém, se os atores das práticas sociais efetivas pensarem seus papéis a partir daí, talvez possamos aprender como se engendram, em diferentes níveis, relações sociais solidárias, cujo valor supremo é o homem e não o mercado.


Os serviços educacionais especializados

A Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação enumera como serviços de atendimento ao aluno com deficiência visual na escola regular a sala de recursos, o ensino com professor itinerante, a classe especial e a escola integradora (BRASIL, 1995). Esses serviços são assim definidos no documento citado:

• Sala de recursos: "local com equipamentos, materiais e recursos pedagógicos específicos à natureza das necessidades especiais do educando, onde se oferece a complementação do atendimento educacional realizado em classes do ensino comum, por professor especializado" [p. 27];
• Ensino com professor itinerante: "é o apoio pedagógico desenvolvido por profissional devidamente capacitado. Caracteriza-se pela movimentação do professor, que se deslocará para as escolas do ensino regular ou supletivo onde existirem, matriculados, alunos com deficiência visual, O ensino itinerante é recomendado para regiões onde não existam escola especial, ou escola regular com sala de recursos" [p. 31];
• Classe especial: "um professor especializado atende a um grupo de alunos portadores de deficiência visual em nível de pré-escola e de alfabetização; a classe especial é instalada no estabelecimento de ensino regular, mas é composta, exclusivamente, de portadores de deficiência visual" [p. 33];
• Escola integradora: "é uma unidade escolar, da rede regular de ensino, selecionada para o atendimento do aluno portador de necessidades educativas especiais. Ela possui recursos especializados e apoio institucional organizado para assegurar o acesso e a permanência do aluno em um ambiente favorável à sua educação" [p. 35].

Todos os serviços especializados são competência de um professor especializado em educação especial. O art. 59 da LDB 9.394/ 96 afirma que "os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado [...]" (BRASIL, 1996b).

As atribuições desse professor são muitas. Primeiramente, podem-se citar em três esferas: no atendimento direto ao aluno; na produção e adaptação de material didático; no atendimento à comunidade escolar, professores, alunos e funcionários, para orientação e esclarecimento sobre a especificidade de seu trabalho e as necessidades do aluno com deficiência. Pode-se, ainda, ampliar as atribuições desse professor, se incluirmos a relevância desses serviços como campo de estágio na formação de novos professores e a necessidade do professor especializado produzir conhecimento nessa área de atuação.

No parágrafo primeiro do artigo 58 da LDB 9.394/96 afirma-se que "haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular para atender às peculiaridades da clientela de educação especial" (BRASIL, 1996b, grifo meu).

Os participantes desta pesquisa falaram numerosas vezes sobre os serviços especializados, sobre os recursos didáticos específicos. Sempre que se lembravam da presença ou, muitas vezes, da ausência dos recursos didáticos, mencionavam a necessidade que tiveram deles ao longo de todo o processo educacional, conforme os exemplos a seguir:

• quando o aluno depende dos serviços públicos de apoio didático:

Um dia, eu soube que havia sala de recurso no Carlos Gomes. Foi no início do 4º bimestre, da 8ª série, em 1989. Cheguei aqui e conheci a professora Hitomi, foi a minha luz! [...] mas a Hitomi precisou sair da escola para fazer o mestrado e a sala de recurso ficou sem professor e eu me vi abandonada de novo. A nova professora só fazia transcrição e não dava recurso. Ficou muito difícil [MIRIAM].

• quando a escola pública depende do serviço especializado oferecido pela instituição especializada:

As transcrições das provas eram feitas com o apoio do Centro Louis Braille, mas procurei não depender muito da entidade. Quando o professor aceitava, eu mesmo ditava para ele o que eu tinha feito na prova. Era uma mão-de-obra muito grande pegar a prova, levar lá no Centro, esperar a transcrição e, aí, trazê-la para o professor de novo. Nesse caso, geralmente tinha que vir alguém da entidade buscar a prova, porque eu não podia levá-la, então, na medida em que eu podia simplificar isso, eu simplificava [EDSON].

Na 5ª série, por um tempo, a professora do instituto foi à escola transcrever as provas, depois não foi mais e fui obrigada a fazer tudo oralmente. Isso me prejudicou muito. Tenho uma defasagem terrível em português [MIRIAM].

• quando a família providencia os recursos:

No colégio não havia sala de recursos. Quem me deu o apoio foi minha mãe, que aprendeu o braile. Embora ela não tenha nenhuma formação em educação especial, como professora regular de português da escola, ela pôde fazer o que a escola precisava, mas dependia dela esse tipo de apoio [FABIANA].

Meu pai sempre fez para mim as figuras geométricas, mandou cortar na madeira. Desde criança ele sempre me mostrou como era o desenho, colou com palito, fez com barbante, mandou cortar na madeira todas as figuras geométricas, sempre me explicou. Em casa tive muita ajuda, muita ajuda mesmo. Por exemplo, "uma reta que no meio tem o zero, do lado direito são os números positivos e do esquerdo os negativos", esse conteúdo o meu pai me explicou [...] O [professor] de química me dava aula particular na casa dele e me explicava o conteúdo da semana. De física, o meu pai me explicava e fazia os desenhos [ELIANA].

[...] Meus pais fizeram um tabuleiro quadriculado de papelão com os eixos x e y numerados; na intersecção eu colocava alfinete, passava a linha e ia montando a função, assim, eu fiz os três anos de colegial com gráfico [...] Em Limeira, não havia nenhum professor especializado, por isso meu pai batia as provas. Ele recebeu autorização da escola [EMMANUELLE].

Dos numerosos exemplos de fala que anunciam as lembranças sobre os serviços de apoio, talvez seja Miriam quem faça a melhor síntese sobre seu significado, quando fala da luz e do abandono:

Cheguei aqui e conheci a professora Hitomi, foi a minha Luz! [...] mas a Hitomi precisou sair da escola para fazer o mestrado e a sala de recurso ficou sem professor e eu me vi abandonada de novo [MIRIAM, grifos meus].

As lembranças mais marcantes sobre a ausência dos recursos e a necessidade do professor da sala regular ter orientação sobre as necessidades do aluno cego referem-se aos anos passados no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio, quando os professores são formados pelos cursos de licenciatura:

No ginásio também fiquei completamente sem recurso. Alguns professores me aceitavam, outros não. Às vezes, ao invés de fazer as perguntas para mim, perguntavam para o meu colega do lado. Eu me lembro como se fosse hoje, a professora chegou e disse: "- Para eu saber o nome de vocês, cada um escreve o seu nome nesta lista"; foi de carteira em carteira e, quando chegou na minha frente, eu tenho um pouco de percepção de luz, ela perguntou para a minha amiga do lado: "- Como ela se chama?" e um outro colega respondeu: "- Professora, ela fala, viu?" [...] Tudo custou muito. Essa professora, ao invés de falar comigo, perguntava para o meu companheiro do lado; outros professores não gostavam de ditar, porque já tinham passado a matéria na lousa e agora ainda tinham que ditar; tive professor que no dia de prova me passou prova oral, porque ele não confiava na transcrição! [MIRIAM].

[...] quando falei com a professora de química, no 1º colegial, a respeito do meu material que seria um pouco diferente, ela disse que me daria um trabalho. Eu disse que não queria fazer trabalho, eu queria ter acesso à mesma matéria que o pessoal teria, porque se eu quisesse fazer um vestibular, precisaria desse conteúdo. Aí, eu a senti bastante insegura com relação a como me ensinar, mesmo eu dizendo que não tinha segredo algum e que se eu não conseguisse visualizar alguma coisa, eu pediria que me explicasse mais uma vez, mas, mesmo assim, ela se sentiu ainda bem insegura [EDS0N].

Houve um professor com quem eu tive problema. Ele exigia "decoreba" e falou que eu era uma aluna fraca, que não tinha condições para estar no colegial. Respondi que cheguei sem decorar. Aí ele falou: "- Quero ver se o que você escreve tem sentido". Eu me matei de estudar. Mas, a classe percebeu que ele não estava dando aula para mim, porque ele falava apontando o mapa: "- O planalto tal fica aqui..."; os próprios alunos da classe reclamaram, sem eu saber. Foi super bonito [EMMANUELLE].

No Batista, só tive dificuldade no 1º ano do colegial. Tive muita dificuldade com os professores de matemática, física e química. Eles não sabiam me ensinar. Explicavam na lousa para todo mundo e eu pensava comigo mesma: o que custa chegar aqui, pegar na minha mão e mostrar o desenho? [ELIANA].

Sobre a formação do professor da licenciatura, existe a portaria n. 1.793, de dezembro de 1994, na qual se recomenda incluir a disciplina "Aspectos ético-político-educacionais da normalização e integração da pessoa portadora de necessidades especiais", prioritariamente nos cursos de pedagogia, psicologia e em todas as licenciaturas (art. 1º).

Sem dúvida, a inclusão de uma, disciplina no currículo da licenciatura não resolve todos os problemas apontados, que perpassam desde a falta de material até problemas de discriminação. Porém, essa ação deve somar-se a muitas outras que têm como objetivo a integração do aluno deficiente no ensino regular. A formação do professor permanece como assunto em debate no país. Mais uma vez, a legislação na área da educação especial coloca-se como um objetivo a ser alcançado, um objetivo que depende da capacidade de organização do movimento social. Acho que merecem destaque também, nessa categoria, as lembranças sobre o difícil acesso à universidade:

• sobre o vestibular:

O meu objetivo era a USP. Não passei por oito pontos. O problema do vestibular da USP é tempo. Não dá tempo para fazer as provas. Na PUC-Campinas também o tempo não é suficiente, é o mesmo tempo para todo mundo e nós precisaríamos entrar primeiro para poder ler, antes de começar a marcar o tempo para a prova. Na UNICAMP, os presidentes de sala explicaram os desenhos e os mapas e isso facilitou muito. Uma palavra global do professor sobre o gráfico dispensa você de olhar linha por linha. Ter o mesmo tempo no vestibular é uma injustiça [EMMANUELLE].

• sobre as outras barreiras:

Na UNICAMP [...] sinto os professores acolhedores, estão entendendo a questão dos trabalhos. Por exemplo, eu tive que fazer um trabalho em história da arte que envolvia uma pesquisa bibliográfica grande, e não há biblioteca braile que disponha dessa bibliografia. Minha mãe teve que escanear alguns livros e imprimir em braile para que eu pudesse fazer o trabalho, mas a pesquisa ficou reduzida. Fiz o trabalho na medida em que pude fazer, com a bibliografia que eu tinha. Tentei fazer um trabalho o mais coerente, o mais rico possível no conteúdo. Acho que o professor entendeu essa redução da bibliografia e entendeu por que eu só pude entregar o trabalho em data bem posterior ao que ele pediu. Acho que tem que haver empenho e maleabilidade de ambas as partes, porque transcrever para o braile acaba sendo um limitador [FABIANA].

Na faculdade, continuam as mesmas barreiras, não muda nada. Na PUC o trote foi muito "legal". Fui tratada com igualdade; no pedágio, quando o motorista não dava dinheiro, o veterano avisava que eu apanharia de bengala. Foi muito divertido. Agora, a insegurança dos professores continua a mesma. No começo, ninguém acredita em você, depois muda. O maior problema é a estrutura arquitetônica da PUC-Campinas, que é horrível, não há referência nenhuma naquele Pátio dos Leões. Meu pai, até hoje, entra comigo porque não há pontos de referência; o prédio é um labirinto e eu me sinto muito dependente. Continua faltando material, com todo o avanço da informática [EMMANUELLE].

Alguns alunos deficientes começam a chegar nas universidades. Antes casos pontuais, agora há universidades com projetos específicos para receber esses alunos. Também aqui a legislação já existe; a portaria n. 1.679, de 2 de dezembro de 1999, dispõe sobre os requisitos de acessibilidade aos portadores de deficiência física e sensorial no ensino superior. Chama a atenção, nas lembranças dos participantes, que todos falaram da dificuldade de estudar sem material impresso em braile.

Na escola, o difícil era ter material para estudar [...] Na maior parte das vezes, os livros que eu usava na escola nem sempre eram os mesmos que o professor utilizava, isso quando eu utilizava algum livro. Na maior parte das vezes, eu acompanhava a aula de ouvido e tentava pegar aquilo que era passado na sala, assimilando o máximo que podia e, quando dava, eu estudava com os colegas que tinham os livros. Isso porque, se mandasse gravar alguma coisa, ou transcrever para o braile, muitas vezes, quando o material ficava pronto, já havia terminado o ano. Era uma loucura. Muito difícil mesmo [EDSON].

Continua faltando material, com todo o avanço da informática. [...] O problema é que toda a tecnologia é muito cara no Brasil e não posso viver sem a impressora braile. No curso de direito tem-se que ler. Não há outro jeito, há textos que não adianta gravar, precisa-se ler [EMMANUELLE].

Naquele tempo, era muito mais difícil estudar, porque não havia material nenhum. Não havia livro, era muito raro, principalmente aqui em Campinas. Por isso eu dependia muito de estudar em grupo. Passar as apostilas para o braile era "um Deus nos acuda", porque o trabalho é manual, é artesanal. Se fosse passar a apostila para o braile, ela só serviria para o próximo ano. Esse ano não daria para acompanhar a classe. A solução era estudar em equipe na casa dos colegas [MARCOS].

Minha única dificuldade foi com a falta de livros em braile. Não havia nada em braile, precisava bater tudo, e aí atrasava, ou então, teria que mandar gravar. Eu não gosto de texto gravado, porque lendo eu aprendo mais, eu não me distraio. Há quem goste, mas eu prefiro ler a ouvir [ELIANA].

Eu brigava muito por causa dos livros. Não havia os livros batidos ou gravados e eu tinha que prestar atenção só nas aulas. Você já pensou ir da 5ª até a 8ª série sem livros, só prestando atenção na aula? Você fica na corda bamba, eu conseguia acompanhar, mas com muita dificuldade [MIRIAM].

Até o ano passado, eu tinha o Dosvox, mas não tinha a impressora braile. Por isso minha mãe batia tudo na máquina braile. Praticamente tinha que copiar os livros. Alguns textos ela lia para mim, ou gravava a leitura, mas eu nunca gostei de estudar com gravação. Se não tiver jeito eu ouço, mas eu prefiro ler em braile, concentro-me mais em braile. Sempre preferi ler os livros impressos, se fosse possível. Neste ano, quando eu ainda não tinha a impressora, minha mãe gravou alguns textos da faculdade, textos de antropologia bastante densos e complicados de se entender, e foi difícil estudar com a gravação, pois eram textos que se precisava ficar voltando para entender os conceitos que o autor estava trabalhando. Se eu tivesse lido em braile, apreenderia os conceitos muito mais facilmente [FABIANA].

"Garantir o suprimento de material de transcrição braile/tinta, tinta/braile" é uma das atribuições do professor da sala de recursos, conforme o rol de competências estabelecido pelo MEC (BRASIL, 1995, p. 30). Porém, é preciso pensar que o professor da sala de recursos recebe alunos cegos e com visão reduzida que estudam naquela escola e nas escolas próximas. Em Campinas, há alunos cegos de cidades próximas que freqüentam as salas de recursos de escolas estaduais e municipais, porque na cidade de origem não há esse serviço e a prefeitura local prefere oferecer transporte a criar o serviço. Bem, além disso, é provável que esse professor terá alunos de diferentes séries e níveis de ensino e, com isso, o volume de material a ser transcrito será muito grande. Sem pensar em todas as outras atribuições desse professor.
Mas, como estudar sem ler? Ler textos, ler mapas, ler música, ler fórmulas, ler desenhos?

Sobre essa questão, Yamamoto (1995) propõe, como resultado de pesquisa, a "criação de um serviço que ampare a Sala de Recursos e o Professor Itinerante na produção de material adaptado ao educando com deficiência visual" (p. 122). Esse serviço contaria com equipamentos de informática e demais aparelhos que auxiliassem o professor na reprodução e criação de material didático, para que o aluno cego tivesse, efetivamente, as condições necessárias para o estudo.


A função da palavra na ausência da visão

Numa abordagem histórico-cultural, a relação do homem com o mundo real é mediada por instrumentos e signos. Da pedra lascada à mais refinada tecnologia, o homem cria e produz instrumentos que possibilitam sua relação com a natureza. Relação imperiosa, tendo em vista que o homem necessita transformar a natureza em busca de suprir suas necessidades de sobrevivência. Esse processo de transformação se dá pelo trabalho. Com os signos, que são elementos que representam ou expressam objetos, eventos ou situações, o homem criou sistemas simbólicos pelos quais ele representa a realidade e estabelece comunicação.

A linguagem é o sistema simbólico básico desenvolvido em todos os grupos humanos para representação da realidade. Ela traz em si os conceitos generalizados e elaborados pela cultura humana. A linguagem permite ao homem operar com objetos, situações e eventos ausentes ou distantes; engendra processos de abstração e generalização com a formação de conceitos e modos de ordenar o real; garante a comunicação entre os homens, o que possibilita a preservação, transmissão e assimilação de informações e experiências acumuladas pela humanidade ao longo da história.

Entre as várias formas de linguagem - gestual, plástica, escrita, oral -, a palavra é considerada o signo por excelência. Luria (1986, p. 27) afirma que "o elemento fundamental da linguagem é a palavra; a palavra designa as coisas, individualiza suas características; designa ações, relações, reúne objetos em determinados sistemas". Em suma, a palavra transmite a experiência histórica e cultural do homem.

A gênese da palavra na espécie humana é atribuída por Engels (s/d, p. 271) à necessidade que os homens tiveram de dizer algo uns aos outros para planejar e organizar a ação coletiva do trabalho. A gênese da palavra na criança está no processo de internalização da experiência humana que se dá a partir das relações entre os homens (LURIA, 1986, p. 29).

Luria (idem, p. 43) afirma que a palavra tem dois componentes fundamentais: a referência objetal e o significado. O primeiro tem a função de designar o objeto, o traço, a ação ou a relação e o segundo tem a função de separar determinados traços no objeto, generalizar e introduzir esse objeto em determinado sistema de categorias.

Sobre a função de significar, Vygotsky (1987, p. 125) faz uma distinção entre o significado e o sentido das palavras; o autor afirma que

"uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido [...] dependendo do contexto uma palavra pode significar mais ou menos do que significaria se considerada isoladamente [...] o significado permanece estável ao longo do todas as alterações de sentido. O significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala."

Para clarear essa distinção, Luria (1986, p. 45) ilustra com o exemplo da palavra carvão: seu significado, encontrado em qualquer dicionário da língua, vai descrever e categorizar o objeto carvão; seus sentidos dependerão dos interlocutores e do contexto em que essa palavra será utilizada, como por exemplo, nos diferentes sentidos presentes no uso da palavra carvão para uma dona-de-casa que utiliza carvão para preparar o alimento da família, para o cientista que o tem como objeto de estudo, para o pintor que o utiliza como instrumento de trabalho, para uma criança que com ele brinca.

Mas é em Bakhtin (1988), um autor mais preocupado com o uso social das palavras do que com os significados mais estáveis e dicionarizados, que a palavra é definida como um fenômeno ideológico por excelência. Bakhtin afirma que a palavra isolada do contexto e dos interlocutores é neutra. Porém, na relação social, ela assume seu caráter ideológico ao assumir diferentes papéis em diferentes domínios, indo desde o cotidiano até a estética, a ciência, a moral, a religião, a política. O autor afirma que classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua, mas as palavras confrontam-se com valores contraditórios.

Nessa perspectiva teórica, signos e significados são produzidos nas relações entre os homens e nelas são internalizados pelo indivíduo. Assim, o homem aprende e se humaniza na convivência social utilizando instrumentos e signos.

Vygotsky afirma que, na busca por um espaço de convivência social, a pessoa cega compensa a ausência da visão pela palavra. A palavra do outro nomeia-lhe o mundo real, insere-a no tecido ideológico das relações. Assim, a palavra humaniza o homem.
Neste estudo, os participantes, ao lembrarem de momentos relevantes de aprendizado e apreensão do mundo real, falaram da apropriação de experiências significativas, da necessidade de interação com o grupo social, da excelência da palavra como mediadora na apropriação do mundo. Acima de tudo, os participantes falaram que conheceram o mundo com experiências empíricas nomeadas pelo grupo social de que faziam parte, em que os sentidos sensoriais foram muito importantes; conheceram o mundo pela voz do grupo que lhes nomeou e significou objetos, ações e relações e, assim, ensinou-lhes as tramas ideológicas presentes na convivência entre os homens.

• Falam da apropriação de experiências significativas:

[...] quando a minha mãe me viu em cima do telhado da casa junto com o meu irmão, ela quase caiu das pernas. Para minha mãe foi um susto, mas para os vizinhos! Eles achavam que a minha mãe estava louca por deixar eu subir no telhado. Mesmo assim, ela falava: "- Deixa, ela tem que conhecer, eu fico assustada, mas ela tem que conhecer!". Eu queria conhecer de todo jeito como era o telhado da casa e subi, como todo mundo sobe, devagarzinho, pela torre. Conheci também o forro da casa. Meu irmão me levou, fomos de escada [ELIANA].

• Falam da necessidade de interação com o grupo social:

- quando se aprendem valores:

A convivência com os colegas não tem sido fácil. Na classe especial, a convivência foi melhor. Nós éramos muito unidos e não tive muita dificuldade. Quando fui para a escola comum, a minha classe era muito boa. Os alunos que estudavam comigo eram pessoas de baixa renda; os colegas de classe já trabalhavam com dez, 11 anos, um ajudava o pai na barraquinha de doce, o outro ajudava na horta, era um pessoal que ajudava muito os pais, um pessoal de muita luta. Eles me aceitaram muito bem, levavam-me para passear no intervalo. Para eles foi novidade ter um colega deficiente, para eles era diferente. Quando fui para a 4ª série, com aquele professor que não me aceitava, os alunos já eram completamente diferentes. Eu entrei na escola e logo notei que era um pessoal de classe média, até comentei com a minha mãe. Desde o inicio, só três alunos me ajudaram, duas meninas e um menino que até hoje me encontram na rua e me cumprimentam. Só eles me ajudaram durante o ano todo e os outros nem conversavam comigo. Era uma dificuldade [MIRIAM].

- quando se aprendem conteúdos escolares:

Naquele tempo, era muito mais difícil estudar, porque não havia material nenhum. Não havia livro [...] Por isso eu dependia muito de estudar em grupo [...] A solução era estudar em equipe na casa dos colegas. Os grupos se reuniam não em função da minha cegueira, todo mundo estudava junto. Isso foi no comecinho dos anos 70, a economia no Brasil estava mais estável, era aquele momento de euforia, a mulher não tinha ainda saído para trabalhar fora de casa e as meninas gostavam muito de estudar em equipe. Eu participava com o pessoal e com isso não tive problema de livro, já que estudava em grupo [MARCOS].

• Falam da excelência da palavra como mediadora na apropriação do mundo:

A cartilha era Caminho suave, renovada e ampliada. Meus pais preparavam o material. Na lição do bebê, minha mãe pegou uma bonequinha de plástico, cortou tecido de fralda, colocou fraldinha na bonequinha e colou na cartilha. A estagiária, que ficava comigo na classe, na hora da atividade, descolava o bonequinho da cartilha e me dava na mão. Na lição do ninho de passarinho, a minha mãe me deu um ninho inteiro de passarinho na mão para eu sentir a textura do ninho, "a casinha do joão-de-barro", depois reproduziu o ninho na cartilha, bem pequeno. Na lição da árvore, eu vi a árvore. Ela cortou casca do tronco e colou um pedaço na cartilha [...] Para mim foi fantástico, porque eu não tinha noção daquilo no plano. No plano não dá para ter a realidade. Existe essa cartilha em braile, mas é só desenho. Minha mãe achou que dessa forma eu não teria noção da lição. Sempre, todo o material foi confeccionado pelos meus pais [EMMANUELLE].

Esse exemplo sintetiza elementos importantes desta discussão. Neste momento, não cabe analisar a concepção e metodologia de alfabetização que expressa o livro didático utilizado pela professora, e sim o procedimento adotado pelos pais da Emmanuelle, mesmo porque ela já estava alfabetizada, como relata:

Fui alfabetizada em braile pela tia Vilma e aos cinco anos e meio, já sabia ler e escrever tranqüilamente. Porém, só entrei na 1ª série com sete anos [...] o 1º semestre da 1ª série foi horrível para mim, porque eu já sabia tudo. A professora falava para fazer o c mas eu já sabia e isso me desinteressou muito. Quando entrou matéria nova foi mais estimulante, como é até hoje.

Porém, ainda sobre a cartilha, é interessante destacar que todo exemplar traz um anúncio na capa que anuncia a proposta de alfabetizar pela imagem. Com essa afirmação, já estava dada, na capa do livro, a incapacidade da aluna cega de acompanhar as lições. Porém, seus pais buscaram uma forma para que ela participasse das aulas e acompanhasse as lições com os colegas da classe, ao mesmo tempo em que podia se apropriar de novos conceitos.

Essa mesma cartilha já existia impressa em braile. Porém, seus pais perceberam que era um momento importante para a filha ampliar o conhecimento empírico do mundo, ao mesmo tempo que participava da convivência do grupo. Não é difícil imaginar que, entre crianças de sete anos, uma cartilha recheada de "imagens táteis tridimensionais", sem dúvida, foi um elemento de surpresa e destaque entre os colegas e, portanto, um elemento de aproximação, e esse seria, incontestavelmente, o maior desafio que a Emmanuelle teria pela frente.
Assim, a nomeação do mundo real ampliava-se ao mesmo tempo em que se abriam novas possibilidades de interação social.


A pobreza na raiz da exclusão escolar

Historicamente, no Brasil, a maioria das pessoas deficientes em idade escolar não freqüenta o ensino regular. Dados apresentados pelo MEC acusam que uma pequena parcela de pessoas deficientes recebem algum atendimento educacional no país (BRASIL, 1994). Às pessoas deficientes estão reservadas vagas nas instituições especializadas, nem sempre de caráter educacional. Excluída da escola, a pessoa deficiente fica alijada do direito à educação formal.

O uso exaustivo de uma determinada palavra pode banalizar seu real significado. No dicionário, a palavra excluir é definida como: "ser incompatível com; afastar, desviar, eliminar, pôr de lado, abandonar, recusar, não admitir, omitir, pôr fora, expulsar, privar, despojar, pôr-se ou lançar-se fora, isentar-se, privar-se" (FERREIRA, 1999). Assim, estar excluído revela uma prática social que coloca milhares de crianças afastadas, privadas, recusadas pela escola regular, por serem incompatíveis com os propósitos e modelo de aluno esperado nessa rede.

Mas os dados dos depoimentos orais falam mais alguma coisa além disso. Eles mostram que, mesmo antes de o movimento de inclusão ter chegado ao Brasil, mesmo com força de lei, algumas famílias já conseguiam que seus filhos freqüentassem escolas regulares. Também é importante lembrar que legalmente essa possibilidade podia assim ser interpretada na lei desde 1961, na lei 4.024, art. 88, que afirma: "a educação de excepcionais deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade".

Pois bem, dos seis participantes da pesquisa, duas moças iniciaram os estudos na educação infantil, no ensino regular privado, e aos sete anos ingressaram na 1ª série da escola regular particular, ao mesmo tempo em que freqüentavam atendimento pedagógico especializado, em instituição especializada, na reabilitação da criança cega.

Comecei na estimulação com três anos, com a preparação para as atividades cotidianas. Desde os três anos, eu estudava no jardim-da-infância e na Pró-Visão. Os três anos de jardim-da-infância fiz no Catatau [...] Aos seis anos, entrei no Colégio Imaculada, na classe de alfabetização [...] Ao começar a alfabetização no colégio, eu, praticamente, já estava alfabetizada pela Pró-Visão [FABIANA].

[...] fui para o maternal com um ano e oito meses, numa escolinha de ensino regular. Antes, já fazia estimulação precoce com a tia Vilma Machado [...] Eu fazia estimulação três manhãs por semana e à tarde, escolinha normal, O Patinho Amarelo, em Limeira [EMMANUELLE].

Uma outra entrevistada inicia a educação em instituição especializada, mas ingressa, aos seis anos de idade, no "jardim-de-infância" numa classe especial para alunos cegos em escola regular pública e completa a 4ª série do ensino fundamental na classe regular dessa mesma escola.

Eu me lembro de ir à escola desde pequena. Comecei no Centro de Reabilitação Gabriel Porto, com três ou quatro anos. Lá aprendi o básico. Trocar-me sozinha, amarrar o tênis [...] Comecei a aprender o braile no centro e na classe especial do Carlos Gomes, no jardim-de-infância. Fiquei muito tempo na classe especial. Essa classe era só para aluno deficiente visual [...] A professora da classe especial tentou, muitas vezes, colocar-me na classe comum, mas eu não conseguia me adaptar, fazia muito barulho [...] [depois] Eu venci essa barreira [ELIANA].

Enquanto os outros três fizeram percursos muito diferentes,

Entrei na escola especial aos 15 anos de idade. Comecei a estudar na escola comum com 16 anos, no supletivo [...] Antes disso, eu não tinha tido nenhum contato com a escola [EDSON].

Quando fui para o colégio, fui para o internato, o Instituto Padre Chico, em São Paulo. Na verdade, foi ali que conheci crianças cegas. Eu nunca tinha tido contato com nenhuma criança cega. Antes de ir para o Padre Chico, eu passei por uma outra instituição, em Ribeirão Preto, que é pertinho da minha cidade - São Sebastião do Paraíso [MARCOS].

Minha primeira escola foi o Instituto Terapêutico de Valinhos, uma escola especializada para deficiente auditivo, com uma classe especial para deficiente visual. Nesse instituto, fiquei até os seis anos, depois fui para o Centro Cultural Louis Braille e sai com 10 anos para entrar no Instituto dos Cegos, onde estudei na sala especial. Em 1984, aos 11 anos, entrei na 3ª série. Hoje em dia isso não acontece mais. O aluno cego entra na escola regular com sete anos, na 1ª série. Naquela época era mais difícil, e por isso eu entrei com 11 anos na 3ª série, na Escola Municipal São Martins, em Sumaré. As escolas que procurei, em Campinas, não me aceitaram [MIRIAM].

Se considerarmos que estar excluído da escola regular é estar excluído socialmente, uma vez que a educação formal é um direito social, ficam as perguntas: O que exclui, então? Nem sempre é a deficiência o que exclui?

Dupas (1999, p. 13) afirma que o termo exclusão social vem sendo muito utilizado, atualmente, sem que haja uma delimitação adequada. O autor cita um levantamento realizado na literatura recente em que foram encontrados mais de vinte categorias de indivíduos tratados como excluídos, dentre eles os desempregados de longo prazo, os velhos, os sem-terra, os analfabetos, os evadidos da escola, os diferentes físicos e mentais, as mulheres, os estrangeiros, os que sofreram mobilidade para baixo; isso revela a diversidade de critérios de classificação que vão "desde estar excluído da possibilidade de garantir a sobrevivência física, até um sentimento subjetivo de ressentimento por não desfrutar de bens, capacidades ou oportunidades que outros indivíduos desfrutam" (idem, p. 22).

Para Dupas, a exclusão social deve ser definida pela pobreza em países onde os direitos sociais não garantem, minimamente, a sobrevivência de seus cidadãos. O autor entende que pobreza é a incapacidade de satisfazer necessidades básicas, é a "dificuldade de acesso real aos bens e serviços mínimos adequados a uma sobrevivência digna" (1999, pp. 24 e 34), sendo o acesso determinado pela renda disponível, normalmente proveniente de trabalho e pelas oportunidades abertas pelos programas públicos de bem-estar social.

Nessa perspectiva, é possível entender por que o Edson só entrou numa escola especial, pela primeira vez, aos 15 anos:

Meus pais eram meio ciganos, mudávamos muito, nós morávamos em cidades pequenas. Passei os últimos anos da minha infância em Curitiba, mas, mesmo assim, morávamos longe da cidade e não havia muito recurso mesmo. Só comecei a estudar depois que viemos para Campinas. Ficamos mais próximos da escola e aí pude começar os estudos [EDSON].

Ou o Marcos ter ficado impedido de freqüentar a escola regular e, com isso, ter passado vários anos de sua vida internado entre cegos:

[...] eu só fui ver escola outra vez na adolescência. Fui para um colégio diferente, porque na minha cidade, eu sou de Minas Gerais, lá, não havia recurso, ninguém conhecia o braile. Quando fui para o colégio, fui para o internato, o Instituto Padre Chico, em São Paulo. Na verdade, foi ali que conheci crianças cegas. Eu nunca tinha tido contato com nenhuma criança cega [MARCOS].

Ou a Miriam freqüentar a escola sem material de estudo, na maioria dos anos em que estudou:

Eu brigava muito por causa dos livros. Não havia livros batidos ou gravados e eu tinha que prestar atenção só nas aulas. Você já pensou ir da 5ª até a 8ª série sem livros, só prestando atenção na aula? Você fica na corda bamba, eu conseguia acompanhar, mas com muita dificuldade [MIRIAM].

Interessante, ainda, acompanhar os diferentes percursos escolares. Dois entrevistados, num determinado momento, estavam matriculados na mesma escola pública da cidade, onde existe uma sala de recursos para alunos deficientes visuais; porém, eles percebem que a escola pública está em crise. A desorganização do trabalho pedagógico, a sucessiva troca e ausência de professores afetam o cotidiano escolar de todos os alunos, e eles tomam a decisão de sair dessa escola. Porém, traçam diferentes caminhos. Enquanto o Edson sai da escola pública e vai estudar em casa, pelo Telecurso, a Eliana vai para uma escola particular com serviço de apoio para alunos deficientes visuais.

Só a 1ª série do colegial fiz no ensino regular, no Carlos Gomes, mas a 2ª e a 3ª fiz pelo sistema de eliminação de matéria [...] Estudava as matérias separadamente e fazia os exames do estado. Não havia aula. Eu estudava em casa, pegava livros, ou alguns programas no Telecurso, na televisão [...] Mudei de sistema porque foi uma época meio conturbada na escola. Não havia professor na sala de recurso e o aproveitamento em sala de aula também estava muito complicado; das 25 aulas da semana, eu estava aproveitando 10 aulas apenas; a situação da escola estava crítica. O problema não era só a falta de professor na sala de recursos, mas a estrutura da escola que deixava muito a desejar. Os professores faltavam muito, não havia material, havia muito aluno desmotivado que não estava a fim de estudar e só fazia bagunça, e muito barulho na sala de aula. Havia um grupinho interessado, mas a maioria do pessoal não estava querendo levar nada a sério [EDSON].

Isso aconteceu numa época em que só trocavam de professor, até os alunos comuns sofreram muito, porque só trocavam de professor [...] Na 6ª série, começou tudo de novo. Trocavam muito de professor, muito professor faltava. Pensei, vai ser mais um ano perdido, ou mudo de escola, ou perco mais um ano de colégio. Por isso fui para o Colégio Batista e reencontrei a Vilma, que tinha sido minha professora na classe especial, no Carlos Gomes e, agora, estava no Batista [ELIANA].

Os diferentes relatos revelam que a discriminação social, provocada pela deficiência, pode ser minimizada se a pessoa deficiente não estiver excluída socialmente com base no critério de pobreza definido por Dupas (1999).

Nesse sentido, entendo que as práticas sociais para inclusão do aluno deficiente na escola regular devem partir da análise da totalidade sobre a exclusão social efetiva que o atual sistema econômico vem produzindo, em vez de estar, unicamente, centradas na análise de que a exclusão se dá a partir da deficiência em si.

Não se pretende, neste estudo, negar a deficiência. Pretende-se recuperar a discussão para além dos estudos que caracterizam a deficiência num indivíduo abstrato, sem ter uma história que se desvela num tempo e num lugar social determinado.

Bueno afirma que ao situar a deficiência ou a excepcionalidade como um fenômeno universal e independente do tempo e do espaço, isola as contradições da moderna sociedade capitalista e coloca no mesmo nível o excepcional oriundo dos extratos superiores com o das camadas populares quando, na verdade, esse último, além do estigma e do preconceito com relação à sua diferença específica, sofre pelo fato de se constituir em cidadão de terceira classe [1993, p. 139].

O autor define como de terceira classe o indivíduo que, além de pertencer às camadas populares e, por isso, ser tutelado e assistido, em vez de ter os direitos de cidadania garantidos, tem mais uma marca negativa, a da excepcionalidade. Nesse sentido, penso que é necessário um novo eixo de discussão sobre a inclusão de alunos deficientes no ensino regular. Não se pode justificar a exclusão pela deficiência, apenas. A análise precisa partir da exclusão social de que são vítimas milhões de pessoas pobres no mundo atual.

A perversidade do capitalismo, que se aprofunda em sua fase atual, revela-se sem máscaras nas estatísticas que apontam os altos índices de desemprego e pobreza. No Brasil, a queda do índice de desemprego, no ano de 2001, em comparação aos anos anteriores, é explicada pelo desalento, pois a população desistiu de procurar trabalho, conforme divulga o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (SANTOS, 2002); a expectativa de vida no país é de 67 anos, enquanto no Japão é de 80 anos e nos Estados Unidos de 78 anos (UNICEF, 2001). O apartheid social provocado pela opressão econômica e, conseqüente, a repressão política têm colocado à margem da vida digna um número cada vez maior de pessoas. Assim, entende-se aqui que o critério da exclusão social escolar não está centrado apenas em características biológicas, de gênero ou de raça, mas que a exclusão está determinada pelos interesses ditados por um modelo econômico de profunda exploração do homem.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas Vozes
FERREIRA GULLAR

Meu poema é um tumulto:
a fala que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:
se dizes pêra,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu em tuas glândulas)

A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos rumores no capim
o sabor do hortelã (essa alegria)
a boca fria da moça
o maruim na poça
a hemorragia da manhã
tudo isso em ti
se deposita e cala.

Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que dispara o poema)
chama esses fósseis à fala.

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
 

As muitas vozes de que fala o poeta fizeram-me pensar nas muitas vozes com as quais dialoguei neste trabalho, tomando-me ora de alarido, ora de clarão. Mas, fizeram-me pensar, também, que este trabalho é, apenas, uma das sínteses possíveis. O texto, assim como o poema, é tecido em uma dentre muitas possibilidades de leitura do real. São muitas e diferentes as vozes, diz o poeta. São múltiplas e complexas as tramas do real, diz o pensador. Com certeza, outras vozes, em alarido ou em clarão, trarão novas leituras.

Mesmo porque, construir uma escola inclusiva, uma vida digna, é desafio coletivo de muitas vozes. Não se constrói no isolamento acadêmico, mas com a participação acadêmica. Nem com um passe de mágica, ou com medidas simplistas. E nem por decreto. Aliás, se possível fosse por decreto, a mágica já estaria feita. Não faltam leis no nosso país. Fruto da histórica instabilidade econômica e política, há uma profusão de leis no papel; Comparato (1999, p. 15) já anunciava o réquiem da Constituição de 1988 quando ela contava com 25 emendas em dez anos de existência; em 2002, somavam-se 35 emendas (www.planalto.gov.br).

Analisar a legislação referente aos direitos da pessoa deficiente foi como navegar num país imaginário. Se, por um lado, o avanço da participação social expressa, muitas vezes, conquistas importantes, por outro lado, representantes políticos de interesses econômicos conservadores adiam as regulamentações, enfraquecem os mecanismos para aferir o cumprimento das leis, indeferem a liberação de verbas, governam por medidas provisórias.

Nesse sentido, pode-se entender que os direitos expressos na legislação referente às políticas sociais colocam-se como um devir, um horizonte que se busca alcançar, uma baliza de referência para novas lutas do movimento social. Gramsci (1980, p. 152) afirma que é opinião muito difundida e, inclusive, é opinião considerada realista e inteligente, que as leis devem ser precedidas do costume, que a lei só é eficaz quando sanciona os costumes. Esta opinião está contra a história real do desenvolvimento do direito, que sempre exigiu uma luta para afirmar-se, luta que, na realidade, é pela criação de um novo costume.

Cabe então, divulgar essa legislação, apropriarmo-nos dela para a participação e organização social.

Não vejo outro caminho além da organização do movimento social. Tendo em vista que, se a exclusão social das pessoas deficientes não se explica pela deficiência em si (não me refiro ao preconceito mas à exclusão social) e sim pelas condições de pobreza, a luta pela inclusão politiza-se. A deficiência deixa de ser uma categoria fechada em si mesma e, assim, a pessoa deficiente passa a ser sujeito histórico, ocupa um lugar social, num tempo marcado. Portanto, as pessoas deficientes que têm negado seu direito de cidadania precisam lutar por ele. Nessa perspectiva, a legislação que anuncia esse direito pode ser um devir importante.

Ao refletir sobre a necessidade de organização, Saviani (1997, 1998) destaca a necessidade de os educadores colocarem-se em resistência ativa, enquanto resistência coletiva e com propostas (1997, p. 235).

A partir deste estudo, apresentam-se duas propostas ao debate sobre a construção da escola inclusiva:

• A formação do professor deve considerar a heterogeneidade humana e, dentre ela, as particularidades referentes ao ensino da pessoa deficiente. Questionar a determinação biológica não é negar a dimensão biológica. A diversidade que há entre as crianças tem raízes históricas, culturais, sociais e biológicas. Não há por que negar nenhuma dimensão do real. O professor precisa conhecer as raízes da diversidade humana e, assim, aprender a desenvolver e criar uma práxis pedagógica que impulsione o desenvolvimento de todos. Nessa linha, entendo que a educação especial deve ser conteúdo de todos os cursos de formação de professores da educação básica. Também em cursos de nível médio, dado que há regiões do país com alto índice de professores leigos. À universidade cabe decidir como esse conteúdo deve ser trabalhado; há, dentre outras, propostas de inserção de disciplinas nas licenciaturas, cursos de extensão, de especialização e de inserção de tópicos específicos nos programas de curso. Essa é uma responsabilidade da universidade pública, como locus de produção de conhecimento, o que não descompromete os docentes das universidades privadas, principalmente as comunitárias.

• A rede pública de educação deve oferecer serviços educacionais especializados de apoio ao aluno deficiente visual que está no ensino regular. Esse aluno precisa desses serviços para ter acesso, permanência e sucesso escolar. Negar esses serviços é compactuar com uma política que impede o acesso aos direitos sociais.
 

Caminhos não há
Mas os pés na grama os inventarão.

FERREIRA GULLAR
 



ANEXOS

1. INDICADORES SOCIAIS

I. Familiares

1. Profissão do pai?
2. Profissão da mãe?
3. Emprego atual do pai?
4. Emprego atual da mãe?
5. Nível de escolaridade do pai?
6. Nível de escolaridade da mãe?
7. Rendimento médio da família?
8. Residência atual onde mora é própria, alugada, outro? Especificar.
9. Residência da família quando você nasceu era própria, alugada, outro? Especificar.
10. Local onde você mora hoje em Campinas? (Nome do bairro)
11. Local onde você nasceu (nome da cidade)? Zona urbana ou rural?
12. Número de filhos que seus pais tiveram?
13. Algum irmão seu morreu?
14. Sua posição entre os filhos? (Mais velho, caçula, 4º filho etc.)
15. Você tem plano de saúde?
16. Hoje, quais pessoas moram na sua casa?

II. Itens e serviços disponíveis no domicílio: não/sim/quantos

  • Videocassete

  • Máquina de lavar

  • Geladeira

  • Aspirador

  • Carros

  • Televisão em cores

  • Rádio

  • Freezer

  • Banheiros

  • Empregada mensal

 

2. GLOSSÁRIO

1. Classe especial: sala de aula em escolas de ensino regular organizada de forma a se constituir em ambiente próprio e adequado ao processo ensino-aprendizagem do alunado da educação especial. Nesse tipo de sala, os professores capacitados selecionados para essa função utilizam métodos, técnicas e recursos pedagógicos especializados e, quando necessário, equipamentos e materiais didáticos específicos.

2. Cubarítmo: material com caracteres braile padrão que permite à criança cega fazer uso da matemática.

3. Ensino com professor itinerante: trabalho educativo desenvolvido em várias escolas por docente especializado que periodicamente trabalha com o educando portador de necessidades especiais e com o professor de classe comum, proporcionando-lhes orientação, supervisão e ensinamentos adequados.

4. Estimulação precoce: conjunto organizado de estímulos e treinamentos adequados, oferecidos nos primeiros anos de vida às crianças já identificadas como portadores de deficiência e àquelas de alto risco, de modo que lhes seja garantida uma evolução tão normal quanto possível.

5. Impressora braile: existem hoje, no mercado mundial, diferentes tipos de impressoras braile, seja para uso individual, seja para produção em larga escala. As velocidades de produção são muito variadas. Essas impressoras, geralmente, podem imprimir em braile interpontando ou não em seis ou oito pontos, bem como produzir desenhos.

6. Mobilidade: habilidade que a pessoa cega possui de se movimentar de um lugar para outro, utilizando-se de técnicas especificas e dos sentidos remanescentes.

7. Orientação: desenvolvimento da habilidade que a pessoa cega possui de reconhecer ambientes e estabelecer relacionamento desses ambientes consigo mesma.

8. Reglete: instrumento utilizado para a escrita manual em braile, composto por uma prancha e uma régua com celas vazadas para a composição da escrita em relevo.

9. Sala de recursos: local com equipamentos, materiais e recursos pedagógicos específicos à natureza das necessidades especiais do aluno, onde se oferece a complementação do atendimento educacional realizado em classes do ensino comum.

10. Síndrome: conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes.

11. Sintetizador de voz: conectados a um computador, permitem a leitura de informações exibidas em um monitor. Dentre as diferentes modalidades produzidas em outros países, inclusive com voz sintetizada na língua portuguesa, destaca-se o Dosvox, desenvolvido pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

12. Sistema braile: sistema de comunicação de símbolos baseado no diagrama de seis pontos em relevo utilizado pelas pessoas cegas para a formação de caracteres para leitura e escrita.

13. Sistema operacional Dosvox: o Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ desenvolveu um sistema operacional para atender aos deficientes visuais com as seguintes ferramentas computacionais: sintetizador de voz portátil; sistema operacional complementar ao DOS, destinado a produzir saída sonora com fala em língua portuguesa; editor de textos, cadernos de telefones, agenda de compromissos, calculadora, relógio, jogos etc.; utilitários para acesso à internet, para preenchimento de cheques e outros.

14. Sorobã: instrumento matemático manual utilizado para facilitar aos portadores de deficiência visual a realização de cálculos matemáticos com precisão.
 




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NOTAS

1 - Neste livro usa-se o termo pessoa/aluno deficiente como aquela/aquele que apresenta deficiência visual, auditiva, física, mental ou múltipla. Bueno (1993, pp. 27-40) apresenta uma interessante reflexão sobre os diferentes termos que, ao longo da história, identificam os usuários da educação especial.
2 - Neste estudo os termos inclusão e integração são usados como sinônimos. Houaiss (2001, pp. 1.594 e 1,630) afirma que incluir é "fazer parte de um certo grupo" e integrar é "incluir um elemento num conjunto, formando um todo coerente". Para conhecer a distinção conceitual desses termos utilizada por alguns autores ver Sassaki (1997) e Mantoan (1998).
3 - Instituições particulares sem fins lucrativos.
4 - Deflação: frear a inflação com medidas monetárias ou financeiras (Houaiss, 2001, p. 926).
5 - Expressão que surge no final dos anos de 1980, entre tecnocratas norte-americanos, para designar o conjunto de políticas de estabilização da moeda, abertura da economia, combate ao déficit público e privatizações; receituário neoliberal.
6 - O dicionário Houaiss (2001) apresenta duas possibilidades de grafia para esta palavra: braille e braile. Optei por braile.
7 - Deficiência visual é uma categoria que inclui pessoas cegas e pessoas com visão reduzida. Na definição pedagógica, a pessoa é cega, mesmo possuindo visão subnormal, quando necessita de instrução em braile; a pessoa com visão subnormal pode ler tipos impressos ampliados ou com o auxílio de potentes recursos ópticos (INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT, 2002). A definição clínica afirma como cego o indivíduo que apresenta acuidade visual menor que 0,1 com a melhor correção ou campo visual abaixo de 20 graus; como visão reduzida quem possui acuidade visual de 6/60 e 18/60 (escala métrica) e/ou um campo visual entre 20 e 50 graus, e sua visão não pode ser corrigida por tratamento clínico ou cirúrgico nem com óculos cenvencionais (CARVALHO, 1994).
8 - Entrevista realizada na sala de vídeo da Biblioteca Municipal, no dia 12 de agosto de 1997.
9 - Entrevista realizada na residência da Emmanuelle, no dia 26 de agosto de 1997.
10 - Entrevista realizada na sala de vídeo da Biblioteca Municipal, no dia 12 de agosto de 1997.
11 - Entrevista realizada na sala de vídeo da Biblioteca Municipal, no dia 12 de agosto de 1997.
12 - Entrevista realizada na sala de aula da escola Carlos Gomes, no dia 28 de agosto de 1997.
13 - Formada em psicologia, teve a maior nota do Provão-2001 do estado de São Paulo.
14 - Entrevista realizada na casa da Fabiana, no dia 31 de julho de 1997.
15 - Atualmente, vinculada à Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.



SOBRE A AUTORA

Katia Regina Moreno Caiado é pedagoga graduada na PUC - Campinas. Mestre em educação especial pela UFSCAR e doutora pela Faculdade de Educação da USP, com orientação da professora doutora Roseli Baumel. Ministrou aulas durante nove anos no curso de pedagogia da UNIMEP. Desde 1989 é docente da Faculdade de Educação da PUC - Campinas, onde já assumiu diferentes cargos administrativos, como coordenação de departamento e coordenação de curso de graduação e especialização. No momento é diretora associada da Faculdade de Educação da PUC-Campinas, ministra aulas na graduação e pós-graduação lato e stricto sensu, coordena o Grupo de Pesquisa Sociedade e Educação Inclusiva e desenvolve estudos sobre movimentos sociais e educação especial.
 


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= O Aluno Deficiente Visual na Escola: lembranças e depoimentos =
Kátia Regina Moreno Calado.
Campinas, SP: Autores Associados: PUC. 2003.
Coleção Educação Contemporânea

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12-Set-09
publicado por MJA